AS CARVOADAS DE GRALHAS - AS CULTURAS DO TRABALHO NO BARROSO

June 13, 2017 | Autor: Dina Fernandes | Categoria: Ethnography, Traditional Crafts, Documentary Photography, Traditional Agriculture
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As carvoadas de Gralhas As culturas do trabalho no Barroso

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As culturas do trabalho no Barroso

FICHA TÉCNICA

Projeto de investigação para intervenção museológica As culturas do trabalho no Barroso ENTIDADE RESPONSÁVEL PELO ESTUDO Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro

Centro de Estudos Transdisciplinares para o Desenvolvimento

Coordenação geral e científica de Xerardo Pereiro Textos e fotografias de Daniela Araújo Edicão de fotografias a p&b de Bruno Costa Design de Dina Fernandes e Paulo Reis Santos PARCEIROS DO PROJETO — CÂMARA MUNICIPAL DE MONTALEGRE E ECOMUSEU DE BARROSO

FINANCIAMENTO — ON2, CCDR-N E CÂMARA MUNICIPAL DE MONTALEGRE

Montalegre 2012

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As culturas do trabalho no Barroso

O Ecomuseu de Barroso A faculdade da memória é a mais valiosa herança com que Deus dotou o ser humano. Será possível imaginarmonos a viver sem ela? Como seria viver sem lembranças? O que aconteceria? Toda a nossa força intrínseca, toda a nossa vida consciente deixaria de existir; perdíamos parte da dimensão humana, ou seja, milhões de anos de experiência feita. Aqui se alicerça o conceito de património, na sua dimensão agregadora e de responsabilidade de preservação e valorização. Como se diz em Barroso: “O que recebemos, temos obrigação de deixar igual ou melhor…” Neste sentido, foi criado o Ecomuseu de Barroso que se caracteriza como um espaço aberto, um espaço da povoação, do ordenamento do território, da identidade da população, tendo em atenção os valores do presente, do passado e do futuro. Neste espaço, o visitante convertese em ator-participante. O Ecomuseu situa objetos no seu contexto, preserva conhecimentos técnicos e saberes locais, consciencializa e educa acerca dos valores do património cultural. Implica interpretar os diferentes espaços que compõem uma paisagem; permite desenvolver programas de participação popular e contribui para o desenvolvimento da comunidade. Este projeto de desenvolvimento sustentável tem dado continuidade ao trabalho de pesquisa sistemática, tarefa que permite inventariar a globalidade de património construído do território de Montalegre e Boticas, tendo em

vista a posterior salvaguarda e valorização dos espécimes selecionados pelo seu particular interesse patrimonial e divulgados nos pólos de Salto, Pitões, Tourém, Paredes do Rio e Vilar de Perdizes. A análise das construções associadas à conservação e à transformação dos produtos tem permitido um melhor conhecimento da arquitetura popular da região, nomeadamente dos canastros, dos moinhos, dos fornos, das fontes, dos pisões e dos lagares, entre outros edifícios de produção agrícola que contribuirão para o reencontro com a identidade cultural local. O Ecomuseu de Barroso é um espaço de memória vocacionado para o desenvolvimento, dando particular destaque ao Património Imaterial de que é prova este trabalho. Nenhum desenvolvimento poderá ser sustentável, num concelho com mais de oitocentos quilómetros quadrados, se a população local não reconhecer as riquezas do local onde vive, e se não começar a ter dividendos da valorização desses sítios a que alguns chamam património, enquanto outros apenas aí vêem “patrimonos”. Esta nova visão terá implicação no modo de vida da população e na sua forma de encarar o futuro. David Teixeira, Director do Ecomuseu de Barroso.

