AS COÉFORAS DE ÉSQUILO: ERRO TRÁGICO E CULPA - SÉCULOS VI-V A.E.C.

Share Embed


Descrição do Produto

Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ Faculdade de Letras Disciplina: Teoria Literária II (LEL110) Professor(a): Ricardo Pinto de Souza Estudante: Jônatas Ferreira de Lima Souza (DRE: 115044769)

AS CÓEFORAS DE ÉSQUILO: ERRO TRÁGICO E CULPA

Um pensamento comum em nossos dias é reforçar a ideia de que somos humanos e cometemos erros. O que fazer após o erro é o grande dilema social. A sociedade parece admitir que o erro é um elemento inato ao ser humano, logo, tem-se a necessidade de lidar com eles, com esses erros. Errar, se é humano, certamente incide no meio particular assim como no meio público. A divergência está exatamente no momento em que se tenta corrigir, isto é, punir aquele que errou, que está errando ou mesmo, aquele que vai errar. Cada cultura que conhecemos têm o seu próprio modo de lidar com o “errador”. Errador, não há em nossa língua portuguesa. Nós temos substantivos/adjetivos para serem aplicados, num sentido mais amplo, em dois âmbitos sociais: na religião e no direito civil. Aos religiosos é o pecador e ao direito é o criminoso. Há culturas que fazem distinção entre interpretar um erro como pecado (no caso de uma lei religiosa) ou como criminoso (no âmbito jurídico). Sociedades teocratas julgarão o indivíduo segundo a lei da crença, uma lei estabelecida pelo divino aos homens; por sua vez, como é mais comum ao nosso caso brasileiro (sociedade laica), estabelecemos um julgamento segundo um código penal civil, que previamente foi concordado entre os homens. Diante dessas e de outras complexidades que não pretendemos aprofundar aqui, como por exemplo, também a questão da autovigilância e da autopunição, é possível afirmarmos que, nas sociedades antes do advento do cristianismo e da democracia moderna, na Europa, principalmente, lidar com aquele que erra, poderia ser uma situação ainda mais complexa. Nesse sentido, neste trabalho, vamos observar um pouco dessa complexidade abstraída da obra trágica Oresteia (ou Oréstia) de Ésquilo (525-455 A.E.C.), mais especificamente nas Coéforas. À frente, retomaremos pouco mais da obra. A questão que estamos iniciando é o erro, depois seguiremos para o outro elemento, que é a culpa. Falando em tragédia, não se trata puramente de um erro qualquer, mas de um erro trágico, isto é, inerente a uma obra trágica grega Ática dos séculos VI-V A.E.C.

2

Para tanto, pretendemos recorrer a dois teóricos que lidam com esse elemento da cultura da Grécia Ática antiga: Albin Lesky e Jean-Pierre Vernant. Para Lesky (1896-1981) observaremos a seção “Do problema do trágico” da obra “A tragédia grega”; para Vernant (1914-2007) destacaremos a seção 3 “Esboços da vontade na tragédia grega” da obra “Mito e Tragédia na Grécia Antiga”.

Erro trágico

Como havíamos mencionado, não trataremos do erro puramente, mas do erro trágico, o erro característico da tragédia ática. O erro trágico (ou falha trágica) é um dos elementos discutidos por Aristóteles em sua Poética, capítulo 13. Lá, o autor grego chama esse erro, em suma, de ‘αμαρτία. Qual seria a distinção desse erro na tragédia? Não é um erro cometido pelos homens normais, mas trata-se de um erro cometido pelos heróis trágicos, pessoas ligeiramente superiores a nós, como diria Aristóteles, submetidos ao destino dos deuses e às incertezas do futuro. Esse herói, nessa situação desconcertante, cometerá o erro trágico. Segundo Lesky, esse erro pode ocorrer

[...] no sentido da incapacidade humana de reconhecer aquilo que é correto e obter uma orientação segura. Assim, o homem que não naufraga em uma falha moral vai a pique porque, dentro dos limites de sua natureza humana, não está à altura de determinadas tarefas e situações.1

