AS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL: análise histórica das Constituiçoes brasileiras e temas relevantes ao constitucionalismo pátrio

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Descrição do Produto

aS CoNStItuIÇÕES Do BRaSIl aNÁlISE HIStÓRICa DaS CoNStItuIÇÕES E DE tEMaS RElEVaNtES ao CoNStItuCIoNalISMo pÁtRIo

JÚlIo DE SouZa GoMES líVIa pItEllI ZaMaRIaN oRGaNIZaDoRES

aS CoNStItuIÇÕES Do BRaSIl aNÁlISE HIStÓRICa DaS CoNStItuIÇÕES E DE tEMaS RElEVaNtES ao CoNStItuCIoNalISMo pÁtRIo

1a EDIÇÃo BIRIGuI - Sp 2012

© 2012 Júlio de Souza Gomes e Lívia Pitelli Zamarian ©Direitos de Publicação Editora Boreal R. Aurora, 897 - Birigüi - SP - 16200-263 (18) 3644-6578 www.editoraboreal.com.br [email protected] Direção e Edição Carlos Roberto Garcia Cottas Capa Carlos Roberto Garcia Cottas Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Índices para Catálogo Sistemático:

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS: Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (artigo 184 e parágrafos do Código Penal) com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (artigos 101 a 110 da Lei 9.610/98, Lei dos Direitos Autorais). As opiniões contidas nos capítulos desta obra são de responsabilidade exclusiva dos seus autores, não representando, necessáriamente, a opinião dos organizadores e da editora desta obra.

Orgulhosamente elaborado e impresso no Brasil 2012

CoNSElHo EDItoRIal Da EDItoRa BoREal

Andréia de Abreu Doutoranda e Mestre em Engenharia de produção - uFSCaR Antonio Celso Baeta Minhoto Doutor em Direito pela ItE-Bauru Daniel Marques de Camargo Mestre em Direito pela uENp Dayene Pereira Siqueira Mestre em Educação pelo Centro universitário Moura lacerda Dirceu Pereira Siqueira Doutorando e Mestre em Direito pela ItE-Bauru Jaime Domingues Brito Doutorando em Direito pela ItE-Bauru Leonides da Silva Justiniano Doutor em Educação pela uNESp Doutorando em Ciências Sociais pela uNESp Luciano Lobo Gatti Doutor em Ciências pela uNIFESp Marisa Rossinholi Doutora em Educação pela uNIMEp Murilo Angeli Dias dos Santos Mestre em Filosofia pela uSJt Sérgio Tibiriçá Amaral Doutor em Direito pela ItE-Bauru

SuMÁRIo

SoBRE oS autoRES apRESENtaÇÃo pREFÁCIo

XI XV XVII

paRtE I aNÁlISE DaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS Capítulo I

BREVES EStuDoS SoBRE a CoNStItuIÇÃo IMpERIal (1824)

3

Bruno Miola da Silva João Fábio Gonçalves Capítulo II

a CoNStItuIÇÃo DoS EStaDoS uNIDoS Do BRaSIl (1891)

18

João Gustavo Bachega Masiero Henrique Carani Coube Capítulo III

a CoNStItuIÇÃo Da REpÚBlICa DoS EStaDoS uNIDoS Do BRaSIl (1934)

34

Elaine Cristina de Oliveira Lívia Pitelli Zamarian Capítulo IV

a CoNStItuIÇÃo Do EStaDo NoVo (1937)

59

Leandro Douglas Lopes Ronaldo Adriano dos Santos Capítulo V

a CoNStItuIÇÃo Da REpÚBlICa DoS EStaDoS uNIDoS Do BRaSIl (1946)

Júlio de Souza Gomes Luiz Augusto Almeida Maia

77

Capítulo VI

A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (1967) E A EMENDA Nº1/1969 

97

Cristiane de Toledo Barros Burjato Simões Capítulo VII

A CONSTITUIÇÃO DE WEIMAR E SUA INFLUÊNCIA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

115

Daniela Dias Graciotto Martins Thiago de Barros Rocha Capítulo VIII

A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL (1988)

135

Juliana Cristina Borcat Lívia Pelli Palumbo PARTE II TEMAS RELEVANTES E SEU TRATAMENTO NA HISTÓRIA CONSTITUCIONAL BRASILEIRA Capítulo iX

O MEIO AMBIENTE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824 a 1988

163

Manoel Browne de Paula Capítulo X

PROTEÇÃO PENAL E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

185

Haroldo Cesar Bianchi Capítulo XI

A INFLUÊNCIA DO PENSAMENTO CRISTÃO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

209

José Raimundo de Carvalho Márcio Calçada Fernandes Machado Capítulo XII

O DIREITO DO TRABALHO NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

229

Winnicius Pereira de Góes Capítulo XIII

A FAMÍLIA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Maria Amélia Belomo Castanho

248

Capítulo XIV

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

272

Marcelo Specian Zabotini Peter Panutto Capítulo XV

CONTROLE CONCENTRADO DE CONSTITUCIONALIDADE ESTADUAL

294

Antônio da Silva Ortega Felipe Gomes Salgueiro Capítulo XVI

O DIREITO CONSTITUCIONAL À RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

313

Willian Cleber Zolandeck Capítulo XVII

ACESSO AO JUDICIÁRIO E A EFETIVAÇÃO DE DIREITO 

339

Gelson Amaro de Souza Gelson Amaro de Souza Filho Capítulo XVIII

ATIVISMO JUDICIAL E O STF 

359

Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez Capítulo XIX

A GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA AO ESTRANGEIRO NO BRASIL E NA VISÃO DO DIREITO INTERNACIONAL 

Luís Renato Vedovato

375

SoBRE oS autoRES

Antônio da Silva Ortega Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Amazonas. Analista Judiciário da Justiça Federal de São Paulo. Bruno Miola da Silva Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Advogado. Cristiane de Toledo Barros Burjato Simões Mestranda em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Servidora Pública Estadual. Daniela Dias Graciotto Martins Mestranda em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Juíza Substituta do Estado de São Paulo (TJSP). Elaine Cristina de Oliveira Mestranda em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Anhanguera. Advogada. Felipe Gomes Salgueiro Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Analista Judiciário da Justiça Federal de São Paulo. Gelson Amaro de Souza Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/ SP), Professor concursado para os cursos de graduação e mestrado em direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/Campus de Jacarezinho), ex-diretor e professor da Faculdade de Direito da Associação Educacional Toledo de Presidente Prudente/SP. Procurador do Estado (aposentado) e advogado em Presidente Prudente /SP. Gelson Amaro de Souza Filho Jornalista Graduado pela Universidade do Oeste Paulista e Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP

Haroldo Cesar Bianchi Mestre em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/SP). Promotor de Justiça Criminal da Capital do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito/Centro Universitário de Bauru. Conselheiro do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público – Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo. Henrique Carani Coube Tabelião de Notas e Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Especialista pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Tabelião de Notas e Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. João Fábio Gonçalves Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Direito Educacional pelas Faculdades Claretianas e em Gestão Educacional pela Universidade Estadual de Campinas. Diretor de Escola da Rede Estadual do Estado de São Paulo e advogado. João Gustavo Bachega Masiero Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito. Advogado. José Raimundo de Carvalho Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Sacerdote Católico. Juliana Cristina Borcat Mestranda em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogada. Júlio de Souza Gomes Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Direito Tributário pela Fundação Eurípedes Soares da Rocha. Advogado Leandro Douglas Lopes Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogado. Lívia Pelli Palumbo Mestranda em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogada. Lívia Pitelli Zamarian Mestranda em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (EMAP). Docente na Universidade Norte do Paraná (UNOPAR). Advogada.

Luís Renato Vedovato Mestre e Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Professor da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC/Campinas) e da FACAMP. Luiz Augusto Almeida Maia Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogado. Manoel Browne de Paula Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Especialista em Meio Ambiente (COPPE/UFRJ). Legal and Law Master em Direito Empresarial (IBMEC). Responsável pela Gerência de Relações Institucionais e Meio Ambiente da Lwart Lubrificantes Ltda. Palestrante. Marcelo Specian Zabotini Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas no Estado de São Paulo. Márcio Calçada Fernandes Machado Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva (FAIT). Advogado. Maria Amélia Belomo Castanho Mestre em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP/ Campus Jacarezinho). Advogada. Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez Aluna regular (bolsista CAPES) do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina (UEL). Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná (EMAP). Advogada. Peter Panutto Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Diretor e professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica (PUC/Campinas). Advogado. Membro da Comissão de Educação Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB/ Seção de São Paulo). Ronaldo Adriano dos Santos Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogado. Thiago de Barros Rocha Mestrando em Direito pela Instituição Toledo de Ensino (ITE/Bauru). Advogado.

Willian Cleber Zolandeck Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst). Professor da Faculdade Metropolitana de Curitiba. Advogado. Winnicius Pereira de Góes Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Arthur Thomas (FAAT). Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR). Especialista em Direitos Humanos e Democracia pelo Ius Gentium Conimbrigae da Faculdade de Direito de Coimbra. Bolsista da Fundação Araucária.

apRESENtaÇÃo Fruto de discussões e estudos realizados nas aulas do mestrado na Instituição Toledo de Ensino, em Bauru/SP, esta obra, que além da participação de todos os mestrandos da turma 2010-2012, logo recebeu a ilustre contribuição de professores e de autores vinculados a outros programas, revisita a história constitucional brasileira. Na primeira parte da obra, os capítulos apresentam cada uma das sete constituições brasileiras, com a ressalva de que a Emenda Constitucional n. 1/69 não é entendida como uma nova constituição e, portanto, foi tratada junto com a Constituição de 1937. A obra tem o mérito de contextualizar historicamente as constituições brasileiras, sem descuidar dos aspectos jurídicos mais relevantes e as características peculiares de cada documento que, quiçá, tenham influenciado o atual constitucionalismo. Há ainda, nesta primeira parte, um capítulo dedicado à constituição de Weimar, por representar um marco na própria conformação do Estado, com a implantação dos direitos sociais, bem como, pelo forte reflexo que imprimiu nas constituições brasileiras, a partir de 1934. A segunda parte da obra é dedicada ao estudo do tratamento constitucional de diversos temas considerados relevantes pelos autores. O meio ambiente, a proteção penal, o pensamento cristão, o direito do trabalho, a família, o controle de constitucionalidade estadual e federal, a razoável duração do processo, o acesso ao judiciário e a efetivação de direito, o ativismo judicial e o acesso à justiça ao estrangeiro no Brasil foram os temas escolhidos ante sua importância social. A obra não busca exaurir todos os temas constitucionais essenciais, mas é, certamente, uma consulta obrigatória para aqueles que pesquisam tais matérias. Destaca-se ainda, pela realização de uma digressão histórica, de importância singular para todos os estudiosos do direito, ante ao atual estágio do constitucionalismo pátrio que deve permear qualquer reflexão jurídica. Os organizadores Júlio de Souza Gomes Lívia Pitelli Zamarian

pREFÁCIo O programa de pós-graduação stricto sensu da Instituição Toledo de Ensino de Bauru, fazendo jus a seu pioneirismo, porquanto o primeiro programa de mestrado e doutoramento em Direito de uma instituição privada do interior de São Paulo, tem se destacado por sua produção científica apurada e simultaneamente voltada a temas atuais e de relevante importância social. Na verdade, essa compostura acadêmica deriva de um arco de características, que, em uma ponta, apresenta como nota uma rigorosa formação científica de seus pós-graduandos e, em outra, um convite constante a estes para que aprofundem a pesquisa e a especulação sobre os diversos temas de Direito Constitucional, inclusive por meio da edição de obras literárias como esta que ora se apresenta. Assim, foi com bastante orgulho que recebi o convite para prefaciar este livro. Conheço, de perto, todos os autores, podendo atestar o engajamento verdadeiro e dedicado de cada um deles ao estudo do Direito. Tal afirmação pode ser verificada, ainda uma vez, pela leitura dos textos que compõem esta importante obra científica. É de se destacar: estão alicerçados em sólida pesquisa, apresentam um invejável desenvolvimento lógico e destrinçam matérias relevantíssimas da história do Direito Constitucional brasileiro. Cumprimento, assim, os autores. Em primeiro lugar, pelo exaustivo trabalho e, em segundo, por brindarem a nós, leitores, com textos tão ricos e relevantes. Bauru, 15 de outubro de 2012 Professor VIDAL SERRANO NUNES JUNIOR Livre-docente em Direito Constitucional

PARTE I aNÁlISE DaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS

CAPÍTULO I

BREVES EStuDoS SoBRE a CoNStItuIÇÃo IMpERIal (1824)

Bruno Miola da Silva Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. MBA em Direito Empresarial pela Fundação Getúlio Vargas. Advogado.

João Fábio Gonçalves Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Educacional pelas Faculdades Claretianas e em Gestão Educacional pela Universidade Estadual de Campinas. Diretor de Escola da Rede Estadual do Estado de São Paulo e advogado.

INTRODUÇÃO: CONTExTO hISTóRICO

Com a volta de D. João VI para Portugal em 26/04/1821, fica no comando do Brasil, agora na categoria de Reino Unido a Portugal, o seu filho D. Pedro. Este, atendendo ao requerimento do Conselho dos Procuradores das Províncias, convoca uma “Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Brasil”, em 03/06/1832. A partir de então, gerou-se uma sucessão de acontecimentos culminando na Independência do Brasil. A Constituição do Império teve vigência de 25/03/1824 a 15/11/1889, sendo a Carta Magna de maior longevidade de nosso país. Entretanto, não só a longevidade marcou esta Carta. Em franca usurpação da vontade constituinte dos governados, o Imperador chamou para si todo o poder constituinte, sendo esta a primeira última usurpação da Monarquia1. 1.

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2004, p. 166

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As Constituições do Brasil análise histórica das constituições e de temas relevantes ao constitucionalismo pátrio

Dentre as características, se destaca nesta Constituição: estabelecia um governo monárquico unitário e hereditário; a existência de quatro poderes, o Legislativo, o Executivo, o Judiciário e o Moderador, este acima de todos os demais e exercido pelo Imperador; a religião oficial era o Catolicismo Apostólico Romano, com a igreja submissa ao Estado, podendo o Imperador conceder cargos eclesiásticos; o texto constitucional definia quem era considerado cidadão; as eleições eram censitárias, abertas e indiretas; o Imperador não respondia pelos seus atos judicialmente, ou seja, era irresponsável; foi uma das primeiras constituições no mundo a incluir em seu texto um rol de direitos e garantias individuais. A primeira constituinte iniciou os seus trabalhos em 3 de maio de 1923. Embora os constituintes tenham sido eleitos livremente, seus trabalhos dependeriam da aprovação do Imperador. Conforme Paulo Bonavides: O Imperador tinha o poder de pôr e dispor; os constituintes podiam escrever livremente a Constituição, desde que ela fosse “digna da real aprovação”. Em tal estado de coisas, um dos lados tem de ser subjugado, já que uma composição parecia hipótese remota. 2

Após dissolver a Assembleia Constituinte sob a acusação de não atender ao juramento de defender a integridade do Império, D. Pedro I forma um Conselho de Estado composto por dez membros sob a sua presidência, com a incumbência de elaborar um projeto de Constituição, que deveria ser posteriormente discutido pela Assembleia dissolvida. Sob a justificativa de se produzir uma Constituição “duplicadamente mais liberal do que a extinta Assembleia acabou de fazer”, o Príncipe Regente confiou a um Conselho de Estado composto de dez membros a incumbência de preparar o Projeto de Constituição. Este Projeto foi outorgado pelo Imperador como a Constituição Política do Império, dispensando-se uma nova convocação de Assembleia Constituinte3. Bonavides4 explica que a dissolução da assembleia constituinte provocou um trauma na alma liberal da nação, pois ali estava sediado “o sentimento de progressão de nossas liberdades e franquias”. O golpe de Estado de novembro de 1823, continua o autor, representou um grande revés na luta contra um Estado autocrático e usurpador. A Constituição do Império instituiu o Governo monárquico hereditário, constitucional e representativo (art. 3º). 2. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 2005, p. 100. 3. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. 1995, p. 55. 4. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2004., p. 215.

BREVES ESTUDOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL (1824)

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De acordo com José Afonso da Silva5, as bases da Constituição do Império se preocupavam com Manutenção do equilíbrio da sociedade, uma vez que o texto constitucional foi outorgado em um momento em que havia interesses heterogêneos e contraditórios na sociedade brasileira. A sociedade brasileira na época do império era marcada por forças reacionárias que visavam o retorno do País ao seu estado colonial. Classes sociais superiores da colônia – no caso os proprietários rurais – esperavam satisfazer seus interesses com a consolidação da liberdade e da independência do país. Por outro lado, forças populares encaravam a Constituição como forma de libertação econômica e social6. A Constituição do Império conseguiu acomodar a situação e conciliar os diversos interesses conflitantes na medida em que considerou os portugueses como nacionais, pela combinação da residência tomada como adesão ao Império. Ao mesmo tempo em que se ofereceu perspectivas às classes populares através de um elenco de direitos e garantias individuais, assegurou-se a hegemonia das classes superiores através do voto censitário. De acordo com Horta, a Constituição do Império se distinguia dos demais documentos constitucionais do século XIX em sua concepção da dupla dimensão da matéria constitucional em três características básicas: A primeira consistiu na incorporação constitucional do Poder Moderador, “chave de toda a organização política”, “delegado privativamente ao Imperador, como Chefe Supremo da Nação e seu primeiro representante” (art. 98). A segunda característica residiu na flexibilidade constitucional da Constituição semi-rígida, pois nela se perfilhou a regra de que “é só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos”. Tudo o que não fosse relativo à matéria constitucional poderia ser alterado, sem as formalidades da reforma constitucional, pelas legislaturas ordinárias (art. 178). A terceira característica é a liberal Declaração de Direitos e Garantis Individuais, amplamente desenvolvida nos 35 incisos do art. 179. 7

Durante a vigência da Constituição de 1824 viveu-se uma grande instabilidade política marcada por acontecimentos como a grande reforma do texto constitucional através do Ato Adicional em 1834, pela a abdicação de D. Pedro I seguida por um período de várias regências e incontáveis revoltas, por campanhas abolicionistas e republicanas. Sobre este período, Paulo Bonavides8 comenta: 5. SILVA, José Afonso. Poder Executivo na Constituição Imperial do Brasil de 1824. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. 2003. p. 23 ss. 6. Ibidem, p. 23 ss. 7. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. 1995, p. 56. 8. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 2005, p. 101.

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As Constituições do Brasil análise histórica das constituições e de temas relevantes ao constitucionalismo pátrio

Vemos, então, que a Constituição de 1824 não conseguiu fazer com que um consenso duradouro em torno de certos princípios - que seriam expressos pelo próprio texto constitucional - fosse alcançado. Tentou-se impor ao País um modelo que não refletia a realidade das instituições e estruturas políticas brasileiras, nem tampouco garantia que as que foram implantadas trouxessem estabilidade. Esbravejava-se contra o Poder Moderador e se invocava ele ao mesmo tempo para realizar as reformas. Era preciso por freios a esse poder absoluto deixado nas mãos de um só homem. Tornava-se necessário ultrapassar essa situação ambígua, quando não contraditória.

1 DIVISÃO DOS PODERES

A Constituição do Império não adotou a forma clássica de separação dos poderes em Legislativo, Executivo e Judiciário. Entretanto, sob inspiração de Benjamin Constant, foi instituído o 4º poder: o Poder Moderador (art. 10). Na dicção do art. 98, o Poder Moderador foi definido como chave da organização política, destinado privativamente ao Imperador com o objetivo de dar poderes para que este velasse “sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos””9. Esquematicamente, os poderes estavam organizados da seguinte forma na Constituição de 1824:

9. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2009, p. 266.

BREVES ESTUDOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL (1824)

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1.1 Poder Moderador

O Poder Moderador, também chamado de Poder Real, poder Imperial, Poder Neutro ou Poder Conservador teve suas atribuições enumeradas no art. 101 do texto constitucional. Outorgou-se ao Imperador grande poder de ingerência política, podendo inclusive decidir da ocupação do poder, fazer a alternância entre os homens e partidos quando bem desejasse10. Tratado pelo texto constitucional como quase divino, inviolável e sagrado, não sujeito a responsabilidade alguma, cabia ao Imperador interferir diretamente dos outros poderes. No Poder Executivo, o Imperador dispunha de amplos poderes para nomear e demitir os Ministros de Estado. Já no Poder Legislativo, poderia livremente nomear Senadores, convocar ou prorrogar a Assembleia Geral, dissolver a Câmara, sancionar as proposições do Legislativo, aprovar ou suspender interinamente as resoluções das Assembleias provinciais. A ingerência no Poder Judiciário também era marcante. O Imperador poderia suspender os Magistrados, perdoar e moderar as penas impostas aos réus por sentença, como também conceder anistia. Como há de se esperar, o Poder Moderador foi o órgão político mais ativo e influente, moldando o regime político do Brasil Imperial. Acerca da posição que o Poder Moderador ocupava dentro da estrutura política do Império, Paulo Bonavides11, acrescenta: O Poder Moderador da Carta do Império é literalmente a constitucionalização do absolutismo, se isto fora possível... Com efeito, o art. 101 estabelecia a competência do Imperador, como titular desse poder, cabendo-lhe um feixe constitucional de nove atribuições (...) Atribuições de importância tão fundamental para o direito e a liberdade, para a vida e o funcionamento das instituições eram conferidas a um Imperador cuja pessoa a Constituição fazia inviolável e sagrada declarando ao mesmo tempo em que não estava ele sujeito à responsabilidade alguma (art. 99).

1.2 Poder Executivo

Descrito em um único artigo (art. 102), o Poder Executivo tinha por “Chefe” o Imperador, que o exercia através de Ministros de Estado por ele designados. Embora o texto constitucional firmasse que o Poder Executivo era exercido pelos Ministros de Estado, na prática era exercido pelo próprio Imperador, cumulativamente com o Poder Moderador. Tal ingerência é perfeitamente 10. Ibid., p. 267. 11. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 2005, p. 106.

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As Constituições do Brasil análise histórica das constituições e de temas relevantes ao constitucionalismo pátrio

justificável, pois segundo o art. 101, inciso VI, o Imperador poderia livremente nomear e demitir os Ministros de Estado. As atribuições do Poder Executivo foram listadas no art. 102 da Magna Carta de 1824, destacando-se dentre suas funções: (I) convocar a Assembleia Geral ordinária; (II a VI, XI) nomear de cargos, provimento de empregos civis e políticos, e títulos e distinções; (VII a IX) exercer relações políticas e comerciais internacionais; (XII) regulamentar a aplicação das leis. 1.3 Poder Legislativo

O Poder Legislativo, exercido pela Assembleia Geral, era composto por duas câmaras: deputados, eletiva e temporária; senadores, formada por membros vitalícios que eram nomeados pelo Imperador, dentre os componentes de uma lista tríplice eleita por províncias. O modelo estruturado em duas câmaras se aproximava mais do modelo britânico do que do modelo americano. Entretanto, os senadores eram eleitos em eleições provinciais. As eleições de deputados e senados era através de sufrágio censitário, ocorrendo em dois graus. Primeiramente, os eleitores de cada paróquia escolhia os de província, os quais elegeriam os deputados e senadores. No caso dos senadores, segundo o artigo 43 da Constituição do Império, sua eleição se dava a partir de “listas tríplices, sobre as quais o Imperador escolherá o terço na totalidade da lista”. Vale notar que na Carta de 1824, o número de representantes não era estabelecido como matéria constitucional, mas sim de através de lei ordinária. Este detalhe permitia que, conforme fossem criadas novas Províncias, o número de deputados pudesse ser alterado. Como crítica à representatividade durante a época do Império, pesa o fato de que o país contava com 12 milhões de habitantes em 1881, entretanto havia somente 150 mil eleitores, algo que demonstrava um pequeno lastro eleitoral no país. Se não bastasse o número reduzido de eleitores, o sistema eleitoral era constantemente falsificado por meio da intervenção do Poder Executivo, praticada pelos dois partidos que se revezavam no poder12. As atribuições do Poder Legislativo, conforme o art. 15 da Constituição Imperial, compreendiam: atribuições relacionadas com o Imperador e sua dinastia (I a VII); fazer as leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las (VIII); atividades relativas a controle de orçamento e gastos do governo (X, XIII, XIV, XV). 12. NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. 2001, p. 27, 28.

BREVES ESTUDOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL (1824)

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1.4 Poder Judiciário

O Poder Judicial tratado no Título VI da Constituição do Império não dispunha das mesmas garantias que o atual Poder Judiciário possui. Embora o texto constitucional em seu art. 10 apresente o Poder Judiciário como um dos quatro poderes, independente dos demais, na prática tratava-se de um poder enfraquecido frente à dependência dos demais podemos, mais destacadamente do Poder Executivo. Esta dependência pode ser ilustrada pelo fato de que os juízes poderiam ser transferidos para outros lugares, como também ter sua vitaliciedade, garantida no art. 151, suspensa por ato do Imperador, conforme dicção do art. 154. Ilustrando a ingerência que o Poder Executivo exercia sobre o Poder Judiciário, Octávio Nogueira comenta: O mais notório dos casos de violação do preceito da vitaliciedade ocorreu durante o Ministério da Conciliação, presidido pelo Marquês de Paraná, entre 1853 e 1856, quando era Ministro da Justiça Nabuco de Araújo. O fato ficou conhecido na biografia de Joaquim Nabuco sobre seu pai, o Conselheiro Nabuco de Araújo, como o “desembarque de Serinhaem”, e consistiu na aposentadoria de dois e na transferência de um terceiro juiz da Relação de Pernambuco, por terem, em julgamento da violação da lei que puniu e suspendeu o tráfico, em 1850. 13

Um exemplo notório da ingerência do Poder Executivo sobre o Poder Judiciário foi quando em 1863 José Lins Vieira Cansanção de Sinimbu, Ministro da Justiça, aposentou vários membros do Supremo Tribunal de Justiça sob a alegação de que estes não acataram ato do Poder Executivo. Fatos como estes ocorriam porque não havia regulamentação das disposições constitucionais que permitiam tanto a remoção quanto a aposentadoria compulsória dos membros da Magistratura, tornando possível ao Poder Executivo entrar no mérito das sentenças, chegando ao ponto de punir àqueles que discordassem de sua convicção. 2 PLASTICIDADE E ADAPTABILIDADE

Embora a Constituição do Império tenha sido outorgada, é importante destacar que foi através dela que se instituiu a monarquia constitucional, os Poderes do Estado, a garantia dos direitos para a contenção de abusos. Sua prática foi moldada no decorrer do tempo, sendo que seu início de fato se deu a partir de 1826, quando o Legislativo se instalou. 13. Ibid., p. 36.

As Constituições do Brasil análise histórica das constituições e de temas relevantes ao constitucionalismo pátrio

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Conforme mostra a tabela14 abaixo, quando comparada com as demais Constituições que tivemos no Brasil, a Constituição do Império se mostrou a que teve maior período de vigência: Constituição

Vigência

Nº de Emendas

Duração

1824

1824 – 1889

1

65 anos

1891

1891 – 1930

1

40 anos

1934

1934 – 1937

1

3 anos

1937

1937 – 1945

21

8 anos

1946

1946 – 1967

27

21 anos

1967

1967 – 1969

-

2 anos

AI-5 (1969)

1969 – 1987

26

18 anos

1988

1988 – ...

7015

> 24 anos

Essa característica, além dos fatos históricos envolvidos, se deve também à plasticidade e adaptabilidade do texto da Constituição do Império, algo que a distingue de todas as demais cartas constitucionais que tivemos. Essa adaptabilidade se deve, na lição de Nogueira, a duas razões: A primeira é que, ao contrário do que passou a ser tradição nas Cartas republicanas, que impediam, e ainda impedem, modificar a forma republicana e o sistema federativo por meio de emenda, a Constituição do Império não estabelecia restrições ao poder constituinte derivado. Todos os dispositivos, portanto, eram reformáveis, inclusive o que consagrava a monarquia como forma de governo. A segunda razão é que, embora as emendas constitucionais tivessem o mesmo rito de lei ordinária (como ocorreu com o Ato Adicional de 1834) e, portanto, dependessem da sanção do Imperador, no caso de mudança da forma de governo, como em qualquer outra matéria constitucional reformada por lei ordinária, não podia o Monarca negar a sanção, se aprovada por duas Legislaturas seguintes, em face do que dispunha o art. 65. 16

Embora na prática o resultado fosse diferente, nem mesmo o Imperador poderia impedir a mudança do texto constitucional com seu veto, conforme se lê no art. 65, in verbis: Esta denegação (isto é, a negativa da sanção) tem efeito suspensivo somente, pelo que, todas as vezes que as duas Legislaturas que se seguirem àquela que tiver aprovado o projeto tornarem sucessivamente a apresentá-la nos termos, entender-se-á que o Imperador tem dado a sua sanção. 14. Ibid., p. 15. 15. Até 29 de março de 2012 16. Ibid., p. 17.

BREVES ESTUDOS SOBRE A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL (1824)

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Diante de tal plasticidade seria perfeitamente possível até mesmo a implantação da República por simples emenda constitucional, ou seja, proclamada a República, a Constituição Imperial tornar-se-ia Republicana. Conforme explica Paulo Bonavides: A Carta imperial, se fez rígido o que era materialmente constitucional não tão rígido quanto o Projeto - tornou o restante das regras e preceitos da Constituição demasiado flexíveis, de tal sorte que poderiam ser alterados pelas legislaturas ordinárias, sem as formalidade requeridas para a matéria basicamente constitucional, como a competência dos poderes e os direitos dos cidadãos. 17

3 CARÁTER CENTRALIZADOR

Em face do que ocorreu com a América espanhola, que após libertar-se do domínio colonial, foi fracionada em um grande número de países, havia na época do Império a preocupação que o mesmo viesse ocorrer no Brasil. Tal temor procedia, posto que mesmo no início do século XVIII não se tinha ainda conquistado a unidade linguística, pois a língua corrente em alguns lugares de São Paulo e da Amazônia era o tupi-guarani. A Constituição Imperial ao criar o Estado Unitário, não permitiu a existência de poder local, uma vez que toda autoridade se centrava na capital do Império. A centralização político-administrativa se faz presente por todo texto constitucional.. No Título VII, por exemplo, que tratava da administração e da economia das províncias, trazia apenas oito artigos, sendo dois artigos para a administração provincial, três artigos sobre as Câmaras Municipais e três artigos sobre a fazenda nacional e a economia do Império. O artigo 165 dava amplos poderes ao Imperador, podendo nomear e remover o presidente de cada província quando bem o quisesse. No Título IV, Capítulo V, ao tratar “Dos Conselhos Gerais de província e suas atribuições”, praticamente se retirava a autonomia desses conselhos. Suas resoluções dependiam do Poder Executivo em primeira instância, e do Poder Legislativo em segunda instância. As decisões tomadas pela maioria dos membros dos Conselhos Gerais de Província deveriam ser remetidas ao Poder Executivo da Província, representado pelo seu Presidente. Até mesmo os regimentos internos desses Conselhos dependiam da aprovação do Legislativo Imperial. Com as alterações estabelecidas pelo Ato Adicional de 1834, houve uma sutil descentralização na medida em que se criaram as Assembleias Legislativas 17. Ibid., p.110.

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Provinciais, substituindo os Conselhos Gerais de Província e ampliando suas atribuições, como amplos poderes fiscais, legais e administrativos, instituiu-se a Regência Única eletiva, e suprimiu o Conselho de Estado. 4 O CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE DAS LEIS

Diversamente do que hoje conhecemos como controle de constitucionalidade, seja pela via difusa ou concentrada, isto não ocorreu na Constituição do Império. Seguindo o que foi dito anteriormente sobre o enfraquecido Poder Judiciário, não cabia a este o controle de constitucionalidade das leis, como hoje se conhece. O controle de constitucionalidade e a guarda da Constituição eram atribuídos ao Poder Legislativo, pela Assembleia Geral, conforme disposto no art. 15, incisos VIII e IX da Constituição do Império18. Segundo o entendimento daquela época, somente o Poder que fazia a lei seria competente para interpretá-la e confrontá-la com a Constituição, assim como manifestar-se sobre sua constitucionalidade. Entendia-se que seria impossível outro Poder, quer executivo quer judiciário perquirir a intenção do legislador. Segundo este posicionamento, somente o poder do qual emanava a lei era competente para declarar o seu sentido, ou seja, apenas o poder legislativo tinha o direito de interpretar seu próprio ato e seus fins, não tendo qualquer outro poder este direito, até porque a lei não lhe dava esta faculdade. Nenhum outro poder poderia ser o real depositário da vontade do legislador.19 No entanto, este tipo de controle de constitucionalidade das leis fere a teoria dos freios e contrapesos entre os poderes, pois se somente aquele que cria as leis tem o poder de interpretá-las, suspendê-las ou revogá-las, este mesmo será capaz de abusar de seu poder sem qualquer controle de outro, ferindo o próprio princípio da separação dos poderes. Isto decorreu da força absoluta do Poder Moderador, na pessoa do Imperador, que tudo podia sem responsabilidade alguma. Vale lembrar que, conforme já comentado, garantia-se ao Imperador total irresponsabilidade de seus atos, ou seja, não poderia ser responsabilizado judicialmente por nada que fizesse. 18. 19.

Art. 15. É da atribuição da Assembleia Geral:[...] VIII – Fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las. IX – Velar na guarda da constituição e promover o bem geral da Nação. BUENO, José Antônio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. 1978, p. 69 e 70.

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Seu poder era tamanho que podemos dizer que o controle de constitucionalidade era feito pelo próprio Imperador, tendo em vista que ele poderia livremente nomear senadores, dissolver a Câmara dos Deputados e convocar outra para substituí-la.20 Na vigência da Constituição Imperial, tanto na teoria como na prática, o Poder Moderador não era neutro. “Era Atuante. Constituía um poder pessoal do Imperador, não simplesmente preservador e conservador dos outros, mas controlador. Estava acima deles. Interferia com tudo e com todos” 21. Considerando o poder do Imperador sobre legislativo, judiciário e executivo, sendo ele a última voz em todos os assuntos do império, caso não fosse de sua vontade a elaboração, interpretação, suspensão e revogação de determinada lei, poderia ele fazê-lo, direta ou indiretamente. 5 SISTEMA DE GOVERNO

A Constituição do império não precisou o sistema de governo que adotava22. O Imperador governava plenamente a nação e suas províncias. Esta afirmativa decorre do poder que o Imperador, o monarca, detinha sobre seus ministros, os quais poderiam ser nomeados e demitidos livremente pelo Imperador, conforme dispõe o inciso VI do art. 101 da Constituição do Império.23 Houve um início de sistema parlamentarista, mas o Poder Moderador não permitiu que este se desenvolvesse. Havia previsão de que os deputados e senadores poderiam ser nomeados para o cargo de ministro de Estado, com a diferença de que os senadores continuariam a ter assento no Senado, e os deputados deixariam vagos os seus lugares na Câmara24. 20. Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador I. Nomeando os Senadores, na forma do Art. 43. II. Convocando a Assembla Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio. III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62. IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87. V. Prorrogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua. VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado. VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154. VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença. IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado 21. SILVA. Op. cit.. p. 27. 22. SILVA. Op. cit. p. 32. 23. Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador: [...] VI. Nomeando e demitindo livremente os ministros de Estado. 24. Art. 29. Os Senadores, e Deputados poderão ser nomeados para o Cargo de Ministro de Estado, ou Conselheiro do Estado, com a differença de que os Senadores continuam a ter assento no Senado, e o Deputado deixa vago o seu logar da Camara, e se procede a nova eleição, na qual póde ser reeleito e accumular as duas funcções.

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No entanto, o mesmo dispositivo possuía uma disposição curiosa, pois, após determinar que o deputado nomeado como ministro deixasse o cargo na Câmara, determinava também que nova eleição se procederia para o cargo vacante. O deputado nomeado ao cargo de ministro de Estado poderia ser reeleito a deputado e acumular as funções. Previa-se que ministros assistissem e discutissem as propostas do Executivo ao Legislativo, após relatório da comissão formada para examiná-las, mas não poderia votar ou sequer estar presentes à votação, salvo os que fossem deputados ou senadores, o que para José Afonso da Silva25 “era o gérmen do sistema parlamentarista de governo que a estrutura de poder e especialmente a atuação do Poder Moderador não permitiam que se desenvolvessem”. Diz-se gérmen, pois este sistema parlamentarista só existia enquanto conveniente para o monarca. Só existia quanto à forma, pois na essência todo o poder era do monarca, que o exercia segundo sua conveniência. Para Bonavides, de rigor, não houve o sistema parlamentarista na época do império, mas um regime pré-parlamentarista em busca deste modelo de sistema por uma “virtude evolutiva inerente a todos os sistemas inclinados a fazer valer a supremacia do órgão parlamentar” 26. Em razão desses fatos acima expostos, pode-se afirmar que a Constituição era presidencialista. Como não havia clara distinção entre a titularidade das funções de chefe de Estado e de governo, o monarca, quer como Poder Moderador, quer como chefe do Poder Executivo, englobava as duas ordens de função27. Afonso Arinos, citado por José Afonso da Silva, diz que: “Governo parlamentar pressupõe formação de Ministérios pelo apoio das maiorias e queda deles pelo seu desfavor. No Brasil, os Gabinetes podiam ser nomeados e demitidos livremente (o termo era da Constituição) pelo imperante. Governo parlamentar exige responsabilidade política coletiva do Gabinete diante da Câmara popular. No Brasil nunca chegou a haver Gabinete no sentido parlamentar, pois os ministérios não eram coletiva nem politicamente responsáveis senão na medida em que o Chefe do Poder Executivo aceitasse tal situação. Sem o que demitia o Ministério, nomeava outro contrário, dissolvia a Câmara e elegia outra que o apoiasse o Ministério recém-nomeado. A responsabilidade ministerial estabelecida era unicamente a penal, o que também correspondia à sugestão de Benjamin Constant. Tudo dentro da Constituição. Nem se diga que, seguindo o modelo inglês, o Brasil - império foi estabelecendo, na prática, o funcionamento das instituições parlamentares não previstas na lei escrita. A ascendência da maioria 25. Op. cit. p. 34 26. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 2004, p. 215. 27. SILVA. José Afonso da. Op cit. p 35

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15 parlamentar na escolha dos Ministérios e a teoria de que os governos eram comissões da Assembleia Legislativa encontraram, sem dúvida, guarida nos hábitos e nas ideias. É o que Nabuco chama obediência “às formas do Governo Parlamentar”. Mas eram somente formas, pois eram aplicáveis apenas enquanto tal situação era do agrado do soberano, conforme se demonstra com a rememoração dos fatos acima indicados e que se desenvolveram do princípio ao meio e ao fim do Império. Aliás, num sistema de constituição rígida como era o nosso, o costume não podia retirar ao Monarca as suas atribuições escritas. Não podia, pois, ocorrer o que se deu na Inglaterra. 28

Ainda que não tenha havido uma explicitação do sistema parlamentarista da Constituição do Império, podemos dizer que foi o início deste sistema, sendo esta uma das grandes virtudes, senão a maior, no sentido de permitir que o sistema político nela não previsto fosse paulatinamente adotado29. 6 DA GARANTIA DOS DIREITOS CIVIS E POLÍTICOS

Podemos dizer que ao ler o art. 179 e incisos da Constituição do Império nos deparamos com muita semelhança aos da nossa Constituição de 1988. Havia como primado a proteção da liberdade, segurança individual e a propriedade. Preocupou-se a Constituição não só com a liberdade de ir e vir, mas também com a liberdade de pensamento30 e de religião31. Embora previsto como um direito constitucional de liberdade, a liberdade de religião não era uma liberdade plena, pois a Carta outorgada fazia uma ressalva, no mesmo dispositivo, de que ninguém seria perseguido por motivo de religião, “uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública”. O artigo 5º da Constituição de 182432 estabelecia que a religião Católica Apostólica Romana era a religião do Império, permitindo o culto de outras religiões apenas domesticamente ou de forma que não caracterizasse a formação de templos. Como se percebe, não era um Estado laico, pois previa expressamente na Constituição a adoção de uma religião. 28. Ibid., p. 36. 29. NOGUEIRA, Octaciano. Op. cit. p. 24. 30. IV. Todos podem communicar os seus pensamentos, por palavras, escriptos, e publical-os pela Imprensa, sem dependencia de censura; com tanto que hajam de responder pelos abusos, que commetterem no exercicio deste Direito, nos casos, e pela fórma, que a Lei determinar. 31. V. Ninguem póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a Moral Publica. 32. Art. 5. A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo.

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Ainda, como mais uma forma de impor a religião adotada pelo Estado ao povo, dizia que todos os que pudessem ser eleitores, poderia ser nomeados deputados, excetuando-se os que não professassem a religião do Estado.33 Constatamos assim uma vetusta liberdade de religião no regime da Constituição Imperial. Traz, desde aquela época, o princípio da igualdade inserto no inciso XIII do artigo 17934. No entanto, mais uma vez é um direito relativizado, pois ainda havia a escravidão e só podia exercer plenamente seus direitos políticos os que possuíssem alta renda “por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego” (arts. 45, IV35; 92, V36; 94, I37; 95,I38). É plenamente plausível que para o exercício de determinados direitos a lei exija requisitos, mas a presença de requisitos de cunho pecuniário demonstrava a vontade de que o poder permanecesse nas mãos da nobreza, ou seja, dos mesmos. Em que pese tais críticas, a Constituição do Império foi de grande evolução na defesa dos direitos individuais, como pode-se notar pela previsão da abolição dos “açoites, a tortura, a marca de ferro quente e todas as mais penas cruéis” conforme consta do inciso XIX do artigo 179. Vale notar que o extenso rol de direitos é precedido pelas Revoluções Francesa e Americana, pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão decretada pela Assembleia Nacional Francesa em 1789, e pelos outros documentos históricos como a Magna Carta de 1215 e Bill of Rights. Estes culminaram naquela lista talvez abordando mais em um sentido idealista e programático do que verdadeiramente efetivo, vez que dificilmente o seriam naquela época, devido ao costume daquele povo, que com o passar do tempo vem evoluindo para uma maior pacificação entre os povos. 33. Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se [...] III. Os que não professarem a Religião do Estado. 34. XIII. A Lei será igual para todos, quer proteja, quer castigue, o recompensará em proporção dos merecimentos de cada um. 35. Art. 45. Para ser Senador requer-se [...] IV. Que tenha de rendimento annual por bens, industria, commercio, ou Empregos, a somma de oitocentos mil réis. 36. Art. 92. São excluidos de votar nas Assembléas Parochiaes. [...] V. Os que não tiverem de renda liquida annual cem mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou Empregos. 37. Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados, Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego. 38. Art. 95. Todos os que podem ser Eleitores, abeis para serem nomeados Deputados. Exceptuam-se I. Os que não tiverem quatrocentos mil réis de renda liquida, na fórma dos Arts. 92 e 94.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição de 1824, marcada pela sua longevidade caráter liberal na Declaração de Direitos e Garantias Individuais, representou um grande avanço para a época. Foi bem sucedida dentro de seu intento de manter o equilíbrio da sociedade, evitando a divisão do Brasil em um sem número de países, como ocorre com o território da América latina. Sua natureza centralizadora carregada de resquícios absolutistas foi marcada pelo golpe de Estado de novembro de 1823, no qual a Assembleia constituinte é dissolvida e substituída por um grupo de apenas dez homens que preparam um texto para ser outorgado pelo Imperador. Concentrou-se o poder nas mãos do Imperador, não só por meio de um 4º poder, o Moderador, mas também pela ingerência sobre os demais poderes. Seu parlamentarismo constituiu na verdade um pré-parlamentarismo, com características presidencialistas, produto de um governo absolutista com roupagem constitucional. Referências

BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2004. BONAVIDES, Paulo. ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 4ª Ed. Brasília, Editora OAB, 2005. BUENO, José Antônio Pimenta. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Brasília: Senado Federal, 1978. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. O estado da questão no início do século XXI, em face do direito comparado e, particularmente, do direito positivo brasileiro. 1ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. 1ª Ed. Belo Horizonte: Del Rey. 1995. NOGUEIRA, Octaciano. Constituições Brasileiras: 1824. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos Estratégicos. 2001. SILVA, José Afonso. Poder Executivo na Constituição Imperial do Brasil de 1824. Revista Latino-Americana de Estudos Constitucionais. Belo Horizonte. 2003.

CAPÍTULO II

a CoNStItuIÇÃo DoS EStaDoS uNIDoS Do BRaSIl (1891)

João Gustavo Bachega Masiero Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Público pela Escola Paulista de Direito. Advogado.

Henrique Carani Coube Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino – ITE/Bauru/ SP. Tabelião de Notas e Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais. Especialista pela Faculdade de Direito Prof. Damásio de Jesus. Tabelião de Notas e Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais.

INTRODUÇÃO

A Monarquia nunca caiu plenamente nas graças do povo brasileiro. Ela começou a ser idealizada no Brasil pela família real portuguesa como alternativa à batalha contra Napoleão Bonaparte. A Corte enxergou aqui um porto seguro frente ao bloqueio continental na Europa imposto por Napoleão, em 1807. A Inglaterra era forte o suficiente para resistir. Já o Império português, imaginava-se na época, fatalmente sucumbiria perante a poderosa máquina de guerra comandada pelo Imperador francês. Assim, a situação favorável conduziu a Corte para o Brasil, mas não criou condições para solidificá-la. Essa entidade tipicamente européia definitivamente não encontrou bases confiáveis em solo americano, ao passo de o Brasil ser reconhecido como o único Império no continente. A República e a Federação consistiam, portanto, num caminho natural a ser seguido.

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Para ilustrar, é possível citar alguns acontecimentos marcantes: D. João VI tornou-se rei do Brasil em 1816, após a morte de sua mãe, D. Maria I, conhecida como Rainha Louca. Um ano depois, em 1817, ele sufocou uma revolução republicana em Pernambuco. Em 1823, com o país independente da metrópole, o império absoluto de D. Pedro I foi garantido pela força de sua espada e a dissolução da Constituinte. O decênio de 1831 a 1840 foi marcado por manifestações contrárias ao poder central – a Regência terminou com o famigerado golpe da maioridade. A queda da Monarquia ocorreu apenas no final do século XIX, em 15 de novembro de 1889. O principal artífice da Constituição brasileira de 24 de fevereiro de 1891 foi Rui Barbosa, confessadamente admirador da organização política dos EUA. Mas Rui Barbosa contemplava, sobretudo, o modelo federativo norte americano. Ele era um pouco descrente quanto às formas de governo, ao passo de chegar a defender a federação em conjunto com a monarquia, sem ela ou até mesmo contra ela. Aderiu à República quando notou que a Monarquia não cederia voluntariamente parcela do poder. O texto constitucional de 1891 foi marcado por regras claras e objetivas, que representavam a ruptura com o modelo autocrático do absolutismo monárquico. Entre outras mudanças podemos citar as seguintes novidades: as antigas províncias transformaram-se em Estados membros ligados por vínculo indissolúvel com a União; houve a previsão de responsabilidade do agente público; e o funcionamento do Supremo Tribunal Federal, como instância máxima do Judiciário, defendendo a higidez do sistema constitucional. Mas se é verdade que os grandes fatos se repetem, então o destino quis que a primeira fase republicana brasileira terminasse exatamente como começou: por um decreto1 editado discricionariamente por um Governo Provisório, num verdadeiro golpe de estado. 1 Contexto histórico 1.1 Da Monarquia à República

Antes de se adentrar na análise do texto da primeira Constituição republicana, é imperioso situar o leitor no momento histórico vivenciado pela população brasileira no século XIX. É preciso levar em consideração o contexto em que a Constituição foi criada, e o contexto em que está inserido o intérprete. 1. Dec. nº 19.398, de 11/11/1930, elaborado pelo Governo Provisório de Getúlio Vargas.