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O projeto de investigação para intervenção museológica As culturas do trabalho no Barroso, foi desenvolvido pelo Ecomuseu de Barroso em colaboração com a UTAD, através do CETRAD (www.cetrad.info), o Pólo da UTAD em Chaves e a antropóloga Daniela Araújo. A investigação, que se iniciou no mês de junho de 2011 e se prolongou até ao final do mês de março de 2012, teve a orientação científica do antropólogo Xerardo Pereiro – investigador efetivo do CETRAD e docente da UTAD em Chaves. Os objetivos da investigação centraram-se na análise das culturas do trabalho sobre o Barroso, articulando-se com as linhas de actuação do Ecomuseu de Barroso, uma instituição que tem contribuído, decisivamente, não apenas para “colocar o Barroso no mapa”, mas também para reverter, simbolicamente, a imagem e a realidade desta região “raiana” do Norte de Portugal. Mais importante, ainda, tem sido o papel do Ecomuseu de Barroso na reorganização e articulação das comunidades afirmando a sua cultura como um capital sociocultural importante e útil para viver e criar planos de vida nestas terras do interior. Entendemos por culturas de trabalho as que se geram nos diferentes processos de trabalho, nomeadamente aquelas que resultam da ocupação de diferentes posições nas relações sociais de produção. E o trabalho de Daniela Araújo tem sido minucioso, rigoroso e extremamente reflexivo e cuidado, fruto não de recolhas, mas de uma etnografia reflexiva de um intenso conviver humano com os seus protagonistas, nos seus quotidianos vivenciais mais familiares. É na observação dos e com os outros

que Daniela Araújo tem construído teorias antropológicas vividas pelos agentes sociais do Barroso. Desta forma, a investigação e os seus resultados ajudam-nos a a construir novos olhares sobre as novas ruralidades . Longe de ser um exercício de exotização ou primitivização, o trabalho de Daniela Araújo mostra o velho e o novo, as permanências e as transformações, as tradições e as inovações, as localidades e as globalidades, as pluriatividades e as especializações nas formas de trabalhar e produzir no Barroso. Aí reside a sua mais-valia, isto é, a rejeição de um ruralismo exoticista para posicionar-se na compreensão das lógicas, conhecimentos e saberes nativos, e o seu valor universalista e global. Pensamos que, com esta investigação e as suas aplicações, o visitante e o residente poderão criar mais facilmente quadros de referência interpretativos e de tradução intercultural que nos ajudem a compreender melhor os sentidos do viver humano. Xerardo Pereiro, Coordenação geral e científica.

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As carvoadas de Gralhas Na Serra da Lagoa, num tempo em que havia limites e em que as pessoas viviam debilitadas, homens e mulheres, rapazes e raparigas da aldeia de Gralhas faziam carvoadas às escondidas. Era um tempo, duro e sofrido, em que tinha de se trabalhar para o caldo ou para a merenda. A produção de carvão, mais frequente nos meses frios de inverno, permitia compor o débil orçamento das unidades familiares: 9|

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Mas a vida era assim, a gente não tinha de onde lhe viesse nada, tinha que comer. Valíamo-nos disso, da floresta, e depois a gente semeava a batatita, como agora, as couvinhas, cenoura, cebola. A gente aqui não passa fome, mas dantes passou-se muita, era uma sardinha para três. A terra dá tudo. (Fátima, 13-7-2011) As carvoadas fizeram-se, de modo mais sistemático, até à década de 1960, embora nos anos de 1970, já depois da Revolução de abril, ainda se tenha produzido carvão, mas já de forma esporádica. Havia quem fizesse carvão regularmente porque não tinha outra forma de se sustentar. Eram normalmente os jornaleiros que, no verão, se ocupavam dos trabalhos agrícolas nos terrenos dos outros e, no inverno, a par das carvoadas, guardavam o gado dos proprietários. Eu ia com a minha avó e com o meu tio. Eu e outras pessoas por aí. Porque era o nosso ganha pão e quando não andava ao carvão, andava à jeira por aqui e por ali. Ainda fizemos muito carvão. Infelizmente havia necessidade, era do que a gente vivia. (Maria, 22-7-2011)

