As Conexões da Linguagem

July 18, 2017 | Autor: Julio Pinto | Categoria: Semiotica
Share Embed


Descrição do Produto

AS CONEXÕES DA LINGUAGEM[1]

(Julio Pinto)


Para falar desse tema de hoje e estabelecer alguma conexão com a
linguagem e com a ética, o tema geral deste ciclo, precisarei fazer algo
que sempre faço: tomar um desvio, não só porque essa estrada é acidentada e
cheia de curvas em que se pode derrapar com facilidade, mas porque gostaria
de pegar um aspecto da contemporaneidade, o da informação e as novas
tecnologias, para poder, não exatamente dizer, mas, quem sabe, sussurrar
uma palavra ou duas sobre os temas em questão. A idéia é usar a informação
e as novas tecnologias como instâncias que são mais ou menos exemplares do
que quero discutir, na medida em que são atualizações dessas abstrações a
que vou me dirigir.
De qualquer modo, tudo o que direi vem de um único pressuposto básico
sobre a linguagem que vou só enunciar agora, mas que vocês entenderão
perfeitamente no decurso desta fala: a linguagem – qualquer que ela seja,
verbal, gestual, imagética, sonora -- depende sempre de uma relação de
representação triádica, isto é, que envolve três elementos: uma
representação, chamada de signo, algo representado, chamado de objeto, e
uma interpretação desse processo, chamada interpretante. Por ora basta
isso. Prossigamos.
O lugar comum, hoje em dia, é o de dizer que estamos na era da
informação. E, geralmente, temos um problema com o senso comum, pois ele se
funda em uma ideologia que, muitas vezes, fica inquestionada e, por isso,
às vezes incide em erro. Quero dizer, desde o início, que, na minha
opinião, temos um equívoco com essa denominação de Era da Informação que,
de tão repetida, virou senso comum e ninguém questiona. Vou explicar o
porquê desse questionamento tão ousado de minha parte. A razão desdobra-se
em duas partes.
A primeira parte é que a informação, pensada como algo que fica lá
guardado, em algum escaninho (hoje em dia, esse escaninho é sempre
eletrônico), é o sustentáculo de toda uma sociedade. Ora, é-o apenas em
parte. Digo em parte, porque ela, em seu estado de informação guardada,
acumulando poeira iônica, por assim dizer, é só latente. Ela fica lá (e, no
caso da informação armazenada eletronicamente, ninguém sabe exatamente onde
é esse lá), à espera de alguém que a use. E ela fica lá guardada em uma
forma que somente as máquinas entendem. Deixemo-las quietas por um
instante e vamos pensar em nós.
Ora, nós, os chamados seres humanos, compartilhamos com os demais
seres vivos uma característica muito interessante. O organismo vivo está
vivo porque depende da percepção de algo a que se pode chamar de informação
para se alimentar, para se defender, para se reproduzir, em suma, para
viver. Um sapo não tem, em sua aparelhagem ocular e nervosa, nenhum
registro para a imobilidade. Isso quer dizer que ele não está equipado para
ver nada que esteja imóvel. Ele só vê o inseto que será seu alimento
quando esse inseto se mexer. Em outras palavras, a mera existência do
inseto não garante comida para o sapo. Isto é, o inseto imóvel é uma
informação latente. A informação real é quando ele se mexe. Aí, sim, o sapo
o vê e dele se alimenta. E o que é ver? Ver é perceber uma informação
visual e processá-la no sistema nervoso. Ver é participar de um processo de
comunicação. Comunicação, nesse sentido, é o processo de pegar uma
informação e torná-la relevante para o organismo.