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A Monarquia conservadora alijava as camadas populares do centro de decisões políticas. O direito de votar e ser votado cabia apenas àqueles que tivessem determinado patrimônio. A Constituição do Império pregava igualdade e liberdade, mas manteve a escravidão – os escravos não eram sujeitos de direitos. Uma pequena elite, em razão de apadrinhamentos, ocupava os melhores cargos no governo, cujo preenchimento nem sempre ocorria de acordo com as aptidões técnicas dos pretendentes. O país dessa época era eminentemente agrário, com latifúndios insuficientemente explorados, o trabalho era escravo ou semi-servil era a regra na lavoura e a população em geral era analfabeta. A Monarquia era um artificialismo em nosso continente, voltada para a Europa e de costas para a América, sem olhar o Brasil, em sua realidade. O regime, os políticos, os partidos, não acompanhavam a vida de nosso país, o crescimento de seu povo, suas idéias, potencialidades2.

Dificilmente uma possível mudança de regime político, num país imenso, seria fruto exclusivo de uma causa. Assim, abordaremos rapidamente três fatores que tiveram papel importantíssimo na eclosão da história da República brasileira. 1.1.1 A Questão da Abolição da Escravidão

A dependência do mercado externo era vital. O Brasil exportava açúcar, algodão, café, couros e peles, entre outros produtos primários, e importava todo o resto, de calçados a maquinários em geral. A Monarquia estava atrelada principalmente aos produtores rurais do Vale do Paraíba, que davam valiosa sustentação ao governo, além de participarem das decisões políticas pela proximidade com o centro do Império. Eram grandes cafeicultores e escravocratas que se enriqueceram rapidamente a partir de 1831. Mas a prosperidade dessa região foi fortemente abalada com a proibição do tráfico de escravos, em 1850, por meio da chamada Lei Eusébio de Queirós, que decorreu da vedação ao tráfico internacional de escravos. A Lei Eusébio de Queirós propiciou ainda outro efeito. Com a proibição do tráfico internacional de escravos, o capital antes empregado na compra e venda deles estaria agora disponível para novos investimentos. A sensação de progresso depois de 1850 era vivenciada por quem estava 2. Hélio Silva, História da república brasileira – 1888/1894, Três S. A, 1998, p. 13-14.

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nas cidades. Muitas atividades foram incentivadas, como aplicações em ações de companhias e o comércio. Enquanto os senhores de terra do Vale do Paraíba lamentavam todo o ocorrido, formava-se no oeste da província de São Paulo um grupo de vanguarda. Eram cafeicultores que contratavam mão-de-obra livre, estudavam e aperfeiçoavam os métodos de produção, e moravam nas cidades, onde a difusão de idéias estava em plena ebulição. Em decorrência disso, “a campanha a favor dos escravos começa a ganhar importância depois de 18603”. A Guerra do Paraguai (1864-1870) relegou a questão da emancipação do negro africano para o segundo plano. Entretanto, a partir dela, já em 1871, foi editada a Lei do Ventre Livre, segundo a qual os filhos das escravas nasciam livres. As pressões políticas continuaram até que em 13 de maio de 1888 a Lei Áurea liberta definitivamente os escravos do cativeiro. No dia seguinte a esse grande feito, um pilar de sustentação da monarquia cede. A partir daqui, grandes cafeicultores conservadores passam a apoiar os ideais republicanos. 1.1.2 A Questão Militar

A instituição militar era muitas vezes deixada em segundo plano justamente pelo seu caráter eminentemente popular. Atrasos de salários e falta de condições materiais para o exercício da atividade eram uma constante. Havia ainda um agravante. O Exército rivalizava com outra entidade oficial de defesa da sociedade: a Guarda Nacional. Esses fatos explicam a simpatia crescente que o povo nutria pelos homens de farda. Mas foi a Guerra do Paraguai (1864-1870) que conferiu ao Exército um grande nível de unidade e identificação nacional. A organização das forças militares proporcionou que os oficiais pleiteassem por melhorias e mais atenção da Coroa. “É uma força que pretende estar presente no cenário das decisões políticas4”. E a Monarquia, conservadora e avessa a mudanças, não dava respaldo às pressões. A aristocracia da época não sinalizava com uma abertura do acesso à estrutura do poder político. 3. José Ênio Casalecchi, A proclamação da república, São Paulo: Brasiliense, 1981, p. 55. 4. José Ênio Casalecchi,, Op. cit., p. 68.

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A crise começa realmente a ganhar corpo quando o Exército encontra no grupo republicano vozes de incentivo à classe. 1.1.3 A Questão Religiosa

A religião católica, com o advento da Constituição de 1824, era a oficial do Estado brasileiro. Desde o período colonial, a Coroa exercia muita interferência nos assuntos religiosos. O clero no país dependia materialmente da Coroa. Havia aqui uma relação de submissão em algumas situações. As comunidades de religiosos que vivem em mosteiros, as chamadas ordens monásticas, não foram proibidas, mas também não gozavam de verdadeira liberdade de ação. Um fato importante retratado por Hélio Silva é que “o clero brasileiro era francamente liberal e, em muitos casos, maçom5”. A maçonaria no Brasil não enfrentava a resistência da Igreja, como na Europa. Isso se devia à postura discreta da entidade no país. A maçonaria brasileira não se opunha à fé católica. O episódio da Questão Religiosa teve origem em 1872, numa loja maçônica do Rio de Janeiro, quando ainda se festejavam a edição da Lei do Ventre Livre do ano anterior. O padre católico Almeida Martins, que era maçom, proferiu discurso saudando ao Visconde do Rio Branco, também maçom, por sua atuação no caso da Lei do Ventre Livre. Esse discurso desagradou algumas autoridades eclesiásticas e o bispo da diocese do Rio de Janeiro repreendeu o padre Almeida Martins pelo discurso proferido e o intimou a renunciar à maçonaria. O padre se negou a renunciar, manteve-se fiel aos seus ideais, e foi punido pelo bispo com suspensão do exercício das atividades sacras. A partir daí a maçonaria passa a hostilizar abertamente as entidades e autoridades católicas. Levantou-se, em peso, a maçonaria contra a Igreja, em várias partes do Império. Surgiram, também, vários jornais novos, exclusivamente consagrados à maçonaria. Por meio deles, os maçons atacavam vigorosamente o papa e todo o clero6.

A controvérsia tomou proporções inimagináveis e atingiu o Conselho de Estado. Este órgão simplesmente fez valer as leis imperiais, principalmente a 5. Op.cit., p. 49. 6. Helio Silva, Op. cit., p. 50.

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Constituição de 1824, que prescrevia amplos poderes da Coroa sobre a Igreja, e determinou que o bispado retirasse as punições impostas à irmandade autora do recurso. Em razão dos acontecimentos da Questão Religiosa, parlamentares conservadores e liberais acabaram por preencher a tribuna com discursos contra o autoritarismo do governo imperial. 1.2 O dia 15 de novembro de 1889 e a “Comissão dos Cinco”.

A República foi proclamada no dia 15 de novembro de 1889 e foi criado o Governo Provisório, liderado pelo Marechal Deodoro da Fonseca. Os vencedores procuraram imediatamente dar corpo à nova forma de governo. Sucessivos decretos7 institucionalizaram a República. Traçaram normas para reger os Estados membros, proveram a manutenção da família real, criaram a bandeira, selos e armas nacionais, alargaram o voto para todos os brasileiros alfabetizados, fixaram atribuições aos governadores de Estado etc. E, logo depois, foi montada pelo Governo Provisório a famigerada “Comissão dos Cinco”, em alusão aos cinco membros que a compunham, com o nobre intuito de elaborar o projeto da primeira Constituição republicana brasileira. São eles: Joaquim Saldanha Marinho, como presidente, Américo Brasiliense de Almeida Melo, como vice-presidente, Antônio Luís dos Santos Werneck, Francisco Rangel Pestana e José António Pedreira de Magalhães Castro. A Comissão logo se reuniu e começou a traçar o plano de trabalho. O resultado desse árduo trabalho foi entregue ao Governo Provisório, que prontamente passou a estudá-lo. Para esse intento, contudo, o Governo convocou Rui Barbosa, que na época já se destacava como um jurista brilhante e contribuiu significativamente para o projeto de Constituição. Ele estruturou artigos e parágrafos e conferiu redação mais concisa a alguns dispositivos. A primeira Constituinte republicana, composta de 205 deputados e 63 senadores, instalou-se solenemente sob a presidência de Felício dos Santos, a 15 de novembro de 1890, na Quinta da Boa Vista, ao transcurso do primeiro aniversário da Proclamação da República. Por certo muitos dos congressistas dispunham de fortuna, mormente os que, embora titulados, exerciam atividades agrícola e industrial, principalmente em São Paulo, Minas e Rio8. 7. O mais importante deles foi o Dec. 1, de 15/11/1889, que aboliu a ordem constitucional anterior. 8. A constituição de 1891: o sistema constitucional brasileiro, objeções e vantagens, In: Do poder executivo na república brasileira, Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1916, p. 6.

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As Constituições do Brasil análise histórica das constituições e de temas relevantes ao constitucionalismo pátrio

E, finalmente, no dia 24 de fevereiro de 1891, a primeira Constituição republicana é solenemente promulgada por Prudente de Moraes. 2 Principais características da Constituição da República de 1891. 2.1 Estética

A primeira característica que salta aos olhos dessa importante Constituição brasileira é a concisão de seu texto. Num total de noventa e um artigos no corpo permanente, e oito nas disposições transitórias, a Constituição de 1891 é a mais enxuta daquelas já editadas pelo nosso constituinte. Ela é dividida em cinco Títulos, com frases curtas e diretas, sendo que o Título III, Do Município, contém um único artigo de número 689. 2.2 Estrutura do Estado

Quando o governo provisório criou a comissão encarregada de elaborar o projeto da Constituição, duas idéias já estavam traçadas e muito bem definidas: a forma de Governo seria a republicana e a forma de Estado seria a federativa. Desse projeto, então, já se sabiam duas certezas – a monarquia e o poder unicamente central sucumbiriam10. A Constituição de 1891 também aboliu o Estado unitário que vigorava desde 1824, sob o império de D. Pedro I e posteriormente D. Pedro II. Com isso, as antigas Províncias passam a se chamar Estados (art. 2º da CF/189111) e o antigo Município neutro (que era o Rio de Janeiro), sede da realeza imperial, constitui-se em Distrito Federal, agora alçado a capital da União. O vínculo entre os Estados era perpétuo e indissolúvel, ou seja, não era possível a secessão. Também foi garantida a autonomia financeira dos Estados membros, consoante o seu artigo 5º12. Interessante era o disposto no art. 3º do texto constitucional da República Velha13, onde Brasília começava a despontar no imaginário brasileiro. 9. CF/1891, art. 68: “Os Estados organizar-se-hão de fórma que fique assegurada a autonomia dos municípios, em tudo quanto respeite ao seu peculiar interesse”. 10. CF/1981, art.1º: “A Nação Brazileira adopta como fórma de governo, sob o regimen representativo, a República Federativa proclamada a 15 de novembro de 1889, e constitui-se, por união perpetua e indissolúvel das suas antigas províncias, em Estados Unidos do Brazil”. 11. CF/1981, art. 2º: “Cada uma das antigas províncias formará um Estado, e o antigo município neutro constituirá o Districto Federal, continuando a ser a capital da União, enquanto não se der execução ao disposto no artigo seguinte”. 12. CF/1981, art. 5º: “Incumbe a cada Estado prover, a expensas próprias, ás necessidades de seu governo e administração; a União, porém, prestará socorros ao Estado que, em caso de calamidade pública, os solicitar”. 13. CF/1981, art. 3º: “Fica pertencendo à União, no planalto central da República, uma zona de 14.400 kilometros

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O art. 67, caput, da CF de 189114 permitia que o Distrito Federal se subdividisse em Municípios, o que na CF de 1988 há vedação expressa. Talvez daí, conjugando o referido art. 67 com o art. 68, ambos da vetusta Carta Política, que possa ter brotado o pensamento hodierno quanto à utilização do princípio da simetria entre o DF e os EstadosMembros. Na seara da Administração do Estado republicano brasileiro, Oswaldo Aranha Bandeira de Mello descreve o seguinte: A preocupação científica do Direito Administrativo desde a queda da Monarquia aos tempos atuais divide-se em duas fases nítidas, como expressões de posições distintas do Estado. Pode-se mesmo falar em período da 1ª República, que vai de 1989 até a Revolução de 1930, e da 2ª República, dessa data em diante. Naquele o regime administrativo desenrolou-se sob a inspiração da Constituição de 1891, de caráter nitidamente liberal, individualista. Então, regulamentava a vida jurídica de um país organizado, sob o ponto de vista social, em moldes feudais e com economia predominantemente agrícola.15

No que concerne à educação, Motauri Ciocchetti de Souza nos ensina que: Com a república e a adoção do sistema federalista, veio regime bipartido de competências na área educacional. Assim, à União competia tratar dos ensinos secundário e superior, enquanto aos Estados estava delegada a tarefa de cuidarem da formação educacional básica em nível técnico, sem receberem, para tanto, qualquer repasse econômico.16

Para selar essa mudança e não deixar qualquer rastro de dúvidas sobre a intenção do Constituinte, o país adotou o nome oficial de República dos Estados Unidos do Brasil (evidentemente, uma forte influência dos Estados Unidos da América). 2.3 Organização dos Poderes

O Título I da Constituição, especificamente no seu art. 1517, tratou da organização dos poderes, em observância à clássica divisão de Montesquieu. O antigo Poder Moderador, antes chave de toda a organização política, foi abandonado pelos novos ares republicanos. quadrados, que será oportunamente demarcada, para nella estabelecer-se a futura Capital Federal”. 14. CF/1981, art.67:”Salvas as restricções especificadas na Constituição e nas leis federais, o Districto Federal é administrado pelas autoridades municipaes”. 15. Princípios gerais de direito administrativo,Vol.I, 3ª ed., Malheiros, São Paulo: 2007, p. 142 16. Direito educacional. São Paulo:Verbatim, 2010, p. 29-30. 17. CF/1981, art. 15: “São órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si”.

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2.3.1 Poder Legislativo

O Poder Legislativo era exercido pelo Congresso Nacional, com a sanção do Presidente de República (art. 16 da CF189118). O parágrafo primeiro traçava a noção que permanece até hoje do bicameralismo federativo. A Câmara dos Deputados compunha-se de representantes do povo eleitos pelos Estados e pelo Distrito Federal, mediante o sufrágio direto, garantida a representação da minoria (art. 28, caput, CF189119). A legislatura era de três anos. O Senado Federal era formado por representantes eleitos dos Estados e do Distrito Federal, maiores de trinta e cinco anos de idade, e em número fixo para todos: três. O mandato, nesse caso, era de nove anos. A renovação ocorria pelo terço trienalmente (um Senador a cada três anos, para acompanhar a eleição para a Câmara dos Deputados). De qualquer forma, a vitaliciedade do senador, que era inerente ao período imperial, fora abolida na República. Ambos os deputados e senadores eram invioláveis por suas opiniões, palavras e votos no exercício do mandato. Também não poderiam ser presos nem processados criminalmente sem prévia licença da Câmara, salvo em flagrante de crime inafiançável, desde a diplomação até a nova eleição. Diferentemente da CF de 1988, o art. 25 do referido antigo Texto Magno20, prescrevia a incompatibilidade de funções do legislador durante a sua respectiva legislatura. O naturalizado poderia ser eleito para o Congresso Nacional. Para concorrer a uma vaga de Deputado, deveria ter mais de quatro anos de cidadania brasileira; para o Senado, mais de seis anos. Um fato bastante curioso é trazido por Pinto Ferreira ao tratar do Poder Legislativo no âmbito dos Estados membros. Diz ele que, “alguns Estados só possuíam uma Câmara; outros, entretanto, como Pernambuco e São Paulo, além da Câmara dos Deputados, permitiram a existência de um Senado Estadual”21. 18. CF/1891, art.16: ”O Poder Legislativo é exercido pelo Congresso Nacional, com a sancção do Presidente da Reupública. § 1º O Congresso Nacional compõem de dous ramos: a Camara dos Deputados e o Senado”. 19. CF/1981, art.28, caput: “A Camara dos Deputados compõe-se de representantes do povo eleitos pelos Estados e pelos Districto Federal, mediante o sufrágio direto, garantida a representação da minoria” 20. CF/1981, art.25: “O mandato legislativo é incompatível com o exercício de qualquer outra fucção durante as sessões”. 21. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 1998, p. 52

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2.3.2 Poder Executivo

Exercia o Poder Executivo o Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil, como chefe eletivo da nação (art. 41, CF/198122). O pretendente ao cargo deveria ser brasileiro nato e contar com mais de 35 anos de idade. O mandato era de quatro anos, proibida a reeleição para o período subseqüente. O Vice-Presidente dependia dessas mesmas condições de elegibilidade, e era eleito simultaneamente com o Presidente. A escolha deveria ocorrer por maioria absoluta dos eleitores em um turno apenas. Todavia, a Constituição traçou curiosa regra para o caso de a maioria absoluta não ser alcançada: o Congresso elegerá, por maioria dos votos presentes, um, dentre os que tiverem alcançado as duas votações mais elevadas na eleição direta (art. 47, §2º, CF/189123). Em caso de empate, considerava-se eleito o mais velho. A eleição direta foi uma grande conquista nessa época. No entanto, a primeira eleição presidencial da República foi indireta, realizada pelo Congresso Nacional que estava reunido para a elaboração da Constituição. E mais, Presidente e Vice-Presidente não foram eleitos simultaneamente (art. 1º e parágrafos, das Disposições Transitórias). De qualquer forma, tanto o Presidente quanto o Vice, este último se acabar exercendo a presidência no último ano de mandato, não poderiam ser reeleitos. Em havendo a ausência do Presidente e também do Vice, quem assumiria o mandato, neste ínterim, seria o Vice-Presidente do Senado, diante o art. 41, § 2º, da CF de 189124. Talvez o art. 80 da CF de 1988, nesta questão da substituição temporária dos mandatários do Poder Executivo, fora mais feliz do que o da Carta Política de 1891, haja vista que no texto constitucional ora vigente é o Presidente da Câmara Federal quem preenche a vaga a descoberto, e não o Vice-Presidente do Senado. Isto porque a Câmara Federal é a representante do povo, enquanto o Senado é o representante do Estado-Membro. Paulo Bonavides explica: 22. CF/1981, art. 41: “Exerce o Poder Executivo o Presidente da República dos Estados Unidos do Brazil, como chefe electivo da nação”. 23. CF 1891, art. 47, § 2º: “Se nenhum dos votados houver alcançado maioria absoluta, o Congresso elegerá, por maioria dos votos presentes, um, dentre os que tiverem alcançado as duas votações mais elevadas, na eleição directa”. 24. CF/1981, art.41, §2º: “No impedimento, ou falta do Vice-Presidente, serão sucessivamente chamados à Presidência o Vice-Presidente do Senado, o Presidente da Camara e o do Supremo Tribunal Federal”.

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O sistema de duas Câmaras, da essência da ordem federativa, testemunha precisamente uma técnica vertical de separação de poderes. Um ramo do poder legislativo – o Senado – exprime a vontade dos Estados, mas o poder político soberano se manifesta também através da segunda casa legislativa: a Câmara dos Deputados ou Casa de Representantes por onde se filtra a vontade dos cidadãos, vontade democrática, vontade popular, que expressa, na produção da ordem jurídica, o sentimento nacional unificado25.

2.3.3 Poder Judiciário

A Constituição de 1891 consagrou a dualidade das justiças federal e estadual. No âmbito federal, ela manteve a estrutura criada pelo Dec. 848, de 11/10/1890, de autoria de Campos Salles, ainda sob o Governo Provisório. Havia um Supremo Tribunal Federal, com sede na capital da República, e composto por quinze membros. Um desses membros seria designado pelo Presidente da República como Procurador-Geral da República, cujas atribuições seriam definidas em lei (a constitucionalização do Ministério Público ocorreu como parte integrante do Judiciário – art. 58, §2º�). Havia ainda juízes federais (ditos seccionais) e tantos tribunais federais distribuídos pelo país “quantos o Congresso criar” (art. 5526). Já a análise estadual dependia da lei de cada ente (a Constituição de 1891 permitia que os Estados membros legislassem sobre processo inclusive), observados os limites e competências atribuídas à justiça federal pela Constituição da República. Diante o art. 34, § 23, da CF de 189127, que não previa processo civil como matéria privativa do Congresso Nacional, Arruda Alvim destaca que: O Dec. 763, de setembro de 1980, estabelecia que o Brasil continuaria sendo regido, quer em matéria civil, quer comercial, pelo Regulamento 737, enquanto cada um dos Estados não baixasse o seu Código de Processo Civil próprio28.

Não havia proibição constitucional para a atividade político-partidária pelos juízes. Houve previsão da vitaliciedade e da irredutibilidade de vencimentos para os juízes federais (art. 57, §1º29). 25. Ciência política, 10ª ed, São Paulo: Malheiros, 1997, p. 186. 26. CF/1981, art. 55: ”O Poder Judiciário da União terá por órgãos um Supremo Tribunal Federal, com sede na Capital da República, e tantos juízes e tribunaes federaes, distribuídos pelo paiz, quantos o Congresso crear”. 27. CF/1981, art. 34, § 23º: ”Legislar sobre o direito civil, comercial e criminal da República e o processual da justiça federal”. 28. Manual de direito processual civil, Vol. I, 12ª ed., São Paulo:RT, 2008, p. 56. 29. CF/1981, art. 57, § 1º: “Os seus vencimentos (juízes) serão determinados por lei e não poderão ser diminuídos” (grifo nosso).

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Talvez a maior inovação dessa Constituição fora a introdução do controle de constitucionalidade pela via difusa. A parte interessada poderia contestar judicialmente a validade de lei ou atos dos governos em face da Constituição. 2.4 Estado laico

Na esteira do Dec. 119-A, de 07/01/1890, o Legislador Constituinte não invocou a proteção de Deus no preâmbulo do texto constitucional e promoveu a separação oficial entre Estado e Igreja. Mas tanto Decreto e Constituição foram além. Nenhum culto ou igreja poderia gozar de subvenção oficial, nem teria relações de dependência ou aliança com o Governo da União ou dos Estados. Era reconhecida a personalidade jurídica das igrejas e confissões religiosas, para adquirirem bens e os administrarem. Os cemitérios foram secularizados e as administrações transmitidas para a autoridade municipal respectiva. Apenas o ensino leigo seria ministrado nos estabelecimentos públicos. E o casamento seria apenas civil, com celebração gratuita. Por fim, o instituto do padroado, em que o Imperador intervia nas nomeações e benefícios eclesiásticos, restou extinto. 2.5 Declaração de direitos

A seção II, do Título IV, consagrou a “Declaração de Direitos”. O art. 72 garantiu aos brasileiros e estrangeiros residentes no país os direitos clássicos à liberdade, à segurança jurídica, à propriedade e à igualdade. Pela primeira vez numa Constituição brasileira vislumbrou a garantia do habeas corpus (§22). Entretanto, pela redação abrangente conferida ao dispositivo legal, entendia-se que essa garantia era hábil a tutelar qualquer direito ameaçado do cidadão, e não apenas o de locomoção. Apenas com a reforma constitucional de 1926 que o habeas corpus foi restringido para tutelar exclusivamente a liberdade de locomoção. Não previu originariamente qualquer dispositivo referente aos trabalhadores, isto porque o Direito do Trabalho é um novel ramo do direito público brasileiro30. 30. Conforme esclarece Maurício Godinho Delgado, “a existência do trabalho livre (isto é, juridicamente livre) é pressuposto histórico-material do surgimento do trabalho subordinado (e, via de conseqüência, da relação empregatícia). Pressuposto histórico porque o trabalho subordinado não ocorre de modo relevante na história, enquanto não assentada uma larga oferta de trabalho livre no universo econômico-social. Pressuposto material (e lógico) porque o elemento subordinação não se constrói de modo distintivo senão em relações em que o prestador não esteja submetido de modo pessoal e absoluto ao tomador de serviços (como ocorre na servidão

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Somente com a Emenda Constitucional de 1926 é que se inseriu o mencionado direito fundamental. Quanto ao exercício da cidadania, especificamente no tocante aos direitos políticos, a incompatibilidade eleitoral era deixada à lei infraconstitucional sobre o seu regramento, de acordo com o art. 2731. Eleitor seria o maior de 21 anos, conforme art. 70, e, neste mesmo artigo, por meio do § 1º, vedava-se o alistamento eleitoral do mendigo. Um ponto interessante era o art. 78. Ele estabelecia que as garantias e os direitos expressos na Constituição não excluíam outros não enumerados, mas resultantes da forma de governo que ela estabelece e dos princípios que consigna. 2.6 Grande naturalização

De acordo com o art. 69, 4º, da Constituição, foram considerados cidadãos brasileiros os estrangeiros que: Achando-se no Brasil aos 15 de novembro de 1889, não declararem, dentro em seis meses depois de entrar em vigor a Constituição, o ânimo de conservar a nacionalidade de origem.

Esse fato é denominado pela doutrina como grande naturalização. Ele é comum em países jovens, em formação, como o Brasil de 1891. Os países europeus comumente possuem como cerne de sua nacionalidade o jus sanguinis, no intuito de manter a linhagem de seus cidadãos que estavam acostumados a desbravarem outros países, principalmente como antigas metrópoles que detinham o controle de suas colônias. Eram países, portanto, de emigração. Por outro lado, Caio Mário da Silva Pereira alerta contra o princípio da nacionalidade aqui no país: Um país de imigração como o Brasil, abrigando as grandes massas estrangeiras vindas de todas as partes, não devia adotar a teoria do reconhecimento do direito nacional, pois é reduzido o número de brasileiros que, emigrando, dão ensanchas a que seja invocado extraterritorialmente o direito brasileiro32.

Isto é, de forma a atrair mão-de-obra que pudesse substituir o trabalho escravo, era evidente a necessidade de se atribuir a predominância à nacionalidade o jus solis no Brasil. Berço de imigrantes. e escravatura, por exemplo). Em decorrência dessa conexão histórica, material e lógica entre trabalho livre e trabalho subordinado, percebe-se que as relações jurídicas escravistas e servis são incompatíveis com o Direito do Trabalho. É que elas supõem a sujeição pessoal do trabalhador e não a sua subordinação” (Curso de direito do trabalho, 5ª ed., São Paulo: Ltr, 2008, p. 84). 31. CF/1981, art. 27: “O Congresso declarará, em lei especial, os casos de incompatibilidade eleitoral”. 32. Curso de direito civil, Vol. 1, 20ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 178.

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2.7 Constituição promulgada e ESCRITA

A Constituição objeto de debates numa Assembleia Nacional Constituinte, com representantes eleitos democraticamente pelo povo da época, e devidamente votada e aprovada, é denominada de promulgada. Além disso, não era da tradição brasileira à obediência a normas costumeiras, não escritas. Em realidade, a Constituição de 1891 fora promulgada e compilada em um documento escrito. Constituição analítica Apesar de concisa, a Constituição, em algumas situações, desceu às minúcias, que poderiam, em realidade, ser muito bem resolvidas pela legislação ordinária. Todavia, essa preocupação era compreensível, pois o Brasil era um país em formação. Apesar de a transição ter ocorrido sem violência (e também sem a participação popular), ainda havia muitos adeptos do regime anterior dispostos a retomar antigos privilégios. Por isso, em busca de maior estabilidade sobre determinadas matérias inovadoras, a primeira Constituição republicana foi bem desenvolvida. 2.8 Constituição rígida

Rigidez constitucional significa dizer que o procedimento para alteração do texto constitucional de 1891 era mais dificultoso do que o procedimento para a elaboração da lei ordinária33. Tal característica evitava-se a contrarrevolução e também relevava o papel precípuo texto constitucional. Considerações FINAIS

As três principais questões históricas (a da abolição da escravatura, a militar e a religiosa) propiciaram campo para o surgimento da república no Brasil. 33. CF/1981, art. 90: “A Constituição poderá ser reformada, por iniciativa do Congresso Nacional, ou das Assembléias dos Estados. § 1º Considerar-se-há proposta a reforma, quando, sendo apresentada por uma quarta parte, pelo menos, dos membros de qualquer das Camaras do Congresso Nacional, for aceita, em três discussões, por dois terços dos votos numa e noutra câmara, ou quando fôr solicitada por dous terços dos Estados, no decurso de um anno, representado cada Estado pela maioria de votos de sua Assembléa. §2º Essa proposta der-se-há por aprovada, si no anno seguinte o fôr, mediante três discussões, por maioria de dous terços dos votos nas duas Camaras do Congresso. §3º A proposta aprovada publicar-se-há com as assignaturas dos Presidentes e Secretarios das duas Camaras, e incorporar-se-há à Constituição como parte integrante dela. § 4º Não poderão ser admitidos como objeto de deliberação, no Congresso, projectos tendentes a abolir a fórma republicana federativa, ou a igualdade da representação dos Estados no Senado”.

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Com seu texto conciso, a Constituição Federal de 1891 tratou da estrutura do Estado, atribuindo-se papel de destaque aos municípios, e tanto reorganizou os Poderes, com a exclusão do Poder Moderador da época imperial. A mencionada Constituição não vinculou o Estado à igreja e, no seu texto, expressamente conferiu a declaração de direitos. Atribuiu, ainda, ao Brasil, a característica de um Estado de imigrantes, em razão da grande naturalização. Por fim, através da promulgação e da forma escrita, vislumbrava-se a rigidez da Constituição de 1981. Estava criada, pois, o primeiro documento constitucional da República do Brasil. rEFERÊNCIAS

ALVES JÚNIOR, Luís Carlos Martins. Revista Brasileira de Direito Comparado. O Senado federal nas Constituições brasileiras de 1891 e 1934: as influências do Constitucionalismo alemão. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. ALVIM, Arruda. Manual de direito processual civil. Vol 1, 12ª ed., São Paulo: RT, 2008. BANDEIRA DE MELLO, Oswaldo Aranha. Princípios gerais de direito administrativo. Vol. I, 3ª ed., São Paulo: Malheiros, 2007. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10º ed., São Paulo: Malheiros, 1999. ______. Curso de direito constitucional. 12ª edição. Malheiros: São Paulo, 2002. ______. História constitucional do Brasil. 9ª edição. Brasília: OAB editora, 2008. CASALECCHI, José Enio. A proclamação da república. São Paulo: Brasiliense, 1981. CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as constituições brasileiras. Campinas: Bookseller, 2001 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 5ª ed., São Paulo: Ltr, 2008. FERREIRA, Pinto. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998. FONSECA, Aníbal Freire da. A Constituição de 1891: o sistema constitucional

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CAPÍTULO III

a CoNStItuIÇÃo Da REpÚBlICa DoS EStaDoS uNIDoS Do BRaSIl (1934)

Elaine Cristina de Oliveira Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito do Estado pela Faculdade Anhanguera. Advogada.

Lívia Pitelli Zamarian Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito e Processo Civil pela Universidade Estadual de Londrina e em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná.. Docente na Universidade Norte do Paraná. Advogada.

INTRODUÇÃO

A partir da Revolução de 1930 e com o impulso da Revolução Constitucionalista de São Paulo de 1932 proveio a Constituição de 1934. Foi a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil a terceira Constituição do país e a primeira promulgada no século XX. Considerada avançada para o seu tempo, introduziu novos direitos que impuseram uma prestação estatal, os direitos de segunda geração: direitos sociais, econômicos e culturais. Trouxe como valor maior o “bem comum” e, distintamente das demais, consagrou, basicamente, a nova ordem econômica e as preocupações com as questões sociais. A família ganhou proteção especial. Sua duração, todavia, foi muito curta e ela quase não foi aplicada. Decaiu através do apoio dos grupos militares a Getúlio Vargas, o então

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Presidente da República, com o impedimento do funcionamento do Poder Legislativo e a edição da Carta de 10 de novembro de 1937. Sua análise, contudo, é extremamente importante quando cotejada com toda a trajetória constitucional brasileira, não só por sua relevância histórica e reflexos produzidos na atualidade, já que, “muito do bom e muito do mau da organização política brasileira, desde então até a lei vigente, tem sua origem nos debates daquela Comissão”1, mas também porque pode proporcionar maior respaldo à cidadania. Para estudá-la, inicialmente foi feita uma breve contextualização do momento histórico das primeiras discussões que originaram a Constituição de 1934, analisando-se, também, a formação da Comissão do Itamaraty e o anteprojeto por ela criado. Em seguida tratou-se da Assembléia Constituinte que alterou e aprovou o texto constitucional definitivo, discorrendo-se sobre suas principais características e os pontos que trazem grandes influências até os dias atuais. 1 CONTEXTO HISTÓRICO

Vigente a primeira República desde 1889, foi ela marcada pelo fortalecimento das oligarquias em vários Estados e por alianças entre estes. São Paulo e Minas Gerais, detentores de grande poder econômico e maiores produtores de café e leite no país, por um acordo, alternavam-se na ocupação do cargo de Presidente da República. Após muitos anos de vigência desta política, denominada de café-comleite, em 1929 foi ela cindida, quando, o então Presidente Washington Luís apoiou um candidato também paulista, Júlio Prestes. Tal ruptura desencadeou uma Revolução iniciada em 24 de outubro de 1930 e Júlio Prestes, mesmo tendo sido eleito após concorrer com Getúlio Vargas, nunca assumiu o cargo. Em 24 de outubro de 1930 o presidente Washington Luis foi deposto pelas Forças Armadas e em 03 de novembro do mesmo ano, Getúlio Vargas assumiu provisoriamente o poder, com o compromisso de reorganizar constitucionalmente o país, nos seguintes termos: O decreto nº 19.398, de 11 de novembro de 1930, que instituiu o Governo Provisório, não deixava lugar a dúvidas: o poder triunfante pelas armas entrava a exercer discricionariamente em toda a sua plenitude as funções e atribuição não só do Poder Executivo senão também do Poder 1. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Algumas instituições políticas no Brasil e nos Estados Unidos. Rio de Janeiro: Forense, 1975. p. 58.

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Legislativo. O artigo primeiro desse ato revolucionário concentrava nas mãos do Governo Provisório a totalidade dessas faculdades, até que, eleita a Assembléia Constituinte, se estabelece a reorganização constitucional do país. [...] Ato institucional de um poder absoluto nascido das armas, o decreto de 11 de novembro de 1930 confirmava a dissolução do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas estaduais, quaisquer que fossem as suas denominações, bem como de todas as Câmaras Municipais, ao mesmo passo que suspendia as garantias constitucionais e excluía de apreciação judicial os decretos e atos do Governo Provisório ou dos interventores federais, praticados na conformidade daquele diploma de força e exceção.2

O referido decreto dotava Vargas de um amplo poder discricionário, e utilizando-se dele, a Constituição Brasileira vigente foi derrubada e foram nomeados interventores para diversos Estados. Esta retirada de autonomia estatal gerou grande descontentamento dos opositores, em especial das oligarquias e classe média paulista, que passaram a engendrar uma revolta armada defendendo a criação de uma nova Constituição. Em 25 de janeiro de 1932 foi realizado um comício, que reuniu cerca de cem mil pessoas 3, já com o intuito de pleitear uma Assembléia Constituinte. Percebendo a pressão, em 14 de maio de 1932, o Governo Provisório expediu o Decreto n. 21.402, e determinou o dia 3 de maio de 1933 para a eleição dos participantes da Assembléia Constituinte, bem como criou uma Comissão para elaborar o projeto da nova Constituição. Já era tarde, todavia, e, em julho de 1932, eclodiu o Movimento Constitucionalista de São Paulo. Tratava-se de “um protesto contra a vocação continuísta da ditadura e a indefinição de seus poderes conduzidos já no exercício discricionário a formas de extremo absolutismo”4. Ronaldo Poletti, afirma que este movimento paulista já estava se formando meses antes da edição do Decreto pelo Governo Provisório e que, mesmo ainda em seu início, foi também ele, que forçou o Governo a criar a Comissão e a anunciar as eleições.5 Havia, contudo, opiniões divergentes que afirmavam não ser aquele um momento oportuno de constitucionalização, pois entendiam que a revolução ainda não tinha realizado todos seus objetivos. Esta, entretanto, já durava tempo suficiente, e deveria caminhar, mesmo que fosse necessário “conseguir 2. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 5ª ed. Brasília: OAB Editora, 2004. p. 283. 3. NOGUEIRA, Octaviano. A constituinte de 1946. Getúlio, o sujeito oculto. São Paulo: Martins Fontes, 2005. P. XX e XXI. 4. BONAVIDES; ANDRADE, op. cit., p. 287. 5. POLETTI, Ronaldo. Constituições brasileiras: 1934. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e Tecnologia, Centro de Estudos estratégicos, 2001. p. 14

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por uma revolução branca” – a Constituição – “aquilo que não lograram obter pela vermelha”.6 O movimento foi duramente reprimido, mas permaneceu no ideário da população e, neste contexto histórico, impulsionou os atos para a instalação da Constituinte e formulação da nova Constituição do país. Foi nesse contexto, e através de “um texto extensivo que procurou expressar os movimentos político-sociais de então”7, que começou a nascer a Constituição de 1934. Mesmo diante de um regime presidencialista, ela inovou com a introdução de um Estado Social, o qual buscava atender aos reclamos do momento histórico da sociedade. 2 A COMISSÃO DO ITAMARATI

Com o intuito de elaborar um anteprojeto, a Comissão, que deveria representar “as correntes organizadas de opinião e de classe, a juízo do Chefe de Governo” 8, foi presidida pelo Ministro da Justiça da época, Antunes Maciel. Este, logo passou a direção ao então Ministro das Relações Exteriores, Afrânio de Melo Franco, e, além dele, a Comissão foi formada de mais 14 membros: Assis Brasil, Antonio Carlos, Prudente de Moraes Filho, João Mangabeira, Carlos Maximiliano, Arthur Ribeiro, Agenor de Roure, José Américo, Oswaldo Aranha, Oliveira Vianna, Góes Monteiro e Themístocles Cavalcante (secretario da comissão geral), tendo Arthur Ribeiro, José Américo e Oliveira Vianna se retirado antes do término do anteprojeto, que passou a contar com a colaboração de Castro Nunes e Solano Cunha. Os trabalhos realmente só iniciaram no dia 11 de novembro daquele ano, na residência de Afrânio de Mello Franco em Copabacana, depois passando para o Palácio do Itamarati, razão pela qual ficou conhecida como Comissão do Itamarati. Foram regulamentados pelo Governo através do Decreto nº. 22.040, o qual confessou a grande necessidade de início dos trabalhos. O diploma fixava o quorum de um terço de seus membros para a instalação de suas reuniões e de maioria absoluta para as deliberações; estabelecia as atribuições do seu Presidente, o Ministro da Justiça, dentre elas a de “designar um segundo presidente, que terá, quando em exercício, todas as funções e direitos do efetivo” e a de “nomear, para formar um projeto de constituição, que sirva de base 6. MANGABEIRA, João. Em torno da Constituição. São Paulo: Companhia Nacional Editora, 1934. P. 269-270. 7. CUNHA, Alexandre Sanches. Todas as Constituições Brasileiras de 1824 a 1988 – Edição comentada. Campinas: Bookseller, 2001. p. 87. 8. Decreto n. 21.402, de 14 de maio de 1932 in: AZEVEDO, José Afonso de Mendonça. Elaborando a constituição nacional: atas da Subcomissão elaborada do anteprojeto 1932/1933. Ed. Fac. Similar.Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2004.

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ás deliberações do plenário, uma subcomissão, composta de um terço dos membros da comissão; compreendidos obrigatoriamente neste numero os ministros de Estado a ela presentes”. Nomeada a subcomissão deveria receber ela, no prazo de quinze dias, sugestões dos membros da Comissão, “bem como de quaisquer instituições dos membros da Comissão, “bem como de quaisquer instituições culturais, sindicatos, associações científicas, academias, tribunais judiciários e órgãos representativos de correntes de opinião”. O decreto, em tela, disciplinava ainda o trâmite dos trabalhos até o envio de sua conclusão ao Chefe do Governo Provisório.9

O início dos debates desta Comissão foi marcado pela perspectiva dos direitos sociais, como demonstra Porto ao mencionar que, João Mangabeira, o relator geral, assim expunha as preocupações do grupo: “Todas as constituições modernas têm como orientação acabar com as desigualdades sociais. Se a constituição brasileira não marchar na mesma direção, deixará de ser revolucionária para ser reacionária”. 10 Tais reuniões foram caracterizadas como aquelas, dentre todas as outras das demais constituições brasileiras, que alcançaram o maior “nível de discussão, de rigor de análise, de detalhamento das matérias”.11 E, ao todo, seus membros reuniram-se 51 vezes, encerrando os trabalhos em 5 de maio de 1933 – exatamente em menos de cinco meses. 3 O ANTEPROJETO

O Anteprojeto elaborado pela subcomissão apresentava 136 artigos e mais de oito incisos das Disposições Transitórias. Foi influenciado principalmente pelas seguintes constituições da época: “a da Alemanha, de 11 de agosto de 1919, a da Austrália, de 1º de outubro de 1920, a Constituição Republicana da Espanha, de 1931”12 e também pela lei mexicana de 191713. João Mangabeira foi seu relator geral, cabendo a ele, especificamente, elaborar o capítulo ou seções referentes ao estado de sítio, declaração de direitos, garantias ao funcionalismo, nacionalidade, cidadania e inelegibilidade. Basicamente defendia também em seu anteprojeto o federalismo, o unicameralismo, a unidade da magistratura, eleição presidencial, competência 9. POLETTI, Ronaldo. Da constituição à Constituinte. Rio de Janeiro: Forense, 1986. p. 112-113. 10. PORTO, Walter Costa, Prefácio In: AZEVEDO, José Afonso de Mendonça. Elaborando a constituição nacional: atas da Subcomissão elaborada do anteprojeto 1932/1933. Ed. Fac. Similar. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2004. p. XXIII. 11. Ibidem, p. XIV. 12. FERREIRA, Pinto. A Constituição brasileira de 1934 e seus reflexos na atualidade. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 24 n. 93, jan./mar. 1987. p. 16. 13. PORTO, op. cit, p. XXIII.

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tributária, o princípio da irretroatividade da lei, a ordem econômica e social, a garantia do mandado de segurança e a idéia de liberdade. Mangabeira procurou estabelecer ao anteprojeto uma estrutura federativa, onde a União estivesse fortalecida e os Estados-Membros com suas autonomias asseguradas. Buscou extinguir os impostos interestaduais e intermunicipais e uniformizar os impostos federais para todos os Estados, pois entendia que o país não poderia continuar a viver em um clima intranqüilo, provocado por tarifas estabelecidas pelos Estados, dificultando o desenvolvimento. Instituiu a intervenção federal, como mecanismo de defesa a tais abusos. Defendia a competência exclusiva da União para decretar os impostos não repartidos, mas, para os demais, sustentava que cada entidade deveria ter o poder de estipulá-los, já que as realidades dos diversos Estados-Membros não são idênticas. 14 Quanto ao imposto de renda, almejava seu repasse aos EstadosMembros, subtraindo-se da União tal competência, como forma de efetivar o lançamento e transformá-lo em uma “grande fonte de renda e num instrumento para a justiça social”, além de “impedir muita despesa criminosa, feita para fins da politicalha governista.15 Porém, tais idéias tampouco foram aceitas pelos Constituintes de 34. Também, criou uma prática intervencionista para o caso de o EstadoMembro atrasar o pagamento dos vencimentos de qualquer magistrado. Buscou ampliar a execução das sentenças federais. “Revoltava-se Mangabeira contra o autoritarismo dos governadores que, para não dar cumprimento às decisões da justiça estadual contrárias a seus interesses pessoais ou políticos, deixavam de fornecer ‘a força indispensável à sua execução’.” 16 O Anteprojeto previa ainda o unicameralismo, onde o Poder Legislativo seria exercido pela Câmara dos Deputados com a colaboração do Senado Federal, que não mais teria iniciativa de lei, mas somente assumiria a tarefa de aperfeiçoar os projetos vindos da Câmara. Suprimir-se-ia o Senado e criar-se-ia, em seu lugar, o Conselho Supremo. Seria o Conselho Supremo composto de 35 Conselheiros mais os expresidentes da República, que houvessem exercido o cargo durante pelo menos três anos. Deveriam eles ser brasileiros natos, maiores de 35 anos, estar no exercício dos direitos políticos, com reconhecida idoneidade moral, reputação de notável saber ou ter exercido cargos superiores da administração ou da magistratura ou se salientado no Poder Legislativo 14. MANGABEIRA, op. cit,p. 134-139. 15. Ibidem, p. 144. 16. TOURINHO, Arx. Em torno das idéias constitucionais de João Mangabeira. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 17 n. 66, abr./jun. 1980. p. 29.

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Nacional, ou, de outro modo, por sua capacidade técnica ou cientifica. (art. 67, par 1). Os Conselheiros gozariam das imunidades asseguradas aos Deputados à Assembléia Nacional (art. 67, par 5) e exerceriam o múnus por sete anos, podendo ser reeleitos ou nomeados para um novo setênio (par. 4).17

Tal idéia não chegou a ser adotada na Constituição de 1934, mas certamente “diminuiu a importância do Senado no exercício do Poder Legislativo”18. Quanto ao Judiciário, prescrevia-o como unitário, existindo somente juízes e Tribunais federais. Tal proposta, muito embora aprovada no anteprojeto, foi polêmica e acabou ocasionando a saída do então Ministro do Supremo Tribunal Federal, Arthur Ribeiro, da comissão, por com ela não concordar. 19 Neste tocante, estabelecia, além da dispensa dos Tribunais regionais, a criação de um Tribunal das Reclamações, visando diminuir o trabalho do Supremo Tribunal Federal. Também previa a instituição do júri, com organização e atribuições através de lei ordinária, para o julgamento de crimes de imprensa e os políticos, exceto os eleitorais. Com relação ao Ministério Público, o anteprojeto expressava reação contra a República Velha, onde o chefe do parquet era por designação do Presidente da República dentre os membros do Supremo Tribunal Federal. Mangabeira também defendeu a não inclusão, no anteprojeto, da regra da irretroatividade das leis quando mais prejudiciais ao acusado, que a Constituição de 1891 expressou de forma absoluta, ao impor aos Estados e a União a vedação de prescreverem leis retroativas. Defendia a retroatividade benéfica como “grande princípio essencial à liberdade humana”.20 Assim, quanto ao tema, embora não tenha configurado o mesmo rigor das demais Constituições anteriores, ficou consignado que a lei não prejudicaria o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. A matéria da ordem econômica e social ficou incumbida para elaboração por Osvaldo Aranha, contudo, Mangabeira, colaborou de forma decisiva. Procurou estabelecer semelhanças à situação econômica da época. Protegia a herança, o imposto progressivo, a propriedade privada – procurando estabelecer uma função social a ela, bem como o trabalhador urbano e rural – cujas normas protetoras deveriam ter a aplicação velada pelo Ministério Público.21 Havia também, a proteção de leis quanto ao desenvolvimento físico e espiritual dos filhos ilegítimos, não podendo ser tratados em momento 17. POLETTI, Da constituição...op. cit, p. 122. 18. TOURINHO, op. cit, p. 32. 19. POLETTI, Constituições brasileiras..., op. cit., p. 52. 20. TOURINHO, op. cit., p. 36. 21. MANGABEIRA, op. cit., p. 178.