O Sr. João Zofino, tio de D. Maria, acompanhava a mãe nas carvoadas, viúva desde que o filho tinha apenas 18 meses. Começou a fazê-lo com 15 anos e continuou até ir para a tropa aos 21 anos: Íamos mais ao carvão de inverno. De verão ia à jeira, ia para a floresta e havia uns lavradores que davam jeira, sachar batatas, botar o remédio às batatas, ajudar a arrancar. Era assim e assim se governou a vida. (João Zofino, 18-8-2011) Mas havia alturas em que o Sr. João Zofino preferia ir ao carvão na companhia de outros rapazes. Não que a mãe o libertasse de fazer carvoadas sob a sua supervisão. Contudo, as carvoadas feitas sem a tutela materna permitiam usar o dinheiro onde bem lhe aprouvesse: Íamos às vezes outros rapazes. Queríamos comprar umas botas ou calças de bombazine, não tínhamos dinheiro e íamos fazer uma carvoada. Íamos aqui à Espanha comprar. Havia pessoas que eram mesmo efetivos. Eu só ia de vez em quando. Às vezes se pudesse tirar 20 escudinhos, que era para minha despesa, um copinho de vinho. (João Zofino, 18-8-2011) Estas carvoadas esporádicas eram realizadas 11|

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mais frequentemente pelos jovens. Sozinhos ou em grupo, com um conhecimento mais ou menos sólido sobre todas as etapas do processo, usavam o dinheiro resultante da venda do carvão para aquisição de roupas ou para poderem ir a alguma festa da aldeia ou de aldeias vizinhas: Comecei a fazer carvoadas com 13, 14 anos Numa ocasião, que eu queria vestir uma roupinha à minha irmã, tinha de ganhar dinheiro que a minha mãe, coitada, não tinha para mo dar. E, então, fiz muito carvão e a minha irmã foi comigo vender. E depois ela já era uma mulherzinha e eu disse-lhe: Já tens que andar vestidinha como ando eu e quanto custará? Outra ocasião, uma amiga minha disse assim para mim: Ó Adília, vem aí a Senhora da Saúde e eu queria um vestido e a minha mãe não mo compra, tu podias ir à carvoada comigo. E eu digo-lhe assim: E tu sabes fazer carvão? Tu sabes arrancar torgos? E ela disse: Mas tu ensinas-me! Fiz carvão até aos 19 anos! (Adília, 18-8-2011)

A grande dificuldade na produção do carvão residia na sua interdição. Embora fosse permitido cortar as urzes, as ericáceas utilizadas para fazer o carvão, não estava autorizado o arranque das suas raízes, a parte da planta usada para fazer o carvão (figuras 1 e 2).

figuras 1 e 2 13|

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A interdição obrigava a uma engenharia de esforços para evitar ser-se apanhado pela autoridade quando se andava a arrancar as raízes e a queimá-las: Quem não tinha de comer tinha que andar sempre assim ao sobressalto. (Aida, 22-7-2011) Os guardas florestais e os rondistas, os homens do terreno que a guarda enviava para a serra para fazer a vigilância, vieram, após a florestação da zona, dificultar ainda mais o trabalho: Aqui era couto, era coutado. Já era um terreno que era nosso e misto, de Meixedo, de lá. Fazia parte do couto. Estava couto, uma coutada. O mato podia-se roçar, mas não podíamos arrancar os torgos. O mato para levar para as cortes, podiam, as raízes não podíamos arrancar. Depois que veio o tempo da floresta, havia os rondistas, antes não havia rondista. Havia a junta do povo e a polícia e depois esse cabo da polícia se visse andar alguém, vinha cá apanhar e multar, mas pela junta porque era a junta que mandava nisto. Eu tinha 18 anos e já havia esta floresta. O rondista não deixava arrancar, não deixava fazer a queimada do carvão. Onde vissem fumo iam logo lá. O rondista, ou o guarda, quando via o fumo, vinha ali e multava. Era mandado pela

