As ações afirmativas raciais rompendo com o paradigma da criminalização do negro

July 3, 2017 | Autor: Juracy Espíndola | Categoria: Criminologia
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As ações afirmativas raciais rompendo como o paradigma da criminalização do negro1 Juracy Espíndola de Almeida2

Após a redemocratização do país, Sabrina Moehlecke (2002) destaca que os movimentos sociais começaram a cobrar do Poder Público uma atuação mais efetiva sobre as questões de raça, gênero, etnia e adoção de medidas compensatórias, como as ações afirmativas. Decorrido o período de quase três décadas, é importante retomar a discussão sobre as atuais políticas de promoção da igualdade racial no Brasil. Nesse sentido, a presidente da república, Dilma Rousseff, sancionou, em 29 de agosto de 2012, a Lei nº 12.711 – Lei das Cotas – que dispõe sobre o processo seletivo para ingresso nos cursos de graduação nas universidades federais e instituições federais de ensino técnico de nível médio (BRASIL, 2012). Esta lei prevê reserva de vagas para negros e negras para o ensino superior, além da reserva para alunos de baixa renda e que estudaram em escolas públicas. Deste modo, o presente artigo tem a proposição de discutir a quebra de alguns paradigmas após a implementação de ações afirmativas raciais. Contudo, o ponto central do trabalho é estabelecer a relação da construção social dos signos3 raciais com a teoria da rotulação4 na criminologia crítica. À vista da implantação de políticas antirracistas, Stan Bailey e Edward Telles fizeram uma pesquisa de opinião pública sobre a aceitabilidade dessas 1

Trabalho de conclusão da disciplina de Criminologia, ministrada pela professora Drª Cristina Zackseski. 2 Aluno do IV Curso de Especialização em Segurança Pública e Cidadania. 3 Rita Laura Segato inaugura a ideia de que “raça é signo”, apresentando que a ideia de raça constrói um conjunto de significação. Assim, as pessoas passam a ter determinadas características por se enquadrarem em determinado grupo racial, étnico ou qualquer outro fator estigmatizante. Dessa forma, as pessoas passam por classificações deterministas e fatalistas. Para saber mais: SEGATO, Rita Laura. Raça é signo. Série Antropologia, n. 372, 2005. 4 Esta tese, da qual provém sua própria denominação (“etiquetamento”, “rotulação”) se encontra definitivamente formulada na obra de BECKER (1971, p. 19) nos seguintes termos: “os grupos sociais criam o desvio ao fazer as regras cuja infração constitui o desvio e aplicar ditas regras a certas pessoas em particular e qualificá-las de marginais (estranhos). Desde este ponto de vista, o desvio não é uma qualidade do ato cometido pela pessoa, senão uma consequência da aplicação que os outros fazem das regras e sanções para um “ofensor”. O desviante é uma pessoa a quem se pode aplicar com êxito dita qualificação (etiqueta); a conduta desviante é a conduta assim chamada pela gente” (BECKER, 1971, p. 19 apud ANDRADE, 1995, p. 28-29).

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ações políticas no Rio de Janeiro, nos anos 2000. Esse estudo foi comparado a pesquisas realizadas nos Estados Unidos e apresentaram as seguintes conclusões. A primeira conclusão foi a percepção de que havia um ambiente favorável ao debate sobre políticas de ações compensatórias no Rio de Janeiro, no entanto, havia uma resistência da elite branca em apoiá-las. A segunda comprovação foi que os programas de ações afirmativas raciais tinha apoio da maioria da população carioca, quer seja pela a maioria dos negros, quer seja por quase metade dos brancos. A terceira conclusão foi que para se fazer um Brasil democrático é imprescindível uma franca discussão com grupos inferiorizados, especialmente a população considerada negra que compõe quase metade da população brasileira. Por fim, concluem que esse era um momento histórico importante para criar políticas antirraciais de consenso (BAILEY e TELLES, p. 39, 2002). Dessa forma, Bailey e Telles (2002) consideraram que o Brasil possuía um cenário favorável para implantação de políticas antirracistas, apesar da oposição da elite branca em aceitar a política de reserva de vagas por critérios raciais. Não obstante, o domínio da hegemonia branca não é o fator determinante na “tomada de decisões” de se construir ou não políticas antirraciais. Em contraposição a esse domínio hegemônico, surgiram movimentos da consciência negra no Brasil, em especial na década de oitenta, quando se completou o tricentenário de morte de Zumbi dos Palmares (MOEHLECKE, 2002, p. 2). Assim, verificam-se alguns resultados da mobilização política desses movimentos como: a implantação do sistema de cotas pela Lei 12.711/2012, fato de várias universidades já adotarem esse processo de seleção a mais de dez anos, dentre outras conquistas. Dessa forma, avaliam-se alguns dos obstáculos transpostos pelas universidades cotistas até a promulgação da Lei das Cotas. Além disso, outro desafio vencido por política afirmativa e que nem todas as universidades e institutos federais a praticavam, mas agora são obrigados a fazerem por força de lei. Dessa forma, acredita-se que as ações afirmativas raciais ampliarão as mudanças de representações dos signos sociais do negro.