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algum de forma diferenciada da instituída para os filhos legítimos. E é facultada investigação tanto de paternidade quanto de maternidade aos filhos ilegítimos. Finalmente, diante de todas as matérias mencionadas, no anteprojeto da Constituição elaborado por Mangabeira, houve a criação do nomen júris: mandado de segurança, primeira expressão assinalada por ele. Themistocles Cavalcanti, secretário da Comissão Geral da Comissão do Itamarati, sugeriu a proposta de fixar um processo sumaríssimo a ser deferido por lei ao remédio constitucional, o que vigorou no anteprojeto (art. 102, § 21). Acrescentou também, um prazo decadencial para interposição do mandado em trinta dias e excluiu as matérias de apreciação relativas a impostos, taxas ou multas fiscais. Em síntese, os objetivos do anteprojeto, segundo Ronaldo Poletti, eram os seguintes: O anteprojeto adotava o unicameralismo, a eleição indireta do Presidente da República, um Conselho Supremo, a unidade no processo judiciário e, em parte, da magistratura; estabelecia amplas garantias sociais e preconizava a socialização de empresas; possibilitava a adjudicação aos posseiros da terra produtiva que, por cinco anos, ocupassem, tornava impenhorável a propriedade domiciliar; restringia o direito sindical e da expropriação do latifúndio, da assistência aos pobres e do salário mínimo; criva o mandado de segurança. Além disso, obrigava os Estados a usarem os símbolos nacionais e proibialhes de tê-los; integrava na legislação brasileira as normas de Direito Internacional universamente aceitas; criava uma Comissão permanente para representar a Assembléia Nacional nos intervalos de suas sessões; instituía uma Justiça Eleitoral; traçava normas sobre o orçamento e a administração financeira; cuidava da defesa nacional e criava territórios nacionais nas regiões fronteiriças, quando não possuíssem elas determinada densidade demográfica; fixava a capacidade eleitoral em 18 anos para ambos os sexos, tornando obrigatório o voto para os homens; permitia o serviço religioso nas expedições militares, hospitais, penitenciárias ou “outros estabelecimentos públicos”, punha a família sob a proteção do Estado e declarava a indissolubilidade do vinculo matrimonial; prescrevia normas para o ensino e cultura e tratava com ênfase da ordem econômica e social.22

Uma das críticas que se fazia ao mencionado anteprojeto é que o mesmo refletia uma diversidade de tendências, todavia, como ensina seu próprio subscritor, não ter adotado integralmente uma doutrina, mas sim, ter buscado “fugir aos extremismos e qualquer natureza, conservando-se no meio termo da harmonização de interesses, condição essencial a qualquer lei de grande porte” foi na verdade uma de suas grandes virtudes. 23 22. POLETTI, Da constituição... op. cit, p. 115-116. 23. MANGABEIRA, op. cit., p. 10.

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4 A ASSEMBLÉIA CONSTITUINTE

Eleita somente por 5,7% da população brasileira adulta24, a Assembléia Constituinte foi oficialmente instalada em 15 de novembro de 1933. Era formada por 254 deputados, conforme disposição do Decreto n. 22.621/33, dos quais: 214 eram representantes dos Estados-Membros, eleitos conforme o Código Eleitoral, e os demais eram representantes dos profissionais – empregados, empregadores, profissionais liberais e funcionários públicos, estes eleitos conforme exigência do Decreto n. 22.636/33. Esta foi a terceira Assembléia Constituinte brasileira e a única em nossa história eleita exclusivamente com a finalidade de instituir uma constituição sem que os representantes eleitos, após cumprida sua missão, exercessem mandato posterior – muito embora tenham havido tentativas de transformá-la em uma “Câmara Legislativa ordinária”25. Foi também a primeira constituinte que contou com a participação feminina, através das deputadas Berta Lutz e Carlota Pereira de Queiroz. Participaram também representantes de diversos partidos políticos, inclusive os socialistas. Esta Assembleia, contudo, não era totalmente livre. Além de estar condicionada à revolução, à legislação dela decorrente e ao espírito de desconfiança em face do Governo Provisório, na seara jurídica foi verdadeiramente limitada pelo Decreto n. 22.621/33, que editou o Regimento Interno da Assembléia Nacional Constituinte, e restringiu suas ações. Com isso, sua competência estava restrita à própria Constituição, à eleição do Presidente da República e aprovação dos atos do Governo Provisório. 26 Apesar do cerceamento advindo do Poder Central, explicam Bonavides e Andrade, que eram também sofridas pressões das regiões do poder e, principalmente, a ameaça da dissolução, “fantasma de todas as Assembléias desse gênero e grau em que a vontade social atua como força da legitimidade que lhe é inerente”. 27 Mesmo cerceada e ameaçada, a Constituinte criou um novo texto em substituição ao anteprojeto, que, segundo seu Relator-Geral, Raul Fernandes, mencionado por Afonso Arinos, possuía as seguintes diferenças: Em primeiro lugar, o substituto atenua, consideravelmente, no capítulo da Organização Federal, a centralização considerada excessiva que 24. AMARAL, Roberto. O constitucionalismo da Era de Vargas. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 41, n. 163, jul/ set. 2004. p.91. 25. BONAVIDES; ANDRADE, op. cit., p. 297. 26. POLETTI, Constituições brasileiras... op. cit, p. 41. 27. BONAVIDES; ANDRADE, op. cit., p. 290.

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marcava o projeto e restaura, em setores importantes, a tradição do nosso federalismo. Recusa a limitação do número de Deputados para os grandes Estados. Restabelece o Senado, suprimindo o Conselho Supremo, embora dando àquele uma posição fora do Legislativo. Aceita a participação de congressistas no Ministério. Concorda com a eleição indireta do Presidente da República, porém com um eleitorado especial, não apenas limitado ao legislativo. Aliás, neste ponto, o parecer reconhece que se trata de simples providência temporária, pois o Plenário ainda não se tinha firmando quanto ao importante assunto. Aceita, também, as chamadas emendas religiosas, do casamento indissolúvel e do casamento e do ensino religioso. O capítulo referente à ordem econômica e social foi aceito com a inclusão de suas relevantes inovações, que procuravam nacionalizar e democratizar a economia, bem como proteger o trabalhador. Foram igualmente mantidos os capítulos dedicados às novas matérias constitucionais, como a educação, a família, o funcionalismo, a segurança nacional, a Justiça Eleitoral e outras, com algumas modificações secundárias. 28

As votações do novo texto constitucional ocorreram no período de 07 de maio a 09 de junho de 1934 e em 16 de julho de 1934 foi promulgada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Neste meio período, foi eleito também o Chefe do Governo Provisório, Getúlio Vargas, como Presidente da República, que tomou posse em 20 de julho daquele ano. 5 CARACTERÍSTICAS DA CONSTITUIÇÃO DE 1934

Muito entusiasmo e vibração cercaram a promulgação da nova Constituição Federal, porém, muitas esperanças brevemente se tornaram frustrações. Era – como passou a ser denominada, com propriedade, por Pinto Ferreira – uma “ilusão constitucional.”29 Rotulado de progressista, já que seu anteprojeto continha linhas revolucionárias – muitas delas não aproveitadas, o referido Codex acabou, na realidade, adotando os princípios republicanos tradicionais.30 Assim, a Constituição de 1934 abandonou muitas das idéias compartilhadas no anteprojeto, sobretudo a idéia de princípio socialista e adotou como princípios básicos a democracia, o liberalismo social, o federalismo, o presidencialismo, a separação dos poderes e o nacionalismo. 31 Diante do princípio democrático de uma República presidencialista, vigorava a democracia como o império da opinião pública, expressada pelo voto livre e pelas eleições dos representantes do povo. Quanto ao federalismo, 28. FRANCO, Afonso Arinos de Melo. Curso de direito constitucional brasileiro. Vol II. Rio de Janeiro: Forense, 1960. p. 189. 29. FERREIRA, op. cit.,p. 18. 30. POLETTI, Constituições brasileiras... op cit., p. 24. 31. FERREIRA, op. cit.,p. 17.

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houve um aumento da enumeração das competências da União. Ao menos aparentemente, era a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil democrática. “Foi qualificada por Pontes de Miranda como ‘a mais completa no momento, das constituições americanas’.”32 Quanto à separação dos poderes, seguiu a fórmula de Montesquieu, proposta no Espírito das Leis. Consagrava a unidade da Magistratura no anteprojeto, porém, a Constituição manteve a dualidade. E finalmente, quanto ao liberalismo social, previa, pela primeira vez na história constitucional brasileira, a introdução de novos direitos econômicosociais e de novas e eficientes garantias constitucionais, como o mandado de segurança. Foi uma grande conquista da Constituição de 1934. “A Constituição de 1934, manteve a linha doutrinária do anteprojeto da Comissão do Itamarati, de constitucionalizar matéria não constitucional, segundo o exemplo da Constituição de Weimar.” 33 E, em muitos outros pontos a estudada Constituição assemelhou-se a esta Constituição Alemã de 1919. Há quem diga que ela até mesmo, serviu de parâmetros para o anteprojeto da Constituição brasileira sendo denominada como “parente brasileira”. 34 Notam-se alguns pontos importantes dessa semelhança, tais como, os dizeres do preâmbulo, onde ambas asseguram para a sociedade, a liberdade, a justiça e o bem estar social. Também asseguram na Constituição a educação a todos, desenvolvimento artístico-cultural, a ordem econômica, a proteção a propriedade privada, proteção à família, o amparo ao trabalho e ao trabalhador, através da liberdade de organização sindical, o sistema de assistência social ao trabalhador e o sistema de proteção ao trabalhador desempregado, entre outros direitos. Marco Aurélio 35 especifica, contudo que a maior destas similitudes ocorreu quanto à ordem econômica e social. A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil é, todavia, dotada de diversas características próprias, das quais as mais exponenciais são a seguir analisadas. 5.1 Preâmbulo

Muito embora sem qualquer previsão do anteprojeto neste sentido, e após acirradas discussões, o preâmbulo desta Constituição invocou o nome de 32. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes apud FERREIRA, op. cit., p. 17. 33. FERREIRA, op. cit., p. 23. 34. GUEDES, Marco Aurélio Peri. Estado e ordem econômica e social – A experiência constitucional da República de Weimar e a Constituição brasileira de 1934. Rio de Janeiro: Renovar, 1998. p. 119. 35. Ibidem,p. 19.

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Deus ao assim dispor: “Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus [...]”.36 Tal invocação acabaria por demonstrar uma atenuação da anti-religiosidade presente na Constituição anterior, também refletida no bojo do novo texto com a garantia da liberdade de crença e culto religioso, a concessão de efeitos civis ao casamento religioso (art. 146) e a instituição do ensino religioso nas escolas públicas, muito embora a presença do aluno fosse facultativa (art. 153). Vedouse, contudo, a vinculação dos entes federativos com qualquer culto ou igreja sem prejuízo da colaboração recíproca em prol do interesse coletivo (art. 17, III), mas admitiu-se a assistência religiosa a estabelecimentos oficiais, (art. 113, 6), desde que esta não gerasse quaisquer ônus aos cofres públicos, constrangimento, nem tampouco coação. Criou-se, também, a possibilidade das associações religiosas adquirirem personalidade jurídica (art. 113, 5). 5.2 Direitos Fundamentais

Em todas as Constituições brasileiras houve a presença dos Direitos Fundamentais, contudo, que foram sendo ampliados e introduzidos em cada nova Constituição. Como já mencionado, na Constituição de 1934 houve forte influência da Constituição alemã de Weimar, principalmente no tocante às matérias referentes à ordem econômica e social, à família, à educação, à cultura, e a uma forte legislação trabalhista e previdenciária. Sendo assim, foi com a Constituição de 1934 que ficou previsto um extenso rol de direitos individuais, já presentes em Constituições anteriores, mas acrescentando outros tantos, como relato Groff: No rol dos novos direitos individuais constam: a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; explicitou o princípio da igualdade; permitiu a aquisição de personalidade jurídica, pelas associações religiosas, e introduziu a assistência religiosa facultativa nos estabelecimentos oficiais; instituiu a obrigatoriedade de comunicação imediata de qualquer prisão; instituiu o mandado de segurança; vedou a pena de caráter perpétuo; proibiu a prisão por dívidas, multas ou custas; impediu a extradição de estrangeiros por crime político ou de opinião, e, em qualquer caso, a de brasileiros; criou a assistência judiciária para os necessitados; determinou às autoridades a expedição de certidões requeridas para defesa de direitos individuais ou para esclarecimento dos cidadãos a respeito dos negócios públicos; isentou de imposto o escritor, o jornalista e o professor; e atribuiu a todo o cidadão legitimidade para pleitear a declaração de nulidade ou anulação de atos lesivos do patrimônio da União, dos Estados e dos Municípios. 37 36. BRASIL, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, 16 de julho de 1934. Disponível em . Acesso em 05 de outubro de 2010. 37. GROFF, Paulo Vargas. Direitos Fundamentais nas Constituições brasileiras. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 45 n. 178, abr./jun. 2008. p. 113.

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Expressou-se com isso uma “tendência liberal” no tocante à declaração de direitos, em especial com a afirmação da liberdade de manifestação de pensamento, de associação, liberdade no exercício de qualquer profissão e na publicação de livros e periódicos, garantia do direito de resposta, manutenção do direito de reunião e não tolerância à propaganda de guerra ou de processos violentos.38 Garantiu-se também o direito de propriedade, vinculando-o, contudo, de forma inédita na história constitucional brasileira, ao cumprimento de sua função social (art. 113). Manteve-se a vedação a penas de morte, com ressalva aos crimes militares, em tempo de guerra (art. 113, 29), mas previu um extenso rol de princípios constitucionais processuais como o juízo natural, a ampla defesa, a inexistência de foro privilegiado, recursos e a inafastabilidade da atuação jurisdicional. Foi com esta Constituição que a coisa julgada foi elevada à categoria de garantia constitucional. Quanto aos direitos culturais, previa a liberdade de cátedra (art. 155) e o direito à educação que desenvolvesse “num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana” (art. 149), com o ensino primário obrigatório e gratuito, até para adultos (art. 150). No geral, constata-se que importantes direitos conferidos na atual Constituição brasileira, tiveram seu nascedouro na Constituição de 1934. 5.3 Direitos Sociais

A sociedade da época enfrentava uma necessidade premente de valorização dos direitos sociais do cidadão, e em especial do trabalhador. Tal necessidade pode ser facilmente vislumbrada pelos relatos de Mangabeira: Não há como fugir, por exemplo, a tomar uma atitude clara no problema das relações entre o capital e o trabalho. Temos que attender ás nossas condições especiaes. Mas o que não póde continuar é a exploração do proletariado, nas proporções em que o Brasil e a espoliação ignóbil se consumma. O operário agrícola desamparado, sem organização, desprotegido do Estado, não passa de um escravo, sem a assitencia que a este, outrora, prestava o senhor. Em toda parte, a voracidade capitalista só encontra obstáculos na organização operaria que refreia ou na intervenção do Estado que a limita. Aqui, as chamadas leis operarias, a começas pela de accidentes, não passam de uma burla. Se há greve, a pollicia colocase ao lado do patrão, e quase sempre espanca e prende os grevistas. O essencial para o operário é um salário vital, um salário mínimo, nos termos que o definia o juiz Higgins da Côrte Suprema da Australia. Em compensação, toda a assitencia tem sido dada aos poderosos. [...] 38. REIS, Antonio Marques dos. Constituição Federal Brasileira de 1934. Rio de Janeiro. Coelho Branco, 1934. p. 11-12.

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O proletariado, porém, seja o operario ou o empregado commercial, continúa desamparado. Não ha muito fechou a Casa Colombo, lançando ao desemprego, sem arrimo, todos os seus empregados. Quem se lembrou de constituir um fundo de reserva especial, para garantir nos dias máos, com os lucros dos bons dias, o operário ou o empregado commercial? Nos dias de fartura os patrões guardam para si ou dissipam em opulencia os lucros faceis. E quando a crise bates ás portas, fecham a casa ou a fabrica, e os pobres sem recurso, que se agüentem. O Estado deve providenciar a tal respeito. E’ que mesmo sob o regime capitalista, o Estado deve assegurar a todos um mínimo de subsistencia [...].39

Assim, diante deste anseio oriundo do início da industrialização que tomava conta do país, a Constituição de 1934 inovou, e foi a primeira a prever direitos sociais aos cidadãos. Foi nesse período que ocorreu a elaboração de um grande número de legislações e ações do governo na área social. E mais, houve a criação dos Ministérios do Trabalho, da Indústria e do Comércio e o Ministério da Educação e da Saúde Pública. Especificamente no tocante à proteção social dos trabalhadores, previa a Constituição: [...] proibição de diferença de salário para o mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; salário mínimo capaz de satisfazer ás necessidades normas do trabalhador; limitação do trabalho a oito horas diárias, só prorrogáveis nos casos previstos em lei; proibição de trabalho a menores de 14 anos, de trabalho noturno a menores de 16 anos e em indústrias insalubres a menores de 18 anos e a mulheres; repouso semanal, de preferência aos domingos; férias anuais remuneradas; indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa; assistência médica sanitária ao trabalhador; assistência médica à gestante, assegurada a ela descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego; instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalhou de morte; regulamentação do exercício de todas as profissões; reconhecimento das convenções coletivas de trabalho; e obrigatoriedade de ministrarem as empresas, localizadas fora dos centros escolares, ensino primário gratuito, desde que nelas trabalhasse mais de 50 pessoas, havendo, pelo menos, 10 analfabetos. Para dirimir os conflitos resultantes das relações trabalhistas, regidas pela legislação social, a Constituição criou a Justiça do Trabalho (art. 122), vinculada ao poder Executivo.40

Buscou assim afastar qualquer preconceito na força de trabalho, em especial no tocante ao salário. E ainda, ordenou regulamentação especial para o trabalho agrícola, visando a permanência do homem no campo, e a esses estabeleceu condições especiais, tais como o ensino gratuito no campo.41 39. MANGABEIRA, op. cit.,p. 272. 40. GROFF, op. cit.,p. 114. 41. MANGABEIRA, op. cit., p. 189.

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O objetivo do constituinte foi prever os mesmos direitos aos trabalhadores rurais e urbanos, uma vez que não entendia correto privá-los dos benefícios concedidos a todos. Tal ato, juntamente com a criação da Justiça do Trabalho, com representação igualitária de empregadores e empregados (art. 122) e do extenso rol de direitos sociais, denotam a busca pela democracia social, característica mais proeminente de Constituição de 1934. 5.4 Intervenção do Estado no domínio econômico

Também como decorrência da industrialização que se iniciara no país na década de 30, havia previsão da ordem econômica na Constituição de 1934 – primeira constituição brasileira a dispor sobre direitos de natureza econômica. Ao tratar do assunto, garantia a liberdade econômica, dentro dos limites da justiça e das necessidades da vida nacional, possibilitando, assim, existência digna a todas as pessoas. Mencionava no artigo 115, que os poderes públicos deveriam verificar, periodicamente, o padrão de vida da população nas várias regiões do país. Em um título denominado “Da ordem econômica e Social” apresentou as seguintes inovações: [...] determinando a nacionalização progressiva dos bancos de depósitos, das empresas de seguro e das minas, jazidas minerais e quedas d’ água julgadas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar do País; assegura a pluralidade sindical e a completa autonomia dos sindicatos, institui o salário mínimo, “capaz de satisfazer, conforme as condições de cada região, as necessidades normais do trabalhador”, estabeleceu o limite máximo de oito horas diárias de trabalho, proíbe o trabalho de menor de 14 anos, determinou a regulamentação de todas as profissões, institui a Justiça do Trabalho e subordina o reconhecimento dos estabelecimentos particulares de ensino á garantia, aos seus professores, de estabilidade e remuneração condigna. Cria o Conselho Nacional de Educação.42

Assim, previa a Constituição de 1934 a intervenção estatal na economia, visando guiá-la de modo a atender o bem estar social e o desenvolvimento da nação. 5.5 PODER JUDICIÁRIO

No texto aprovado da Constituição de 1934 não prevaleceu a tese unitária de federalização da Justiça, como previsto no projeto da Comissão do Itamarati. Estabelecia as nomeações dos juízes federais o qual seriam feitas 42. AMARAL, op. cit.,p. 90.

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pelo Presidente da República (art. 80, parágrafo único). As alterações mais significantes quanto ao Poder Judiciário, todavia, se deram no tocante à Justiça Militar e a Eleitoral. A Constituição, em seção própria (arts. 84 a 87), discorreu sobre a Justiça Militar e previu sua incorporação ao Poder Judiciário. O Judiciário incorporou também a Justiça Eleitoral, já criada em 1932 quando da edição do Código Eleitoral (Decreto n. 21.076/1932), delegando-lhe, entre outras funções, a supervisão geral das eleições. Assim como a criação dessa Justiça, os direitos políticos a serem disciplinados por ela também foram alterados, contudo, ignorando-se a existência dos partidos políticos. O sufrágio passou a ser secreto e obrigatório (artigo 108 e 109), garantia inicialmente também já prevista no Código Eleitoral, além do que já era universal e direto. Contudo, apesar desta previsão, a própria Assembléia Nacional Constituinte foi quem elegeu de forma indireta, tanto o Presidente da República, quanto os membros do Senado e os governadores. João Mangabeira foi um dos idealizadores da idéia das eleições indireta, uma vez que em comentários ao anteprojeto, assumiu ser o Brasil, um país não adequado, naquela época, para a escolha de seu Chefe Político.43 Previu também, pela primeira vez na história constitucional brasileira, o sufrágio feminino, o qual já havia sido assegurado pelo Código Eleitoral brasileiro de 1932, mas passou a assegurar-lhe igualdade em relação ao direito masculino. 5.6 Poder Executivo

Adotou, em seu artigo 51, o exercício do Poder Executivo pelo Presidente da República, eleito pelo sufrágio universal direto por quatro anos e não reelegível imediatamente. 44 O chefe do Executivo era auxiliado somente pelos Ministros de Estado (art. 59) – previstos pela primeira vez nas Constituições brasileiras, inexistindo o cargo de Vice-Presidente da República. Assim na vacância ou ausência do Presidente da República, via de regra, ninguém assumiria o cargo, mas haveria nova eleição. A exceção ocorria, contudo, quando a vacância se desse no ultimo quadriênio do mandado, hipótese na qual assumiria, sucessivamente, o Presidente da Câmara dos Deputados, o Presidente do Senado ou o Ministro do Supremo Tribunal Federal. 43. MANGABEIRA, op. cit., p. 128. 44. FERREIRA, op. cit., p. 22.

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Tal modelo, muito embora visto como democrático, assemelha-se à Constituição de Weimar de 1919, fortalecendo o Presidente e considerando-o como um líder carismático. Assim, a Constituição de 1934 regulamentou o mecanismo presidencialista, mas, em contrapartida, limitou a atuação do poder pessoal do Chefe de Governo, dando-lhe poderes para, por exemplo, decretar estado de sítio e intervenção federal, mas exigindo autorização posterior do Poder Legislativo. Com o mesmo intuito, adotou também: a) garantias protetoras da autonomia das unidades federadas desde a eleição de seus dirigentes, sob a tutela da Justiça Eleitoral, à disciplina do processo de intervenção; b) aumento da responsabilidade dos Municípios de Estado, não só em função dos atos praticados, inclusive, por ordem do Presidente, como dos atos ordenados; c) resguardando o direito de locomoção das pessoas, nas condições da decretação e na execução do estado de sítio, e impondo a impossibilidade de extensão das medidas restritivas deste direito aos parlamentares e a titulares de outras funções relevantes; d) o contorno imposto à censura; e) a previsão de apurar-se a responsabilidade, civil ou penal, por abusos cometidos, e a determinação de que, expirado o prazo da providencia excepcional, cessando desde logo todos os efeitos. Em caso de crimes de responsabilidade, o Presidente seria julgado por um Tribunal Especial, como previu o artigo 58, desta Constituição. O texto dispunha ainda, em capítulo próprio, que o Poder Executivo contaria com “Órgãos de Cooperação nas Atividades Governamentais”, dentre eles incluindose o Ministério Público (arts. 95 a 98), o Tribunal de Contas (arts. 99 a 102) e Conselhos Técnicos (art. 103), todos órgãos não independentes do próprio Poder Executivo. Outra criação de grande relevância foram os inúmeros benefícios concedidos aos funcionários públicos. “Aceessiveis os cargos a todos os brasileiros, sem distinção de sexo ou estado civil, os funcionários gosam de regalias e favores a que correspondem naturalmente deveres, mas têm agora a sua situação perfeitamente estabilisada”. 45 Foram grandes inovações. 5.7 Poder Legislativo

Quanto a este Poder, houve grande modificação: passou a ser formado pela Câmara dos Deputados, auxiliada pelo Senado Federal (art. 22). A idéia inicial do anteprojeto de supressão do Senado e a criação, 45. REIS, Antonio Marques dos. Constituição Federal Brasileira de 1934. Rio de Janeiro. Coelho Branco, 1934. p. 14

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em substituição, de um Conselho Supremo, com a incumbência de órgão técnico consultivo e deliberativo, com funções políticas e administrativas, foi abandonada.46 Posteriormente ao Senado, cabia a colaboração com a Câmara em relação ao tratamento de algumas matérias (art. 91), dentre outras atribuições privativas relacionadas a matérias federativas (arts. 88, 90 e 92). Passou também a ser competente para suspender a lei declarada inconstitucional pelo STF, dando efeito erga omnes à decisão proferida diante do controle difuso. O Senado Federal era composto de dois representantes eleitos de cada Estado e um do Distrito Federal (art. 89). A Câmara dos Deputados era órgão composto por deputados eleitos segundo o sistema proporcional, e deputados classistas eleitos por suas respectivas associações, divididas em quatro categorias de trabalhadores: “lavoura e pecuária; indústria; comércio e transportes; profissões liberais e funcionários públicos” (art. 23). Foi esta a primeira e única Constituição Brasileira a prever uma representação de organizações profissionais no Poder Legislativo, muito embora participação semelhante já tivesse ocorrido na Assembléia Constituinte que lhe deu origem. Possuía o Legislativo, como forma de limitação ao poder do Presidente da República, a última palavra para os casos de decretação do estado de sítio e intervenção federal nos Estados (art. 40, “d”). 5.8 municípios

O próprio anteprojeto da Comissão do Itamarati já oferecia aos Estados uma proposta federal para os assuntos relativos aos interesses intermunicipais. 47 Foi com a Constituição de 16 de julho de 1934, contudo, que iniciou realmente o processo emancipador do município da tutela organizatória do EstadoMembro. O constituinte de 1933-1934 firmou a convicção de que não bastaria ao Município a autonomia política, vinculada a escolha eletiva dos representantes locais – Prefeitos e Vereadores -, mas se impunha acrescentar-lhe a autonomia financeira, as receitas próprias, de modo a alargar a substância da autonomia. 48

Mesmo havendo tal previsão, a Constituição de 1934 não contemplou ao Município uma discriminação de rendas, limitando somente a definir as competências tributárias da União e dos Estados, em seus artigos 6º e 8º, 46. GROFF, op. cit., p. 115. 47. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995. p. 637. 48. Ibidem, p. 624.

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respectivamente. Pode-se destacar que a figura do município ingressava, sob a forma “obliqua do reconhecimento de que a ele pertencia metade do imposto sobre indústrias e profissões, incluindo na competência tributária privativa dos Estados, tributo lançado pelo Estado, mas arrecadado por este e pelo Município, em partes iguais”. 49 O inovado substancial da Constituição Federal de 1934 ocorreu na explicitação da autonomia municipal pela revelação de seu tríplice conteúdo – autonomia política, autonomia financeiro-tributária e autonomia administrativa – e na fixação das categorias da tributação municipal, em desdobramento específico da autonomia financeira. Por medidas inovadoras pode-se mencionar a extensão a colocação dos Municípios como destinatários de vedações e de proibições, equiparando-o no mesmo nível com que os demais entes públicos que integram a União Federal, quais sejam, União, Estados e Distrito Federal. E mais, a Constituição de 1934 manteve a autonomia municipal através dos princípios constitucionais da União, protegendo-o ainda mais. Resguardou como instrumento repressivo da intervenção federal no Estado e através da imposição ao Estado-Membro da observância, em sua organização constitucional e elaboração legislativa, do principio da autonomia municipal. Também, promoveu a Constituição de 1934 a restrição ao princípio da eletividade do Prefeito e as competências facultativas de nomeação dos Prefeitos das Capitais e dos Municípios das estâncias hidrominerais. Assim, havia autorização expressa na “nomeação dos Prefeitos dos Municípios declarados bases ou portos militares de excepcional importância para a defesa externa do País, nas condições estabelecidas pela Constituição Federal” 50. 5.9 Controle de Constitucionalidade

No tocante ao controle de constitucionalidade, a Carta ora analisada manteve o controle difuso-incidental baseado no modelo norte americano e, já adotado pela Constituição de 1891, mas introduziu também algumas inovações. O controle de constitucionalidade poderia ser realizado pelo Supremo Tribunal Federal, a partir de 1934, através do recurso extraordinário interposto de: decisões do Tribunal local que negarem aplicação à lei federal cuja vigência ou validade houvesse sido impugnada em face da Constituição; e decisões do 49. Idem. 50. HORTA, loc. cit., p. 628.

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Tribunal local que julgarem válido a lei ou ato dos Governos locais, ou lei federal cuja validade tenha sido contestada em face da Constituição (art. 76, III, “b”e “c”). A Constituição passou a exigir, porém, em seu artigo 179, a reserva de plenário para a declaração de inconstitucionalidade pelos Tribunais, ou seja, esta só poderia ser declarada “por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes” – regra mantida até os dias atuais. Quanto a este quórum, na Constituinte foi proposto o critério de dois terços, todavia, em razão do parecer de Mário Masagão que demonstrou a impossibilidade prática daí advinda, este foi rejeitado. 51 A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil instituiu ainda, também em caráter inovador, a concessão de efeito erga omnes às decisões advindas do controle difuso de constitucionalidade através de atuação do Senado – regra também presente na Constituição vigente. Segundo o art. 91, IV, da estudada Constituição, o Senado Federal possuía competência exclusiva para “suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário”. Assim, toda vez que o Supremo Tribunal Federal declarasse a inconstitucionalidade de uma lei ou ato governamental, o que só se dava em controle difuso, tal decisão deveria ser comunicada pelo Procurador Geral de República ao Senado para que este exercesse ou não tal faculdade. Criou-se, também, com o artigo 12, V, a possibilidade de intervenção excepcional da União nos Estados-membros para proteger certos bens jurídicos constitucionalmente assegurados, através da chamada ação direta de inconstitucionalidade interventiva. Esta, “não é um controle em abstrato puro, mas um meio termo entre o controle em tese e o concreto, pois o controle é um pressuposto da intervenção federal”. 52 5.10 Mandado de Segurança e Ação Popular

Foi na Constituição de 1934 que o Mandado de Segurança teve seu nascedouro, como direito fundamental do cidadão, funcionando “para proteção de direito ‘certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade’”53. Assim, 51. POLETTI, Ronaldo. Controle da constitucionalidade das leis. 2. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 1998. p. 196. 52. GROFF, op. cit., p. 113. 53. Idem.

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uma vez julgados inconstitucionais, qualquer lei ou ato do Poder Executivo, o litigante vitorioso seria amparado pelo mandado de segurança.54 Esta proposta foi formulada originariamente por João Mangabeira na Comissão Especial que elaborou o Anteprojeto de Constituição. Cumpre mencionar ainda, que o Mandado de Segurança, tido como remédio jurídico para proteção de direito liquido e certo não amparado por habeas corpus, a partir de 1926 ficou restrito à proteção da liberdade de locomoção. Contudo, mesmo sendo previsto, seu cabimento exclusivo para direito certo, incontestável e inconstitucional (art. 113, XXXIII), serviu, na época, como obstáculo ao real cabimento do remédio constitucional. Também na Constituição de 1934 foi criada a ação popular, primeiro remédio constitucional para defesa da cidadania, e, ainda, para anular quaisquer atos lesivos ao patrimônio da União, Estado e dos Municípios. 5.11 Reforma da Constituição

Previa o analisado Codex sua reforma por dois meios: emenda ou revisão. Com isso, nos moldes da Constituição do Império, acabava por restringir o que era matéria de intrínseca natureza constitucional e deveria ter maior rigidez em sua reforma, e o que era matéria imprópria do texto constitucional. 55 Desta forma, por disposição do artigo 178, seria possível a revisão constitucional quando atinente a matérias relativas à estrutura política do Estado, a organização ou a competência dos poderes da soberania, e a emenda nos demais casos. Nenhuma das duas medidas poderia abolir a forma republicana federativa e nem poderia ser utilizadas na vigência do estado de sítio. A proposta de revisão, por abranger matéria eminentemente constitucional, tinha um processo mais rígido. Para ser aprovada, após a obtenção maioria dos votos junto às Casas, um anteprojeto deveria ser elaborado e “submetido, na Legislatura seguinte, a três discussões e votações em duas sessões legislativas, numa e noutra casa” (art. 178, §2º). Já a proposta de emenda, cujo procedimento era mais simples, deveria ser aprovada por dois terços dos votos em ambas as Casas Legislativas, ou, por maioria absoluta na Assembléia e no Senado, em duas discussões em cada Casa, em dois anos consecutivos. 54. POLETTI, Da constituição... op. cit., p. 120. 55. POLETTI, Constituições brasileiras... op. cit., p. 54.

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5.12 Outros direitos consagrados pela Constituição de 1934 de grande importância

Além dos tópicos elencados, outros direitos, também foram consagrados pela Constituição de 1934, que merecem ser considerados, tais como: a. estabeleceu a obrigatoriedade de comparecimento dos Ministros de Estado à Câmara dos Deputados, e, assegurou o mandato aos Deputados, quando nomeados Ministros de Estado ou designados para o desempenho de missão diplomática; b. assegurou o domínio, por sentença declaratória transcrita, a quem ocupasse, por dez anos contínuos, sem oposição nem reconhecimento de direito alheio, trecho de terra até dez hectares, tornando-o produtivo e tendo nele moradia; c. instituiu as primeiras normas conducentes ao regime de planificação, ao conferir á União a competência de estabelecer o plano nacional de viação férrea e o de estradas de rodagem, assim como o poder de traçar as diretrizes da educação nacional e ao aludir, genericamente, a planos de solução dos problemas nacionais, organizados pelo Senado Federal, com a colaboração dos Conselhos Técnicos; d. vedou a bitributação, prevalecendo o imposto decretado pela União, quando a competência fosse concorrente; e. primeira Constituição brasileira a implantar a Comissão Parlamentar de Inquérito, o qual a partir daí todas as demais Constituições passaram a disciplinar; Não se pode deixar de destacar que, a despeito do anteprojeto e inspirado em Weimar, como já mencionado, a Constituição Brasileira também optou por inserir em seu bojo matérias de cunho não constitucional, como as administrativas e civis, objetivando garantir certas situações assim propiciar o desenvolvimento nacional56. Considerações Finais

Adentrando no campo das considerações finais, pode-se constatar que a Constituição Federal de 1934 além de receber influências de outras Constituições na sua criação, principalmente da Constituição de Weimar, 56. POLETTI, Constituições brasileiras... op. cit., p. 47.

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goza de representatividade na história constitucional brasileira, tanto que em inúmeros artigos influenciou a Constituição Federal brasileira em vigor. E, mesmo passados quase oito décadas de sua publicação, dispositivos e ideias surgidos no anteprojeto da Constituição Federal de 1934, ainda hoje estão presentes no cenário constitucional, assim como o mandado de segurança, o federalismo, os diretos e garantias ao trabalhador, a família, a função social da propriedade, entre outros não de menor importância que os aqui mencionados. O grande destaque ficou, contudo, para a prevalência de direitos trabalhistas (salário mínimo, de jornada de trabalho, do direito ao repouso semanal obrigatório e férias anuais remuneradas, de indenização por dispensa sem justa causa) e previdenciários, como direitos sociais – surgidos em razão da industrialização mundial latente à época – que não foram seque ofuscados pela brevidade da vigência da Carta estudada. No tocante ao controle de constitucionalidade, criou a cláusula de reserva de plenário e a competência do Senado Federal para atribuir efeito erga omnes às decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade. A Constituição de 1934 teve também importante destaque democrático já que, mesmo com previsão anterior no Código Eleitoral brasileiro, inovou prevendo o sufrágio secreto e obrigatório além de incluir, pela primeira vez nas constituições pátrias, o voto feminino, assegurando-lhe igualdade em relação ao direito masculino. É inegável, assim, a Constituição Federal de 1934 pode ser considerada como um grande fator histórico da herança constitucional, destacando-se principalmente os direitos e garantias ao trabalhador como sua principal conquista que até a presente Constituição perdura. REFERÊNCIAS

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Elaborando a constituição nacional: atas da Subcomissão elaborada do anteprojeto 1932/1933. Ed. Fac. Similar. Brasília: Senado Federal, Conselho editorial, 2004. REIS, Antonio Marques dos. Constituição Federal Brasileira de 1934. Rio de Janeiro. Coelho Branco, 1934. TOURINHO, Arx. Em torno das idéias constitucionais de João Mangabeira. In: Revista de Informação Legislativa. Brasília, a. 17 n. 66, abr./jun. 1980.

CAPÍTULO IV

a CoNStItuIÇÃo Do EStaDo NoVo (1937)

Leandro Douglas Lopes Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogado.

Ronaldo Adriano dos Santos Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogado.

INTRODUÇÃO

A Constituição Federal de 1937 é a quarta Constituição do Brasil e a terceira da República, sendo outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas aos 10 de novembro de 1937, quando a Câmara dos Deputados e Senado foram dissolvidos e ocorrera um golpe de Estado. Com o advento da Carta Constitucional, instaurava-se a primeira ditadura do país, o Estado Novo, nome copiado da ditadura fascista de António Salazar, em Portugal. O novo texto constitucional guardava semelhança com a Constituição fascista da Polônia de 1935, a qual fora imposta pelo marechal Pilsudsky, e por isso foi denominada de “A Constituição Polaca”. Conforme se demonstra, o Estado Novo não continha elementos típicos do totalitarismo fascista europeu, mas tratava-se de um regime paternalista autoritário, sem precedentes históricos no Brasil. Destarte, faz-se um panorama do contexto histórico, da concepção ao término do Estado Novo, a fim de que a realidade política, social e econômica permita adentrar as questões constitucionais peculiares e seja a mola propulsora de uma compreensão sistematizada.

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A análise do preâmbulo remete aos fundamentos e ideais do texto constitucional, desvelando o caráter imperativo e ditatorial dos dispositivos que lhe seguem. Por conseguinte, faz-se uma análise sobre a vigência e eficácia da Carta do Estado Novo. Demonstram-se os atributos do Poder Executivo, Legislativo e Judiciário, elucidando a supremacia que gozava o Presidente da República em face dos outros Poderes. Verifica-se que os direitos e garantias fundamentais suportaram retrocessos significativos, tendo em vista que na vigência do estado de emergência encontravam-se suspensas as garantias constitucionais. Entretanto, ao mesmo tempo, ocorriam avanços na seara dos direitos sociais, notadamente na educação e no trabalho. Ao final, se apresenta uma conclusão sintética das principais características da Constituição Federal de 1937, evidenciando seu caráter autoritário e centralista, o qual providenciou a estruturação legal da primeira ditadura vivificada no Brasil, no período de 1937 a 1945. 1 Contexto histórico

Remonta-se ao primeiro regime ditatorial do Brasil a outorga da Constituição Federal de 1937, pelo Presidente Getulio Vargas, quando os cidadãos brasileiros foram surpreendidos por um golpe de Estado, sob a alegação de que a paz política e social estava conturbada, ante a desordem e a possibilidade de uma guerra civil, provenientes da infiltração comunista.1 O término da Primeira Guerra Mundial fez surgir na Europa os ideais do liberalismo e da democracia, ou seja, tendências políticas contrárias aos ideais burgueses do século XVIII. Enquanto a esquerda revolucionária pregava a superação do sistema capitalista e almejava a tomada do poder pela classe operária sob a inspiração marxista, a direita se baseava em regimes ultranacionalistas, belicosos e ditatoriais, os quais buscavam uma saída para a crise e a manutenção daquele sistema. Nesse contexto, vivenciavam o fascismo e o nazismo. Tais ideologias políticas refletiam-se no Brasil e dois movimentos políticos ilustravam o cenário: a Ação Integralista Brasileira, com tendência fascista, e a Aliança Nacional Libertadora, consubstanciada no ideal esquerdista.2 1. PORTO, Walter Costa. Constituições Brasileiras, 1937.  2 ed. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia. Centro de Estudos Estratégicos, 2001. 2 AMARAL, Roberto. O constitucionalismo da Era Vargas. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2004.

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Ao contrário dos partidos políticos até então existentes, a Ação Integralista Brasileira e a Aliança Nacional Libertadora aclaravam pontos de vista delineados, marcados pelos antagonismos de classes. O integralismo, contagiado pelo fascismo italiano, valia-se da hegemonia partidária e aderia ao governo ditatorial ultranacionalista, submisso a um único chefe. Ademais, era apoiado pelos segmentos mais conservadores da sociedade, como a oligarquia, alta hierarquia militar e pelo clero. Em contrapartida, organizavam-se as frentes antifascistas. O Partido Comunista do Brasil, fundado no início dos anos 20, adotou essa linha e resultou na Aliança Nacional Libertadora, presidida por Luís Carlos Prestes. O ideal comunista, que viria a ser denominado “intenta comunista”, era disseminado pelo país e tratava-se de uma conspiração contra o governo autoritário, oriundo dos movimentos tenentistas realizados no Brasil desde a década de 1920, e reivindicava a abolição da dívida externa, a reforma agrária e o estabelecimento de um governo com bases populares. Diante disso, o Presidente Getúlio Vargas, a fim de garantir-se no poder e cessar a revolução “nacional-popular” providenciou a repressão ao Partido Comunista e através de intervenção policial invadiu suas sedes e determinou a prisão de seus líderes, impelindo os ativistas mais radicais à clandestinidade. O combate aos levantes comunistas fez com que Getúlio Vargas decretasse estado de sítio, em novembro de 1935, o qual se prolongou até o ano seguinte. Contudo, aproximavam-se as eleições e o Congresso Nacional impedira o Presidente de renovar o estado de sítio. A eleição presidencial estava marcada para 1938 e havia dois candidatos: José Américo de Almeida, apoiado pela oligarquia paulista, e Armando de Sales Oliveira, defendido pelos getulistas, entretanto, a referida eleição presidencial não aconteceu.3 Surgiu um documento denominado “Plano Cohen”, o qual fora divulgado pelo ministro da Guerra, Eurico Gaspar Dutra, e pelo presidente Getúlio Vargas, no programa radiofônico oficial “Hora do Brasil”, anunciando os planos de uma revolução supostamente comunista no país, visando o assassinato de autoridades, como se verifica no trecho colacionado4: XVIII - OS REFÉNS No plano de violências deverão figurar, como já foi dito atrás, os homens a serem eliminados e o pessoal encarregado dessa missão. Todavia, tão importantes quanto estes serão os reféns, que, em caso de fracasso parcial, servirão para colocar em xeque as autoridades. Serão reféns: os Ministros de Estado, presidente do Supremo Tribunal, e os presidentes da Câmara e do Senado, bem como, nas demais cidades, duas ou três 3. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. São Paulo: Editora Unesp, 2008. 4. SILVA, Hélio. A ameaça vermelha: o plano Cohen. Rio Grande do Sul: LP&M, 1980.

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autoridades ou pessoas gradas. A técnica para a colheita de reféns será a seguinte: os raptos deverão ser executados em pleno dia, nas próprias residências, que serão invadidas por grupos de 3 a 5 homens dispostos e bem-armados e munidos de narcóticos violentos (clorofórmio, éter em pastas de algodão empapadas) e serão transportadas para pontos secretos e inatingíveis, com absoluta segurança. Em caso de fracasso, proceder ao fuzilamento dos reféns

Há controvérsias acerca da autoria do “Plano Cohen” e afirma-se que na prática foi um instrumento para Getúlio Vargas amedrontar os cidadãos e criar condições propícias ao golpe, pois com o ensejo fez-se o Congresso aprovar o estado de guerra, em 30 de setembro de 1937, e os direitos constitucionais foram suspensos. Diante disso, em 10 de novembro de 1937, decretou-se o fechamento do Congresso e ocorreu a outorga da nova Constituição, de modo que se iniciava o Estado Novo. A quarta Carta Constitucional foi imposta à nação e passou a vigorar de imediato, sendo o Decreto-Lei referendado pelos ministros Francisco Campos, Souza Costa, Eurico Gaspar Dutra, Henrique Guilhen, Marques dos Reis, Pimentel Brandão, Gustavo Capanema e Agamenon Magalhães. Embora guarde inegável analogia com os modelos constitucionais vigentes nos Estados fascistas europeus, a Constituição do Estado Novo não advém da supremacia de um partido político organizado e mesmo considerando que tenha se apropriado do pensamento integralista, verifica-se a ausência de uma coerência ideológica.5 A instauração do Estado Novo ocorreu nos moldes de um golpe e consumou-se pelas instabilidades econômicas, sociais e políticas que acometiam o país, após o insucesso do Constituição de 1934. A Carta Magna de 1937 foi uma encomenda do Presidente Getúlio Vargas, a fim de legitimar a ditadura no Brasil, e foi redigida por Francisco Campos, jurista e político que recebeu o apelidado de Chico Ciência, pois foi Ministro da Educação e Saúde e, posteriormente, Ministro da Justiça. Ademais, quando exonerado do cargo, em 1942, foi indicado por Getúlio Vargas para compor a Comissão Jurídica Interamericana, da qual fez parte até 1955. Além de providenciar as reformas legislativas, foi um porta-voz da política racista aos imigrantes, inclusive considerava a colonização japonesa uma “infecção”.6 Pádua Fernandes, em Setenta anos após 1937: Francisco Campos e o pensamento jurídico autoritário, fls 352, citando as palavras de Rubem Braga: 5. ANDRADE, Paes de; BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 4ª ed. Brasília: OAB, 2002. 6. FERNANDES, Pádua. Setenta anos após 1937: Francisco Campos, o Estado Novo e o pensamento jurídico autoritário. v.6. São Paulo: Prisma Jurídico, 2007.

