As cantigas de Pae Calvo (edição digital) [2004]

July 4, 2017 | Autor: J. Montero Santalha | Categoria: Poesia trovadoresca galego-portuguesa
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As cantigas de Pae Calvo Pae Calvo [= Tav 112]: Biografia. A um trovador chamado “Pae Calvo” atribuem os cancioneiros coloccianos duas cantigas de amigo, que aparecem colocadas dentro do conjunto que Resende de Oliveira conjecturalmente tem denominado «Cancioneiro de jograis galegos». Se a existência deste conjunto chegar a confirmar-se, teríamos que concluir que Pae Calvo era um jogral originário da Galiza e que, como os demais trovadores incluídos nesse conjunto, teria vivido na segunda metade do século XIII e talvez nos inícios do XIV. Na verdade, a documentação medieval oferece diversos indivíduos com esse mesmo nome no século XIII, tanto na Galiza como em Portugal e até na zona fronteiriça galego-leonesa. Em Portugal existem ademais actualmente vários lugares chamados Pai Calvo: um no concelho de Lisboa, outro na freguesia e concelho de Armamar, do distrito de Viseu, outro na freguesia de Vila Chã, do concelho de Esposende, distrito de Braga (este último tem sido relacionado com o trovador, mas sem maior fundamento); e ainda há um Paio Calvo no concelho de Vila Verde, do distrito de Braga. Mais uma vez, a falta do patronímico no nome do trovador torna insegura a identificação com qualquer dos Pae (ou Paai ou, em latim, Pelagius) Calvo documentados. As suas duas cantigas não oferecem tampouco referências toponímicas ou históricas. Obra poética: 2 cantigas, ambas de amigo (cc. 1252-1253): 1) «Foi-s’ o namorado» (Ba 1236, V [841]) iR [= Tav 112,2]: cant. 1252. 2) «Foi-s’ [ém] o meu perjurado» (Ba 1237, V [842]) iR [= Tav 112,1]: cant. 1253.

Pae Calvo 1 [= 1252 = Tav 112,2] «Foi-s’ o namorado» (Ba 1236, V [841]) [Cantiga de amigo; de refrão. Dirigindo-se à mãe, a rapariga confessa-lhe que se sente desiludida porque o amigo se foi e tarda em voltar]. I 2 4 6 8 II

Foi-s’ o namorado, madr’, e no-no vejo; e viv’ em coi[d]ado, moiro com desejo: torto mi tem ora o meu namorado, que tant’ alhur mora, e sem meu mandado.

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Foi-s’ el com perfia, por mi fazer guerra; nembrar-se devia de que muito m’ erra: torto mi tem ora o meu namorado, que tant’ alhur mora, e sem meu mandado.

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De pram, com mentira mi_andava, sem falha,

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III

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20 22 24 IV 26 28 30 32

ca se foi com ira; mais, se Deus mi valha, torto mi tem ora o meu namorado, que tant’ alhur mora, e sem meu mandado. Nom quis meter guarda de mim que seria, e quant’ alá tarda é por seu mal dia: torto mi tem ora o meu namorado, que tant’ alhur mora, e sem meu mandado.

Nota: A conformação regular e sistemática das rimas é razão determinante para não estruturar a composição em versos longos, como propunha Lapa criticando a edição de Nunes em versos curtos (Lapa, Miscelânea 1982: p. 190), e adopta Rip Cohen na sua edição (500 cantigas d’ amigo, 2003: p. 471) seguindo a proposta de Lapa e atribuindo excessiva importância à distribuição gráfica dos mss. (a qual, de resto, além de ser contraditória pois não se dá em todas as estrofes, apresenta vários pontos intermédios, que devem de ser resíduos dos que no exemplar assinalariam a separação dos versos). De resto, contrariamente ao que pensava Lapa, a distribuição em versos longos dificilmente supõe solução para os problemas de edição dos vv. 3-4. Os problemas são estes: 1) no v. 3 os mss. oferecem coitado quando o sentido e o facto de ser uma rapariga quem fala exigiriam coitada, e 2) no v. 4 os mss. apresentam uma sílaba de mais (“e moiro com desejo”). Segundo Lapa, essa dupla “irregularidade, porém, desaparece, se constituirmos um verso longo: e viv’ eu coitad’ e moiro com desejo”. Com efeito, mediante esse expediente ficariam aparentemente resolvidos os dois problemas, mas com isso nasceu uma dificuldade nova: tinha que haver rima entre namorado e coitad’ e (que na versão manuscrita sim existe: entre namorado e coitado), pois não parece admissível a sugestão formulada por Lapa de que, num verso longo, servem “para rima interior, perfeitamente, namorado - coitad’ e”; neste ponto tem razão Cohen quando mantém que “the o ought not to be elided, given the midverse rhyme” (p. 471). A meu ver, os dois problemas têm solução fácil segundo os expedientes ecdóticos habituais: 1) No v. 3, onde os mss. apresentam coitado deveremos supor um erro de transmissão textual por coidado, substantivo tópico no léxico trovadoresco (nessa forma ou na variante fónetica cuidado). Leremos, pois, esse verso “e viv’ em coi[d]ado”. Assim desparecem simultaneamente o (fictício) problema da rima e do suposto falante masculino. Passagens similares com a expressão viver em cuidado encontramo-las, por exemplo, na cantiga 548 [= Tav 25,16], de Dom Denis, «Assi me trax coitado» (Ba 531, V [134]): “Ca viv’ em tal cuidado / come quem sofredor / é de mal aficado / que nom pode maior” (vv. 8-11); e na cant. 896, de Martim Moxa, «Cativo!, mal conselhado!» (A [304]): “Cativo!, mal conselhado!, / que me nom sei conselhar / e sempre viv’ em cuidado, / pero nom posso cuidar / cousa que me proe tenha” (vv. 1-5). 2) No v. 4 deveremos, por causa da hipermetria do verso, suprimir a conjunção copulativa e, como também admite Cohen, propondo uma estrutura sintáctica assindética.