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Flávia Piovesan destaca cinco questionamentos sobre a política de cotas raciais. O primeiro questionamento referia-se à questão da “igualdade formal versus igualdade material”. Assim, o argumento dos oponentes às ações afirmativas é a interpretação literal do princípio da isonomia, reduzida ao fragmento “todos são iguais perante a lei”. No entanto, as ações afirmativas se fundamentam na busca pela igualdade material (PIOVESAN, 2008, p. 893). O segundo dilema versou sobre o duelo das “políticas universalistas versus políticas focadas”. Desta forma, os opositores a reserva de vagas argumentavam que ações compensatórias exigiriam políticas focadas5, isto é, essa medida divergiria das políticas inclusivas de caráter universalistas. Ainda assim, uma resposta a esse questionamento é que políticas focadas podem ser agregadas a políticas universalistas, uma vez que, essas são inócuas na redução das desigualdades raciais (PIOVESAN, 2008, p. 893-894). O terceiro problema seriam os critérios a serem adotados considerando a “classe social” e a “raça” ou “etnia” dos grupos a serem reparados. Isso quer dizer que de um lado existe o branco pobre e do outro o negro pertencente à classe média. Ainda sobre essa ótica, existe um “ciclo vicioso, em que a exclusão implica discriminação e a discriminação implica exclusão”, ou melhor, o negro continua a ser discriminado independente de classe social (PIOVESAN, 2008, p. 894). A quarta questão seria o risco da política de cotas gerar categorização racial (racialiazação) na sociedade brasileira, além de acirrar as hostilidades raciais. Todavia, a discriminação positiva faz o caminho inverso, ainda que empoderando-se dos mesmos critérios (raça e etnia) usados historicamente para segregar os negros (PIOVESAN, 2008, p. 894). O quinto e derradeiro dilema reportava-se, especialmente às cotas para negros nas universidades. Destarte, a universidade constitui-se um espaço de poder e, por esse motivo, “é fundamental democratizar o poder e, para isso, há que se democratizar o acesso ao poder, vale dizer, o acesso ao passaporte universitário” (PIOVESAN, 2008, p. 894).

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Políticas favoráveis a determinados grupos socialmente vulneráveis.

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Em face destes questionamentos, percebeu-se que as ações de compensação raciais encontrariam possíveis empecilhos, tais como: no âmbito jurídico, devido à interpretação restritiva que alguns juristas fazem do princípio da isonomia, no entanto, o Supremo Tribunal Federal6 já se pronunciava favorável às políticas antes mesmo da criação da Lei das Cotas. Na esfera das políticas equitativas, dado a característica de política focada das ações afirmativas, porém fica evidenciado que as políticas universalistas não corrigem as diferenças sociais entre as raças. Sob os critérios de seleção dos beneficiários o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE – classificou os negros em pretos, pardos e indígenas7. Sobre o risco da racialiazação gerar as hostilidades raciais, pode-se destacar a mudança de significações dos negros, uma vez que esse discurso considera o negro é violento simplesmente por sua apresentação fenotípica. E como a inclusão do negro no espaço universitário é uma forma de democratização do poder. Por fim, Sabrina Piovesan conclui que a promoção da igualdade racial deve ser “imperativo ético-político-social capaz de enfrentar o legado discriminatório que tem negado à metade da população brasileira o pleno exercício de seus direitos e liberdades fundamentais” (PIOVESAN, 2008, p. 895). Ainda no âmbito universitário, uma questão abordada por José Jorge de Carvalho foi a limitação teórico-metodológica do observador sobre as políticas afirmativas raciais. Nesse caso, considera o professor universitário como intérpretes dessa política. À vista dessa consideração, Carvalho enfatiza que “o ideário das cotas, [...] aponta questionamentos teóricos e metodológicos muito mais densos e amplos do que possam parecer à primeira vista” (CARVALHO, 2006, p. 101). Além disso, Carvalho cita o conceito de “exotopia”, inaugurado por Mikail Bakhtin, importante para avaliação de ações afirmativas:

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RE 614.873-RG/AM, Relator: Min. Marco Aurélio. RE 597285RG/RS, Relator: Min. Ricardo Lewandowski. 7 INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Características Étnicosraciais da População: um estudo das categorias de classificação de cor ou raça 2008. Disponível em: , consultado em 28/09/2014.