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“Toda vez que o Sr. Francisco Campos acende sua luz há um curto-circuito nas instalações democráticas brasileiras”. Foi criado o Departamento Administrativo do Serviço Público (DASP), em 1938, a fim de propiciar instrumentos para racionalizar as questões burocráticas do Estado. A intenção era desvencilhar o caráter político da administração pública, portanto, o servidor público passou a ser admitido por meio de concursos e provas de habilitação. O Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) foi instituído para efetuar o controle e repressão das informações veiculadas pelos meios de comunicação, censurando-os. Destarte, cuidou de enaltecer, através de propagandas, a figura do presidente Getúlio Vargas, propiciando uma opinião púbica favorável. Ademais, criou-se a “Hora do Brasil”, programa radiofônico obrigatório. A Polícia Secreta, chefiada por Filinto Müller, como nos regimes totalitários europeus, se especializou em práticas violentas e reprimia com torturas e assassinatos os indivíduos considerados subversivos à ordem pública. Com o intuito de neutralizar e influência política da classe operária, vinculou-se os trabalhadores aos sindicatos, os quais estavam subjugados ao governo. Proibiram-se a greve e o lockout, considerados recursos antissociais e nocivos aos interesses nacionais. 7 No tocante à economia, iniciava-se uma fase favorável de industrialização no país, pois o governo investia de forma significativa nas empresas públicas e disponibilizava crédito aos setores industriais.8 No cenário internacional, eclodia a Segunda Guerra Mundial, entre os Estados liberais e os Estados do nazi-fascismo europeu. Num primeiro momento, o Brasil postou-se neutro, mas posteriormente acabou cedendo às pressões norte-americanas e entrou no conflito, adotando postura liberal. Os efeitos da Segunda Guerra somados à crise política interna resultavam em conjunturas favoráveis ao declínio do Estado Novo, pois uma onda liberal tomava conta do país. Sendo assim, Getúlio Vargas arquitetava mecanismos para manter-se no poder e optou por valer-se da democracia. A Lei Constitucional nº 9, de 18/02/1945, também denominada Ato Adicional n° 9, embora seja uma norma de fato, anunciou a convocação da eleição presidencial para o dia 02/12/1945, eis que se restabeleceriam todos os órgãos representativos previstos na Constituição do Estado Novo. Ato contínuo, 7. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. São Paulo: UNESP, 2008. 8. CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: UNESP/FAPESP, 2000.

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o Presidente concedeu anistia para todos os condenados políticos e permitiu a volta dos exilados ao país. Conforme o disposto no artigo 469, as eleições para Câmara dos Deputados seriam por sufrágio direto e todo cidadão, nato ou naturalizado, poderia votar livremente em seu candidato, observadas as regras eleitorais. Contudo, renascia a vida partidária e partidos políticos como a UDN (União Democrática Nacional), PSD (Partido Social Democrático), PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), PSP (Partido Social Progressista) e PCB (Partido Comunista do Brasil), ilustravam a cena. Nas eleições presidenciais, agendadas para dois de dezembro de 1945, iriam concorrer três candidatos: o general Eurico Eduardo Dutra, com apoio do PSD e PTB; Eduardo Gomes, pela UDN, e Yedo Fiúza, do PCB. Embora Getúlio Vargas, aparentemente, apoiasse o candidato Dutra, surgiu um movimento popular que pedia sua permanência no poder, denominado “queremismo”, expressão derivada dos gritos populares: “Queremos Getúlio!”. Aproveitando o ensejo, Getúlio Vargas decretou, em Junho de 1945, a Lei Antitruste, a qual dificultava atividades do capital estrangeiro no país.10 A decretação da referida lei conturbou as eleições presidenciais e aos 29 de outubro de 1945 tropas do Exército cercaram a sede do governo (Palácio do Catete) e obrigaram Vargas a renunciar. Era o fim do Estado Novo e a Presidência da República ficava, temporariamente, a cargo do presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, sendo que Getúlio Vargas foi afastado do poder sem receber nenhuma punição política. O ex-presidente prestou apoio ao general Dutra, o qual venceu as eleições presidenciais e elegeu-se senador pelos estados de São Paulo e Rio Grande do Sul.11 Por fim, com a eleição da Assembleia Constituinte, a Carta do Estado Novo foi substituída pela Constituição de 1946. 2 o preâmbulo

O Preâmbulo consiste na apresentação das intenções do diploma constitucional, portanto, confere-lhe origem e legitimidade, a partir da proclamação dos princípios do novo texto, demonstrando a ruptura com o ordenamento constitucional anterior e o surgimento de um novo Estado. Embora não seja parte integrante do texto constitucional, contém normas 9. Art. 46 - A Câmara dos Deputados compõe-se de representantes do povo, eleitos mediante sufrágio direto. 10. FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1999. 11. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. São Paulo: UNESP, 2008.

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constitucionais de valor jurídico autônomo e trata-se de um instrumento de interpretação e integração dos artigos que lhe seguem.12 O preâmbulo13 da Carta Magna de 1937 apresenta um conjunto de enunciados formulados pelo ditador, onde se proferem as justificativas, objetivos, valores e ideais do Estado Novo. Para Getúlio Vargas, a Constituição não se concebia com mero formalismo jurídico, mas um instrumento capaz de manter o imperativo da ordem e da segurança.14 Valendo-se do combate ao comunismo, alegando conturbação da paz política e social e que o país encontrava-se na iminência de uma guerra civil, outorgara a Constituição. Ao referir-se ao apoio das Forças Armadas, traduz o caráter repressivo que se instaurava. 3 Vigência e eficácia

A análise da vigência da norma remete-se a sua validade formal, ou seja, à técnica jurídica da norma, observando-se a elaboração, o órgão elaborador, a matéria que versa e o trâmite legiferante. Vigência ou validade formal, portanto, é a “executoriedade compulsória de uma regra de direito, por haver preenchido os requisitos essenciais à sua feitura ou elaboração”.15 A eficácia ou aplicabilidade da norma relaciona-se com a aplicação ou execução que produz no plano fático, ou seja, como condicionadora da conduta humana no seio social. Conforme o disposto no artigo 18716, a Constituição seria submetida a um plebiscito nacional, o qual nunca ocorreu, 12. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005. 13. Preâmbulo da Constituição Federal de 1937: ATENDENDO às legitimas aspirações do povo brasileiro à paz política e social, profundamente perturbada por conhecidos fatores de desordem, resultantes da crescente a gravação dos dissídios partidários, que, uma, notória propaganda demagógica procura desnaturar em luta de classes, e da extremação, de conflitos ideológicos, tendentes, pelo seu desenvolvimento natural, resolver-se em termos de violência, colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil; ATENDENDO ao estado de apreensão criado no País pela infiltração comunista, que se torna dia a dia mais extensa e mais profunda, exigindo remédios, de caráter radical e permanente; ATENDENDO a que, sob as instituições anteriores, não dispunha, o Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo; Sem o apoio das forças armadas e cedendo às inspirações da opinião nacional, umas e outras justificadamente apreensivas diante dos perigos que ameaçam a nossa unidade e da rapidez com que se vem processando a decomposição das nossas instituições civis e políticas; Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o Pais: 14. FERNANDES, Pádua. Setenta anos após 1937: Francisco Campos, o Estado Novo e o pensamento jurídico autoritário. v.6. São Paulo: Prisma Jurídico, 2007. 15. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23a ed., São Paulo: Saraiva, 1996. 16. Art. 187 - Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República.

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assim há quem lhe nega vigência, ao passo de não ter sido legitimada. Nesse sentido, Roberto Amaral17: A Carta de 1937, outorgada pelo ditador em 11 de novembro derrogando o direito liberal, é o instrumento mediante o qual Vargas anuncia e instala o Estado Novo. Como ordem constitucional, não existiu. Não foi. Não conheceu vigência. Não foi observada, nem por ela mesma, não se submetendo ao referendum pretensamente legitimador a cujo pronunciamento condicionara sua efetividade. Vale como sistematização doutrinária, e nesse ponto é de valor inestimável, pela técnica jurídica, e pela antecipação, numa primeira formulação coerente, do direito constitucional autoritário brasileiro. Nessa Carta, no seu texto e na sua justificativa, estão os fundamentos do poder constituinte da força, que se autolegitima pela auto-efetivação do direito que dita.

Com efeito, a Constituição fez valer suas disposições e estabeleceu um exercício do poder de fato, mas não de direito, criando um precedente inédito na história do Brasil. Irrefutável sua eficácia, ainda que desprovida de vigência formal. 4 Dos poderes na Constituição de 1937 4.1 Do Poder Executivo

A Constituição de 1937, em seu artigo 73, postou o Presidente da República como autoridade suprema do Estado, cedendo-lhe poderes extensos e extraordinários, praticamente ilimitados. O Chefe do Executivo coordenava a atividade dos órgãos representativos de grau superior, dirigia a política interna e externa, promovia e orientava a política legislativa, além de gerir a administração do país.18 Eram competências privativas do Presidente da República, nos moldes do artigo 74: a) sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos e regulamentos para a sua execução; b) expedir decretos-leis, nos termos dos arts. 1219 e 1320; c) manter relações com os Estados estrangeiros; d) celebrar convenções e tratados internacionais ad referendum do Poder Legislativo; e) 17. AMARAL, Roberto. O constitucionalismo da Era Vargas. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2004, p-91. 18. ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 19. Art. 12 - O Presidente da República pode ser autorizado pelo Parlamento a expedir decretos-leis, mediante as condições e nos limites fixados pelo ato de autorização. 20. Art. 13 - O Presidente da República, nos períodos de recesso do Parlamento ou de dissolução da Câmara dos Deputados, poderá, se o exigirem as necessidades do Estado, expedir decretos-leis sobre as matérias de competência legislativa da União, excetuadas as seguintes: a) modificações à Constituição; b) legislação eleitoral; c) orçamento; d) impostos; e) instituição de monopólios; f) moeda; g) empréstimos públicos; h) alienação e oneração de bens imóveis da União. Parágrafo único - Os decretos-leis para serem expedidos dependem de parecer do Conselho da Economia Nacional, nas matérias da sua competência consultiva.

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exercer a chefia suprema das forças armadas da União, administrando-as por intermédio dos órgãos do alto comando; f ) decretar a mobilização das forças armadas; g) declarar a guerra, mediante autorização do Poder Legislativo, e, independentemente de autorização, em caso de invasão ou agressão estrangeira; h) fazer a paz ad referendum do Poder Legislativo; i) permitir, após autorização do Poder Legislativo, a passagem de forças estrangeiras pelo território nacional; j) intervir nos Estados e neles executar a intervenção, nos termos constitucionais; k) decretar o estado de emergência e o estado de guerra nos termos do art. 16621; l) prover os cargos federais, salvo as exceções previstas na Constituição e nas leis; m) autorizar brasileiros a aceitar pensão, emprego ou comissão de governo estrangeiro; n) determinar que entrem provisoriamente em execução, antes de aprovados pelo Parlamento, os tratados ou convenções internacionais, se a isto o aconselharem os interesses do país. Ante a dissolução da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, o Presidente da República estava autorizado a expedir decretos-lei sobre todas as matérias de competência da União, sem qualquer restrição. O artigo 75 anunciava as amplas prerrogativas do Presidente da República, quais sejam: a) indicar um dos candidatos à Presidência da República; b) dissolver a Câmara dos Deputados no caso do parágrafo único do art. 16722; c) nomear os Ministros de Estado; d) designar os membros do Conselho Federal reservados à sua escolha; e) adiar, prorrogar e convocar o Parlamento; f ) exercer o direito de graça. Os atos oficiais do Chefe do Poder Executivo eram referendados pelos Ministros, conforme o disposto no artigo 7623, e a escolha dos Ministros era competência do Presidente da República, ou seja, os Ministros jamais deixariam de referendar um ato oficial, pois estavam subordinados ao ditador. O corporativismo e o Decreto-Lei, institutos marcantes da Carta Federal de 1937, guardam semelhanças com as disposições constantes na Constituição Polonesa de 1935, portanto foi denominada “A Polaca”. 24 21. Art. 166 -Em caso de ameaça externa ou iminência de perturbações internas ou existências de concerto, plano ou conspiração, tendente a perturbar a paz pública ou pôr em perigo a estrutura das instituições, a segurança do Estado ou dos cidadãos, poderá o Presidente da República declarar em todo o território do Pais, ou na porção do território particularmente ameaçado, o estado de emergência. 22. Art. 167 - Cessados os motivos que determinaram a declaração do estado de emergência ou do estado de guerra, comunicará o Presidente da República à Câmara dos Deputados as medidas tomadas durante o período de vigência de um ou de outro. Parágrafo único - A Câmara dos Deputados, se não aprovar as medidas, promoverá a responsabilidade do Presidente da República, ficando a este salvo o direito de apelar da deliberação da Câmara para o pronunciamento do País, mediante a dissolução da mesma e a realização de novas eleições. 23. Art. 76 - Os atos oficiais do Presidente da República serão referendados pelos seus Ministros, salvo os expedidos no uso de suas prerrogativas, os quais não exigem referenda. 24. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. São Paulo: UNESP, 2008.

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Utilizando-se de disposições democráticas, a fim de disfarçar o autoritarismo, a Constituição de 1937, em seu artigo 85, definiu os crimes de responsabilidade do Presidente da República25, no entanto, estes estavam apenas positivados e não logravam observância e aplicabilidade. 4.2 do Poder Legislativo

O Poder Legislativo não passou de mero figurante no palco do regime ditatorial, pois a tripartição dos poderes era imaginária e todos os atos estavam condicionados à influência do Chefe do Governo. A Câmara dos Deputados e o Senado, criados na Constituição de 1934, haviam sido dissolvidos e estabeleceu-se que o Poder Legislativo seria exercido pelo Parlamento Nacional, com a colaboração do Conselho de Economia e do Presidente da República.26 O Conselho Nacional era composto por representantes de vários ramos da produção nacional designados, dentre pessoas qualificadas pela sua competência especial, pelas associações profissionais ou sindicatos reconhecidos em lei, sendo garantida a igualdade de representação entre empregados e empregadores (art. 57). O Parlamento Nacional era composto por duas Câmaras, a Câmara dos Deputados e o Conselho Federal (art. 38, § 1º), sendo defeso que qualquer cidadão integrasse simultaneamente ambas as Câmaras (art. 38, § 2º). O seu funcionamento ocorria individual e separadamente, sendo que as deliberações ocorriam por maioria dos votos, em sessões públicas, presente a maioria absoluta de seus membros, quando não fosse estabelecido o contrário (art. 40). O Parlamento poderia autorizar o Presidente da República a expedir decretos-leis nos limites fixados pela autorização (art.12). Já no recesso do Parlamento, o Presidente da República poderia expedir decretos-leis, observado as exceções expressas no artigo 13 da Constituição. O artigo 74, alínea “d”, dispõe que o Poder Legislativo é competente para referendar os acordos e tratados internacionais celebrados pelo Presidente da República. No entanto, a alínea “n” anuncia que havendo interesse do país, os tratados e convenções internacionais poderiam ser executados provisoriamente pelo Presidente da República, sem a autorização do Parlamento. Neste mesmo artigo, na alínea “g”, verifica-se que compete ao Presidente da República declarar 25. Art. 85 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República definidos em lei, que atentarem contra: a) a existência da União; b) a Constituição; c) o livre exercício dos Poderes políticos; d) a probidade administrativa e a guarda e emprego dos dinheiros público; e) a execução das decisões judiciárias. 26. ANDRADE, Paes de; BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 4ª ed. Brasília: OAB, 2002.

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a guerra depois de autorizado pelo Poder Legislativo, mas poderia prescindir de autorização em caso de invasão ou agressão estrangeira. Pode-se observar que os atos do Poder Legislativo estavam adstritos ao Poder Executivo, porquanto de uma forma ou de outra se usurpava a função de legislar. Como fora mencionado no pórtico deste tópico, a Câmara dos Deputados e o Senado haviam sido dissolvidos e as eleições para o novo Parlamento seriam marcadas pelo Presidente da República, após a realização do plebiscito que nunca ocorreu. 4.3 Do Poder Judiciário

A Constituição de 1937 estabeleceu como órgãos do Poder Judiciário: o Supremo Tribunal Federal, os Juízes e Tribunais do Estado, Distrito Federal, Territórios e Militares (art. 90). Além destes, criou-se a Justiça do Trabalho (art. 139) e o Tribunal de Contas (art. 114), cujos membros eram nomeados pelo Presidente da República. Entre os poderes existia um desequilíbrio muito grande, pois da mesma forma que o Chefe do Governo apossou-se das competências do Poder Legislativo, também se apoderou das atribuições do Poder Judiciário, inclusive vedou-lhe de tratar das questões exclusivamente políticas (artigo 94). Surgem alguns questionamentos: Como delimitar o que seriam questões exclusivamente políticas? Será que os direitos e garantias individuais são questões políticas? E a imprensa? De imediato, analisa-se que o Poder do Judiciário se encontrava limitado, restrito em sua atuação. A maior limitação ao Poder Judiciário, contudo, ocorreu em face do controle de inconstitucionalidade da lei ou do ato do Presidente da República. Se o Presidente entendesse que a lei declarada inconstitucional fosse necessária ao bem estar do povo poderia submetê-la novamente ao exame do Parlamento, nos moldes do artigo 9627 e se tal propositura se confirmasse por dois terços de votos, em cada uma das Câmaras, ficaria sem efeito a decisão do Tribunal.28 Outra limitação ao Poder Judiciário consta no artigo 170, o qual dispõe de os atos praticados durante o estado de emergência e de guerra, em virtude 27. Art. 96 - Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República. Parágrafo único - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal. 28. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011.

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deles, não poderiam ser conhecidos pelos Juízes e Tribunais. Considerando que o país encontrava-se em estado de emergência, nos moldes do artigo 186, todos os atos enumerados no artigo 16829 estavam excluídos da apreciação dos Juízes e Tribunais, demonstrando mais uma vez que o poder encontra-se ao bel prazer do Chefe do Executivo. A Justiça Eleitoral, uma das grandes conquistas da Revolução de 30, não foi recepcionada pela Constituição de 1937. O Código Eleitoral é de 1932, ou seja, anterior à Carta do Estado Novo, mas na vigência do estado de emergência e nos moldes da ditadura não havia eleições. O Estado Novo, além de excluir a Justiça Eleitoral dos órgãos do Poder Judiciário, aboliu os partidos políticos existentes, suspendeu as eleições livres e estabeleceu eleição indireta para presidente da República, cujo mandato passara a ser de seis anos. Getúlio Vargas considerava os partidos políticos como fatores de perturbação à ordem do país, inclusive constou no preâmbulo da Constituição que ela visava “(...) eliminar os fatores de desordem, resultantes da crescente agravação dos dissídios partidários”. No período de 1937 a 1945 foram nomeados interventores para o Poder Executivo Estadual e Municipal, sendo que as Casas Legislativas foram dissolvidas e criou-se o Parlamento Nacional30. Ademais, cancelaram-se as eleições em todo o país. A Justiça Eleitoral somente retomou em 07 de junho de 1945, após a edição do Decreto-Lei nº 7.586, de 28 de maio de 1945, o qual restabeleceu as eleições, regulamentando-as. 31 Verifica-se que Constituição de 1937 trata-se de um texto autoritário, pois o poder estava moldado na conveniência do Presidente da República, o qual sobrepôs a sua vontade em face do Poder Judiciário. 5 DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

Os direitos e garantias individuais estão expressos nos artigos 122 e 123 da Constituição de 1937, entretanto, verifica-se uma série de restrições aos direitos dos cidadãos. Tratando-se de uma ditadura, o poder não encontrava limites e os reflexos negativos aos direitos individuais foram insuscetíveis. 29. Art. 168 - Durante o estado de emergência as medidas que o Presidente da República é autorizado a tomar serão limitadas às seguintes: a) detenção em edifício ou local não destinados a réus de crime comum; desterro para outros pontos do território nacional ou residência forçada em determinadas localidades do mesmo território, com privação da liberdade de ir e vir; b) censura da correspondência e de todas as comunicações orais e escritas; c) suspensão da liberdade de reunião;  d) busca e apreensão em domicílio. 30. Art. 38 – (...)§ 1º - O Parlamento nacional compõe-se de duas Câmaras: a Câmara dos Deputados e o Conselho Federal. 31. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. São Paulo: UNESP, 2008.

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O caput do artigo 122 dispõe que “A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes” e no primeiro número também traz “todos são iguais perante a lei”. Todavia, no estado de emergência32, a liberdade poderia ser totalmente tolhida, pois o Presidente da República, além de inúmeras outras atribuições, estava autorizado a privar a liberdade de ir e vir, proibir o direito de manifestação, suspender imunidades parlamentares, violar domicílios, suspender a liberdade de reunião. Observa-se que a Constituição, em um primeiro momento, garante aos cidadãos a liberdade de manifestação, de opinião, de reunião. Após, no artigo 16833, restringe ou limita estes direitos. No mesmo sentido, o artigo 122, número “15”, anuncia a liberdade de expressão, entretanto, a letra “a”, dispõe que a lei poderia prescrever a censura prévia da imprensa, do teatro, do cinematógrafo e da radiodifusão, visando garantir a paz, a ordem e a segurança pública. Sendo assim, a liberdade de expressão estava condicionada à conveniência do Chefe do Governo. No artigo 122, “9”, consta a garantia da liberdade de associação, mas assim como a liberdade de expressão, ela era ilusória, eis que na vigência do estado de emergência o Poder Executivo estava autorizado a tomar as medidas que entendesse necessárias para suspender esta liberdade de associação. Já o número “13” do artigo 122 anuncia “não haverá penas corpóreas perpétuas”. Nesse sentido, a Constituição traz como garantia individual a proibição das penas corpóreas, entretanto traz a sua possibilidade de pena de morte em 06 hipóteses de crimes: a) tentar submeter o território da Nação ou parte dele à soberania de Estado estrangeiro; b) tentar, com auxilio ou subsidio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, contra a unidade da Nação, procurando desmembrar o território sujeito à sua soberania; c) tentar por meio de movimento armado o desmembramento do território nacional, desde que para reprimi-lo se torne necessário proceder a operações de guerra; d) tentar, com auxilio ou subsidio de Estado estrangeiro ou organização de caráter internacional, a mudança da ordem política ou social estabelecida na Constituição; e) tentar subverter por meios violentos a ordem política e social, com o fim de apoderar-se do Estado para o estabelecimento da ditadura de uma classe social; f) o homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade. 32. Art. 186 - É declarado em todo o País o estado de emergência. 33. Art. 168 - Durante o estado de emergência as medidas que o Presidente da República é autorizado a tomar serão limitadas às seguintes: a) detenção em edifício ou local não destinados a réus de crime comum; desterro para outros pontos do território nacional ou residência forçada em determinadas localidades do mesmo território, com privação da liberdade de ir e vir: b) censura da correspondência e de todas as comunicações orais e escritas; c) suspensão da liberdade de reunião; d) busca e apreensão em domicílio.

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Getulio Vargas, utilizando-se da competência legislativa da União34, em 16 de maio de 1938, através da Lei Constitucional Número 1, ampliou o rol do artigo 122, número “13”, sendo que a pena de morte passou a incidir também nos casos de insurreição armada contra os poderes do Estado, atentados contra a segurança do Estado por meio de devastação, saque, incêndio, depredação ou quaisquer atos destinados a suscitar o terror, como por exemplo, nos casos contra a vida, a incolumidade ou a liberdade do Presidente da República.35 Ante ao exposto, tornam-se perceptíveis as inúmeras limitações aos direitos e garantias individuais, mas, as autoridades, no intuito de justificar as suas atitudes, argumentavam que todas as garantias elencadas no artigo 122 tinham como limite o bem público, as necessidades de defesa, o bem estar, a paz, a ordem coletiva, a segurança da nação e do Estado. Os direitos e garantias individuais eram frágeis, porquanto o país encontrava-se em estado de emergência e qualquer atentado do Estado contra estes direitos não poderia ser apreciado pelo Poder Judiciário. No estado de guerra, a fragilidade e limitação dos direitos e garantias individuais eram ainda maiores, pois a Constituição deixaria de vigorar nas partes indicadas pelo Presidente da República, conforme o disposto no artigo 171, podendo ocorrer a suspensão de todos estes direitos. O único mecanismo de defesa contra a violação ilegal ao direito de ir e vir do cidadão, exceto nos casos de punição disciplinar, era o habeas corpus36, pois a Constituição de 1937 aboliu o mandado de segurança e a ação popular, expressos na Constituição de 1934.37 Contudo, o habeas corpus não passou de um remédio inutilizável na lei Constitucional, tendo em vista que os atos oriundos do estado de emergência e de guerra, nos moldes do artigo 170, não podiam ser conhecidos pelos Juízes e Tribunais. A Constituição de 1937 também não adotou os institutos da retroatividade ou irretroatividade da lei, portanto, o Estado poderia rever e modificar as relações jurídicas já consumadas, sem que houvesse qualquer violação de ambiência constitucional.38 34. Art. 180 - Enquanto não se reunir o Parlamento nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União. 35. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. UNESP: São Paulo, 2008. 36. Art. 122 – (...) 16) dar-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar na iminência de sofrer violência ou coação ilegal, na sua liberdade de ir e vir, salvo nos casos de punição disciplinar. 37. ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 38. ANDRADE, Paes de; BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 4ª ed. Brasília: OAB, 2002.

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6 Da Inovação aos Direitos Sociais – Da Educação e do Trabalho

Conforme se infere no tópico anterior, a Constituição de 1937 foi extremamente restritiva em relação aos direitos e garantias individuais. No entanto, propiciou avanços significativos na seara dos direitos sociais, especialmente na área da educação e trabalho. A educação integral foi elevada a um direito dos filhos e um dever dos pais, sendo o Estado um aliado para promover a educação, facilitando a execução do ensino e suprindo as deficiência e lacunas na educação particular.39 O ensino primário passou a ser obrigatório e gratuito e fixou-se a contribuição dos mais favorecidos aos mais necessitados40. Além disso, nas escolas primárias, a educação física, o ensino cívico e os trabalhos manuais, passaram a ser obrigatórios, sob pena de não reconhecimento da instituição de ensino como unidade escolar41. Sendo assim, o Estado assumiu seu dever em matéria educativa, visando promover a educação dos menores e da juventude, preparando-os para o cumprimento de suas obrigações com a economia e para a defesa da nação. O trabalho passou a ser protegido e garantido pelo Estado, como meio de subsistência do indivíduo, asseguradas condições favoráveis e meios de defesa. Como preceitos da legislação trabalhista, esculpidos no artigo 137, além de outros, destacam-se: o operário terá direito ao repouso semanal aos domingos e, nos limites técnicos da empresa, aos feriados civis e religiosos, de acordo com a tradição local; depois de um ano de serviço ininterrupto em uma empresa de trabalho contínuo, o operário terá direito a uma licença anual remunerada; indenização proporcional aos anos de serviço pela cessação das relações de trabalho, a que o trabalhador não haja dado motivo; salário mínimo, capaz de satisfazer, de acordo com as condições de cada região, as necessidades normais do trabalho; jornada de trabalho de oito horas; restrição ao trabalho noturno; inclusão do adicional noturno; proibição do trabalho para menores de catorze anos; de trabalho noturno a menores de dezesseis, e, em indústrias insalubres, a menores de dezoito anos e a mulheres; assistência médica; repouso a gestante 39. Art. 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular. 40. Art. 130 - O ensino primário é obrigatório e gratuito. A gratuidade, porém, não exclui o dever de solidariedade dos menos para com os mais necessitados; assim, por ocasião da matrícula, será exigida aos que não alegarem, ou notoriamente não puderem alegar escassez de recursos, uma contribuição módica e mensal para a caixa escolar. 41. Art. 131 - A educação física, o ensino cívico e o de trabalhos manuais serão obrigatórios em todas as escolas primárias, normais e secundárias, não podendo nenhuma escola de qualquer desses graus ser autorizada ou reconhecida sem que satisfaça aquela exigência.

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sem prejuízo do salário e instituição de seguros por velhice, invalidez e de vida para os casos de acidente de trabalho.42 Diante dos direitos diretivos nesta Constituição ao trabalhador, também conhecido como operário, houve a necessidade da criação de um órgão do Judiciário para dirimir todas e quaisquer questões oriundas das relações de emprego, ou seja, dos conflitos existentes entre empregados e empregadores. Criou-se a Justiça do Trabalho (artigo 139), a ser regulada por lei posterior, a qual não se aplicariam as disposições constitucionais relativas à justiça comum, sendo uma justiça especializada, ou seja, que trataria apenas das relações de emprego. Apesar da criação da Justiça do Trabalho, proibiu-se a greve e o lockout (recusa por parte da entidade patronal em ceder aos trabalhadores os instrumentos de trabalho necessários para a sua atividade), pois eram considerados recursos que afrontavam os direitos sociais, nocivos ao trabalho e ao capital, incompatíveis com o interesse nacional. Portanto, a educação e o trabalho alcançaram avanços significativos na Constituição de 1937, tanto que tais disposições vigoram até os dias atuais, com exceção da proibição do direito de greve, o qual foi estampado na Constituição de 1988 como direito dos cidadãos. considerações finais

Sob a alegação de combate ao comunismo, a Constituição Federal de 1937 foi outorgada pelo Presidente Getúlio Vargas em 11 de novembro de 1937, quando ocorreu um golpe de Estado e instaurou-se o primeiro regime ditatorial do Brasil, o denominado Estado Novo, inspirado no modelo fascista europeu. A Câmara dos Deputados e Senado foram dissolvidos, sendo que o último dava lugar ao Parlamento Nacional, composto por duas Câmaras, a Câmara dos Deputados e o Conselho Federal. Na vigência do estado de emergência, o Chefe Supremo do Estado podia suspender as atribuições do Parlamento e assumir as funções legislativas, editando decretos-leis sobre todas as matérias de competência da União, os quais eram referendados pelos Ministros, nomeados pelo Ditador. Além de se apossar das prerrogativas do Legislativo, o Chefe do Executivo limitou a atuação do Poder Judiciário, porquanto os atos praticados durante o estado de emergência e de guerra, em virtude deles, não poderiam ser conhecidos pelos Juízes e Tribunais. Ademais, o Congresso Nacional poderia rever decisões 42. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. São Paulo: UNESP. 2008.

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do Supremo Tribunal Federal em sede do controle de constitucionalidade, se assim desejasse o Presidente da República. O Presidente da República coordenava os órgãos representativos de grau superior, dirigia a política interna e externa, promovia política legislativa e geria a administração do país. O poder que não encontrava limites se espraiava pelos Estados, sujeitos à nomeação de interventores. Os direitos e garantias individuais sofreram considerável retrocesso, pois a Constituição estabeleceu a pena de morte para os crimes políticos e para os homicídios tidos como fúteis ou de extrema perversidade. Ademais, foi institucionalizada a censura aos meios de comunicação, houve restrições ao direito de manifestação do pensamento e supressão do direito de reunião e associação, foram banidas as imunidades parlamentares e autorizavam-se prisões e invasões de domicílios, sendo exilado do país o cidadão considerado subversivo. O único remédio constitucional contra os atos de violação ao direito de ir e vir do cidadão, excetuado para as condenações administrativas, era o habeas corpus, pois a Carta do Estado Novo não recepcionou o mandado de segurança e a ação popular, expressos na Constituição de 1934. A Constituição também deixou de observar os princípios da irretroatividade das leis e da reserva legal. Em que pese as práticas espúrias, comuns aos regimes ditatoriais, o Brasil vivenciou avanços no tocante aos direitos sociais. A educação foi vertida direito das crianças e adolescentes, ao mesmo tempo, dever dos pais e do Estado. Já os direitos trabalhistas ganharam maior destaque, eis que elevadas à Constituição uma série de normas protetivas do trabalhador. Importante consignar que neste período ocorreu a criação da Justiça do Trabalho, autônoma aos demais órgãos do Poder Judiciário, especializada na resolução dos conflitos oriundos das relações de emprego. Por fim, denota-se que o centralismo do poder político, na pessoa do Chefe Supremo do Estado, é a principal característica da Constituição de 1937, a qual fora substituída pela Constituição de 1946. referências

AMARAL, Roberto. O constitucionalismo da Era Vargas. Brasília: Revista de Informação Legislativa, 2004. ANDRADE, Paes de; BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. 4ª ed. Brasília: OAB, 2002. ARAUJO, Luiz Alberto David, JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de

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Direito Constitucional. 14ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. CORSI, Francisco Luiz. Estado Novo: política externa e projeto nacional. São Paulo: UNESP/FAPESP, 2000. FERNANDES, Pádua. Setenta anos após 1937: Francisco Campos, o Estado Novo e o pensamento jurídico autoritário. v.6. São Paulo: Prisma Jurídico, 2007. FONSECA, Pedro Cezar Dutra. Vargas: o capitalismo em construção. São Paulo: Brasiliense, 1999. MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2011. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2005. PORTO, Walter Costa. Constituições Brasileiras: 1937. 2 ed. Brasília: Ministério da Ciência e Tecnologia. Centro de Estudos Estratégicos, 2001. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 23 ed. São Paulo: Saraiva, 1996. SILVA, Hélio. A ameaça vermelha: o plano Cohen. Rio Grande do Sul: LP&M, 1980. SILVA, Paulo Sérgio da. A Constituição Brasileira de 10 de Novembro de 1937. São Paulo: UNESP, 2008.

CAPÍTULO V

a CoNStItuIÇÃo Da REpÚBlICa DoS EStaDoS uNIDoS Do BRaSIl (1946)

Júlio de Souza Gomes Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Tributário pela Fundação Eurípedes Soares da Rocha. Advogado

Luiz Augusto Almeida Maia Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogado.

INTRODUÇÃO

Promulgada através de uma Assembleia Constituinte, em 18 de Setembro de 1946, com relativa participação popular, a quinta Constituição brasileira procurou instituir um Estado democrático, trazendo uma série de medidas que buscaram melhor assegurar os direitos individuais. Assim sendo, por diversas razões, a Carta Constitucional de 1946 é lembrada como uma das melhores, senão a melhor, que tivemos dentro do constitucionalismo brasileiro, o que explica o fato da mesma ter tido uma vigência tão longa. Além de possuir a virtude de ter rompido com o Estado autoritário, que vigia no País desde 1937, a Constituição de 1946 é, tecnicamente, muito correta, e, do ponto de vista ideológico, nitidamente liberal, sem se descuidar de uma preocupação social.

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Nem por isso a Constituição de 1946 teve uma vigência tranquila, tendo que conviver com constantes ataques à democracia e aos direitos fundamentais. Dito isto, o objetivo central do presente artigo científico é a análise do texto constitucional de 1946, justamente sob a perspectiva do Estado democrático, bem como dos direitos e garantias fundamentais que emergem de suas normas, corroborando não só para a compreensão do modelo adotado naquele determinado momento histórico, como também do sistema constitucional vigente. Para tanto, foi necessária a análise do texto constitucional de 1937 e 1946, realização de pesquisa bibliográfica, tanto de autores da época, como contemporâneos, a fim de fundamentar teoricamente o tratamento que foi dado ao assunto. Com efeito, após algumas breves considerações acerca do contexto em que foi realizada a Assembleia Nacional Constituinte de 1946, passamos a tratar, especificamente, de como a democracia e os direitos fundamentais foram disciplinados, no texto da mencionada Carta constitucional e, inclusive, no mundo fático, de acordo com a realidade da época em que se inseriu. Ao final, são apresentadas as conclusões finais deste trabalho, em que são pontuadas as impressões sobre o tema. 1 DITADURA E REDEMOCRATIZAÇÃO 1.1 O Estado Novo

Com o Golpe de Estado de 10 de novembro de 1937, instalou-se no Brasil o Estado Novo, denominação dada ao governo do Presidente Getúlio Vargas, que substituiu a Constituição de 16 de julho de 1934 pela Carta outorgada de 1937, com forte espírito autoritário, anti-partidário, com a prevalência do Poder Executivo, fechamento do Poder Legislativo e direção do Poder Judiciário pelo chefe do executivo nacional. Assim, Getúlio Vargas governava no embalo do artigo 180 da Constituição outorgada, que dispunha que “enquanto não se reunir o Parlamento Nacional, o Presidente da República terá o poder de expedir decretos-leis sobre todas as matérias da competência legislativa da União.” E mais, no embalo do parágrafo único do artigo 96 da Carta de 1937, que dava ao Presidente da República a faculdade de submeter novamente ao crivo do

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Parlamento uma lei declarada inconstitucional pelo Poder Judiciário1. Assim, “(...) vivia o Pais internamente debaixo de um sistema de poder que era a negação mesma daqueles princípios [dos princípios de liberdade e democracia], sem Constituição – a Carta de 1937 nem ao menos fora aplicada! – sem partidos políticos, sem imprensa livre, o País se achava tão fechado em suas fronteiras quanto aqueles cujas ditaduras ele fora combater além-mar” [aqui os autores referem-se à campanha brasileira nos campos de batalha na Itália, na Segunda Grande Guerra, através da Força Expedicionária Brasileira].2 Com o paradoxo instalado, ou seja, o Brasil defendendo os princípios de liberdade e democracia na Segunda Grande Guerra e, internamente, vivenciando um governo ditatorial, não tardou para que a pressão popular aflorasse em busca da queda do Estado Novo e da eleição democrática do parlamento e de um novo chefe de governo.3 1.2 A redemocratização.

Entre os anos de 1946 e 1949, vinte e um países editaram novas Constituições e, na América Latina, oito inauguraram ou reformaram leis básicas, conforme anota Afonso Arinos4. Assim ocorreu em virtude da segunda grande guerra mundial, a partir da qual novos Estados surgiram e tornaramse independentes, com a consequente reorganização geopolítica, que se seguiu com a bipolarização do mundo entre capitalismo e socialismo, representados, respectivamente, pelas potências bélicas: Estados Unidos da América e União da República Socialista Soviética. 1. A propósito do suspeitoso controle de constitucionalidade vigente na Carta de 1937, anota Pontes de Miranda que: “O legislador constituinte de 1937 teve a coragem de adotar novo sistema de guarda da Constituição e de afastar do texto constitucional a proibição das leis retroativas. A Constituição de 1937 poderia ter sido a primeira Carta da Revolução brasileira. A sua função histórica transcenderia, então, à visão dos seus contemporâneos, não daqueles mesmos que a fizeram, mas, por certo, de muitos dos que, solidários com o movimento que se operou a 10 de novembro de 1937, observaram a segurança e a unanimidade de manifestação das classes armadas, a ordem com que se processou a passagem de um regime a outro, sem atentarem na mudança de conteúdo do direito nacional”. (MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 3ª ed. Tomo IV. Rio de Janeiro. Editora Borsoi: 1960. p. 19-20). Em posição contrária a exposta por Pontes de Miranda, Uadi Lammêgo Bulos argumenta que a Constituição de 1937 permitiu “ao Presidente da República submeter ao Parlamento a lei declarada inconstitucional. Se, pelo voto de 2/3 terços de cada uma das Casas Legislativas, fosse confirmada a validade da lei, tornava-se insubsistente a decisão do Poder Judiciário que decretou a inconstitucionalidade (art. 96, parágrafo único). Estava aberta a porta para se cassar em vereditos jurisdicionais. Em 1939, o Presidente Getúlio Vargas editou o Decreto-Lei n. 1.564, “validando” textos de lei declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal. Pôs em xeque o caráter incontrastável das sentenças judiciais, manchando o histórico do controle de constitucionalidade em nosso país.” (BULOS, Uadi Lammêgo. Curso de Direito Constitucional. 2ª ed. rev. e atual. de acordo com a Emenda Constitucional n. 56/2007. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 122-123). 2. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. Brasília: OAB Editora, 2002. p. 355. 3. Idem. 4. ARINOS, Afonso. Direito Constitucional: Teoria da Constituição. As Constituições do Brasil. Rio de Janeiro, Ed. Forense: 1976. p. 171.

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O Brasil também foi atingido pela onda de reformulação constitucional. Imergido em um governo ditatorial, capitaneado pelo Presidente Getúlio Vargas, que acessou o poder político-nacional com o golpe de estado no ano de 1937, a ditadura no Brasil deu sinais de abrandamento quando, após forte pressão popular, o governo baixou a Lei Constitucional n. 9, em 28 de fevereiro de 1945, que modificou a Carta outorgada de 1937, dando início ao processo de redemocratização, mediante convocação do eleitorado, para eleição regular do Congresso Nacional e do chefe de Estado e não mais para o plebiscito previsto no artigo 187 da Constituição de 19375, que deixara de ser feito. Em 29 de outubro de 1945, as forças armadas foram às ruas, com tanques e depuseram o Presidente Getúlio Vargas do poder o que marcou a queda do Estado Novo. Pelas forças armadas, o governo foi transferido ao presidente do Supremo Tribunal Federal, Ministro José Linhares, que assumiu em caráter interino e incumbiu-se da transição para o regime democrático. Mesmo após a deposição do Presidente Getúlio Vargas, o Brasil continuou sob a égide da Constituição outorgada de 1937 a qual passou a sofrer várias reformas encadeadas pelo recém Presidente José Linhares que, no exercício do poder ditatorial, deu continuidade à instauração da democracia no país. Os exemplos colacionados por Paulo Bonavides e Paes de Andrade6, sinalizam o início do processo democrático da época, notadamente pelas Leis Constitucionais editadas sob os números 12, 13, 14, 15 e 16 do ano de 1945. Com efeito, a Lei Constitucional n. 12 revogou o artigo 177 da Constituição outorgada, extirpando a possibilidade de, a juízo exclusivo do governo, aposentar ou reformar funcionários civis e militares para atender interesses do regime e do serviço público. Tem-se, ainda, a Lei Constitucional n. 13, que tratou dos poderes constituintes do Parlamento a ser eleito em 2 de dezembro de 1945; a Lei Constitucional n. 14, que extinguiu o Tribunal de Segurança Nacional, típico tribunal de exceção e a Lei Constitucional n. 15, que conferia poderes ilimitados ao Congresso Nacional a ser eleito, para elaborar e promulgar a Constituição do país. 1.3 A ASSEMBLEIA Nacional Constituinte de 1946.

Em 1º de fevereiro de 1946 reuniu-se a Constituinte sob a presidência do então Presidente do Superior Tribunal Eleitoral, Ministro Valdemar Falcão, 5. “Art. 187. Esta Constituição entrará em vigor na sua data e será submetida ao plebiscito nacional na forma regulada em decreto do Presidente da República. Os oficiais em serviço ativo das forças armadas são considerados, independentemente de qualquer formalidade, alistados para os efeitos do plebiscito.” 6. op. cit. p. 357-358.

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em sessão preparatória, o qual ressaltou a higidez com que se transcorreu o pleito eleitoral e os trabalhos dos juízes, na “árdua tarefa de assegurar os direitos de todos os cidadãos e de proclamá-los mediante um pleito livre, honesto e disputado, como foi o processo eleitoral de 2 de dezembro último.”7 Ainda na instalação da Assembleia Nacional Constituinte no Palácio Tiradentes, na cidade do Rio de Janeiro, vigorava a Carta outorgada de 1937 e com as reformas constitucionais levadas a cabo pelo então Presidente Linhares, no exercício da ditadura. Verificou-se a indesejável contaminação do arcabouço constitucional-legislativo do Estado Novo sobre a nova Assembleia Constituinte, sentida, por exemplo, pela direção inaugural dos trabalhos até que a Assembleia elegesse um presidente próprio, bem como, pela aplicação do Decreto-Lei n. 8.708, de 17 de janeiro de 1946, que determinava o regimento interno da Assembleia Nacional Constituinte o mesmo que vigorou para a Assembléia que elaborou e promulgou a Constituição de 1934, mas, com subordinação à Carta outorgada de 1937 e a legislação eleitoral. Luis Roberto Barroso8 anota que, externamente, a nova carta política brasileira de 1946 foi influenciada pela Constituição norte-americana, no que tange ao federalismo; a Constituição francesa de 1948, donde se extraíram elementos para atenuar a rigidez do sistema presidencialista, como, por exemplo, o comparecimento de Ministros de Estado no Congresso9 e, ainda, a Constituição de Weimar, que inspirou as questões em torno da ordem econômica e social. Nada obstante a fase de transição e as dificuldades em superar as influências internas do Estado Novo sobre aquela Assembléia Nacional Constituinte, cujo Presidente Melo Viana era apoiador do ex-Presidente Getúlio Vargas e simpatizante de sua política ditatorial, já se havia sentido os ares democráticos, conforme as palavras do comunista Luis Carlos Prestes: O Partido Comunista do Brasil, durante anos, foi caluniado, seus membros foram difamados e sofreram física e moralmente. Somente há poucos meses, dez no máximo, dispõem os comunistas em nosso País de liberdade de imprensa, de direito de reunião e de associação política, inclusive para seu partido. E foram esses dez meses que nos permitiram dizer alguma coisa e provar o quanto eram falsas as calúnias e as infâmias contra nós assacadas. 10 7. apud BONAVIDES; ANDRADE, op. cit, p. 359. 8. BARROSO, Luis Roberto. O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas. Limites e possibilidades da Constituição brasileira. 9ª ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2009. p. 25-26. 9. Art. 54 – Os Ministros de Estado são obrigados a comparecer perante a Câmara dos Deputados, o Senado Federal ou qualquer das suas Comissões, quando uma ou outra Câmara os convocar para, pessoalmente, prestar informações acerca de assuntos previamente determinado. Parágrafo único – A falta do comparecimento, sem justificação, importa crime de responsabilidade 10. BONAVIDES; ANDRADE, op. cit, p. 367.

