As Ações Coletivas o Estatuto de Defesa do Torcedor - O Processo Civil Clássico na Marca do Pênalti

July 22, 2017 | Autor: Gustavo Osna | Categoria: Civil Procedure, Processo Coletivo, Processo Civil
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As ações coletivas e o Estatuto de Defesa do Torcedor O processo civil clássico na marca do pênalti

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AS AÇÕES COLETIVAS E O ESTATUTO DE DEFESA DO TORCEDOR - O PROCESSO CIVIL CLÁSSICO NA MARCA DO PÊNALTI Revista de Processo | vol. 232/2014 | p. 239 | Jun / 2014 DTR\2014\2183 Gustavo Osna Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Doutorando em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Membro do Núcleo de Direito Processual Civil Comparado (UFPR). Advogado. Área do Direito: Desportivo Resumo: O presente artigo analisa a confluência existenteentre o Estatuto do Torcedor e a possibilidade de que o processo coletivo represente a resposta mais adequada para sua proteção jurisdicional. Para permitir essa investigação, é inicialmente apresentado um apanhado geral de tal diploma, demonstrando que seu conteúdo traz aos torcedores tanto direitos quanto deveres. Com esse alicerce, passa-se ao cotejo entre as previsões da norma e os instrumentais do processo coletivo ativo e passivo. Conclui-se que o processo coletivo decididamente pode (e deve) desempenhar um importante papel na efetivação do Estatuto do Torcedor, tanto para a proteção de interesses coletivos e individuais quanto para a aplicação das punições civis postas pela legislação. Palavras-chave: Estatuto do Torcedor - Lei 10.671/2003 - Processo civil - Processo coletivo. Abstract: This essay analyzes the confluence between the Brazilian Act n.10.671/2003 and the possibility that collective litigation represents the best procedural tool to its enforcement. To allow this investigation, I present firstly the main aspects of such legal Statute, showing that its content brings rights, but also duties, to the sports fans. With this basis, the article relates these provisions with the collective litigation (active or passive). I conclude that the collective litigation can (and should) play an important role on the implementation of the Act, both by permitting the protection of its rights as by allow the enforcement of its civil punishments. Keywords: 'Sports Fans' Statute' - Act 10.671/2003 - Civil Procedure - Collective Litigation. Sumário: - 1.Introdução - 2.O Estatuto de Defesa do Torcedor em perspectiva - 3.A coletivização ativa e passiva: a insuficiência do processo tradicional - 4.Considerações finais

Recebido em: 14.03.2014 Aprovado em: 08.05.2014 1. Introdução O presente artigo possui como objeto central a confluência existente entre as disposições trazidas pelo Estatuto do Torcedor e a possibilidade de que o processo coletivo represente a resposta mais adequada para sua proteção jurisdicional. Pretende-se, assim, investigar se o diploma recomenda ou exige a utilização da processualística coletiva, ou se seus interesses podem ser satisfatória e integralmente tutelados por meio do processo civil clássico (pautado na lógica tradicional de lide entre“A“ e“B“). Para permitir essa investigação, será inicialmente proposto um breve apanhado geral da Lei 10.671/2003 (Estatuto do Torcedor), buscando alguns de seus traços mais elementares. Nesse ponto, pretende-se demonstrar que a legislação se preocupa tanto em instituir direitos para os torcedores como, também, em modular seus comportamentos de maneira restritiva – dando origem a deveres e permitindo expressamente a possibilidade de punições de natureza civil. Com esse alicerce, o capítulo seguinte será destinado ao cotejo entre as previsões do Estatuto e os instrumentais do processo coletivo (em sua natureza bifásica), verificando se há similitude nessa relação. Em síntese, trata-se de observar se os direitos dos torcedores se adéquam com maior Página 1

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aderência às vias de proteção do processo coletivo, bem como se a ação coletiva passiva constitui caminho viável para a efetivação de seus deveres. Unindo as pontas do estudo, serão, enfim, atingidas suas considerações finais. O suporte construído nos permitirá indagar se o processo civil clássico é o bastante (e o mais efetivo) para dar conta das realidades postas pelo Estatuto do Torcedor. Em outros termos, fará com que o coloquemos“na marca do pênalti“, identificando no processo coletivo um substituto em potencial capaz de trazer novas possibilidades para a partida. 2. O Estatuto de Defesa do Torcedor em perspectiva A técnica de legislar por meio de“microssistemas“ tem sido tendência comum em nosso ordenamento positivo ao longo das últimas décadas. Essa estratégia, em boa medida tributável à percepção de que os grandes códigos não seriam idôneos para dar conta da multiplicidade de fatos do cotidiano (contrariando, com isso, suas motivações originais1), pode ser vista no Código de Defesa do Consumidor, no Estatuto da Criança e do Adolescente ou no Estatuto do Idoso. Em qualquer dos exemplos, o que se nota é a tentativa de regular de forma específica determinado feixe temático de situações da vida concreta, aproximando-se de suas características e peculiaridades com maior similitude do que aquela classicamente identificada nas codificações. E é assim, também com o Estatuto de Defesa do Torcedor. Realmente, ao perceber a série de nuances inerente ao texto legislativo se constata sua aproximação com uma realidade material bastante específica, provida de especial importância no ambiente cultural brasileiro: o futebol. Considerando a releitura de papel hoje conferida ao Estado e ao Direito,2 não surpreende que a posição dos torcedores de eventos esportivos também viesse a ser objeto de tutela. Isso, tanto de maneira protetiva (vislumbrando resguardar os interesses do torcedor) quanto de forma punitiva (reconhecendo que, assim como a situação material enseja direitos especiais, também dá origem a deveres específicos). No presente capítulo, pretende-se demonstrar brevemente como essa natureza bifásica é desempenhada pela Lei 10.671/2003. Para tanto, serão inicialmente apresentados alguns dos direitos que emanam do diploma, representando particularizações correlatas às idiossincrasias da realidade material. Após, será exposto que o Estatuto também traz deveres àquele que assume o status de torcedor. Considerando que o estudo possui como objetos centrais o direito processual civil e o processo coletivo, tais considerações possuirão natureza breve e instrumental. Não se vislumbra esmiuçar as características do regramento material trazido pelo texto legislativo, mas criar um alicerce necessário para compreender como o processo pode conferir resposta adequada a essa nova realidade. 2.1 O Estatuto do Torcedor como fonte de direitos Após definir seu âmbito de abrangência ao estipular os conceitos de“torcedor“ e de“torcida organizada“,3 a Lei 10.671/2003 inicia suas disposições materiais ao prever ser direito do torcedor a“publicidade e a transparência“ na organização de competições. Em uma primeira análise, seria crível que o próprio Código de Defesa do Consumidor desse conta dessa situação. Contudo, a análise do diploma protetivo das relações esportivas demonstra que a previsão ali trazida é bastante específica, explicitando uma série de requisitos imprescindíveis para a satisfação desse interesse.4 Ingressam aqui tópicos como a divulgação prévia das escalas de arbitragem e dos borderôs das partidas, assim como aspectos atrelados ao regulamento e à fórmula de disputa dos campeonatos. Em suma, confere-se sentido denso à ideia de“transparência“, reconhecendo o torcedor como membro indissociável da própria essência das competições esportivas. Especificamente no que se refere a esse aspecto, note-se que o Estatuto do Torcedor trouxe elementos que representaram verdadeira guinada no futebol brasileiro. Um exemplo pode ser visto na obrigatoriedade de que os regulamentos de cada competição possuam a longevidade mínima de dois anos.5 Também cabe mencionar a exigência de que a participação em quaisquer competições obedeça a critérios técnicos, sendo vedado o convite. A“Copa João Havelange“ realizada no ano 2000, por exemplo, dificilmente sobreviveria a esse crivo.6 Além desse rol de interesses relacionados à transparência na composição e no desenrolar das competições, o Estatuto do Torcedor também introduz direitos relacionados à segurança daqueles Página 2

