As classes baixas e sua relação com ideologias de esquerda (análise sobre o lulismo)

October 16, 2017 | Autor: Andrezza Richter | Categoria: Esquerda, Lulismo
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As classes baixas e sua relação com ideologias de esquerda

Andrezza Mieko Richter Lourenção 2014

O presente trabalho visa transcender a simples análise do fenômeno do lulismo que se inicia no governo de Lula no PT a partir de 2002 e se prolonga para além de seus dois mandatos - para poder entender os reflexos que ele acarretou na sociedade brasileira. Basicamente, tem-se como objetivo apresentar características importantes e transformações ocorridas ao longo do período da redemocratização do Brasil, usando como recorte as classes baixas e suas relações com o Partido dos Trabalhadores e a esquerda no geral. O embasamento teórico para este trabalho científico é o livro do cientista político brasileiro André Singer, “Os Sentidos do Lulismo”, além de teorias que dizem respeito à produção de verdades, presentes principalmente no livro “Do governo dos vivos” do filósofo francês Michel Foucault e as relações estabelecidas sob o Estado Burguês na perspectiva de Décio Saes.

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Quem tem medo da esquerda?

Por meio da leitura e de uma análise crítica do livro de André Singer, verifica-se um fato crucial e contraditório que persiste até a atualidade da sociedade brasileira (e que, de todo modo, não se limita apenas a ela): o fato de que a maior parte das classes baixas se alinha à ideologia de direita. Essa constatação é apontada por Singer levando em conta as intenções de voto em eleições presidenciais desde o período pós-ditatorial até o início do fenômeno do lulismo (2002), quando o Partido dos Trabalhadores possuía suas bases sociais entre as camadas médias e o apoio ao partido se dava de forma progressiva junto ao grau de escolaridade. Ou seja, o Partido dos Trabalhadores em sua primeira fase, com sua proposta de sociedade sem exploradores e explorados, que seguia uma ideologia socialista, tinha maior apoio entre as classes médias e eleitores com maior grau de escolaridade. Enquanto isso, aqueles que teriam suas situações social e econômica transformadas e que seriam, de fato, atendidos pelas políticas do PT – o proletariado e subproletariado – mantiveram uma postura de reação às tais políticas progressistas, assumindo assim uma postura de direita. Essa tendência dos mais pobres em pender para a direita é explicada por André Singer pelo fato de haver estereótipos e mentiras sobre a esquerda, propagados veementemente no senso comum. É criada uma oposição simples e grosseira onde direita representa o que é direito e a esquerda contém o que é errado. A direita, pois, é representada no senso comum como o que é certo, o que está na ordem. É também onde se apresenta o sujeito trabalhador, o homem de bem, onde se assegura a família tradicional. A esquerda, em contraposição, contesta isso e põe em cheque a ordem vigente, apresentando um caráter demoníaco e destruidor de lares.

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Identificada como opção que punha a ordem em risco, a esquerda era preterida em benefício de solução pelo alto, de uma autoridade constituída que pudesse proteger os mais pobres sem ameaças de instabilidade. (SINGER, 2012, p. 58)

Um ponto importante a ser levantado acerca desse fenômeno é a própria produção das verdades dominantes, de como as hierarquias e o poder são encarados como naturais e intrínsecos à vida em sociedade. Michel Foucault aborda o tema de produção da verdade e traz à luz o fato de que toda dominação só se sustenta quando atrelada a verdades intrínsecas a essa mesma dominação, e que possuam capacidade de legitimar e ratificá-la. E que

(...) não pode haver governo possível sem que aquele que governa não indexe sua ação, sua escolha, sua decisão, a um conjunto de conhecimentos verdadeiros (...) (FOUCAULT, 2011 p. 54)

