As comunidades tradicionais e a luta por território, contra o racismo e pela justiça ambientais: um panorama à luz da experiência do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

II Seminário Interdisciplinar em Sociologia e Direito

GT 14 - Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais

Grupo de trabalho proposto pelo Instituto de Pesquisa, Direito e Movimentos Sociais (IPDMS) - Seção Rio de Janeiro. Coordenação dos trabalhos: Prof. Dra. Mariana Trotta (UFRJ), Prof. Dra. Fernanda Vieira (UFJF) e doutorando Tiago de García Nunes (PPGSD/UFF)

As comunidades tradicionais e a luta por território, contra o racismo e pela justiça ambientais: um panorama à luz da experiência do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil.

Diogo Ferreira da Rocha Tania Cecília Pacheco da Silva

Niterói, 2012

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As comunidades tradicionais e a luta por território, contra o racismo e pela justiça ambientais: um panorama à luz da experiência do Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Diogo Ferreira da Rocha. Mestrando em Saúde Pública (PPGSP/ENSP/FIOCRUZ). [email protected] Tania Cecília Pacheco da Silva Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF). [email protected]

Resumo: O avanço do capital globalizado sobre os territórios das comunidades tradicionais é hoje a principal origem de conflitos envolvendo estas populações e as várias facetas do desenvolvimentismo brasileiro. Empresas transnacionais brasileiras ou estrangeiras, organismos estatais, grupos paramilitares e a grande mídia corporativa se articulam em torno de um projeto de desenvolvimento que desconsidera as múltiplas e variadas formas identitárias de territorialidade e de interação com os recursos naturais existentes no País. Este trabalho tem por objetivo analisar como estes processos se desenvolvem no Brasil tendo por base os principais conflitos envolvendo comunidades tradicionais registrados até agora pelo Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Palavras-chave: comunidades tradicionais; conflitos territoriais; injustiça e racismo ambiental. 1. A lógica por trás das injustiças e conflitos ambientais no Brasil: Anexando territórios à economia global. A expansão da economia de mercado derivada da consolidação do modo de produção capitalista, hegemônico em quase todo o mundo (é referência mesmo em muitas sociedades formalmente socialistas, como a chinesa), se fortaleceu através de um processo de globalização alicerçado no desenvolvimento de novas tecnologias de comunicação, no surgimento da manipulação dos mercados de commodities e na dominação de uma ideologia neoliberal promovida pela fração financeira de detentores do capital. Em contraposição a todos estes fatores que facilmente se desmanchariam no ar, se devidamente confrontados, o capital real cada vez mais se traduz na luta pelo território e pelos recursos nele existentes, o que traz à tona e intensifica conflitos e desigualdades sociais e ambientais. Atualmente é lugar comum a afirmativa de vivermos sob a égide de uma sociedade em crise, não apenas financeira (consequência da própria lógica predatória do capital,

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desregulamentado após décadas de hegemonia neoliberal), mas também social, ambiental e, segundo alguns analistas, estrutural e até mesmo civilizatória. Olhemos esse cenário de forma mais atenta. Segundo Márquez Covarrubias (2010) esta crise tem como base um sistema onde: La estrategia de acumulación mundial centralizada, la llamada globalización neoliberal, desplegada en las últimas tres décadas y media, articula nuevas modalidades de generación y apropiación de riqueza que le permite a los monopolios y oligopolios transnacionales acceder a fuentes de ganancia extraordinaria: 1) una nueva división internacional del trabajo basada en la configuración de cadenas globales de producción y el uso masivo de fuerza de trabajo barata; 2) la incorporación de la mayoría de los recursos naturales al proceso de valorización de capital, tanto de la litosfera como de la biosfera; 3) la privatización de medios de producción y sectores económicos estratégicos; 4) la sobreexplotación del trabajo directo, generación de una desbordante sobrepoblación e incremento de la migración forzada ,y 5) la privatización del conocimiento mediante la propiedad intelectual y explotación del "capital humano", es decir, la pretensión de subsumir realmente el trabajo científico-tecnológico, donde también participa la migración de trabajadores altamente calificados.

A necessidade de reprodução do capital através da acumulação primitiva de crescentes recursos financeiros, humanos e naturais tem levado o mundo a uma situação em que a concentração de renda e de poder torna-se cada vez mais aguda, e as constantes crises econômicas por que passam os principais operadores desse sistema insustentável leva à aplicação de políticas de desenvolvimento que visam à incorporação subalterna de novos mercados, grupos sociais e territórios à economia globalizada. Esse processo tem como base a implantação de empreendimentos que buscam a exploração dos recursos naturais disponíveis até seu esgotamento, seguida do posterior abandono das áreas degradadas, em busca de novas oportunidades de negócio e da exploração de mercados emergentes. Nesse processo, os territórios foram “invadidos” e explorados como se fossem desertos de gentes. Em nenhum momento foram feitos planos anteriores ou posteriores para as populações ali existentes, exceto no caso de sua utilização como mão-deobra barata. Em nenhum comento considera-se que as consequências negativas do desenvolvimento deveriam ser enfrentadas por seus causadores. Em muitos territórios, esse processo ocorre em ondas ou ciclos, já que as mesmas terras abandonadas pelas madeireiras podem ser apropriadas posteriormente pela pecuária. Fertilizantes e agrotóxicos permitem sua convivência ou substituição posterior pela monocultura. Em outros casos, esses territórios receberão upgrades para serem incorporados paras diferentes minerações ou terão seus rios barrados e suas áreas inundadas para a geração de energia elétrica. Em todos os casos, a apropriação e acumulação dos retornos exige a socialização dos custos socioambientais através das chamadas “externalidades” da produção (Soares e Porto, 2007).

