As aparências no além-mundo: reflexões acerca do guarda-roupa fúnebre e do hábito franciscano no Brasil (séculos XVIII e XIX)

June 1, 2017 | Autor: Juliana Moraes | Categoria: Franciscan Studies, Brasil Colonial, História da Moda, Ordem Terceira Franciscana, Luto e morte
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MODA DOCUMENTA: Museu, Memória e Design Anais do III Congresso Internacional de Memória, Design e Moda – 2016 ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

Data: 12, 13 e 14 de Maio de 2016. Local: UFPR – Curitiba - PR

CORPO EDITORAL ORGANIZAÇÃO Márcia Merlo PRODUÇÃO E EDIÇÃO DIGITAL Márcia Merlo (Coordenadora Geral do MIMo e Direção Científica do Moda Documenta) Gustavo Reis (Editor e Pesquisador do MIMo) Yasmin Fabris (Produção Técnica) Anna Vörös (Produção Técnica) Revisão de Texto: A responsabilidade pela aplicação normativa, conteúdo, correção ortográfica e gramatical dos artigos, assim como a qualidade da em língua estrangeira (francês, espanhol ou inglês) é exclusivamente dos autores. Autorização para Publicação dos Artigos e Painéis Digitais: Todos(as) autores autorizam a publicação dos artigos científicos (em português e em versão em língua estrangeira), bem como os painéis digitais, responsabilizando-se quanto ao uso de imagens e conteúdo de seu trabalho. Autorização para Publicação dos Trabalhos Aprovados: Todos (as) autores (as) autorizam a publicação dos resumos dos artigos científicos apresentados e aprovados ao 6º. Congresso Internacional de Memória, Design e Moda em português e em versão em língua estrangeira (inglês, espanhol ou francês). Para referenciar um trabalho publicado nos ANAIS siga as normas da ABNT. Observe que os dados entre também devem ser preenchidos. SOBRENOME, Nome autor/a. Título do artigo. In: MODA DOCUMENTA: Museu, Memória e Design 2016. Anais do 3º. Congresso Internacional de Memória, Design e Moda. São Paulo: Estação das Letras e Cores Editora, Ano III. v. 01, 2016, p. [XX-XX]. [ISSN: 2358-5269]

REALIZAÇÃO Museu da Indumentária e da Moda – MIMo www.mimo.org.br www.modadocumenta.com.br Estação das Letras e Cores Editora www.estacaoletras.com.br Universidade Federal do Paraná PATROCÍNIO Capes SÃO PAULO | 2016

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As aparências no além-mundo: reflexões acerca do guarda-roupa fúnebre e do hábito franciscano no Brasil (séculos XVIII e XIX)

Appearances in the Otherworld: reflections on the funeral wardrobe and the franciscan habit in Brazil (eighteenth and nineteenth centuries) Juliana de Mello Moraes (Universidade Regional de Blumenau - FURB) [email protected]

Resumo: Até início do século XIX, variados elementos contribuíam para a salvação da alma dos fieis católicos, incluindo a escolha acertada das vestes fúnebres. Dentre essas destacava-se a mortalha franciscana. Nesse sentido, este texto, a partir das representações do hábito de São Francisco inscritas na bibliografia produzida pelos franciscanos, avalia como as práticas fúnebres se adequaram às exigências da moralidade católica em voga, em detrimento das mutações no universo da moda. Palavras-chave: Trajes fúnebres, franciscanos, História da morte

Abstract: Until the early nineteenth century, various elements contribute to the salvation of the soul of catholic faithful, including the right choice of funeral vestments. Among these stood out the franciscan shroud. In this sense, this text, from the representations of the Saint Francis habit listed in the bibliography produced by the franciscans, assesses how the funeral practices are suited to the demands of catholic morality in vogue at the expense of changes in the fashion world. Keywords: Funeral Costumes, Franciscans, History of death

O campo da moda nas últimas décadas tem atraído a atenção de pesquisadores de diferentes áreas, com destaque para a História (CALANCA, 2011). Tal como outros objetos de pesquisa, a moda vincula-se à diversos aspectos, incluindo o econômico, tecnológico, político, religioso e cultural. Nesse sentido, enquanto problema de investigação, ela possibilita inúmeras abordagens. Como matéria interdisciplinar permite, inclusive, a análise das suas representações e práticas em determinadas sociedades e épocas. Paralelamente, como expressão da cultura material, a indumentária se afirma como "produto porque resulta da ação humana, de processos de interações sociais que criam e transformam o meio físico, mas também vetor porque constitui um suporte e condutor concretos para a efetivação das relações entre os homens" (REDE, 2012, p. 147). !" " ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

