As armas da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer: devoção e milagre numa composição heráldica de mestre Bénard Guedes

May 27, 2017 | Autor: J. Galvão Teles | Categoria: Heraldry, Artes Visuais, Heráldica, Heraldica, Heráldica Municipal
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AS ARMAS DA SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE ALENQUER: DEVOÇÃO E MILAGRE NUMA COMPOSIÇÃO HERÁLDICA DE MESTRE BÉNARD GUEDES João Bernardo Galvão-Telles

Foi oportuna, merecida e feliz a iniciativa editorial que, já quase há uma década, compilou e expôs à apreciação do público uma significativa parte da obra heráldica de mestre José Bénard Guedes 1. Através dessa colectânea, podemos avaliar não só o rigor e a arte na execução, mas também a criatividade na concepção de inúmeras composições da sua autoria, que viajam pelos mais variados tipos de heráldica – de família, religiosa, eclesiástica, naval, etc. – e se revelam em diferentes manifestações, desde iluminuras de brasões de armas ou árvores genealógicas, passando por sinetes, ex-libris, medalhas, pedras de armas, loiça e até ferros para marca de gado a fogo, entre outros suportes materiais. No campo específico da criação e realização de armas eclesiásticas e religiosas, Bénard Guedes produziu diversos trabalhos para as Misericórdias, destacando-se os ordenamentos heráldicos que concebeu para a União das Misericórdias Portuguesas e para múltiplas Santas Casas, como as de Aljustrel, Amieira do Tejo, Angra do Heroísmo, Carrazeda de Ansiães, Castelo de Paiva, Vila Alva e Vila Franca do Campo, os quais podem ser observados na referida antologia 2. De fora dessa recolha, contudo, ficaram as armas da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer, cuja composição, ocorrida em 1995, foi também resultado MATOS, Lourenço Correia de (Coordenação), José Bénard Guedes. Obra Heráldica, Dislivro Histórica, [Lisboa, 2005]. 2 MATOS, op. cit., pp. 256-263. 1

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do seu saber e talento. A ligação de Bénard Guedes ao concelho de Alenquer não era nova nem se esgotou nesta realização. São da sua lavra, por exemplo, diversos desenhos que reproduziram as lápides armoriadas de Manuel Ribeiro de Vasconcelos, de Rui Lobo e de Rui Botelho Boto, existentes no convento de São Francisco daquela vila, e a pedra de armas dos Cunhas, colocada sobre o pórtico da igreja de Olhalvo 3. Bénard Guedes colaborara também com os autores da interessante monografia local, intitulada O Concelho de Alenquer. Subsídios para um roteiro de Arte e Etnografia, prestando “o seu valioso contributo na leitura e interpretação das pedras de armas” reproduzidas no quarto volume da mencionada obra, especificamente dedicado às quintas e solares existentes no respectivo território 4. Presumo, aliás, que foi em resultado dessa cooperação, e em particular do contacto que Bénard Guedes então manteve com o também já falecido padre José Eduardo Martins, co-autor da monografia, pároco de Alenquer e provedor da Misericórdia desta vila, que terá nascido a ideia de conferir a esta instituição um novo ordenamento heráldico e de atribuir ao distinto mestre esse encargo. Infelizmente, porém – com excepção do desenho original, assinado e datado, do selo branco ou carimbo –, não foi possível localizar no arquivo da Santa Casa de Alenquer o processo de realização das suas novas armas, de onde certamente se poderia retirar informação importante sobre as motivações, os critérios e as escolhas traduzidas no brasão adoptado, tanto na fase de encomenda do trabalho, como na de apresentação, discussão e aprovação da proposta formulada. Apesar da lacuna, decidi trazer ao presente número da revista Armas e Troféus, evocativo da vida e obra de José Bénard Guedes, este breve apontamento sobre mais um exemplar do seu labor heráldico, procurando descortinar o significado das armas produzidas para a Santa Casa da Misericórdia de Alenquer, cujo ordenamento pode ser assim descrito: Escudo peninsular: de ouro, um rastro de azul acompanhado em orla de 14 rosas vermelhas folhadas de verde; coroa mariana; sotoposto ao escudo, um listel de prata carregado dos dizeres “SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE ALENQUER”, em letras de negro.

MATOS, op. cit., pp. 181-183 e 208. MELO, António de Oliveira; GUAPO, António Rodrigues; MARTINS, José Eduardo, O Concelho de Alenquer. Subsídios para um roteiro de Arte e Etnografia, s.l., Comissão Municipal da Feira da Ascensão de Alenquer / Associação para o Estudo e Defesa do Património de Alenquer, 1987, vol. 4, p. 337.

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Figura 1: desenho das armas da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer, compostas por mestre José Bénard Guedes.

Figura 2: desenho do selo ou carimbo da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer, na versão original assinada por mestre José Bénard Guedes e datada de 1995.

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Entre outras propostas de datação, tem sido comummente afirmado na bibliografia local que a irmandade da Misericórdia de Alenquer foi instituída em 1527 por ordem de D. João III, ficando a reger-se pelos estatutos da sua congénere lisboeta 5. Estudos recentes sobre a matéria, porém, demonstram que não foi ainda possível comprovar a exacta data dessa fundação, sendo apenas seguro afirmar-se que aquela Santa Casa já existia em 1544 6. Da edificação da sua igreja também não há notícia certa, admitindo-se que fosse inicialmente um templo mais pequeno do que aquele que depois resultou das obras de construção ou ampliação mandadas fazer por Aires Ferreira, fidalgo da Casa Real e vedor da fazenda do cardeal D. Henrique, falecido a 28 de Janeiro de 1594 e que nele se fez sepultar com D. Catarina de Góis, sua mulher, em jazigo edificado na capela-mor e sobre o qual o defunto instituíra uma missa quotidiana para cujo cumprimento deixara à respectiva Santa Casa um juro de 86 mil réis 7. É igualmente habitual a indicação de que em dependências anexas e contíguas à igreja da Misericórdia de Alenquer surgiu em 1655 a primitiva construção Na memória paroquial de 1758, o reitor da freguesia de São Pedro de Alenquer, padre Pedro da Silveira, relatou que “a Caza, e Confraria da Mizericordia da mesma villa cita nesta freguesia de Sam Pedro, foy instituida no anno de mil e quinhentos vinte e sete por ordem do Rey Dom Joam Treçeiro em carta escripta a Camera da mesma villa (…) e em tudo o maiz se governa a dita caza pellos estatutos de Lisboa da Mizericordia”. Apud MARTINS, Padre José Eduardo Ferreira, Alenquer 1758. O Actual Concelho nas Memórias Paroquiais, [Arruda dos Vinhos], Arruda Editora, [2008], p. 39. 6 “Segundo Ivo Carneiro de Sousa, a Misericórdia de Alenquer já existiria antes de 1525. Por sua vez, sem citar qualquer dado comprovativo, Costa Goodolphim propusera o ano de 1529 como momento da sua fundação. As diligências efectuadas nos arquivos locais, Municipal e da Misericórdia, bem como as empreendidas na documentação de chancelaria régia não consentem a confirmação de nenhuma das propostas. O documento mais remoto que se descortinou e que comprova a existência da Misericórdia de Alenquer é uma carta da Rainha D. Catarina, dirigida à vereação de Sintra, solicitando que se criasse uma Misericórdia na vila. Nesta carta, a dado passo, pode ler-se: «Vendo eu como Nosso Senhor he muito servido pella Confraria da Santa Misericordia en todas as cazas della e como nas mais cidades e villas principaes destes reynos esta ordenada a dita confraria e assy nas outras minhas villas dessa comarca da Estremadura .scilicet Alanquer, e Obidos(…)». Assim, se em Março de 1545 se referia que Alenquer já tinha Misericórdia, e se no documento onde isso é expresso não se alude a uma criação recente, é seguro afirmar que a Misericórdia de Alenquer já estava criada, pelo menos, em 1544”. Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Crescimento e Consolidação: de D. João III a 1580, s.l., Centro de Estudos de História Religiosa / União das Misericórdias Portuguesas, [2005], vol. 4, p. 285. Vd. a transcrição integral da referida carta, datada de 10 de Março de 1545, a p. 259 do mesmo volume. 7 HENRIQUES (DA CARNOTA), Guilherme João Carlos, Alenquer e seu concelho, [Arruda dos Vinhos], Arruda Editora, [2005] (fac-simile da edição de 1873), p. 181. HENRIQUES (DA CARNOTA), Guilherme João Carlos, A vila de Alenquer, [Arruda dos Vinhos], Arruda Editora, [2002] (fac-simile da edição de 1902), pp. 116-118. 5

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de um hospital, destinado a acolher apenas seis doentes, mas note-se que já a 2 de Outubro de 1591 havia sido lavrada a “verba de um padrão de juro no valor de 16500 reais o qual foi legado à Misericórdia e Hospital de Alenquer por Pedro Homem de Andrade, com obrigação de dizerem três missas rezadas cada semana pela alma de Dona Joana de Sousa” 8.