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A expansão do capital especulativo e da produção socioambientalmente irresponsável pelos territórios outrora ocupados por populações tradicionais deixa um rastro de degradação social, colapso econômico e problemas de saúde em áreas que vivenciam o sacrifício de seus habitantes. Dependendo do caso e da localização, um rápido simulacro de desenvolvimento, traduzido em migração de mão-de-obra e crescimento populacional; urbanização; alta concentração de renda considerando a realidade local; prostituição, com aumento de doenças sexualmente transmissíveis; e desestruturação das relações sociais, das organizações comunais tradicionais e dos modos de vidas característicos das populações originais. Altamira é, hoje, o melhor exemplo de tudo isso, considerando povos indígenas, ribeirinhos, pescadores artesanais e outras populações extrativistas do seu entorno. Segundo Rousset (2001) a crise ecológica atual tem sua origem na convergência das duas grandes contradições do sistema capitalista: o mesmo sistema que necessita da exploração do trabalho para sua reprodução também necessita da sobrexploração da natureza vista exclusivamente como fonte de recursos a serem transformados em lucro. Reduzidas às categorias de recursos humanos ou naturais em negociação nos mercados de trabalho ou de commodities, a sócio e a biodiversidade ficam relegadas a uma posição subordinada aos interesses do capital. O Brasil ocupa uma posição estratégica nesse sistema global de exploração, pois sua extensão continental abriga ao mesmo tempo uma enorme diversidade de recursos naturais exploráveis (madeira, minérios, petróleo, energia, sem contar a terra e a própria água), além de possuir um grande mercado interno capaz tanto de suprir a indústria da mão-de-obra necessária (tanto qualificada, quanto não qualificada), quanto de consumir uma parte das mercadorias produzidas. Tradicionalmente voltado para uma pauta de exportações dominada por commodities agrícolas, metálicas e energéticas, além de grande consumidor de produtos de alto valor agregado produzido pelas empresas multinacionais em outros países em desenvolvimento (como China, Taiwan e o Sudeste Asiático), o Brasil se situa hoje como um dos mercados mais promissores para a expansão do capital especulativo. As recentes reformas econômicas e sociais levadas a cabo por partidos políticos de centro-esquerda serviram para a redução das extremas desigualdades socioeconômicas características da sociedade brasileira, ao mesmo tempo em que a falta de políticas sociais efetivas nas áreas de saúde, educação e previdência mantiveram a população brasileira ainda vulnerável do ponto de vista da cidadania. Se houve ganhos em relação a uma melhor remuneração do trabalhador assalariado, o que serviu para impulsionar o mercado consumidor interno, o mesmo não se pode dizer a respeito

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da garantia dos direitos fundamentais, o que torna a sociedade brasileira ainda carente de alternativas às políticas desenvolvimentistas voltadas para a ativação de novos mercados e reprodução do capital. Contudo, os conflitos não surgem do nada. São consequência exatamente da resistência que algumas dessas comunidades opõem às características da expansão do capital internacional no Brasil, pressionando e impactando diretamente seus modos de vida, discriminando-as e vulnerabilizado-as através de processos sociais e econômicos que espoliam seus direitos sociais e humanos básicos, em nome de um conceito abstrato de desenvolvimento. É contra essa situação construída por um sistema que gera resíduos, contaminação, doenças e morte que essas comunidades se levantam, para defender o que herdaram de seus antepassados ou o pouco que após anos de luta conseguiram construir. Sua cultura, tradições e modo de vida conformam hoje a maior parte da resistência que o capital encontra para sua expansão no Brasil. São indígenas, quilombolas, camponeses, sem-terra, pescadores artesanais e todos aqueles grupos cuja reprodução social depende do acesso coletivo aos ecossistemas lutando pela garantia de seus direitos territoriais e humanos e para impor ao capital limites à sua expansão.

2. Dividir para conquistar: O papel do racismo na reprodução do capital. A importância do racismo tem sido subestimada no âmbito das construções teóricas a respeito das injustiças socioambientais resultantes da expansão dos projetos do capital internacional nos territórios tradicionais. A despeito das recorrentes referências ao histórico da criação do conceito de justiça ambiental no contexto das luta antirracistas norte-americanas e, mais especificamente, a partir do combate ao racismo ambiental, todo o referencial crítico construído nas duas últimas décadas pelos acadêmicos brasileiros a respeito das injustiças ambientais, tem-se pautado pela centralidade das desigualdades sociais. Uma centralidade que tem como referência uma ciência social de origem europeia e que se construiu sobre uma base marxista ortodoxamente eurocêntrica. Assim, as diferenças étnicas e culturais são subsumidas a um referencial que situa as perspectivas de desenvolvimento da história europeia como ponto alto do progresso humano e horizonte de longo prazo inexorável para todos os povos do mundo, os quais, de uma forma ou de outra, deverão em certos momentos passar pelos processos ocorridos no Velho Mundo rumo à inevitável sociedade sem classes.

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Nesse contexto, a classe social torna-se o conceito central único a dominar os debates. As diferenças culturais e raciais são meras variantes locais e menores de uma luta maior, na qual as classes dominantes mobilizam diversas formas de capital social (econômico, político, simbólico), a fim de impor às classes subalternas um projeto de desenvolvimento que invariavelmente irá distribuir desigualmente os retornos dos investimentos sociais e as cargas negativas desse desenvolvimento, os lucros e os riscos. As lutas envolvendo as comunidades tradicionais não só colocam em xeque essa tendência geral e restrita, como impõem ao pesquisador observar certas sutilezas presentes nos conflitos, que acabam por reformular o cenário e colocar novos protagonistas e elementos em disputa. Vale situar alguns exemplos a respeito do que estamos falando. Em São Félix do Araguaia, Mato Grosso, o povo Xavante luta pela retomada de uma área de mais de 165 mil hectares, atualmente em poder de pequenos produtores rurais e grandes fazendeiros, que ocuparam a área a partir de 1992, quando a multinacional italiana Agip oficializou a devolução da área aos indígenas, expulsos por políticas de colonização do próprio estado na década de 1960. Entre a saída da Agip e o cumprimento da burocracia de demarcação e devolução do território a seus verdadeiros “donos”, entretanto, transcorreram anos durante os quais políticos locais e grandes fazendeiros incentivaram famílias de pequenos produtores rurais a acorrerem para a região e lá construírem novos sítios e plantações. A estratégia visava a impedir o retorno dos índios, por eles identificados com o atraso e discriminados como pouco afeitos ao cultivo da terra. Nesse caso, como explicar esta inesperada aliança entre as classes dominantes e as classes dominadas diante do diferente? (Mapa, 2012e). Situação similar é enfrentada pelos índios Guarani de Palhoça, Santa Catarina, onde o interesse econômico e o preconceito reforçam as injustiças e impedem o acesso dos índios a seu território tradicional. Povo nômade, esta etnia viveu ao longo de sua história migrando periodicamente dentro de um vasto território que engloba regiões dos atuais Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai. Para um membro da etnia, não há diferenças entre um Guarani nascido em solo brasileiro ou argentino. No entanto, tais diferenças nos critérios de pertencimento fazem com que sejam discriminados na região e vistos como usurpadores estrangeiros das terras dos colonos, em geral pequenos produtores (Mapa, 2012e). Segundo Pacheco e Faustino (2012, no prelo), racismo, discriminação e desigualdades se articulam nesses contextos para fortalecer a posição do mercado e das políticas desenvolvimentistas. Sendo essas populações historicamente discriminadas, têm menor capacidade de mobilização dos recursos necessários à disputa dos espaços de decisão e das