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As transformações sociais desencadeadas a partir de meados do século XIV, quando emerge a distinção entre as vestes femininas e masculinas, determinando a gênese do sistema de moda (LIPOVETISKY: 2009), proporcionaram novas e inéditas relações entre os indivíduos e o seu entorno. Essas mutações vinculam-se às características inerentes à indumentária, uma vez que ela expressa "o laço profundo que se cria entre o indivíduo e o mundo" (ROCHE, 2000, p. 13). Entre os séculos XVI e início do século XIX, a indumentária evidenciava outras características nas sociedades ocidentais, expressando, sobretudo, as distinções e posições sociais, através dos jogos de aparências. O movimento provocado pelas transformações do vestuário demandou, inclusive, a elaboração de legislação específica, denominada Leis Suntuárias nas monarquias católicas ibéricas (Espanha e Portugal), as quais pretendiam assegurar o uso de roupas consideradas adequadas a cada grupo social (BOUCHER, 2012, p. 186), conformando uma "cultura da distinção" (ROCHE, 2000, p. 267). Nesse sentido, as aparências consistiam em sinais exteriores da posição ocupada pelos indivíduos, marcando seu status na configuração social. Elemento de preocupação e cuidados, o vestuário enquanto "linguagem simbólica (dos trajes, das armas ou das formas de tratamento) interessava aos diferentes grupos sociais" (LARA, 2007, p. 91). Nesse sentido, os trajes e adornos possuíam especial significado no cotidiano das populações. Além da monarquia, membros da Igreja também não estiveram alheios às mutações do vestuário e fomentaram debates a respeito do luxo e do supérfluo (ROCHE, 2007). O papel desempenhado pela Igreja e pela religiosidade naquela época mostrava-se fundamental, pois como uma dimensão essencial da existência, o religioso "ocupava uma posição central na sociedade" (FEITLER; SOUZA, 2011, p. 9). Homens e mulheres participavam de distintas cerimônias religiosas, as quais assinalavam as alterações do status do indivíduo no seio da coletividade católica. Desde sua entrada na comunidade de fieis, a formação dos laços conjugais, a prática da comunhão e, finalmente, a derradeira despedida do mundo terreno decorriam sob os auspícios da Igreja católica. Após a morte, os fieis contavam com a perpetuação da existência da alma, sendo que no mundo celeste a alma do fiel poderia atingir um estado ideal, alcançando a salvação. Nessa perspectiva, a hora da morte implicava um acerto de contas e uma relação direta com o sagrado ou, ainda mais diretamente, com Deus. No momento de trespasse para o outro mundo, ocorria o julgamento individual e seria este que condenaria ou exaltaria a alma do defunto, demarcando também o local onde ela ficaria encerrada. Desse modo, o julgamento individual fazia com que os homens se tomassem iguais diante de Deus. Ricos ou pobres, nobres ou plebeus, livres ou escravos, todos que seguissem os preceitos católicos estavam condenados a enfrentar a #" " ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