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que se colocam sob sua égide. Para tanto, apresenta em seu art. 14 uma série de obrigações impostas ao organizador do evento. Prevê ainda em seu art. 17, de maneira ampla, ser direito do torcedor a existência de planos de segurança voltados à tutela de sua integridade física, estipulando por fim uma responsabilidade global dos organizadores do evento por eventuais vícios atinentes a esse elemento (diante da relevância dessa proteção e de sua ampla consonância com a nossa axiologia constitucional).7 Prosseguindo, há a introdução ao torcedor de direitos relacionados à emissão, à venda e ao uso de ingressos, bem como ao transporte que permite o acesso ao evento. Essas questões impactam em aspectos como o prazo mínimo de antecedência para a venda de bilhetes, assim como na preocupação com o entorno do estádio e com suas alternativas de escoamento urbano. Do mesmo modo, o texto legislativo se preocupa com a higiene da praça esportiva, trazendo capítulo voltado especificamente a esse elemento e, com isso, criando um ônus específico para as agremiações esportivas. Por fim, coloca-se em tela a existência de direitos dos torcedores atrelados à lhaneza e a honestidade na atuação tanto da arbitragem dos eventos quando da própria Justiça Desportiva. Por mais que breve, a descrição acima demonstra que a Lei 10.671/2003 efetivamente representou um passo relevante na ordem esportiva brasileira e, mais especificamente, no que se refere às competições futebolísticas realizadas em nosso país. Se até então não cabia ao torcedor atuar ativamente no controle das competições ou no filtro de legalidade da atuação das entidades do esporte, o Estatuto representa uma virada de página. O mesmo vale para a necessidade de reestruturação das praças esportivas, assegurando melhor condições de conforto e maior tutela à saúde e à integridade de quem as frequenta. 2.2 O Estatuto do Torcedor como fonte de deveres Contudo, ao mesmo tempo em que a Lei 10.671/2003 trouxe uma série de garantias aos torcedores de eventos esportivos (atribuindo a essa condição um novo patamar de juridicidade), seu conteúdo também atua como fonte de deveres para os indivíduos que assumem esse status. Com o próprio objetivo de assegurar a proteção do torcedor, nota-se que é preciso restringir alguns de seus comportamentos. Gera-se assim um feixe de posições nos quais, ao mesmo tempo em que há a tutela de direitos, torna-se imperativa a submissão a uma série de deveres. Para verificar esse cenário e a existência de limitações específicas aos eventos esportivos, vale mencionar o art. 13-A do texto legislativo. Ali, são introduzidas diversas“condições de permanência“ na praça esportiva, combatendo algumas atitudes que historicamente (como reflexo da própria cultura em que estamos inseridos) foram corriqueiras nos estádios brasileiros. A situação também é evidenciada pela tipificação de crimes relacionados à matéria e pela estipulação de penalidades civis decorrentes do desrespeito ao Estatuto (incluindo-se aí a possibilidade de que a punição tenha como destinatárias as“torcidas organizadas“). De fato, uma observação breve do diploma demonstra que a preocupação com a antecipação de riscos e perigos dá a tônica de seus dispositivos (como consequência lógica da própria tentativa de tutelar ao máximo a saúde dos torcedores). É assim que se proíbe, por exemplo, a utilização de objetos pirotécnicos no interior das praças esportivas (evitando acidentes como aquele que na Copa Libertadores de 2013 vitimou o torcedor boliviano Kevin Espada8). É no mesmo sentido que também surgem a vedação à utilização de bandeiras para finalidades diversas da festividade9 e ao arremesso de objetos no interior dos gramados, o que, pouco tempo atrás, era prática comum. Visando dar efetividade a tais disposições, o Estatuto prevê que eventual infração a essas balizas comportamentais acarretaria em penalidades civis (além da natural responsabilização criminal). Aqui, como será visto, ganha corpo a figura das“torcidas organizadas“, prevendo-se de maneira expressa a possibilidade de sua suspensão dos estádios. A medida é confessamente inspirada na lógica que, segundo alguns, teria sido responsável por reduzir substancialmente as condutas desviantes verificadas nos estádios da Inglaterra.10 Sem óbice do paralelo parecer simplista, o fato é que vem sendo comum que essa lógica ganhe adeptos e reforço retórico.11 Diante desse quadro, conclui-se que o Estatuto do Torcedor conferiu nova roupagem jurídica às competições e praças esportivas de nosso país, mas não apenas por estipular direitos para seus frequentadores. Pelo contrário, há também restrições com natureza de verdadeiros deveres que incidem sobre aqueles que assumem a posição fática de torcedores. É certo que inúmeras Página 3

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considerações poderiam ser traçadas tanto no que se refere ao primeiro dos aspectos quanto no que toca à última situação. Para as presentes finalidades, entretanto, essas breves premissas são o suficiente, viabilizando que se passe ao cerne do estudo: a insuficiência do processo civil tradicional para atuar de maneira efetiva em boa parcela das relações advindas da proteção (e da punição) posta pelo diploma de proteção dos torcedores. 3. A coletivização ativa e passiva: a insuficiência do processo tradicional Com as observações traçadas no capítulo anterior são abertas as portas para que se chegue enfim ao direito processual civil, matéria central da presente análise. É que, tendo em conta que o Estatuto do Torcedor protegeu direitos providos de especialidade e instituiu deveres igualmente peculiares, cabe ao processo permitir que a atuação de tais preceitos se concretize de maneira efetiva. Trata-se de consequência da própria ideia de“instrumentalidade necessária“ construída por Piero Calamandrei,12 bem como de contrapartida obrigatória do monopólio jurisdicional.13 Nesse sentido, é interessante constatar que a própria Lei 10.671/2003, em seu art. 40, faz menção à possibilidade de uso subsidiário do Código de Defesa do Consumidor para a adequada tutela do torcedor esportivo.14 A questão nos parece reveladora de algo central à correta manifestação jurisdicional em relação aos interesses previstos pelo Estatuto em exame: o fato de suas especificidades materiais recomendarem sua inserção na quadra do processo coletivo, ora por se tratar da técnica mais efetiva para sua proteção, ora por se tratar de verdadeira necessidade. Para demonstrar essa situação, observaremos primeiramente como o processo coletivo ativo deve desempenhar papel relevante na tutela do torcedor. Como será visto, isso se opera tanto pela possibilidade de que as relações ali previstas atinjam interesses materialmente metaindividuais quanto pelo fato de, em relações eminentemente individuais, a proteção aglutinada refletir medida procedimentalmente superior. Esses aspectos, inclusive, encontram-se na base de um dos maiores debates contemporâneos relacionados à aplicação da norma dos torcedores. Na sequência, colocaremos em foco que a situação diametralmente oposta também possui verificação. Em outros termos, a aplicação efetiva da Lei 10.671/2003 também deve passar pela releitura da ação coletiva passiva, aceitando a aplicabilidade de seu uso e percebendo a importância de se analisar os aspectos ainda lacunosos que permeiam o tema (como a extensão e os contornos da representação adequada em nosso direito). 3.1 O processo coletivo ativo e o Estatuto do Torcedor Conforme identificado em seu próprio tratamento normativo, o processo civil coletivo é uma realidade bifásica. Isso ocorre porque, ao mesmo tempo em que se presta à proteção de direitos materialmente coletivos (metaindividuais), também admite a proteção aglutinada de interesses verdadeiramente individuais (cuja essência em nada difere da dos direitos subjetivos clássicos). E no âmbito do Estatuto do Torcedor é possível identificar espaço e necessidade para esses dois pontos. Seja na tutela de direitos coletivos ou na tutela coletiva de direitos,15 essa nova processualística parece ser potencialmente mais adequada para a proteção dos interesses do torcedor do que o processo civil clássico. Observemos inicialmente a primeira das frentes, identificando a possibilidade de que a lei de proteção aos torcedores dê origem a direitos metaindividuais e exija uma atuação do direito processual civil compatível com a proteção de tais interesses. Construindo a moldura necessária para a pintura desse quadro, recordamos que se entende por“metaindividuais“ aqueles direitos impassíveis de titularidade individual ou fracionamento atômico, divergindo de uma mera soma de pretensões subjetivas.16 Em síntese, estaria em sua essência um interesse que não pertenceria diretamente a qualquer indivíduo, mas nem por isso seria juridicamente irrelevante – já que guardaria pertinência com toda uma coletividade. Como percebido por Rodolfo Mancuso, no cerne do reconhecimento normativo de tais interesses (de“terceira geração“, nos termos de Bonavides17) estaria a ruptura com uma cisão plena entre indivíduo e Estado, superando essa dicotomia tipicamente liberal e aceitando a existência de coletividades intermediárias, bem como da própria sociedade civil organizada.18 A proteção desses interesses essencialmente coletivos está prevista atualmente em nosso Direito no microssistema formado pelo diálogo simbiótico entre o Código de Defesa do Consumidor e a Lei de Ação Civil Pública.19 Ali, vê-se que o legislador optou por segmentá-los em“difusos“ e“coletivos estrito Página 4