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instituições públicas, dominadas por noções e práticas de um ideário político e institucional baseado na premissa da superioridade do modo de vida branco, eurocêntrico e burguês. Há inclusive dificuldades no estabelecimento de diálogo nesses espaços, pois muitas vezes as demandas dessas comunidades e os valores que mobilizam na defesa de seus territórios se tornam intraduzíveis nos termos do direito e do conhecimento construído com base nos referenciais culturais hegemônicos. O sentido sagrado de uma árvore, uma lagoa ou um rio não são elementos considerados legítimos em um debate em que os termos são colocados a priori pela outra parte, que os vê apenas como recursos ou ativos indenizáveis e mensuráveis monetariamente. Como defender que um território específico é insubstituível para determinado povo por motivos ontológicos diante da necessidade urgente da sociedade em produzir mais alumínio para as latinhas de Coca-Cola ou componentes para eletrônicos que serão o sucesso do próximo verão e estarão nas lixeiras no seguinte? Quando um rio deixa de ser espírito para se tornar recurso hídrico? Como se estabelecem as pontes cognitivas necessárias a um diálogo baseado em concepções de mundo tão diferenciadas?

3. O domínio do capital: A negação da identidade como forma de legitimar as injustiças. Os aportes trazidos por este artigo têm sua origem na experiência de construção do “Mapa de conflitos envolvendo injustiça ambiental e saúde no Brasil”. Esse projeto de pesquisa é resultado da experiência acumulada pelo movimento brasileiro de luta contra o racismo e por justiça ambiental, em grande parte capitaneado pela Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA). Seu objetivo maior é socializar informações e dar visibilidade a denúncias e conflitos envolvendo situações de injustiça ambiental e saúde no País, com a intenção de permitir o monitoramento de ações e de projetos que atendam às demandas das populações por justiça, saúde e cidadania (Porto e Pacheco, 2009). Nascido do debate a respeito do modelo de desenvolvimento hegemônico e suas articulações com a economia global, o universo de relatos nele existente abrange contextos de degradação,

racismo,

injustiça

e

desigualdades

sociais

resultantes

das

políticas

desenvolvimentistas ou por elas intensificados (Rocha, 2011). Iniciado em 2008, o Mapa já conta com mais de 366 casos de lutas envolvendo injustiça ambiental mapeados, e eles representam apenas uma fração dos conflitos em curso no país. E dentre eles destacam-se aqueles que envolvem as chamadas populações tradicionais.

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De acordo com levantamento realizado no âmbito do projeto em 2010, com base em cerca de 300 conflitos mapeados até então, os casos envolvendo povos indígenas correspondiam na ocasião a cerca de 1/3 desse total. Agricultores familiares e quilombolas estavam envolvidos em cerca de 30% e 20% dos conflitos respectivamente, sendo os pescadores artesanais e os ribeirinhos (14% e 13%) também numerosos entre os grupos atingidos pelos impactos socioambientais do desenvolvimento. No que concerne aos agricultores familiares, é importante destacar que grande parte deles poderia igualmente se auto-identificar como quilombola, geraizeiros, vazanteiros, faxinalenses etc. Esses 30% são, pois, relativos, podendo se deslocar e ser somados a outras comunidades, numa análise de campo mais aprofundada, que o Mapa não teve ainda condições de realizar. Se de um lado temos as comunidades tradicionais, quem encontramos como seus antagonistas nos conflitos? Entre os principais, temos a expansão das monoculturas (33%), políticas públicas (18%), mineração e siderurgia (16%), barragens ou hidrelétricas (15%), madeireiras (13,5%) ou indústria química ou petrolífera (12%), além ou outros processos produtivos. Em pelo menos 50% dos casos, as atuações dos órgãos estatais, dos diversos níveis de governo e dos três poderes, estão direta ou indiretamente envolvidas com as atividades poluidoras e geradoras de injustiças ambientais. Esses conflitos colocam em disputa a territorialidade das comunidades tradicionais na medida em que as instalações desses empreendimentos buscam áreas que estão preservadas exatamente por serem essenciais quer à reprodução física, cultural e social das comunidades envolvidas, quer à sua própria cosmologia. São territórios onde essas comunidades por séculos viveram segundo suas próprias tradições e costumes, como é o caso dos povos indígenas e dos quilombolas, principalmente. Há também outros casos, nos quais as comunidades foram muitas vezes pressionadas a ocupar espaços abandonados, sem qualquer tipo de infraestrutura ou presença de políticas públicas. Em assentamentos irregulares, malocas ou comunidades negras rurais, esses povos tiveram no cuidar da terra e na exploração da biodiversidade a única fonte de seu sustento, salvo ocasionais interações com pequenas vilas ou cidades do interior onde o produto do seu trabalho poderia ser trocado ou onde poderiam ocupar vagas ocasionais de trabalho na época da colheita nas grandes plantações, trabalhando como “boias-frias” ou em frentes de trabalho temporárias. Ocupando o que durante muito tempo foi conhecido como “rincões” ou “sertões”, essas comunidades tiveram até meados do século passado seus territórios garantidos pela

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dificuldade de acesso ou de exploração comercial dos territórios em que viviam. Esse cenário se alterou com a expansão das frentes “desenvolvimentistas” rumando do Sul, principalmente, para o interior do Brasil, a Amazônia e, agora, o Nordeste. A revolução verde, a mecanização das lavouras e o uso intensivo de agrotóxicos propiciaram à agricultura comercial uma expansão nunca antes vista, possibilitando que as monoculturas de grãos, de árvores ou a fruticultura irrigada fossem implantadas em áreas antes consideradas inviáveis. A correção do solo e a abertura de malhas rodoviárias possibilitou a incorporação de novos territórios ao mapa do agronegócio, gerando diversos efeitos negativos. O primeiro deles foi a expulsão de populações nativas ou comunidades rurais tradicionais de seus territórios e a formação de novos bolsões de pobreza nos centros urbanos, especialmente os de grande porte. A isso se aliou o intenso desmatamento dessas áreas; a contaminação do solo pelos produtos químicos, levando à inviabilização de outras atividades nessas regiões; e a consequente espiral de degradação da qualidade do solo e de correção com o uso de aditivos químicos que fizeram do Brasil o maior consumidor mundial de agrotóxicos. Paralelamente ao desenvolvimento do agronegócio, temos ainda a continuação da expansão da pecuária, principalmente em terras recém-desmatadas, e o barramento dos rios para a produção de energia elétrica, necessária à manutenção tanto dos negócios que dão suporte à agricultura comercial (como a produção de fertilizantes e pesticidas), quanto à manutenção de cadeias industriais eletrointensivas (tais como as cadeias do alumínio, papel e celulose, do ferro-gusa, que nem mesmo a China deseja mais produzir e que exportamos a preço baixo, para depois importar os produtos resultantes de seu beneficiamento). Todos esses processos tiveram como condição sine qua non para sua instalação a apropriação de áreas originalmente ocupadas por comunidades tradicionais. Assim, aquelas que não foram expulsas de suas terras tiveram que conviver com áreas cada vez menores, muitas vezes ilhadas em meio às grandes plantações e ecossistemas em colapso, incapazes de prover a manutenção de suas lavouras ou de continuar a dar suporte a seus ritos, religiosidade e tradições culturais. A resistência desses povos se deu muitas vezes pela articulação com grupos sociais majoritários solidários à causa daqueles que concentravam sobre si as consequências negativas da incorporação do Brasil à economia global. A construção de solidariedades entre os movimentos sociais de base, setores progressistas das igrejas, da academia, advogados populares e alguns políticos propiciaram a aquisição do capital político e simbólicos necessários à luta pela manutenção de suas terras e pela garantia de seus direitos sociais.