Figura 3: fotografia do exterior da igreja da Misericórdia de Alenquer e casas anexas, in ROGEIRO, Filipe Soares, Alenquer Desaparecida. Fotografias das décadas de trinta e quarenta da colecção de Graciano Troni, [Arruda dos Vinhos], Arruda Editora, [2002], p. 97.

A fundação das instalações hospitalares terá sido, por conseguinte, mais antiga do que se tem suposto, mas, de qualquer modo, parece que foi em 1709 que ali se fundou “um hospital moderno” pelo “(…) Doutor Joam Monis da Sylva inquizedor do Concelho Geral do Santo Offiçio natural desta freguezia [de São Pedro de Alenquer] e morador na çidade de Lisboa, (…) e assim mandou fazer o dito hospital Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Reforço da interferência régia e elitização: o governo dos Filipes, s.l., Centro de Estudos de História Religiosa / União das Misericórdias Portuguesas, [2006], vol. 5, p. 84, citando o fl. 385v do livro 14 de Doações da Chancelaria de D. Filipe I.

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pello antigo ser muito pequeno para se curarem os pobres e tem dés camarotes no qual se curam huns annos por outros sincoenta doentes (…). Tem mais por sima do dito hospital huma imfermaria fundada pello sobredito inquizidor no mesmo anno de mil e seteçentos e nove para nella se curarem os Religiosos Capuchos dos Conventos da Carnota e Merçiana (…)” 9.

Escreveu Guilherme João Carlos Henriques que a igreja da Misericórdia de Alenquer, “sem ter belleza alguma architectonica, interior ou exteriormente, é espaçosa e, pelo facto de ter a capella-mór muito mais elevada que o corpo do edifício, é de um estylo pouco vulgar” 10. O seu interior, com efeito, “de nave única, obedece ao modelo unificado dos espaços das igrejas das misericórdias, com presbitério num plano mais alto em relação ao corpo do templo e ao qual se acede através de escadaria central. A nave é percorrida por silhar de azulejos enxaquetados próprios do século XVII, destacando-se o coro alto, de planta curva assente sobre colunas toscanas, bem como o púlpito e o cadeiral dos mesários, este do lado da Epístola. No frontal do presbitério, um conjunto de azulejos azuis e brancos apresenta figurações inscritas em cartelas, uma das quais a Visitação, que têm vindo a ser atribuídas a Policarpo de Oliveira Bernardes. É possível que sejam anteriores à intervenção de que o templo foi objecto em 1730 e cuja extensão se desconhece. As capelas colaterais, abertas por arcos de volta perfeita e inscritas numa estrutura maior que inclui o arco triunfal, termina num frontão semicircular. Este, enquadra a capela-mor, ainda mais elevada e com retábulo de talha dourada de estilo nacional” 11.

Para além destes aspectos, destaca-se ainda o “(…) magnífico tecto de madeira pintada ao gosto do século dezoito. Apesar da sua degradação é um bom exemplar de pintura da época: apresenta, ao centro, um vistoso escudo real amparado por dois anjos e envolvido por belas grinaldas de flores. Lateralmente, e envolvidos pela mesma composição floral há dois medalhões com versículos da Sagrada Escritura” 12.

Apud MARTINS, op. cit., p. 40. HENRIQUES (DA CARNOTA), A vila…, p. 116. 11 Citando a nota histórico-artística constante da ficha de classificação do Igespar. Cfr. www. igespar.pt, consultado a 1 de Outubro de 2013. 12 MELO et alii, op. cit., 1989, vol. 1, p. 186.

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Data igualmente da centúria de setecentos a pedra de armas reais aposta sobre a porta de entrada do templo. Não é, todavia, nítido se as duas manifestações heráldicas teriam sido executadas na mencionada campanha de obras operada em 1730 ou se resultaram de intervenções subsequentes ao terramoto de 1755, que teve em Alenquer significativos efeitos 13. Em qualquer das hipóteses, a presença destas representações nos locais assinalados, que se pode dizer costumeira 14, visava assinalar a fundação e protecção régia das Misericórdias – “estas foram, desde o princípio”, no dizer de Isabel dos Guimarães Sá, “instituições régias de índole devocional leiga” 15 –, numa mensagem que, no caso concreto daquela vila, ficava particularmente evidente a quem entrava no edifício religioso e se deparava com a figuração policromada do escudo das quinas encimado pela coroa.

Figura 4: pintura com as armas reais portuguesas no tecto da igreja da Misericórdia de Alenquer.

O já citado padre Pedro da Silveira, prior de São Pedro de Alenquer, escreveu na sua memória de 1758 que “padeçeo esta freguesia na villa gravissima ruinna no Terremoto”. Entre os exemplos que apontou de edifícios atingidos pela catástrofe, o sacerdote não incluiu porém o da igreja e dependências da Misericórdia. Cfr. MARTINS, op. cit., p. 42. 14 Veja-se, por exemplo, a igreja da Misericórdia de Óbidos, onde para além das armas reais do pórtico e do tecto se encontra uma terceira figuração no arco triunfal. SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo, Heráldica no concelho de Óbidos (título provisório), em elaboração. 15 Portugaliae Monumenta Misericordiarum. Fazer a História das Misericórdias, [Lisboa], Centro de Estudos de História Religiosa / União das Misericórdias Portuguesas, [2002], vol. 1, p. 42. A mesma autora afirmou também que o escudo das armas reais “representa a protecção régia de que as confrarias [da Misericórdia] usufruíam, uma vez que apropriava os símbolos da monarquia portuguesa”. SÁ, Isabel dos Guimarães, Quando o rico se faz pobre: Misericórdias, caridade e poder no império português 1500-1800, Lisboa, Comissão Nacional para a Comemoração dos Descobrimentos Portugueses, 1997, p. 91. 13

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Figura 5: pedra com as armas reais portuguesas sobre o pórtico da igreja da Misericórdia de Alenquer.

É verdade que nos primeiros tempos de criação e difusão das Misericórdias, estas instituições ostentaram também, nas suas cartas de compromisso, bem como nas fachadas e interiores das suas igrejas, as armas e a empresa da respectiva fundadora, a rainha D. Leonor, mulher de D. João II 16. Mas é igualmente certo que a emblemática assumida pelas Santas Casas acolheu outras figuras, exibidas quer nos seus edifícios, quer nos objectos usados pelas respectivas irmandades 17. Sobre tais usos, declarou Almeida Langhans: Com Miguel Metelo de Seixas, já houve ocasião de abordar a heráldica das Misericórdias a pretexto do conjunto de varas da Santa Casa de Cabeço de Vide, cujo texto aqui parcialmente retomo. Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo, Heráldica no concelho de Fronteira, Fronteira, Câmara Municipal de Fronteira / Universidade Lusíada de Lisboa, 2002, pp. 236-237. 17 Vejam-se, por exemplo, o conjunto de varas da Misericórdia de Vila do Conde e a talha armoriada da igreja da Misericórdia de Peniche. SOUSA, Ivo Carneiro de, V Centenário das Misericórdias Portuguesas 1498-1998, s.l., CTT Correios, 1998, pp. 138 e 156, respectivamente. 16

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“As Misericórdias sempre tiveram uma expressiva representação emblemática na Cruz latina ladeada pelas letras da abreviatura da palavra «Misericórdia» – M I Z, e, no contrachefe do campo da Cruz, uma caveira com as duas tíbias passadas em aspa, do emblema consagrado da Morte. Por privilégio especial, certamente em lembrança da origem régia da Instituição, ao lado do emblema próprio – mas à sua sinistra, repare-se bem, por respeito ao símbolo sagrado da Cruz do Redentor – as Armas de Portugal. O conjunto das duas formas heráldicas – unidas num partido dentro de um escudo ou em escudos juntos (ovalados quase sempre) – apresenta-se encimado pela coroa real” 18.