Já começamos a vislumbrar a idéia que informação sem comunicação é o
mesmo que um inseto imóvel para o sapo, isto é, não é nada. Aí está a
primeira parte da razão pela qual eu disse que o nome Era da Informação é
equivocado. Deveria ser Era da Comunicação.
A segunda parte tem a ver com um outro aspecto dessa mesma informação.
Como anunciei, vou privilegiar as novas tecnologias e a informática, porque
são a última onda e está todo mundo preocupado com elas, se bem que, na
maior parte, a preocupação das pessoas se resume em aprender a usá-las. A
minha preocupação tem a ver com o critério de uso dessas tecnologias. Quer
dizer, sou todo a favor da informática, contanto que seu uso seja bem
pensado.
Uma das coisas que muito se diz a respeito das novas tecnologias é que
elas revolucionam a forma de estocar e disseminar a informação. Fazem isso
por causa de sua enorme versatilidade, rapidez, memória e possibilidades de
interatividade. Deposita-se grande esperança na instantaneidade e nas
possibilidades interativas das novas tecnologias eletrônicas. Mas, em
parte, essa esperança se deve a uma atitude de deslumbramento diante da
máquina inteligente, quase uma reversão ao pensamento mágico pré-moderno.
Esse deslumbramento é visível na obra de muitas pessoas, inclusive no
pensador mais citado nessas paragens teóricas, o Pierre Lévy.
Com efeito, parece mesmo haver mágica na relação quase binária que
temos com os computadores que, por sua vez, também dependem de uma lógica
binária para sua operação, essa lógica binária sendo o 1 e o 0, o on e o
off, o liga-desliga. Digo "quase binária" porque a presença das interfaces
amigáveis (representadas quase universalmente pelo Windows), com seus
ícones auto-explanatórios, provoca uma relação que parece ser do tipo ação
e reação (clico no mouse aqui e acontece ali). Isso aí é o binário, isto é,
o um é o clicar, o dois é o acontecer. O acontecer segue o clicar.
Entretanto, é uma questão de aparência, porque, na verdade, outros termos
entram em ação que produzem algo visível na tela como resultado de todo um
processo. Mas, é também verdade, contudo, que o resultado provém de um
encadeamento de relações binárias executadas a grande velocidade. Seja
como for, minha percepção como usuário-consulente (não é quase isso o que
somos diante do oráculo maquínico?) é de quase instantaneidade e de uma
ação resultante de um toque meu. Eu faço um gesto e coisas acontecem.
Ora, essa relação binária imediata e mágica (assim como o controle
remoto do aparelho de TV, varinha de condão contemporânea) reflete, mutatis
mutandis, o pensamento mágico. E o pensamento mágico não é senão pensar
que a palavra tem um poder real em relação ao mundo das coisas: a fórmula
encantatória, o abracadabra, o encanto que deve ser dito para que algo
extraordinário aconteça. Digo a fórmula mágica e com ela inverto as leis da
natureza. A magia se funda também na binariedade, na medida em que não há
interpretação possível: há apenas o sinal verbal ou gestual e seu resultado
fixado, previsto, numa relação de pertinência de um para um. Um sinal ou
uma palavra, um resultado. Lembram-se dos gestos hipnóticos do Mandrake?
Para cada um de seus gestos, uma ilusão diferente acometia os bandidos. O
pensamento mágico está presente, por exemplo, no medo que algumas pessoas
têm de dizer certas coisas para não trazê-las para si. Todos nós conhecemos
alguém que só chama o câncer de "aquela doença" e o diabo de "coisa ruim".

