As Barreiras do Racismo. Correio Braziliense, 2014.

May 28, 2017 | Autor: M. Candido | Categoria: Racismo y discriminación, Anti-racismo
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Diversão&Arte

• Brasília, terça-feira, 12 de agosto de 2014 •

CORREIO BRAZILIENSE • 3

CONTINUAÇÃO DA CAPA

As barreiras do racismo

Artistas e especialistas analisam os obstáculos, os avanços e as soluções para a pouca representação negra no âmbito artístico

A

a novela Lado a lado como grande paradigma de mudança ao ter um duplo protagonismo, com um casal branco e outro negro. “Pudemos ver a história de uma cidade, o Rio de Janeiro, sendo contada a partir de dois segmentos populacionais que, de fato, ergueram a cidade, os negros e os brancos”. Em outros ambientes artísticos, o cineasta observa uma discriminação semelhante ao da televisão. Embora exista uma invisibilidade, ele lembra nomes de talentos negros nas artes plásticas como Emanuel Araujo, criador do Museu Afro Brasil em São Paulo, o fotógrafo Eustáquio Neves e o pintor e escultor Jorge dos Anjos.

filmografia de Joel Zito Araújo é marcada pelo debate sobre as questões raciais. Em 2000, ele lançou o emblemático A negação do Brasil, documentário em que analisava a trajetória dos personagens negros nas telenovelas brasileiras. Nove anos depois, em Cinderelas, lobos e um príncipe encantado, ele discutiu temas polêmicos como turismo sexual, racismo e pedofilia. No trabalho mais recente, Raça, mostrou a luta dos afro-brasileiros por igualdade racial. Segundo Joel, a dificuldade em tematizar a questão do negro está no racismo estruturante da sociedade brasileira. “Falar sobre Poder preto a situação do negro em nossa soHá alguns dias, Brasília sediou ciedade é tocar em uma situação o Latinidades — Festival da Mutabu”, diz o cineasta. Sobre a pouca presença no ci- lher Afro-Latino-Americana e Canema, apontada na pesquisa A ribenha. Joel Zito se diz encantancara do cinema nacional, o mi- do “com o trabalho dessas jovens neiro volta a citar o racismo e ex- que estão consolidando um granpõe a estética do branqueamento de festival da mulher negra”. As como responsáveis pela escassa responsáveis pelo evento são Jarepresentação. “É por esta razão queline Fernandes e Chaia Dechen. Nascidas que se naturaliem Planaltina zou a ideia que o branco é a meRacismo em pauta (DF) e na Índia, respectivamenlhor representaA novela Geração Brasil falou te, as jovens coção da raça huabertamente sobre racismo mandam a Griô mana e está no em uma cena estrelada por Produções, topo da escala Lázaro Ramos e o novato criada em 2007, da beleza. Os Danilo Ferreira. O tema foi que alia arte e negros signifiusado na chamada militância. cam os outros, e reprogramação em que Brian “Chaia moainda pior, a suBenson (Lázaro) tem uma rou em diverbalternidade, a conversa com Matias, sos países e feiura, o pobre considerado um jovem da tem uma perindesejado”. geração nem-nem (algo como cepção muito Em 50 anos nem trabalha, nem estuda). madura de sua de carreira, a Em uma cena longa, com 12 negritude desatriz Zezé Motta minutos de duração, os de sempre. Eu protagonizou personagens conversaram demorei muito vários filmes e sobre a discriminação racial tempo para me novelas, inclusisofrida por Matias durante a reconhecer cove Xica da Silva e infância, em que ele se achava mo negra e enA próxima vítiinferior e por isso se frentar os dema. Ao saber do sentia desmotivado. safios de uma resultadodapessociedade raquisa, ela confessou ter ficado triste. “As coisas cista. Temos experiências bem estão avançando, pois já temos diferentes que nos trouxeram protagonistas negros como Lázaro para o mesmo discurso”, diz JaRamos, Taís Araújo e Isabel Fillar- queline, que enumera obstácudis, e eu mesmo já fiz novelas es- los para a criação de um evento tando no núcleo principal, inde- do porte como o Latinidades. Falta de vontade política, rependentemente de ser negra, faço um discurso otimista. Contudo, o curso humano reduzido e enfrenestudo confirma que ainda falta tamento ao racismo e ao machismuito para fazer justiça com o ne- mo institucionais são alguns dos problemas. De acordo com Jagro no Brasil”, opina Zezé. A artista, fundadora e presi- queline, discutir temas tão duros dente de honra do Centro de Do- e ter que defender a importância cumentação do Artista Negro de se debater a situação das mu(Cidan), ainda destaca que é pre- lheres negras em um projeto culciso ter mais autores, produtores tural-formativo foi e é um desafio. “Deixamos de entrar em editais e diretores negros, e recorda os nomes de Milton Gonçalves, Luiz culturais porque o projeto é consiAntonio Pilar, Maurício Gonçal- derado formativo (com atividades ves e Antonio Pitanga — excelen- múltiplas). Mas, felizmente, nos tes profissionais cujo o potencial últimos dois anos, o Latinidades é mal aproveitado. “Temos cata- temganhadomuitaforçapormeio logados no Cidan mais de 500 das parcerias e redes”, afirma. Para o próximo ano, o tema do negros e a gente se pergunta: onde estão esses atores? Fazer arte festival será o cinema negro. As no Brasil é muito difícil e para o produtoras pretendem falar da presença negra em toda a cadeia negro mais ainda”. produtiva do cinema e nas narrativas. “Vamos fazer cineclubes Mudança nas periferias regados a muito Apesar das barreiras, Joel Zito debate e circulação da produção acredita que a representação ne- da diáspora. Com certeza muitas gra em papéis de subalternidade parcerias político-criativas virão está mudando. Ele cita, inclusive, por aí”, adianta Jaqueline.