Note-se que a escolha da figura da morte se prende quer com o tema devocional da Paixão, quer com uma das principais funções assistenciais das Santas Casas: a de auxiliar os condenados à pena capital na sua execução e de prover ao seu enterro, bem patente nas abundantes séries iconográficas sobre o tema das obras de Misericórdia e revelada, de modo expressivo, no ritual da procissão dos ossos 19. No caso específico de Alenquer, conhece-se a representação conjugada das armas reais com aquelas insígnias próprias da Misericórdia num sinal rodado em que o conjunto heráldico, composto por dois escudos assentes numa mesma cartela e sobrepujados pela coroa real, se  encontra circundado pelo nome da instituição e pela alegada data da sua fundação.

Figura 6: desenho do selo da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer, na versão composta pelos escudos das armas reais e das insígnias próprias das Misericórdias. LANGHANS, F. P. de Almeida, Heráldica. Ciência de temas vivos, [s.l.]: Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho, vol. I, p. 382. 19 Enterrar os mortos era, aliás, a sétima das obras de misericórdia corporal. 18

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A adopção heráldica da abreviatura, do calvário e dos ossos não foi, porém, a única ao longo da existência das Misericórdias. Houve sempre, outrossim, um forte apego à figuração de Nossa Senhora da Misericórdia (assente num mais recuado culto da Virgem do Manto), sob cuja capa estendida se acolhiam todos – ricos e pobres, poderosos e miseráveis, religiosos e civis –, unidos na mesma fraqueza humana e na dependência do amor divino e da intercessão da Mãe de Deus 20. Afirmou o padre José Jacinto Ferreira de Farias que a Senhora da Misericórdia é “(…) sem dúvida uma das representações mais expressivas deste profundo sentir do povo cristão, que se «sente» acolhido e protegido sob o manto materno de Nossa Senhora, o povo cristão que, no sentir do homem humanista e moderno, se identifica com toda a sociedade organizada, estando, de um lado, as figuras representativas da Igreja (papa, bispos, cardeais, ordens religiosas) e do outro a sociedade digamos assim civil (rei, nobres, povo), encontrando-se, em algumas representações, os pobres e presos sob os pés da Virgem, expressão evocativa de estar sob seu domínio, isto é, sob sua protecção, porquanto, na iconografia cristã, estar sob os pés, sob o domínio, representa protecção e refúgio” 21.

O tema de Nossa Senhora da Misericórdia, presente no exterior e interior das igrejas, nas pinturas e nos documentos iluminados ou impressos, foi particularmente bem acolhido nas bandeiras, onde se tornou muito comum 22. Em casos extremos, a Virgem da Misericórdia chegou a ter expressão heráldica, embora a dificuldade em figurar uma cena com tantos pormenores e intervenientes na superfície reduzida de um escudo seja evidente e constitua um atropelo às boas regras da ciência heróica 23. Em Alenquer, não conheço qualquer representação Vejam-se os estudos de CAETANO, Joaquim Oliveira, “A Virgem da Misericórdia: uma aproximação iconográfica”; e de SERRÃO, Vítor, “Sobre a iconografia da Mater Omnium: a pintura de intuitos assistenciais nas Misericórdias durante o século XVI”, ambos in Oceanos, Julho/ Setembro 1998, n.º 35, respectivamente a pp. 62-77 e 134-144. 21 FARIAS, José Jacinto Ferreira de, “Um breve comentário teológico à iconografia mariana na arte e nos símbolos das Misericórdias”, in GUEDES, Natália Correia (Coordenação); TOJAL, Alexandre Arménio; PINTO, Paulo Campos, Bandeiras das Misericórdias, Lisboa: Comissão para as comemorações dos 500 anos das Misericórdias, 2002, p. 18. 22 GUEDES, Natália Correia (Coordenação); TOJAL, Alexandre Arménio; PINTO, Paulo Campos, Bandeiras das Misericórdias, Lisboa: Comissão para as comemorações dos 500 anos das Misericórdias, 2002. 23 Veja-se a iluminura do Livro de Receita e Despesa da Misericórdia do Funchal, apud SOUSA, op. cit., p. 162. Também num dos topos do salão nobre do edifício da Santa Casa da Misericórdia de Óbidos figura uma composição heráldica composta por dois escudos ovais, apresentando o 20

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brasonada de Nossa Senhora da Misericórdia, mas esta imagem encontra-se patente na tela outrora colocada no arco-mestre da respectiva igreja e hoje assente na parede junto ao coro. Na moderna heráldica das Misericórdias, concebida por Bénard Guedes, a devoção à Virgem manifesta-se na elegante coroa mariana que encima as diversas composições realizadas para aquelas instituições assistenciais, resultando aliás, desse elemento comum exterior ao escudo, uma unidade visual e simbólica do conjunto. Se atentarmos no ordenamento das novas armas executadas pelo referido mestre para a Misericórdia de Alenquer – cujo escudo é igualmente sobrepujado pela dita coroa mariana –, saltam-nos à vista os seus dois móveis: o rastro e as rosas que o circundam. Debrucemo-nos sobre cada um deles. No que respeita ao primeiro, remeto para o que a seu respeito Miguel Metelo de Seixas e eu escrevemos quando estudámos o pelourinho de Óbidos e que aqui retomo resumidamente 24. Tal objecto, como é sabido, consiste na empresa de D. Leonor, mulher de D. João II, cujo corpo tem sido habitualmente designado por camaroeiro, o que a nosso ver não será correcto, pois trata-se na verdade de um rastro 25. Para além da figuração no monumento obidense, tal artefacto de faina pode ser observado em pedras de armas apostas em edifícios da devoção daquela rainha, como o mosteiro da Madre de Deus, em Lisboa, a igreja de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas da Rainha, ou a igreja de São Francisco, em Évora, entre outras; nos paramentos, no relicário e porventura numa pia baptismal ou de água benta com que a mesma senhora dotou a fundação da sinistra as armas reais e o da destra a imagem de Nossa Senhora da Misericórdia, ao natural, de mãos postas em atitude de súplica, coroada e irradiada pela auréola solar, assente sobre o que parece ser o globo terrestre, envergando o seu manto protector, aberto e sustido por um anjo de cada lado, sobre diversas personagens orantes, simbolizadoras, à direita da Virgem, do clero e, à esquerda, da nobreza. SEIXAS; GALVÃO-TELLES, Heráldica no concelho de Óbidos…. 24 SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo, “As insígnias do pelourinho de Óbidos. Subsídios para a compreensão da emblemática da rainha D. Leonor”, in CURVELO, Alexandra (Coordenação), Casa Perfeitíssima. 500 anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus. 1509-2009, s.l., Instituto dos Museus e da Conservação / Museu Nacional do Azulejo, [2009], pp. 23-37. 25 SILVA, Antonio de Moraes, Diccionario da Lingua Portugueza, 5.ª edição, Lisboa, Tipographia de Antonio José da Rocha, 1844, tomo 2, p. 604, definiu rastro como uma “rede grande de pescar, a qual lançada ao largo se vem tirando para a praia, e n’ella se colhe o peixe”. E, a pp. 364 e 538 do tomo 1, indicou que um camaroeiro é um “covão de pescar camarões”, considerando que “covão de pescar” é o mesmo que “covo”, um “cesto comprido de vimes que da boca para dentro tem como um funil de varinhas, d’onde o peixe, que por ella entra, não póde sair”. Já LOBO, Francisco Rodriguez, Corte na Aldeia, e Noites de Inverno, Lisboa, por Pedro Crasbeeck, 1619, fls. 16-16v, identificara tal emblema como um rastro.