Esse herói, que mencionamos ser ligeiramente melhor que nós, Lesky chama de “médio”, isto é, alguém de caráter médio2, pouco acima de nós, espectadores, pois heróis em si, possuem uma ascendência divina de pai, de mãe ou de ambos. Por exemplo, Orestes filho de Agamêmnon, filho de Atreu, filho de Pélops, filho de Tântalo, filho de Zeus; pelo lado materno, filho de Clitemnestra, filha de Tíndaro, filho de Perieres, filho de Amiclas, filho de Lacedemon, filho de Zeus. Esses heróis eram homens e mulheres da alta aristocracia de suas regiões, eram influentes e seus nomes eram cantados pelo ’αοιδός (cantador, poeta) e pelo ραψωδός (rapsodo, cantor), que espalhavam, musicalmente, os feitos memoráveis dos membros de suas famílias.

1 2

LESKY, 1996, p. 29-30. Idem, ibid, p. 43.

3

Por tanto, esse “acidente” no destino do herói na tragédia, ocorre para que o espectador sinta algo, a saber: terror e piedade, e realize a catarse (expurgando tais sentimentos de si – veremos isso mais à frente), tal herói não pode ser “superior”, pois não haveria tanta possibilidade de o espectador sentir algo por ele, uma vez que são de cotidianos igualmente distantes. Essas narrativas mais épicas, ficam a cargo das epopeias com os grandes feitos heroicos rememoráveis, cantados pelo poeta. Acerca, então, da tragédia, Lesky complementa nosso estudo, mencionando que

[...] o homem que é vítima da queda trágica não pode ser, segundo Aristóteles, nem moralmente perfeito nem reprovável (é como se, de antemão, fossem rejeitados o herói virtuoso [...]), mas ao contrário, precisa ter no essencial nossos traços, devendo mesmo ser um pouco melhor do que o somos em média. Daí resulta a exigência do bastante citado caráter ‘médio’ [...].3

Reiteramos, essa necessidade é para que o espectador da tragédia experimente “algo” ao assistir à peça, uma vez que sentirá proximidade verossímil com a situação em que se encontrará o herói. Esse herói, descendente dos deuses, destinado pelos deuses, será exposto a uma situação em que será incapaz de perceber a ação mais correta a ser tomada. A previsão de uma obra trágica é que, certamente, o herói cometerá o tão esperado erro trágico, não havendo a possibilidade de haver outra escolha, já que é seu destino e, muitas vezes, também foi o destino de seus antepassados. Podemos notar, dessa forma, certa “herança trágica” contida na genealogia desses heróis. Contudo, essa também não é uma fórmula de toda certa, acerca de uma peça trágica ática, pois outros elementos podem servir de guia para a narrativa, de motor, para mover as ações do herói. No decorrer deste texto, vamos trazer mais elementos que exemplifiquem essa questão do herói e suas ações na tragédia, utilizando as Coéforas. No geral, o erro cometido por um herói, ele não trará apenas uma contaminação à si próprio, mas aos que o rodeiam, podendo ganhar proporções de caráter catastrófico e assim incorrer uma desgraça não só local, mas para todo um reino e seus súditos. Devemos notar que a falha, esse erro do herói, não ocorre no âmbito da moralidade, porque ele é mau ou bom, mas num âmbito do destino, um Destino como ente, um “jogo” dos deuses. Assim complementa Lesky acerca disso:

Entretanto, para nós, permanece o problema de saber o que queria dizer Aristóteles com ‘falha’ trágica, se rejeita tão resolutamente a interpretação moral do conceito. Como concepção imediata resulta que devemos entender 3

Op. cit., loc. cit.

4

com isso a falha intelectual do que é correto, uma falta de compreensão humana em meio dessa confusão em que se situa nossa vida.4

Nesse sentido, é assim que a tragédia pretende aproximar esse herói e sua queda, sua mudança de sorte durante a narrativa, do espectador, já que ela possuirá elementos verossimilhantes de um cotidiano humano, não exigindo deste uma condição, isto é, ser bom ou vil. O herói, ele se enganou em sua escolha, é um erro intelectual, é um erro destinado pela sua impotência de não enxergar o correto, de não tomar a melhor decisão. Trata-se de uma falta pela sua arrogância, prepotência ou até mesmo, como já havíamos mencionado, por ser destinado a pagar pelos erros dos seus antepassados. Nessa lógica, Vernant conceitua o erro trágico, defendendo que se trata de