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Parafraseando o conceito de exotopia, ou extraposição de Mikhail Bakhtin, sugiro que o teste de verdade desse discurso branco somente possa surgir se introduzirmos uma exotopia racial: o grupo racial enfrentado deve necessariamente reagir às formulações do grupo racial hegemônico. Bakhtin inventou o termo “exotopia” para enfatizar a posição de vantagem do intérprete, dentro de uma perspectiva dialógica; nos casos em que aplicou o termo, defendeu a lucidez da extraposição na perspectiva do observador, ou do outro frente ao que enuncia o discurso (BAKHTIN, 1982, p. 352 apud CARAVALHO, 2006, p. 101).

Nesse caso, é importante considerar a ótica do observador, já que a “tomada de decisões” sobre políticas de inclusão racial passa pelo crivo da hegemonia branca. Carvalho (2006) destaca ainda que a classe de docentes das universidades brasileiras constitui parte considerável da questão racial no Brasil. Como consequência, a inclusão racial dos negros será solucionada quando os docentes universitários se enxergarem como parte do problema e passarem a fazer parte da solução (CARVALHO, 2006, p. 102). De qualquer forma, a Lei 12.711/2012 é um imperativo que não depende da aprovação do corpo docente universitário para ser utilizada. Entretanto, a identificação dos professores como integrantes dessa política, pode contribuir para sua melhor eficácia. Para completar a análise das mudanças engendradas pelas ações afirmativas raciais no Brasil, será utilizada a abordagem da criminologia crítica sob o viés do paradigma da reação social. Nesse intento, o ponto nevrálgico sobre o protagonismo das ações afirmativas é a teoria da rotulação (etiquetamento). Por essa razão, é significativo considerar a afirmação de Lola Aniyar de Castro (1983) de que “ninguém é, pois, essencialmente um delinquente”, pois repousa sobre o conceito do delito uma “certa” relatividade. Por sua vez, essa relatividade deriva das variações da reação social, em que se afirma que não existe distinção entre os delinquentes e os não delinquentes (ANIYAR DE CASTRO, 1983, p. 65). Por outro lado, Vera Regina Pereira de Andrade afirma que a concepção de criminalidade não é ontológica, é uma construção social. E que a criminalidade é estruturada pelo interesse do controle social seletivo, que se perfaz pelo “etiquetamento” (labelling). O estudo da criminalização pela 5

criminologia crítica centra-se, assim, na “reação social da conduta desviada, em especial para o sistema penal” (ANDRADE, 1995, p. 29). Diante da breve exposição da teoria do etiquetamento e retomando as mudanças orquestradas pelas ações de compensação raciais. Ressalta-se a ideia introduzida por Rita Laura Segato (2005) de que “raça é signo”. Isso quer dizer, que existe uma estrutura na qual o estado e grupos dominantes sobrepõem seus interesses a outros grupos segregando-os e calando-os. Dessa forma, esses grupos formam classes com marcas étnicas ou raciais com um conjunto de significações e pelas quais são afastadas da esfera do poder político (SEGATO, 2005, p. 10). Nesse sentido, quando Segato (2005) desataca que a concepção de “raça”8 tem uma representação construída simbolicamente pelas interações sociais. Assim, emerge da criminologia crítica, sob o paradigma da reação social, a teoria da rotulação. E, dessa forma, se observa que a idealização de raça possui a mesma carga

de significações e representações

da

criminalização pelo “etiquetamento”. Então, fazendo uma análise das realizações da política de cotas raciais, destaca-se a construção históricosocial de identidades das classes contemporâneas. Assim, Segato (2005) destaca que os efeitos da identificação dos grupos com os signos traçam “equivalência” entre o sujeito e os elencos de caricaturas exibidas no cenário globalizado como: o negro, o índio, o hispânico, a mulher, o gay e outras. Nesse contexto, destaca-se ainda a formação das identidades no Brasil: Daí o efeito de enlatamento, a aparência estereotipada das identidades políticas, preparadas eficientemente para o reclamo de recursos e direitos num mundo formado pela influência avassaladora da formação nacional de identidade do país imperial (SEGATO, 2005, p. 8, grifo da autora).