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desses templos; em fontes como aquela que se encontra no Museu de Arte Antiga ou outra, do convento da Madre de Deus, de que subsiste o topo, conservado hoje nas reservas do Museu Nacional do Azulejo; e ainda na iluminura do seu breviário. Em todas essas manifestações, consta sempre o corpo da empresa, o dito instrumento de pesca por arrasto; no relicário vêem-se também, nitidamente, as respectivas cores, pois o rastro de ouro assenta sobre uma tarja partida de vermelho e de azul. Referimos no mencionado estudo a tradição tardia que atribuiu à empresa de D. Leonor um sabor trágico, pois relacionou-a com a morte do príncipe D. Afonso, cujo corpo teria sido recolhido numa humilde cabana de pescadores à beira do Tejo, na lezíria de Santarém; a rainha adoptara então como emblema a rede que servira de mortalha ao seu filho adorado. Certa versão, centrando o dramático acontecimento na foz do Arelho, junto a Óbidos, colocou o episódio da morte do príncipe na origem de uma suposta atribuição da rede de pesca como armas desta última vila. Verificámos, porém, que nenhuma fonte coeva confirma a adopção do rastro por parte da consorte de D. João II como decorrente da morte do filho, sendo certo que a cronologia das representações conhecidas daquela empresa aponta para a sua existência em datas anteriores ao infeliz sucesso, como por exemplo na iluminura com a imagem orante de D. Leonor, figurada no seu breviário, datado de 1484. Trata-se pois de uma lenda, cuja difusão, intensificada na época romântica, se terá ficado a dever à aura trágica que envolveu a rainha devota, ferida no seu amor materno. Assinalámos então que a empresa de D. Leonor carecia de um entendimento fundamentado e enquadrado na mentalidade do seu tempo, recordando que Henrique de Avelar e Luís Ferros já haviam considerado que o dito utensílio de pesca “é o símbolo do Reino do Céu [que] é semelhante a uma rede lançada ao mar, que colhe toda a casta de peixes…, S. Mateus, c. XIII, v. 47 a 50 – que conjuga perfeitamente com o moto e lhe dá sentido. Assim, o Reino dos Céus, que corresponde à salvação da alma, é mais precioso do que todas as riquezas do mundo” 26.

Esta opinião resultara precisamente da observação da mencionada pia de água benta conservada no Museu do Azulejo, em cujas quatro faces se encontram figurados o pelicano de D. João II, o rastro de D. Leonor, um escudo com as AVELAR, Henrique de; FERROS, Luís, “As Empresas dos Príncipes da Casa de Avis”, in Os Descobrimentos Portugueses e a Europa do Renascimento. «O Homem e a Hora são um só». A Dinastia de Avis, Lisboa, Presidência do Conselho de Ministros, 1983, p. 230.

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armas atribuíveis a esta rainha e, por fim, uma tarja suspensa de uma árvore decotada por uma correia, contendo a frase “preciosior: est: cunctis: opibus: sanctus”, correspondente à citação bíblica “é a mais preciosa das riquezas” (Provérbios, 3, 15), e que seria, segundo os aludidos autores, a alma da empresa da rainha. Não conhecemos, infelizmente, qualquer outra representação ou referência que nos tenha permitido confirmar ou afastar tal entendimento. Sem prejuízo desse desconhecimento, considerámos que esta interpretação está sustentada na cultura bíblica vigente na época e que, além de permitir conciliar o corpo com a alegada alma da empresa, corresponde aos parâmetros de religiosidade unanimemente atribuídos a D. Leonor. E, chamando a atenção para a importância das empresas dos casais da dinastia de Avis, embora de cariz pessoal, deverem ser lidas, em muitos casos, conjuntamente, procurámos, dentro desta lógica de complementaridade conjugal, ir mais longe na compreensão do emblema adoptado por aquela rainha. Olhando, deste modo, para os elementos figurativos (pelicano e palmeira) e escrito (a alma por tua lei e por tua grei) da empresa de D. João II em sintonia com os elementos figurativos (rastro) e escrito (a alma é a mais preciosa das riquezas) de sua mulher, pudemos alcançar a seguinte leitura: o recto caminho (palmeira) seguido pelo justo (pelicano) em obediência à lei e ao povo de Cristo conduz à salvação (rastro), o mais precioso dos bens. E atentando nas respectivas cores – roxo e verde na empresa de D. João II, vermelho e azul na de D. Leonor – e no que a seu respeito diz o tratado do arauto Sicília intitulado Brasão das Cores – a cor roxa “está a meio caminho entre o vermelho e o azul” –, observámos que a fusão das cores da empresa da rainha leva, segundo o aludido texto, ao roxo, considerado como a cor de Cristo e portanto da salvação, esmalte presente no emblema do seu marido e aí conjugado com o verde, que simboliza a alegria do amor divino. Parece, pois, que Rui de Pina, conhecedor íntimo do monarca, tinha razão ao afirmar, de forma aparentemente enigmática, que o então príncipe D. João escolhera o pelicano pela princesa sua mulher: efectivamente as empresas dos dois cônjuges completam-se e assim se explica a constância da representação conjunta do pelicano e do rastro em diversos suportes. Os dois emblemas constituem por isso complexas e complementares representações simbólicas da salvação, ou seja, da Jerusalém mística. Neste sentido, salientámos que uma das mais importantes pinturas comprovadamente possuídas pela rainha D. Leonor foi a Vista de Jerusalém ou Paixão de Cristo; neste quadro notável, a própria rainha apresenta-se retratada em adoração da cidade santa, na qual estão representadas diversas cenas da Paixão de Cristo. A Jerusalém mística encontra também eco na empresa de

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D. João II, pois o recto caminho simbolizado pela palmeira é, também ele, o caminho de peregrinação à cidade santa, conforme assinalou Argote de Molina 27. Esta complementaridade das empresas de D. João II e de D. Leonor veio fornecer uma nova imagem da relação entre ambos, não já a do rei como actor político e público distante de uma rainha que se conserva num registo privado e devoto, mas antes a de uma companheira que partilha um projecto político com o marido, assente em ideais, devoções e cultos também eles comuns. E, numa análise mais ampla, as escolhas simbológicas do régio casal, sendo pessoais e articuladas entre si, não deixam de se inserir num desígnio mais vasto, de natureza dinástica, que se relaciona com a estratégia de auto-exaltação que, desde a sua fundação, a Casa de Avis empreendeu. Citando Luís Adão da Fonseca, “Estamos, como se pode comprovar, perante um programa muito coerente: tendo como objectivo desenvolver a convicção de que a dinastia reinante de Avis é muito mais do que o resultado de uma conjuntura política e diplomática favorável. A concretização material desse objectivo manifesta-se no esforço real por nacionalizar a dinastia pela via da sua exemplaridade, esforço esse que se desenvolve à volta de três grandes slogans atrás enunciados: a família real portuguesa é uma família unida, é uma família santa, é uma família culta (…)” 28.

Quando em 1498 fundou a primeira Misericórdia do país – precisamente a de Lisboa –, a rainha D. Leonor achava-se já viúva, encontrando-se então no trono o seu irmão D. Manuel, que na ocasião estava ausente do reino, ocupando ela a regência. Isabel dos Guimarães Sá veio recordar que “a historiografia da primeira metade do século [XX] atribuía à rainha um papel de relevo na difusão das Misericórdias à escala do reino”, acreditando mesmo ter sido ela “quase inteiramente responsável pela formação” destas novas confrarias assistenciais. A mesma autora assinalou, porém, que estudos mais recentes têm revelado “que o esforço político em prol da generalização da confraria a todo o reino foi feito por quem detinha o poder político, ou seja, pelo rei”, admitindo que muito provavelmente foi D. Leonor quem teve a ideia da sua criação e que D. Manuel depois a aproveitou, embora num quadro de influência exercida pela irmã 29. Isabel dos Guimarães Sá evidenciou, aliás, que MOLINA, Gonzalo Argote de, Nobleza del Andalucia (coordinación Jesús Paniagua Pérez; introducción Margarita Torres Sevilla-Quiñones de León), León, Universidad de León, 2004, fl. 23. 28 FONSECA, Luís Adão da, D. João II, s.l., Círculo de Leitores, [2005], p. 243. 29 SÁ, Isabel dos Guimarães, De princesa a rainha-velha. Leonor de Lencastre, s.l., Círculo de Leitores, [2011], pp. 181-183. 27

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“o facto de se manter afastada sistematicamente do epicentro dos acontecimentos da corte não implicava para D. Leonor ausência de influência política. Parece ser uma daquelas figuras que permanecem na sombra, aparentemente imóveis, mas que, não obstante, actuam no momento certo. Ou pelo menos, se não agia, a rainha permanecia informada de tudo o que se passava (…). Há sinais inequívocos de que influenciava profundamente D. Manuel, conforme chegou a ser relatado por alguns observadores, que chegaram a afirmar que D. Manuel não decidia nada sem a consultar (…). Há também a evidência das misericórdias, que corrobora a empatia existente entre os irmãos. (…) Existem portando dados que nos permitem afirmar que D. Manuel a ouvia, e se deixava influenciar por ela. E que tinha por D. Leonor uma grande reverência, indo até ela quando a rainha não vinha até ele” 30.