[...] uma doença mental, o criminoso é a presa de um delírio, é um homem que perdeu o senso, um demens, hamartínoos. Essa loucura do erro ou, para dar-lhe seus nomes gregos, essa átē, essa Erinýs assedia o indivíduo a partir de seu interior; penetra-o como uma força religiosa maléfica. Mas, mesmo identificando-se de certo modo com ele, ela é ao mesmo tempo exterior a ele e o ultrapassa. Contagiosa, a polução do crime, indo além dos indivíduos, prende-se à sua linhagem, ao círculo de seus parentes; pode atingir toda uma cidade, pode poluir todo um território. Uma mesma potência de desgraça, no criminoso e fora dele, encarna o crime, seus mais longínquos princípios, suas últimas consequências, o castigo que ressurge ao longo de gerações sucessivas.5

A partir do conceito de Vernant, percebemos que o erro trágico é algo que está, em princípio, fora do herói, poderíamos dizer que pode estar fora de sua ciência, mas que, por vias ou motivos desconhecidos ao herói, chegará até ele para seduzi-lo. O erro (’άτα) penetra na alma do herói, no seu espírito, na sua mente, contagia seus atos, suas decisões, ele certamente acredita que é fruto de sua atividade mental, mas, como menciona Vernant, é “uma força religiosa maléfica” que atua de dentro para fora. Essa força, ao sair do herói, como já havíamos mencionado, contamina a sua linhagem, os seus mais próximos entes, seus amigos ou conhecidos, polui a sua cidade, desgraça o seu território, ofende aos homens e aos deuses.

4 5

Idem, ibid, p. 44. VERNANT; VIDAL-NAQUET, 1999, p. 36.

5

Culpa

Podemos, por tanto, nos questionar acerca do segundo elemento que estamos propondo ao trabalho: a culpa. Há culpa nas ações do herói trágico? Em nossa sociedade, quem é culpado? Alguém que não cumpre uma norma, comete um erro, sendo punido. Esse alguém é punido por haver sido considerado culpado do erro. O que é “erro”, como já percebemos, varia de cultura para cultura e de época para época. Para ser culpado (no sentido punitivo), o ato cometido precisa ser compreendido, socialmente, como algo abominável. Em nossa sociedade, existem muitos atos que são entendidos como erros universais, repudiados, isto é, condenados pela maioria das nações atuais em suas leis. Estupro, assassinato ou mesmo racismo e intolerância religiosa, recebem atenção especial em boa parte dos códigos penais dos países modernos, incluindo obviamente o Brasil. Mas sendo o erro trágico um tanto externo ao herói, seria este culpado pelos seus atos? Sua falha, como mencionaram os autores, não é moral, uma vez que tal erro não incide em homens porque são de boa ou má índole. O motivo do erro é externo. Há um contexto por trás do erro trágico. Será que isso deve ser levado em consideração ao declarar o herói culpado ou não pelas consequências do erro? Pelo que, então, o herói será culpado? Pode ser, como já mostramos, que o motor do herói na narrativa trágica, não seja o erro, mas outro fator. Sendo outro fator, o culpado poderia expiar por seu ato. Nesse caso da possibilidade de expiação, pensamos que deriva de uma culpa moral (talvez lamentar ou sentir desgosto pelo seu mau comportamento e suas más ações, diante dos homens e dos deuses). Temos aqui uma questão ainda notoriamente complexa e ainda tema de muita discussão entre os pesquisadores. Albin Lesky também não acreditou que fosse um tema de fácil entendimento: A coisa não é tão simples quanto crer que a ‘αμαρτία, como erro sem culpa, se contraponha ao crime condenável moralmente; devemos antes supor, seguindo o pensamento antigo, que aceitar uma culpa que subjetivamente não é imputável e que no entanto objetivamente existe com toda a gravidade é odioso aos homens e aos deuses, podendo empestar um país inteiro. [...] Gostaríamos, antes, de acentuar desde já, e com vista especial a Ésquilo, que, dentro da tragédia grega, pode aparecer também a culpa moral em nosso sentido, como elemento motor.6

Segundo Lesky, o erro trágico será notado socialmente, sendo assim, passível de julgamento por parte do espectador. Sendo um erro visível, terá suas consequências avaliadas não só pelos homens, mas também pelos deuses. Então, para Lesky, o herói seria muito 6

LESKY, ibid, p. 44-45.