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A derrocada do regime militar no fim da década de 1980 foi um momento propício para a pressão pela construção do arcabouço legal e uma série de regulamentações em que reconheceram os direitos territoriais dessas comunidades e as especificidades de muitas formações identitárias. Mas, embora povos indígenas e quilombolas, principalmente, tenham se tornado atores políticos, a realidade é que são obrigados a continuar a lutar, quer pela manutenção de suas conquistas, quer pelo cumprimento das leis que as asseguram. O Estatuto do Índio (1973) assinado por Garrastazu Médici em plena ditadura militar foi resultado de embates políticos nos quais os próprios índios tiveram poucas oportunidades de participação e terminou por considera-los seres “relativamente capazes”, a serem “tutelados” pelo Estado. O fortalecimento do movimento indígena na década seguinte fez com que a Constituição de 1988 reconhecesse sua identidade cultural própria e diferenciada, assim como o “direito originário ao usufruto de suas terras”, conferindo maior autonomia para as organizações indígenas, mas o novo Estatuto que regulamentaria a questão está desde 1994 paralisado na Câmara Federal. (Brasil, 1973; 1991). Enquanto isso, projetos de lei diversos buscam rever as conquistas indígenas, culminando com a tramitação atual da Proposta de Emenda Constitucional 215/2000, que, se aprovada, dará a um Congresso integrado em 25% por ruralistas o direito de aprovar a demarcação das terras indígenas, a ratificação das demarcações já homologadas e ainda o estabelecimento dos critérios e procedimentos a serem seguidos nas diversas etapas (Brasil, 2000). Se aprovada, a PEC 215 estenderá seus efeitos também aos territórios quilombolas, já sob a ameaça do julgamento, no Supremo Tribunal Federal (STF), da Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.239, através da qual o partido Democratas contesta o Decreto 4.887/2003, que regulamenta o procedimento de identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras de remanescentes de quilombos (Brasil, 2003; 2004). No que concerne ao Executivo, convém lembrar que a Convenção 169, aprovada pela Organização Internacional do Trabalho em 1989 para regulamentar os Direitos dos Povos Indígenas e Tribais e ratificada pelo Brasil em julho de 2002, até hoje não foi regulamentada pelo governo, que a desrespeita habitualmente, principalmente no que concerne ao seu Artigo 6º, que trata do Direito à Consulta Livre, Prévia e Informada e, a partir dele, ao Artigo 7º, conhecido como o Direito de Decidir. É importante deixar claro que, uma vez ratificada, a Convenção 169 foi equiparada às demais leis do sistema jurídico brasileiro, com hierarquia intermediária entre a Constituição e as leis ordinárias, de acordo com decisões do STF. E que

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os direitos estabelecidos por ela se estendem igualmente às demais comunidades e povos tradicionais. Finalmente, igualmente para serem desrespeitados, ao que tudo indica, temos ainda o Decreto 6.040/2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; o Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de julho de 2009); e o Plano Nacional de Direitos Humanos (Decreto lei Nº 7.177, reformulado em maio de 2010). Se todos refletem vitórias e avanços no reconhecimento das diversidades étnico/raciais e das desigualdades históricas, a verdade é que não têm sido suficientes para garantir os direitos das populações aos territórios, frente aos interesses do capital (Brasil, 2007; 2009; 2010). Mesmo assim e apesar de tanto desrespeito e adversidades, é importante lembrar que a demarcação de territórios tradicionais ainda é uma forma tanto de proteger a sociodiversidade através da garantia jurídica dos direitos territoriais dessas populações, quanto um meio de manutenção da própria biodiversidade. Em muitos locais, as áreas demarcadas como terras indígenas, comunidades quilombolas ou reservas extrativistas são tudo o que resta dos ecossistemas originais. E é justamente pela conservação tanto da riqueza vegetal, quanto pelo potencial energético e mineral existente nessas áreas que elas são hoje os principais focos de interesse do capital especulativo nacional e estrangeiro. Mudanças no código florestal, demandas à permissão da mineração em terras indígenas, a construção de barragens e hidrelétricas contíguas às áreas demarcadas, a atividade madeireira irregular ou a construção de toda a infraestrutura logística de que o capital necessita para sua rápida reprodução e exploração dos territórios são hoje os principais motivos de conflitos entre empresas, governos e comunidades tradicionais. O questionamento da posse desses territórios nas mãos dessas comunidades e sua apresentação como “entraves ao desenvolvimento” tem sido o principal mote de uma grande campanha movida pelos setores conservadores do capital nacional e internacional interessados na aquisição de mais terras, recursos naturais, poder e dinheiro. E para isso contam com o apoio e alianças inequívocas com os grandes meios de comunicação. Nos conflitos ambientais presentes no Mapa são comuns o questionamento da legitimidade da posse dos territórios por parte das populações tradicionais. Não são raras as ocasiões em que essas comunidades se deparam com a acusação de serem formadas por “falsos índios”, “falsos quilombolas”, “arruaceiros”, “usurpadores” ou ainda de que os órgãos encarregados da definição das áreas demarcadas (principalmente INCRA e FUNAI) estejam realizando uma espécie de “reforma agrária” ao garantir os direitos territoriais reconhecidos