Desta forma, a rainha-viúva parece ter mantido um papel de relevo político que efectivamente já vinha do tempo do seu casamento com D. João II, preservando não só as tenções e devoções que haviam marcado a vida conjugal, mas também as linhas orientadoras do próprio projecto de exaltação dinástica. Se nos lembrarmos que D. João I morreu a 13 de Agosto e que o seu sucessor determinou que se considerasse a data oficial como o dia seguinte com o “propósito de associar a Batalha de Aljubarrota ao falecimento do rei, apontando ambos os eventos para as vésperas da festa da Assunção da Virgem” 31, não deixa de ser relevante que a instituição daquela primeira Misericórdia tenha ocorrido exactamente no dia 15 de Agosto. E, no mesmo sentido, não é despiciente o facto de D. Manuel I ter mostrado “especial cuidado em relembrar como boa parte das políticas assistenciais que seguiu tinham sido desencadeadas pelo seu primo” D. João II 32. Por outro lado, se tomarmos em consideração que na actividade das Misericórdias “(…) os presos ocupavam lugar primordial na caridade praticada, na medida em que a prisão do seu corpo era entendida como uma metáfora

SÁ, Isabel dos Guimarães, “A Rainha D. Leonor, 1458-1525: momentos de uma vida”, in CURVELO, Alexandra (Coordenação), Casa Perfeitíssima. 500 anos da fundação do Mosteiro da Madre de Deus. 1509-2009, s.l., Instituto dos Museus e da Conservação / Museu Nacional do Azulejo, [2009], pp. 18-19. 31 FONSECA, op. cit., p. 235. 32 Portugaliae Monumenta Misericordiarum. A Fundação das Misericórdias: o Reinado de D. Manuel I, [Lisboa], Centro de Estudos de História Religiosa / União das Misericórdias Portuguesas, [2004], vol. 3, p. 9. 30

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da vida humana, na qual a alma era encarcerada pelas tentações do corpo e aguardava a libertação da morte” 33,

e que a prática das obras de misericórdia era globalmente entendida como requisito fundamental para a salvação das almas, vemo-nos de novo transportados para o âmago da empresa de D. Leonor. Atendendo ao exposto, a escolha do rastro como móvel principal das armas da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer no ordenamento composto por Bénard Guedes revelou-se apropriado e simbologicamente rico, tanto mais que a presença coeva da empresa de D. Leonor se situou invariavelmente na órbita do sagrado: em pedras de armas colocadas em igrejas, em alfaias litúrgicas, em livros e pinturas sacras. Tal selecção, todavia, não foi feita em exclusivo para a confraria alenquerense, já que o mestre heraldista incluiu o rastro no brasão de outras Santas Casas – como as de Carrazeda de Ansiães e de Vila Franca do Campo –, e da própria União das Misericórdias Portuguesas 34. Direi, todavia, que a sua representação nas armas da Santa Casa de Alenquer permite uma outra associação distintiva: tradicionalmente pertencente à Casa das Rainhas, a vila alenquerense foi doada por D. João II a D. Leonor por carta de 15 de Abril de 1491, mercê depois reiterada por D. Manuel I a 24 de Março de 1496 35. As actuais armas da Misericórdia de Alenquer exibem, por isso, o emblema daquela que foi simultaneamente mentora do projecto assistencial e senhora da vila onde aquela Santa Casa desenvolve, há quase cinco séculos, a sua útil e benemérita actividade. E o que dizer sobre as rosas dispostas em orla? Luciano Ribeiro, na obra que dedicou a Alenquer, publicou um desenho com a bandeira e o selo da respectiva Câmara Municipal, aprovados por portaria de 10 de Janeiro de 1936, bem como o prévio parecer apresentado por Afonso de Dornelas à Comissão de Heráldica da Associação dos Arqueólogos Portugueses e aprovado na sua sessão de 12 de Dezembro de 1934 36. Começando por indicar que as armas de Alenquer eram remotamente constituídas por um cão ou alão 37, ou por uma “torre guardada por um cão com Portugaliae Monumenta Misericordiarum…, vol. 3, p. 17. MATOS, op. cit., pp. 256, 260 e 263. 35 A.N.T.T., Chancelarias Régias, D. João II, L.º 10, fl. 76; D. Manuel I, L.º 43, fls. 57-57v. 36 RIBEIRO, Luciano, Alenquer. Subsídios para a sua História, Lisboa, Câmara Municipal de Alenquer, 1936, pp. 5 e 115-121. 37 Veja-se o armorial autárquico manuscrito da autoria de Cristóvão Alão de Morais, elaborado em data situada entre 1658 e 1687, recentemente publicado por Miguel Metelo de Seixas, onde se atribui a Alenquer “hum Alão passante”. MORAIS, Cristóvão Alão de; SEIXAS, Miguel Metelo de (Ed.), Compendio das Armas dos Reynos de Portugal & Algarve & das Cidades & Villas principaes delles. Precedido de uma Introducção Summaria das Regras da Armaria, Porto, Caminhos Romanos 33 34

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as chaves da praça na bôca”, Dornelas assinalou que já em 1860 Inácio de Vilhena Barbosa, na sua colectânea As cidades e villas da Monarchia Portugueza que teem brasão d’armas, fez figurar como brasão daquela vila “em campo de prata um cão pardo preso a uma árvore com um grilhão de ouro” 38. Verificando-se deste modo a substituição – incompreensível para Dornelas – da torre pela árvore, a presença do cão, por si só, a guardar a torre ou castelo, ou ainda preso à árvore, foi interpretada como símbolo da fidelidade do povo de Alenquer para com as rainhas, suas donatárias, em momentos decisivos da história nacional, e para com D. António, prior do Crato, que na crise dinástica subsequente à morte do rei D. Sebastião se refugiou no convento de São Francisco da mesma vila, onde permaneceu à guarda dos seus naturais, que lhe prestaram homenagem de rei e disso mesmo lavraram o competente auto. Afonso de Dornelas, porém, considerando que “tudo evoluciona e há factos que é pena não assinalar”, afirmou no referido parecer: “Reza a tradição que foi em Alenquer, na ocasião em que a Rainha Santa Isabel pagava aos operários que construíam a sua igreja do Espírito Santo, que seu marido, o rei D. Dinis, aparecendo inesperadamente, a censurou pelo muito dinheiro que gastava em obras religiosas e com os pobres, e ela lhe mostrou o regaço de onde tirava o dinheiro que estava distribuindo e o Rei viu que apenas tinha rosas. Esta Rainha fundou em Alenquer os Bodos do Espírito Santo, era o alimento dos pobres, que se conservaram até ao reinado de D. Manuel. A mesma Rainha transformou em Albergaria o Paço que em Alenquer tinha construído D. Sancha, filha de D. Sancho I. A Rainha D. Leonor, a fundadora das Misericórdias, também concorreu para o engrandecimento de Alenquer, como aliás tôdas as outras rainhas

/ Universidade Lusíada de Lisboa – Centro Lusíada de Estudos Genealógicos e Heráldicos, 2013, pp. 134-135. 38 Vilhena Barbosa indicou tal ordenamento heráldico sem referir a fonte da sua informação, manifestando apenas que “as armas da villa parecem confirmar a lenda”, que relatou do seguinte modo: “Achando-se el-rei D. Affonso Henriques no cerco d’esta villa, então occupada por moiros, na madrugada do dia de S. João saindo estes a banharem-se ao rio, conforme o seu costume, um cão que vigiava a villa, e que saira com elles, veiu ter com os portuguezes, e indo-se direito a el-rei sem ladrar, lhe fez tanta festa, que este monarcha exclamara, referindo-se ao cão: O Alão quer. E tomando isto por um aviso do ceo accommetteu de improviso a praça, e a tomou”. BARBOSA, I. de Vilhena, As cidades e villas da monarchia portugueza que teem brasão d’armas, Lisboa, Tipographia do Panorama, 1860, vol. 1, p. 11. Vd., também, SEIXAS, Miguel Metelo de, Heráldica, representação do poder e memória da nação. O armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa, Lisboa, Universidade Lusíada Editora, 2011, pp. 583 e 617.