6

provavelmente julgado pelos seus atos “objetivos” em detrimento de que foi induzido ao erro “subjetivamente” por um elemento externo a si. Levando em conta as exceções, o herói poderia muito bem clamar por sua imparcialidade no erro, pois estava “possuído” por uma entidade que lhe foge ao controle. Uma das principais dificuldades acerca do entendimento do ser ou não culpa entre os antigos gregos, é essa questão do herói argumentar sobre essa força externa que o insere no mal7. Até que ponto seria o erro a “vontade” do herói? Essa é uma importante questão elencada por Jean-Pierre Vernant:

[...] A. Rivier emprega o termo vontade [...] para marcar bem o que o herói esquiliano, mesmo privado de escolha em sua decisão não é nem um pouco passivo. A dependência em relação ao divino não submete o homem de uma maneira mecânica como um efeito à sua causa. [...] Decisão sem escolha, responsabilidade independente das intenções, tais seriam [...], as formas da vontade entre os gregos. Todo o problema é saber o que os próprios gregos entendiam por escolha e ausência de escolha, por responsabilidade com ou sem intensão. Tanto quanto a noção de vontade, nossas noções de escolha e de livre escolha, de responsabilidade e de intenção não são diretamente aplicáveis à mentalidade antiga onde elas se apresentam com valores e com uma configuração que, talvez, desconcertem um espírito moderno.8

Utilizando o herói das tragédias de Esquilo, mencionado acima, podemos notar que, essa problemática, foge ao que compreendemos como um culpado, de fato, em termos jurídicos – declarado culpado pois os fatos assim comprovam. No entanto, vez por outra, a ideia de culpa na religião, neste caso, a cristã (e suas vertentes no Brasil), induz ao fiel a existência de forças maléficas externas espirituais que são capazes de interferir no mundo dito material. Essas forças assim chamadas demoníacas, tomam os corpos das pessoas para realizarem atos de maldade na sociedade. Uma pessoa que argumenta ter cometido atrocidades sociais, não por sua vontade, mas por ter sido derivada de uma possessão demoníaca, significa dizer que esta não se responsabiliza por seus atos criminosos. Uma vontade sem escolha? Como essa sociedade, ora religiosa, ora laica, enxerga alguém que traz argumentos religiosos ao julgamento laico civil? Aparentemente a questão grega é certamente ainda mais complexa do que a nossa, pois dependemos de um rol, de peças trágicas áticas, muito pequeno, uma vez que a maioria delas se perdeu no tempo, significando que, os exemplares de observação são poucos e nos oferecem apenas uma ligeira noção desses elementos do trágico para os gregos. 7 8

VERNANT; VIDAL-NAQUET, ibid, p. 30. Idem, ibid, p. 29.

7

Tragédia

Boa parte do que conhecemos acerca da tragédia ática e de suas funções no espaço social, advém da Poética de Aristóteles. A constituição de uma tragédia nos é apresentada dos capítulos 6 ao 22, nos quais o autor destaca o que uma tragédia deve possuir na essência, para causar a catarse ao espectador. O gênero tragédia é exaltado por Aristóteles, por abarcar em sua estrutura, todos os meios miméticos – isto é, de representação ou imitação – possíveis para levar medo e compaixão ao público, para que, dessa forma, possam expurgar de si mesmos tais sentimentos – isso é o efeito catártico da tragédia. Uma tragédia possui meios miméticos como linguagem e música; objetos miméticos como enredo, personagens e pensamentos; e modos para mimetizar que é o espetáculo cênico. Todo esse conjunto é utilizado, segundo Aristóteles, para causar o efeito catarse ao final da apresentação no seu espectador. Como já vimos, o erro trágico do personagem, herói da tragédia, será de suma importância ao tragediógrafo, para suscitar o terror e a piedade no público.