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Superada a crise regimental gerada a partir da aplicação do Decreto-Lei n. 8.708/46, na data de 12 de março de 1946 houve a aprovação e promulgação do Regimento da Assembléia Nacional Constituinte. Com o novo regimento, formou-se a Comissão da Constituição, apelidada de “Comissão dos 37” que, de maneira inédita, fez-se representar não mais por critérios geográfico e federativo, mas sim, partidário e político, com a seguinte distribuição: Partido Social Democrático, com 19 membros; a União Democrática Nacional, com 10 membros; o Partido Trabalhista, com 2 membros e 1 membro atribuído a cada uma das seguintes organizações partidárias: Partido Comunista, Partido Republicano, Partido Libertador, Partido Republicano Progressista, Partido Democrata Cristão e Partido Popular Sindicalista11. A “Comissão dos 37” determinou a criação, segundo o Regimento, de dez subcomissões, a saber: i) Organização Federal, ii) Discriminação de Rendas, iii) Poder Legislativo, iv) Poder Executivo, v) Poder Judiciário, vi) Declaração de Direitos, vii) Ordem Econômica e Social, viii) Família, Educação e Cultura, ix) Segurança Nacional e x) Disposições Gerais e Transitórias. Distribuído os assuntos, fixou-se o prazo para entrega dos trabalhos parciais e, enquanto a “Comissão dos 37” e as subcomissões trabalhavam, funcionava, concomitantemente, o plenário da Assembleia, com dispensa de comparecimento daqueles membros das subcomissões. Em 02 de abril de 1946 a reunião plenária da Comissão da Constituição recebeu das subcomissões, à exceção da subcomissão de Discriminação de Rendas, os seus respectivos trabalhos e, no plenário da Comissão da Constituição passou-se aos debates sobre cada artigo, sobre o qual cada membro da Comissão dos 37 falaria por 10 minutos. Em 27 de maio de 1946 o projeto da Constituição de 1946 foi apresentado à mesa da Assembleia Nacional Constituinte que determinou a cópia do projeto para cada constituinte que, após o prazo de 72 horas, passariam a votar o texto. O projeto, com 197 artigos e 2 acrescentados ao Título Especial sobre as Disposições Transitórias, baseou-se nas Constituições de 1891 e 1934, com estruturas dividas em títulos, seções e capítulos, mas não totalmente isento da interferência do Estado Novo, cuja Carta outorgada serviu de fonte, também, ao referido projeto, na parte referente ao Poder Judiciário e em matéria econômico-social. O projeto da Constituição de 1946, uma vez divulgado, sofreu severas críticas de todos os segmentos sociais, inclusive dos próprios constituintes, os quais, atrelados às forças conservadoras das duas agremiações políticas PSD e UDN, produziram-no igualmente conservador. 11. BONAVIDES; ANDRADE, op. cit. p. 396.

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Seguindo a ordem regimental, o texto e as emendas foram submetidos à votação da Assembleia por títulos ou capítulos. Na votação da emenda, todas as demais sobre o mesmo assunto eram tidas por prejudicadas e o uso da palavra estava limitado a meia hora e por apenas um representante dos partidos e os pedidos de destaques eram apreciados e decididos pelo Presidente da Assembleia. Assim tramitou o projeto e designou-se a data de 18 de setembro de 1946 para a solenidade de promulgação da Constituição dos Estados Unidos do Brasil. 2 DEMOCRACIA NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1946 2.1 Democracia Deliberativa

Longe de circunscreve-se a apenas à contagem de votos para superar o dissenso pela deliberação da maioria, tem-se que a compreensão do que venha ser democracia passa necessariamente pelo posicionamento dos interlocutores do processo democrático, no sentido de estabelecerem diálogos de domínio público, que visem à superação de posições arcaicas e busquem o entendimento em prol do bem comum. Nesse sentido, Daniel Sarmento12, fundamentado nas lições de Jürgen Habermas, bem esclarece acerca da democracia: Na verdade, há muito tempo a idéia de democracia não mais se circunscreve à existência de eleições periódicas com respeito do princípio majoritário. Afirma-se, hoje, que a democracia pressupõe a existência de um espaço público aberto, em que as pessoas e grupos possam discutir sobre os temas polêmicos, prontas ao diálogo, reconhecendo-se reciprocamente como seres livres e iguais. A democracia exige deliberação pública e o seu objetivo não é – ou pelo menos não é exclusivamente – o de solucionar divergências contando votos. Presume-se, pelo contrário, que no processo deliberativo as pessoas manifestem-se buscando o entendimento e não a derrota do adversário. Pretende-se que, no espaço público, os cidadãos orientem-se pela busca do bem comum, e não pela defesa incondicional dos seus interesses pessoais ou de grupo. Almeja-se, enfim, que no debate franco de idéias inerente a este processo, as pessoas eventualmente revejam suas posições originais, convencidas pelas razões invocadas pelo outro. Em suma, a democracia deve ser mais diálogo do que disputa; mais comunicação do que embate. 12. SARMENTO, Daniel. Livres e Iguais: Estudos de Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Editora Lumen Júris, 2006. p. 117.

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A democracia, no contexto do debate aberto e plural, pode ser adjetivada de deliberativa, e como tal, conforme a lição de Luis Fernando Barzotto13, está fundada na razão prática, o que significa afirmar que existe um vínculo com a verdade. Essa verdade, é buscada por meio da deliberação; não é dada a priori, mas encontrada no interior da opinião. O citado autor anota que “em questões morais, jurídicas e políticas, conforme o pensamento aristotélico, só se obtém a verdade a partir de raciocínios que não partem de premissas necessárias e evidentes (como na ciência), mas opiniões que são prováveis”, que são submetidas em confronto com outras opiniões e que sejam aceitas por todos ou pela maioria dos homens14. Aproximando-se da concepção aristotélica de democracia, que considera relevante o confronto de opiniões, para Ricardo Lobo Torres15, a democracia deliberativa está fundada no caráter dialógico do direito atual, de modo a estabelecer, através do discurso entre os membros da sociedade, o consenso sobre a distribuição dos bens. Voltada para a justiça procedimental e para a afirmação dos direitos na via do processo legislativo e orçamentário, ou, nos casos de conflito, na via judicial. Esse confronto de opiniões que marca a democracia teve, para a Constituição de 1946, raízes na própria Assembleia Constituinte, como não poderia deixar de ser, a razão dos comentários de Aliomar Baleeiro16: Pela primeira vez na história política do Brasil, sentavam-se no Parlamento fortes bancadas de comunistas (16) e trabalhistas, de sorte que número considerável de proletários teve voto. As reivindicações dos proletários tiveram apoio prestimoso de vários udenistas e até do pessedista Agamenon Magalhães. Alguns deputados eram operários de limitadas instruções e até pretos, o que foi raríssimo na República Velha.

É nesse sentido de democracia deliberativa que se pode afirmar ter a Constituição de 1946 adotado-a, conforme se extrai da leitura do preâmbulo, 13. BARZOTTO, Luis Fernando. A democracia na Constituição. São Leopoldo, Editora Unisinos: 2003.p. 39. 14. Relevante o questionamento de Niklas Lhumann acerca da busca da verdade: “Por esse motivo o parlamento é, de acordo com a sua constituição jurídica, não uma repartição burocrática, mas sim um ciclo de sessões realizadas em caso de necessidade. Por esse motivo a liberdade de expressão, ou seja, a liberdade de todo procedimento é protegida em medida fora do comum através de imunidades. Por esse motivo o deputado só é responsável perante a sua própria consciência. E por esse motivo o procedimento parlamentar orienta-se de acordo com o debate repetido e ponderado de todos os pontos de vista e exclui paroxismos impulsivos e decisões súbitas e improvisadas. Todas estas disposições parecem ser concebidas de acordo com a verdade – e não, porventura, determinadas por poder, dinheiro, amor, honra ou fé. Entretanto, deveria também perguntarse aqui como é possível harmonizar este objetivo com aqueles meios. Poder-se-á atingir a verdade permitindo a todos os participantes dizerem sem coação aquilo que a consciência lhe dita?” (LHUMANN, Niklas. Legitimação pelo Procedimento. Trad. de Maria da Conceição Côrte-Real. Brasília. Editora Universidade de Brasília, 1980. p. 20). 15. TORRES, Ricardo Lobo. A metamorfose dos direitos sociais em mínimo existencial. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Ingo (org). Direitos fundamentais sociais: estudos de direito constitucional, internacional e comparado. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 20-21. 16. apud BONAVIDES, op. cit, p. 397.

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“(...) os representantes do povo (...) para organizar um regime democrático”, e já no artigo 1º, esclarece que “todo o poder emana do povo e em seu nome será exercido”, sob regime representativo, com destaque ao regaste do sistema bicameral, por reintroduzir o Senado no âmbito legislativo, conforme se observa no artigo 37: “O Poder Legislativo é exercício pelo Congresso Nacional, que se compõe da Câmara dos Deputados e do Senado Federal”. O regime democrático esteve, ainda, concretizado na Constituição de 1946 através do § 13, do artigo 141, que admitia a pluralidade partidária: É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer partido político ou associação, cujo programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos partidos e na garantia dos direitos fundamentais do homem.

Pedro Calmon17 explica que o regime democrático é aquele firmado em vários partidos e que assegura os direitos fundamentais do indivíduo e, contrariamente a isso, é o regime totalitário, que proíbe a livre concorrência das opiniões e inadmite pluralidade partidária, como ocorrera no regime ditatorial de Vargas. Indispensável, ainda, ao regime democrático, era a previsão do artigo 134 da Constituição de 1946 no sentido de que “o sufrágio é universal e, direto; o voto é secreto; e fica assegurada a representação proporcional dos Partidos Políticos nacionais, na forma que a lei estabelecer”. O direito ao voto, anota Pontes de Miranda18, era efeito da nacionalidade e emergente da estruturação política estatal e, a proporcionalidade dos Partidos Políticos foi pretendida pelo constituinte de 1946 não somente para as comissões, mas também para qualquer corpo eletivo, ou seja, no Congresso Nacional, nas Assembleias Estaduais e Câmaras Municipais. Luís Carlos Martins Alves Jr.19 acentua o fato de que, na Constituição de 1946, tanto o Poder Judiciário como o Poder Legislativo tiveram seu renascimento e a restituição de suas dignidades: Além de restabelecer e fortalecer o modelo federativo, a Constituição restituiu dignidade ao Poder Legislativo. A representação no Congresso era eminentemente política, e cabia somente a ele – Congresso – o exercício da função legislativa, sem a intrusão do Poder Executivo, exceto na iniciativa das leis ou no poder de veto, mas sem a existência dos decretos-leis e da delegação legislativa (...) O Poder Judiciário, diminuído e amedrontado na vigência do Estado Novo, também 17. CALMON, Pedro. Curso de Direito Constitucional Brasileiro: Constituição de 1946. 2ª Ed. Livraria Freitas Bastos: 1951. p. 21-22. 18. MIRANDA, op. cit, p. 204-205. 19. ALVES JUNIOR, Luis Carlos Martins. O Supremo Tribunal Federal nas constituições brasileiras. Belo Horizonte: Mandamentos, 2004. p.274-276.

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teve sua dignidade constitucional resgatada, especialmente com a introdução do princípio da inafastabilidade da apreciação judicial ante as lesões aos direitos individuais, à possibilidade de apreciação das medidas tomadas na vigência do estado de sítio, se descumpridos os preceitos legais e constitucionais e com o fim da possibilidade de serem as decisões judiciais modificadas por meio de atos do Parlamento ou do Executivo.

Quanto ao Poder Executivo, a tradição presidencialista foi mantida, porém mitigada, com ressalva do período de 02 de setembro de 1961 até 24 de janeiro de 1963, em que o sistema de governo foi parlamentarista20 mas que, após o plebiscito popular, a forma de governo volveu-se ao presidencialismo21. O citado autor22 elucida que: No modelo constitucional de 1946, diferentemente do ocorrido com as Cartas de 1824 e 1937, não era em redor do Poder Executivo que gravitavam os demais Poderes. Com efeito, havia um equilíbrio institucional entre os três Poderes da República, conquanto se soubesse que a máquina administrativa posta à disposição do Presidente fosse forte e capaz de induzir os rumos do Estado, se bem conduzida.

Sem embargo ao posicionamento de Luís Carlos Martins Alves Jr acima referido, temos que a exigência democrática na Constituição de 1946 mostrouse demasiada, conquanto a produção legislativa exclusivamente entregue ao Congresso Nacional23, certamente como reação ao período político anterior, não pode acompanhar as mudanças sociais24, gerando distorção que resultaram em crise político-institucional. Tudo isso, aliado ao fato de que, pelo disposto no artigo 87, inciso II, e § 1º, do artigo 70, da Constituição de 1946, era lícito ao Presidente da República vetar total ou parcialmente os projetos de lei que lhe eram submetidos à sanção, incluída a possibilidade de veto de palavra, o que franqueava ao Chefe do Executivo inverter uma proposição, suprimir ou converter de negativa em positiva uma expressão. 20. A Emenda Constitucional n. 4, de 2 de setembro de 1961, intitulada de Ato Adicional, instituiu o sistema parlamentar de governo, cujos artigos 1º e 2º assim dispunham: “Art. 1º O Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República e pelo Conselho de Ministros, cabendo a êste a direção e a responsabilidade da política de Govêrno, assim como da administração federal. Art. 2º O Presidente da República será eleito pelo Congresso Nacional por maioria absoluta de votos, e exercerá o cargo por cinco anos”. 21. A Emenda Constitucional n. 6, de 23 de janeiro de 1963, formalizou a volta do presidencialismo na República brasileira, dispondo: “Art. 1º Fica revogada a Emenda Constitucional n. 4 e restabelecido o sistema presidencial de govêrno instituído pela Constituição Federal de 1946, salvo o disposto no seu artigo 61”. 22. ALVES JUNIOR, op. cit. p. 275. 23. Ao Presidente da República cabia, privativamente (art. 87, inc. I) “sancionar, promulgar e fazer publicar as leis e expedir decretos e regulamentos para a sua fiel execução”; 24. Nesse sentido, anota Luís Roberto Barroso: “Numa sociedade em transformação acentuada, a legislação se produzia de forma morosa e insatisfatória. A rigidez gerou a distorção, com a invasão da esfera de reserva legal por atos normativos subalternos, gestados no Executivo, sem controle do órgão de representação popular.” (BARROSO, op. cit, p. 26-27).

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2.2 A crise democrática

Nada obstante a positivação inequívoca do princípio democrático em toda sua extensão como visto acima, a democracia na vigência da Constituição de 1946 foi mais simbólica do que real25. Não se olvida que, o fato de apenas 15% da população ter eleito a Assembleia Constituinte possa ter influenciado no fracasso da democracia nos anos que seguiram26. Mas e principalmente, aponta-se o populismo27 da era Vargas que permeou as práticas políticas da época, como fator de insucesso da democracia deliberativa positivada na Constituição de 1946. Nesse sentido, Paulo Bonavides e Paes de Andrade anotam que “a maioria das lideranças políticas, ao invés de trilharem o duro caminho do esclarecimento e da penetração dos mecanismos de decisão democrática pelo tecido social, preferiram o caminho fácil do populismo, no estilo inaugurado por Vargas”28. O populismo, que é marcado por uma pretensa verdade dada a priori, de modo a seduzir sem debater com seus interlocutores, surtiu efeitos em curto prazo, mas a longo prazo mostrou-se incapaz de superar o déficit entre a Constituição de 1946 e a realidade sociopolítica do Brasil naqueles anos seguintes. Para Luís Roberto Barroso “não foram poucas as crises ocorridas, nascidas da crônica incapacidade de absorção institucional da divergência e de um germe golpista que contaminara os segmentos políticos que não se haviam afirmado eleitoralmente desde o fim do Estado Novo” 29. Como reflexo da mitigação do regime democrático no contexto político nacional, ainda no governo Dutra, com o acirramento da guerra fria no cenário internacional e com fundamento no artigo 141, § 13 da Constituição de 1946, restou cancelado o registro do Partido Comunista: 25. É de ressalvar a observação de Luís Roberto Barroso que: “Sob o prisma político, todavia, o período iniciado em 1946, em que resistiu a todas turbulências até abril de 1964, foi o único até então em nossa história que permitiu certa autenticidade no processo representativo. A existência, já referida, de partidos políticos de âmbito nacional e o equilíbrio que se estabeleceu entre os Poderes do Estado asseguraram pleitos menos marcados pela fraude(BARROSO, op. cit, p. 27). 26. Essa baixa participação dos brasileiros no processo democrático parece-nos, ainda, atual, conforme se extrai do artigo escrito por José Fernando de Castro Farias: “O debate sobre a democracia tem uma grande repercussão no campo da teoria constitucional. Aqui também devemos buscar a construção de uma alternativa, sobretudo se levarmos em conta que, no Brasil, há uma democracia de baixa intensidade e um abismo perverso existente entre princípios constitucionais fundamentais e a realidade social”. (FARIAS, José Fernando de Castro. Os Desafios da Democracia. In: Revista Brasileira de Direito Constitucional, n. 3, jan./jun. 2004. p. 401.) 27. Populismo é uma forma de governar em que o governante utiliza de vários recursos para obter apoio popular. O populista utiliza uma linguagem simples e popular, usa e abusa da propaganda pessoal, afirma não ser igual aos outros políticos, toma medidas autoritárias, não respeita os partidos políticos e instituições democráticas, diz que é capaz de resolver todos os problemas e possui um comportamento bem carismático. É muito comum encontrarmos governos populistas em países com grandes diferenças sociais e presença de pobreza e miséria. 28. BONAVIDES; ANDRADE, loc. cit. 29. BARROSO, op. cit, p. 27.

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A intolerância ideológica e o aparato autoritário que não se desfizera por inteiro levaram o Tribunal Superior Eleitoral, em 7 de maio de 1947, a decretar, por três votos a dois, o cancelamento do registro do Partido. Condenavam-se idéias à clandestinidade. 30

Por paradoxal que possa parecer, o princípio democrático se ressentiria, também, porque havia severas dificuldades, na época, para o desenvolvimento da governabilidade, pelo Poder Executivo, tendo em vista que o processo legislativo previsto na Constituição de 1946 era lento e incapaz de acompanhar as mudanças que ocorriam no país31. Nesse sentido, M. Seabra Fagundes32 anota que: O processo de elaboração legislativa é o mesmo de 60 anos atrás, quando menos numerosa a composição da Câmara dos Deputados, muito menos freqüentes as mutações no quadro das relações humanas, e, portanto, muito menores as necessidades de providências normativas. (...) No entanto, ao invés de caminhar no sentido da maior mobilidade do órgão legiferante, o constituinte de 1946 o entravou ao vetar, peremptoriamente, as delegações de função entre os poderes estatais (art. 36, § 2º). Não deixou margem à prática, hoje generalizada, entre os diferentes povos, por força da realidade da vida, da outorga ao Poder Executivo da faculdade de legislar em determinadas conjunturas.

O processo legislativo, nos moldes em que fora estabelecido na Constituição de 1946, revestido com o manto da cláusula pétrea e tido como princípio sensível, conforme previsão do art. 7º, inciso VII, alínea “b” e, portanto, imutável, implicou no comprometimento da própria ordem constitucional33. A propósito, veja lição de Daniel Sarmento34: Nesse quadro, a maximização das cláusulas pétreas representam um sério atentado contra o princípio democrático, que postula que o povo deve ter, a cada momento, o poder de decidir os rumos que pretende seguir. Por outro lado, o alargamento da esfera intangível da Constituição 30. Ibid, p. 28. 31. Conforme explica Vital Moreira: “por definição, toda Constituição constitui um limite da expressão e da autonomia da vontade popular. Constituição quer dizer limitação da liberdade da maioria de cada momento, e, neste sentido, quanto mais Constituição, mais limitação do princípio democrático (...). O problema consiste em saber até que ponto é que a excessiva constitucionalização não se traduz em prejuízo do princípio democrático”. (MOREIRA, Vital. Constituição e Democracia. São Paulo: Max Limonad, 2001. p. 272.) 32. FAGUNDES, M. Seabra. Treze anos de prática da Constituição. In: Revista Forense. Rio de Janeiro, V. 57, n. 187, Jan/ fev. 1960. p. 8. 33. Paulo Bonavides e Paes de Andrade informam que: “Era idéia, portanto, da tripartição e quipotência dos três Poderes que pretendia caracterizar a Carta de 46. Ela buscava devolver ao Legislativo e ao Judiciário a dignidade e as prerrogativas características de um regime efetivamente democrático. Que, então, determinou a derrota dessa linha de pensamento nos anos que se seguiram? A resposta, em parte, parece ter sido dada na análise da Constituição de 37. Vargas foi Presidente durante 15 anos ininterruptos, 8 dos quais com ditador de fato. Os jogos e intercâmbios políticos, que tinham seu canal natural de expressão – o Parlamento – coarctados, acabaram por penetrar todas as camadas da burocracia, fazendo com que as decisões políticas ganhassem cada vez mais um caráter intransparente, espesso e incontrolável. O corporativismo alastrou-se por todos os níveis da sociedade. Com isso, o Poder Executivo tomou ares imperiais, inchando de modo a hipertrofiar o Legislativo e o Judiciário.” (BONAVIDES. Andrade, op cit., p. 415. 34. SARMENTO, op. cit., p. 10.

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pode expor a risco a sua própria continuidade no tempo, estimulando rupturas e saídas não institucionais, que poderiam ser facilmente evitadas através de um arranjo institucional um pouco mais maleável. Ademais, o engessamento da ordem constitucional frustra sua possibilidade de adaptar-se à realidade cambiante, que assume conformações muitas vezes imprevisíveis no momento do pacto constituinte.

Assim, a crise democrática teve uma de suas raízes fincadas no processo legislativo, posto que o veto presidencial, seja ele total ou parcial, demandava, para ser derrubado, o voto de dois terços dos Deputados e Senadores presentes (art. 70, § 3º, da Constituição de 1946), quórum este de difícil alcance, sobretudo porque ocorria a tradicional influência do Poder Executivo sobre o Legislativo. A subversão do processo legislativo estabelecido na Constituição de 1946 foi ilustrada por M. Seabra Fagundes35: Vemos o presidente da República, e até ministros de Estado, sob a pressão de necessidades imperiosas, invadindo o domínio do Poder Legislativo através de decretos, instruções ou portarias. Neste particular, não há mister outro exemplo que o do comércio com o exterior, cuja disciplina, de cunho estritamente legislativo, tem sido comandada, em certos momentos, por atos emanados do ministro da Fazenda, atos de maior repercussão na vida econômica do País, a principiar pela famosa Instrução n. 70. Não sendo possível disciplinar certos setores da vida econômica, através do lento processo de elaboração das leis, dada a celeridade com que os problemas se apresentam e a premência das soluções por êles exigidas, se admite que a política econômica do pais seja guiada, mediante atos de categoria subalterna na escala hierárquica dos atos do poder público.

Com a ascensão de Vargas ao poder, nas eleições de 3 de outubro de 1950, através do processo eleitoral legítimo, retomou-se ao populismo combatido por segmentos militares e pela burguesia industrial, financeira, nacional e estrangeira. Naquele período de governo democrático, Vargas sofreu pressão dos militares36 e de parcela influente da opinião pública para renunciar, tendo o mesmo cometido suicídio em 24 de agosto de 1954, com a assunção do poder pelo vice, Café Filho. Outra crise se instalaria, ainda, antes mesmo da tomada de posse do poder pelo então Presidente eleito Juscelino Kubitschek, dado que, após a divulgação dos resultados das urnas de 3 de outubro de 1955 e com o enfarte sofrido pelo Presidente em exercício Café Filho, impôs-se-lhe o afastamento do 35. FAGUNDES, op. cit. p. 9. 36. Observa Luis Roberto Barroso que o atentado contra Lacerda, em 4 de agosto de 1954, mas que vitimou o Major Rubem Vaz, comprometeu o chefe da guarda pessoal do Presidente Vargas, assim apurado por meio dos Oficiais da Aeronáutica, que instalaram verdadeiro poder paralelo ao governo, ao que se denominou República do Galeão. (BARROSO, op. cit, p. 28).

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cargo e a Presidência foi assumida por Carlos Luz, então Presidente da Câmara dos Deputados. Desde a eleição de Juscelino até sua posse, ocorreu no cenário político nacional, um golpe militar preventivo37, algo inédito, que visava assegurar o respeito aos resultados das urnas e a ordem constitucional. Deu-se a declaração de impedimento de Carlos Luz à Presidência, no que foi substituído por Nereu Ramos, então Presidente do Senado. Café Filho, com a saúde restabelecida, foi impedido de reassumir o cargo de Presidente da República, por declaração do Congresso Nacional na Resolução n. 21, de 22.11.1955. Empossado em 31 de janeiro de 1956, Juscelino Kubitschek, pôs em prática um governo desenvolvimentista, com fortes investimentos nas indústrias de base, nas áreas de energia e transportes, tendo como corolário da política nacional a construção da capital Brasília. Nas eleições presidenciais de 03 de outubro de 1960, saiu vitorioso Jânio Quadros e, na condição de Vice-Presidente, foi eleito João Goulart, que derrotou Milton Campos, que era o candidato a vice do então presidente eleito Jânio Quadros. Registre-se que a Constituição de 1946, no artigo 81, estabelecia que o Presidente e o Vice-Presidente da República seriam eleitos simultaneamente, em todo País, cento e vinte dias antes do término do período presidencial. Portanto, tanto o Presidente quanto o Vice-Presidente ocupavam cargos eletivos, ainda que de filiação partidária diferentes, sendo este um dos motivos apontado por Afonso Arinos como principal defeito instrumental da Constituição de 194638. O quadro de instabilidade política e, portanto, impossibilidade de consolidação do regime democrático previsto na Constituição de 1946, foi acirrado com a renúncia de Jânio Quadros, após apenas sete meses no poder. Assume o cargo da Presidência da República o Presidente da Câmara dos Deputados, Ranieri Mazzili, uma vez que o Vice-Presidente João Goulart ausentava-se do país, em visita à China. Justamente pela resistência oferecida pelos ministros militares à posse de João Goulart e, de outro lado, pela defesa da constitucionalidade por setores políticos estaduais e parte do Exército, de modo a evitar guerra civil, transacionouse a alteração da forma de governo, no que se instituiu, sem qualquer aderência popular, ao regime de governo parlamentarista, pela Emenda Constitucional n. 4/1961, acima já referida. 37. O golpe militar preventivo foi deflagrado pelo recém exonerado do Ministério da Guerra, o General Henrique Lott, que suspeitava de um golpe militar para frustrar os resultados das urnas de 03 de outubro de 1955. 38. apud BARROSO, op. cit, p. 31.

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O clima de instabilidade política, greves sucessivas e generalizadas, agitação de oficiais de baixa patente das forças armadas e crescente influência do Partido Comunista - ainda que na clandestinidade, aliados ao fato da imprensa criticar fortemente o governo, fez com que o governo democrático sucumbisse ao golpe militar de 1º de abril de 1964. Os comandantes-em-chefe das três Armas baixaram o Ato Institucional em 09 de abril de 1964, no que, dada a sucessão dos demais atos institucionais, restou o primeiro denominado de Ato Institucional n. 01, publicado no Diário Oficial da União de 19 de abril de 1964. O Ato Institucional n. 01 criou uma normatividade paralela, supraconstitucional, com eleição indireta do Presidente; suspensão das garantias de vitaliciedade e estabilidade; possibilidade de demissão, dispensa ou aposentadoria de servidores públicos federais, estaduais e municipais; possibilidade de cassação de direitos políticos e de mandatos legislativos, dentre outras medidas de caráter discricionário39. Luís Roberto Barroso40 sintetiza a finalização da Constituição de 1946 pela intensa repressão, disseminada e anárquica, com o rótulo de subversão ou corrupção, sob o peso de três atos institucionais, vinte emendas constitucionais e cerca de quarenta atos complementares. 3 DIREITOS FUNDAMENTAIS

Com o fim do Estado Novo e a redemocratização, a Constituição promulgada em 1946 também restabeleceu e ampliou direitos fundamentais anteriormente previstos na Constituição de 1934, mas suprimidos em 1937. A Constituição de 1946 tratou da temática relativa aos direitos fundamentais, especialmente, nos capítulos relacionados à “Nacionalidade e Cidadania” e aos “Direitos e Garantias Individuais”, dentro do Título IV – Da Declaração de Direitos (arts. 129 a 144). No que se refere aos direitos individuais, o artigo 141 da nova Constituição assegurava aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade, a igualdade perante a lei (§ 1º). Estabelecida a total liberdade de pensamento, vedando o anonimato e assegurando o direito de resposta, restringido, entretanto, em caso de “propaganda de guerra, de processos violentos para subverter a ordem política 39. Ibidem, p. 33. 40. Ibidem, p. 34.

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e social, ou de preconceitos de raça ou de classe a respeito de espetáculos e diversões públicas” (art. 141, § 5º). Na mesma linha, restaram também asseguradas as liberdades de consciência e crença (§ 7º), de reunião (§ 11), de associação (§ 12), de profissão (§ 14), de ir e vir (142), a inviolabilidade do sigilo da correspondência (141, § 6º) e de casa (§ 15). Além do mais, a Constituição de 1946 introduziu o princípio da ubiquidade da Justiça (art. 141, 4º) ao dispor que: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder judiciário qualquer lesão de direito individual”, o qual, segundo Pontes de Miranda41, teria sido a criação mais relevante do constituinte originário. Outrossim, a pena de morte foi abolida, bem como a prisão perpétua, salvo, quanto à primeira, no caso de guerra (art. 141, §31). Também foi estabelecida a soberania dos veredictos do júri (art. 141, §28), bem como a individualização das penas (art. 141, §29). Seguindo como espelho a Constituição de 1934, foram reintroduzidos os instrumentos do habeas corpus (art. 141, §23), do mandado de segurança (art. 141, §24) e da ação popular (art. 141, §31), além de previstos os princípios da legalidade (art. 141, §2º) e da irretroatividade da lei (art. 141, §3º). 4 A ordem social e econômica

Quanto aos direitos sociais, estes continuaram a ser tratados fora do título referente à Declaração de Direitos, sendo consagrados apenas no título referente à Ordem Econômica e Social. Com efeito, foram arrolados pelo art. 157 vários direitos sociais dos trabalhadores. Estes novos direitos sociais foram: salário mínimo capaz de satisfazer conforme as condições de cada região, as necessidades normais do trabalhador e de sua família; proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; participação obrigatória e direta do trabalhador nos lucros da empresa; repouso semanal remunerado; proibição de trabalho noturno a menores de 18 anos; fixação das percentagens de empregados brasileiros nos serviços públicos dados em concessão e nos estabelecimentos de terminados ramos do comércio e da indústria; assistência aos desempregados; previdência, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, em favor da maternidade e contra as 41. MIRANDA, Pontes de apud HERKENHOFF, João Baptista. Curso de direitos humanos. Volume 1 – Gênese dos Direitos Humanos. São Paulo: Editora Acadêmica, 1994, p. 79.

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consequências da doença, da velhice, da invalidez e da morte; obrigatoriedade da instituição, pelo empregador, do seguro contra acidentes do trabalho; direito de greve (art. 158); e liberdade de associação profissional e sindical (art. 159). Vale ressaltar, ainda, que a Constituição previu um título especial para a proteção da família, da educação e da cultura (título VI), porém, em 1950, 54% (cinquenta e quatro por cento) dos homens e 61% (sessenta e um por cento) das mulheres eram analfabetos. Outrossim, o censo demográfico realizado em 1960 mostrou que as condições habitacionais dos brasileiros eram extremamente precárias, pois somente 21% (vinte um por cento) da população tinha acesso a rede geral de água, já o percentual de pessoas que estavam ligadas a rede de esgoto era só de 13% (treze por cento), e apenas 38,5% (trinta e oito e meio por cento) tinham luz elétrica, dos quais 4,5 % tinha televisão e 11% tinha geladeira. Como se vê, o salário mínimo não era suficiente para satisfazer as necessidades normais do trabalhador e de sua família. Neste particular, cumpre destacar que os direitos culturais foram significativamente ampliados, sendo assegurada a gratuidade do ensino oficial ulterior ao primário para os que provassem falta ou insuficiência de recursos; a obrigatoriedade ser mantido pela empresa, em que trabalhassem mais de 100 (cem) funcionários, o ensino primário para os seus servidores e respectivos filhos; obrigatoriedade de ministrarem as empresas, em cooperação, aprendizagem aos seus trabalhadores menores; instituição de assistência educacional, em favor dos alunos necessitados, assegurando, assim, condições de eficiência escolar. 5 direitos políticos

Em relação aos direitos políticos, a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1946 consagrou o sufrágio universal, o voto direto e secreto, o sistema eleitoral proporcional, um regime de partidos nacionais e a Justiça Eleitoral. Sem embargo a tais considerações, é necessário recordar que o Brasil, mesmo após a promulgação da Constituição de 1946, continuava sendo um país rural, em sua maioria, dominado por oligarquias. Durante os 19 (dezenove) anos de regime democrático (1945 – 1964), menos de 20% (vinte por cento) da população brasileira possuía o direito de votar, haja vista que a cidadania social estava restrita a algumas categorias de trabalhadores que detinham carteira de trabalho assinada. Os demais direitos civis, políticos e sociais eram aqueles da Constituição de 1934 que não haviam sido recepcionados pela Constituição autoritária de 1937.

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No que tange aos partidos políticos, observa-se que os mesmos obtiveram liberdade de organização e, pela primeira vez, caráter nacional. Também pela primeira vez, surge o pluripartidarismo partidário, sendo que até 1964, quando do golpe militar, eram contabilizados um total de 14 partidos políticos. Contudo, o Partido Comunista, que havia sido posto na legalidade, em razão do clima liberal estabelecido em 45, permaneceu nesta condição por apenas dois anos, pois o Presidente Dutra, seguindo a orientação norte americana, decretou seu fim e, consequentemente, dos mandatos de seus deputados. Tal atitude recebeu o triste beneplácito legitimante do Supremo Tribunal Federal. O período que se seguiu, até o golpe de Estado de 1964, foi de grande instabilidade político-constitucional, culminando com a colocação do país em uma nova ditadura até 1985. Posteriormente a isto, a reconstrução da democracia só veio com a nova Constituição em 1988. CONCLUSÕES

Conforme pode ser observado, ínsita à ideia de democracia, ou, mais propriamente, de constitucionalismo democrático, está a noção de Estado de Direito, ou seja, de poder limitado e de respeito aos direitos fundamentais, bem como de soberania popular, que, como visto, não se restringe a adoção do princípio majoritário, vez que depende da criação de espaços públicos de diálogos. Todavia, a democracia, como sistema político, apenas assume um real significado, se respeitado o postulado ético kantiano da dignidade humana, no sentido de que pessoas representam um fim, em si mesmas, motivo pelo qual devem ser dotadas de autonomia para fazerem suas próprias escolhas, não sendo lícito, a quem quer que seja, beneficiar-se da ausência de pré-condições mínimas de um povo, para consecução de seus próprios projetos políticos e sociais. Daí talvez a razão da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946, não obstante a sua elogiável técnica e preocupação quanto à defesa do Estado Democrático, bem como dos direitos fundamentais, não ter sido capaz de assegurar tais ideais, pelo menos não em toda a sua plenitude, no mundo dos fatos, sucumbindo a discursos populistas e práticas políticas arcaicas, ignorando, desta forma, seu papel inclusivo. Sem embargo, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 1946 será sempre lembrada como uma das melhores do constitucionalismo brasileiro, mesmo tendo estado vigente em um período de grande instabilidade política e social, sendo certo que muitas de suas inovações deram o contorno do atual Estado brasileiro, perdurando até hoje.

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MIRANDA,

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CAPÍTULO VI

a CoNStItuIÇÃo Da REpÚBlICa FEDERatIVa Do BRaSIl (1967) E a EMENDa Nº1/1969

Cristiane de Toledo Barros Burjato Simões Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Servidora Pública Estadual.

INTRODUÇÃO

Em 24 de janeiro de 1967 foi promulgada a sexta Constituição brasileira que entrou em vigor no dia 15 de março do mesmo ano. Pode ser considerada uma carta semi outorgada, pois embora tenha sido discutida e votada por uma Assembleia Nacional Constituinte, na realidade foi criada para atender e legalizar atos e interesses do governo militar vigente à época. Foi uma das medidas do novo governo militar iniciado em 1964 com o golpe de Estado que depôs o presidente João Goulart em 01 de abril. Iniciou-se um período caracterizado por um regime de força, dirigido por governos militares que passaram a governar através de Atos Institucionais os quais restringiam as liberdades públicas e outros direitos assegurados na Constituição de 1946, mantendo-se, todavia, naquele momento, a vigência da Carta naquilo que não fosse conflitante com aquelas medidas de exceção. Mas com a justificativa de manter a ordem democrática e organizar o país econômica e socialmente, os militares, através dos atos, suprimiram direitos e garantias individuais. Dotado desses poderes excepcionais, o movimento militar passou a promover perseguições aos adversários do regime. Grande número de prisões foi efetuado e surgiram as primeiras denúncias de torturas.1 1.

A Comissão de Alto Nível – História da Emenda Constitucional n. 01 de 1969 – Araújo, Caetano Ernesto Pereira e Maciel, Eliane Cruxên Barros de Almeida. Disponível em: http://www.senado.gov.br pdf. – pág. 07

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Quatro atos institucionais foram editados entre os anos de 1964 a 1966 e em 1968 foi editado o mais rigoroso deles, o Ato Institucional n. 05. Além das prerrogativas autoritárias conferidas por todos os Atos Institucionais, a nova Constituição incluiu também a Lei de Imprensa e a Lei de Segurança Nacional. Essas leis garantiram ao presidente poderes praticamente ilimitados, o que levou a oposição a denunciar a “institucionalização da ditadura”. A emenda 1969, em que pese ser formalmente uma emenda à constituição de 1967, é considerada uma nova Constituição, outorgada, e manteve o aspecto de constituição semântica de sua antecessora, pois embora vigente uma Constituição Federal, novamente vigorou uma legislação de ordem constitucional com o objetivo específico de combate à subversão e à corrupção. Uma constituição simbólica, na concepção de Marcelo Neves2, onde não se seguiu uma normatividade jurídica abrangente e concreta. Sua representação teve objetivos apenas políticos, uma função ideológica, de ilusões, onde não se questiona a inconstitucionalidade da norma, mas a juridicidade da própria constituição. Segundo Marcelo Cerqueira: “A carta de 1969, como sua antecessora, representa apenas a formalização da situação fática do poder em benefício dos seus.”3 1 OS ATOS INSTITUCIONAIS

Os atos institucionais foram criados pelo regime militar para legitimar o golpe de Estado de 64 e servir de instrumento para legalização de direitos políticos inválidos pela constituição vigente. Até o início de 1969, onde foi promulgado o último Ato Institucional, foram redigidos e editados 17 Atos Institucionais e 104 atos complementares, que legitimaram a autoridade dos ditadores. O primeiro Ato Institucional, editado em 09 de abril de 1964, suspendeu garantias constitucionais de vitaliciedade e estabilidade, conferiu o direito de alterar a constituição, suspender os direitos políticos pelo prazo de 10 anos e cassar mandatos legislativos federias, estaduais e municipais, com exclusão de apreciação judicial. O Ato Institucional n. 2, editado no dia 27 de outubro de 1965 extinguiu os partidos políticos; conferiu ao Presidente da República o direito de baixar atos complementares e decretos leis sobre segurança nacional e decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras dos Acesso em: 16 nov. 2010 2. NEVES, Marcelo. Constituição Simbólica. 2. Ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007 3. Cerqueira Marcelo, 1939 – Cartas Constitucionais : Império, República e Autoritarismo- Rio de Janeiro; Renovar, 1997, p. 151

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Vereadores, em estado de sitio ou fora dele. Na hipótese de recesso parlamentar, o Poder Executivo ficou autorizado a legislar mediante decretos-leis em todas as matérias previstas na Constituição e na lei orgânica. O AI-2 também instituiu a eleição indireta para Presidente da República. O Ato Institucional n. 3, editado em 05 de fevereiro de 1966, estendeu o princípio da eleição indireta para Presidente e Vice Presidente para a eleição de governadores e vice-governadores. O Ato Institucional n. 4 foi editado em 07 de dezembro de 1966, convocou o Congresso Nacional para a votação e promulgação da Constituição Federal de 1967. A Carta foi promulgada no dia 24 de janeiro. O Ato Institucional n. 5, editado no dia 13 de dezembro de 1968, suscitou nos anos mais violentos do período, a repressão se tornou mais severa e punitiva aos opositores do Regime Militar. Medidas de força foram adotadas como a proibição do uso do habeas corpus pelos presos políticos e a censura prévia aos órgãos de imprensa. Pelo seu impacto na história política do país, este ato será comentado em capítulo próprio. O Ato Institucional n. 6 editado em 1º de fevereiro de 1969, reduziu de 16 para 11 o número de ministros do STF e reduziu sua competência transferindo para a Justiça Militar o julgamento dos crimes considerados contra a segurança nacional ou às instituições militares. O Ato Institucional n. 7, editado em 26 de fevereiro de 1969 suspendeu as eleições em todo território nacional. O Ato Institucional n. 8, editado em 02 de abril de 1969, conferiu aos chefes do poder executivo a competência para realizar reformas administrativas através de decretos, reduzindo substancialmente o controle da população sobre atos e ações dos políticos considerando que os decretos não são conhecidos ou discutidos pela sociedade dificultando a fiscalização da população sobre a classe política. O Ato Institucional n. 09, editado em 25 de abril de 1969, mantendo a política de centralização e fortalecimento do chefe do poder executivo, conferiu ao presidente atribuições de desapropriação de imóveis rurais com pagamento de indenização posterior ao ato. O Ato Institucional n. 10, editado em 16 de maio de 1969, impôs sanções aos aos que tiveram seus direitos políticos cassados ou suspensos com base nos atos institucionais vigentes. As consequencias ocasionariam a perda e proibição de exercício de qualquer cargo na adminsitração direta ou indireta, concessionárias ou permissionárias de seviços públicos, instituições de ensino, pesquisa e organizações consideradas de interesse nacional.

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O Ato Institucional n. 11, editado em 14 de agosto de 1969, estabeleceu a data de 30 de novembro para eleições de prefeito, vice prefeito e vereadores e manteve a exclusão da apreciação judicial dos atos praticados de acordo com suas normas e atos complementares. Neste ato também extinguiu a justiça de paz eletiva. O Ato Institucional n. 13, editado em 5 de setembro de 1969, institucionalizou o banimento ou expulsão do Brasil de qualquer cidadão que fosse considerado inconveniente para o regime. Com a edição deste ato, o regime militar endureceu mais ainda. O Ato Institucional n. 14, editado em 05 de setembro de 1969, legalizou a pena de morte aos subversivos. O Ato |Institucional n. 16, editado em 14 de outubro de 1969, mantém os ministros militares na chefia do executivo no caso de vacância de cargo. O Ato Institucional n. 17 conferiu poderes ao Presidente da República para transferir para a reserva os militares que atentassem contra a coesão das forças armadas. Em quase todos os atos institucionais foi declarada a exclusão de apreciação judicial dos atos praticados de acordo com suas normas e atos complementares decorrentes. Os atos institucionais foram revogados na emenda constitucional n. 11 em 1978, no governo Geisel. 2 O ATO INSTITUCIONAL N. 5

No ano de 1968, os militares estavam inseguros e temerosos diante dos acontecimentos internos que vigoravam em diversas classes da população. Influenciados por movimentos externos, como os protestos contra a guerra no Vietnã, nos Estados Unidos; o movimento hippie de liberdade individual e o movimento na França por melhorias educacionais. Estudantes, artistas, operários, todos se manifestavam em favor de novos ideais de liberdade, de autonomia, de mobilização, de união na luta por direitos e liberdades. Em 1967 e, principalmente, 1968, o País assistiu à reorganização do movimento estudantil e seu sucesso em arregimentar a classe média em manifestações de rua; ao renascimento do movimento operário, com as greves de Contagem e Osasco; ao deslocamento progressivo da Igreja para a oposição ao regime; 4 A constituição de 1967 era insuficiente para conter estes movimentos. Os militares estavam preocupados em perder o poder. Então, em 13 de dezembro de 1968, decidiram pela imposição de uma ordem mais eficaz e radicalmente 4. A Comissão de Alto Nível – História da Emenda Constitucional n. 01 de 1969 – Araújo, Caetano Ernesto Pereira e Maciel, Eliane Cruxên Barros de Almeida. Disponível em: – pág.13

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enérgica contra os atos de terrorismo que vinham se alastrando pelos opositores do regime e editaram o Ato Institucional N. 05. Em 13 de dezembro de 1968, foi constituído o Ato Institucional n. 05, que, entre outras arbitrariedades, decretou o recesso do Congresso Nacional por tempo indeterminado e autorizou o poder executivo a legislar sobre todas as matérias; vetou o “habeas corpus” para crimes contra a segurança nacional (ou seja, crimes políticos), proibiu as manifestações de natureza política e concedeu enormes poderes ao presidente da república, como, decretar intervenções nos Estados e Municípios sem as limitações impostas pela constituição; cassar mandatos eletivos e suspender direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de 10 anos, sem nomeação de substitutos; dispensar, aposentar e remover funcionários públicos, bem como, cerceou a competência do Poder Judiciário, excluindo de sua apreciação todos os seus atos. O ato Institucional n. 05 e os demais atos prevaleceram sobre os textos constitucionais por mais de uma década depois de sua promulgação. Somente no ano de 1978, no governo Ernesto Geisel, o AI-5 foi extinto e o “habeas corpus” restaurado. 3 PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DA Constituição Federal de 24 de Janeiro de 1967

A Constituição republicana de 1967 foi formalmente discutida, votada, aprovada e promulgada pelo Congresso Nacional que, convocado pelo Marechal Castelo Branco, no exercício da Presidência da República, se reuniu extraordinariamente para este fim. Contudo, o Congresso Nacional que deliberou sobre o referido projeto, de autoria do Ministro da Justiça, não mais se apresentava como órgão revestido de legitimidade política em razão das ofensas e arbitrariedade perpetradas pelo regime revolucionário militar. Deste modo, verdadeiramente, a promulgação deste texto constitucional pelo Congresso Nacional escondeu um verdadeiro ato de outorga constitucional. Embora fosse resultada do exercício congressual constituinte de revisão da constituição anterior, a ausência de mandato de origem popular e a submissão ao veto presidencial do Projeto de Constituição como objeto de reforma de natureza homologatória, suscitaram generalizadas impugnações, dentre elas a arguição de ilegitimidade do texto constitucional resultante desse processo de reforma estabelecido pelo Poder Executivo. Ao institucionalizar o regime militar, a Constituição de 1967 deixou o Poder Executivo em posição soberana em relação aos outros poderes,

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transformando-os, junto com a população brasileira, em meros espectadores das medidas tomadas pelos militares. Como foi debatida e votada pela Assembleia Nacional Constituinte, a Constituição de 1967, muito embora tenha sido amplamente elaborada de acordo com os interesses de quem estava no poder, pode ser considerada uma Carta Constituinte semi outorgada. Desta forma, os militares garantiam a imagem na política internacional de um país de certo modo democrático, mas a prática mostraria que o regime estabelecido no Brasil era mesmo uma ditadura. Formalmente, a Constituição de 1967 manteve a distribuição da matéria constitucional adotada na Constituição anterior: a organização e a competência dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário da União Federal; a Declaração de Direitos, nela incluídos os Direitos Políticos, os Direitos e as Garantias Individuais; a Ordem Econômica e Social; a Família, a Educação e a Cultura; as Disposições Gerais e Transitórias. Como foco central, houve o fortalecimento do Poder Executivo e da autoridade do Presidente da República. A Constituição converte o Presidente em legislador, conferindo-lhe a competência de expedir decretos-leis sobre as matérias de segurança nacional e finanças públicas, cabendo-lhe também preencher, a seu juízo, o conteúdo de uma e de outra, na falta de definição constitucional (art. 58, I e II). Ampliou-se a competência legislativa exclusiva do Presidente da República (art. 60, I, II, III e IV) e a iniciativa presidencial ficou protegida pela proibição de emendas de Deputados e de Senadores (art. 60, parágrafo único). Conforme as alegações de Raul Machado Horta (1995)5, dentre as inovações do texto, cabe mencionar o relevo conferido aos Partidos Políticos, ocupando capítulo da Declaração de Direitos (art. 149), em contraste com a breve referência da Constituição de 1946, que apenas os mencionou na passagem em que assegurou a representação proporcional dos partidos políticos nacionais (Constituição de 1946, art. 134); a criação de regiões metropolitanas, embora ficassem elas deslocadas no título da Ordem Econômica e Social (art. 157, § 10) e a introdução da figura do abuso dos direitos individuais de livre manifestação de pensamento, do livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, de reunião, de associação e dos direitos políticos, suscetível de acarretar a suspensão temporária destes direitos, por decisão do Supremo Tribunal Federal, mediante representação do ProcuradorGeral da República, prevista a licença da respectiva Câmara, quando se tratar do titular de mandato eletivo federal (art. 151, parágrafo único). A Constituição incorporou ao seu texto a figura da desapropriação da propriedade territorial rural, para fins de reforma agrária fundada no interesse 5. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 199

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social, que já havia sido objeto de emenda constitucional na vigência da Constituição de 1946. Os direitos dos trabalhadores não receberam modificação substancial em relação à Constituição de 1946, salvo na parte da participação nos lucros da empresa, que deixou de ser obrigatória e direta, como queria a Constituição de 1946 (art. 157, IV), e na participação excepcional na gestão, que a Constituição anterior desconhecia, mas, num e noutro caso, as duas Constituições condicionavam a participação à previsão em lei. As principais características do texto constitucional são as seguintes: Concentrou poderes na União e privilegiou o Poder Executivo em detrimento dos outros poderes. Baseou toda a estrutura de poder na Segurança Nacional. Reduziu a autonomia dos Municípios estabelecendo a nomeação dos prefeitos de alguns municípios pelo governador (art. 16 § 1º - Serão nomeados pelo governador, com prévia aprovação: a) da Assembléia Legislativa, os prefeitos das capitais dos Estados e dos municípios considerados estâncias hidrominerais em lei estadual; b) do Presidente da República, os Prefeitos dos Municípios declarados de interesse da segurança nacional, por lei de iniciativa do Poder Executivo). Houve a criação de uma ação de suspensão de direitos políticos e individuais (art. 151, aquele que abusar dos direitos individuais previstos nos §§ 8, 23, 27 e 28 (liberdade de pensamento, profissão e associação) do artigo anterior e dos direitos políticos, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção, incorrerá na suspensão destes últimos direitos pelo prazo de 2 (dois) a 10 (dez) anos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, mediante representação do Procurador-Geral da República, sem prejuízo da ação civil ou penal cabível, assegurada ao paciente a mais ampla defesa). Os analfabetos continuaram sem direito a voto. 3.1 Os Direitos Humanos

Comparada com a Constituição de 1946, a Constituição de 1967 apresentou graves retrocessos: • suprimiu a liberdade de publicação de livros e periódicos ao afirmar que não seriam tolerados os que fossem considerados (a juízo do governo) como de propaganda de subversão da ordem;

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• restringiu o direito de reunião facultando à polícia o poder de designar o local para realização. Usando esse poder como artifício, a polícia poderia facilmente impossibilitar a reunião; • criou a pena de suspensão dos direitos políticos, declarada pelo Supremo Tribunal Federal, para aquele que abusasse dos direitos de manifestação do pensamento, exercício de trabalho ou profissão, reunião e associação, para atentar contra a ordem democrática ou praticar a corrupção; • manteve todas as punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a égide dos Atos Institucionais. No que diz respeito aos direitos sociais, a Constituição de 1967 inovou em alguns pontos. Houve algumas inovações contrárias ao trabalhador, tais como: redução para 12 (doze) anos da idade mínima de permissão do trabalho; a supressão da estabilidade, como garantia constitucional, e o estabelecimento do regime de fundo de garantia, como alternativa; as restrições ao direito de greve; a supressão da proibição de diferença de salários, por motivo de idade e nacionalidade, a que se referia a constituição anterior. Nesta Constituição, verificam-se também algumas vantagens relacionadas aos trabalhadores, podendo citar as seguintes: inclusão, como garantia constitucional, do direito ao salário-família, em favor dos dependentes do trabalhador; proibição de diferença de salários também por motivo de cor, circunstância a que não se referia a Constituição de 1946; participação do trabalhador, eventualmente, na gestão da empresa; aposentadoria da mulher, aos 30 (trinta) anos de trabalho, com salário integral. A Constituição de 1967 não se harmonizou com a doutrina dos Direitos Humanos, pelas seguintes razões: restringiu a liberdade de opinião e expressão; deixou o direito de reunião descoberto de garantias plenas; fez recuo no campo dos direitos sociais; manteve as punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a égide dos Atos Institucionais. 3.2 o Controle concentrado de Constitucionalidade Estadual

O sistema de controle de constitucionalidade no ordenamento jurídico brasileiro consagrou a competência dos órgãos judiciários estaduais para fiscalização em abstrato da lei ou ato normativo estadual e municipal em face da Constituição Estadual.