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senso“ tomando por parâmetro sua determinidade.20 Parece atualmente questionável se divisão apresenta justificativa teórica ou didática, bem como se não é contrária à efetividade do processo.21 No presente momento, porém, o que nos importa é notar que nosso ordenamento confere juridicidade expressa a esses direitos, instituindo o rito da Ação Civil Pública como ferramenta idônea para sua proteção. Não obstante, é interessante constatar que mesmo antes do advento desse par de diplomas normativos o direito pátrio já apresentava amparo para a proteção de interesses metaindividuais, abrindo espaço para a tutela de direitos coletivos. É que, como reconhecido por Alcides Munhoz da Cunha,22 era exatamente essa a vocação do remédio da Ação Popular, inserida em nosso ordenamento jurídico com vistas a permitir que o indivíduo (assumindo as vestes de private attorney general23) atuasse individualmente em juízo questionando atos lesivos ao erário (objeto posteriormente expandido para mais vasta gama de aspectos de“interesse público“ 24). Não restam dúvidas de que essa proteção não pode ser individualmente fracionada e que não há sujeito que possa dela dispor, razão pela qual há de se reconhecer sua natureza metaindividual. E isso, ressalte-se, sem que o regramento da Ação Popular faça qualquer sorte de menção a esse traço (nisso diferindo, por exemplo, do Código de Defesa do Consumidor). Diante desses aspectos, são extraídas duas conclusões essenciais para perceber a ampla possibilidade de que, do Estatuto do Torcedor, depreendam-se interesses metaindividuais a serem juridicamente tutelados: (i) a inexistência de menção expressa aos interesses transindividuais não impede que eles se manifestem a partir das hipóteses normativas previstas no diploma (como ocorre no tratamento da Ação Popular); (ii) a indicação de que o Código de Defesa do Consumidor lhe serve de suporte subsidiário, demonstrando a simbiose entre os diplomas, permite que o instrumento da Ação Civil Pública seja utilizado em seu âmbito. Desse modo, o Estatuto do Torcedor, de um lado, é capaz de servir de origem normativa a interesses coletivos e, de outro, encontra na Ação Civil Pública mecanismo idôneo para a tutela de tais situações. É dessa forma que se pode imaginar, por exemplo, a existência de um direito coletivo à higiene dos estádios calcado no art. 28 do Estatuto do Torcedor, parecendo-nos bastante crível o manejo da Ação Civil Pública para inibir a realização de uma partida em determinada praça que não apresente condições de receber adequadamente o público esperado. Nessas situações, não haveria sujeito que pudesse livremente dispor do asseio do recinto. Estar-se-ia diante de um interesse verdadeiramente metaindividual, devendo ser protegido como tal. A situação demonstra a permeabilidade entre a Lei 10.671/2003 e o direito processual coletivo, evidenciando que, uma vez que há interesses metaindividuais em seu bojo, é imperativo que ofereça meios capazes de viabilizar sua proteção. Em nosso entendimento, contudo, o diálogo não se limita a essa primeira face do processo coletivo. Tal se dá pois o Estatuto do Torcedor também parece um campo bastante propício para permitir a tutela coletiva de direitos individuais, sendo plausível que em uma vasta gama de interesses existentes em sua base essa seja a opção procedimental mais efetiva. Conferindo suporte teórico à questão, lembramos que o microssistema brasileiro de direito processual coletivo, ao mesmo tempo em que preceituou a proteção de interesses“difusos“ e“coletivos“ (leia-se, metaindividuais), também viabilizou a proteção aglutinada de interesses verdadeiramente individuais, ao falar em“direitos individuais homogêneos“.25 Em nossa visão, tais interesses em nada difeririam dos direitos subjetivos clássicos, sendo inédita tão somente a possibilidade de conduzi-los à apreciação jurisdicional de maneira coletivizada.26 Não se fala em“novos direitos“, mas em uma nova forma de pleiteá-los judicialmente; uma forma coletiva. Tem sido comum e frutífera em nossa doutrina a investigação a respeito de quais seriam as justificativas que embasariam essa releitura procedimental. A questão é realmente pertinente, tendo em conta que, se tais direitos possuiriam possibilidade de amparo por meio do processo civil clássico (diversamente do que ocorre com os interesses materialmente metaindividuais), não se estaria mais no campo da necessidade. Seria preciso buscar outros fundamentos a embasar a proteção coletiva, reconhecendo sua prevalência diante da lide bilateral clássica entre“a“ e“b“ que serve de alicerce ao nosso processo civil tradicional. Nessa jornada, há discursos que acabam fluindo para uma melhoria na prestação jurisdicional ao viabilizar um incremento na administração da justiça (na medida em que, onde poderia haver uma pluralidade de ações, surge apenas uma27). Fala-se também em acesso à justiça, tendo em conta Página 5