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que até 1834 foram Senhoras da vila, pois que foi nesta data que se extinguiu a Casa das Rainhas. É bem conhecida na História a acção que as Rainhas tiveram na beneficência, fundando misericórdias, albergarias, enfim, é tradicional e verídica a protecção aos que sofriam, dirigida por essas Senhoras. Desde a Rainha Santa Isabel que as rosas simbolizam essas manifestações de caridade, portanto, que interessante seria que Alenquer, vila que serviu de abrigo a essas senhoras em momentos aflitivos e cujos naturais praticaram actos de nobres cavaleiros em defesa das suas Damas, repito, que interessante seria que dentro das Armas que simbolizam a sua heróica e leal história, fôsse acrescentada uma bordadura de rosas, como homenagem à acção benéfica das Senhoras que durante séculos foram dirigentes das belas manifestações de caridade que a História nos aponta. E assim, propomos que as Armas, a bandeira e o sêlo da vila de Alenquer, sejam assim ordenadas: Armas – De ouro com um castelo de azul aberto e iluminado do campo. Em contra-chefe, um cão de negro deitado. Orla de 5 rosas naturais vermelhas, folhadas de verde (…)” 39.

E explicitou ainda, no seu aludido documento, que as rosas representavam a caridade e a pureza, sendo de vermelho porque este esmalte significa vitórias, vida e alegria, expressando o verde do folhado a esperança e a fé. A portaria n.º 8.333, de 10 de Janeiro de 1936, também publicada por Luciano Ribeiro, aprovou as armas propostas, introduzindo porém duas pequenas modificações, cujos motivos não foram indicados no diploma normativo: o cão deveria ser representado com a mão direita sobre a esquerda e a orla seria composta por catorze e não apenas cinco rosas 40. É este o ordenamento das armas que o município de Alenquer ainda hoje conserva. Muito embora situando a rainha Santa Isabel na vila alenquerense e apresentando-a no momento em que pagava aos operários que procediam à construção da igreja do Espírito Santo, por ela mandada edificar, Afonso de Dornelas fez surgir na cena o rei D. Dinis, que aparecendo de forma inesperada censurou a consorte pelo que gastava em obras religiosas e com os pobres. E culminou o episódio com Santa Isabel a mostrar o regaço ao marido que, em lugar do dinheiro que ela distribuía, nele apenas viu rosas. A lenda ou tradição que o heraldista invocou para fundamentar a figuração das rosas nas armas autárquicas de Alenquer parece assim misturar-se com aquele outro milagre comummente imputado à rainha Santa – “essa transformação maravilhosa de pães em rosas, para fugir ao controlo masculino” – e cujo carácter modelar, atribuído a outras RIBEIRO, op. cit., pp. 118-119. RIBEIRO, op. cit., p. 121.

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Figura 7: desenho da bandeira e selo das armas municipais de Alenquer aprovadas em 1936.

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santas e rainha medievais – nomeadamente a Isabel da Hungria, tia-avó da mulher de D. Dinis –, o tornou paradigmático do modelo de santidade da rainha portuguesa, como evidenciou Maria Filomena Andrade 41. Afirmou esta mesma autora, a tal respeito, que “no caso de Isabel de Portugal, a rainha saiu do castelo do Sabugal, numa manhã de inverno, para distribuir pães aos pobres, quando é surpreendida pelo rei, que lhe inquiriu onde ia e o que levava no regaço. A rainha teria exclamado: «São rosas, Senhor!» Desconfiado, D. Dinis teria perguntado: «Rosas, em janeiro?» D. Isabel expôs então o conteúdo do regaço do seu vestido e nele havia rosas, ao invés dos pães que ocultara. A tradição popular tem, contudo, diversas variantes deste milagre: moedas de ouro que se transformam em rosas ou rosas que se transformam em ouro; ou ainda o pão que se transfigura em flores” 42.

Ora, a fundação por Santa Isabel, em 1321 43, de uma capela e albergaria com a invocação do Espírito Santo, em Alenquer, junto ao rio, onde a rainha possuía os seus paços, está de facto envolta em aura milagrosa, mas num contexto que não coincide exactamente com a descrição feita por Dornelas, que no desfecho da sua narrativa, com vimos, tendeu a aproximar-se mais do tradicional milagre das rosas. Mas os acontecimentos de Alenquer terão ocorrido em circunstâncias algo diferentes… Um códice iluminado, anónimo e sem data mas cuja autoria é atribuída a Damião de Góis, que o terá elaborado entre 1548 e 1557, existente nas colecções da Biblioteca Nacional com o título de Lenda da Rainha Donna Isabel chamada a Sancta molher d’el-Rei Dom Denis a qual fundou a Casa do Spirito Sancto da vila d’Alanquer, constitui um circunstanciado relato – quiçá o mais antigo conhecido 44 – da construção admirável daquele templo 45. Terá escrito o famoso humanista alenquerense: ANDRADE, Maria Filomena, Rainha Santa, mãe exemplar: Isabel de Aragão, s.l., Círculo de Leitores, [2012], p. 35. 42 ANDRADE, op. cit., p. 36. 43 Confirma-se que a rainha D. Isabel se recolheu em Alenquer neste ano, encontrando-se então desterrada pelo marido em virtude do conflito que opunha o rei D. Dinis ao infante D. Afonso, seu filho. ANDRADE, op. cit., p. 186. 44 E que será anterior, por conseguinte, ao que se pensa ser a primeira narrativa escrita do tradicional milagre da transformação dos pães em rosas, constante da Crónica dos Frades Menores, impressa em 1562 e redigida por frei Marcos de Lisboa. 45 SOUSA, Teresa Andrade e, “Lenda da Rainha D. Isabel (Códice Iluminado 223 da Biblioteca Nacional)” (introdução e leitura crítica), Revista da Biblioteca Nacional, Jul.-Dez. 1987, II série, vol. 2, n.º 2, pp. 23-48. 41

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“No qual tempo a dicta Senhora [Rainha Santa Isabel] per sua devação e como se diz per revelação devina no lugar onde Deos tal milagre per ella fezera fundou esta Casa da avocação do Spiritu Sancto d’Alanquer, com logo nella ordenar confrades e vodo pello modo e custume que se ateee o presente dia tem. (…) No fundar desta Casa do Spirito Sancto, como se acha por memoria e antiga escriptura se diz que vindo a Rainha com sua gente e officiaes pera abrir os allicesses que os achou millagrosamente demarcados do tamanho e grandor que a igreja he e começados a cavar. Item mais se acha que fazendo-sse a dicta obra que passava hu˜a moça com hum molho de rosas na mão per a par do dicto lugar onde a Rainha estava com suas donzellas vendo como trabalhavam e que hu˜a das dictas donzellas pedio as rosas a moça e as deu aa Rainha. A qual Senhora partindo-sse da obra deu a cada hu˜u dos officiaes hu˜a das dictas rosas as quaes elles poseram a paar de seus fatos, e aa tarde querendo-se hie pera casa tomando cada hum a rosa que lhe fora dada se lhe converterão em dobras, do que espantados o forom logo dizer aa Rainha do que ella com muita devação e lagrimas deu graças a Deos e o mesmo fez el-Rey que ao presente ahi estava”.

Em suma, os elementos estruturantes desta narrativa assentam, em primeiro lugar, na demarcação milagrosa dos locais onde se deveriam fundar os alicerces da futura capela do Espírito Santo, em Alenquer; depois, no aparecimento junto de D. Isabel e do seu séquito, que visitavam a obra, de uma rapariga que trazia consigo um molho de rosas; a seguir, na entrega dessas flores à rainha por uma das suas donzelas e na oferta que aquela fez, ao ir-se embora, de uma rosa a cada um dos trabalhadores, que as pousaram junto das respectivas roupas; já quase a terminar a cena, na confrontação desses operários, ao final do dia de trabalho, com as rosas convertidas em dinheiro; e por último, na reacção devota de Santa Isabel e de D. Dinis à notícia da transformação ocorrida. São, pois, evidentes as diferenças face à história mais lacónica e imprecisa contada por Afonso de Dornelas, ainda que a essência do milagre de Alenquer se enquadre nessa espécie de contexto tautológico que marca a vivência de D. Isabel e revele aquilo que Maria Filomena Andrade considerou ser “a capacidade oblativa da rainha que a assemelha ao próprio Cristo que multiplicou os pães e os peixes para dar de comer às multidões que o procuravam” 46. Outros cronistas e historiadores posteriores continuaram a difundir esta antiga memória, como D. Rodrigo da Cunha que em 1642, na sua História ecclesiastica da Igreja de Lisboa, embora sem desenvolver os contornos do milagre, escreveu: ANDRADE, op. cit., p. 36.