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O primeiro relato desse sistema, embora diverso do atual modelo, ocorreu com a Emenda Constitucional 19/65 à Constituição Federal de 1946, versando sobre o controle de constitucionalidade através de Ação Direta de Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Estadual, inserindo o inciso XIII no art. 124 da Constituição de 1946. Entretanto, o referido diploma legal não foi elaborado para efetivar-se o controle de constitucionalidade no âmbito estadual. Destarte, verificase que a Constituição de 1967, bem como a Emenda 1/69, quedaram-se inertes sobre o tema. Corroborando esse entendimento é o escólio do Professor Zeno Veloso, in verbis: O art. 125, § 2º, da Constituição Federal introduz um importante avanço em nosso regime, embora devamos registrar que a Emenda Constitucional 16/65, acrescentando o inciso XIII ao art. 124 da Constituição de 1946, previu a possibilidade de a lei estabelecer processo de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município em conflito com a Constituição do Estado. Mas não chegou a ser editada a lei requerida para estabelecer o controle abstrato de constitucionalidade no âmbito dos Estados-membros. A Constituição de 1967 e a EC 1/69 silenciaram sobre o assunto. 6

Dessa forma, a legitimação para o controle abstrato de constitucionalidade estadual foi implementada pela Constituição Federal de 1988 no seu art. 125, § 2º, instituindo a possibilidade de controle concentrado pelos Estados-membros, tendo por objeto a lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição Estadual. 3.3 O Controle de Constitucionalidade na Constituição de 1967

À época da Constituição Federal de 1967, a Suprema Corte manifestavase insistentemente no sentido de que os pressupostos de urgência e relevante interesse público eram estranhos ao controle judiciário, limitando-se ao juízo discricionário do Presidente da República. Nesta esteira foi a decisão da Excelsa Corte, tendo como relator o eminente Ministro Oswaldo Trigueiro: “A apreciação dos casos de “urgência” ou de “interesse público relevante”, a que se refere o art. 58 da Constituição de 1967, assume caráter político e está entregue ao discricionarismo dos juízos de oportunidade ou de valor do Presidente da República, ressalvada a apreciação contrária e também discricionária do Congresso” . 6. VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2003.

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Na Constituição Federal de 1967, o Ministério Público encontrava-se vinculado ao Poder Executivo, inviabilizando desta forma, a independência do Procurador Geral da República, em questões de inconstitucionalidade de Lei ou atos oriundos daquele Poder. Manteve-se a característica da duplicidade dos modelos adotados no Brasil, com a preservação do controle difuso e a subsistência da representação de inconstitucionalidade (ação direta de inconstitucionalidade). Contudo, merece destaque o embate jurisprudencial e doutrinário acerca da natureza jurídica da referida representação de inconstitucionalidade: se dúplice ou não; bem como do exercício pelo Procurador Geral da República do domínio da representação: direito versus poder-dever. Primeiramente, questionou-se a legitimidade ativa exclusiva do Procurador Geral da República que possuía o direito de só encaminhar proposições formuladas por terceiros, que não ele próprio, quando entendesse de fato inconstitucionalidade apontada, e não sua obrigação em fazê-lo (poderdever) quando houvesse pelo menos sérias dúvidas sobre a constitucionalidade da lei objurgada. A emenda n. 01 manteve o controle de constitucionalidade sobre lei ou ato em tese e por via de ação. A amplitude ao controle por via de ação foi concedida pela E.C. n. 16 de 1965. 3.4 A Proteção Penal e Garantias Constitucionais

As Constituições a partir da Declaração Francesa dos Direitos do Homem vem consagrando expressamente o princípio em causa. E as nossas constituições também assim tem feito, a partir da Carta Magna de julho de 1934 que previu o inciso 27 do artigo 113. Mesmo a Constituição outorgada de 10 de novembro de 1937 entendeu que “as penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anteriores”. A Constituição de 1946 previu a irretroatividade dispondo que a lei penal “só retroage quando beneficiar o réu”. A irretroatividade da lei penal está prevista, também, no inciso XVI do artigo 150 da Constituição de 1967, e no inciso XV do artigo 153 da Emenda Constitucional nº 1 de 17 de outubro de 1969. Também consagrou a irretroatividade da lei penal, a atual Constituição ao dispor no inciso XL do artigo 5º que “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”. Duas regras novas surgiram na Constituição de 1967. A primeira, para impor a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário (art. 150, § 14). A segunda, com repercussão profunda na

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concepção liberal dos direitos fundamentais, para introduzir a noção do abuso dos direitos fundamentais, a noção do abuso dos direitos individuais e dos direitos políticos. A formação de uma aparente legalidade fez com que o regime incluísse na Constituição Federal de 1967 um capítulo reservado aos direitos e garantias fundamentais, que, contudo não passavam de meras disposições formais, visto que estavam permeados de ressalvas que davam vazão a arbitrariedades, aumentando a sensação de que sua aplicabilidade seria obstada. Mas, as Constituições de 1946 e de 1967 voltam a consagrar os direitos e garantias individuais, bem como os referentes à nacionalidade e aos direitos políticos. A constituição de 67 previa a soberania da instituição do júri, que foi retirada na emenda de 69, subentendendo-se que as decisões do júri pudessem ser reexaminadas e reformadas por outro tribunal. 3.5 o Pensamento Cristão

A Constituição Federal de 1967 no inciso II do artigo 9º reza: “À União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios é vedado: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o exercício ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada a colaboração de interesse público, na forma e nos limites da lei federal, notadamente no setor educacional, no assistencial e no hospitalar”. A Carta atual não fala sobre a liberdade de crença, que está implicitamente garantida em outros artigos da mesma. A liberdade de culto nesta Constituição é assegurada assim como nas outras constituições republicanas. Segundo Pontes de Miranda7, a personalidade jurídica das associações religiosas é assegurada conforme a lei, respeitado o § 28 do artigo 153, que reza: “É assegurada a liberdade de associação para fins lícitos. Nenhuma associação poderá ser dissolvida, senão em virtude de decisão judicial”. Ainda segundo o mesmo autor, temos, pois, mais do que simples garantia de que a lei regulará a aquisição de bens por parte das associações religiosas. Nota-se que a Constituição de 1967 trata igualmente do assunto em relação à de 1946, já que esta estabelecia as associações religiosas seguiriam as outras espécies de associações. 7. MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à constituição de 1967. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1967.

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Quanto à regulamentação dos casamentos, graças às emendas 862, de Adauto Cardoso, e 889, de Arruda Câmara, foram inseridos no Texto Constitucional de 1967 os dois parágrafos dedicados ao reconhecimento civil do casamento religioso, substancialmente idênticos aos § § 1º e 2º do artigo 163 da Constituição de 1946, explicitação do artigo 146 da Carta Magna de 1934, ficando válido para eles os comentários feitos na ocasião. 3.6 o Meio Ambiente

A Constituição Federal de 1967 não possuía capítulo específico sobre meio ambiente, apresentando dispositivos dispersos tratando sobre recursos minerais, florestas, caça e pesca, águas, etc, cuja competência legislativa pertencia tão somente à União, nos termos do art. 8º, inciso XVII. Os Estados federados não possuíam competência alguma, ainda que de forma suplementar, para dispor sobre tais matérias (art. 8º, § 2º, da Carta de 1967). Apesar de cronologicamente anteriores, o de Águas (Decreto-Lei nº 852, de 11/11/1938), o Florestal (Lei nº 4.771, de 15/09/1965), o Código da Caça (Lei nº 5.197, de 03/01/1967), o Código de Pesca (Decreto-Lei nº 221, de 28/02/1967), o Código de Mineração (Decreto-Lei nº 227, 28/02/1967) e o Código Brasileiro de Ar (Lei nº 6.833, de 30/09/1980) não são, em regra, considerados como normas propriamente de tutela do meio ambiente, vez que tratam apenas incidentalmente do tema (Cf. HORTA, 1995, p. 304/305). Não obstante o autoritarismo do regime político presidencial, a Constituição de 1967 não teve a vigência duradoura que se augurava, pois recebeu em 17 de outubro de 1969 a Emenda Constitucional nº 01, outorgada pelos Ministros da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. A Emenda foi precedida pela edição do Ato Institucional N. 5, o mais duro instrumento do regime militar cuja primeira consequência foi o fechamento do Congresso. 4 a Emenda Constitucional n. 01

Em agosto de 1969, o presidente Costa e Silva, doente, foi substituído por uma Junta Militar, a qual, em setembro, decretou a Lei de Segurança Nacional, que entre outras medidas previa o exílio, a pena de morte e a prisão perpétua em casos de “guerra psicológica adversa ou revolucionária ou subversiva”. Em 30 de outubro de 1969, o Presidente General Emilio Garrastazu Médici foi empossado pela Junta Militar. Seu governo foi considerado o mais obscuro

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de todos, a “linha dura” transformou-se em “anos de chumbo”, como ficou conhecido seu governo. A censura tornou-se severa e todas as formas de expressão artística foram reprimidas. Jornais, revistas, livros, músicas, cinema e teatro, eram investigados, julgados e censurados. Políticos, jornalistas, artistas, músicos, escritores e intelectuais foram vítimas de prisão, tortura e banimento do país, condenados ao exílio. Princípios democráticos, como direito de defesa, foram eclipsados da ordem jurídica. A ideia de centralismo federativo objetivava não perderem os detentores do poder sua capacidade de governar, lembrando-se que os governadores de estado eram escolhidos pelo presidente da república e os prefeitos das capitais, pelos governadores8.

O quadro político havia se desviado por completo da finalidade da constituição de 1967 e os militares começaram a sentir necessidade de uma legitimidade formal. Não foi, portanto, o desejo de aperfeiçoar a Constituição que determinou o início do processo de revisão. Responsabilizada pela crise que culminou no AI 5, a carta de 67 “voltou ao estaleiro para que fosse reajustada ao novo surto revolucionário, assegurando-se nível constitucional, ainda que transitório, a disposições políticas de exceção.”9 Mas para a reforma, os militares queriam contentar os simpatizantes do regime e os que defendiam o abrandamento do regime, chamaram, então, para iniciar os estudos da reforma, um civil, Pedro Aleixo, na época Vice Presidente da República, que consultou juristas, políticos e entidades de classe para promover um primeiro estudo. Para redigir a emenda, reuniu uma comissão constituinte que ficou conhecida como a “comissão de notáveis”, com a intenção de restaurar a legitimidade no governo. Era composta pelo ministro Hélio Beltrão, ministro do Planejamento na época; e juristas como Temístocles Brandão Cavalcante, Miguel Reale e Carlos Medeiros, na época ministro do STF. Equilibrar-se entre duas correntes antagônicas, a da linha dura e a dos que defendiam o abrandamento da revolução, parece ter sido a tarefa que Costa e Silva se impôs, quando pediu a Pedro Aleixo, naquele momento, que colhesse subsídios para a reforma da Constituição de 24 de janeiro de 1967. Pretendia reabrir o Congresso, promover a reorganização partidária e o fim dos atos de exceção. 10 8. As Constituições Brasileiras. Texto de Martins, Ives Gandra – pág. 73 9. A Comissão de Alto Nível – História da Emenda Constitucional n. 01 de 1969 – Araújo, Caetano Ernesto Pereira e Maciel, Eliane Cruxên Barros de Almeida. Extraído do site: – pág.16. 10. Idem.

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Com respaldo nos poderes obtidos pelo ato complementar nº 38, de 13 de dezembro de 1968, que decretou o recesso do Congresso Nacional, o Poder Executivo ficou autorizado a legislar sobre todas as matérias, conforme disposto no AI5, e estando a elaboração de emendas compreendida no processo legislativo, de competência do Poder Executivo, a Junta Militar governante promulgou a E.C. n. 01, alterando substancialmente a constituição de 1969. A emenda constitucional n. 01 de 1969 foi promulgada em 17 de outubro de 1969. Acrescentou à constituição de 1967 vinte e oito artigos, sendo vinte deles no capítulo das Disposições Transitórias. Posteriormente, outras emendas foram promulgadas, em um total de vinte e sete emendas, sendo as três últimas datadas do ano de 1985, com o Ilustre Parlamentar, Dr. Ulysses Guimarães, pai do movimento “Diretas Já”, na presidência da Câmara dos Deputados. A primeira alteração da emenda n. 01 reside na denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil. Mudanças foram promovidas no capítulo dos três poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário. Quanto ao poder legislativo, a emenda de 1969 ampliou e criou novas regras de moralidade do poder legislativo. No artigo 35, que trata das hipóteses de perda de mandato, aumentou o número mínimo de sessões que cada deputado deve comparecer anualmente; previu a infidelidade partidária e acrescentou normas disciplinadoras incompatíveis com o decoro parlamentar. O artigo 32 também incluiu entre as regras de inviolabilidade do exercício do mandato, as hipóteses previstas na Lei de Segurança Nacional e casos de injúria, difamação e calúnia. Porém, inovou concedendo a competência para julgamento dos crimes comuns praticados pelos parlamentares ao Supremo Tribunal Federal. O Senado Federal teve suas competências estendidas no artigo 42. Imunidades parlamentares foram extintas com a modificação do artigo 34 da Constituição de 67 para o artigo 32 da E.C. n. 01 de 69. No poder executivo, o prazo de mandato para Presidente da República foi ampliado de quatro para cinco anos. Houve o estabelecimento de eleições indiretas para o cargo de Governador de Estado que passaram a ser eleitos em sessão pública na Assembleia Legislativa, seguindo o modelo de escolha para Presidente e Vice Presidente que eram escolhidos pelo Congresso Nacional. A nova carta, além de ampliar ainda mais os poderes do Executivo, restringiu a representação e as liberdades democrática já contrárias., conforme preceituou o acrescentado artigo 181, in verbis:

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Art. 181. Ficam aprovados e excluídos de apreciação judicial os atos praticados pelo Comando Supremo da Revolução de 31 de março de 1964, assim como: I - os atos do Governo Federal, com base nos Atos Institucionais e nos Atos Complementares e seus efeitos, bem como todos os atos dos Ministros Militares e seus efeitos, quando no exercício temporário da Presidência da República, com base no Ato Institucional nº 12, de 31 de agosto de 1696; II - as resoluções, fundadas em Atos Institucionais, das Assembléias Legislativas e Câmaras Municipais que hajam cassado mandatos eletivos ou declarado o impedimento de governadores, deputados, prefeitos e vereadores quando no exercício dos referidos cargos; e III - os atos de natureza legislativa expedidos com base nos Atos Institucionais e Complementares indicados no item I.

Por comando supremo da revolução entende-se a junta militar constituída pelos comandantes e chefes de Exército, da Marinha e da Aeronáutica que assumiu o poder após a deposição do presidente João Goulart. Portanto, conclui-se que as medidas tomadas nesta época foram trazidas e incorporadas ao ano de 1969. No Poder Judiciário, a emenda constitucional incluiu entre os órgãos do Poder Judiciário, os Juízes e Tribunais Estaduais. Também instituiu o procedimento sumaríssimo para processo e julgamento. A autonomia e competência do Poder Judiciário foram restabelecidas e fortificadas com a inclusão dos Tribunais e Juízes estaduais. O STF teve sua competência ampliada com o processo e julgamento nos crimes comuns dos deputados, senadores, ministros de Estado e procurador-geral da República, bem como das causas e conflitos em que forem partes órgãos da administração indireta. O artigo 19 passou a abranger, ainda, além dos mandados impetrados pela União contra atos do governo estadual, os que forem solicitados contra ato do Procurador Geral da República e do Conselho Nacional da Magistratura. Por outro lado, o inciso III do artigo 119, permitiu ao STF que discriminasse entre os casos enumerados na alínea “a” e “d” , segundo a natureza da causa, espécie ou valor pecuniário, aceitando como extraordinário, apenas alguns desses casos. Esta alteração foi de supra importância, pois desafogava o órgão supremo de apreciar causas de menor significação. A emenda n. 01 incluiu os excepcionais na proteção do estado que se obrigou à assistência na educação. Também foram instituídas as bolsas de estudo e o princípio da liberdade de comunicação de conhecimentos no exercício do magistério. A emenda constitucional n., 01 também acrescentou ao artigo 153 o parágrafo 34, in verbis:

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§ 34. A lei disporá sobre a aquisição da propriedade rural por brasileiro e estrangeiro residente no país, assim como por pessoa natural ou jurídica, estabelecendo condições, restrições, limitações e demais exigências, para a defesa da integridade do território, a segurança do Estado e justa distribuição da propriedade

Não havia no direito anterior, preceito equivalente que regulasse e coibisse a aquisição de terras por estrangeiros no Brasil, prejudicando a integridade do território nacional e colocando em risco a segurança nacional. A Constituição de 1967 vigorou durante o restante do regime militar como órgão máximo da antidemocracia. Só foi substituída em 1988, quando a ditadura já havia acabado. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição Federal de 1967 foi a sexta do Brasil e a quinta da República. Buscou institucionalizar e legalizar a ditadura militar, aumentando a influência do Poder Executivo sobre o Legislativo e Judiciário e criando desta forma uma hierarquia constitucional centralizadora. Os militares assumiram o poder através de um golpe de estado e para legitimar juridicamente o regime ditatorial adotado passaram a governar através de atos institucionais opressores que restringiam direitos e liberdades asseguradas na constituição de 1946. Foram editados 17 Atos Institucionais e 104 atos complementares, que legitimaram a autoridade dos ditadores. Em outros aspectos, a constituição de 67 manteve o sistema anterior implantado pelas constituições passadas, com algumas alterações nos direitos trabalhistas. A emenda n. 01 de 1969 não alterou o modelo da constituição de 67, ampliou ainda mais os poderes do executivo restringindo liberdades democráticas já contrárias. Porém, foi a primeira a tutelar os portadores de deficiência. As cartas de 67 e de 69 foram constituições substancialmente semânticas, embora consagrassem em seus textos direitos e garantias individuais, na realidade ocultavam perseguições, punições, exclusões e marginalizações políticas decretadas sob a égide dos Atos Institucionais, uma legislação de ordem constitucional com o objetivo específico de combate à subversão e à corrupção.

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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 32.ed. São Paulo: Malheiros, 2009. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. VELOSO, Zeno. Controle jurisdicional de constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2003. Sites pesquisados

Senado federal: www.senado.gov.br Planalto: www.planalto.gov.br

CAPÍTULO VII

a CoNStItuIÇÃo DE WEIMaR E Sua INFluÊNCIa NaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS

Daniela Dias Graciotto Martins Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Juíza Substituta do Estado de São Paulo (TJ-SP).

Thiago de Barros Rocha Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogado.

INTRODUÇÃO

A evolução histórica dos direitos fundamentais se confunde com a evolução do conceito e da função do Estado e se mistura com o próprio advento do constitucionalismo moderno e, posteriormente, com o início do constitucionalismo social. A ideia de direitos fundamentais remonta ao advento do Estado e das teorias constitucionalistas dos séculos XVII e XVIII que, com o objetivo específico de justificar e legitimar a criação da figura estatal, acentuavam que o soberano deveria exercer sua autoridade com submissão aos direitos de cada homem, o que simbolizava o advento da importante pensamento de supremacia do indivíduo sobre o Estado. Neste contexto surgiram os Estados Liberais, que na defesa do cidadão contra indevidas ingerências do poder estatal, asseguraram uma esfera

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indevassável de proteção ao indivíduo, através da criação dos chamados direitos fundamentais de primeira dimensão. O passar do tempo e a consequente alteração da realidade social fizeram com que a mera garantia de direitos a serem exercidos contra o Estado não fosse mais satisfatória para permitir a plena realização do indivíduo em seu ambiente. Desta feita, as previsões contidas nas Cartas Constitucionais de modelo clássico não eram suficientes. Em preenchimento àquela insuficiência surgiu a Carta Constitucional alemã de 1919, a Constituição de Weimar, que por suas disposições de conteúdo eminentemente social inaugurou o constitucionalismo social na Alemanha. A análise da Constituição de Weimar e dos direitos fundamentais sociais nela positivados revelam o início do Constitucionalismo Social. A positivação estruturada de valores revestidos de fundamentalidade constitucional deram à Constituição alemã de 1919 a característica de preponderância em tema de inauguração da fase do constitucionalismo social. O estudo do momento socioeconômico e político do Estado alemão quando da sua promulgação permite a compreensão dos seus enunciados constitucionais, bem como a falta de eficácia plena de seus dispositivos. Mesmo com um período curto de vigência (1919-1933), a Constituição de Weimar inspirou a edição de Constituições em variados lugares do mundo, donde o Estado brasileiro, com a Constituição de 1934, é um concreto exemplo das prescrições e aspirações sociais alemãs e sua influência mundial. A Constituição Federal de 1934 inaugurou no constitucionalismo nacional a previsão de um capítulo acerca da Ordem Econômica e Social e, assim como a Constituição de Weimar, inaugurou em texto formal escrito a previsão de direitos sociais. A história nos lembra que a Constituição brasileira não teve tempo hábil de efetivar suas prescrições, tampouco incutir no conhecimento do povo brasileiro a extensão dos direitos que lhes foram, constitucionalmente, assegurados. Com vigência até 1937, a Constituição brasileira de 1934 foi uma “ilusão constitucional”, porém, suas prerrogativas foram plantadas e, com a redemocratização do Brasil em 1946, as prescrições fundamentais sociais atravessariam crises políticas até retornar e se firmar com a Constituição brasileira de 05 de outubro de 1988.

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1 Do surgimento dos direitos sociais no constitucionalismo – momento histórico na Alemanha e no Brasil nas promulgações da Constituição de Weimar e da Constituição Brasileira de 1934 1.1 O estado alemão e a Constituição de Weimar

O período conhecido como República de Weimar iniciou-se após o término da Primeira Guerra Mundial1 e perdurou até o início do ano de 1933, com a indicação de Hitler ao posto de chanceler da Alemanha (29/01/1933) e decretação da Lei Plenipotenciária (24/03/1933). A República de Weimar foi proclamada em data de 09 de novembro de 1918 por Scheidemann, com a transmissão da Chancelaria pelo Príncipe Max Von Baden a Friedrich Ebert, então líder do Partido Social Democrata (SPD) do Estado Alemão2. Para o dia 19 de janeiro de 1919 restou determinada a realização das eleições que objetivavam o preenchimento de 421 cadeiras para o Congresso Constituinte3. A cidade de Weimar, na Turíngia, foi escolhida para sediar o Congresso por ser geograficamente afastada de Berlim, o que traria tranquilidade aos Constituintes (condição também assegurada com o destacamento de seis mil homens do exército alemão). Em 21 de fevereiro de 1919, Hugo Preuss enviou o projeto de Constituição por ele redigido para a Constituinte. Seu projeto, o quarto elaborado e apresentado, não continha um capítulo sobre direitos fundamentais, “era neutro politicamente”4. A omissão foi voluntária e consciente, pois Preuss receava que disputas ideológicas em torno das diferentes visões dos direitos fundamentais ameaçassem a unidade nacional e a organização democrática do povo alemão. Foi com base na proposta de Friedrich Naumann que a Assembleia Constituinte acrescentou no projeto da Constituição a parte que dispunha sobre direitos e deveres do povo alemão. A votação final da Constituição foi feita em 31 de julho de 1919, donde dos 421 deputados, 338 participaram, tendo a Constituição sido aprovada por 262 votos, contra 75 e 01 abstenção. Em 11 de agosto de 1919 o Gabinete 1. A 1ª Grande Guerra perdurou de 04 de agosto de 1914 a 11 de novembro de 1918. 2. Marco Aurélio Peri Guedes. Estado e Ordem Econômica e Social. A experiência constitucional da República de Weimar e a Constituição Brasileira de 1934. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 42 3. Oportuno anotar que para naquelas eleições votaram pela primeira vez soldados e mulheres e que compareceram às urnas 37 milhões de pessoas (87% dos eleitores cadastrados). 4. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 28.

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parlamentar promulgou a Constituição da República de Weimar, que entraria em vigor no dia 14 de agosto de 1919. Nas palavras de Jorge Miranda, a Constituição de Weimar: (...) pode considerar-se o mais importante texto nessa altura concebido e espelha bem toda a mudança no modo de encarar os problemas políticos, sociais e econômicos do século XIX para o século XX. O seu interesse é múltiplo, quer no plano sistemático quer no da experimentação constitucional; e, por isso, ficaria registrada na história e no direito comparado. 5

A Constituição de Weimar, sem contar com as disposições finais e transitórias, era composta de 165 artigos (dos quais 56 tratam de direitos fundamentais), divididos em dois livros. O Livro I, relativo à “Estrutura e Fins da República” e o Livro II, pertinente aos “Direitos e Deveres Fundamentais do Cidadão Alemão”. O Livro I dividiu-se em sete capítulos, a saber: Capítulo I (República e os Estados); Capítulo II (O Parlamento); Capítulo III (O Presidente da República e o Governo Federal); Capítulo IV (O Conselho da República); Capítulo V (A Legislação da República); Capítulo VI (A Administração da República) e Capítulo VII (A Administração da Justiça). Por sua vez, o Livro II estabeleceu os direitos e deveres do povo alemão, com a divisão em cinco capítulos: Capítulo I (A pessoa individual); Capítulo II (A vida social); Capítulo III (Religião e agrupamentos religiosos); Capítulo IV (Educação e escola) e Capítulo V (A vida econômica). Era traço comum às constituições elaboradas após o final da Primeira Guerra Mundial a declaração, ao lado dos tradicionais direitos individuais, de direitos ligados ao princípio da igualdade material que, para sua concretização, dependiam de prestações diretas ou indiretas do Estado para serem usufruídos pelos cidadãos, os chamados direitos sociais. A Constituição de Weimar consagrou o Constitucionalismo Social ao elencar as disposições referentes aos direitos fundamentais de liberdade do indivíduo (indivíduo contra o Estado) em somatório com os direitos de natureza social (indivíduo enquanto membro de uma coletividade, exercendo direitos através do Estado)6. Com aquele posicionamento, o Estado alemão reconheceu como necessária sua intervenção na sociedade para que os indivíduos pudessem 5. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. 4ª Ed. Coimbra: Ed. Coimbra, p. 206. 6. PINHEIRO, Maria Cláudia Bucchianeri. A constituição de Weimar e os direitos fundamentais sociais: a preponderância da Constituição da República Alemã de 1919 na inauguração do constitucionalismo social, à luz da Constituição mexicana de 1917. Jus Navigandi, Teresina, ano 10, n. 1192, 6 out. 2006. Disponível em http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp/id=9014. Acesso em 12 out. 2010.

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desfrutar de seus direitos e suas garantias, garantindo aos cidadãos o respeito às liberdades clássicas de que eram titulares, conferindo assim natureza social ao ordenamento constitucional. Através da Constituição de Weimar o Estado alemão reconheceu que, além de uma conduta negativa assumida em tema de liberdades públicas, deveria também intervir no seio da coletividade para, mediante ações positivas, promover a igualdade material e permitir que todos exercessem, em iguais oportunidades, todos os direitos previstos em sede constitucional. Desta feita, a Constituição de Weimar buscou legitimar a República por meio da democracia e do Estado Social7. De acordo com o jurista Richard Thoma, referido por Gilberto Bercovici, a democracia da Constituição de Weimar era uma democracia na forma e na substância, pois buscava a incorporação das classes trabalhadoras no Estado com base na emancipação política completa e na igualdade de direitos8. Afinal, novas prerrogativas foram reconhecidas em favor dos indivíduos que, distantes de afastarem as já existentes, vieram a complementá-las, reunindo, no texto constitucional, a previsão de direitos de primeira e segunda dimensão, visando a emancipação política e a igualdade de direitos dos alemães9. No entanto, o caráter programático dos dispositivos econômicos e culturais e a mistura de valores e concepções sociais e filosóficas distintas, acabou por causar o fracasso na tentativa de criação de um sistema de direitos fundamentais que não fosse ambíguo, facilitando, assim, a sua não concretização por parte dos poderes políticos. Nestes termos, é acertado afirmar que o pensamento constitucional surgido 7. Segundo Paulo Bonavides (Do Estado Liberal ao Estado Social. 9ª Ed. São Paulo: Editora Malheiros, 2009, p. 186), quando o Estado, coagido pela pressão das massas, pelas reivindicações que a impaciência do quarto estado faz ao poder político, confere, no Estado constitucional ou fora deste, os direitos do trabalho, da previdência, da educação, intervém na economia como distribuidor, dita o salário, manipula a moeda, regula os preços, combate o desemprego, protege os enfermos, dá ao trabalhador e ao burocrata a casa própria, controla as profissões, compra a produção, financia as exportações, concede crédito, institui comissões de abastecimento, prevê necessidades individuais, enfrenta crises econômicas, coloca na sociedade todas as classes na mais estreita dependência de seu poderio econômico, político e social, em suma, estende sua influência a quase todos os domínios que dantes pertenciam, em grande parte, à área de iniciativa individual, nesse instante o Estado pode, com justiça, receber a denominação de Estado social. 8. BERCOVICI, Gilberto. Constituição e Estado de Exceção Permanente. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, p. 25 9. A expressão “dimensão”, sob o comentário de Jorge Miranda, é esclarecedora quanto à extensão e complementaridade das prerrogativas asseguradas ao povo alemão com a Constituição de Weimar. Afirma o mestre que “Conquanto esta maneira de ver possa ajudar a apreender os diferentes momentos históricos de aparecimento de direitos, o termo geração, geração de direitos, afigura-se enganador por sugerir uma sucessão de categorias de direitos, umas substituindo-se às outras – quando, pelo contrário, o que se verifica em Estado social de direito é o enriquecimento crescente em resposta às novas exigências das pessoas e das sociedades. Nem se trata de um mero somatório, mas sim de uma interpretação mútua, com a consequente necessidade de harmonia e concordância prática”, in Manual de Direito Constitucional, 3ª Ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2000, Tomo IV, p. 22.

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em Weimar pecou pelo baixo grau de eficácia dos dispositivos constitucionais programáticos de sua Constituição. Em contribuição ao baixo grau de eficácia da Constituição de Weimar está o fato que no final do mês de junho de 1919 havia sido assinado o Tratado de Versalles e sua repercussão junto ao povo alemão foi imediata e, por trazer consequências graves e concretas, ocupava maior espaço na preocupação popular. Nas palavras de Reinhard Rurup, A finales de junio había sido firmado el Tratado de Versalles, el 31 de julho fue aprobada La Constitución. Las disposiciones del tratado de paz parecían concretas em demasia y de graves consecuencias, los artículos de la Constitución, por el contrario, parecian abstractos y sin consecuencias inmediatas. La mayoría del pueblo hablaba del dictado de la paz y no de la Constitución. 10

Por fim, consolidando o processo de erosão constitucional, em data de 29 de janeiro de 1933 Hitler é indicado Chanceler da Alemanha e, em 24 de março de 1933, é decretada a Lei Plenipotenciária. 1.2 O Brasil na década de 30 e a Constituição Federal de 1934

No início dos anos 30, em razão do sistema eleitoral ineficiente e inadequado e a crise do federalismo, questões não resolvidas com a reforma do texto constitucional vigente (Constituição Federal de 1891) abalavam a estabilidade da política brasileira. Surgiram também movimentos sociais que reivindicavam melhores condições de vida, trabalho e distribuição de renda, bem como o desejo de fim do modelo agrário e seu poder na sociedade brasileira. Ao tecer comentários acerca dos acontecimentos daquela época, Nelson de Souza Sampaio informa que o espírito de renovação surgira principalmente das fileiras militares, por ocasião do florescimento do movimento Tenentista nas jornadas de 1922 e 192411. Com a Revolução de 3 de outubro de 1930, a política do café-com-leite, tradicional à época, encontrara seu fim, ocorrendo seu desenlace vinte e um dias após seu início, com a deposição, pelos militares, do presidente Washington Luís. Deposto o presidente, o poder de fato do Estado ficou nas mãos da chamada “Junta Pacificadora”, no Rio de Janeiro, que era composta por Tasso Fragoso, Mena Barreto e Isaías de Noronha. Em data de 3 de novembro de 1930, o poder é transmitido a Getúlio Vargas, candidato derrotado na eleição realizada 10. CARRERA ARES, Juan Jose & Reinhard Rurup. Génesis y fundamentos de la Constitución de Weimar, El Estado Alemán (1870-1992). Madrid: Marcial Pons, 1992, p. 125. 11. A revolução de 1930 e seu legado político. Revista de Informação Legislativa, n. 72, out. a dez. 1981, p. 32

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em 1º de março de 1930. Em 11 de novembro de 1930, através do Decreto nº 19.398, a então Constituição vigente (1891) é suspensa pelo governo. Sob bases políticas frágeis, fazia-se necessário conferir legitimidade ao governo, o que se aspirava trazer com a elaboração de uma Constituição capaz de traduzir as aspirações nacionais mediante a renovação jurídica e social do Estado brasileiro. A primeira atitude de Getúlio Vargas no sentido da renovação jurídica do Estado ocorre com a edição do Decreto nº 19.459, em fins de 1930, pelo qual foi constituída uma Comissão Legislativa que ficou encarregada de rever a legislação brasileira e elaborar codificações para os mais diversos setores da economia. Após, mediante o Decreto nº 21.402, de 14 de maio de 1932, é nomeada uma comissão para elaboração de um anteprojeto da Constituição que deveria atender não só as demandas da sociedade brasileira naquele momento, mas também enunciar Direitos Fundamentais Sociais. É a intitulada Comissão do Itamaraty. Como ocorrido na Constituição de Weimar, o anteprojeto elaborado pela Comissão do Itamaraty dedicou partes especiais dos dispositivos constitucionais à família e à educação, bem como à segurança nacional e à ordem econômica e social. Aos três dias do mês de maio são realizadas as eleições e eleitos 254 constituintes e, por força do Decreto nº 23.102, de 19 de agosto de 1933, é marcado para o dia 15 de novembro a instalação da Assembleia Nacional Constituinte, no Palácio Tiradentes, na Capital Federal. Iniciado o período de votação do Projeto do Itamaraty, que compreendeu o período de 7 de maio a 9 de junho, resultando a redação final do projeto nº 1-B, que posto em votação, é aprovado em plenário pelos constituintes, surgindo a nova Constituição brasileira, promulgada em data de 16 de julho de 1934. Segundo Marco Aurélio Peri Guedes, A Constituição brasileira resultaria em uma constituição modernizante, avançada demais para o seu contexto social. Nos dois casos sob estudo comparado, Brasil e Alemanha, a experiência demonstrou estarem ambas à frente não só de seu tempo, mas da sociedade e da própria elite política encarregada de cumpri-la.12

Composta de 187 artigos e mais 26 artigos das Disposições Constitucionais Transitórias, a Constituição Federal de 1934 traz como a mais importante de 12. Estado e ordem econômica e social: a experiência constitucional da República de Weimar e a Constituição brasileira de 1934. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 106

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todas as suas mudanças, a inserção de um Capítulo da Ordem Econômica e Social, inaugurando tais matérias na ordem constitucional brasileira. Ao assimilar muitos dos direitos sociais criados pela Constituição de Weimar, o Estado brasileiro não mais poderia ficar omisso quanto à implementação de prestações positivas que visassem a concretização dos direitos dos indivíduos, fixando a obrigação de que deveria se pautar conforme as metas traçadas pela Constituição e atuar positivamente na solução dos problemas sociais. A Constituição brasileira de 1934 incorporou em seu texto disposições inauguradas em sede constitucional pela Constituição alemã de 1919, bem como assimilou valores da sociedade alemã. Exemplo da assimilação de valores alemães é a manifestação nacionalista contida no Preâmbulo da Constituição brasileira de 1934, que ao mencionar “que assegure a Nação a unidade” assemelha-se à expressão “uno em seus componentes étnicos”, contida no preâmbulo da Constituição de Weimar. As semelhanças seguem e não se limitam às questões sociais, pois a ordem econômica brasileira é fortemente influenciada pela Constituição de Weimar. Neste aspecto, compete assinalar o art. 151 da Constituição alemã e o art. 115 da Constituição brasileira, os quais asseveram que a ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da justiça. Ainda, o art. 153 da Constituição de Weimar e o art. 113 da Constituição brasileira, que dispensam proteção à propriedade privada, com a ressalva da possibilidade de expropriação em virtude de interesse social e em prol da coletividade. Ocorre que, assim como acontecido com a Constituição alemã de 1919, a Constituição brasileira de 1934 teve que acomodar, num mesmo texto constitucional, princípios de democracia social e liberalismo econômico. Esta acomodação de projetos políticos tão diversos fizeram da Constituição brasileira uma colcha de retalhos, colocando lado a lado, assim como a Constituição de Weimar, princípios ideológicos antagônicos13. Porém, conquanto a Constituição de Weimar tenha resistido por quase catorze anos, a Constituição brasileira de 1934 não teve vigência sequer por três anos, pois sepultada pela Ditadura implantada por Getúlio Vargas em 1937. Assim, o sonho brasileiro de justiça social foi ofuscado pelo autoritarismo de 1937, e a Constituição Federal de 1934, avançada demais para a sociedade brasileira, não foi cumprida por oposição das elites políticas da época. Apesar de ter previsto um título específico para a ordem econômica, ali incluindo, pela primeira vez, os direitos sociais, tímida foi a evolução na previsão 13. GUEDES. Opus Cit., p. 118.

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dos direitos sociais no constitucionalismo brasileiro, até que na Constituição de 1988 foram eles previstos em capítulo próprio. Passa-se, assim, à análise da evolução de alguns destes direitos nas Constituições brasileiras, à luz da Constituição de Weimar, analisando ainda a sua efetividade. 2 A concretude dos direitos sociais no ordenamento jurídico brasileiro influenciados pela Constituição de Weimar

A eficácia dos direitos sociais está condicionada à definição, execução e implementação das chamadas “políticas públicas”, ou seja, mediante a regulamentação – por atos legislativos e administrativos – e a efetiva prestação de serviços públicos. Cabe, assim, em um primeiro momento, ao legislador ordinário propiciar um nível adequado de concretização às normas programáticas relativas a direitos sociais constantes do texto constitucional, e ao governante, em um segundo momento, executá-las. Não se pode olvidar que as normas programáticas definem metas e finalidades, carecendo de eficácia plena, mas possuindo certo grau de eficácia. Possuem caráter diretivo, sendo que “a legislação, a execução e a própria jurisdição ficam sujeitas a esses ditames, que são como programas dados à sua função”.14 Leciona José Afonso da Silva que as normas programáticas têm eficácia jurídica imediata, direta e vinculável, pois: I - estabelecem um dever para o legislador ordinário; II - condicionam a legislação futura; III - informam a concepção do Estado e inspiram a sua ordenação jurídica; IV – conferem sentido teleológico para a interpretação, integração e aplicação das normas jurídicas; V - condicionam a atividade discricionária da Administração e do Judiciário; e VI - criam situações jurídicas subjetivas de vantagem ou desvantagem. 15 Ainda que se admita aplicabilidade imediata aos direitos sociais estabelecidos pela Constituição, por se revelarem direitos fundamentais16, é de comum senso a conclusão exposta por Andréas Krell: Encontram-se em contradição flagrante a pretensão normativa dos Direitos Fundamentais Sociais e o evidente fracasso do Estado brasileiro 14. KRELL, Andréas. Direitos Sociais e Controle Judicial no Brasil e na Alemanha, Ed. Sergio A. Fabris, Porto Alegre, 2002, p. 20. 15. SILVA, José Afonso, Aplicabilidade das Normas Constitucionais, Malheiros Editores, 3 ed., São Paulo: 1998, p. 138. 16. Defende Sérgio Iglesias Nunes de Souza, na obra citada, p. 139, que o direito à moradia “é um direito absoluto, pois pertence ao indivíduo, logo, de primeira geração. Entretanto, também é direito de segunda geração, por se tratar de um direito social, sobretudo, por estar previsto no art. 6º da CF/88. E, por fim, é um direito de terceira geração, pois o bem jurídico (moradia) é indivisível, tratando-se também de um direito difuso, conforme preceitua o inciso I do art. 81 do CDC”.

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como provedor dos serviços essenciais para a vasta maioria da sua população.17

Daí o entendimento crescente na jurisprudência pátria de que, frente às omissões do Poder Legislativo e Executivo para a implementação dos direitos sociais constitucionalmente assegurados através da prestação individualizada de serviços aos cidadãos, caberia ao Poder Judiciário, uma vez acionado, determinar ações no caso concreto, estabelecendo direitos e obrigações. Segundo este entendimento, não haveria desrespeito ao princípio da Separação dos Poderes ante a ocorrência de omissão inconstitucional. Sobre as mencionadas “políticas públicas”, cabe assinalar que são objetivos previamente definidos em razão dos meios possíveis e adequados para o alcance da finalidade última perseguida pelo Estado: o bem comum. Submetem-se estes objetivos a dois elementos, o fático e o normativo18. O elemento normativo diz respeito às regras normativas que disciplinam ações políticas de forma impositiva, e o fático se revela, por exemplo, no processo político de escolha de prioridades para o governo. Luiza Cristina Fonseca Frischeisen menciona que “as políticas públicas da ordem social traçadas na Constituição Federal já possuem mecanismos legais para aplicabilidade. Portanto, a função de implementação, hoje, cabe muito mais aos administradores do que aos legisladores”19. No entanto, como bem anotado por Andréas Krell20, conferiu o constituinte autonomia ao legislador ordinário na definição da forma e medida em que o direito social deve ser assegurado (“livre espaço de conformação”), o que permite diversas concretizações, consoante as alternativas periodicamente escolhidas pelo eleitorado. Segue a análise do surgimento de alguns direitos sociais na ordem constitucional brasileira, sua relação com a Constituição da República Alemã de 1919, e a efetividade conferida pelo legislador ordinário. 2.1 Moradia

O direito à moradia foi previsto na Constituição de Weimar, em especial, através da disposição de seu artigo 155, que estabelece que toda família alemã deve ter uma moradia saudável, em especial aquelas que têm muitos filhos, e que 17. KRELL, Op. Cit. p. 18. 18. CANOTILHO, J. J. Gomes, apud Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Políticas públicas: a responsabilidade do administrador e o Ministério Público. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 67/77. 19. FRISCHEISEN, Op. Cit., p. 83. 20. KRELL, Op. Cit., p. 22.