Ora, a magia é uma espécie de tecnologia, uma tecnologia sem ciência.
E o que é uma ciência? A ciência se funda na dúvida e no querer saber.
Shakespeare fez ciência, em um certo sentido, ao indagar através de Hamlet:
"Ser ou não ser, eis a questão." Ora, o problema não está nem no ser, nem
no não ser. Não se trata de um versus o outro, porque se fosse assim,
teríamos zero como a soma de mais um com menos um. Trata-se de um OU outro.
O grande lance é a hesitância, é a dúvida. O não saber produz o saber. Em
outras palavras, a ciência se funda na pergunta, e não nas respostas. A
ciência quer saber o porquê, ela quer fazer a pergunta fundante. Na magia,
assim como na tecnologia, aprendo as fórmulas e manipulo o mundo, como
vimos. E, em ambas, a minha primeira pergunta não é "por que?" mas "como?"

O receio é, portanto, que a tecnologia esteja sendo vista do mesmo
jeito que a magia. O que se diz, por exemplo, quando se fala em aprender
informática, refere-se ao aprendizado mecânico, quase maquínico, dos
procedimentos que se devem seguir para a correta aplicação de um programa
ou aplicativo, seguindo a lógica da programação. As explicações para esses
procedimentos, se alguém pergunta por quê, sempre parecem ser " é assim
porque é assim que foi feito". Vou fazer um paralelo. O mago abre seu
alfarrábio (eu inicializo minha máquina), ele procura a fórmula (eu desço
um menu em cascata), ele pronuncia o encanto (eu clico no item que me
interessa) e, presto, o cavalo dele sai voando (e eu faço algum milagre
visual). Ele segue o alfarrábio, eu sigo o manual.
Se a ciência se funda nas perguntas, as tecnologias se manifestam
como respostas cujas perguntas foram, paradoxalmente, suprimidas ou
substituídas por outras, menos fundamentais e mais imediatas. Perguntas
típicas seriam: "Como retratar fielmente o fluxo de caixa de minha
empresa?" ou "Como facilitar a rastreabilidade das informações e dos
procedimentos de produção em minha fábrica?". Para elas a resposta é um
certo software, que, certamente, demandará treinamento (e não ensino) de
algum funcionário, aprendiz de mágico, para sua correta execução. E será
que o problema real daquela empresa será resolvido? Como se vê, essas
perguntas talvez não sejam, a rigor, científicas, mas são, elas também,
tecnológicas.
A tecnologia sozinha é ingênua como a magia. Ela é uma resposta
pronta para perguntas prontas. Ela é o que algum costureiro imagina que
todas as mulheres vão querer vestir. A tecnologia é uma roupa de pronta
entrega. E ela é assim porque ela deixa de lado uma coisa fundamental que
está na ciência: suas dúvidas são superficiais.
Pior: o binarismo do faz aqui, acontece ali, ou diz aqui, acontece
lá, é o caminho mais fácil para o dogma e o fundamentalismo, a visão de
mundo que não aceita a dúvida. Assim como o computador é uma máquina
burra, porque é dogmática (para ele o dado ora é, ora não é), o uso
dogmático que o humano faz da linguagem a binariza, na medida em que faz
subsumir, na representação, aquilo que é representado com aquilo que é
interpretado. Já vimos que o diálogo Shakespeareano entre o ser e o não
ser é interpretado pelo OU, que estabelece uma diferença fundamental. A
interpretação pode até ser análoga à representação ou ao representado, mas
não é igual. No fundamentalismo, a interpretação é igual ao representado.
Não há a diferença. Em outras palavras, algo é algo e fim de conversa.
Pois bem, voltemos à informação. Lembram-se que informação sem
comunicação não é nada. É a comunicação que faz a informação ficar
relevante. Podemos dizer que, na medida em que o pensamento é cognitivo,
ele deve ser simbólico em sua natureza, isto é, pensar pressupõe
comunicar.[2] A comunicação se faz pelos signos, isto é, aquilo que
representa um representado para uma interpretação. Vamos juntar a outra
idéia agora. Tecnologia sem ciência é igual à magia, é ingênua como a magia
que crê no poder do abracadabra. A tecnologia da informação é como o
inseto imóvel do sapo. Ela tem os comos, mas não sabe o que é relevante. A
comunicação, ao contrário, pode ser pensada – e, infelizmente, muitas vezes
não o é – como aquilo que identifica as relevâncias não só através dos
comos, mas principalmente através dos por quês, porque a comunicação não é
um processo binário, mas um processo que levanta as dúvidas relevantes e as
trabalha e procura interpretá-las, isto é, a comunicação é aquele processo
que toma a informação e a torna relevante para o público. Por isso, digo
que estamos na era da Comunicação, e não na Era da Informação. Daí, vou
fazer apenas uma leve sugestão com relação à questão ética: talvez seja
possível inferir, pelo menos por esse viés, uma ética da comunicação e do
comunicador, centrada, talvez, na relevância daquilo que estará circulando.

-----------------------
[1] Manuscrito de palestra, 2008.
[2] Cf. BUCHLER, Justus. Introduction. Philosophical Writings of Peirce.
New York: Dover, 1955.
Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.