Tânia Rêgo/ABr - 13/5/13

Artigo

Os emparedados

Joel Zito Araújo sugere a adoção de políticas públicas para inserir mais profissionais negros no cinema

O caminho para a equidade Após várias constatações sobre a ausência de negros no universo artístico, é preciso fazer algo para reverter o quadro. Jaqueline Fernandes, da Griô Produções, lembra que existe, há alguns anos, editais específicos e cotas para que as produções negras não estejam subrepresentadas por atores e atrizes negras. “Durante muito tempo assistimos com bastante indignação a apropriação da nossa cultura. Nós nos organizamos nacionalmente para que recursos públicos e privados cheguem nas comunidades negras e para que nossas produções sejam de fato valorizadas”. Jaqueline destaca que essa luta é paralela ao combate ao racismo. “Se a sociedade é racializada e o racismo é estruturante de desigualdades, na cultura não seria diferente. Apesar dos avanços, ainda há muito o que ser feito. Em 2013, quando se conquistou um edital para produtores negros, realizado pela Fundação Cultural Palmares e pelo Ministério da Cultura, percebemos investidas racistas, culminando na suspensão do edital. Houve a necessidade de uma intensa mobilização para garantir um direito que já foi conquistado pelos indígenas, ciganos e idosos”. Joel Zito Araújo sugere a adoção de políticas públicas para inserir mais roteiristas, diretores e atores negros no cinema. “Com a pressão da sociedade, Estado e suas instituições, assim como as grandes empresas privadas, podem promover políticas de redução das desigualdades raciais e sociais. Na área de cinema e tevê, é preciso pressionar a Agência Nacional do Cinema (Ancine) e as secretarias de Cultura para que elas reajam a favor dessa demanda. Isso também é parte de uma pauta importante”. Marcia Rangel e Verônica Toste, do Grupo de Estudos

Festival Latinidades/Divulgação

» ADRIANA IZEL » MAÍRA DE DEUS BRITO

Jaqueline e Chaia Dechen: o desafio de debater a questão negra Entenda o caso Em maio de 2013, a Justiça Federal suspendeu os editais de incentivo à cultura negra lançados pelo Ministério da Cultura (MinC) em novembro do ano anterior. Os editais eram destinados apenas a produtores e artistas negros nas áreas de cinema, literatura, artes visuais, circo, música, dança e teatro. O juiz federal entendeu que os editais não poderiam comparados às cotas adotadas em universidades e concursos públicos, pois eliminariam a participação de outros grupos da sociedade brasileira.

Se a sociedade é racializada e o racismo é estruturante de desigualdades, na cultura não seria diferente. Apesar dos avanços, ainda há muito o que ser feito” Jaqueline Fernandes, produtora cultural Multidisciplinares da Ação Afirmativa da UERJ, também defendem as ações afirmativas. Elas recordam o sucesso da medida nas universidades públicas dopaísereivindicamqueomesmo pode acontecer no cinema. Criar formas de reparar desigualdades históricas é fundamental dentro de um país que se propõe democrático. Não é natural que mais da metade da população não esteja representada no audiovisual, dizem.