floresta, o guarda não estava aqui, mas estava aí a casa floresta. (João Bengalas, 25-2-2012) De vez em quando aparecia o rondista e a gente fugia, escondia, com medo dele, porque nos multava e sabe como era. Eles não nos faziam assim grande mal, mas ainda assim alguns eram malandros, que nos roubavam o carvão, também não vão muito ricos, sei lá se ficavam com parte, se ficavam com tudo! Eram uns malandros. E pronto, aquilo era sujo, era assim, mas o dinheiro era bonito e era assim que a gente vivia. (Maria, 22-7-2011) O arranque das raízes era feito durante o dia utilizando-se os sacholos e as enxadas (figuras 3 e 4). Esta operação, dependendo da quantidade de carvão que se queria fazer, tanto podia demorar apenas algumas horas como prolongar-se por uma semana: Eu andava a fazer o carvão, mas havia muitos torgos, muitos torgos, e agora também os há, mas torgos muito grandes, como este banco, maiores. Chama-se o torgo do turgueirinho, só tem uma raiz, a gente virava aqui o sacholo, dava-lhe aqui com a crista do sacholo e ia metade para cada lado. Esses torgos eram muito bons de arrancar. (Adília, 18-8-2011) 15|

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figuras 3 e 4

Arrancar as raízes era, de todo o processo, a tarefa mais exigente em termos físicos. Com pesadíssimos sacholos rasgava-se a terra e retiravam-se as raízes (figura 5).

figura 5

Mesmo aos mais fortes custava o manejo dos sacholos. Tarefa imprescindível era a da limpeza dos torgos após serem arrancados: Os torgos eram arrancados e ficavam pela roçada adiante e depois andávamos à caça deles, voltávamos para apanhá-los, limpá-los…com a enxada ou batendo uns nos outros. (João Bengalas, 252-2012)

O lugar onde se queimavam os torgos raramente coincidia com aquele onde os mesmos haviam sido arrancados. A queimada tinha de se realizar em locais mais ermos para ser mais dificilmente detetada pelos rondistas ou pelos guardas florestais. Se o lugar da queimada ficava perto do lugar onde se tinham arrancado os torgos, carregavam-se os cestos às costas (figura 6).

figura 6 17|

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Se fosse para mais longe, utilizavam-se sacos de serapilheira que se colocavam no lombo dos burros: Carrar os torgos não era rápido…porque os burrinhos também não fugiam, tinha de vir com a calminha deles e sabe que os caminhos eram muito ruins. E tinham que ser duas pessoas para carregar o burro porque se não caía a saca para o chão. Íamos várias vezes. (Maria, 22-7-2011) O calçado pouco confortável dificultava ainda mais a tarefa de carregar os torgos para o lugar da queimada: Ainda por cima tinha uns socos daqueles socos antigos e aleijavam-me aqui e eu tirava os socos e carrava os torgos às costas, descalça, mas carrava-os para muito longe que não deixavam queimar assim à vontade e a gente tinha de carrar para onde estivesse escondido. (Aida, 22-7-2011) Por vezes, não era possível transportar as raízes logo após o seu arranque. Nesse caso, o trabalho era redobrado. Havia que levar as raízes para a aldeia, para não serem roubadas e, no dia seguinte, transportá-las novamente para o lugar da queimada.