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que a coletivização (se realizada de maneira efetiva e materializada até a fase de execução28) permite que a litigiosidade contida também seja trazida à apreciação jurisdicional, combatendo a cifra oculta gerada pelos interesses que não são levados ao Judiciário por custos de transação e déficits de informação.29 É igualmente comum que se encontre fundamento para a adaptação procedimental na necessidade de que seja conferido tratamento isonômico a questões similares (mais uma vez demonstrando a importância de que a coletivização atinja também a fase de execução30). Os aspectos não são excludentes, mas complementares, construindo uma argumentação densa em favor da proteção aglutinada de direitos e reforçando a defesa de sua compatibilidade com a axiologia do processo. Tendo em conta esse rol de motivações, é evidente que em uma vasta gama de situações será adequado que interesses individuais (por serem providos de afinidade jurídica ou fática) recebam tratamento judicial aglutinado. E os eventos esportivos certamente representam um campo amplo para o uso dessa técnica. Com efeito, considerando que em qualquer partida há uma pluralidade de indivíduos que assumem a posição jurídica de“torcedores“, o surgimento de eventuais interesses subjetivos em seu âmbito possivelmente ocorrerá de maneira massiva. Diversos sujeitos passarão a dispor de direitos individuais similares, fazendo com que a coletivização possa representar a alternativa mais adequada para a resolução do caso. Para demonstração desse elemento, tomemos como exemplo uma situação hipotética. Suponhamos que, em determinada partida futebolística envolvendo as equipes do América-MG e do São Caetano Futebol Clube, cerca de quatro mil indivíduos compram seu ingresso e comparecem ao Estádio Independência, em Belo Horizonte. Suponhamos, porém, que na hora indicada para início da partida há uma ordem da Confederação Brasileira de Futebol para que ela não ocorra. Por último, suponhamos que o cancelamento é anunciado na praça esportiva de maneira peremptória e injustificada, sem qualquer menção ao possível ressarcimento pelos valores despendidos com a compra dos bilhetes. Nessas situações, não restam dúvidas de que qualquer um dos torcedores lesados possuiria seu direito individual de questionar judicialmente a medida, pleiteando em juízo o ressarcimento pelos danos decorrentes da não realização do evento. Uma série de questões, porém, poderiam demonstrar que esse caleidoscópio de ações individuais tenderia a gerar respostas incoerentes, rompendo com as bases do sistema processual contemporâneo. Afinal, não seria possível que, distribuídas as demandas para diversos juízes, houvesse posicionamentos divergentes em relação à necessidade ou não de indenizar? Seria razoável que apenas em fase recursal essa discrepância fosse suprida? Caso alguns dos torcedores não ingressassem em juízo diante dos custos de transação do processo, a resposta estatal ao problema não seria atentatória à ideia de isonomia? É diante de provocações como essas que se constata de forma cabal que, na situação apresentada, seria justificada a opção por tutelar coletivamente os interesses seriais advindos do evento esportivo (concebendo-os, em nossos termos legais, como“individuais homogêneos“). Tomando por base uma lógica efetiva de coletivização, isso permitiria que todos os torcedores recebessem a devida tutela, aí incluídos aqueles que tenderiam a não tomar o impulso inicial para ingressar pessoalmente em juízo. Seria igualmente assegurada a coerência da resposta conferida ao problema pelo Poder Judiciário, na medida em que (distintamente do que ocorreria com a propositura de ações pulverizadas) o prosseguimento coletivo da questão faria com que seu acertamento se desse por meio de uma única sentença. Em síntese, por mais que o processo individual pudesse dar resposta a tais lides, a ação coletiva parece representar uma alternativa mais adequada, permitindo um aprimoramento da prestação jurisdicional. Acredita-se que essa conclusão, obtida no exame do caso hipotético aqui trazido, também seria atingida na maior parcela dos direitos individuais derivados da relação entre entidades esportivas e torcedores. Realmente, na maioria das situações previstas no Estatuto do Torcedor se coloca como pano de fundo um cenário no qual o interesse individual juridicamente protegido tende a se reproduzir de maneira serial. Como consequência, sempre que houver um direito individual exigível sob o bojo da Lei 10.671/2003 haverá também uma grande probabilidade de que existam interesses análogos em quantidade larga o bastante para impedir a formação do litisconsórcio e recomendar que o feito seja acertado à luz do processo coletivo.31 Aproximando as considerações acima apresentadas, notamos que há um franco diálogo entre as ações coletivas ativas e o Estatuto do Torcedor. Essa questão, contudo, nem sempre parece vir Página 6

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sendo materialmente notada. Como exemplo, veja-se o recente caso de demandas propostas individualmente requerendo a revisão de decisão da Justiça Desportiva que culminou no rebaixamento da Associação Portuguesa de Desportos (cujos riscos de análise pulverizada foram percebidos por André Vasconcelos Roque32). O processo individual clássico não parece dar conta de tais situações, razão pela qual as regras do jogo recomendam sua substituição por uma processualística coletiva mais dinâmica e capaz de oferecer melhores resultados em campo. 3.2 O Estatuto de Defesa do Torcedor e a ação coletiva passiva Falou-se essencialmente até aqui da necessidade de que se perceba a integração entre o Estatuto do Torcedor e o processo coletivo ativo, reconhecendo-o como caminho procedimental corriqueiramente mais apropriado para oferecer resposta aos direitos previstos na Lei 10.671/2003. Entretanto, no presente tópicos invertemos os polos da relação processual para demonstrar que há também outra face do processo coletivo que merece ser considerada para que se confira maior efetividade ao diploma legal. Trata-se da ação coletiva passiva, cujo desenvolvimento fático em nossa realidade (sem óbice dos esforços doutrinários já efetuados) parece se encontrar em estágio ainda mais embrionário. Para aferição desse aspecto devemos lembrar que, periodicamente, a realidade e as suas exigências provocam o direito processual a se adaptar para manter seu toque de instrumentalidade. Apenas assim há a possibilidade de que a promessa de monopólio jurisdicional cumpra seu desiderato lógico: se foi classicamente construído que apenas ao Estado seria facultado o exercício da jurisdição, nada mais adequado (e imprescindível) que o desenvolvimento de ferramentas processuais capazes de conferir efetividade a essa atuação. Partindo dessa premissa, é necessário que o processo e o processualista estejam atentos às novas dinâmicas da sociedade, vislumbrando assegurar a atuação satisfatória da disciplina. Ocorre que nossa realidade apresenta situações em que essa correspondência parece passar despercebida, o que cria pontos cegos na estrutura processual. E um deles é o da ação coletiva passiva. A questão tem gerado sucessivos desafios ao operador do direito, mas segue carente de um tratamento amplo. Foi assim com as demandas decorrentes de assentamentos rurais33 ou com a invalidação de decisões tomadas em assembleias societárias.34 Também, com o fenômeno dos“rolezinhos“, que recentemente assumiu protagonismo na imprensa e causou impacto nas redes sociais. Em todas as situações se pôde verificar dubiedades quanto aos critérios adotados para citação ou para o cumprimento de possíveis medidas liminares. E, no eventual curso do litígio, diversas outras indagações poderiam surgir. Afinal, tratando-se de medidas propostas em face de coletividades fluídas, a quem caberia sua representação judicial? Como, e com quais balizas, a ideia de“representação adequada“ deveria atuar nesse jogo? Esse tipo de dilatação subjetiva do polo passivo da demanda e as indagações que dele decorrem também são vistos no âmbito do Estatuto do Torcedor. É que o diploma legal, além de instituir direitos aos frequentadores das praças esportivas, também lhes impõem uma série de deveres e comina punições cíveis para seu descumprimento. E no momento de aplicação dinâmica dessa estrutura apenas um modelo adequado de demanda coletiva passiva pode atuar de forma efetiva sem prejudicar as garantias processuais inerentes aos sujeitos envolvidos. Conforme destacado por Jordão Violin,35 apoiando-se em Antonio Gidi,36 a ideia de representação adequada (ainda pouco desenvolvida em nosso direito positivo) assumiria um importante papel nesse jogo. E analisando o Estatuto do Torcedor parece que (ainda que o controle judicial não seja expressamente previsto, e que não haja exclusão entre os dois filtros37) compreende-se a“torcida organizada“ como ente capaz de desempenhar adequadamente esse papel. É o que prevê o seu art. 39-A, determinando que a torcida e seus“membros“ poderão receber punição civil de vedação de participação nos eventos esportivos. Ao tratar o indivíduo como“membro“, e não mais como sujeito liberal, parece haver um reconhecimento de seu papel no grupo, trazendo como consequência implícita a possibilidade de ser representado em juízo também nessa condição. Em relação a esse aspecto, é interessante relembrar que, como destacado por Stephen Yeazell, a própria origem do processo coletivo se encontra nas ações coletivas passivas, tendo representado medida de factibilização da atuação jurisdicional no sistema jurídico inglês.38 Em síntese, diante de eventos materiais envolvendo determinadas comunidades, nos quais não seria concretamente possível trazer a totalidade de sujeitos à relação (sob pena de inviabilizar o processo), aceitou-se Página 7