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mediação divina no final de sua existência terrena. Logo, “o medo da punição depois da morte e a angústia em relação à salvação da alma se apossavam igualmente de ricos e pobres, sem aviso prévio” (ELIAS, 2001, p. 23). Inferno, Purgatório e Paraíso representavam, pois, a tríade básica da geografia celeste e, dependendo da vida e da morte do fiel, sua alma tinha como destino certo um desses lugares. O Paraíso, morada dos justos, local por excelência da felicidade eterna, postava-se como o mais desejado, porém adentrar as suas fronteiras exigia do cristão uma vivência e uma morte dentro dos cânones estabelecidos pela Igreja. Para conseguir esse privilégio, era indispensável evitar todos os tipos de pecado, desde os mais leves aos mais graves, e ter uma vida dedicada à elevação da fé cristã. A recompensa seria a possibilidade de esperar o Juízo Final da maneira mais agradável que poderia existir e ter a garantia de que seria salvo no final dos tempos, pois após a entrada no Paraíso não havia forma de ser retirado dessa instância. Assim, a geografia do além-mundo, por meio de suas peculiaridades, oferecia oportunidades de felicidade, mas também de sofrimento e purgação, fomentando temores e exigindo dos vivos cuidados especiais para a ocasião. Essas crenças referentes ao momento da morte e suas consequências ampliaram-se após o século XVI, como fator de contraste ao protestantismo. O reforço da doutrina do purgatório, após o Concílio de Trento (1563), decorreu através da ação do clero secular e mendicante. Tanto os sermões como a literatura religiosa, duas esferas essenciais para a difusão doutrinária na época, enfatizavam as necessárias ações para garantir uma boa morte (RODRIGUES, 2008, p. 263). Diversos elementos compunham a "arte de bem morrer", incluindo o cuidado com o local da inumação e os ritos fúnebres adequados. Entretanto, no conjunto de atitudes recomendadas para a salvação da alma, também constavam as concepções a respeito da escolha mais acertada do vestuário fúnebre. A seleção da indumentária adequada era fundamental, pois a aparência daquele que morria influenciava seu destino no além-mundo (ARAÚJO, 2010, p. 106). O sucesso da difusão dos preceitos do bem-morrer pode ser verificado nos testamentos da época. Nessa documentação encontram-se os últimos desejos dos indivíduos e, diferentemente da atualidade, o principal objetivo consistia nos pedidos relacionados à salvação da alma, entre os quais se destaca a indicação da roupa fúnebre. Característica que demonstra a adesão das populações aos ritos divulgados pela Igreja,pó meio da literatura ou durante os sermões realizados nas missas regularmente executados nos púlpitos. Entre os séculos XVIII e início do XIX era utilizada uma grande variedade de vestes fúnebres, incluindo lençóis de distintas cores, vestes militares ou ocupacionais (por exemplo, do $" " ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

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clero), bem como os hábitos de diferentes santos e santas. Nesse sentido, a devoção de distintos santos poderia se referenciada no momento da morte através do vestuário do defunto. Os hábitos de Nossa Senhora do Carmo, de Nossa Senhora da Conceição, de São Francisco são alguns exemplos das escolhas existentes dentre as vestimentas fúnebres. A disponibilidade de variadas roupas para o momento da inumação determinou, contudo, a presença de algumas predileções entre os féis na época. Entre as mortalhas mais utilizadas, na cidade de São Paulo, no início do século XIX, destacavam-se: os hábitos de São Francisco e o de Nossa Senhora do Carmo. A veste do santo de Assis envolvia pelo menos 40% dos enterrados em São Paulo (REIS, 1997). Não era somente nesta localidade que os inumados preferiam a mortalha franciscana. Na mesma época os moradores, tanto negros como brancos, da Bahia também eram, em sua maioria, sepultados com as vestes de São Francisco (REIS, 1991, p. 116). A preferência pela mortalha franciscana em localidades distintas evidencia similaridades nas preferências dos testadores independente do grupo social, sendo pertinente questionar quais seriam os motivos para o seu sucesso naquele período. Nesse sentido, esta pesquisa analisa as representações e práticas fúnebres referentes ao hábito de São Francisco inscritas na bibliografia produzida pelos mendicantes e difundida no Brasil, no intuito de avaliar como as práticas se adequaram às exigências da moralidade católica em voga, em detrimento das mutações no universo da moda.

O guarda-roupa fúnebre e o sucesso do hábito franciscano

O uso generalizado do hábito franciscano entre os mortos do passado já foi assinalado em diferentes estudos, porém, como afirma Fausto Viana a respeito dessa questão: "duas abordagens, no mínimo, podem ser feitas. Na primeira, espera-se que o traje ajude a receber o socorro divino. No outro caso, em avaliação menos modesta, a entrada no Paraíso fica garantida pelo uso da roupa. Um verdadeiro lobo em pele de cordeiro, já que o requisito apregoado pela própria crença na humildade ficaria esquecido." (VIANA, 2015, p. 51)

A crença nas benesses proporcionadas pelo hábito franciscano enquanto elemento propiciador da salvação é evidente, bem como a crença nas suas capacidades para demonstrar modéstia e humildade, ainda que de modo estrategicamente calculado pelo moribundo ou testador, afastando-se da essência do ethos franciscano. Além dessa perspectiva, a historiografia enfatiza a difusão de crenças entre os fieis dos atributos do hábito franciscano no momento da morte, pois o santo teria "um lugar destacado na %" " ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