Coéforas

As Coéforas de Ésquilo, faz parte desse rico, porém limitado, rol de peças trágicas sobreviventes da Grécia antiga. Ela é parte da Trilogia Oresteia que conta com Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. Em cena, não são muitos personagens o que caracteriza o teatro de máscara ático. Essa peça trágica conta com oito personagens centrais: Orestes, filho de Agamêmnon e Clitemnestra; o coro, composto pelas coéforas/escravas, companheiras de Electra; Electra, a irmã de Orestes; o servo do palácio; Clitemnestra, rainha de Micenas; a Ama, dos filhos da rainha; Egisto, rei de Micenas, primo do antigo rei e amante da rainha; e Pílades, filho de Estrófio rei da Fócida e amigo de Orestes. Vale lembrar que, os homicídios, são realizadas fora de cena (obscena), pois não era costume mostrar ao público, cenas de morte no palco. A morte era um elemento negativo e ocultar sua dramatização, provavelmente, faria com que o espectador racionalizasse sobre essa questão. Coéforo, é aquele que, na Grécia antiga, carregava as oferendas e libações para os mortos, um serviço funerário9. Esse é o tema inicial da peça: oferendas ao morto. O morto em questão é Agamêmnon, antigo rei de Micenas e herói da guerra de Troia. Orestes, desterrado

9

HOUAISS, Dicionário. Verbete Coéforo, 2009.

8

pela mãe, presta oferendas ao seu pai, o antigo rei, morto por esposa e amante. Electra, desprovida de seu status pela mãe, e as escravas, agora suas amigas, também vêm ao túmulo para fazerem homenagens. Tais homenagens ao rei morto, até o momento, estavam proibidas pela rainha e fazê-las era tabu social. Ao ser atormentada em sonhos pela imagem de Agamêmnon, a rainha pede para que sejam feitas essas libações em stealth, isto é, sem serem percebidas. Após espiar o serviço feito, Orestes, que estava escondido com Pílades, revela-se à sua irmã Electra e ambos concordam num esquema de vingança para eliminar os culpados pela morte do pai. Os irmãos pretendem trazer justiça à casa de seu pai, manchada em tragédias. Orestes acredita que é um erro (ou Erronia, ’άτα) de sua parte não vingar seu pai, e certamente os deuses o punirão por omissão (neste caso, Apolo). O coro conta sobre outro sonho de Clitemnestra, na qual ela dá a luz à uma víbora, amamenta-a e tal serpente à morde no seio. Orestes o interpretou como uma mensagem da qual ele era a víbora, assim recitando:

Suplico à terra e ao túmulo paterno que este sonho me seja portador de remate. Interpreto-o de modo a ser congruente: se surgiu do mesmo lugar que eu a serpente e enfaixada como criança abocanhava o seio que me nutriu e mesclou leite a coágulos de sangue e ela apavorada pranteava este mal, porque nutriu hórrido prodígio, deve ter morte violenta e tornado serpente eu mato-a – como conta este sonho.10

Orestes acredita que seu papel na vingança, em respeito ao pai, será matar sua própria mãe e que Zeus o ajudará. Também acredita que sua missão é ordem de Apolo. Não precisamos de muitas palavras para afirmar que é aqui que, provavelmente, está a falha intelectual do herói, que causará o erro trágico. O erro começa a possuir o herói, fazendo-o acreditar que está perpetrando justiça e pondo ordem ao caos. O coro, da mesma forma, concorda com essa interpretação: “Elejo-te por isto perito em prodígio: assim seja! [...]”11. Confiante em seu destino vingador, pois acredita que agradará aos deuses, Orestes planeja entrar disfarçado com seu amigo Pílades no palácio. O plano é confiar que as escravas, ao retornarem, não dirão nada e que eles serão bem recebidos no palácio como hospedes estrangeiros; entrando, sem mais demoras, na melhor oportunidade, eliminarão Egisto e Clitemnestra. Após longa ladainha aos deuses, lamentações e súplicas, o coro retorna ao palácio e Orestes e seu amigo se disfarçam. O servo recebe os heróis disfarçados e a rainha logo aparece para recebê-los. Os heróis mentem, dizendo que Orestes havia morrido na Fócida, e

10 11

ÉSQUILO, Coéforas, verso 540. ÉSQUILO, Coéforas, verso 551.