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os veteranos de guerra deverão ter consideração especial da lei regulamentadora a ser editada21. Ao contrário do direito à educação que, conforme explanado em tópico seguinte, teve imediata influência no ordenamento brasileiro, com previsão assemelhada na Constituição de 1934, apenas em 1988 houve a previsão constitucional do direito social à moradia no Brasil, sendo que a sua inclusão no rol de direitos sociais, no caput do artigo 6º, sobreveio com a Emenda Constitucional nº. 26, de 200022. A promoção de programas de moradia e habitação, como competência concorrente dos entes da federação, e a habitação rural como prioridade da política agrícola já constavam, no entanto, da redação original de 1988, mas não encontram precedentes nas Constituições brasileiras anteriores23. Em análise ao disposto na Constituição de Weimar, nota-se que outras previsões relacionadas ao direito em questão nela também são encontradas, como a possibilidade de desapropriação para a demanda de moradia e agricultura, e a imposição de cumprimento da função social da propriedade (artigo 155), previsões estas que tiveram imediato reflexo no texto brasileiro de 1934. Entretanto, a Constituição de 1988 notadamente foi a que mais se influenciou com as previsões da república alemã. É interessante notar até mesmo a existência, na CF/88, de semelhante disposição quanto aos combatentes de guerra, em contextos históricos diversos. Ao texto final do art. 155 da constituição alemã corresponde o texto do art. 53 do ADCT: Art. 53. Ao ex-combatente que tenha efetivamente participado de operações bélicas durante a Segunda Guerra Mundial, nos termos da Lei nº 5.315, de 12 de setembro de 1967, serão assegurados os seguintes direitos: VI - prioridade na aquisição da casa própria, para os que não a possuam ou para suas viúvas ou companheiras.

Segundo o relato histórico de Sérgio Iglesias Nunes de Souza24, no Brasil do início do século XVIII até meados de 1850 a natureza da 21. Da tradução livre do texto em inglês: “The distribution and usage of real estate is supervised by the state in order to prevent abuse and in order to strive to secure healthy housing to all German families, especially those with many children. War veterans have to be given special consideration in the homestead law to be written”. 22. Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção a maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição (texto conforme a Redação dada pela Emenda nº 26 de 2000, alterado pela Emenda nº 64 de 2010, que incluiu no rol o direito à alimentação) 23. Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: IX - promover programas de construção de moradias e a melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico; Art. 187. A política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente: VIII - a habitação para o trabalhador rural. 24. NUNES DE SOUZA, Op. Cit., pp. 45-59.

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temática “habitação” era meramente privada, não havendo preocupação governamental com o tema, apesar dos problemas existentes. Após a segunda metade do século XIX, a questão da moradia para a mão de obra transferiuse aos poucos da esfera privada ao poder público. De início, a partir de 1870 – através de decretos imperiais – algumas medidas visavam à concessão de incentivos para estimular a produção de moradias de forma pontual, com um modelo de favorecimento fiscal individual. Passou-se a adotar uma diretiva mais objetiva e universal a partir de 1900, época da primeira crise habitacional decorrente da explosão demográfica principalmente na cidade de São Paulo. Durante o “Estado Novo” (1937/1945), o intervencionismo estatal deslocou a atuação dos institutos de previdência dos financiamentos individuais para a construção de conjuntos de grande porte. Em 1964 houve a implantação de um novo sistema habitacional em atuação conjunta do Estado, dos agentes financeiros e da sociedade civil, pela criação do SFH (Sistema Financeiro da Habitação) e do BNH (Banco Nacional da Habitação), que tornaram possível o empréstimo antes de se ter a propriedade imobiliária e, dessa forma, eliminou a responsabilidade hipotecária do incorporador. No entanto, ante o desvio e o detrimento dos objetivos iniciais em privilégio dos aspectos ligados ao capital, centralizou-se o problema da habitação no Brasil como um problema financeiro, buscando-se assim a sua solução de forma errônea pelo estabelecimento de meras diretrizes de política financeira do governo no setor imobiliário, conforme aponta Waldirio Bulgarelli, citado pelo autor em comento. A consequência, no jargão popular, foi a transformação do “sonho da casa própria”, como era conhecido desde a década de 1970, em “o sonho que virara pesadelo”. Este é o histórico do tratamento do direito social à moradia pelo Executivo e Legislativo até o advento da Constituição de 1988, visto como problema secundário, sobrelevando-se o interesse exclusivamente econômico relacionado à questão. A finalidade do direito à moradia, conforme extraído das normas internacionais de direitos humanos, na conceituação de Nelson Saule Junior, “é fruto da combinação dos valores da dignidade humana e da vida”, dependendo para o seu alcance “do resultado da equação moradia e padrão de vida”, sendo que os elementos a serem apurados são “viver com segurança, viver com paz, e viver com dignidade”.25 25. SAULE JR., Op. Cit., p. 133.

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E quanto à efetividade do direito à moradia constitucionalmente previsto, interessante a conclusão do mesmo autor:26 Nas normas definidoras do direito à moradia a aplicação é imediata, o que faz com que a sua eficácia seja plena. Isto é, de imediato o Estado brasileiro tem a obrigação de adotar as políticas, ações e demais medidas compreendidas e extraídas do texto constitucional para assegurar e tornar efetivo esse direito, em especial aos que se encontram no estado de pobreza e miséria. Essa obrigação não significa, de forma alguma, prover e dar habitação para todos os cidadãos, mas sim constituir políticas públicas que garantam o acesso de todos ao mercado que vivem em condições precárias de habitabilidade e situação indigna de vida.

Ainda, as normas instituídas no Estatuto da Cidade, referentes às diretrizes da política urbana e habitacional e aos instrumentos de política urbana, devem ser utilizadas pelo Poder Público para efetivar o direito à moradia, vislumbrandose na mencionada lei mecanismos de ampliação de oferta de moradia para os grupos sociais necessitados, que vivem em assentamentos irregulares, e de urbanização e regularização as áreas ocupadas e habitadas pela população de baixa renda, entre outros. O Estatuto da Cidade – Lei Federal nº 10.257/01 – junto aos diversos tratados de direito internacional incorporados ao nosso ordenamento jurídico, e a própria eficácia das normas constitucionais programáticas, conferem concretude satisfatória ao direito social à moradia, de forma que a atuação do administrador público, hoje, independe de maior atuação legiferante. Na recente história político-social do Brasil, tem-se o projeto de governo intitulado “Minha Casa, Minha Vida” (Lei 11.977/04) que prevê subsídios para a aquisição de moradia própria para cidadãos de certa faixa de renda – de zero a dez salários mínimos, quando do lançamento do programa, em 2009 (patamar depois alterado pela Lei 12.424/11). Não é objeto do presente estudo a avaliação do referido programa, mas ele aponta, em tese, para uma atuação mais concreta do Poder Público com a finalidade de efetivar este direito na vertente ressaltada por Nelson Saule Junior acima transcrita: a da garantia de acesso ao mercado imobiliário, jungida à priorização do problema social sobre a questão financeira. 2.2 Saúde

Marco histórico no desenvolvimento da direito à saúde é a Revolução Industrial, desenvolvida a partir do século XIX, oportunizando assim a sua 26. SAULE JR, Op. Cit., p. 182.

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previsão na Constituição de Weimar, de 1919. Esta última trouxe, em especial, a previsão de legislação específica sobre o tema (artigo 7º)27 e a existência de um seguro global dos cidadãos para a manutenção da saúde, com a participação oficial do segurado (artigo 161)28 . Analisando o constitucionalismo brasileiro, observa-se a inexistência de qualquer menção ao direito à saúde nas Constituições de 1824 (momento em que o país, mesmo independente, encontrava-se sob o manto de um Estado Liberal, e ademais, impregnado de forte herança absolutista, onde prevalecia a ideia de ligação da doença ao castigo divino)29 e de 1891. Tímida a previsão trazida pela Constituição de 1934, comparada à amplitude conferida pela Constituição Alemã. Em seu artigo 10º, conferiu competência concorrente à União e aos Estados para: “II - cuidar da saúde e assistência públicas”. Adiante, no Titulo IV (“Da Ordem Econômica e Social”), previu: Art 121 - A lei promoverá o amparo da produção e estabelecerá as condições do trabalho, na cidade e nos campos, tendo em vista a proteção social do trabalhador e os interesses econômicos do País. § 1º - A legislação do trabalho observará os seguintes preceitos, além de outros que colimem melhorar as condições do trabalhador: h) assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante, assegurando a esta descanso antes e depois do parto, sem prejuízo do salário e do emprego, e instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte;”

Sendo superficial o tratamento dado pelo artigo 10º, e restrito o âmbito de incidência deste último dispositivo transcrito, não se pode conceder à Constituição de 1934 a posição de norma inauguradora do direito à saúde de forma ampla e possível de eficácia no ordenamento jurídico. A Constituição de 1937, por sua vez, apenas instituiu a competência privativa da União para legislar sobre o tema (art. 16) e a competência suplementar dos estados (art. 18). Repetiu, de forma assemelhada, a anterior previsão de observação, pela legislação trabalhista, do direito à assistência médica ao trabalhador (art. 137). 27. Article 7 The Reich is responsible for legislation in the areas […] 8. health care, veterinary affairs, protection of plants against diseases and parasites 28. Article 161 In order to maintain health and the ability to work, in order to protect motherhood and to prevent economic consequences of age, weakness and to protect against the vicissitudes of life the Reich establishes a comprehensive system of insurances, based on the critical contribution of the insured. 29. Dirceu Pereira Siqueira e José Luiz Ragazzi, Direito fundamental à saúde: um enfoque histórico evolutivo in Direitos Fundamentais – da normatização à efetividade nos 20 anos de Constituição Brasileira. Coordenação Claudinei J. Gottems e Dirceu Pereira Siqueira, Editora Boreal, Birigui, SP, 2008, p. 69.

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O mesmo enfoque voltado eminentemente ao direito trabalhista foi conferido pelo texto da Constituição de 1946 (art. 157, inciso XIV), mantendo a competência legislativa sobre a matéria nos moldes da Constituição anterior (arts. 5º, XV, b e 6º). Tem-se, no entanto, que sob a égide desta Carta surgiu, de forma autônoma, o Ministério da Saúde (Lei 1.920, de 25 de julho de 1953). A Constituição de 1967 excluiu a competência supletiva dos Estados para legislar sobre a proteção da saúde (artigo 8º, inciso XVII, “c” e parágrafo 2º), sem inovações quanto à sua disciplina enquanto direito social e estabelecimento de normas programáticas. Nenhuma novidade substancial acompanhou a edição da Emenda nº 1 de 1969 à Constituição de 1967, que apenas previu a aplicação mínima de verbas recebidas pelos Municípios em programas de saúde (art. 25, parágrafo 4º). Finalmente, teve eco no constitucionalismo brasileiro, com a Constituição Cidadã de 1988, a garantia ao direito à saúde pelo estabelecimento de normas programáticas. Já em seu preâmbulo, estabeleceu a prevalência dos direitos sociais em seu espírito, declarando o nascimento de um Estado Democrático Social de Direitos. Em seu artigo 1º estabelece a existência, entre os fundamentos da República Federativa, da cidadania e da dignidade da pessoa humana. O artigo 3º prevê o objetivo de promoção do bem de todos. Há que se destacar que a previsão da saúde, no caput do artigo 6º, que enumera os direitos sociais de forma evidentemente não taxativa, mas exemplificativa, deu-se desde a redação original do texto promulgado em 1988, diferente do que ocorreu com os direitos de moradia e alimentação. Este teve a previsão expressa inserida através da emenda constitucional de número 64, e aquele, como já apontado acima, 26. A consagração do direito à saúde se deu pelo texto do artigo 196, que analisado sob a ótica do parágrafo 1º do artigo 5º, deve também ser considerado de aplicabilidade imediata. Pelo texto da atual Constituição, a competência material sobre a matéria passou a ser comum à União, aos Estados, Distrito Federal e Municípios (art. 23). Aos Municípios foi expressamente conferida a competência para a prestação de serviço de atendimento à saúde, com auxílio técnico e financeiro dos demais entes federativos (art. 30). A competência legislativa passou a ser concorrente da União e dos Estados (art. 24). Apenas então foi previsto um “seguro global”, nos moldes preconizados pela Constituição de Weimar (art. 194), que tratou da seguridade social e seu conjunto de ações, envolvendo a concretização do direito à saúde através de um

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sistema propiciador da universalidade da cobertura e do atendimento. Idealizouse, ainda, o sistema único de saúde, financiado através de recursos de todos os entes da federação. Vê-se que a constituição cidadã, em sendo uma constituição dirigente, atua como instrumento de eficácia dos direitos sociais nela previstos, em especial quanto ao direito à saúde, apresentando-se como instrumento de governo para a sua efetivação. Previu não apenas o sistema único de saúde, mas também a forma de arrecadação de recursos, forma de gerenciamento, metas, entre outros. No bojo do ato das disposições transitórias possibilitou a criação de contribuição provisória destinada ao financiamento de ações e serviços da saúde, com o fim de, por certo período, corrigir a carência anterior na prestação de serviços e destinação de verbas para o aparelhamento estatal com tal mister30. 2.3 Educação

No Brasil, anteriormente à consolidação do direito à educação como direito social, a Constituição do Império previa a gratuidade da instrução primária a todos os cidadãos (artigo 179, parágrafo 32). A Constituição republicana previu a obrigação do Congresso em criar instituições de ensino superior e secundário nos Estados (artigo 35, parágrafo 3º). Influenciada pela Constituição de Weimar31, a Constituição de 1934 dedicou todo um capítulo à educação e à cultura, mostrando-se moderna e avançada sobre o tema, mas de uma efemeridade que não propiciou a concretude dos programas estabelecidos. A Carta outorgada de 1937 manteve alguns preceitos da Carta anterior e acresceu outros. Previu a educação como direito dos pais da prole32. 30. Art. 74. A União poderá instituir contribuição provisória sobre movimentação ou transmissão de valores e de créditos e direitos de natureza financeira. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 12, de 1996) [...] § 3º O produto da arrecadação da contribuição de que trata este artigo será destinado integralmente ao Fundo Nacional de Saúde, para financiamento das ações e serviços de saúde. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 12, de 1996) 31. A Constituição de Weimar considerou fundamental o problema da Educação, dedicando atenção especial ao assunto, tendo o seu art. 148 traçado objetivos do sistema educacional, consistentes no “desenvolvimento da formação moral, do espírito cívico e da capacidade individual e profissional, em conformidade com o caráter nacional alemão e com a reconciliação dos povos”, enquanto que, por sua vez, a Constituição brasileira de 1934 dispôs no art. 149 que a educação tem por fim estimular “eficientes fatores da vida moral e econômica da nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”. Na Constituição de Weimar, em seu art. 146, é previsto que “o ensino público deve obedecer um plano orgânico” para a Educação. Já a Constituição brasileira, da mesma forma, dispõe acerca de um ‘Plano Nacional de Educação”, art. 150. 32. Art 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular.

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A Constituição de 1946, que disciplinou ser competência da União legislar sobre diretrizes e bases da educação (art. 5º, XV, d), consagrou a educação como direito de todos, a obrigatoriedade do ensino primário e, em sendo comprovada a insuficiência de recursos, o ensino oficial posterior ao primário. Sob a sua égide foi criada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei Federal nº. 4.024/61). A Constituição de 1967 e a Emenda 1/69 não trouxeram alterações substanciais. Estas sobrevieram com o texto de 1988, que além de prever percentuais mínimos de verba aplicável à educação pelos entes da federação, trouxe atribuições a cada um deles. Aos Municípios, atribuiu a atuação prioritária no ensino fundamental e infantil. Aos Estados e ao Distrito Federal, coube a atribuição de atender, prioritariamente, a manutenção do ensino fundamental e médio. Não há vedação a que atuem em nível diverso daquele estabelecido como prioritário, o que pressupõe atendimento satisfatório deste. Interessante notar que não há qualquer restrição à idade do indivíduo para a existência do direito à educação33, o que torna ampla e irrestrita a sua efetividade34. É de se notar que o art. 208 do estatuto da Criança e do Adolescente torna expressa a possibilidade de vindicação junto ao Poder Judiciário do cumprimento, pelo Executivo, do ensino obrigatório, que nos termos do artigo 208, inciso I, da CF, é dos quatro aos dezessete anos de idade. No próprio texto constitucional foi prevista a responsabilidade da autoridade pela falta ou irregularidade do ensino obrigatório (par. 2º). A Lei de Diretrizes e Bases também reforçou a garantia de acesso ao Poder Judiciário para a sua garantia (art. 5º). O citado artigo constitucional aponta as demais obrigações do Estado para a concretização do direito à educação, estando entre eles a educação infantil em creche e pré-escola das crianças de até cinco anos de idade, o atendimento especializado aos portadores de deficiência, o acesso aos níveis mais elevados do ensino, da pesquisa e da criação artística, o oferecimento de programas suplementares de material didático escolar, transporte, alimentação e assistência à saúde. Em relação à efetividade do direito à educação, impende destacar que o Supremo Tribunal Federal, instado a se manifestar no bojo de ação direta 33. Art. 208. O dever do Estado com a educação será efetivado mediante a garantia de: I - educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 59, de 2009) 34. GARCIA, Emerson. O Direito à Educação e suas Perspectivas de efetividade. In: A Efetividade dos Direitos Sociais. Coord. Emerson Garcia. Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2004, p. 169.

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de inconstitucionalidade por omissão declarou, expressamente, pelo voto da Ministra Relatora Carmem Lucia Antunes Rocha, a ausência de omissão pelo Poder Executivo no âmbito federal35. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A submissão do exercício da autoridade do soberano aos direitos de cada homem simboliza a supremacia do indivíduo sobre o Estado. O Estado Liberal surge neste cenário, atuando na defesa do cidadão contra indevidas ingerências estatais, momento em que surgem os direitos de primeira dimensão, proclamando um dever de abstenção do Estado, assegurando aos indivíduos uma esfera indevassável de proteção. A alteração da realidade social fez com que esta obrigação negativa do Estado deixasse de ser suficiente para a plena realização do indivíduo, força motriz para a aspiração, pelos indivíduos, de direitos consistentes em obrigações prestacionais por parte do Estado, direitos estes que foram elencados na categoria de direitos de segunda dimensão. Nesta senda, a Constituição de Weimar foi paradigma para a elaboração de textos constitucionais em variados lugares do mundo, donde o Estado brasileiro, com a Constituição de 1934, é um concreto exemplo das prescrições e aspirações sociais alemãs e sua influência mundial. Apesar de não ter atingido concretude quanto à efetivação de suas previsões em razão da falta de tempo hábil para disseminar e conscientizar o povo brasileiro da extensão dos direitos que lhes foram assegurados, além de um marco quanto à previsão de direitos sociais, a Constituição brasileira de 1934 foi uma “ilusão constitucional”. Em que pesem os fatos negativos relacionados à falta de concretude de suas disposições, é confortável afirmar que as prerrogativas inauguradas na Constituição brasileira de 1934, inspiradas no modelo da Constituição de Weimar de 1919, foram plantadas e, com a redemocratização do Brasil em 1946, as prescrições fundamentais sociais atravessariam crises políticas até retornar e se 35. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão em relação ao disposto nos arts. 6º, 23, V; 208, I; e 214, I, da Constituição da República. Alegada inércia atribuída ao Presidente da República para erradicar o analfabetismo no País e para implementar o ensino fundamental obrigatório e gratuito a todos os brasileiros. Dados do recenseamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística demonstram redução do índice da população analfabeta, complementado pelo aumento da escolaridade de jovens e adultos. Ausência de omissão por parte do chefe do Poder Executivo Federal em razão do elevado número de programas governamentais para a área de educação. A edição da Lei 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e da Lei  10.172/2001 (Aprova o Plano Nacional de Educação) demonstra atuação do Poder Público dando cumprimento à Constituição. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão improcedente.” (ADI 1.698, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 25-2-2010, Plenário, DJE de 16-4-2010.)

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firmar com a Constituição brasileira de 05 de outubro de 1988. Ao analisar a evolução do tratamento constitucional evolutivo quanto à saúde, à moradia e à educação no Brasil, percebe-se que a influência da Constituição alemã de 1919 se mostrou com grande vigor na ordem constitucional de 1988. Se quanto ao direito à moradia, apenas por emenda constitucional no ano de 2000, houve a sua previsão como direito social, quanto ao direito à educação já a efêmera carta brasileira de 1934 trazia a necessidade de um plano nacional de educação – espelhando-se na previsão alemã. No entanto, apenas com a constituição cidadã de 1988 teve eco no constitucionalismo brasileiro o estabelecimento de normas programáticas quanto ao direito amplo à saúde, o qual carece de políticas públicas concretizadoras. Neste tocante, verifica-se entendimento crescente na jurisprudência pátria de que, frente às omissões do Poder Legislativo e Executivo para a implementação dos direitos sociais constitucionalmente assegurados através da prestação individualizada de serviços aos cidadãos, caberia ao Poder Judiciário, uma vez acionado, determinar ações no caso concreto, estabelecendo direitos e obrigações. Segundo este entendimento, não haveria desrespeito ao princípio da Separação dos Poderes ante a ocorrência de omissão inconstitucional. Bibliografia

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CAPÍTULO VIII

a CoNStItuIÇÃo CIDaDÃ Da REpÚBlICa FEDERatIVa Do BRaSIl (1988)

Juliana Cristina Borcat Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogada.

Lívia Pelli Palumbo Mestranda em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogada.

INTRODUÇÃO

O Brasil tem enfrentado uma experiência política e constitucional desastrosa desde sua independência até a promulgação da vigente Constituição Federal, proclamada em 05 de outubro de 1988. Em 1985, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte, que legitimou a Constituição da República de 1988 e restaurou, no Brasil, o Estado Democrático de Direito, tendo o país sido inserido no rol dos países democráticos, depois de vinte e cinco anos de regime militar. A soberania popular, enfim, retomou para si o poder constituinte que lhe fora usurpado em 1964. Não obstante as imperfeições surpreendidas no texto e das críticas que possa merecer, deve-se admitir que a Constituição Federal de 1988 buscou, de modo geral, no enunciado de suas normas, tornar efetiva a instituição de um Estado Democrático de Direito e da superação de uma perspectiva autoritária, onisciente e não pluralista de exercício do poder, marcado por intolerâncias e violências.

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Trata-se de uma Constituição de valor simbólico que reinsere o direito e a negociação política na vida do estado e da sociedade, removendo a prática e discurso da burocracia tecnocrático-militar em que estava o Brasil por mais de vinte e cinco anos. Os poderes da República foram equilibrados, não havendo mais a sobreposição do Executivo e a federação foi reorganizada, ampliando-se as competências político-administrativas dos Estados e Municípios, conservandose para a União uma parcela mais substantiva das competências legislativas. Os Direitos Fundamentais foram inseridos no início do texto constitucional, antes da disciplina da organização do Estado e dos poderes, o que resulta em um valioso e organizado texto de proteção para o povo brasileiro contra os abusos. Para estudá-la, inicialmente foi feita uma breve análise do momento histórico para se chegar à promulgação da “Constituição Cidadã”, apresentando, também, a formação da Assembleia Constituinte. Na sequência, discorreuse sobre suas principais características, dentre elas os direitos e garantias fundamentais e individuais; e remédios constitucionais. Ainda, sobre a separação dos poderes e uma reflexão crítica sobre os vinte e quatro anos de vigência. 1 CONTEXTO HISTÓRICO

O Brasil tem enfrentado uma experiência política e constitucional desastrosa desde sua independência em 07 de setembro de 1822 até 1988, momento em que ocorreu desencontro entre o país, seu povo e seu destino. Antes da Constituição de 1988, o Brasil era viciado pelos privilégios e pela apropriação privada do espaço público. Embora se tratasse de um país rico, havia inúmeras pessoas sem acesso à alimentação adequada, ao consumo, à educação, à saúde, ao saneamento, à habitação e à civilização. A Constituição Federal de 1988 foi editada em um momento histórico em que o país acabava de sair de um longo período de regime autoritário no qual o exercício da cidadania e das liberdades políticas sofriam as mais sérias restrições. Em 1974, ocorreu momento marcante nos movimentos do poder ditatorial no Brasil, que tratava da posse como Presidente da República do general Ernesto Geisel, cabendo a esse governo a reação à violência física praticada ao estado contra os seus adversários políticos. Era uma época em que se fazia uso de instrumentos discricionários que tinham por finalidade cassar os mandatos parlamentares e decretar o recesso do Congresso Nacional,

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que foi fechado para que fosse imposto o pacote de abril que se tratava de um conjunto de reformas políticas que tinham por finalidade não dar nenhum acesso à oposição ao poder. O Presidente da República possuía poderes ditatoriais devido aos atos institucionais e a imprensa não podia se manifestar com fundamento na censura. Havia grande número de brasileiros exilados pelo mundo afora, a política era refletida no bipartidarismo artificial, os mandatos de parlamentares eram cassados, os casuísmos eleitorais diversos eram responsáveis por falsear a representação política e presos políticos eram enviados a quartéis. No fim do governo de Geisel, houve a revogação dos Atos Institucionais e dos Atos Complementares, atos estes característicos do regime de exceção iniciado em 1964, por meio da Emenda Constitucional nº 11, de 13 de outubro de 1978. O ano de 1978 marcou a deflagração do movimento pela convocação de uma Assembleia Constituinte livre e soberana, pois, o país não mais aceitava o regime ditatorial. Em 15 de março de 1979, após o governo de Geisel tomar posse, o general João Batista de Oliveira Figueiredo, indicado pelo próprio Geisel, assumiu se comprometendo com a restauração da legalidade democrática. Referido ano foi marcado por algumas mudanças, tais como a volta dos brasileiros exilados através da lei da anistia, a votação da nova lei dos partidos políticos que foi responsável pelo rompimento com o bipartidarismo artificial e a instauração do pluripartidarismo. O movimento sindical que fora reprimido desde o golpe de 1964 volta à tona desafiando a legislação restritiva vigente iniciando sua atuação através do ABC Paulista. Todos esses fatores levaram a uma lenta marcha em direção ao Estado Democrático de Direito que buscava a convocação de uma Assembleia Constituinte para elaboração da nova Constituição da República, que começou a ganhar peso institucional em 1980 com a ampla adesão da comunidade jurídica. À época, todos os segmentos da sociedade brasileira passaram a pressionar a referida convocação, tendo papel expressivo o movimento iniciado em 1980, pela VII Conferência Nacional da Ordem dos Advogados do Brasil, tendo como base a indicação realizada pelo advogado Aloysio Tavares Picanço. Nesse mesmo ano de 1980, foi aprovada a Declaração de Manaus que busca a volta do poder constituinte ao povo, pois, este era o seu titular legítimo. Luis Roberto Barroso cita:

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“Em 1982, na mesma linha, M. Seabra Fagundes publica o texto de conferência que proferia em diversas partes do país: ‘Ao cabo de tantos anos de poder instalado e mantido sem efetiva ratificação popular, afigurase que o Estado Brasileiro só poderá ganhar legitimidade institucional mediante a convocação do povo para reunir-se, pelos seus representantes, em Assembleia Constituinte. (...) É de ponderar, todavia, que se em uma Constituição votada pela representação do povo esta a base máxima da legitimidade, esta não será plena enquanto a escolha do Presidente da República se processar por eleição indireta, meramente homologatória de candidaturas oriundas de imposições militares’. A insatisfação com o regime militar ensejou em um amplo movimento suprapartidário que buscava as eleições diretas para Presidente da República, momento em que muitas pessoas saíram nas ruas para manifestação contra o governo por meio das ‘Diretas Já’ ”. 1

A proposta de Emenda Constitucional que visava o pleito direto foi votada em 25 de abril de 1984, momento em que foi decretado estado de emergência na capital federal e não foi aceita em razão de não ter atingido o quórum de dois terços que eram necessários para a modificação da Constituição, embora tenha obtido a maioria dos votos dos parlamentares. Mesmo com o insucesso em relação à emenda que estabeleceria o voto direto, o regime militar ainda era algo a ser eliminado, uma vez que a população continuava insatisfeita e este já não mais possuía uma unidade interna, tampouco tinha mais o apoio político necessário para prolongar-lhe a duração. A luta para a derrubada do regime militar continuava e, após intensa disputa interna, Paulo Maluf, ex-governador de São Paulo, foi indicado à Presidência pelo Partido Democrático Social (PDS). Nesse contexto, surge uma divergência entre PDS, que se une ao partido da oposição e o Partido Democrático Brasileiro (PMDB), formando-se então a Aliança Democrática. Um dos principais líderes opositores ao regime militar, Tancredo Neves e José Sarney (como vice), foi indicado a Presidência, em oposição a Paulo Maluf. Chapa que derrotou Paulo Maluf através da eleição indireta pelo Colégio Eleitoral realizada em 15 de janeiro de 1985. Porém, antes mesmo de tomar posse, em 21 de abril daquele ano, faleceu Tancredo Neves e José Sarney assumiu o cargo de Presidente. O momento era difícil e o governo de Sarney foi repleto de desacertos econômicos, denúncias de corrupção e favorecimentos, o que resultou em enorme insatisfação política e social. O governo de Sarney, que perdurou por cinco anos, não foi bem visto pela população, exceto pelo curto período de sucesso do plano econômico de 1. BARROSO, Luiz Roberto. Dez anos da Constituição de 1988 (Foi bom para você também?). In CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.) 1988-1998: uma década de Constituição. Renovar: Rio de Janeiro, 1999. p. 40.

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combate à inflação, o chamado Plano Cruzado. Nesse ínterim, entre 1985 e 1990, afirmou-se, política e eleitoralmente, o Partido dos Trabalhadores (PT). Em virtude da Emenda Constitucional nº 26, de 27 de novembro de 1985, foi convocada uma Assembleia Nacional Constituinte, em cumprimento ao compromisso de campanha assumido por Tancredo Neves, que legitimou a Constituição da República de 1988 e restaurou no Brasil o Estado Democrático de Direito. Com o advento da nova Carta Magna, o Brasil foi inserido no rol dos países democráticos, depois de vinte e cinco anos de regime militar. A soberania popular, enfim, retomou para si o poder constituinte que lhe fora usurpado desde 1964. Assim, Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos afirmam: “A Constituição de 1988 foi o marco zero de um recomeço, da perspectiva de uma nova história. Sem as velhas utopias, sem certezas ambiciosas, como o caminho a ser feito ao andar. Mas com uma carga de esperança e um lastro de legitimidade sem precedentes, desde que tudo começou. E uma novidade. Tardiamente, o povo ingressou na trajetória política brasileira, como protagonista do processo, ao lado da velha aristocracia e da burguesia emergente.” 2

Estamos diante, portanto, de uma história ainda em curso e não se pode afirmar se o resultado será benéfico, mas, sem dúvida, trata-se de um rito de passagem para o início da maturidade institucional brasileira. 2 A ASSEMBLEIA CONSTITUINTE

Em obediência à Emenda nº 26 de 1985, Câmara e Senado reuniramse, sob a presidência do Ministro Presidente do Supremo Tribunal Federal José Carlos Moreira, com a finalidade de instalação da Assembleia Nacional Constituinte, livre e soberana, no dia 1 de fevereiro de 1987. Embora a ideia de uma constituinte exclusiva, que seria dissolvida quando os trabalhos fossem concluídos, tenha tido grande apoio da sociedade civil, esta não prevaleceu. A Assembleia Constituinte elegeu como seu presidente, o principal líder parlamentar de oposição ao regime militar, o Deputado Ulisses Guimarães. Os trabalhos foram desenvolvidos sem a apresentação de um anteprojeto prévio, embora o Poder Executivo tenha designado uma comissão de notáveis 2. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS. O Começo da história. A nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no Direito Brasileiro. Disponível em:. Acesso em 22 jul. 2012.

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para elabora-lo, que se tratava da Comissão Afonso Arinos, em virtude do nome de seu Presidente. O texto, embora muito bem elaborado, foi rejeitado pelo Presidente José Sarney, que inconformado com a opção parlamentarista do anteprojeto, dentre outros aspectos, não o encaminhou ao Congresso. Sobre o texto que veio a ser aprovado, Luis Roberto Barroso assim cita: “A ausência de um texto base e a ânsia de participação de todos os segmentos da sociedade civil, arbitrariamente alijados do processo político por mais de vinte e cinco anos, dificultaram significativamente a racionalização e a sistematização dos trabalhos constituintes. Divididos os parlamentares, inicialmente, em vinte e quatro subcomissões, oito comissões temáticas e uma Comissão de Sistematização, o processo constituinte padeceu das vicissitudes inevitáveis a um empreendimento desse porte naquele contexto, assim como de ingerências excessivas do Executivo e da dificuldade de formação de maiorias consistentes, mesmo em questões meramente regimentais.” 3

Terminada a árdua fase de conclusão, em 5 de outubro de 1988 é promulgada a Constituição Federal Brasileira, conhecida como a Constituição Cidadã, assim chamada pelo Presidente da Assembleia, Ulysses Guimarães. 3 CRÍTICAS E CARACTERÍSTICAS DA CONSTITUIÇÃO DE 1988

Não obstante as imperfeições surpreendidas no texto e das criticas que possa merecer, deve-se admitir que a Magna Carta de 1988 buscou, de modo geral, no enunciado de suas normas, tornar efetiva a instituição de um Estado Democrático de Direito e da superação de uma perspectiva autoritária, onisciente e não pluralista de exercício do poder, marcado por intolerâncias e violências. Trata-se de uma constituição de valor simbólico que reinsere o direito e a negociação política na vida do Estado e da sociedade, removendo a prática e discurso da burocracia tecnocrático-militar em que estava o Brasil por mais de vinte e cinco anos. O processo constituinte que deu ensejo à nova Constituição teve como base uma sociedade civil sofrida e caracterizada por um Estado que se apoiava em interesses privados que ditavam a ordem política e econômica. Nesse contexto, com o intuito de recuperar as liberdades públicas, o processo constituinte contou com um amplo exercício de participação popular. Evidente, portanto, que um dos traços da Constituição é que esta é democrática. 3. BARROSO, Luiz Roberto. Dez anos da Constituição de 1988 (Foi bom para você também?). In CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Renovar: Rio de Janeiro, 1999., p.42.

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Porém, esse contexto democrático resultou em um conjunto de interesses legítimos de trabalhadores e categorias econômicas, cumulados com interesses cartoriais, corporativos, ambições pessoais, dentre outros. A Constituição de 1988 foi caracterizada como dirigente, analítica e compromissória. Dirigente por incluir em seu texto grandes linhas programáticas que visam demonstrar os caminhos que o legislador e a administração pública devem percorrer. Embora reduza a densidade jurídica do texto, essa característica da Constituição alça um esforço para condicionar a atuação dos poderes e impulsioná-los na direção escolhida pelo constituinte, em especial em campos como saúde, educação, cultura e realização de valores como a justiça social e os direitos a ele inerentes. Nota-se que o constitucionalismo dirigente depende da atuação do Congresso Nacional para a edição das leis ordinárias previstas para elaboração dos programas constantes na Constituição. A Constituição Brasileira, que buscava superar tendências autoritárias, é analítica, por possuir um texto complexo que desenvolve a reconstitucionalização do país, portanto, não suporta um texto mínimo como é o texto da Constituição dos Estados Unidos, que se trata de uma constituição sintética cujo texto engloba apenas sete artigos e vinte e seis emendas. Entretanto, Luis Roberto Barroso4 ressalta que: “É inevitável à constatação, todavia, de que o constituinte de 1988 caiu no extremo oposto, produzindo um texto que, mais que analítico, é casuístico e prolixo”. Considerada compromissória, em razão de seu texto não possuir uma única tendência política, buscando somente um equilíbrio entre os interesses do capital e do trabalho. O texto engloba, também, um rol de direitos sociais aos trabalhadores e restrições ao capital estrangeiro. A livre iniciativa foi inserida no texto constitucional como princípio fundamental da ordem institucional brasileira, possuindo regras de intervenção do Estado no domínio econômico, inclusive com a reserva de determinados setores econômicos à exploração por empresas estatais, sendo alguns deles com regime de monopólio. Em suma, observa-se que o texto da Constituição é extremamente detalhista e, por diversas vezes, perdeu temas importantes em razão de se preocupar em demasiado com tais detalhes e, neste diapasão, aponta-se o capítulo da administração pública, ordem tributária e disposições transitórias. O texto constitucional também possui traços corporativistas e contém 4. BARROSO, Luiz Roberto. Dez anos da Constituição de 1988 (Foi bom para você também?). In CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Renovar: Rio de Janeiro, 1999. p. 45.

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em seu corpo regras de interesses da Magistratura, do Ministério Público, da Advocacia Pública e Privada, Polícias, Cartórios, dentre outros. Luis Roberto Barroso afirma que: Além disso, timbrou-se, em sua versão originária, pela densificação da intervenção do Estado na ordem econômica, em um mundo que caminhava na direção oposta, e por uma recaída nacionalista que impunha restrições ao ingresso de capital estrangeiro de risco, em domínios como o da mineração, telecomunicações, petróleo, gás e etc.5

Não obstante a esses fatos, o texto não conseguiu superar a velocidade fiscal do estado, tampouco, conter o sistema tributário que consiste em diversos tributos que resultam em uma cara e ineficiente burocracia nos mais diversos níveis de poder. Crítica se faz em relação ao sistema de seguridade social é completamente inviável, repleto de fraudes e corrupções, em especial no campo previdenciário. Evidencia-se que as vicissitudes do texto constitucional de 1988, como o autoritarismo do sistema presidencial e a exclusão social, não podem ser atribuídas ao constituinte, mas sim a um país fragilizado por inúmeras rupturas políticas e desequilíbrio no que se tange às suas relações sociais. A Magna Carta de 1988 é um direito geral que possui limites e possibilidades, portanto, a crítica, embora necessária, não pode encobrir as virtudes e mudanças criativas e valiosas de seu texto. O corpo de seu texto engloba, atualmente, novas ações judiciais, como a ação civil pública, mandado de segurança coletivo, dentre outros. Nesse contexto, foram ampliados os instrumentos para proteção dos direitos, incluindo-se nesse rol, os direitos difusos que visam à proteção de áreas de suma importância como consumidor e meio ambiente. Os poderes da República foram equilibrados, não havendo mais a sobreposição do Executivo, embora mantida a sua capacidade legislativa através das medidas provisórias, essa nova ordem restaurou a autonomia e independência do Judiciário e ampliou as competências do Legislativo. Os direitos fundamentais foram inseridos no início do texto constitucional, antes da disciplina da organização do Estado e dos poderes, o que resulta em um valioso e organizado texto de proteção para o povo brasileiro contra os abusos, sejam estes estatais ou privados. A federação foi reorganizada, ampliando-se as competências políticoadministrativas dos estados e municípios, conservando-se para a União uma 5. Ibidem, p. 46.

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parcela mais substantiva das competências legislativas, porém, não se compara às competências exacerbadas que possuía no regime ditatorial. A partilha de receitas tributárias foi feita de forma equânime, porém, observa-se que nesse quesito os maiores beneficiários foram os Municípios, pois, os Estados ainda não conseguiram encontrar o equilíbrio financeiro desejável. No que concerne à matéria eleitoral, foi reintroduzido no sistema o voto direto para Presidência da República e ficou estabelecida a eleição em dois turnos, em hipótese de nenhum candidato ter obtido maioria absoluta na primeira votação. Dentre todas as críticas que a Magna Carta de 1988 recebeu, a mais forte foi a de que um texto muito extenso e pesado torna um país ingovernável, discurso este utilizado por algumas parcelas de políticos, membros do Poder Judiciário e constitucionalista. A Constituição de 1988 repete inúmeras regras que já são óbvias para outras culturas, porém, a questão é que a Constituição Brasileira realmente é longa e cheia de adornos, mas, é repleta de direitos fundamentais nunca antes vistos de tão complexos, extremamente necessários e inovadores. Constituições breves não servem de parâmetro para o povo brasileiro que é generoso e exuberante como a sua Carta Magna. 3.1 PREAMBULO

A abertura solene do texto constitucional é feita por um preâmbulo que é considerado símbolo que reveste a Constituição e possui característica de revelador da preocupação estética, dotado de carga simbólica, cuja intenção é a de impressionar com um conteúdo solene e consagrar os princípios do Estado Democrático de Direito, dentro de uma visão de governo representativo, da consagração dos direitos individuais e dos mecanismos jurídicos de aumento dos direitos e garantias sociais. Visa esclarecer o sentido ideológico da Constituição escrita que se traduz em autêntico subsídio à hermenêutica constitucional, uma vez que, traz em si, os anseios e aspirações do legislador constituinte. A polêmica invocação de Deus, contida no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, não tem validade jurídica em razão da franca separação estabelecida entre o âmbito confessional (religioso) e o civil (laico), conforme dispõe artigo 5º, VI e VIII e o 19, I. No Brasil, no que concerne à validade dos preâmbulos não é reconhecida como norma e o Supremo Tribunal Federal já afirmou que o preâmbulo

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não contém relevância jurídica, opinião esta defendida por Walter Claudius Rothenburg6. O preâmbulo da Constituição Federal de 1988 revela o anseio do legislador constituinte na construção de valores democráticos e pluralistas do liberalismo político e a vontade de se exigir do Estado à promoção do bem-estar geral, na perspectiva do intervencionismo estatal de natureza socialdemocrática. A Constituição não pode ser interpretada ou aplicada de forma contrária ao seu “espírito”, ou seja, diversa do texto expresso no seu preâmbulo, pois, os direitos sociais são o núcleo do Estado Democrático de Direito, que se funda num processo de convivência social, em uma sociedade livre, justa e solidária e é um instrumento de realização de valores de convivência humana, em que a vontade popular se manifesta pela soberania do povo e sua participação direta e indireta. 3.2 DOS DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Os Direitos e Garantias Fundamentais, antes de serem inseridos no ordenamento jurídico da Magna Carta de 1988, tratavam-se, apenas, de um conjunto de ideias abstratas. São prerrogativas e instituições que o Direito Positivo concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual para todas as pessoas e possuem as características de historicidade; inalienabilidade (não sendo possível sua transferência); irrenunciabilidade (não está à disposição de seu titular); imprescritibilidade (não se perde com o tempo); relatividade ou limitabilidade (não há hipótese de direito humano absoluto, eis que todos podem ser ponderados com os demais); universalidade (são reconhecidos em todo o mundo). A Magna Carta contemplou no parágrafo 2º do artigo 5º 7 a existência de outros direitos, além do rol taxativo do artigo 5º. O modelo constitucional atual de 1988 foi modelado dentro dos princípios de modernidade e foi incorporado dentro de uma representação liberal, restaurando no país o Estado de Direito sob a forma de uma democracia moderna, instituída e legitimada pela vontade popular. Nesse contexto, foi constituída uma concepção de direitos fundamentais que teve como base a perspectiva da dignidade humana e de caráter emancipatório. 6. ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito Constitucional. São Paulo: Verbatim, 2010, p. 53. 7. Artigo 5º, §2º. “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa seja parte.”

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O direito à dignidade da pessoa humana é chamado pela doutrina de fenômeno da repersonalização do direito e é devido a todos, de modo que se tem que os outros princípios e institutos jurídicos devam funcionar em prol de promover a máxima proteção da dignidade humana, tratando-se, então, de um metaprincípio informador de todos os demais princípios. A Constituição Federal de 1988 não mais possui a condição de carta política e, dessa forma, os direitos fundamentais nela previstos possuem eficácia direta, inclusive nas relações entre os particulares. As liberdades públicas abrangem os direitos individuais e coletivos e os direitos políticos. Os direitos individuais ou coletivos possuem relação com o princípio da igualdade, liberdade, propriedade e segurança e para serem efetivados, o titular do direito pode exigir do Estado tanto a atuação através de medidas que possam garantir esses direitos como a abstenção da prática do ato que possa violar tais direitos. Os direitos políticos têm como função assegurar a participação do individuo na política bem como na estrutura do próprio Estado, dando a este o direito de votar, o de ser votado, o de prover cargo público, etc. O legislador, ao dispor sobre os Direitos e Garantias Fundamentais, o fez em título próprio, que é o Titulo II que foi desdobrado em cinco Capítulos, nos quais assim os descreveu: dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos; dos Direitos Sociais; da Nacionalidade; dos Direitos Políticos e dos Partidos Políticos. Os Direitos e Garantias fundamentais, em especial os três primeiros capítulos citados, buscaram inspiração nas três mais importantes declarações universais de direitos, que foram: a Declaração dos Direitos de Virgínia de 1776; a Declaration des Droits de L´Homme et du Citoyen de 1789 e a Declaração Mundial dos Direitos dos Homens, que foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU em 1948. No que concerne aos Direitos Fundamentais, duas são as preocupações que pairaram sobre o legislador constituinte. Assim, narra Áurea Pimentel Pereira: a primeira de proclamar os direitos enunciados como autoaplicáveis e não meras normas programáticas; a segunda de deixar registrada, com firmeza, a adesão da Carta Política de 88, a toda gama de direitos individuais que – objeto de proclamações universais – se identifique, com o regime e os princípios adotados na Lex Fundamentalis brasileiros, deixando, destarte, claro que o elenco do citado Capítulo não seria, então, rigorosamente, exaustivo, nele havendo como incluídos os direitos e garantias reconhecidos em tratados internacionais, aos quais a República Federativa do Brasil tenha aderido. (parágrafos 1º e 2º do artigo 5º).8 8. PEREIRA, Áurea Pimentel. Estudos Constitucionais: Constituição Federal de 1988. Renovar, Rio de Janeiro,

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O legislador também tratou de elencar no artigo 5º da Constituição Federal de 1988 as garantias destinadas a assegurar o exercício dos direitos constitucionais acima narrados, estas são: o habeas corpus (inciso LXVIII); o mandado de segurança (inciso LXIX); ação popular (inciso LXXIII) e as novidades que são o mandado de segurança coletivo (inciso LXX); mandado de injunção (inciso LXXI) e o habeas data (inciso LXXII). O Supremo Tribunal Federal adotou ao longo desses anos uma jurisprudência restritiva que resultou em decisões indicativas de um procedimento normativo do Congresso Nacional para a efetivação dos direitos fundamentais. Embora o modelo no campo dos direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988 seja incompleto, o fato do nosso sistema de direitos individuais e coletivos possuírem uma enorme plasticidade histórico-social por estar vinculado à sua efetivação através do mandado de injunção e por ação de inconstitucionalidade de omissão faz com que tenhamos uma postura positiva, pois, há possibilidade de futuro através de uma adequada jurisdição constitucional. O que falta para uma verdadeira concretização dos direitos fundamentais previstos na Constituição federal de 1988 é uma verdadeira jurisdição constitucional. José Ribas Vieira: o modelo de direitos fundamentais consagrado pela Constituição Federal de 1988, apesar de sua amplitude normativa, traduz certa originalidade ao vincular sua efetividade a determinados remédios constitucionais. Tal quadro possibilita uma perspectiva otimista se, por ventura, futuramente, vier a ser concretizada uma adequada jurisdição constitucional entre nós.9

3.3 DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS

A Constituição de 1988 foi o primeiro texto a integrar um elenco de direitos fundamentais, acolhendo o conceito chave do modelo de estado sedimentado no artigo 1º, Estado Democrático de Direito, e a dignidade da pessoa humana, que, como principio fundamental (artigo 1º, inciso III), que decorre da dignidade inerente a toda e qualquer pessoa assegurando-lhe a inviolabilidade dos direitos e garantias. Ingo Wolfgang Sarlet aduz, ainda, que: 2001. p. 25. 9. Vieira, José Ribas, A Constituição Federal de 1988 e um modelo de direitos fundamentais incompleto. In CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.) 1988-1998: uma década de Constituição. Renovar: Rio de Janeiro, 1999. p. 102

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a dignidade da pessoa humana vem sendo considerada fundamento de todo o sistema dos direitos fundamentais, no sentido de que estes constituem exigências, concretizações e desdobramentos da dignidade da pessoa humana e que com base nesta devem ser interpretados. 10

No capítulo I do Título II da Constituição Federal de 1988 onde constam os direitos e garantias individuais, o constituinte tentou reproduzir os princípios fundamentais da Declaração de Direitos de Virgínia, da Declaration des Droits de L´Homme eu du Citoyen e da Declaração dos Direitos dos Homens de 1948. No que concerne à Revolução Francesa buscou-se extrair os ideias libertários contidos na expressão “os homens nascem livres”, sendo iguais perante a lei. Neste capítulo, o legislador enunciou os direitos e garantias individuais com destaque e proclamou no artigo 5º o princípio da igualdade de todos perante a lei. Tal isonomia de direitos deve ser entendida não como a igualdade substancial que é de difícil reconhecimento, pois, não diz respeito ao tratamento igual perante o direito e sim de uma igualdade real e efetiva diante dos bens da vida. É uma igualdade formal que garante tratamento isonômico aos cidadãos que se encontram em situações iguais e não a isenção de tratamento igual aos desiguais o que resultaria em uma flagrante desigualdade. Nesse sentido, cita-se Robert Alexy11: “Se não houver razão suficiente para a permissibilidade de um tratamento desigual, então, o tratamento igual é obrigatório”. Não se trata da mesma quantidade de direitos para todo cidadão, pois, isso não existe. Ensina Áurea Pimentel Pereira: Nessa ordem de ideias, impossível é conceber-se que o legislador constituinte tenha querido garantir no caput do artigo 5º da Carta Federal de 88, a distribuição de direitos rigorosamente iguais a todos, sem o menor critério, com desconsideração ao verdadeiro sentido que tem o principio da isonomia, como concebido de acordo com os ideais libertários da revolução francesa, na verdade voltados para uma igualdade real, destinada a por fim a injustiça e discriminação, garantindo direitos iguais, são certas, levando em conta, porém, a existência de efetiva identidade de condições. 12

3.4 DOS DIREITOS SOCIAIS

Os direitos sociais são as prestações positivas estatais listadas no ordenamento jurídico como normas constitucionais, que visam proteger os mais 10. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais, São Paulo: Livraria do Advogado, 2005, p. 125. 11. ALEXY, Robert. Dos direitos fundamentais. 2. ed. Malheiros: São Paulo, 2008. P.409. 12. PEREIRA, Áurea Pimentel. Estudos Constitucionais: Constituição Federal de 1988. Renovar: Rio de Janeiro, 2001. p. 33.