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que determinados“representantes“ atuassem em juízo em nome de todo o grupo. Para o funcionamento do quadro, porém, seria imprescindível que também aqueles indivíduos que não assumissem essa condição se subordinassem à decisão proferida nos autos. E foi para dar conta dessa realidade que pouco a pouco se desenvolveram questões como a da representatividade adequada, reconhecendo-a como importante ponto de apoio para a coletivização passiva em relações processuais. É certo que essa questão se afasta em boa medida de leituras clássicas de nosso direito processual civil, pautado na atribuição de conteúdo precipuamente liberal a ideias como o direito de defesa e o devido processo.39 Sob essas amarras, seria possível que a Ação Coletiva Passiva se tornasse inaceitável, representando caminho para a imposição ilegítima ou injusta de determinado comando a todo um rol de sujeitos que não atuaram no processo. Ocorre que a criatividade dos eventos reais não é limitada pelo discurso do jurista, fazendo com que suas utopias tenham de ser corriqueiramente desconstruídas e reformuladas. E é diante desse diagnóstico que se pode entender que, em algumas escalas de matéria, essa coletivização passiva já ocorre, mesmo que instintivamente. Realmente, concluindo esse diagnóstico teórico e retornando ao exame do Estatuto do Torcedor observamos que as ações coletivas passivas representam ferramenta essencial para a efetivação dos deveres previstos no diploma normativo. Como dito, essa questão fica simbolizada ao se prever que os“associados“ ou“membros“ de uma torcida organizada podem ser proibidos de participar de eventos esportivos nessa condição. Além disso, para a efetivação das balizas comportamentais previstas no art. 13-A, por exemplo, seria bastante crível que as demandas propostas individualmente se mostrassem inócuas, tornando imperativo o recurso à coletivização passiva para viabilizar a prestação jurisdicional. Para ilustrar essa situação, tomamos como exemplo decisão recentemente proferida pela 1.ª Vara Empresarial do município do Rio de Janeiro que, diante dos atos de violência praticados durante partida disputada entre o Clube de Regatas Vasco da Gama e o Clube Atlético Paranaense no ano de 2013, determinou (com fundamento no Estatuto do Torcedor) a proibição de que a Torcida Força Jovem do Vasco e seus integrantes frequentem as partidas da agremiação esportiva (Autos 0430046-45.2013.8.19.0001). Veja-se que nem todos os indivíduos associados ao ente tiveram ou terão possibilidade de atuar no litígio. Porém, cada um deles terá um interesse individual diretamente atingido pela decisão ali proferida, transcendendo a ideia clássica de lide entre sujeitos e demonstrando se tratar de um caso típico de ação coletiva passiva.40 Nesse quadro, entende-se que a efetivação material do Estatuto do Torcedor, também no que se refere aos seus deveres, pode encontrar importante pilar no processo coletivo. Isso faz com que mais uma vez as ressalvas feitas para a coletivização ativa sejam aplicáveis. A aderência entre as especificidades dos eventos esportivos e o processo civil supõe o entendimento de que aqueles são essencialmente coletivos e tendentes a expressar comportamentos de massa. Por essa razão, sua efetividade deve levar em conta também a ação coletiva passiva. 4. Considerações finais A conexão entre o direito e o contexto social e cultural em que está inserido não pode ser refutada, sob pena de tornar o campo jurídico obsoleto e fazer com que as relações humanas ocorram em seus pontos cegos, e não sob sua égide. É assim que, no presente contexto, a irradiação constitucional e as novas feições atribuídas ao Estado fizeram com que também os torcedores de eventos esportivos merecessem tutela específica, em processo que culminou na elaboração do Estatuto do Torcedor (ocasionando modificações relevantes nas praças de jogos e no desenrolar das competições). Sintetizando os aspectos vistos no presente estudo, esse Estatuto introduziu tanto direitos quanto deveres aos torcedores, conformando um novo rol de posições jurídicas relacionadas aos esportes. E o processo coletivo decididamente pode (e deve) desempenhar um importante papel na efetivação de tais preceitos. Isso se dá, inicialmente, pois a partir das previsões do diploma legal há um vasto espaço para o reconhecimento de direitos metaindividuais. Também, porque mesmo os direitos individuais que decorrem de seu conteúdo tendem à multiplicidade, de tal modo que tutelá-los coletivamente pode representar a alternativa procedimental mais adequada. E, por último, porque a efetivação dos deveres postos pelo Estatuto parece igualmente passar pela adoção de uma lógica de coletivização passiva (em especial com a acentuada importância conferida às“torcidas organizadas“). Página 8

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É com esse quadro geral que se conclui o estudo, esfera jurídica nos eventos esportivos, os caminhos vias valiosas para a atuação jurisdicional. Esse processualista, permitindo que os objetivos que Torcedor sejam verdadeiramente alcançados.

percebendo que, ao se inserir decididamente a introduzidos pelo processo coletivo representam diálogo deve ser notado e aprofundado pelo embasaram a própria edição do Estatuto do

1 Com efeito, investigando as origens do discurso codificador (e sua ascensão no direito continental dos últimos séculos) Norberto Bobbio destaca que“as codificações representam o resultado de uma longa batalha conduzida, na segunda metade do século XVIII, por um movimento político-cultural francamente iluminista, que realizou aquilo que podemos chamar de a“positivação do direito natural“. Segundo este movimento, o direito é expressão ao mesmo tempo da autoridade e da razão (…) O movimento pela codificação representa, assim, o desenvolvimento extremo do racionalismo, que estava na base do pensamento jusnaturalista, já que à ideia de um sistema de normas descobertas pela razão ele une a exigência de consagrar tal sistema num código posto pelo Estado“ (p.55-56). Prosseguindo nesta explicação, e reforçando os principais traços do movimento codificador, o filósofo ainda afirma que“a exigência da codificação nasceu de uma concepção francamente iluminista (…) este projeto nasce da convicção de que possa existir um legislador universal (isto é, um legislador que dita leis válidas para todos os tempos e para todos os lugares) e da exigência de realizar um direito simples e unitário. A simplicidade e a unidade do direito é o Leitmov, a ideia de fundo, que guia os juristas que nesse período se batem pela codificação“ (p.64-65). Disso se percebe, claramente, a confluência existente entre os valores inerentes ao movimento de codificação e aqueles imputados por Antonio Manuel Hespanha, por exemplo, à Modernidade. Com efeito, é certo que a mesma crença universalista e generalizadora que permeou o pensamento moderno (conduzindo a aspectos como um monismo jurídico inflexível) reside na base da valorização dos Grandes Códigos, não sendo demais afirmar que também eles se mostraram“mitos da Modernidade“ no sentido atribuído à expressão por Paolo Grossi. Contudo, é sabido que o tempo trouxe abalos a essa incolumidade do pensamento moderno, trazendo ventos diversos e pautados na pulverização e na pluralidade. Como nota Gustavo Tepedino, é diante disso que a crença na suficiência dos Códigos é posta em cheque, levando à edição de microssistemas – com cariz mais específica e hipóteses de abrangência mais modesta. Cita-se, BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Trad. Márcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995. HESPANHA, Antonio Manuel. O caleidoscópio do direito. Lisboa: Almedina, 2012. GROSSI, Paolo. Mitologias jurídicas da modernidade. Trad. Arno Dal Ri Junior. Florianópolis: 2004. TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma reforma legislativa. Problemas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. 2 Nesse sentido, BOBBIO, Norberto. Igualdade e liberdade. 4. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. Percebendo os impactos trazidos ao direito processual por essa modificação, MARINONI, Luiz Guilherme. Teoria geral do processo. 2. ed. São Paulo: Ed. RT, 2007. 3 Nos termos do art. 2.º do texto legal, considera-se torcedor“toda pessoa que aprecie, apoie ou se associe a qualquer entidade de prática desportiva do País e acompanhe a prática de determinada modalidade esportiva“. Essa previsão é ainda complementada pelo art. 2.º-A do diploma, cujo texto dispõe que se concebe como torcida organizada“a pessoa jurídica de direito privado ou existente de fato, que se organize para o fim de torcer e apoiar entidade de prática esportiva de qualquer natureza ou modalidade“. 4 “Art. 5.º São asseguradas ao torcedor a publicidade e transparência na organização das competições administradas pelas entidades de administração do desporto, bem como pelas ligas de que trata o art. 20 da Lei 9.615, de 24 de março de 1998. § 1.º As entidades de que trata o caput farão publicar na internet, em sítio da entidade responsável pela organização do evento: I – a íntegra do regulamento da competição; II – as tabelas da competição, contendo as partidas que serão realizadas, com especificação de sua data, local e horário; Página 9