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“vive˜do ainda a Rainha S. Isabel e andãdo com pe˜samentos de fu˜dar [em Alenquer] hu˜a igreja suntuosa ao Spirito Santo, achou pela manhã lançados os fu˜damentos por mãos de anjos e a obra em altura que já se podia nella ver a mesma traça, pela qual a Rainha Santa a determinava edificar. Ella e elRey seu marido forão os autores da festa que se chama do Spirito Santo, cuja solenidade foy tão celebre por todo o reyno e maes nos mayores e mais populosos lugares delle, como hoje ouvimos contar aos antigos” 47

No século XVIII, também as penas de alguns dos párocos de Alenquer ecoaram esse antigo testemunho. Tal foi o caso dos padres Paulo Carneiro da Veiga e Pedro da Silveira, priores das freguesias de Santiago e de São Pedro, que em 1758 escreveram respectivamente 48: “(…) E no tempo em que se fazia a obra da Igreja do Espirito Santo, he que a mesma Rainha Santa obrou o milagre de converter as rosas, que tinha dado aos officiais da obra, em moedas de prata”. “(…) estando a dita Santa entam nesta villa com seu marido El Rey Dom Denis preçedendo revelaçam divina, e apparecendo mila- milagrosamente riscados, ou abertos so á supreficie os aliçerçes da igreja, que depois foy do dito hospital [do Espírito Santo], a qual logo a dita Santa Raynha pello mesmo risco mandou edificar à sua custa dando-lhe a invocaçam do dito Espirito Santo e mandando que todos os annos se sselebrasse com grande solemnidade a sua festa, e comprou gados, que fossem rendendo para o dito hospital (…)”.

Em tempos já mais chegados, Guilherme Henriques relatou a lenda do seguinte modo: “Durante o tempo que a rainha Santa Isabel esteve separada do marido, e residindo em Alemquer, a piedosa senhora occupou-se com obras de devoção e caridade, e parece que então, querendo imitar o exemplo da beata Sancha, resolveu tornar os seus paços, não em convento, mas sim em albergaria para accomodação dos passageiros pobres ou doentes. Em 1320 ella levou a effeito tão caridosa resolução e, durante o resto do tempo que aqui esteve, empregava-se diariamente em tratar dos doentes, e lavar as suas roupas.

CUNHA, D. Rodrigo da, Historia ecclesiastica da Igreja de Lisboa : vida e acçoens de seus prelados, e varões eminentes em santidade, que nella florecerão..., Lisboa, por Manoel da Sylua, 1642. 48 Apud MARTINS, op. cit., pp. 37 e 52. 47

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Pouco tempo depois projectou a Santa fazer aqui uma egreja, e, segundo a tradição, houve um principio milagroso á obra. Havia, e talvez ainda haja no cartorio d’esta casa, um livro que se achava uma memoria escripta por Francisco Telles, que foi escrivão da confraria em 1561, que dizia que n’um livro velho que se achou na camara d’esta villa, encontrára uma escriptura, feita por tabelião, da qual constava que Santa Isabel sonhára que era de vontade de Deus que ella fundasse uma egreja ao Espirito Santo, junto ao rio; e que, mandando abrir os alicerces, os achara já riscados e principiados sem se saber por quem, não tendo havido na vespera signaes de tal obra. Mandando principiar a construção, no primeiro dia, indo a Santa ver, deu uma rosa a cada pedreiro e servente, que elles guardaram em sitio occulto até á noite. Quando, ao largar o trabalho, procuraram as rozas, acharam no logar de cada roza um dobrão de oiro. (…) Relatava mais a dita memoria que, acabada a obra, a Santa entregou a regencia da casa aos moradores de Alemquer e seu termo (…). Feita pela Santa esta doação aos alemquerenses, estabeleceu-se uma irmandade para dirigir a casa conforme as intenções da illustre fundadora. A irmandade existiu até 1517, anno em que D. Manuel ordenou que a casa fosse dirigida por um provedor, escrivão e mordomos (…)” 49.

Revelam-nos os autores de O Concelho de Alenquer que Luciano Ribeiro, em publicação datada de 1941 e 1942 (os números 2 e 3 de Damianus a Goes, que infelizmente não tive oportunidade de consultar directamente) 50, transcreveu aquele antigo documento referido por Guilherme Henriques, o qual constaria de um livro de registos existente no Arquivo da Câmara Municipal de Alenquer, escrito entre 1654 e 1672, pertencente ao escrivão Brás de Araújo de Valadares e que tinha aposta nas suas folhas a rubrica “Homem”, alusiva ao juiz João Homem de Meneses. Rezava então essa memória: “Principio e fundamento da Caza do // Spritto Sancto da Villa de Alamquer // Dado pella Raynha Sancta Izabel // Molher Del Rey Dom Deniz no // Anno de mil tresentos e vinte e hum // dis e vinte e hum a qual faleceu no anno de 1333 há 4 dias de Julho / Em Estremos dia quarta fr.ª como consta // tudo de huma certidão e papeis Antiguos // Autenticos que estão no Cartorio da dicta // Sancta Caza E na da Cama.ra desta dita Villa. // … … a Raynha Sancta Isa/bel Molher que foi de El Rey Dom Denis filha / De El Rey de Aregão que ias em Santa Clara de Coim / bra que Ella fes estando a dita S.ª em Alamqr /. HENRIQUES (DA CARNOTA), Alemquer…, pp. 141-142. MELO et alii, op. cit., 1985, vol. 2, pp. 166-168.

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Hu˜a noite jazendo em huma Cama sonhou hum so / nho em como prasia a Deus que em a ditta villa fose / feita hu˜a casa do sñor Santos Spritto pera se em ella / fazer sacrificio divino e a dita senhora Raynha se / Alevantou loguo porque ora ia quassi manhã E / se uistiu rezou e foi ouvir missa a tanto q ouvio / missa foi caminho do Rocio em que na dita caza / esta, e mandou chamar os iuizes da dita villa e lhe / mandou que lhe dessem quatro pedreiros e seus / servidores para abrirem hu˜s aliscerses que ella / queria mandar abrir, e os dittos iuizes lhe / mandarão loguo… … a ditta senhora se Alecantou e foi pera onde ella / tinha ordenado que se abrissem os ditos Alicerses. E / quando ali chegou achou os ditos alicerces aonde a dita senhora aviha em vontade de / os mandar Abrir e a dita senhora veendo / tal couza se espantou muitto e preguntou aos / juizes se mandarão elles aquillo faser ou se / sabiam quem tal fisera E os ditos juizes deseram / que não mandarão fazer, nem sabiam parte / de quem o fisera… … he a ditta senhora mandou loguo aos mestres e / servidores que assim como estavam asinados os / Alicersses se abrissem e altrasem como lhe era / mister para a obra que se Ali avia de faser, e os / ditos mestres e servidores comessarão loguo de / Abri em elles, e a ditta senhora (e a ditta senhora) es / teve aly hum pedasso atte que forão oras de senar / que se foi e lhes disse que abrissem a dita obra, que / lhe pagaria mui bem o seu trabalho, e a dita senhora / se foi a comer com El Rei. … como / a ditta senhora comeu fez loguo volta a dita obra / estando em a ditta obra já sobre attarde veio por ali / huma mossa ettrasia hum molho de Rosas grandes / nas mãos muito boas e hu˜a donzella da dita s.ra / lhas pidio da sua parte e a dita mossa lhas deu / e a ditta senhora as tomou e cheirou, e deu muittas / graças com suas mãos levantadoas ao Ceo… … e quando a dita s.ra se partio ia sobre / a tarde pera o passo deu a cada hum dos mestres e / servidores a cada hum sua Rosa, disendo-lhe que / por Ali lhe pagava o serviço daquelle dia e elles / tomarão as ditas Rosas Rindosse com grande / misura disendo que bem sertos são de sua pa-/gua, e a ditta sñora partio pera seus Passos / e os mestres e servidores comesarão a caregar / seus fattos pera se irem porque ja era tarde / pera suas casas, e foi cada hum buscar a sua Ro-/pa donde a pusera e querendoa tomao achou ca-/da hum sua dobra, e presumirão que a ditta senhora / lhes mandara ali por pera as mereserem na / ditta obra porem per tirar duvida e porque al/gu˜s disserao adita senhora lhes mandasse pagar / seu trabalho pera comprarem o que lhes fasia mister pera suas casas ottiverão conselho de / irem a S.ª Raynha e lhe pidirem perdam, e a forão Alcanssar já hum pedasso pella Calsada / assima e lhe desseram V.SA. nos mandou deixar do/bras donde nos puserão as Rosas VSAI. as mande / guardar que bem serttos estamos da nossa pagua / e a ditta senhora lhes Respondeu de que antes de lhes Res/ponder por conheser era misterio de Deus per ja

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lhe / aconttesserem outros semelhantes milagres pos / os iuelhos em terra per modo que se via e deu / muittas graças a Deus sem diser cousa alguma / salvo chamou hu˜s dos mestres e preguntou se / achara elles as Rosas e elle lhe Respondeu que / sy mas que quando forão as tomar se tornarão / dobras e a Senhora lhes mandou que chamassem / os outros e se fossem embora e se calassem e não / disesem nada e que fisessem das dobras seu / Proveito…”.