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Este conceito é de cunho sociológico e nas palavras de Duarte, temos que: “A raça é a categoria identitária mais relevante da literatura brasileira, das políticas culturais estatais nacionais, das relações econômicas, da política etc., mas é a única categoria social cujo poder de nominação é monopolizado (até as duas ultimas décadas) de forma absoluta por grupos sociais que não se vêem como racializados, mas como categorias universais” (DUARTE, 2008, p. 2949).

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Por outro lado, Evandro Charles Piza Duarte enfatiza que uma grande parte da população não possui qualquer valor nas “instituições jurídico políticas”. E sob a argumentação da miscigenação e ainda considerando que o indivíduo é visto como “o mestiço”, tenta-se negar a “identidade racial” (DUARTE, 2005. p. 2949). Nada obstante, o que podemos perceber é que, tanto na construção das identidades pelos signos, como na negação dessa mesma identidade pela miscigenação construindo outras significações, há o interesse de anular ou perpetuar a invisibilidade dos grupos inferiorizados. Contudo, o que se destaca nas ações afirmativas raciais é: primeiramente, a construção da identidade do “outro”, para depois reconhecer que esse indivíduo é um sujeito de direitos, especialmente pelo signo lhe acompanha. Em linhas conclusivas, percebe-se que as ações afirmativas raciais iniciaram um processo de mudança no monopólio do poder da hegemonia branca, em consequência das universidades constituírem um espaço de poder. Nesse caso, a diplomação é um caminho para a democratização racial como destacou Piovesan (2008, p, 94). Talvez o ganho mais importante das cotas universitárias é demostrar que o vestibular é simplesmente um critério de seleção para acessar o Ensino Superior. E, por isso, o negro é tão capaz de cursar uma faculdade quanto o branco, o que lhe falta são as oportunidades. Então, se o negro é caracterizado pela construção histórica e social do seu signo, pode haver uma mudança desse paradigma a partir das políticas de cotas raciais. E essa transformação é possível através da mudança do olhar sobre o negro pela a sociedade, visto que teoria da reação social pode atribuir outras significações. Assim, o negro que ocupa um espaço de poder torna-se um referencial positivo para o seu signo.

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Referência bibliográfica ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Do paradigma etiológico ao paradigma da reação social: mudança e permanência de paradigmas criminológicos na ciência e no senso comum. In. Florianópolis, Revista Sequência, nº 30, p. 2436, 1995. ANYAR DE CASTRO, Lola. A criminologia da reação social. Tradução e acréscimos de Ester Kosovski. Rio de Janeiro: Forense, 1983. (p. 62-83) BAILEY, Stan; TELLES, Edward. Políticas contra o racismo e opinião pública: comparações entre o Brasil e Estados Unidos. Opinião Pública, Campinas, v. VIII, n. 1, p. 30-39, 2002. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2014. BRASIL, Lei n. 12.711, de 29 de agosto de agosto de 2012. Diário oficial da União, Brasília, DF, 30 de agosto de 2012. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2014. _______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 614.873. Relator: Ministro Marco Aurélio. Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/processo/verProcessoPeca.asp?id=2341250&tipoApp=.pdf. >. Acesso em: 30 de set. 2014.

_______. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário n. 597.285. Relator: Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=5455998>. Acesso em: 30 de set. 2014.

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CARVALHO, José Jorge de. O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Revista USP, São Paulo, n. 68, p. 88-103, 2006. DUARTE, Evandro Charles Piza. Medo da mestiçagem ou da cidadania? Criminalidade e raça na obra de Nina Rodrigues. Brasília, XVII Congresso Nacional do CONPEDI, p. 2926-2954, novembro de 2008. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Características Étnicos-raciais da População: um estudo das categorias de classificação de cor ou raça 2008. Disponível em: . Acesso em: 28 set. 2014. MOEHLECKE, Sabrina. Ação afirmativa: história e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa, n. 117, p. 197-271, novembro/2002. Disponível em: . Acesso em: 15 set. 2014.

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PIOVESAN, Flávia. Ações afirmativas no Brasil: desafios e perspectivas. Estudos Feministas, Florianópolis, n. 424, pp. 887-896, 2008. Disponível em: . Acesso em: 20 de set. 2014. SEGATO, Rita Laura. Raça é signo. Série Antropologia, n. 372, 2005.

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