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III – o nome e as formas de contato do Ouvidor da Competição de que trata o art. 6.º.; IV – os borderôs completos das partidas; V – a escalação dos árbitros imediatamente após sua definição; e VI – a relação dos nomes dos torcedores impedidos de comparecer ao local do evento desportivo. (…).“ 5 Veja-se o art. 9.º, § 5.º,II, do Estatuto. 6 A ausência de critérios objetivos para a composição do campeonato, predominando a realização de convites (e a possibilidade de articulação que lhe é inerente), foram bem expressa à época pelo periódico Folha de S. Paulo, destacando que“para preencher as 81 vagas que ainda restam na Copa João Havelange, o Clube dos 13 terá que negociar com clubes de nível de terceira divisão buscando um lugar na segunda, times folclóricos tentando uma vaga em qualquer módulo e todos querendo uma“lasca“ no dinheiro da entidade que cuida dos interesses das equipes mais tradicionais do país (…) mesmo sem informações, muitos clubes já se movimentam para ganhar um lugar na competição nacional mais inchada de toda a história do Brasil (…) pela falta de critérios do Clube dos 13, até o time com a pior campanha da terceira divisão no ano passado no Campeonato Brasileiro deve ocupar um lugar melhor na Copa João Havelange agora. O Dom Pedro, de Brasília, mesmo sem nenhuma vitória em dez jogos na Série C do Nacional do ano passado, deve ficar no módulo intermediário do torneio do Clube dos 13. O motivo seria uma forma de diminuir a ira dos torcedores de Brasília, que não terão o Gama, pivô de toda a criação da Copa João Havelange, em nenhum módulo da competição“. Veja-se, COBOS, Paulo. Pequenos já“infernizam“ o Clube dos 13. In. Folha de S. Paulo – Caderno de Esportes. Edição de 06 de julho de 2000. Disponível em: [http://www1.folha.uol.com.br/fsp/esporte/fk0607200002.htm]. Acesso em: 20.02.2014. 7 Fala-se aqui em“responsabilidade global“ na medida em que, ao mesmo tempo em que o art. 15 do Estatuto determina que“o detentor do mando de jogo será uma das entidades de prática desportiva envolvidas na partida, de acordo com os critérios definidos no regulamento da competição“, seu art. 19 faz constar que“as entidades responsáveis pela organização da competição, bem como seus dirigentes respondem solidariamente com as entidades de que trata o art. 15 e seus dirigentes, independentemente da existência de culpa, pelos prejuízos causados a torcedor que decorram de falhas de segurança nos estádios ou da inobservância do disposto neste capítulo“. Dessa forma, há o estabelecimento de um vasto rol de sujeitos responsáveis pelos eventuais danos sofridos pelo torcedor – em opção legislativa claramente voltada a incrementar sua tutela. 8 Conforme relato apresentado na época pelo periódico Veja,“uma tragédia marcou a estreia do Corinthians na Copa Libertadores da América de 2013 contra o San José, da Bolívia. Segundo a polícia local, um torcedor do time boliviano de apenas 14 anos morreu após ser atingido por um sinalizador da torcida corintiana. Testemunhas afirmaram que o incidente ocorreu no momento do gol do time paulista, que empatou em 1 a 1 com o rival na partida. O torcedor, identificado como Kevin Beltram Espada, foi atingido no olho direito e morreu quando recebia atendimento para ser levado ao Hospital Obrero, na cidade de Oruro. O garoto morava em Cochabamba e viajou a Oruro apenas para assistir à partida no estádio Jesús Bermúdez, segundo a rede de televisão PAT“. Veja. Sinalizador de corintianos mata torcedor boliviano. Disponível em: [http://veja.abril.com.br/noticia/esporte/sinalizador-de-corintianos-mata-torcedor-boliviano]. Acesso em: 23.02.2014. 9 Em relação a esse aspecto, vale recordar que durante um período de tempo substancial o ingresso em praças esportivas com bandeiras de mastro esteve inteiramente proibido no estado de São Paulo. Apenas em período superveniente, pela adoção de medida legislativa específica, ocorreu a reversão de tal posicionamento (sem, porém, olvidar-se dos riscos que a situação pode trazer). O tema e suas possíveis nuances negativas foram apresentados pelo periódico Estado de São Paulo, em sua edição de 24 de agosto de 2011. Disponível em: [http://blogs.estadao.com.br/arquivo/2011/08/24/quando-bandeiras-viram-armas/]. Acesso em: 20.02.2014.