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pela Constituição e pelos acordos internacionais dos quais o Brasil é signatário. Nesses conflitos é colocada a primazia do direito à propriedade privada face aos direitos territoriais das comunidades. Mesmo quando tais propriedades foram constituídas à custa do esbulho, da grilagem, do genocídio, da transferência forçada ou de massacres do passado. A manipulação da opinião pública através da imprensa a fim de angariar apoio à demanda dos grupos políticos e econômicos majoritários é uma estratégia comum e presente em diversos conflitos, e não é raro que este expediente resulte em violência, discriminação e preconceito contra essas comunidades. Ao analisar inúmeros casos, encontramos, nas páginas de Opinião dos grandes jornais das diferentes capitais, artigos onde se repetem os mesmos nomes de acadêmicos que oferecem seus títulos e suas ideias para legitimar o racismo e a exclusão, como intelectuais orgânicos do capital. Um caso recente que ilustra como atua o processo de construção da violência e da dominação através do preconceito é a disputa territorial entre os índios Guarani-Kaiowá e fazendeiros em Mato Grosso do Sul (Mapa, 2012). No estado há aproximadamente 43 mil Guarani-Kaiowá, com acesso a pouco mais de 44 mil hectares. Cerca de 60 mil hectares já identificados como indígenas permanecem na posse de terceiros, amparados por decisões judiciais contra a demarcação. Desde o início deste século, as organizações indígenas locais e algumas entidades da sociedade civil que os apoiam vêm denunciando uma série de crimes e arbitrariedades sofridas pelas comunidades Guarani-Kaiowá. Há relatos de trabalhadores indígenas que morreram por exaustão ou por causas não esclarecidas nas lavouras da região, atropelamentos criminosos, assassinatos de lideranças da etnia, sumiço dos corpos das vítimas, ameaças contra membros das aldeias e até mesmo contra outros Guarani-Kaiowá que, apesar de não estarem mais aldeados, participam das lutas de seu povo. Há ainda grupos Guarani-Kaiowá isolados no interior de plantações, ameaçados de morte por fazendeiros e jagunços, e que não recebem qualquer tipo de assistência por parte do Estado, pois os fazendeiros permitem a entrada sequer de funcionários do governo. Estes indígenas, apesar do medo e da violência, ainda alcançam uma sobrevivência menos degradante do que aqueles grupos que, expulsos de suas terras, são obrigados a montar acampamento na beira das estradas, próximo às fazendas construídas sobre as ruínas de suas malocas. Nestas condições, estão sujeito às intempéries, à fome, aos atropelamentos, às ameaças e à ocasional surtida de jagunços a mando dos fazendeiros.

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Em 2010, um episódio deixou claro até que ponto a discriminação cerceia os direitos dessas populações. Um julgamento que seria realizado na 1ª Vara Federal Criminal de São Paulo para julgar o assassinato do cacique Guarani-Kaiowá Marcos Verón, ocorrido na Fazenda Juti (e que já havia sido transferido para São Paulo a pedido da promotoria por considerar que o caso não teria julgamento justo numa corte sul-matogrossense), foi suspenso depois que o Ministério Público Federal abandonou a audiência, em protesto. O motivo? A recusa da juíza que presidia a audiência em autorizar a atuação de um tradutor durante os depoimentos das testemunhas indígenas. Acatando um pedido da defesa, a magistrada determinou que a primeira parte do depoimento fosse prestada em português, o que foi considerado pelo MPF como um cerceamento ao direito legal das testemunhas em se expressar em sua língua nativa. Isso impôs um sofrimento adicional às vítimas, que já sofriam com o preconceito em seu estado de origem, e reviviam naquele momento o luto pela perda de Verón. Outros casos similares podem ser relatados em várias partes do Brasil. Em Aracruz, no Espírito Santo, a empresa Fíbria (então chamada de Aracruz Celulose) fez divulgar uma série de propagandas em outdoors onde afirmava serem as comunidades Tupiniquins e Guarani-Mbyá do município - então em conflito pela demarcação de 13 mil hectares em posse da empresa – formadas por falsos índios ou índios “aculturados”. Como consequência, os dois povos indígenas recorreram ao judiciário, e a empresa foi condenada pela justiça a retirar a propaganda e a se retratar publicamente (Rocha, 2008; Mapa, 2012b). Em Cachoeira, na Bahia, uma polêmica reportagem de uma emissora local (afiliada à Rede Globo, que a transmitiu em rede nacional através do Jornal Nacional), acusou a comunidade quilombola de São Francisco de Paraguaçu de ter se utilizado de fraude no requerimento que fazia à Fundação Cultural Palmares para que fosse oficialmente reconhecida como remanescente de quilombo (fato que ia contra os interesses de poderosos fazendeiros da região). A emissora informou ainda que a maior parte dos pescadores teria assinado o documento pensando tratar-se de abaixo-assinado para aquisição de barcos e canoas, desta forma não estando esclarecida do pedido de reconhecimento da comunidade. A reportagem da TV Bahia foi além, noticiando que algumas famílias teriam invadido as áreas a serem demarcadas e extraído madeira de Mata Atlântica sem qualquer tipo de autorização. O dano, segundo a notícia, impactou território caracterizado pelo endemismo de uma espécie de pássaro ameaçada de extinção (Mapa, 2012c).

A afiliada da Rede Globo não noticiou, entretanto, a mortes do patriarca e da matriarca da comunidade – Seu Altino e Dona Maria -, ambos vitimados por doenças cardíacas resultantes das pressões às quais a comunidade há décadas vem sendo exposta, e que vão das

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intimações para expulsão sumária com o aval da justiça a ameaças e atentados contra as vidas das lideranças mais combativas. Em Santarém, no Pará, o grupo indígena Borari também teve sua identidade questionada publicamente, inclusive com o apoio de membros academia, por ocasião de conflito com madeireiros da região, os quais extraem madeira ilegalmente de reservas e assentamentos. As tensões locais se intensificaram a tal ponto que uma ação de empate – que resultou na apreensão de balsas carregadas com mais de 1500 toras de madeira extraída ilegalmente - terminou com o incêndio de toda a carga apreendida e intensa mobilização das autoridades locais em torno do episódio (Mapa, 2012d). Diversos outros episódios como esses poderiam ser citados, tendo por base apenas os conflitos presentes no Mapa. É uma prática comum, e em grande parte eficiente, mobilizada por pequenos fazendeiros, grandes agricultores e até empresas multinacionais com capital aberto e cotadas em bolsa. Esses episódios demonstram que os conflitos ambientais mobilizam não apenas a violência institucional (em geral representada pela ação truculenta da polícia ou das forças armadas), ou a violência em seu estado mais puro e arbitrário (executada por jagunços e pistoleiros), mas também uma violência sutil, porém mais devastadora, que é a violência simbólica. Ao questionar a identidade desses grupos sociais (geralmente já discriminados), esses atores não apenas visam desestruturar a luta política das comunidades tradicionais, ou deslegitimá-las frente a outros grupos sociais, mas objetivam também atingir algo que nenhum assassinato de liderança tem sido capaz: desestruturar a coesão interna da qual essas comunidades se fortalecem. Ao questionar a identidade desses grupos e até mesmo o respeito dos mais jovens diante dos mais velhos1 (uma das bases da tradição na maioria das comunidades), buscam dividir essas comunidades e enfraquecer um dos elementos essenciais à luta socioambiental: a consciência de que se pertence a um grupo que se estrutura e se fortalece na ligação cultural com o território e sua conexão simbólica com o passado.