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escatologia cristão" (REIS, 1991, p. 117). Tal destaque se explicaria pelas capacidades do santo de Assis de visitar regularmente o purgatório e, por meio do seu cordão, resgatar as almas sofredoras. E é dessa maneira que São Francisco foi retratado na catacumba do convento franciscano em Salvador, como afirma João José Reis. O autor também destaca o próspero comércio de mortalhas realizado pelos mendicantes na cidade, enfatizando o seu sucesso no ramo da confecção de vestimentas tanto na Bahia como no Rio de Janeiro. As hipóteses apontadas pelos referidos autores são de grande relevância para compreender o fenômeno, entretanto, essas afirmações não contemplam outros aspectos relacionados à difusão e sucesso da mortalha franciscana. Afinal, de onde provém ou em quais elementos estariam baseadas essas crenças nos poderes de São Francisco? Qual seria o papel ou as estratégias utilizadas pelos frades na promoção do seu hábito entre os fieis? A partir desses questionamentos é conveniente apontar também o contraste entre o cotidiano dessas populações e a escolha do hábito franciscano para o sepultamento, pois a distinção através do vestuário, marcada pela ascendência do luxo e ostentação, contrapunha-se ao ideal ascético da Ordem franciscana, contudo, paradoxalmente o hábito religioso tornou-se a grande moda do guarda-roupa fúnebre da época (TORRES AGUDO, 2009). Essa característica não foi ignorada inclusive por Jean-Baptiste Debret. Ele viveu no Brasil entre 1816 e 1831, e na sua obra representou trajes fúnebres da época, destacando também o hábito franciscano:

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Debret,

Jean-Baptiste.

Divers

cercueils.

(1816-1831)

Disponível

em:

Acesso em: 16 fev. 2016.

O hábito de São Francisco, valorizado entre os católicos desde o século XIII, adquiriu relevância ao longo do tempo e, a partir do século XVI, angariou notoriedade entre as indumentárias fúnebres tanto na Península Ibérica quanto na América (MÓL, 2004; REITANO: 2004; RODRIGUEZ ÁLVAREZ, 2001). Como um fenômeno abrangente, ou seja, evidente em diversos espaços tanto europeus quanto americanos, a ascensão da mortalha franciscana requer um estudo mais aprofundado. Inicialmente, destaca-se a atribuição de distintas indulgências pelo papado, entre os séculos XV e XVI, as quais imbuíram a mortalha franciscana de um papel especial na trama da salvação (GONZÁLEZ LOPO, 2002). As indulgências significavam, segundo dicionário da época, "graça que concede a Igreja ao pecador arrependido remetindo-lhe a pena devido aos seus pecados, a qual haviam de padecer ou neste mundo ou no Purgatório" (BLUTEAU, 1728, p. 114). Desse modo, a concessão de indulgências à mortalha denotava-lhe grande significado simbólico e lhe proporcionava atributo muito atraente para os fieis angustiados com o destino '" " ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