2

#Pae Calvo 2 [= 1253 = Tav 112,1] «Foi-s’ [ém] o meu perjurado» (Ba 1237, V [842]) [Cantiga de amigo; de refrão. Em termos semelhantes aos da caniga precedente (cant. 1252), a rapariga confidencia à mãe a sua inquietude porque se foi o seu amigo]. I

1 3

II

4 6

III

7 9

IV

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Foi-s’ [ém] o meu perjurado, e nom m’ envia mandado: desejá-lo-ei! Ai madr’, o que bem queria foi-s’ ora daqui sa via: desejá-lo-ei! E nom m’ enviou mandado: de Deus lhi seja buscado!: desejá-lo-ei! Pois mandado nom m’ envia, busque-lho Santa Maria!: desejá-lo-ei!

Notas: O verso 1 aparece com uma sílaba de menos nos mss.: “Foi-s’ o meu perjurado”. Os editores completaram a sílaba faltante lançando mão de diferentes expedientes ecdóticos: Nunes editou “Foi-s[e] o meu”; Cohen propõe “Foi-s’ o[ra] meu”. Pela minha parte, considero mais satisfactória, desde o ponto de vista tanto fonético-métrico como sintáctico, a leitura “Foi-s’ [ém] o meu”, que ademais pode justificar mais facilmente o erro dos copistas; esta leitura resulta ainda reforçada, segundo creio, se admitimos que a estrofe inicial deve ser a que os mss. apresentam como segunda, conforme explico a seguir. No verso 7, em vez da forma de pretérito enviou (que é a que oferecem ambos os mss.) poderíamos conjecturar que originariamente estaria a de presente envia, visto que é a que ocorre nos vv. 2 e 10: teríamos que supor, nesse caso, um erro de transmissão textual. Provavelmente tem razão Rip Cohen quando, na edição desta cantiga, coloca como estrofe inicial a que nos mss. (e na edição que acabo de apresentar) aparece como segunda (“Ai madr’, o que bem queria”...), aduzindo acertadamente que essa estrofe oferece vários elementos típicos dos incipit das cantigas (assim, começo com um vocativo introduzido pela interjeição ai, e marcas deícticas de tempo e de espaço: ora daqui) e também coincidência com os inícios doutras cantigas. Poderíamos ainda acrescentar que, como consequência aliás natural desse novo início, a estrofe que os manuscritos apresentam como inicial (“Foi-s’ é[m] o meu perjurado”...) resulta melhor encaixada depois dessoutra. No entanto, esse razoado não pode considerar-se absolutamente seguro, já que são também várias as cantigas que possuem um início com “Foi” ou “Fois’”, entre as quais se encontra, em primeiro lugar, a outra composição do mesmo Pae Calvo (“Foi-s’ o namorado”: cant. 1252). Ora, se modificarmos a ordem dessas duas primeiras estrofes, deveremos permutar igualmente a ordem das duas restantes (terceira e quarta); e isto por razão da rima: dado que as rimas da cantiga são só duas (ado e ia), que se repetem cada uma em duas estrofes, teremos que estruturar a composição de tal modo que as estrofes resultem distribuídas quer em rimas duplas quer em rimas alternas. Na estruturação que apresentam os mss, as rimas são alternas ado / ia, como se pode ver; e, com efeito, essa parece a conformação preferível, pois mantém de modo mais natural a estrutura paralelística da cantiga. Portanto, a ordem em que aparecerão as estrofes será: 2ª / 1ª / 4ª / 3ª. No início da estrofe que agora fica como final parece então conveniente modificar a 3

conjunção inicial e para pois: desse modo não só resulta mais satisfactória a estrutura sintáctica mas também sai reforçada a conformação paralelística das últimas duas estrofes. Atendendo essas considerações, a edição da composição seria a seguinte: I

1 3

II

4 6

III

7 9

IV

10 12

Ai madr’, o que bem queria foi-s’ ora daqui sa via: desejá-lo-ei! Foi-s’ [ém] o meu perjurado, e nom m’ envia mandado: desejá-lo-ei! Pois mandado nom m’ envia, busque-lho Santa Maria!: desejá-lo-ei! [Pois] nom m’ enviou mandado: de Deus lhi seja buscado!: desejá-lo-ei!

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