4. Como se articulam e se organizam as comunidades tradicionais face aos conflitos ambientais: reafirmando o passado para construção do futuro.

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Em Anchieta, a Associação de Moradores da Chapada do A denunciou que funcionários de uma empresa a serviço da Samarco Mineração (propositora de um polo siderúrgico na região) estariam tentando convencer os jovens da comunidade a pressionar seus pais a aceitarem um acordo com a empresa (Mapa, 2012e).

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Um dos elementos catalizadores dos conflitos ambientais entre essas comunidades é a construção do consenso dentro do grupo social em torno da magnitude e das extensões dos impactos ambientais negativos, dos riscos ou das consequências do desenvolvimento das políticas públicas ou empreendimentos instalados ou em licenciamento. Esse processo de tomada de posição pode se dar a partir da experiência empírica das consequências dessas atividades produtivas (como a percepção da redução da disponibilidade de água, a contaminação dos rios, a redução ou mudanças qualitativas do pescado ou da caça, a infertilidade do solo, o desmatamento de áreas preservadas ou a extinção de plantas e animais essenciais à reprodução comunitária) ou através de mobilizações de origem externamente realizadas pela disseminação de informações através de terceiros. Entre estes estão acadêmicos ou ativistas engajados no combate aos impactos provocados por certo setores da economia ou ciente dos riscos representados pelos empreendimentos propostos para determinadas regiões (nesse sentido se destacam o trabalho das pastorais e organizações eclesiásticas2, do Movimento dos Atingidos por Barragens, da Rede Alerta Contra o Deserto Verde ou movimentos sociais de base como o Movimento dos Pequenos Agricultores e o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Também é comum a atuação de ONGs ambientalista na formação de posições a respeito da inviabilidade socioambiental das atividades geradoras de injustiça ambiental. Nesse processo outros fatores podem atuar como impeditivos momentâneos para a tomada de posição da comunidade, como a veiculação de informações contraditórias por parte da mídia ou até mesmo a propagação de boatos; a ausência de informações oficiais ou a sonegação de projetos e relatórios no caso de conflitos envolvendo o licenciamento de atividades perigosas; ou ainda a manipulação de incertezas e das lacunas existentes na construção do conhecimento científico (seja em referência ao arcabouço existente sobre determinado problema de saúde ou impacto ambiental, seja sobre estabelecimento de um nexo causal entre determinada planta industrial e as consequências verificadas em certas comunidades). Emblemáticos desse processo são os casos envolvendo a contaminação de comunidades localizadas próximas a empresas que manipulam substâncias perigosas, como a indústria química, a mineração de urânio, a exploração do amianto ou a siderurgia. Em geral são preciso anos de estudos para que seja estabelecida a ligação entre determinados empreendimentos específicos e casos de câncer ou de doenças respiratórias existentes em uma região. Sem que haja a confirmação das “desconfianças” das comunidades 2

Como a Comissão Pastoral da Terra (CPT), a Pastoral dos Pescadores ou o Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

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através de estudos “cientificamente aceitos”, suas posições ficam fragilizadas diante da exigência de “provas” por parte dos órgãos de administração pública ou instâncias do judiciário, o que muitas vezes atrasa a realização de ações para mitigar os efeitos negativos dessas atividades e acaba por naturalizar o risco que representam às comunidades3 e provocar sua desmobilização. Quando a tomada de posição ocorre, passa ser necessário o estabelecimento de alianças estratégicas a fim de possibilitar que a comunidade supere a assimetria de poder existente entre elas e os empreendedores ou propositores de políticas públicas geradoras de injustiça ambiental. Nessa fase, além dos atores sociais já elencados anteriormente, tem sido essencial, na maioria dos conflitos analisados, a participação do Ministério e das Defensorias Públicos, na promoção da justiça ambiental nessas comunidades. É fundamental registrarmos ainda a importância do apoio dos chamados advogados populares4, seja em relação às ações e omissões do Estado, das indústrias ou grandes grupos empresariais, seja na responsabilização dos gestores diante dos efeitos negativos derivados da lentidão com que tramitam os processos administrativos necessários à demarcação de territórios tradicionais ou ao estabelecimento de protocolos de ação frente aos problemas ambientais ou de saúde. Também tem sido essencial à atuação das organizações ligadas aos envolvidos nos conflitos ambientais a articulação com veículos de mídia alternativas (digitais ou com tiragem impressa), que permitem o rompimento do silêncio “conivente” - que na maioria das vezes a mídia comercial impõe em relação a mobilizações que afetem a imagem de seus principais anunciantes - e a veiculação da própria comunidade. Mesmo quando o silêncio é quebrado em relação aos conflitos, não é incomum haver a divulgação de informações tendenciosas por parte dos meios de comunicações oficiais ou corporativos, como exemplifica o trecho referente ao conflito envolvendo os quilombolas de São Francisco do Paraguaçu citado anteriormente.

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Um exemplo desse processo de naturalização do risco é analisado por Almeida e Pena (2011) em recente trabalho sobre o consumo e o cultivo de alimentos em áreas contaminadas por chumbo em Santo Amaro da Purificação, Bahia. 4

São chamados advogados populares aqueles que se articulam com as comunidades em defesa de seus direitos fundamentais de forma voluntária. Muitos estão organizados em torno da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), que não atinge todos os estados, entretanto. Dentre eles vale ressaltar a atuação da Associação de Advogados e Advogadas de Trabalhadores Rurais (AATR), na Bahia; a Dignitatis, na Paraíba e Pernambuco; a Terra de Direitos, sediada no Paraná mas atuando também em outros estados. Dentre as menores, há ainda a Mariana Crioula, restrita ao Rio de Janeiro; e, entre as maiores, a internacional Justiça Global. .