O filósofo usa o exemplo de Sétimo Severo, um imperador romano cujo poder foi alcançado por meios violentos, que ordenou que pintassem a representação do céu de seu nascimento no teto de seu palácio. A representação do céu de seu nascimento possuía o poder de mostrar como seu reino foi fundado nos astros e sua fortuna indicava que ele estava destinado àquela posição hierárquica desde o passado, estendendo-se ao presente e ao futuro. Através da astrologia e do simbolismo de representação do passado e do futuro, ele pôde impor uma verdade e se manter no poder. Ele procurou “fundar em um céu de necessidades mágicoreligiosas uma soberania que o direito, ele também mágico e religioso de certo modo, era incapaz de reconhecer.” (FOUCAULT, 2011 p. 42) Ou seja, produziu uma nova verdade para contestar outra, de modo a ultrapassá-la. Sendo assim, a verdade é um tipo de saber interno e útil ao poder, é um conjunto de procedimentos capazes de atualizar e colocar interesses como verdadeiros, por 3

meio da oposição ao falso que foi eliminado ou por meios de revelação. A verdade justifica o poder. Voltando ao nosso tema base, que é a ideologia conservadora de direita nas classes baixas brasileiras, constata-se o diálogo com Foucault no momento em que essa visão distorcida da esquerda e essa aceitação da opressão como algo dado são trazidas à luz como sendo verdades produzidas pelos detentores do poder. A verdade dominante, pois, era a que apontava para a esquerda como maléfica. Esse combate à esquerda e, mais fortemente, aos anticapitalistas (comunistas, socialistas, anarquistas) no Brasil, pode ser contextualizado historicamente. A despeito disso, o discurso que propaga o medo à ameaça comunista foi utilizado nos dois principais golpes políticos ocorridos no século XX no país: o de Getúlio Vargas em 1937, e o dos militares em 1964; além de ser a justificativa para reprimir movimentos sindicais da República Velha e extermínios em focos combativos como Canudos, Araguaia, luta campesina, etc. Sendo difundido esse terror, as camadas menos escolarizadas e carentes de fontes seguras

de

informação

se

apropriam

do

discurso

anticomunista

sem

necessariamente conhecer suas raízes e seus fundamentos.

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Inversão ideológica das classes baixas ou do PT?

É importante pontuar que o PT vivenciou, ao longo de sua trajetória, duas fases distintas que modelaram e remodelaram os princípios e objetivos do partido. No início e em sua consolidação como organização partidária, atuava ativamente nas lutas sindicais, nas CEBs, nos movimentos estudantis, além de possuir forte caráter resistente e anticapitalista. De fato, fazia parte da esquerda que não aceitava se submeter à logica do mercado e da própria disputa eleitoral: era um partido combativo. A partir de 2002, atravessou fortes mudanças, passando a se apropriar de um discurso mais conservador, com promessas de manter a ordem vigente e garantias de estabilidade aos detentores do poder econômico. Sendo assim, o partido só conseguiu desmistificar as falácias propagadas pelas oposições em relação à ameaça comunista e o temor da esquerda, em 2002, após apresentar sua face conservadora e apaziguadora. Para alcançar o poder nas eleições de 2002 - referentes ao primeiro mandato de Lula -, o PT contava com as classes médias e escolarizadas em suas bases sociais. Porém, verifica-se que o quadro é alterado no segundo mandato, já nas eleições de 2006. Após a crise gerada pelo escândalo do mensalão, as classes médias se ressentiram e se voltaram contra o PT. Mas esse fato se restringiu apenas a essa parcela da população e não atingiu as classes baixas que, ao contrário das eleições de 2002, passaram a votar em Lula por conta de suas políticas sociais voltadas à redução da miséria e aumento do poder de compra da população, que ocorreram dentro da ordem estabelecida. Não houve revolução, os mais pobres viram seu poder de compra aumentado e a população mais desconfiada passou a sentir segurança em relação ao PT.

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O partido, de certa forma incorporou projetos e propostas que se alinham, mas ao mesmo tempo se distanciam dos ideais de esquerda. O PT foi (e ainda é) considerado o partido dos pobres, devido à sua ampla política social de combate à miséria. Mas, por outro lado, não inclui mais em seu programa a redução ou extinção das desigualdades sociais. Suas políticas sociais giram em torno do empoderamento da população mais pobre no que se refere ao poder de compra. Seus programas sociais visam criar uma população consumidora que obtém acesso a uma maior quantidade de bens. As bases da redução da miséria foram aspectos de um reformismo fraco que, segundo Singer, caminha lentamente à redução da desigualdade. São estes: - programas de assistência social; - expansão de crédito; - valorização e aumento real do salário mínimo; - geração de empregos formais.

Semelhante ao New Deal norte-americano, o objetivo era combater a pobreza monetária absoluta e fortalecer um Estado de bem-estar social, de modo a não tocar nos privilégios das classes dominante.