As covas que se faziam para as carvoadas eram usadas uma e outra vez e por diferentes pessoas. Poupavam-se esforços e ganhava-se tempo: Não andávamos todos os dias a fazer buracas. Para fazer carvão, estava ali uma cova feita e depois carrávamos para adiante. Por que se andássemos aqui a fazer uma cova demorávamos muito tempo. Vinha outro e usava o buraco. Os buracos não eram nossos. (João Bengalas, 25-22012 e 26-2-2012) O tamanho da cova que se cavava dependia da quantidade de torgos que tivessem sido arrancados e, naturalmente, da quantidade de carvão que se pretendia obter. Se estivesse o tempo de chuva, e para impedir que a cova ficasse alagada, fazia-se um rego em redor da cova para escorrer a água: As covas não eram muito fundas, uns 40 centímetros. O diâmetro dependia da quantidade de torgos. Se fosse para quatro, cinco sacos, tinha de ser maior, se fosse para dois era mais pequeno. (João Zofino, 18-8-2011) Depois de feito o buraco, tinha que se encher a cova com os torgos. Este procedimento obe19|

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figura 7

figuras 8, 9, 10 e 11

decia a um saber fazer que permitia realizar uma queimada mais eficiente. Na base da cova colocava-se urze e carqueja para o lume pegar com mais facilidade (figura 7). Depois, colocavam-se alguns torgos e chegava-se o lume. Iam-se colocando mais torgos, urze e carqueja, à medida que os torgos de baixo começassem a transformar-se em carvão (figuras 8, 9, 10, 11, 12, 13 e 14).

figura 12 21|

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figura 13

figura 14 23|

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O processo podia demorar horas, dependendo dos torgos que havia para queimar:

figura 15

Urze e carqueja por baixo para acender os torgos. Íamos botando, ao começar a arder eles começam a descer e depois íamos botando conforme iam ardendo, íamos botando de volta até acabar, durava de manhã até à noite. Para tapar era já à noitinha. Levava o dia inteiro a encher e o lume a arder, para ficar o carvão já a arder. Durante a noite estava abafado. (João Bengalas, 25-2-2012) Aquilo tinha ainda que se lhe dissesse e encher a cova ainda demorava. A gente começava por baixo com poucochinho. Tínhamos de pôr a lenha miudinha no fundo para acender. Depois acendíamos e depois púnhamos os torgos maiores. (Maria, 22-7-2011) Quando o fogo já tivesse pegado a todos os torgos (figura 15) , começava-se a tapar a cova. Primeiro, cobriam-se as raízes com pedras lascadas que se iam colocando de fora para o centro (figuras 16, 17, 18 e 19): A gente arranjava umas lascas fininhas e tapava a toda a volta da cova. Havia umas lascas de pedra muito esbarranchadinhas, delgadinhas, a gente

figuras 16, 17, 18 e 19

arranjava aquelas lasquinhas e já estavam sempre prontas, aquela cova dava para muitas vezes. Era só meter. (Fátima, 13-7-2011) De seguida, arrancavam-se torrões de terra e, com a parte com vegetação voltada para baixo, tapavam-se as pedras (figuras 20, 21 e 22): Uns torrões que tivessem erva por fora ainda verde para pôr entre as pedras, para não ganhar ar, para não entrar ar nem água, nem nada. (Maria, 22-7-2011) Finalmente, com a enxada, puxava-se terra para acabar de cobrir a cova, para que não entrasse ar e o carvão não se queimasse (figura 23). figuras 20, 21 e 22

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figura 23

Havia, ainda, que benzer a cova, protegendo-a para que todo o trabalho não ficasse perdido. Com o cabo da enxada marcava-se uma cruz e afastava-se o diabo (figuras 24, 25 e 26): Agora só leva uma cruz, com o cabo da enxada. Era para o diabo não vir meter-se com ele. Antigamente, fazendo uma cruz ninguém entrava com ele. (João Bengalas, 25-2-2012) O tempo que os torgos demoravam a transformar-se em carvão dependia da quantidade de material contido na cova mas, normalmente, eram necessárias 24 horas para que o processo ficasse completo. Havia quem preferisse queimar o carvão durante o dia. Outros, arriscavam menos e optavam por fazê-lo a coberto da noite: figuras 24, 25 e 26