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Estudos acadêmicos levados à frente por programas de pós-graduação e pesquisadores independentes também têm servido a esse propósito, porém a própria dinâmica de construção de conhecimento na academia, o tempo necessário para sua realização e o limitado alcance da divulgação desses estudos impedem que tenham efeitos mais relevantes no campo das lutas sociais e disputa pela construção do discurso legítimo a respeito de tais conflitos entre a população. São, antes, essenciais no embasamento do diálogo nos espaços de decisão, onde a apresentação de evidências e o uso de linguagem acadêmica são parte do protocolo (o que muitas vezes impede o acesso das comunidades a esses espaços ou, se lá chegam, sequer conseguem ser ouvidas, entender ou se fazer ouvir, como foi relatado em relação aos KaiowáGuarani no julgamento de São Paulo e como se dá comumente nas “oitivas” ou audiência públicas). O insucesso na disputa por esses espaços (historicamente dominados pelos detentores do capital econômico e seus aliados) pode levar as comunidades tradicionais a estabelecerem estratégias de ação direta a fim de impedir a continuidade das injustiças e dos impactos sobre sua saúde ou modo de vida. O acirramento das tensões e a incapacidade (ou interesse) do Estado em atuar como mediador desses conflitos está na origem de ações que rompem com a dinâmica burocratizada e formal que as disputas assumem quando estão circunscritas aos processos administrativos ou judiciais. Os empates, as retomadas de antigos territórios indígenas ou quilombolas, a ocupação das sedes de fazendas ou canteiros de obras, o fechamento de estradas, a retenção de funcionários das empresas ou de autarquias, passeatas ou a autodemarcação são todas estratégias que rompem com o protocolo previsto. Além disso, podem representar uma oportunidade do estabelecimento ou reestabelecimento do diálogo entre os atores envolvidos, pois fazem com que a própria comunidade seja o interlocutor principal, excluindo os intermediários (como

advogados, promotores, lideranças sindicais ou associativas

desacreditadas, ou burocracias) e estabelecendo novas condições de diálogo, dessa vez direto, podendo contribuir tanto para acelerar processos, quanto para desencadear episódios de violência, reforçar preconceitos ou radicalizar diferenças. Analisando o processo de autodemarcação levado a cabo pelos Kulina do Alto Rio Purus, Neves (2004) afirma: Ao invés de uma ideia institucional, a «autodemarcação» Kulina, é uma prática concreta construída a partir do protagonismo indígena no processo integral de construção política de seus territórios, uma iniciativa que revoluciona a forma institucional de demarcação de terras indígenas, configurando-se como uma «realidade emergente». Menos como metodologia demarcatória desenvolvida empiricamente pelos Kulina e mais como uma iniciativa de mobilização de

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afirmação de direitos sobre as terras ocupadas, a «autodemarcação» irradiou rapidamente por todo o país, fazendo hoje parte da agenda política de todos os povos indígenas. Com a demarcação da Terra Indígena Kulina do Médio Rio Juruá, reconhecida oficialmente através do convênio entre a FUNAI e os índios Kulina, a «autodemarcação» afirmou-se definitivamente como a mais importante e inovadora mobilização política dos povos indígenas, revolucionando todo o processo e sistemática de demarcação das terras.

Do ponto de simbólico-ideológico, um dos elementos distintivos da luta dos movimentos sociais oriundos das comunidades tradicionais é a sua relação com a história de cada território e de cada povo. Se tradicionalmente o movimento operário e a luta progressista da esquerda se baseiam em um projeto de sociedade que rompe com o passado na perspectiva de superação das injustiças e construção de um mundo mais equânime, as comunidades tradicionais tendem a se fortalecer no resgate do passado. É através do legado de seus antepassados que essas comunidades se posicionam na resistência contra um projeto de futuro que não vê espaço para elas. Uma das grandes miopias ideológicas da esquerda no trato dessas comunidades foi o de situá-las no campo das lutas sociais como um resquício ou uma reminiscência de um passado a ser superado rumo à sociedade socialista. A “proletarização” dessas comunidades era vista não só como um processo inevitável, mas também necessário para a construção de uma sociedade sem classes (MARTINS, 1993). Não viram o potencial revolucionário e contra-hegemônico que as práticas sociais tradicionais de muitos desses povos encerram no seu dia-a-dia. Longe de resgatar o mito do “bom selvagem” e de identificar tais comunidades a um modo de vida mais “puro” e idealizado de equilíbrio com a natureza, o que suas histórias de resistência têm a nos ensinar é o resgate de certos valores de solidariedade. Ambos os projetos dominantes (tanto o capitalista neoliberal, quanto o socialista real) trazem no seu bojo ideais característicos da modernidade ocidental que acabam por se revelar destrutivos das condições de possibilidade da vida em comunidade e da sustentabilidade. Sustentabilidade entendida não como sinônimo do falacioso ideário do “desenvolvimento sustentável”, mas identificada com o respeito aos ciclos naturais e a um modo de vida que busque acima de tudo o bem viver, distante do ideal de progresso como sinônimo de geração de nichos ecológicos artificiais para os seres humanos e de desenvolvimento significando a produção ininterrupta de novos bens e de riqueza. Nesse sentido, as lutas das comunidades tradicionais têm trazido para o debate não apenas as contradições de uma sociedade de classe, mas também as contradições do projeto de modernidade gestado no ocidente durante o renascimento e baseado na negação do outro e no racismo. O que essas comunidades reafirmam é que não há um único modo de vida válido, ou

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um único caminho inexorável para a História, mas que a História pode ser construída de variadas formas, e que cada grupo social deve ter autonomia para escolher seu caminho. Mesmo que seja um modo de vida identificado como “primitivo” ou “superado” por aqueles que propugnam o fim da história ou o fim de toda diferença (o que não significa necessariamente o fim da desigualdade ou que não possa haver equidade entre os diferentes).

Conclusão: A análise dos conflitos ambientais envolvendo as comunidades tradicionais brasileiras exige a superação de uma série de paradigmas que são hoje dominantes tanto no campo social, quanto no campo acadêmico. O diálogo com as teorias a respeito da alteridade e da construção das fronteiras étnicas é essencial para a compreensão de certas nuances e dimensões das disputas e das lutas nas quais essas comunidades são envolvidas. Não é possível restringir a questão à luta de classes ou a teorias que ignorem as especificidades trazidas pelos contextos históricos e culturais nos quais essas comunidades foram gestadas e os dilemas com os quais são obrigadas a lidar cotidianamente. Especialmente no caso dos povos indígenas, onde até mesmo a língua pode se interpor como uma barreira intransponível, a tradução de signos de uma cultura para outra é sempre um processo incompleto. Em certos momentos, o estabelecimento de um diálogo é prejudicado não só pela incomensurabilidade de certos valores, como pela própria incapacidade demonstrada pelos mecanismos de resolução de conflitos em uso durante décadas em nosso país para lidar com o fato de que certos valores, práticas e sentidos não são passíveis de serem transplantados para outros “territórios”. Há valores que compõem a própria essência do fazer parte de determinadas comunidades e não podem simplesmente serem indenizados ou recriados em outros lugares. A perda desses valores, crenças e referências pode significar a própria morte do grupo ou dos indivíduos. O aumento do número de suicídios entre certas comunidades tradicionais; as altas taxas de alcoolismo verificadas em muitas comunidades onde antes dos conflitos isso não era um problema relevante; os surtos de doenças sexualmente transmissíveis entre adolescentes e mulheres: a tristeza e o sofrimento que têm abreviado a vida de muitas lideranças que sobrevivem aos espancamentos, prisões, humilhações e assassinatos demonstram que a perda dos territórios não extingue apenas a diversidade social, mas também o sentido de muitas vidas.