9

que Estrófio gostaria de saber como proceder no rito funerário. Apesar da triste notícia, a rainha os hospeda. Aparentemente a Ama sofre mais com a notícia da morte de Orestes, do que a rainha. As escravas, ou o coro, fazem grande súplica aos deuses para que a missão seja um sucesso. Egisto, enfim, pretende apresentar-se aos hospedes, mas desconfia da notícia e quer mais detalhes sobre a suposta morte de Orestes: “Bem quero ver e perscrutar o mensageiro, se ele mesmo estava presente à morte ou se fala por saber de obscuro rumor. Não enganariam um espírito perspicaz.”12 As escravas se afastam para não serem acusadas de nada, e Orestes assim que vê Egisto o mata. O servo aparece, lamenta a morte do senhor e chama por sua senhora. Ao chegar em cena, Clitemnestra lamenta profundamente a morte de Egisto. Orestes e Pílades revelam-se e prometem o mesmo destino à rainha. A ideia de Orestes é eliminar a mãe junto com seu amante Egisto. Para a surpresa do herói, a mãe clama por sua vida mostrando para ele os seios que o amamentaram. Pela primeira vez em sua missão, Orestes teme. Surge agora o medo de cometer uma falha moral, isto é, tornar-se vil e ser atormentado pelas Fúrias, que repudiam arduamente o crime de sangue. No entanto, Pílades relembra-o da missão e que trata-se de um desígnio divino de Delfos fazer esta justiça. Sem titubear, Orestes volta-se para mãe. Clitemnestra não consegue mais argumentos, e após longo ’αγών (combate dialogado entre as personagens), eis as últimas palavras de Orestes para a mãe: “O destino do pai determina tua morte; Mataste quem não devias, sofre o indevido.”13 E Clitemnestra lamenta: “Parece que em vão gemo viva junto a tumba; Ai de mim, esta serpente pari e nutri: era muito adivinho o pavor dos sonhos.”14 Após a vingança consumada, Orestes profere um longo discurso sobre sua vitória, acompanhado do coro. A desejada justiça havia chegado aos atridas, canta o coro. Orestes glorifica-se pela justiça da qual ele foi instrumento, mostrando o manto ensanguentado do pai e o punhal de Egisto. Contudo inesperadamente começa a lamentar pela morte da mãe, a patricida, e a temer não estar isento de culpa diante dos deuses, pois havia cometido crime de sangue. Isso confunde o coro, que diz: “Mas venceste, não subjugues a boca à palavra perversa, nem profiras pragas, libertaste toda a cidade de Argos bem decapitando as duas serpentes.”15 Orestes já estava sendo atormentado pelas Fúrias e então decide ir ao oráculo de Delfos purificar-se do crime de sangue. E assim encerra o coro, falando para Orestes que já 12

ÉSQUILO, Coéforas, verso 851. ÉSQUILO, Coéforas, verso 927; 930. 14 ÉSQUILO, Coéforas, verso 926; 928. 15 ÉSQUILO, Coéforas, verso 1044. 13

10

fugia: “Só tens uma purificação. Lóxias ao tocar te fará livre desses males; Boa sorte! Deus propício vele por ti e nas conjunturas oportunas te guarde.”16

Erro trágico e culpa em Coéforas

Qual o erro trágico de Orestes? O tragediógrafo mostra como Orestes interpretou a mensagem, tanto do oráculo de Apolo, quanto do sonho da mãe, contado pelo coro. Orestes acreditou ser o vingador, o justiceiro de sua família, da mesma forma que matar Egisto e sua própria mãe seria seu destino e o meio escolhido pelos deuses para consumar a justiça ao pai morto. Qual o seu destino trágico? Lesky acredita que Orestes sofreu uma “situação trágica”, mas não um “destino trágico”, como o de seus pais. Apesar de atormentado pelas Fúrias, Orestes tem solução – uma reconciliação final. Assim complementa Lesky:

O conflito em que está envolvido Orestes é inimaginavelmente horrível, mas como conflito não é cerradamente trágico, pois admite a reconciliação das potências combatentes e, nessa reconciliação, a libertação da dor e do sofrimento. Assim, a participação que seu destino tem no trágico se nos apresenta como situação trágica através de cujas tormentas o caminho conduz à paz.17

