As aporias de um pensamento utópico

July 25, 2017 | Autor: Marco Scapini | Categoria: Criminologia, Filosofía, Violência, Desconstrução, Abolicionismo
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Grupo de trabalho: Ainda é possível falar em abolicionismo penal?

As aporias de um pensamento utópico Palavras-chave: Violência, Desconstrução, Aporia e Utopia Marco Antonio de Abreu Scapini1

Um pensamento que não ousa fazer emergir o novo diante do que já está aí positivado carrega no seu âmago uma dimensão de conservação do estatuído. Em outras palavras, tais estilos de pensamento são marcados por uma racionalidade que, ao limite, pretende ter nos seus próprios domínios o controle do tempo, obliterando, por assim dizer, a dimensão fundamental do viver propriamente dito. Nesse sentido, podemos dizer que o pensamento que não seja ousado, reifica as dimensões do já estabelecido, marcando por imposição a neutralização do tempo2. O desdobramento deste gesto no modo de pretender, pela força do intelecto, instituir o real desde uma rede conceitual bem ordenada, se assim podemos dizer, é a naturalização da violência em todas as dimensões do viver. Assim, a desarticulação deste processo que culmina na lógica de violência contemporânea se faz cada vez mais urgente desde uma perspectiva radical. Desde esta urgência da necessidade de desarticulação das lógicas de violências contemporâneas podemos encontrar, justamente, a resposta para o questionamento sobre as possibilidades de se falar em abolicionismo penal na atualidade. Nesse sentido, o próprio questionamento sobre a possibilidade de ainda se falar em abolicionismo carrega uma dupla dimensão. Assim, questionando o próprio questionamento sugerido como problema, podemos sugerir que há uma certa restrição ao pensamento abolicionista, na medida em que este ainda pode também significar algo já superado ou que não esteja suficientemente de acordo com as exigências atuais de uma certa crítica da violência do sistema penal nas suas diversas multiplicidades. Ou seja, por esta via, podemos perceber que a resistência ao abolicionismo, no sentido que estamos apontando, seja justamente por ser um discurso e uma prática sem 1

Doutorando em Filosofia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Mestre em Ciências Criminais (PUCRS), Especialista em Ciências Penais (PUCRS). Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais (PUCRS). Bolsista Cnpq. 2 Cf. SOUZA, Ricardo Timm de. Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008.

limites. Em tempos de uma biopolítica regida pela governabilidade, inclusive da violência, um discurso e uma prática como o abolicionismo, que exijam de ponta a ponta uma radicalidade crítica em relação à violência, estarão em descompasso com aqueles discursos, justamente, regulados pela lógica do possível e que pauta a própria ideia de governo. Em contrapartida, entendemos que ainda é possível falar em abolicionismo (penal), justamente porque há este descompasso e esta inadequação em relação ao já estatuído e institucionalizado. Nesse sentido, é esta reserva ao já positivado que dá sentido a possibilidade de construção de um pensamento abolicionista desde suas próprias heranças e para além. Assim, ao contrário do que se poderia suscitar, ou seja, de que por vivermos uma realidade com um nível altíssimo de violência, como é exemplificativo o sistema penal, e, sobretudo, os níveis de encarceramento, não poderíamos mais falar em abolicionismo; quando é justamente por esta crise que devemos com urgência voltar a falar em abolicionismo. Deste modo, a ausência da fala sobre abolicionismo é também sintoma de uma crise que atravessa o sistema penal de ponta a ponta, bem como a própria Universidade que, em geral, silencia a voz abolicionista. A força motriz, portanto, do pensamento do abolicionista é o que ainda não está aí presente. Trata-se de uma força endereçada de ponta a ponta à justiça, em sentido derridiano, significando uma loucura por justiça, ou seja, endereçada para além de qualquer ideia reguladora ou delimitação conceitual previamente estabelecida. Isto porque, no sentido como estamos sugerindo, a justiça não se presentifica, assim como não é possível tratá-la diretamente. Esta impossibilidade nos faz ter que trilhar a experiência aporética da justiça que, nestes termos, é exatamente aquilo que não podemos experimentar. Nesse sentido, a experiência da justiça nunca se dá plenamente. Trata-se de uma travessia do impossível sem a qual a justiça não é possível. Esta aporia fundamental faz da justiça o que ela pode ser, conforme Jacques Derrida, apenas um apelo à justiça3. A travessia, portanto, que pretendemos elaborar exige a passagem pelas três aporias fundamentais da justiça expostas por Derrida, quais sejam: a epokhé da regra; a assombração do indecidível; e a urgência que barra o horizonte do saber; relacionando com o princípio esperança de Ernst Bloch. Assim, passamos a primeira aporia exposta por Derrida:

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DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 30.

a) A epokhé da regra Trata-se do axioma mais comum, em que está em questão a possibilidade de uma ação livre e responsável. . Nesse sentido, diz Derrida: Para ser justo – ou injusto, para exercer a justiça – ou violá-la, devo ser livre e responsável por minha ação, por meu comportamento, por meu pensamento, por minha decisão. Não se pode dizer de um ser desprovido de liberdade, ou que, pelo menos, não é livre em tal ou tal ato, que sua decisão é justa ou injusta. Mas essa liberdade ou essa decisão do justo deve, para ser dita como tal, ser reconhecida como tal, seguir uma lei ou prescrição, uma regra. Nesse sentido, em sua própria autonomia, em sua liberdade de seguir ou de se dar a lei, ela deve poder ser da ordem do calculável ou do programável, por exemplo, como ato de equidade. Mas, se o ato consiste simplesmente em aplicar uma regra, desenvolver um programa ou efetuar um cálculo, ele será talvez legal, conforme o direito, e talvez, por metáfora, justo, mas não poderemos dizer que a decisão foi justa. Simplesmente porque não houve nesse caso, decisão. (...) Em resumo, para que uma decisão seja justa e responsável, é preciso que, em seu momento próprio, se houver um, ela seja ao mesmo tempo regrada e sem regra, conservadora da lei e suficientemente destruidora ou suspensiva da lei para dever reinventá-la em cada caso, re-justificá-la, reinventá-la pelo menos na reafirmação e na confirmação nova e livre de seu princípio4.

Assim, cada ato de decidir é absolutamente singular, o que implica no dever de uma interpretação única e que não pode ser garantida por nenhuma regra ou programa já previsto. Desta passagem, observamos que a decisão que – para ser justa – deve ser ao mesmo tempo regrada e sem regra nos coloca diante da impossibilidade de sincronizar a justiça. Nesse sentido, diz Ricardo Timm de Souza que “a questão da justiça, assim, não se sincroniza jamais, ela escapa ao momento que plenificaria a sua realização, porque ela não se subsume no conceito e, sim, se dá no decorrer do tempo”5. A justiça, portanto, em nenhum momento se presentifica, razão pela qual no posso afirmar eu sou justo6. Assim, podemos dizer que a decisão é legal ou legítima, de acordo com um critério jurídico, uma regra ou uma convenção por exemplo, mas não justa. Esta primeira aporia é exemplificada por Derrida na fundação dos Estados-Nacções: Mas com um direito cuja autoridade fundadora apenas faz recuar o problema justiça. Pois no fundamento ou na instituição desse direito o mesmo problema da justiça se colocará, violentamente resolvido, isto é, enterrado, dissimulado, recalcado. O melhor paradigma é, aqui, a fundação dos Estados-Nações, ou o ato instituinte de uma constituição que instaura o que se chama, em francês, état de droit [estado de direito]7.

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DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 43. SOUZA, RICARDO Timm, Justiça em seus termos: dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 99. 6 DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 45. 7 Idem. op. cit. p. 45. 5

Trata-se da violência performativa do ato fundador que acaba, em geral, nas teorias e construções sobre o Estado, sendo recalcada ou dissimulada. Ou seja, não há o enfrentamento da questão propriamente dita da justiça porque o ato fundador performativo é violentamente dado como resolvido.

b) A assombração do indecidível

Esta segunda aporia remete à questão de que nenhuma se efetiva ou se determina pela forma do direito. Isto porque o direito é da ordem do cálculo, do programa, do calculável propriamente dito. Assim, segundo Derrida “se o cálculo é da ordem o cálculo, , a decisão de calcular não é da ordem do calculável e não deve sê-lo”8. A relação com o indecidível que assombra toda a decisão não diz respeito apenas a regras contraditórias, nem tampouco a oscilação entre duas decisões distintas mas já estabelecidas. Fosse assim, qualquer que fosse a decisão, “a” ou “b” (já programadas), também não poderíamos dizer que tal decisão teria sido justa e responsável, isto porque em ambos os casos teria havido apenas aplicação de uma regra dentro dos limites do possível. Nesse sentido, para Derrida: Indecidível é a experiência daquilo que, estranho, estranho, heterogêneo à ordem o calculável e da regra, deve entretanto – é de dever que é preciso falar – entregar-se à decisão impossível, levando em conta o direito e a regra, Uma decisão que não enfrentasse a prova do indecidível não seria uma decisão livre, seria apenas a aplicação programável ou o desenvolvimento contínuo de um processo calculável. Ela seria, talvez, legal, mas não seria justa. (...) O indecidível permanece preso, alojado, ao menos como um fantasma, mas um fantasma essencial em qualquer decisão, em qualquer acontecimento de decisão. Sua fantasmaticidade desconstrói do interior toda garantia de presença, toda certeza ou toda presença criteriologia que nos garanta a justiça de uma decisão9.