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A conclusão da análise desses conflitos é que a violência simbólica e o etnocídio, apesar de não constarem em nenhum registro de óbito oficial, também destroem a razão de ser de muitas vidas, antes de matá-las fisicamente.

Referências: ALMEIDA, M.D.; PENA, P.G.L. Feira livre e risco de contaminação alimentar: Estudo de abordagem etnográfica em Santo Amaro, Bahia. Revista Baiana de Saúde Pública, Salvador, v. 35, n. 1, p. 110-127, jan/mar.2011. ISSN 0100-0233. Disponível em: . Acesso em: 28 ago. 2012. BRASIL. Presidência da República. Lei n. 6.001, de 19 de dezembro de 1973. Dispõe sobre o Estatuto do Índio. Diário Oficial da União, Brasília, 21 dez. 1973. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. ______. Lei n. 9.985, de 18 de julho de 2000. Regulamenta o art. 225, § 1 o, incisos I, II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 19 jul. 2000. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. ______. Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; altera as Leis nos 7.716, de 05 de janeiro de 1989, 9.029, de 13 de abril de 1995, 7.347, de 24 de julho de 1985, e 10.778, de 24 de novembro de 2003.. Diário Oficial da União, Brasília, 21 jul. 2010. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. ______. Decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Diário Oficial da União, Brasília, 21 nov. 2003. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. ______. Decreto nº 6.040, de 07 de fevereiro de 2007. Institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais. Diário Oficial da União, Brasília, 08 fev. 2007. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. ______. Decreto nº 7.177, de 12 de maio de 2010. Altera o Anexo do Decreto no 7.037, de 21 de dezembro de 2009, que aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3. Diário Oficial da União, Brasília, 13 mai. 2010. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. BRASIL, Câmara dos Deputados. PL 2057/1991. Dispõe sobre o Estatuto das Sociedades Indígenas. Projetos de Leis e Outras Proposições, Brasília, 20 jun. 2012. Disponível em: < http://goo.gl/4J7Xw> Acesso em: 30 set. 2009.

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______. PEC 215/2000. Inclui dentre as competências exclusivas do Congresso Nacional a aprovação de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios e a ratificação das demarcações já homologadas; estabelecendo que os critérios e procedimentos de demarcação serão regulamentados por lei. Projetos de Leis e Outras Proposições, Brasília, 24 abr. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 3239. Acompanhamento Processual, Brasília, 10 mai. 2012. Disponível em: Acesso em: 30 set. 2009. COMUNIDADE Guarani de Morro dos Cavalos tem a garantia ao direito territorial protelada por ações na justiça e nos três níveis federados de governo. Ruralistas e grande imprensa vendem a ideia de índios “estrangeiros” na terra que foi deles antes do descobrimento do Brasil pelos portugueses. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: < http://goo.gl/Rn32D>. Acesso em: 29 set. 2012e. COMUNIDADES tradicionais de Anchieta se mobilizam contra empreendimentos ambientalmente danosos. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2012. MÁRQUEZ COVARRUBIA, H. Crisis del sistema capitalista mundial: paradojas y respuestas. Polis, Santiago, v. 9, n. 27, p. 435-461, 2010. ISSN 0718-6568. Disponível em: . Acesso em: 30 set. 2012. MARTINS, J.S. Tempo e linguagem nas lutas do campo. In: MARTINS, J. S. (Ed.). A chegada do estranho. São Paulo: HUCITEC, 1993. Cap. 2, p.27-59. ISBN 85-27102196. NEVES, L.J.O. Olhos mágicos do Sul (do Sul): Lutas contra-hegemônicas dos povos indígenas do Brasil. In: SANTOS, B. S. (Ed.). Reconhecer para libertar: Os caminhos do cosmopolitismo multicultural. Porto: Afrontamento, 2004. Cap. 3, (Saber Imaginar o Social, 3). O MARTÍRIO de um Grande Povo – identidade, afirmação e reconhecimento dos direitos e terras dos Guarani-Kaiowá. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2012. PORTO, M.F.S.; PACHECO, T.C. Conflitos e injustiça ambiental em saúde no Brasil. Tempus - Actas em Saúde Coletiva, Brasília, v. 3, n. 4, p. 26-37, 2009. ISSN 1982-8829. Disponível em: . Acesso em: 22 jul. 2010. POVOS Tupinikim e Guarani: depois de expostos a verdadeiro genocídio, expulsos e humilhados, ainda lutam contra a burocracia para ter seus direitos garantidos. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2012b. POVO Xavante enfrenta grileiros e oportunistas, que se valem de violência, do lobby político e das fragilidades e ineficiência dos poderes Judiciário e Executivo para a protelação e usurpação dos seus direitos territoriais. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: < http://goo.gl/HUzxf>. Acesso em: 29 set. 2012e. QUILOMBO São Francisco do Paraguaçu luta por seus direitos e contra preconceito, violência e práticas coronelistas. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2012c.

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Na Gleba Nova Olinda e entorno, Povo Borari, camponeses e ribeirinhos lutam contra grileiros, madeireiros e sojicultores do Sul, que buscam cada vez mais expulsá-los de suas terras, enquanto aguardam demarcaçâo. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2012d. ROCHA, D.F. O papel do Estado nos conflitos socioambientais no Brasil: um estudo sobre o conflito entre as comunidades indígenas Tupiniquins & Guaranis e a Aracruz Celulose S.A no norte do Espírito Santo. 2008. 109 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Ciências Sociais). Departamento de Sociologia e Metodologia das Ciências Sociais, Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Centro de Estudos Gerais, Universidade Federal Fluminense, Niterói, jun. 2008. ______. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil: Ferramenta dos movimentos sociais nas lutas territoriais. Agriculturas, Rio de Janeiro: Wagenigen, v. 8, n. 4, p. 46-47, dez.2011. ISSN 1807-491X. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2012. ROUSSET, P. O ecológico e o social: combates, problemas, marxismos Tempo, n. 3113, p. 1-9, jan.2001. Acesso em: 30 mai. 2011.

Cadernos em

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