(...) está em curso uma gradual diminuição da desigualdade no Brasil. Mas, se a renda dos assalariados (...) está crescendo em ritmo suficientemente acelerado para eliminar a pobreza monetária até o fim da década de 2010, como se explica que a desigualdade caia tão devagar? Uma razão possível é que os ricos também estejam ficando mais ricos. (SINGER, 2012, p.141)

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Por conseguinte, percebe-se que há resultados positivos em relação à pobreza, mas ainda muito fracos, senão ruins em relação à igualdade. Este discurso governista de combate à pobreza extrema acaba por afirmar ainda mais veementemente a existência de classes na sociedade, pois a bandeira de luta e o objetivo do lulismo não é o fim da sociedade de classes, mas sim a emergência de uma sociedade de classe média. Acredito ser plausível dizer que, de certa forma, há uma semelhança com o populismo de Getúlio Vargas no que se refere o desejo de governar e representar todas as classes e interesses da sociedade brasileira. Os governos de Lula (e de Dilma atualmente) buscaram o equilíbrio entre capital e trabalho para que garantir o próprio capital estatal para continuidade das políticas públicas de assistência social dentro da ordem. A semelhança entre esses dois governantes se limita a essa relação de cooperação e “coalizão produtivista” entre patrões e empregados. Não é possível afirmar que o governo de Lula foi um governo populista, enquanto, no limite, tenha sido apenas um governo popular. É importante não perder de vista também a forma que o Estado burguês utiliza para se relacionar e lidar com o conflito de classes. Segundo o cientista político Décio Saes, o Estado burguês objetiva amortecer a luta de classes e frustrar a revolução. O modelo de sociedade onde o Estado burguês detém o controle sobre as questões de exploração é onde a organização e a solidariedade autônoma dos próprios explorados são boicotadas. Este modelo e o caráter apaziguador do estado é um dos traços mais fortes da política do lulismo.

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Conclusão

Após analisar, de um lado, a produção da verdade dominante no que se refere ao medo da esquerda, e de outro lado, as mudanças e transformações em que passou o PT, constata-se que as classes mais baixas só sentiram confiança e migraram para a “esquerda” a partir de 2002 porque esta esquerda – o PT, no caso – não podia mais ser considerada uma ameaça ao sistema e ordem vigentes. Esta esquerda, pois, não era mais tão esquerda assim após a apropriação do diálogo com o neoliberalismo e a incorporação do caráter conservador e mantenedor da ordem. O medo da esquerda combativa ainda existe obstinada e inquestionavelmente e é parte indissolúvel do inconsciente coletivo brasileiro. O discurso de necessidade de ordem é difundido e tem-se medo dos comunistas simplesmente porque são comunistas – ou anarquistas pelo simples ser. As classes dominadas adquirem, no movimento de produção da verdade, o discurso da classe dominante de proteção da propriedade privada, da família e das tradições, como se estas classes fossem ou que pudessem ser beneficiadas por esses privilégios em algum momento. Assim, o PT conseguiu emergir da esquerda porque deixou parte de suas raízes para trás. O partido só pôde se emancipar do preconceito das massas porque mudou o próprio posicionamento e reduziu o teor combativo de seu projeto. Esse discurso de negação dos pensamentos de esquerda, por mais que tenha sido descontruído pelo PT quando alcançou o poder institucional, ainda se mantém na sociedade em relação às resistências ainda “marginais”. O fato é que as ideologias anticapitalistas (comunismo/anarquismo) ainda são vistas com medo pela parte da população que mais deveria dialogar com essas lutas. E esse fenômeno se deve pela verdade que nega o que estiver fora da ordem – verdade essa construída e difundida para assegurar o poder e essa mesma ordem – e, por conseguinte, só terá fim com novas verdades ou pela destruição das verdades 8

e dos poderes na sociedade em que vivemos. A classe explorada vê-se atrelada e estritamente dependente à outra, a classe exploradora, e isso perdurará até a tomada de consciência de classe e das explorações.

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Referências

FOUCAULT, Michel. Do governo dos vivos. Rio de Janeiro: CSS/Achiamé, 2011. SAES, Décio. Democracia. São Paulo: Ática, 1987. SINGER, André. Os Sentidos do Lulismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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