Não há, por assim dizer, nenhuma garantia de que possa haver uma decisão justa, pois se a fantasmaticidade faz desconstruir qualquer critério ou certeza presente, é, justamente, porque a desconstrução opera desde uma ideia de justiça infinita, próximo ao que Levinas chama de infinito ético. c) A urgência que barra o horizonte do saber

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DERRIDA, Força de Lei. 46. Idem. Op. Cit. p. 47-48.

Esta terceira aporia não possui relação com a ideia kantiana de horizonte, cujo significado grego remete ao mesmo tempo a uma abertura que defini ou um progresso infinito ou uma espera. E justamente porque a justiça não espera, não pode esperar. Segundo Derrida: Uma decisão para ser justa é sempre requerida imediatamente, de pronto, o mais rápido possível. Ela não pode se permitir a informação infinita e buscar o saber limite das condições, das regras ou dos imperativos hipotéticos que poderiam justificá-la. E mesmo que ela se desse tempo, todo o tempo e todos os saberes necessários a esse respeito, pois bem, o momento da decisão, como tal, aquele que deve ser justo, precisa ser sempre um momento finito de urgência e de precipitação, ele não deve ser a consequência ou o efeito daquele saber teórico ou histórico daquela reflexão ou daquela deliberação, já que a decisão marca sempre a interrupção da deliberação jurídico – ou ético – ou político-cognitiva que a precede , e que deve precedê-la10.

É nesse sentido que Derrida afirma, citando Kierkegaard, que o instante de decisão é uma loucura. A decisão para ser justa não espera, não pode esperar. A decisão deve marcar a interrupção na urgência imediata que a justiça exige. (****) Neste apelo à justiça que já está presente no próprio questionamento sobre a própria possibilidade da realização da justiça, é que encontramos a possibilidade de construção do sentido do presente texto, relacionando com a perspectiva de Ernst Bloch, cujo princípio fundamental é a esperança11. Para Bloch a utopia não está marcada somente pela usual concepção negativa do termo como algo meramente abstrato ou alheio ao mundo, mas também como algo novo, como algo inteiramente voltado para o mundo, no sentido de ultrapassar o curso natural dos acontecimentos. Trata-se de um sonho para frente, ou, se quisermos, de uma esperança de que o novo irrompa na ordem dos acontecimentos. As tentativas de neutralização deste potencial vital, que constituem o âmago da esperança e da utopia por assim dizer. Vivemos um tempo em que o que há é justamente a hegemonia de uma racionalidade que a tudo administra e que, nas palavras de Ricardo Timm de Souza, “tentando desesperadamente realizar a utopia de que nenhuma utopia tenha ainda espaço no mundo compacto habitado por cérebros compactos”12.

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DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 52. Cf. BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ:Contraponto, 2005. V1. 12 SOUZA, Ricardo Timm. A desconstrução da idolatria: Derrida por vir. p. 02. (Versão concedida pelo autor ainda não publicada). 11

Desde estas dimensões é que propomos a leitura e a construção de uma crítica abolicionista, ousando para além dos limites do possível, para além do que emerge como visível no campo próprio do sistema penal, pois o que sustenta esta visibilidade é justamente uma dimensão invisível que, de algum modo, controla as decisões sobre o real, exatamente como exemplificado por Benjamin na primeira tese sobre a história13. Trata-se de uma crítica com a esperança de um porvir, e a justiça, ela mesma, segundo Derrida “é por-vir, ela abre a própria dimensão de acontecimentos

irredutivelmente

porvir”.14 Não há justiça sem a experiência da aporia. É preciso, portanto, transpor as aporias.

13

Cf. BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Brasiliense: 1994. 14 DERRIDA, Jacques. Força de Lei. p. 54.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENJAMIN, Walter. “Sobre o conceito de história”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. Brasiliense: 1994; BLOCH, Ernst. O princípio esperança. Vol. 1. Trad. Nélio Schneider. Rio de Janeiro: EdUERJ:contraponto, 2005; DERRIDA, Jacques. Força de Lei: o fundamento místico da autoridade. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Martins Fontes, 2007; SOUZA, RICARDO Timm. A desconstrução da idolatria: Derrida por vir. (Versão concedida pela autor ainda não publicada). _______; Justiça em seus termos: dignidade humana, dignidade do mundo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010 _______; Sobre a construção do sentido: o pensar e o agir entre a vida e a filosofia. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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