As queimadas eram feitas de noite, mas se fosse nos cantinhos da aldeia até se fazia de dia porque nem se sabia se era queimada de qualquer coisa, não faziam caso disso. Mas era mais à noitinha. (Maria, 22-7-2011) De facto, queimar os torgos constituía um dos momentos mais vulneráveis de todo o processo. O fumo provocado pela queimada despertava a atenção dos guardas florestais e dos rondistas e, nessa altura, todo o trabalho podia

ficar comprometido. Por vezes, quando se voltava ao lugar da queimada no dia seguinte já a cova tinha sido destruída pelas autoridades. Nem a cruz valia como proteção: Queimavam-se de noite e para o outro dia de manhã ia a gente e estava a cova toda escangalhada e ao carvão todo estendido pelo chão adiante. (Aida, 22-7-2011) Havia guardas e rondistas mais tolerantes e solidários com as necessidades das populações. Outros, mais rigorosos, pouca empatia tinham com os infratores: Era proibido e uma vez naquela serra de baixo, andávamos lá e foi lá um senhor, que era o rondista, mas a gente pediu-lhe pelas almas que não nos alagasse as covas, porque ele alagava as covas e o carvão estragava-se. A gente passava um martírio para arrancar os torguinhos e juntá-los, levava um trabalho medonho. Depois ele ia e alagava as covas. A gente pediu-lhe por tudo e ele lá nos deixou. Teve piedade. (Fátima, 13-7-2011) Ainda fui responder à mor do carvão, mas não deu em nada. Tinha 17 anos. Porque eu namorava com um rapaz e tínhamo-nos zangado e vínhamos embora de queimar o carvão e diz ele 27|

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assim: Não o haveis de trazer, cangalho! E eu respondi-lhe assim: Não, mas trago, caralho! E eu não sei, foi-nos acusar ao guarda! E depois no tribunal perguntaram-me como é que fui fazer o carvão, porque precisava, se queria vestir tinha de o ganhar que a minha mãe não tinha para mo dar. E depois deram-me pena suspensa, não sei se foi três ou quatro anos, mas pagar não paguei nadinha. Nadinha deste mundo. E foi assim a vida do carvão. (Adília, 18-8-2011) Transformados os torgos em carvão, no dia seguinte, havia que destapar a cova e esvaziá-la. Primeiro, com as enxadas, retirava-se a terra cuidadosamente (figura 27).

figura 27

Depois, levantavam-se os torrões (figuras 28 e 29) e, finalmente, as pedras (figuras 30 e 31). De seguida, começava-se a retirar o carvão com as mãos para não o escangalhar (figuras 32 e 33):

figuras 28 e 29

figuras 32 e 33

O carvão tinha de ir limpinho e tínhamos de limpar tudo, tirar a terra e toca a começar. (João Bengalas, 25-2-2012) 29|

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figuras 30 e 31

Por vezes, usava-se também um crivo para separar a terra que vinha junto com o carvão. Chamavam rojões a esses pedaços de carvão envolvidos em terra. Se, na cova, o carvão ainda ardesse, era necessário utilizar água para se conseguir colher o carvão e não queimar as mãos. Primeiro, o carvão era colhido para as cestas e, depois, despejado para os sacos de serapilheira (figuras 34 e 35):

figuras 34 e 35

A gente queimava-se para o apanhar. Colhia-se à mão para dentro das cestas e depois despejava-se nas sacas, como quem enche de batatas. (Maria, 22-7-2011) Era um trabalho que tudo sujava, corpo e roupas, e denunciava, também, a necessidade de quem tinha de o fazer: A gente chegava a casa toda enfarruscadinha, as roupas todas sujas, se não houvesse água pelo caminho só se dava água em casa. Mas a gente lavava a roupinha, mudava-se e já não parecia que a gente vinha do carvão. Lavava a cara e acabou, éramos umas meninas como as outras. Era a roupa que a gente tinha. Quando Deus queria lavávamo-nos à noite para vestir de manhã, não é como agora que já nem sei o que hei-de vestir. (Maria, 22-7-2011)