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10 Mais uma vez citando o periódico Veja, nota-se que essa inspiração (constantemente trazida para os cadernos esportivos brasileiros) foi exposta em recente publicação na qual se destacava que na Inglaterra,“aliada à reforma dos estádios, foi criada uma política de prevenção da violência. Em vez de tentar conter os baderneiros depois do início dos confrontos, a polícia passou a identificá-los previamente. Todos os times ingleses tiveram de instalar em seus estádios sistemas de monitoramento por câmeras. Com esse aparato, a polícia faz uma varredura virtual à procura de torcedores brigões. Assim que um hooligan é localizado, é retirado do estádio. O embate entre policiais e torcida foi substituído pelo trabalho discreto de inteligência. Há um oficial escalado para estudar o comportamento dos torcedores de cada clube profissional inglês. Ele informa à polícia a identidade daqueles potencialmente mais perigosos. Tão ou mais importante do que a mudança nas normas é a efetiva aplicação da lei. Na temporada 2012-2013, houve 2 456 prisões de torcedores. A maioria dessas detenções resultou em Ordens de Banimento do Futebol (FBO, na sigla em inglês). O torcedor que for pego brigando recebe uma FBO e é obrigado a ficar de três a dez anos afastado dos estádios. Para garantir o cumprimento da pena, ele tem de ficar em uma delegacia enquanto seu time joga. Quando a seleção inglesa atua fora do país, o vândalo é obrigado a entregar seu passaporte cinco dias antes do jogo. Quem desrespeita a regra é preso e processado. Simples assim. Basta cumprir a lei“. SALVADOR, Alexandre; ZALIS, Pieter. Como a Inglaterra acabou com a barbárie das torcidas. Veja, edição de 14.12.2013. Disponível em: [http://veja.abril.com.br/noticia/esporte/como-a-inglaterra-acabou-com-a-barbarie-das-torcidas]. Acesso em: 22.02.2014. 11 Afirma-se que tal paralelo incorre no risco do simplismo porque, na verdade, a violência em território brasileiro não é (em absoluto) um fenômeno limitado aos eventos esportivos. Pelo contrário, nossa realidade demonstra que condutas com contornos similares são corriqueiras, de tal modo que o futebol, respeitosamente, não parece representar um desvio na curva de nosso contexto cultural – mas apenas um retrato de alguns de seus contornos. 12 Nesse sentido, CALAMANDREI, Piero. Instituciones de derecho procesal civil. Trad. Santiago Sentís Melendo. Buenos Aires: El Foro, 1996. vol. 1, p. 348. 13 Essa relação de mão-dupla entre monopólio da jurisdição e prestação jurisdicional (a que introduzimos o atributo da efetividade) é percebida por Ovídio Baptista da Silva e Fábio Gomes, levando-os a afirmar que“organizado o Estado e estabelecida a sua ordem jurídica, o que implica a imposição de regras de conduta a serem observadas pelos cidadãos, automaticamente estará proibida a estes a defesa ou a realização própria (autotutela) dos interesses sob a proteção do direito objetivo. Em outras palavras, entendemos a vedação à autotutela pressuposto inafastável à organização e à própria existência do Estado. Em decorrência dessa proibição, surge, também como pressuposto, o dever-poder do Estado de prestar jurisdição a todos os cidadãos, eis que não podem eles se valer da autotutela“. SILVA, Ovídio A. Baptista da; GOMES, Fábio. Teoria geral do processo. 5 ed. rev. e atual. São Paulo: Ed. RT, 2010. p. 83. 14 Nos termos do art. 40 do Estatuto,“a defesa dos interesses e direitos dos torcedores em juízo observará, no que couber, a mesma disciplina da defesa dos consumidores em juízo de que trata o Título III da Lei 8.078, de 11 de setembro de 1990“. Vê-se, assim, a aceitação explícita de que as ferramentais processuais trazidas pelo Código de Defesa do Consumidor (peças centrais do quebra-cabeça de nosso processo coletivo) sirvam de suporte também para a proteção dos interesses especificamente amparados pelo Estatuto do Torcedor. 15 O manejo das expressões“tutela coletiva de direitos“ e“tutela de direitos coletivos“ como mecanismo para demonstrar a natureza dualista daquilo que a doutrina chamou de“processo coletivo“, atribuindo-lhe duas funções substancialmente diversas, foi introduzido em nossa academia na obra de Teori Albino Zavascki. Cita-se, ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo – Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. São Paulo: Ed. RT, 2006. 16 Explica Zavascki que“direitos coletivos são direitos subjetivamente transindividuais (= sem titular determinado) e materialmente indivisíveis. Os direitos coletivos comportam sua acepção no singular, inclusive para fins de tutela jurisdicional. Ou seja: embora indivisível, é possível conceber-se uma única unidade da espécie de direito coletivo. O que é múltipla (e indeterminada) é a sua titularidade, e daí a sua transindividualidade“. Idem. p. 41-42.

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17 “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade concreta“. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 25 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 569. 18 Assim, MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos – Conceito e legitimação para agir. 6 ed. São Paulo: Ed. RT, 2004. Sobre a origem de tais interesses, e a presença de suas raízes não no cenário jurídico, mas nos acontecimentos reais, cita-se ainda VENTURI, Elton. Processo civil coletivo . São Paulo: Malheiros, 2007. p. 50. 19 Fala-se em“microssistema“ tendo em conta que os diplomas não apenas convivem paralelamente, mas fazem referências mútuas e recíprocas, de modo que mesmo dispersos constituem espécie de ordenamento sincrético. Neste sentido, o art. 90 do CDC claramente preceitua que se aplicam às ações processuais ali previstas“as normas do Código de Processo Civil e da Lei 7.347, de 24.07.1985, inclusive no que respeita ao inquérito civil, naquilo que não contrariar suas disposições“, ao passo que a Lei de Ação Civil Pública, em seu art. 21, dispõe que“aplicam-se à defesa dos direitos e interesses difusos, coletivos e individuais, no que for cabível, os dispositivos do Título III da lei que instituiu o Código de Defesa do Consumidor“. Dessa maneira, forma-se modalidade de regime uno, viabilizando por definitivo a defesa judicial de direitos metaindividuais. 20 Assim, ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória. São Paulo: Ed. RT, p. 156. Também, DELGADO, José Augusto. Interesses difusos e coletivos: evolução conceitual. Doutrina e jurisprudência do STF. Disponível em: [http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/1893/Interesses_Difusos_e_Coletivos.pdf]. Acesso em: 19.02.2014. 21 Para detalhamento da questão, veja-se OSNA, Gustavo.“Direitos difusos“ e“direitos coletivos“: o que justifica a segmentação? Direito & Paz, ano XIV, n. 27, Lorena: Unisal, 2012. 22 Assim, CUNHA, Alcides Munhoz da. Evolução das ações coletivas no Brasil. RePro, n. 77, ano 20, jan.-mar. 1995, São Paulo: Ed. RT, 1995, p. 225-228. 23 Fala-se em private attorney general (emprestando com isso expressão corriqueiramente utilizada no âmbito das class actions e da public law litigation no direito estadunidense) tendo em conta que o sujeito, ao assumir o polo ativo de uma ação popular, (teoricamente) não age com vistas a qualquer interesse egoístico. Pelo contrário, o instrumento parte da premissa de que o litigante ativo ingressará em juízo como forma de exercício de uma atividade cívica, vislumbrando por meio de seu pleito assegurar a proteção de toda a comunidade. É a essa confiança demasiada, inclusive, que pode ser em boa escala creditada a pouca utilidade prática do instituto, como se vê em ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva cit., p. 152. 24 “A Constituição atual inovou ao ampliar a matéria de cabimento da ação popular. Nos textos constitucionais anteriores, a ação popular estava limitada à proteção contra atos lesivos ao patrimônio de entidades públicas (…) conforme dispõe o texto atual, a ação popular poderá ser usada para a proteção do patrimônio público, bem como da moralidade administrativa, do meio ambiente e do patrimônio histórico e cultural. A medida, portanto, a par de proteger o patrimônio estatal (aí incluída a moralidade administrativa), também agora se destina à proteção do patrimônio público em sentido amplo, ou seja, ao patrimônio pertencente à toda a coletividade (o que inclui, assim, o meio ambiente e o patrimônio cultural e histórico)“. MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz. Procedimentos especiais. São Paulo: Ed. RT, 2009. p. 275-276. 25 “Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo. Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de: I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato; Página 12