Figura 8: painel de azulejos evocativo do milagre das rosas, ocorrido com a rainha Santa Isabel em Alenquer, procedente do antigo hospital termal das Caldas da Rainha, in MACHADO, João Saavedra, Azulejos do Hospital Termal das Caldas da Rainha: séculos XVI-XVIII, Caldas da Rainha, Museu de José Malhoa, 1987, pp. 45 e 80.

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Verifica-se, assim, que o milagre das rosas, protagonizado pela rainha Santa Isabel em Alenquer, se encontra bem enraizado na memória e tradição locais, razão que levou à figuração daquelas flores nas armas da referida vila a partir de 1936, por proposta de Afonso de Dornelas, embora com fundamento numa versão mais difusa do acontecimento miraculoso e numa perspectiva mais alargada quer à acção caritativa genericamente atribuída às rainhas, quer à sua condição de donatárias de Alenquer. É possível que, depois daquele ano, a Santa Casa da Misericórdia desta vila tenha adoptado o uso do escudo das armas nacionais circundado exteriormente por rosas, numa versão influenciada pelo novo brasão municipal, ainda que neste último a orla de flores fosse inscrita dentro do campo, como vimos. Apesar do testemunho quanto à existência dessa representação das armas da Santa Casa, não foi possível, no entanto, encontrar qualquer exemplar da mesma, subsistindo a dúvida, por isso, quanto ao exacto momento em que as rosas passaram a integrar a heráldica da instituição assistencial. Deste modo, ou foi Bénard Guedes quem se lembrou de incorporar nas armas da Misericórdia de Alenquer a mesma orla de rosas que o brasão municipal exibia desde 1936, ou ao distinto heraldista apenas coube inserir dentro do escudo um elemento que já fazia parte da emblemática da Santa Casa. Certo é que no ordenamento composto pelo mestre houve uma nítida intenção de aproximar as armas da Misericórdia às do município de Alenquer. Com efeito, tanto num caso, como noutro, encontramos um móvel principal – o rastro, nas armas da Santa Casa, o castelo, nas da vila – acompanhado em orla pelas rosas, o que confere às duas manifestações uma evidente identidade visual, ainda que no caso do brasão autárquico se verifique também a presença do cão. Esta semelhança entre os dois exemplares sai ainda reforçada pelo facto de se terem escolhido para as armas da Santa Casa os mesmos esmaltes das armas municipais: em ambas o campo é de ouro, o móvel principal é de azul e as rosas dispostas em orla são vermelhas folhadas de verde. Desta forma, a presença das rosas na heráldica da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer contribui para a sua associação directa a esta vila – por via quer da alusão simbólica ao milagre de Santa Isabel que ocorreu nesta localidade, quer do mimetismo face às respectivas armas municipais. Por outro lado, sabe-se que “Ao longo de toda a sua vida, a rainha tem uma especial preocupação com os outros, os que padecem de enfermidades ou se encontram em dificuldades, os marginais da sociedade de então, que são de muitas e diversas origens e proveniências, mas a que ela acorre sempre solícita. (…) Conhecem-se muitas das suas obras de misericórdia e sabemos, pela sua crónica mas

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também pelo seu estamento, do interesse e ação que desenvolve em prol dos desfavorecidos (…)” 51.

Entre os destinatários da actividade piedosa da rainha Santa contaram-se cativos, pobres, órfãos; a instituição de albergarias e hospitais que se dedicavam ao acolhimento e alívio dos peregrinos e enfermos foram também objecto da sua iniciativa. Em plena Idade Média, existia já um elevado número de obras assistenciais, muitas das quais “eram da invocação do Espírito Santo e receberam, no início do século xiv, acendrado apoio da rainha Santa Isabel, em cuja tradição mergulha grande parte da inspiração que conduziu ao aparecimento das Misericórdias” na transição da centúria de quatrocentos para a seguinte 52. O rastro de D. Leonor e as rosas de Santa Isabel são, assim, o símbolo de uma vivência claramente consagrada aos mais desfavorecidos que duas rainhas, à distância de quase dois séculos e intimamente ligadas a Alenquer, partilharam. Em ambas se evidenciou, igualmente, uma profunda inspiração franciscana – a que não terá sido alheia a remota e significativa presença dos frades do convento de São Francisco daquela vila, um dos três primeiros fundados em Portugal. E neste sentido, recordo a possibilidade que Miguel Metelo de Seixas e eu aventámos de os nós formados pelo cordame do rastro poderem constituir uma alusão à emblemática e à heráldica daquela congregação religiosa mendicante 53, numa mensagem enriquecida pela figuração das rosas em orla, ao jeito de um cordão de São Francisco que circunda o escudo 54, apesar de não se saber se foi esta a intenção ao ordenarem-se desse modo as referidas flores. Afirmei atrás ignorar a razão destas serem catorze, ao invés das cinco propostas por Afonso de Dornelas em 1936 para o ordenamento das armas municipais, registando agora apenas a coincidência de ser aquele o número das obras de misericórdia. Ao contrário de outras localidades, em que as confrarias e as albergarias ou hospitais do Espírito Santo foram desde cedo incorporados ou absorvidos pelas recém-criadas Misericórdias, em Alenquer a antiga Casa do Espírito Santo manteve a sua autonomia durante mais alguns séculos, tendo sido aliás reformada por D. Manuel I. No entanto, a respectiva igreja e seus anexos foram sofrendo significativa degradação ao longo do tempo, mormente por ocasião das invasões francesas. Sabe-se depois que “em 1873 a igreja tinha sido, havia pouco, reno ANDRADE, op. cit., p. 199. SERRÃO, Joaquim Veríssimo, A Misericórdia de Lisboa. Quinhentos Anos de História, [Lisboa], Livros Horizonte, [1998], p. 17. 53 SEIXAS; GALVÃO-TELLES, “As insígnias…”, in CURVELO, op. cit., p. 30. 54 Vd. SEIXAS, Miguel Metelo de, Heráldica Franciscana, separata de Revista Lusófona de Genealogia e Heráldica, n.º 3, Ano III, 2008. 51 52

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vada, graças á energia e devoção do sr. Manuel Joaquim Domingues de Souto, que dirigia os negocios da Santa Casa (…)” 55, e terá sido por esta altura, com efeito, que os bens da antiga confraria dedicada ao Espírito Santo se reuniram à Santa Casa de Alenquer, que passou a administrá-los 56. Por outro lado, com a extinção das ordens religiosas em 1834, parte do velho convento de São Francisco da mesma vila passou igualmente para a posse da Misericórdia, que para ele transferiu o seu hospital e onde actualmente mantém em funcionamento um lar de terceira idade, entre outras instalações do referido cenóbio que estão sob a sua tutela. Na figuração singela do rastro circundado pelas catorze rosas, Bénard Guedes fez representar não apenas esse passado ligado à presença em Alenquer da comunidade franciscana e das rainhas D. Isabel e D. Leonor, mas sobretudo os valores que subjazeram às respectivas vivências. Afinal de contas, todo um património espiritual, simbólico e material de que a Santa Casa da Misericórdia é, nos dias de hoje, herdeira e impulsionadora 57.

HENRIQUES (DA CARNOTA), Alemquer…, p. 149. HENRIQUES (DA CARNOTA), Alemquer…, p. 152. 57 Agradeço o apoio que me dispensaram, para a elaboração deste artigo, João Mário Ayres de Oliveira e Luís Rema, respectivamente provedor e director executivo da Santa Casa da Misericórdia de Alenquer, bem como as úteis informações que recebi do padre Diogo Corrêa e de Filipe Soares Rogeiro, ambos profundos conhecedores do património e da história alenquerenses. 55 56

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