Parecia um larápio. Aquele pó. Havia cá uma senhora que dizia para mim: Ó minha filha tu já tens os olhos da cor do carvão! E eu respondi assim: E são bens bonitos! (Adília, 18-8-2011) As sacas, depois de cheias, eram tapadas com carqueja para não verterem o carvão e eram atadas com um baraço em forma de cruz (figura 36): Levava carvão até aqui e depois levava carqueja por cima para não cair o carvão. O baraço atravessava aqui. Era assim, se não, o carvão caía. Depois punha-se esta carqueja na coroa. Se fechasse a saca levava menos carvão e depois lá em Chaves ainda metiam a mão para ver se levavam muita carqueja ou pouca. Tínhamos de os enganar de qualquer maneira! Se levasse muita carqueja elas viam e elas queriam ver o carvão. Só uma carqueja em cima. (João Bengalas, 25-2-2012)

figura36

Carregavam-se os burros e levava-se o carvão para a aldeia. Se não havia burros, carregavam-se as sacas às costas. Depois, quando houvesse vagar, ia-se a Chaves com os burros carregados fazer a venda (figuras 37 e 38). As viagens a Chaves, num tempo em que os fogões eram a carvão, eram mais frequentes no inverno pois no tempo frio gastava-se mais combustível. 31|

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figura37

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figura38

Havia quem saísse de Gralhas de madrugada para conseguir chegar a Chaves ainda pela manhã. O caminho era longo, mais de quatro horas. Farnel, levava-se sempre para não gastar dinheiro na viagem. Diziam que os burros já conheciam o caminho de cor, um caminho de terra batida que dificultava o passo das pessoas calçadas com socos de madeira que magoavam os pés: Demorávamos mais de quatro horas, que os burros caminhavam devagar, eu era rapaz novo e já ia cansado. E iam pessoas mais antigas. (João Zofino, 18-8-2011) Os que partiam de madrugada voltavam para a aldeia ainda no mesmo dia. Outros preferiam ir para Chaves ao início da manhã. Nesse caso, adiava-se a volta para o dia seguinte. De inverno, pelos dias mais pequenos, era mais comum ir-se num dia e voltar-se no outro. Normalmente, juntavam-se várias pessoas para ir vender o carvão a Chaves. Quem não tinha burros, ou pedia emprestado ou tinha de alugar os animais. Maria pagava 7,50 escudos por cabeça. Cada burro levava duas sacas e cada saca chegava a pesar 40 quilos. A carga incluía, ainda, a saca do meio, uma saca de seis a sete quilos:

Quando víssemos que tínhamos duas ou três carguinhas, íamos vender a Chaves. Uma carga eram duas sacas. Se a gente carregasse dois ou três burrinhos dava mais um bocadinho de dinheiro. (Maria, 22-7-2011) No centro da cidade, no Largo Maia Rita junto ao posto da Shell, entretanto desaparecido, existia uma caserna onde se prendiam os animais e onde se descansava ou pernoitava: Dávamos cinco tostões à senhora para pagar a luz, onde ficávamos, para a luz ficar acesa toda a noite. (Maria, 22-7-2011) Por vezes, optava-se por vender o carvão a carvoarias que depois o revendiam: Depois vendíamos às carvoarias e depois vendiam repartido. Nós vendíamos avulso e depois elas vendiam ao quilo. Era ao pé da Shell na coroa da rua de Santo António no fundo do Jardim do Bacalhau, ali para o largo do Anjo. (João Bengalas, 25-2-2012) Era, contudo, mais frequente vender diretamente às donas de casa. O regateio era prática habitual. Por 20 a 50 escudos conseguia-se vender a carga de duas sacas. 35|