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II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base; III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum“. 26 Em igual sentido, ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais. São Paulo: Ed. RT, 2013. Também, BENJAMIN. Antônio Herman. A insurreição da aldeia global contra o processo civil clássico: Apontamentos sobre a opressão e a libertação judiciais do meio ambiente e do consumidor. In: MILARÉ, Edis (coord.). Ação civil pública: Lei 7.347/85 – Reminiscências e reflexões após dez anos de aplicação. São Paulo: Ed. RT, 1995. Ainda, MENDES, Aluisio Gonçalve de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Ed. RT, 2010. DINAMARCO, Pedro. Ação civil pública. São Paulo: Saraiva, 2001. 27 Ver, por todos, MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas… cit. p. 31-35. 28 É que a igualdade de decisões não é plenamente assegurada caso se sustente que a ação voltada à tutela de direitos individuais homogêneos deve ser findada com uma condenação genérica a ser sucedida por liquidações individuais. Sob o manto dessa“pulverização“,“o risco inerente à instituição de um sistema tão só de precedentes é transposto para cá: não sendo possível evitar o desrespeito ao precedente, é igualmente inviável firmar que cada uma das execuções individuais conduzirá ao mesmo deslinde. A condenação genérica não mais faz que instituir um precedente sui generis para o exercício individual das pretensões, dispensando a fase de conhecimento, mas não assegurando o tratamento equânime entre os interesses“. Sobre o tema, MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Cumprimento de sentenças coletivas: da pulverização à molecularização. RePro, n. 222, p. 61, São Paulo: Ed. RT, 2013. 29 Nesse sentido, afirma Gidi que um“objetivo buscado pelas ações coletivas é o de assegurar o efetivo acesso à justiça de pretensões que, de outra forma, dificilmente poderiam ser tuteladas pelo Judiciário (…) É lugar comum reconhecer que alguns direitos estão à margem da proteção judicial do Estado. Isso acontece, por exemplo, quando uma pessoa sofre uma lesão de reduzido valor financeiro ou é lesada de uma forma sem repercussão financeira imediata (…) Os custos financeiros e psicológicos de uma ação judicial seriam desproporcionais ao dano efetivamente sofrido pela pessoa lesada (…) O equilíbrio da situação se altera, porém, quando centenas ou milhares de pessoas em uma mesma situação podem se reunir com o objetivo de solucionar toda a controvérsia coletiva através de um único processo e de uma única sentença, que vincule definitivamente todos os interessados“. GIDI, Antonio. A class action como instrumento de tutela coletiva de direitos. São Paulo: Ed. RT, 2007. p. 29. 30 “Isto não ocorre com a 'condenação genérica’, pois a hipossuficiência e os custos do processo que impedem ou desmotivam o pleito individual não são findados pela diferença entre 'fase de conhecimento’ e 'fase de execução’. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro; ARENHART, Sérgio Cruz; OSNA, Gustavo. Cumprimento de sentenças coletivas… cit., p. 63. 31 “Não parece haver dúvida de que, para que os interesses individuais sejam reunidos para tratamento coletivo, com a técnica da legitimação extraordinária de alguém no interesse do grupo, o primeiro elemento que deve ser considerado é a inviabilidade da participação de todos os titulares do grupo (…) porque, entretanto, essa coletivização é algo discrepante da tradição nacional, parece razoável concluir que sua admissão é excepcional, no sentido de ser admissível quanto não for viável socorrer-se da forma clássica de solução de interesses de vários sujeitos. Assim, sempre que for possível a participação concreta e efetiva – sem prejuízo para o desenvolvimento adequado do processo, para a defesa do requerido, para a instrução da causa ou para a rápida solução da lide – não se justifica a aplicação do regime de tutela coletiva“. ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais cit., p. 145-146. 32 Em recente manifestação relacionada à questão, afirmou o autor que“nas últimas semanas, estivemos assistindo ao que pode vir a ser uma guerra de liminares entre torcedores sobre o desfecho do Campeonato Brasileiro do ano passado. Sem prejuízo de vários processos em que a Página 13

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liminar não foi concedida, há notícias de duas liminares concedidas em favor de Portuguesa e Flamengo pela Justiça do Estado de São Paulo (que rebaixariam o Fluminense para a Série B) e outras duas liminares em sentido contrário na Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que manteriam o Fluminense na Série A, rebaixando a Portuguesa (…) a reflexão que aqui proponho passa ao largo dessa discussão e se concentra em outro problema: como compatibilizar essas decisões contraditórias? Afinal, é óbvio que um mesmo time não pode estar rebaixado em São Paulo e ser mantido na Série A no Rio de Janeiro, e assim por diante. Admitamos, então, que qualquer torcedor tenha legitimidade ampla para ingressar com ação na Justiça comum com base no art. 34 do Estatuto do Torcedor. Estará esse torcedor não apenas veiculando seu direito individual, mas de toda a coletividade de torcedores de determinado clube. Trata-se de situação incindível, que poderia muito bem ser considerada como um direito coletivo stricto sensu ou até difuso. Indivisível porque, como já disse, um mesmo clube não pode ser rebaixado para um torcedor e mantido na Série A para outro. A solução será necessariamente a mesma para todos. E se esse torcedor ingressa em juízo para veicular direito seu e de outros torcedores ao mesmo tempo, trata-se de legitimação extraordinária (…) Onde quero chegar? É que, nas ações coletivas, a aferição de eventual litispendência ou conexão (ou seja, causas idênticas ou relacionadas) deve ser feita à luz da coletividade toda interessada e não da parte formal no processo“. ROQUE, André Vasconcelos. Processo e futebol: cada cabeça, uma sentença. Disponível em: [http://www.migalhas.com.br/dePeso/16,MI193950,91041-Processo+e+futebol+cada+cabeca+uma+sentenca]. Acesso em: 23.02.2014. 33 Em relação a esse aspecto, e a inocuidade do processo civil individual para lhe conferir resolução efetiva e adequada, veja-se ARENHART, Sérgio Cruz. A tutela coletiva de interesses individuais cit., p. 203-204. 34 Sinalizando esse aspecto, OSNA, Gustavo. ALVES, Giovani Ribeiro Rodrigues. Codificação, direito comercial e processo – Do encerramento normativo à efetividade. Revista de Direito Empresarial, ano 9, n. 2, p. 134-137, Belo Horizonte: Fórum, 2012. 35 Em seus dizeres,“enquadrando-se a legitimação coletiva como autônoma, e aceitando-se que o processo coletivo brasileiro pode ser visto a partir do modelo de representação de interesses, percebe-se que a representação adequada ganha posição central dentro do sistema. O controle judicial sobre essa adequação passa a ser, então, consequência natural do modelo que se buscou construir. Afinal, uma representação inadequada não possui aptidão para vincular quaisquer espécies de interesses“. VIOLIN, Jordão. Ação coletiva passiva – Fundamentos e perfis. Salvador: JusPodivm, 2008. p. 155. 36 Ver, por todos, GIDI, Antonio. A representação adequada nas ações coletivas brasileiras: uma proposta. RePro, n.108, São Paulo: Ed. RT, 2002. 37 Isto porque, de um lado, a indicação normativa do legitimado não exclui peremptoriamente a possibilidade de aferição judicial da adequação de representatividade e, de outro, tampouco gera a presunção absoluta de que essa adequação existe. Sobre o tema, VIOLIN, Jordão. Ação coletiva passiva… cit., p. 70-73. 38 Assim, YEAZELL, Steven C. From Medieval Group Litigation to the Modern Class Action. New Haven: Yale University Press, 1987. 39 Com efeito,“o Código de Processo Civil atual, especialmente antes da reforma processual levada a cabo em 1994, é exemplo de legislação voltada exclusivamente para a tutela de interesses patrimoniais disponíveis e individuais“. ARENHART, Sérgio Cruz. Perfis da tutela inibitória coletiva cit., p. 39. 40 É preciso identificar que, ao contrário do que se poderia crer, as demandas com esses contornos efetivamente ingressam na órbita dos direitos individuais de sujeitos que não participaram do litígio, não se limitando a inibir a conduta da própria torcida organizada enquanto ente. É assim que, por exemplo, o provimento jurisdicional pode tanto proibir a torcida organizada de comercializar determinadas vestimentas (tocando a esfera jurídica da entidade) quanto vedar o ingresso nas praças esportivas com tais peças de roupa (inibindo individualmente, nesse caso, uma série de sujeitos que não tiveram a oportunidade de participar do processo). É somente sob a lógica da ação Página 14

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coletiva passiva que essa vinculação pode ser aceita, demonstrando a inocuidade do processo civil tradicional para lidar com tal situação.

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