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das suas almas. É provável que essas indulgências tenham colaborado para a conformação das crenças sobre os poderes de São Francisco no resgate das almas. Contudo, a difusão dessas crenças e uso recorrente do hábito pelos fieis dependeu igualmente da ação promovida pelos mendicantes. Como os principais interessados, os frades participaram ativamente na promoção da sua mortalha, assim as ações dos mendicantes e seus esforços na difusão de sua religiosidade, através de suas redes internacionais (GRUZINSKI, 2001) foram fatores importantes para o sucesso da mortalha franciscana. A partir dos púlpitos através dos sermões, e, principalmente, dos livros impressos - os franciscanos disseminaram representações que promoveram o seu hábito enquanto indumentária fúnebre ideal. A bibliografia religiosa destinada aos leigos, ou seja, a generalidade dos fieis, era manipulada e lida pelas populações em ambas as margens do Atlântico, sendo significativa sua presença também na América (ALGRANTI, 2004). Embora o índice de analfabetismo fosse elevado, a população contatava regularmente com a palavra escrita, pois, muitas vezes, as leituras ocorriam em grupo, onde um leitor recitava em voz alta o conteúdo da obra. Dentre a literatura religiosa, merece destaque, os livros produzidos pelos franciscanos. Neles se encontram as características referentes ao hábito, as quais expressavam preocupações relativas aos elementos materiais, bem como aos atributos espirituais da roupa. Inicialmente, é importante verificar quais seriam as características materiais necessárias para a confecção do hábito na bibliografia da época. No livro Caminho dos Terceiros Seráficos, publicado em 1731, encontra-se um capítulo destinado exclusivamente a explicar as "prerrogativas e excelências do hábito e cordão do nosso Padre Seráfico" (SILVA, 1731, p. 115), ou seja, de São Francisco. Nele, o autor, especifica a qualidade do tecido e o corte apropriados, justificando que "o hábito há de ser no preço e na cor humilde" (SILVA, 1731, p. 116). A representação da humildade, através das vestes franciscanas, vincula-se a trajetória de São Francisco, o qual se despojou dos seus pertencentes para seguir uma vida ascética, dedicada a Deus. Assim, o tecido e a sua cor deveriam expressar a modéstia e o desprendimento monetário, por isso a lã seria mais adequada na sua confecção. A ausência de tingimento, deixando o tecido na sua cor natural, ou seja, cinza igualmente comprovava a humildade, pois a "lã bendita do Senhor se chama a que não conhece afetação ou tintura" (SILVA, 1731, p. 116). As cores possuem especial significado e sua percepção altera-se de acordo com os contextos e tempos, entretanto naquela época o "pardo, encardido, terroso, indistinto era a cor (ou não cor) nativa, rústica não polida. Na humanidade era a cor dos primeiros homens" (HESPANHA, 2008, p. 354). A rusticidade reforçava a ausência de custos e afastava o fiel da aparência ostentatória.

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A combinação de elementos naturais associadas ao seu feitio simples (VIANA, 2015) denotavam à vestimenta seus atributos morais e poderes de salvação. Além do tecido e da cor, as capacidades espirituais contidas nas vestes franciscanas eram enfatizadas na bibliografia. O hábito possuía a habilidade de afugentar demônios, isso porque se "vê a cada dia que os espíritos malignos nos obsessos se atormentam e afligem quando se lhes aplica o santo hábito e cordão o seu remédio." (SILVA, 1731, p. 134). Essa potencialidade tornava as vestes franciscanas importantes para o momento da morte, especialmente durante o trepasse da alma durante o velório, pois seria uma ocasião perigosa para a defunto, devido as possíveis interferências provocadas pelos espíritos malignos. Nesse sentido, forma, textura, cor e atributos espirituais juntavam-se às indulgências concedidas pelo papado, denotando ao hábito franciscano qualidades excepcionais para o período.

Conclusões

A abrangência do uso do hábito franciscano, ou seja, tanto entre brancos como negros, bem como a sua valorização em diferentes territórios das monarquias católicas ibéricas, incluindo aqueles no além-mar, revela, não obstante, suas especificidades, uma consonância nas representações e práticas fúnebres, sugerindo a existência de conexões profundas entre a vivência religiosa e suas expressões nesses espaços. Paralelamente, as contradições entre as práticas fúnebres e a vivência cotidiana expressavam as aproximações e distâncias entre as representações produzidas nas esferas religiosas e leigas, revelando-se a indumentária objeto privilegiado para a compreensão da complexidade inerente a essa dinâmica (ROCHE, 2007). Se no cotidiano as populações demonstravam preocupação quanto ao vestuário, buscando nos trajes e adornos indicar ou reforçar sua condição social e seu status, no momento da morte a ostentação e o luxo eram desvalorizados em prol da salvação da alma. No entanto, as escolhas dos trajes fúnebres não decorriam de forma aleatória e imprecisa. A promoção do hábito franciscano entre os fieis incluiu distintas estratégias, as quais se revelam na bibliografia produzida pelos frades. Essa sublinha e destaca os atributos da vestimenta denotando-lhe funções excepcionais relativas a sua materialidade, bem como enfatizando seus atributos espirituais. Tais características tornavam as vestes de São Francisco bastante valiosas na trama da salvação para os católicos da época.

Referências: )" " ISSN: 2358-5269 Ano III - Nº 1 - Maio de 2016

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