Segundo Lesky, Orestes não tem um final tradicional para o ambiente trágico, pois há vida e conciliação após os seus atos. Há finais trágicos, mas para outros personagens da peça. Mas e quanto a culpa? Orestes é culpado pelo crime de sangue? As Fúrias o perseguem, mostrando repúdio ao seu ato. Nesta peça, Coéforas, não sabemos o que aconteceu com Orestes de fato, se foi perdoado ou atormentado, se foi julgado culpado ou absolvido. Esse final encontra-se nas Eumênides. Para não ficarmos no suspense, eis as conclusões de Vernant sobre o destino de Orestes nas Eumênides:

[...] ao término da trilogia de Ésquilo, Orestes culpado de um crime monstruoso, o assassínio deliberado de sua mãe, vê-se absolvido pelo primeiro tribunal humano instituído em Atenas: na falta de intenção delituosa de sua parte, pois que agiu sem poder subtrair-se a isso por ordem imperiosa de Apolo, seu ato, advogam seus defensores, deve ser colocado na categoria do díkaios phónos, do assassínio justificado. [...] O julgamento humano, de fato, permanece indeciso. A absolvição só é obtida por um artifício de procedimento depois que Atena, por seu voto, restabeleceu a 16 17

ÉSQUILO, Coéforas, verso 1059; 1063. LESKY, ibid, p. 39.

11

igualdade dos votos pró e contra Orestes. O jovem, portanto, é legalmente absolvido graças a Atena, isto é, graças ao tribunal de Atenas, sem ter sido plenamente inocentado sob o ponto de vista da moral humana. A culpabilidade trágica constitui-se assim num constante confronto entre a antiga concepção religiosa da falta, polução ligada a toda uma raça, transmitindo-se inexoravelmente de geração em geração sob a forma de uma átē, de uma demência enviada pelos deuses, e a concepção nova, posta em ação no direito, onde o culpado se define como um indivíduo particular que, sem ser coagido a isso, escolheu deliberadamente praticar um delito.18

Dessa forma, concluímos este trabalho que buscou apresentar de forma sucinta, segundo os estudos de Albin Lesky e Jean-Pierre Vernant, a presença dos conceitos de erro trágico e culpa nas peças trágicas da Ática antiga, com destaque para as Coéforas de Ésquilo. Pudemos observar que o erro trágico incorre ao herói da tragédia, não por questões de moralidade, isto é, se se trata de alguém que é bom ou alguém que é mau, mas ocorre por sua falta intelectual, que, como vimos, indica uma compreensão errônea de seus desígnios para com a vontade dos deuses. O erro trágico é, por tanto, decorrente de uma limitação intelectual do herói. Esse erro é conhecido, na Poética de Aristóteles, como hamartía (‘αμαρτία). Por sua vez, a culpa, vimos que se trata do elemento mais controverso das peças trágicas, uma vez que lida com as intenções do herói ao consumar o crime. Como vimos, nas Coéforas, Orestes cometeu o erro trágico, mas não teve um fim trágico, pois foi absolvido de sua condenação. A problemática da culpa continua, pois o ato foi, em suma, condenado – o matricídio –, mas o príncipe não sofreu penalidades, pois, estava “possuído” por uma ordem dos deuses – Apolo. Isso, como mostrou Vernant, justificaria as suas ações. Apresentamos um resumo conciso das Coéforas, para buscarmos perceber onde incorrem ambos os conceitos nessa obra de Ésquilo. Assim concluímos que o herói trágico, Orestes, como mencionou Lesky, é submetido a uma situação trágica, mas, seu final não é trágico, como o de seus pais, Agamêmnon e Clitemnestra.

18

VERNANT; VIDAL-NAQUET, ibid, p. 50.

12

REFERÊNCIAS

ARISTÓTELES. A poética. trad. Eudoro de Souza. In: Ética a Nicômaco; A poética. 4.ed. São Paulo: Abril Nova Cultural, 1991.

ÉSQUILO. Coéforas. trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, FAPESP, 2004.

LESKY, Albin. A tragédia grega. trad. J. Guinsburg, Geraldo G. de Souza e Alberto Gerzik. São Paulo: Perspectiva, 1996.

VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. Mito e tragédia na Grécia antiga I e II. (vários tradutores) São Paulo: Perspectiva, 1999.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.