De acordo com elas, a política pode ser uma forma de trazer a diversidade que o livre mercado não tem deixado sobressair, além de conceder oportunidades a grupos excluídos. Isso pode também contribuir para a qualidade da nossa produção audiovisual, que pode se beneficiar de experiências mais plurais e mais ricas de pessoas que até então foram deixadas à margem dessa indústria.

“Qual é a cor da minha forma, do meu sentir? Qual a dos meus sonhos e gritos?” Estes clamores feitos pelo narrador da prosa poética Emparedado, escrita por Cruz e Sousa, no século 19, continuam ecoando nos corredores dos meios artísticos e literários do Brasil, em pleno século 21. É lamentável, mas eles ainda se ajustam à realidade de artistas e escritores negros, nas lutas pela conquista de espaços onde possam exercer direitos legítimos que, historicamente, lhes são vedados por razões étnico-raciais segregacionistas, autorizadas por predisposições consuetudinárias. No âmbito de um cenário que prima por impedimentos e interdições à fluência de seus fazeres artísticos e literários,a música é exceção à regra, possivelmente, pelo fato de o receptor priorizar a sonoridade, recurso que inibe ações do grande objeto da discriminação que é o fenótipo. Já, no campo da atuação imagética, os atores negros prosseguem referendários de papéis de pouca relevância. Sobretudo nas telenovelas, não se lhes permite interpretar galãs e pessoas bem sucedidas na vida, nem qualquer forma de protagonismo. Na literatura, os impactos desse dilema se refletem nos desempenhos do autor e do personagem. Do ponto de vista da autoria,é fato que hoje os autores têm mais facilidades para editar e publicar. Existem blogs especializados na produção que se caracteriza como subversiva, por contemplar temáticas voltadas às causas do negro, e editoras exclusivas para negras, entretanto, ter textos acolhidos por grandes editoras é um entrave. No que diz respeito ao personagem,o negro continuapresente e invisível seguindo a sina de sem voz e estereotipado, como em alguns sermões deVieira.Embora acanhados, os avanços na arte como um todo provocam reflexões, ao desvelar índoles, verdades e intolerâncias, como se verificou no caso do ator Lázaro Ramos, protagonista de uma novela veiculada em horário nobre, anos atrás, em que ele vivia um galã,mulherengo e dom juan. À medida que a novela se desdobrava, chacotas nas redes sociais atribuíam ao Brasil, foros de um país aonde tudo andava tão às avessas que nele um negro era galã. Este episódio é tão sintomático quanto sintomática é a fala de um personagem do romance Esaú e Jacó, de Machado de Assis, afirmando que “emancipado o preto, resta emancipar o branco”. A solução do problema requer que as instâncias de poder econômico e de consumo envolvidas no processo de criação e fruição da arte assumam as responsabilidades. Enquanto os reclamos do personagem machadiano forem a expressão de um imperativo nacional, o negro não será o único emparedado no universo artístico. *Amauri Rodrigues da Silva, professor e doutor em teoria literária da Universidade de Brasília

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Confira galeria dos artistas e intelectuais negros ao longo da história brasileira.

Tatiana Reis/Divulgação

“O racismo age em ambientes como música erudita e artes plásticas de duas formas. Primeiro, como barreira. Para você ter uma ideia, Dolores Duran estudou canto lírico durante um tempo e desistiu. Naquela época, ela disse: “Alguém já viu preto cantando ópera?”. Nós temos a nossa força em formas de artes variadas. Mas são desvalorizadas. É separada para que a produção branca possa ser chamada de clássica e erudita” Jurema Werneck, médica e doutora em comunicação

Luiz Henrique/Divulgação

“A ausência de negros no âmbito das artes é o reflexo de uma sociedade calcada em preceitos escravistas, que estão sendo mantidos e reproduzidos. É um tipo de reserva de patrimônio cultural feita por brancos e para brancos. A imprensa colonial controlava o que era impresso e, dessa maneira, preservava a cultura como um bem branco. Após a abolição, nada foi feito para reverter o quadro. Tivemos negros importantes da música erudita, principalmente, no clérigo” Ana Maria Gonçalves, escritora

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Thais Moreira/Divulgação

O que elas dizem “A gente que está na academia tem a percepção que as matrizes europeias sempre foram valorizadas. E o mito da democracia racial escolheu vários lugares para o negro e, com certeza, um desses lugares não foi a literatura. Nós temos inúmeras referências negras, como Carolina Maria de Jesus, que tem o centenário de nascimento comemorado neste ano. É preciso contar a história da população negra e estamos num processo de construção para isso” Cristiane Sobral, escritora

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