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A carqueja que cobria cada uma das sacas era um extra que servia às freguesas para acender o fogão: Ia a Chaves, punha-me a cavalo do burro, ia a cavalo no meio da carga e depois ia por aí abaixo. Quanto custa a carga? Sessenta escudos! Dou-lhe quarenta! Ai não! Mais abaixo: Quanto custa a carga? Cinquenta! Já tinha que lhe tirar mais a ver se vendia e depois lá vendia. 50 escudos as duas sacas. (Bento, 25-2-2012) Já tínhamos as freguesas. Vendíamos para as senhoras que cozinhavam. Tinham aqueles fogões grandes a carvão, cozinheiras como eu lhe chamava, ainda tive uma dessas. Não era nada para revenda. Vendíamos às sacas e havia pessoas que ficavam com duas. As duas sacas nem davam 20 escudos. Nem 20 escudos eu fazia nas quatro sacas que levava. Aquilo era uma miséria! (Maria, 22-7-2011) Era frequente as freguesas indagarem da qualidade do carvão. Aquele que esperrinchava, ou espirrava, era o carvão que tinha sido molhado para poder ser colhido sem queimar as mãos: Vinham as senhoras à janela: Ó minha senhora, o carvão é do que esperrincha? É de urze? (Fátima, 13-72011)

Com o dinheiro da venda do carvão comprava-se o que fazia falta. As mulheres e raparigas compravam roupas, sabão, arroz, massa, açúcar, aguardente, bacalhau, azeite: Aqui em cima não havia nada, comprava-se tudo o que se podia. (Maria, 22-7-2011) Era assim a nossa vida. Comprava o tecido que não havia blusas feitas, mas comprava-se o pano e mandava-se fazer na costureira, eram costureiras que faziam, faziam blusas. Fazíamos aquela roupinha e já andávamos asseadas. Era a chita, era uma chita, o metro era cinco escudos e comprava dois metros e já fazia a blusa. (Celeste, 25-22012) Já os rapazes e os homens aproveitavam as idas a Chaves para uma visita a uma das tabernas de referência ou mesmo para incursões aos prostíbulos da cidade: Mas divertíamo-nos. No Faustino, só havia tonéis de vinho e havia lá um gordo que já nos conhecia e punha-nos um copinho de jeropiga e não nos levava dinheiro. (João Zofino, 18-8-2011) O saquinho do meio era dez escudos, mas aqueles dez escudos já não vinham para Gralhas, ia 37|

As culturas do trabalho no Barroso

às Janelas Verdes, na Rua Direita! Tinha que lá ir, 17, 18 anos! Elas é que eram marotas que me levavam a massa, elas é que me levavam a massa, dez pauzitos, ai homem! As duas sacas ficavam livres, esse vinha para a velhota, para entregar, agora aqueles 10 escudinhos, esses não! Ia primeiro com os mais velhos. Queres vir? Não posso gastar o dinheiro porque depois a velhota pergunta pelas contas. (Bento, 25-2-2012) O caminho de volta a Gralhas era feito a cavalo nos burros. Os mais jovens, por vezes, até arriscavam fazer corridas: Vínhamos de Chaves do carvão e ele tinha um burro muito grande, muito bom, grande e eu tinha um burro preto, pequeno. Chegámos a Solveira e para o que nos deu: Ó Adília, queres uma corrida daqui a Gralhas? E eu digo-lhe: É já! O meu burro só era por metade do dele, pois nunca deixou o outro burro passar à frente, nunca! Se via que o outro burro ia para a frente, o meu metia-se à frente e mordia-o para trás! (Adília, 18-8-2011) Embora as carvoadas consubstanciem um tempo de grandes carências materiais, a memória dos habitantes mais velhos da aldeia de Gralhas está ainda ancorada a esta prática.

À distância de algumas décadas, rememoram-se, hoje, os tempos difíceis em que os mais pobres dependiam do carvão para suprir as necessidades mais básicas. Sem saudades (figura 39).

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