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fracos e tentam equalizar situações desiguais, uma vez que são instrumentos para que sejam efetivados os direitos fundamentais do homem, que com a Constituição de 1988 se tornaram extremamente fortes e valiosos. Os direitos sociais foram mencionados, pela primeira vez na Constituição de 1934, que dedicou um Título referente à ordem econômica e social. Os textos seguintes continuaram a abordar tais direitos, até se chegar à atual Carta Magna, que reservou o capítulo II, do artigo 6º ao artigo 11 à abordagem dos direitos sociais. Apesar de vários empecilhos pelos quais a Assembleia Constituinte passou, a Nova Carta incorporou significativos avanços no campo dos direitos humanos e trouxe remédios constitucionais para garantir a eficácia desses direitos. José Afonso da Silva aduz que o “núcleo central dos direitos sociais é constituído pelo direito do trabalho (conjunto de direitos dos trabalhadores) e pelo direito de seguridade social”. Ainda, afirma o autor, gravitam outros direitos sociais, como o direito ao meio ambiente sadio, à saúde, à educação, à previdência social, à assistência social.13. A Lei Maior estabelece, também, objetivos fundamentais para a República, como o desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (artigo 3º). Os direitos sociais são considerados direitos de segunda geração, pois, são direitos fundamentais que estão atrelados ao princípio da igualdade, mas com eficácia que leva a duvida, pois, depende de prestações materiais do Estado, diferentemente dos direitos de primeira geração (de liberdade e igualdade formal). Novidade trazida pelo texto de 1988 é a separação da abordagem da ordem social e da ordem econômica, com o rompimento com o Estado autoritário, o constituinte percebeu a necessidade de maior ênfase na atribuição dos direitos humanos, rol este que se incluem os direitos sociais14. Seguindo essa linha, a Carta Magna, em seu artigo 6º, define os direitos sociais: Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados.

Na sequência, o artigo 7º, e seus 34 incisos, dispõe acerca dos direitos sociais dos trabalhadores (urbanos ou rurais) que visam à melhoria da condição 13. SILVA, Jose Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 2004, p. 464. 14. RESENDE, Vera Lucia Pereira. Os Direitos Sociais como Cláusulas Pétreas na Constituição Federal de 1988. Disponível em: . Acesso em 20 jul. 2012.

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de vida social dos trabalhadores. O artigo 8º, e seus oito incisos, narra sobre a associação profissional ou sindical. A greve é tratada no artigo seguinte e o artigo 10 trata da participação de empregados e trabalhadores nos colegiados de órgãos públicos que tratam de seus respectivos interesses profissionais. O último artigo que trata dos direitos sociais, o artigo 11 garante a eleição de um representante dos empregados com a finalidade exclusiva de promover-lhes o entendimento direto com o empregador. O constituinte de 1988 reconheceu, sob o rótulo de direitos sociais, o conjunto heterogêneo e abrangente de direitos fundamentais da pessoa humana, considerando os valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, abrangendo os direitos prestacionais, os chamados direitos positivos (que reclamam atuação positiva do Estado e da sociedade), e os defensivos, os chamados negativos (que são os direitos de não intervenção na liberdade pessoal e nos bens fundamentais), partindo-se do critério da natureza da posição jurídico-subjetiva da pessoa, titular do direito. A efetivação dos direitos sociais é obrigação do Estado e tal cumprimento pode ser exigido por qualquer pessoa. Dessa forma, os direitos sociais são necessidades humanas fundamentais e o seu conteúdo (artigo 6º, CF/88) não é programa de orientação a ser seguido pelo Poder Legislativo e pelo Executivo, e sim, constitui-se em verdadeira exigência dos cidadãos, frente ao Estado, pois tais direitos são essenciais a uma vida digna. Devido sua relevância no contexto constitucional, os direitos sociais são cláusulas pétreas e estão protegidos contra reformas tendentes a aboli-los. Ressalta-se que o legislador, devido a sua falta técnica, cometeu diversas imperfeições no capítulo que aborda os direitos sociais, por exemplo, quando alinhou ao lado do artigo 6º, juntamente com direitos e deveres que devido sua natureza realmente deveriam se encontrar no referido capítulo, outros direitos que só deveriam ser objeto de disciplina em sede de lei ordinária. 3.5 MANDADO DE INJUNÇÃO

O Mandado de Injunção é um novo remédio processual, uma das mais originais e significativas inovações da Constituição Brasileira de 1988, disposto nos termos do artigo 5º, inciso LXXI15. 15. “conceder-se á mandado de injunção sempre que a falta de norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.”

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O que se questiona em relação ao Mandado de Injunção é a sua auto aplicabilidade, pois não há entendimento pacífico se este se encontra ou não na esfera da regulamentação complementar, o que faz com que seus efeitos positivos e concretos recém implantados pelo sistema sejam retardados, ficando sempre no aguardo da técnica protetora. O Mandado de Injunção torna todas as normas constitucionais potencialmente aplicáveis de forma direta e visa fazer valer um direito previsto em norma constitucional que possui seu exercício inviabilizado devido à falta de regulamentação. Nesse contexto, a norma criada pelo Poder Judiciário não possui efeito erga omnes, mas apenas inter partes, uma vez que a função típica deste poder não é a de legislar. Com o advento do Mandado de Injunção, o constituinte buscou superar a falta de efetividade de determinadas regras constitucionais que, em regimes anteriores, permaneciam sem validade, por inércia do legislador em regulamentar os direitos delas decorrentes. 3.6 MANDADO DE SEGURANÇA COLETIVO

O mandado de segurança coletivo é outra nova garantia instituída pelo artigo 5º, LXX da Magna Carta de 198816. O mandado de segurança coletivo se refere ao antigo mandado de segurança, porém com algumas significativas mudanças, como a simplificação e a economia de tempo e de trabalho e a cessação da possibilidade de decisões que por si só são logicamente conflitantes. Os direitos que podem ser abordados no mandado de segurança coletivo são os comuns a um grupo de pessoas que estão unidas em uma relação-base com a ressalva de que esse remédio constitucional só se presta a defender direito líquido e certo de uma determinada categoria e não de um ou alguns membros de uma entidade representativa. Também são discutidos no mandado de segurança coletivo, os direitos difusos e os individuais homogêneos. Narra Áurea Pimentel Pereira17 que “de anotar-se que no mandado de segurança coletivo, as entidades vêm a juízo, em nome próprio, para a defesa de seus filiados, em verdadeira substituição processual. Nesse caso, não terá 16. “o mandado de segurança coletivo pode ser impetrado por: a) partido político com representação no Congresso Nacional; b) organização sindical, entidade de classe ou associação legalmente constituída e um fundamento há pelo menos um ano, em defesa dos interesses de seus membros.” 17. PEREIRA, Áurea Pimentel. Estudos Constitucionais. Renovar: Rio de Janeiro, 2001. p. 188.

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cabimento exigir-se que a entidade compareça a juízo, devidamente autorizada por seus filiados”. Os direitos em questão, portanto, devem ser comuns a todos os filiados e possuir relação com as finalidades vislumbradas pela entidade, defendendo direito líquido e certo da categoria e não interesses individuais dos membros da entidade. Em relação aos efeitos que produz, entende Sérgio Ferraz (in Áurea Pimentel Pereira18) que: diversamente do que ocorre em outras entidades ‘de representatividade estrita’- sendo o writ ajuizado por sindicato, não só seus associados, mas toda a categoria econômica ou operária, por ele tutelada, é atingida pelos efeitos da coisa julgada” e acrescenta: “Assim, é por toda força da extensão da representatividade sindical expressamente assentada, por exemplo, no art. 513 da Consolidação das Leis do Trabalho”.

3.7 HABEAS DATA

A época militar-autoritária foi um período de repletas distorções e abusos, sendo que um dos piores destes foi o abuso na utilização de informações que diversos organismos mantinham sobre as pessoas. Os órgãos de segurança se envolviam com a política comum da época e perseguiam adversários e a denominada comunidade de informações passou a dar ensejo a um poder paralelo e extremamente agressivo que, por inúmeras ocasiões, sobrepunha-se ao poder político institucional, fazendo o uso de meios ilícitos para finalidades condenáveis operando com frequência nas fronteiras da marginalidade. Portanto, fazia-se necessário um sistema de segurança para o estado, tratava-se de um anseio político que foi atendido pelo constituinte através do habeas data na Constituição federal de 1988, em seu artigo 5º inciso LXXII19. Nesse diapasão, observa-se que o habeas data possui dois efeitos, quais sejam: o de garantir o acesso e o conhecimento às informações, bem como dar ensejo a sua retificação, sem a necessidade de ser ajuizadas duas ações diferentes para cada uma das providências. Porém, o direito material que visa o acesso ás informações protegidas via habeas data não é absoluto, pois, há a ressalva prevista na Lei Maior que se tratam das informações que o sigilo seja imprescindível para a segurança da sociedade e do Estado. 18. Idem, p. 188. 19. “Conceder-se á habeas data: para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público; para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo.”

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Nota-se que esse juízo de valor não cabe, discricionariamente, ao órgão público detentor da informação e, sim, de pronunciamento justificado e motivado da autoridade judiciária competente. Havendo negativa quanto ao fornecimento das informações, cabe habeas data através da via administrativa. 4 DOS PODERES NA CONSTITUIÇÃO DE 1988 4.1 DO PODER LEGISLATIVO

Abordar o poder legislativo estruturado na Carta Magna de 1988 implica em tratar algumas das promessas que não foram cumpridas por esse novo ordenamento. A Assembleia Nacional Constituinte de 1987-1988 instituiu as regras e princípios que norteiam o processo legislativo nacional, pautado na criação de leis que buscavam o restabelecimento das prerrogativas do Congresso Nacional e do equilíbrio entre os poderes, além das expectativas de institucionalização de instrumentos de participação dos cidadãos nas decisões públicas. A nova Carta Magna, portanto, apresentava conteúdos promissores que traduziam o contexto de mobilizações políticas e sociais que, desde 1977 até 1988 refletiam a transição do regime militar para a democracia. No texto promulgado, bem como nos debates sobre o processo legislativo restou determinado que fossem reestabelecidas as competências legislativas usurpadas do Congresso Nacional pelo autoritarismo militar, e promovidas a abertura dos processos legislativos para a participação popular. Adriano Pilatti disserta sobe Processo Legislativo: Conforme o novo modelo, o exercício da soberania popular passaria a incluir, se não rotineiramente, pelo menos sem caráter de excepcionalidade: a utilização de institutos clássicos de democracia semidireta como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular legislativa ( CF, art.14); a propositura da ação popular, ampliada em seu objeto ( CF, artigo 5º, LXXIII); a propositura da ação indireta de inconstitucionalidade por ação ou omissão, e de mandado de segurança coletivo, por entidades não governamentais ( CF, artigos 5º, LXX, e 103, VII a IX); a impetração de mandado de injunção e habeas data ( CF. art. 5º, LXXI); a participação de trabalhadores nos colegiados de órgãos públicos competentes para dispor sobre interesses profissionais e previdenciários ( CF, art.10); a cooperação das associações representativas no planejamento municipal ( CF, art. 29. XII); o direito de qualquer cidadão, partido político, associação ou sindicato apresentar denúncia ao Tribunal de Contas da União contra ilegalidades ou irregularidades na gestão da seguridade social, do sistema único de saúde e da assistência social 9CF, artigos 194, parágrafo único,

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198, III, e 204, II); a gestão democrática do ensino público ( CF, art. 206, VI), dentre outros. 20

Os institutos acima mencionados permitem a manifestação da potência constituinte da cidadania, sem sobrecarregar os atos dos titulares dos poderes constituídos, que diziam respeito aos institutos que visavam garantir o exercício de direitos consagrados pela Lei Fundamental. O novo texto tampouco poupou esforços e promessas no que concerne à emancipação do Congresso Nacional como instituição legislativa, prometendo um novo modelo que superasse os inconvenientes de nossas leis fundamentais no momento pós-guerra. Para tanto, era necessário limitar os excessivos poderes legislativos que foram dados ao executivo na ditadura militar e era necessário evitar o retorno à ortodoxia liberal-presidencialista da constituição de 1946 que não fornecia ao executivo os instrumentos com eficácia para participar na definição da agenda bem como na velocidade dos processos legislativos. Nesse diapasão, a Assembleia Legislativa Constituinte de 1987-1988 não poupou esforços para tentar restabelecer o papel central do Legislativo no quadro da separação de poderes e, com efeito, o novo texto da Carta Magna restabeleceu suas prerrogativas bem como ampliou sua competência decisória. A Constituição de 1988 incluiu representantes do Congresso Nacional na elaboração dos Conselhos da República e de Defesa Nacional, além de legitimar as mesas do senado, da Câmara e das Assembleias legislativas a propor ação direta de inconstitucionalidade e ainda concedeu ao legislativo nacional a iniciativa de empregar às forças armadas na defesa da lei e da ordem. A Carta Magna de 1988 manteve a sistemática advinda da carta de 1967 que disciplina todo o conteúdo em seção do capítulo destinada ao processo legislativo. A acepção ampla da expressão recebida nas constituições de regime militar que abrangiam a disciplina de criação não apenas da lei formal em sentido estrito, mas sim de todas as espécies normativas do ordenamento jurídico brasileiro manteve-se igual, o que se diferenciou foi o conteúdo dos princípios e regras do processo legislativo brasileiro que aparentavam um modelo democrático totalmente diverso do militar. Essa ruptura com o modelo anterior foi muito mais aparente do que real, em especial no que concerne a participação do executivo no processo legislativo, todavia, permaneceram institutos como a iniciativa 20. PILATTI, Adriano. Processo Legislativo na Constituição de 1988. In CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p. 78.

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presidencial em matéria constitucional, reserva de iniciativa legislativa ao Executivo, possibilidade do Presidente da República solicitar urgência para apreciar projetos de lei de sua iniciativa, a delegação legislativa ao executivo e garantiu-se ao presidente da república a edição de normas legais com vigência imediata e posteriormente sujeitas à apreciação do congresso nacional. Embora tenham sido criados todos esses instrumentos para garantia a democracia, não houve mudanças significativas nesse sentido. A participação direta da cidadania de certa forma não existiu. Adriano Pilatti conclui que: Não tem clara noção da natureza dessas requintadas “promessas não cumpridas”, desconhece a importância e a extensão do que lhe foi negado, sendo natural que não sinta falta de uma potencia que nossa gente poucas vezes teve condições de exercitar em séculos de servidão. Nem mesmo as recentes supressões e restrições de diretos previdenciários e trabalhistas, duramente conquistados e constitucionalizados, parece motivo bastante para o exercício do direito de resistência. 21

Conclui-se que o processo legislativo da Constituição Brasileira de 1988 lutou pelas liberdades democráticas, porém na prática não fez jus as suas promessas. 4.2 DO PODER JUDICIÁRIO

A Constituição de 1988 em seu Capítulo III (artigos 92 a 126) dedicou-se ao poder Judiciário lhe reservando autonomia administrativa e financeira, definindo sua estrutura e direitos e garantias de seus integrantes (como vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos). Restaram estabelecidos critérios para ingresso na carreira, promoção e acesso de seus integrantes aos tribunais, foram fixados limites para o recebimento dos subsídios, foram estabelecidas regras gerais para a aposentadoria, remoção e disponibilidade de juízes, foram escolhidas as vagas do quinto constitucional nos tribunais, restauram-se enunciados os princípios básicos que devem ser observados quando dos julgamentos, foi deferida competência aos tribunais para o julgamento de seus juízes (exceto a competência especial da Justiça Eleitoral) e o controle de constitucionalidade de leis e atos normativos do Poder Público. A maior inovação da Magna Carta de 1988 no que concerne a estruturação do Poder Judiciário foi criação do Superior Tribunal de Justiça 21. PILATTI, Adriano. Processo Legislativo na Constituição de 1988. In CAMARGO, Margarida Maria Lacombe (org.). 1988-1998: uma década de Constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1988. p. 90.

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como corte responsável por uniformizar a jurisprudência da legislação federal, portanto, passou a ser o órgão de cúpula da Justiça Comum, tanto da estadual quanto da federal, e nesse diapasão o Supremo Tribunal Federal pôde assumir traços e características de Corte Constitucional, como o maior guardião da Constituição. A sistemática recursal em âmbito do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal aprecia a questão infraconstitucional debatida na decisão do Tribunal Regional Federal ou do Tribunal de Justiça e havendo o envolvimento de matéria constitucional a parte interessada deverá interpor, simultaneamente, recurso especial para o Superior Tribunal de Justiça e recurso extraordinário para o Supremo Tribunal Federal. Trata-se de um modelo deficiente, pois, se a questão for resolvida no âmbito da legislação infraconstitucional, haverá uma interposição antecipada de recurso desnecessária. Outra inovação da Carta Política de 1988 concerne aos Juizados Especiais, que tratam de ações cíveis e criminais para pequenas causas com a implementação do ideal de melhor acesso à justiça. Trata-se de uma simplificação de seus procedimentos, que dispensa advogados na promoção da conciliação e a revisão é feita por turma de juízes de 1ª instância, um modelo ágil e barato para ajudar a solucionar os conflitos da sociedade. A estrutura judiciária brasileira é complexa e lenta, pois, na prática qualquer demanda pode ser levada ao Supremo Tribunal Federal e a Constituição Federal de 1988 visando diminuir essas demandas criou as ações coletivas: o mandado de segurança coletivo e a ação civil pública para defender os interesses difusos e coletivos. São ações que permitem a extensão da decisão de uma demanda a todos que são afetados pela mesma causa. Outro instrumento de solução rápida das controvérsias constitucionais é em sede de controle de constitucionalidade, trata-se da Emenda Constitucional nº3 de 1993 que é a ação declaratória de constitucionalidade, intentada pelo governo quando houver dúvidas sobre as medidas provisórias que edite. 4.3 DO PODER EXECUTIVO

A atual Magna Carta teve o regime presidencialista, com o Poder Executivo liderado pelo Presidente diretamente eleito pelo povo (artigo 1º, parágrafo 1º), que acumula funções de chefe de Estado e chefe de governo. O novo texto constitucional foi escrito partindo da premissa de que o sucesso

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da democracia dependia da capacidade do governo em dar respostas rápidas às demandas da sociedade moderna. Nesse contexto, para solucionar a morosidade do Legislativo, a Constituição de 1988 buscou fortalecer o Poder Executivo, uma vez que se trata do conjunto de órgãos e autoridades que possuem a função administrativa e respeita os princípios da soberania popular (artigo 1º, CF/88) e da representação (artigo 2º, CF/88), regulado nos artigos 76 a 91 da CF/88. Tal poder é exercido nas três esferas de governo. Na direção dos negócios do Estado, tal poder atua diretamente através dos ministérios e órgãos da administração indireta, que se dedicam a determinadas atividades econômicas, cuja exploração é de interesse do governo e das sociedades de economia mista. No plano federal, o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, eleito por sufrágio popular e direto, em eleição de dois turnos e, em hipóteses de impedimento é substituído pelo Vice-Presidente e recebe colaboração dos Ministros de Estado. Na esfera estadual, referido poder é exercido pelo Governador que, se necessário, pode ser substituído pelo Vice-Governador e recebe auxilio dos Secretários de Estado. Em relação ao âmbito municipal, tem-se a figura do Prefeito, substituível pelo Vice-prefeito e auxiliado pelos Secretários Municipais. A segurança pública é uma das tarefas que o Poder Executivo deve desempenhar para realizar o bem comum, que é um dos objetivos da República Federativa do Brasil (artigo 3º, CF/88). Para a realização dessa função, criouse as Forças Armadas que possuem como objetivo manter a ordem interna e soberania externa. Os constituintes procuraram responder de forma a sanar as falhas identificadas na experiência constitucional anterior e superar os problemas causados pela arquitetura institucional de 1891 e de 1946, de forma que o Congresso possui a possibilidade em alterar a proposta orçamentária e definir os gastos públicos, limitando-se a investimentos. Ainda, não se retirou do Executivo a capacidade de ditar a pauta dos trabalhos legislativos, por meio da edição de Medidas Provisórias e da solicitação unilateral de urgência, que traduz a força de deliberação das matérias de seu interesse. A prerrogativa de propor alterações do status quo encontra-se concentrada nas mãos do Executivo, uma vez que a atual Magna Carta dotou o Poder Executivo das prerrogativas necessárias para governar. O poder de agenda, porém, não confere ao Executivo a possibilidade de governar contra a vontade

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da maioria, pois, inadmissível alternativa ao princípio majoritário, já que o voto da maioria dos membros do Congresso Nacional é uma condição para a aprovação de leis. Observa-se que o Poder Executivo continua dominando e interferindo assiduamente no Poder Legislativo. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Embora pesem inúmeras críticas, à Magna Carta de 1988 com certeza é a mais democrática que o Brasil já possuiu e ocorreu no momento em que o país saía de um regime antidemocrático e por meio de Assembleia Constituinte, foi contemplada como um instrumento de reconquista da liberdade através de uma nova ordem jurídica considerada justa e democrática. O preâmbulo da Constituição Federal de 1988 demonstra o desejo do legislador de exigir do Estado à promoção do bem-estar geral e o conteúdo do texto constitucional possui um magnífico rol de direitos fundamentais, sendo a dignidade da pessoa humana um dos fundamentos da República, de forma que se restaram ampliados os instrumentos jurídicos para proteção dos direitos, tudo em prol da busca por uma sociedade democrática e pacífica. Os direitos sociais foram criados para proteção das pessoas mais vulneráveis e buscam equalizar situações desiguais, em prol da efetivação dos direitos fundamentais do homem, que foram considerados de suma importância com a Lei Maior. Também visando assegurar o exercício dos direitos fundamentais, foram criadas as garantias do mandado de injunção, mandado de segurança coletivo e habeas data. A criação do Superior Tribunal de Justiça foi considerada uma das maiores inovações do Poder Judiciário, podendo o Supremo Tribunal Federal assumir traços e características de uma verdadeira Corte Constitucional. O poder legislativo lutou pelas liberdades democráticas, mas, não cumpriu suas promessas e a extensão do texto constitucional de 1988 não é justificativa para o Congresso Nacional ainda não ter elaborado muitas das leis complementares que seriam sua obrigação e ainda ser conivente com atos inconstitucionais, como a avalanche de medidas provisórias realizadas pelo Executivo. A Constituição é vasta em virtude do temor do povo brasileiro, baseada em precedentes da própria história do país de que as normas nunca fossem devidamente regulamentadas pelo Congresso, porém, isso não é desculpa para que estas não sejam efetivadas e, vinte e quatro anos depois da entrada em vigor

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da Constituição, as normas de direitos humanos que nela se inserem continuam sendo ignoradas. A Constituição Brasileira de 1988 não é e nunca será perfeita, assim como o seu povo e isso não pode ser justificativa no ponto de vista dos que julgam o Brasil um país ingovernável. REFERÊNCIAS

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PARTE II tEMaS RElEVaNtES E SEu tRataMENto Na HIStÓRIa CoNStItuCIoNal BRaSIlEIRa

CAPÍTULO IX

o MEIo aMBIENtE NaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS DE 1824 a 1988

Manoel Browne de Paula

Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Meio Ambiente, MBE, pela COPPE/UFRJ. Legal and Law Master em Direito Empresarial pelo IBMEC. Responsável pela Gerência de Relações Institucionais e Meio Ambiente da Lwart Lubrificantes Ltda. Palestrante.

INTRODUÇÃO

O desafio da era do verde é mudar essa visão preconcebida que a sociedade de um modo geral adota ao falar do desenvolvimento sustentável. Os jargões estão sendo empregados sem base científica, implicando em falsas impressões e na aplicação equivocada do direito ambiental, especialmente o constitucional ambiental. Impõem-se novos paradigmas, com ações, mudança de hábito, de forma que a sociedade consiga assimilar à imposição das normas ambientais constitucionais na sua cultura, para que a sustentabilidade, quando praticada, obedeça aos critérios de veracidade, exatidão, pertinência e relevância. É preciso combater menções genéricas e vagas. É preciso consignar que o Desenvolvimento Sustentável, considerado pela compatibilização do artigo 225 com o artigo 170, inciso VI da Constituição de 1988, foi uma construção ambiental que veio ao mundo jurídico para tratar e contribuir como ferramenta para o bem-estar e qualidade de vida, sem renunciar o desenvolvimento econômico responsável.

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O texto propõe fazer uma releitura das constituições federais de 1824 a 1988 e encontrar expressamente, ou nas entrelinhas, as justificativas que levaram os brasileiros a praticar atos que abominam na teoria, mas os exercitam na pratica, dispondo inadvertidamente de um direito indisponível que é da coletividade. A transição de uma cultura pré-concebida que está em uma odisseia desvairada de crescimento e consumo insustentável, para uma mudança de rumo e partir para sociedade sustentável, exigirá visão e atitude integrada de curto e longo prazo, com foco na equidade para o bem estar, preceitos estes arraigados no meio ambiente constitucional. 1 BREVE HISTÓRICO DA INFLUÊNCIA DA NORMATIVIDADE AMBIENTAL

A partir da década de 60 iniciou-se a discussão e o estudo mais aprofundado acerca dos efeitos e as consequências da interferência humana no meio ambiente, do ponto de vista positivo ou negativo. Referido movimento é creditado ao pensamento cultural que se iniciava em defesa da ecologia, com crescimento das revoluções comportamentais, seguido do momento histórico pós-segunda guerra, quando houve a intensificação do processo civilizatório pela aglomeração humana e o avanço da tecnologia industrial o que, via de consequência, começou a acentuar os impactos no ecossistema por conta da ação humana transformadora em larga escala. Com a publicação do Livro “Primavera Silenciosa” em 19621, houve uma mudança na percepção da sociedade sobre do funcionamento da biosfera. Neste livro a escritora americana Rachel Carson denunciava o desaparecimento dos pássaros nos campos dos Estados Unidos, provocado pela utilização do pesticida DDT na agricultura em larga escala. Foi a primeira vez que a ciência cientista conseguiu transmitir para milhões de pessoas, que o modo de vida inconsequente levado pela sociedade até então afetava os sistemas de apoio à vida no nosso planeta, não obstante haver desde a década de 1950 2 3 uma gestão do tema na Europa e nos Estados Unidos. Essas manifestações sem sombra de 1. CARSON, Rachel L. Primavera Silenciosa. Tradução Claudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Gaia, 2010. 2. Roberto Burle Marx já trazia em seu pensamento a partir das décadas de 1950, uma visão de que era necessário um modelo de desenvolvimento mais racional, mais interativo e respeitoso com os recursos naturais. E mandava essa mensagem em suas obras de jardins públicos que privilegiavam a flora regional e brasileira, também demonstrava por meio da arte e, muito ainda com seus manifestos em universidades e solenidade política, como exemplo de um discurso oficial no Senado Federal em 1975, quando apresentou e defendeu um modelo de equilíbrio ecológico, vocábulo ainda longe do cotidiano brasileiro, o que o confirma como um visionário. 3. Na mesma ocasião, o magistrado carioca Osni Pereira, com pioneirismo e sensibilidade sagaz, publicou um dos primeiros livros brasileiros a abordar o sobre meio ambiente, sob o título Direito Florestal Brasileiro, que ia além de comentar o código florestal vigente.

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dúvidas repercutiram com grande influência nas ações que se seguiram. Nasce então um dos prelúdios da conscientização social e política sobre as questões ambientais. A partir deste momento o DDT foi proibido nos EUA. Com este ponto de reflexão a sociedade começou a exigir informações sobre as condições do meio ambiente em que viviam. Essas preocupações foram o mote para o surgimento das organizações não governamentais (ONGs) ambientalistas. No período da revolução industrial as inovações tecnológicas buscavam a otimização dos processos de produção, não considerando, na maioria dos casos, os efeitos nocivos sobre o ambiente. A poluição acarreta elevados custos para a sociedade e governo, com os danos à saúde das populações. Os custos ambientais das atividades econômicas aparecem quando a capacidade de assimilação do meio ambiente é ultrapassada. Estes custos eram externalizados enquanto transferidos para a sociedade sob diversos aspectos: assoreamento dos rios com eliminação da pesca, áreas contaminadas que ficaram impróprias para uso e danos a saúde da coletividade. O agravamento da poluição nos países desenvolvidos, provocado pelo crescimento da produção industrial e o início de uma maior conscientização sobre as questões ambientais, demandou uma resposta governamental para controlar o problema que se acentuava. Esta ação resultou no estabelecimento de padrões mais rigorosos de qualidade ambiental e de parâmetros de emissão de poluentes industriais, iniciando a internalização dos custos ambientais, que passaram a ser pagos de acordo com o potencial poluidor de cada atividade econômica. As pesquisas e o desenvolvimento de tecnologias visando a redução da poluição industrial foram inicialmente direcionados para a produção de caros e sofisticados equipamentos antipoluição, que eram acoplados aos processos produtivos existentes, para controle no final do processo, ou “end of the pipe”. A solução naquele momento foi o de resolver os efeitos da poluição, e não a busca pela causa raiz. Mas a partir dos anos 80 as pesquisas começaram a desenvolver tecnologia para melhoria dos processos de produção, com tecnologias “mais limpas” que reduziam a geração de resíduos para o ambiente, diminuindo os custos de controle da poluição. A poluição passou a ser vista como desperdício, sendo sintoma de ineficiência industrial com perda de matéria prima. As consequências decorrentes do crescimento econômico e produção a todo custo sem medir esforços, geradora de pressão sobre os recursos naturais e impactantes, era tratada em políticas públicas e legislações esparsas para temas pontuais, como água, floresta e minério, mas sem uma sistematização e visão

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do meio ambiente como um todo. Era privilegiado o aspecto econômico das atividades industriais, refletindo o cenário daquele período, por não haver conhecimento sobre os limites do crescimento e talvez por pouco caso com a dimensão solidária do direito, que hoje está posto como de terceira dimensão. O estopim para reflexão ambiental surgiu em 1972 com a Conferência da ONU em Estocolmo, Suécia, onde se conseguiu alertar aos países participantes sobre os efeitos nefastos da crescente poluição industrial e urbana, e sobre a necessidade de uma concreta normatização sobre a matéria, propondo o desenvolvimento de legislação e agências de controle e fiscalização ambientais. Este foi um marco para o início da transformação da consciência ecológica coletiva. A Declaração de Estocolmo inspirou diversos países de tal modo que as Constituições a partir da década de 1970 passaram a reconhecer o meio ambiente equilibrado como um direito fundamental. Foi um evento que transformou o meio ambiente em uma questão internacional, o que faz todo sentido, posto que é um tema transversal a todos os países. Referida declaração e seus princípios constituíram em matéria ambiental o primeiro conjunto de soft law, que são consideradas leis internacionais sem aplicação prática, apenas tidas como intencionais. O meio ambiente passou a figurar na lista de prioridades de várias agendas nacionais e regionais. Antes da Conferência de Estocolmo havia apenas 10 ministérios de meio ambiente no mundo, mas logo no início da década de 1980 cerca de 110 países (já) possuíam ministérios ou departamentos dedicados à pasta ambiental. O Brasil não subscreveu a Declaração de Estocolmo, mas os ideais foram incorporados na atual Constituição Federal. Os Estados-Nação subscreveram praticamente todos os vinte e seis princípios aprovados pelos participantes, deixando evidente o amadurecimento e conscientização de que o meio ambiente é uma questão transcendental. Não havia até este período uma preocupação efetiva com o meio ambiente, o que se credita a dois momentos históricos: o primeiro que reflete o momento político impregnado por uma visão voltada para o desenvolvimento industrial e capitalista e, por último, a disponibilidade, tida por muitos, como inexaurível dos recursos naturais. De acordo com o princípio número 1 da Declaração de Estocolmo sobre Meio Ambiente Humano, independente de ser “natural ou criado pelo homem, é o meio ambiente essencial para o bem-estar e para gozo dos direitos humanos fundamentais, até mesmo o direito à própria vida.”

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O então Ministro do Superior Tribunal de Justiça Antônio Herman Benjamin referindo-se ao descobrimento do Brasil aduz que, com chegada, os portugueses, viram “a riqueza de ‘terras e arvoredos’, que surpreendeu e, possivelmente encantou Pero Vaz de Caminha em 1500, finalmente foi reconhecida pela constituição brasileira de 1988, passados 488 anos da chegada dos portugueses ao Brasil.”4 Durante esses séculos muitas transformações ocorreram, com alternância em regimes de governo, ora ditatoriais e autoritários, tornando um ambiente pouco fértil para desenvolvimento de normas ambientais. Mas ainda sim houve movimentos importantes, com leis que buscavam tratar da exploração dos recursos naturais em condições razoáveis de manejo e utilização. Como exemplo pode-se citar o Código de Águas (Decreto n. 24.643 de 1934), o Código Florestal (Lei n.4.771 de 1965), e a mais abrangente das leis que foi a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei n.6.938 de 1981). É fato que a despeito de avanços na legislação como tendência mundial, principalmente a partir da década de 1960, a consecução de tais normas ficaram por muito tempo no campo da abstração, o que se credita ao momento políticoeconômico, mas com a consolidação democrática (política-jurídico com acesso à justiça) em 1988, foi dado início formal ao surgimento de outros cenários, permitindo a concretização em decorrência do ambiente mais propícios a esse fim. 2 A PRESENÇA DO MEIO AMBIENTE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Após compreender a evolução da proteção ambiental no mundo a partir do século XX, o que é necessário para entender sobre a chegada dessa ciência no Brasil, verificar-se-á que o Poder Constituinte pensava na tutela da saúde humana, ainda que não priorizada, como se constata com a leitura dos textos constitucionais anteriores a 1988. Os estudos doutrinários sobre o meio ambiente nas constituições anteriores a 1988 tendem a mencionar que o tema só veio a ser formalizado 4. “Tantos anos após, ainda há fartura em “terras e arvoredos”, mas, definitivamente, o país mudou. Passou de colônia a Império, de Império a república; alternou regimes autoritários e fases democráticas; viveu diferentes ciclos econômicos; migrou do campo para as cidades; construí meios de transportes modernos; fomentou a indústria; promulgou a Constituições. A começar pela de Dom Pedro I, 1824; aboliu a escravatura e incorporou direitos fundamentais no diálogo do dia-a-dia. Como é evidente, tudo nesse período evoluiu, menos a percepção da natureza e o tratamento a ela conferido. Somente a partir de 1981, com a promulgação da Lei n. 6.938/81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), ensaiou-se o primeiro passo em direção a um paradigma jurídico-econômico que holisticamente tratasse e não maltratasse a terra, seus arvoredos e os processos ecológicos essenciais a ela associados. Um caminhar incerto e talvez insincero a princípio, em pleno regime militar, que ganhou velocidade com a democratização em 1985 e recebeu extraordinária aceitação na Constituição de 1988.” CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. Pg 89.

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a partir da constituição vigente, e por conta disso pouca abordagem foram realizadas. No entanto, com uma análise mais detida, foi possível encontrar a presença do tema, ainda que de maneira implícita e com viés de “bem a serviço do homem”, em todas as constituições. Para buscar nas Constituições passadas os elementos que remetem à proteção do meio ambiente, qualquer que seja a menção, direta ou indireta, impõe-se estabelecer como parâmetro o conceito e o tratamento dado pela Constituição Federal de 1988, para tornar possível a digressão sobre a temática desde a primeira Constituição, em 1824. A partir da leitura da Constituição Federal de 1988, pode-se afirmar que o primeiro fundamento para a tutela ambiental é o de proteger a saúde humana, que tem por pressuposto a saúde ambiental. A tutela da qualidade do meio ambiente é instrumental no sentido de que, através dela, o que se protege é um valor maior: a vida. Há uma inserção incisiva do conteúdo humano e social no conceito de meio ambiente. O direito ao ambiente emana do princípio da dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, um direito humano. O meio ambiente é considerado um bem essencial à sadia qualidade de vida, em função disso, se não for respeitado, não se poderá falar em qualidade de vida e bem estar, que é o desiderato constitucional e fundamento da República. Com o marco histórico da Declaração de Estocolmo das Nações Unidas sobre Meio Ambiente Humano, fortificou-se a ideia em torno de ser um direito humano a viver em um ambiente equilibrado e salubre, considerado essencial para realização humana. Com efeito, o bem-estar ambiental é mandamento para uma vida digna, integrando, portanto, o núcleo basilar do conteúdo normativo do princípio da dignidade da pessoa humana. Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer asseguram que: A vida situada em um quadro ambiental degradado compromete o livre desenvolvimento da personalidade humana, especialmente no que diz respeito à integridade psicofísica do ser humano, que comporta, nas palavras de Bodin de Morais, um “amplíssimo direito à saúde”, compreendendo um “bem-estar psicofísico e social. 5

Com um capítulo específico sobre meio ambiente dentro do título da ordem social (Título VIII – Da ordem social, art. 193; Capitulo VI – Do meio ambiente, art.225) o artigo 225 da Constituição Federal de 5.

SARLT, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revistas dos tribunais, 2011. Pg. 39.

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1988 destacam-se em seu conteúdo elementos chaves que caracterizam o escopo funcional do meio ambiente, com a existência do direito material constitucional caracterizado como “direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”. Referindo-se a uma relação jurídica que envolve um “bem ambiental”, tido como “essenciais à sadia qualidade de vida” e “bem de uso comum do povo”, com destaque ao valor do bem ambiental para a sadia qualidade de vida, a Constituição atribuiu ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar os referidos bens, como desiderato da defesa e preservação pelo Poder Público e a coletividade, o bem ambiental é zelado para as presentes e para as futuras gerações. Não obstante ter o meio ambiente recebido uma dedicação específica de destaque na Constituição Federal, ainda há matérias previstas em inúmeros outros dispositivos constitucionais, ora de forma direta e por vezes de maneira indireta. Nesse sentido, cumpre ressaltar a importância de fazer sempre uma interpretação sistemática da constituição, nunca examinando o artigo matriz do meio ambiente isoladamente, mas conjugando-o com outros, especial o artigo 170 que trata da ordem econômica. Na compatibilização desses artigos é que está o maior desafio do modelo econômico e jurídico-político da sociedade brasileira contemporânea, atroz de uma conciliação entre o desenvolvimento econômico e a utilização racional dos recursos naturais, com o objetivo de encontrar e consolidar o princípio do desenvolvimento sustentável. 3 CONSTITUIÇÕES ANTERIORES A 1988

Não houve na história das constituições brasileiras que vigeram antes de 1988, uma preocupação direta com o meio ambiente. Sequer mencionavase a expressão nos textos constitucionais, o que faz crer que havia uma despreocupação com o espaço habitado e as consequências decorrentes da exploração dos recursos naturais, ainda que de forma dissociada houvesse um cuidado com a saúde. A menção feita à proteção do meio ambiente que se identifica nas constituições passadas está limitada à proteção pontual da saúde, da beleza cênica, do patrimônio histórico, cultural e paisagístico. As normas mostravam preocupação indireta, ao tratar da saúde do cidadão e da proibição de indústrias nocivas. Houve uma omissão legislativa, reforçando a tese de que a sociedade ainda não demandava tal imposição, seja por não conseguir

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mensurar as consequências da degradação, ou mesmo por impossibilidade diante da forma de governo que predominava até o início do século XX. O tratamento dado à proteção do meio ambiente não oferecia a sistematização necessária para uma integração das diversas variáveis acerca da matéria ambiental. As constituições conferiram à União a competência para regulamentação de temas específicos como minério, caça e pesca, florestas e o subsolo, o que permitiu a construção de legislações infraconstitucionais, algumas ainda vigentes em pleno século XXI. O grande problema em se ter legislações ambientais infraconstitucionais cuidando de tema decorrente da divisão de competência das Constituições, para União, Estado e Municípios, é que sua aplicação por vezes dependia de regulamentação e de uma vontade política incorporada à administração pública, incluindo Judiciário, o que não era regra, além do desconhecimento da sociedade em geral, que não demandava sua concretização. Exemplo clássico (dessa despreocupação ecológica) é o Código Florestal, Lei nº 4.771 de 15 de setembro de 1965, que foi produzido com sapiência científica, mas o seu valor legal foi muito pouco exercitado, o que se comprova com a supressão quase que total da Mata Atlântica, do Cerrado e, inclusive, das pequenas áreas remanescentes destinadas à Reserva Legal do início de sua vigência até os dias atuais, a qual foi garantida por reiteradas publicações da medida provisória nº 2.166 de 2001. Por não haver um impacto tangível no econômico e perceptível no social e na saúde de forma imediata, não havia uma preocupação pública com o planejamento e administração do meio ambiente, tanto natural quanto o artificial, o que fez com que não fosse objeto das constituições passadas, portanto, ausente de uma proteção integrada, inerente à amplitude do tema, em função de seu caráter multi e interdisciplinar. Por séculos o país foi objeto do extrativismo, e ainda não se vê livre e independente, figurando como colônia, enviando madeira, minério, balata e outras matérias primas nobres que saem do país para indústrias de transformação e voltam como produtos manufaturados com valor agregado. De todo modo, há que se admitir que o Constituinte manteve intenção em conferir ao meio ambiente certo grau de proteção, o que se poderá constatar com os traços em comum das constituições brasileiras de 1824 a 1988, com tratamento dado a determinados ecossistemas (água, caça, pesca, mineração e cultura), bem como, a saúde, educação, função social da propriedade, que em uma visão ampliada do direito de solidariedade são indiretamente a base do meio ambiente.

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3.1 A CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO DE 1824

Predominavam no Brasil atividades eminentemente extrativistas, com exportação de madeiras nobres, minério e produtos agrícolas, mas, a Constituição do Império, de 1824, não deu a devida importância e cuidado aos recursos que eram explorados. Esta constituição é tida, inclusive, como irrelevante acerca da matéria ambiental, mas, com uma análise mais detida, pode-se notar que houve um sinal de partida, ainda que perfunctoriamente, sobre proibição de instalação de indústrias contrárias à saúde do cidadão (art. 179, inc. XXI e XXIV), o que era um avanço, se considerar que ainda vige na Constituição Federal de 1988 dispositivos que impõem limites para instalação de atividades industriais. Referido controle atual limitativo está no Título da Ordem Econômica e Financeira, artigo 170, inciso VI da Constituição Federal de 19886. 3.2 CONSTITUIÇÃO FEDERAL REPUBLICANA DE 1891

No texto republicano de 1891 permaneceu a omissão legislativa objetiva; frise-se objetiva porque nunca houve abordagem direta sobre a matéria até a Constituição Federal de 1988. Havia, contudo delimitação da competência material e legislativa para os órgãos e entes estatais para realizar suas funções. De toda sorte, o Poder Constituinte de certa maneira pensava no assunto, pois delegou a União à competência legislativa para tratar de pontos específicos, como minas, terras, agricultura (artigos 3, 34, 35, 60 e 72). A cultura predominante neste período privilegiava o aspecto econômico e, portanto, a proteção aos burgueses, considerados os geradores de riquezas7. 3.3 A CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1934

A Constituição de 1934, que concedeu ao Estado condições de intervir na ordem econômica, adotava como princípio o bem-estar social. O patrimônio 6. Constituição Federal 1824 - Art. 179. “XXI. As Cadêas serão seguras, limpas, o bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos Réos, conforme suas circumstancias, e natureza dos seus crimes.; XXIV. Nenhum genero de trabalho, de cultura, industria, ou commercio póde ser prohibido, uma vez que não se opponha aos costumes publicos, á segurança, e saude dos Cidadãos.”; CF 1988 – Art. 170- A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. 7. Art 34 – (...) Congresso Nacional: 6º) legislar sobre a navegação dos rios (...); 29º) legislar sobre terras e minas; Art 35 - (...) Congresso: 2º) animar no país o desenvolvimento das letras, artes e ciências, bem como a imigração, a agricultura, a indústria e comércio(...); Art 60 - Compete aos Juízes ou Tribunais Federais, processar e julgar: g) direito marítimo e navegação assim no oceano como nos rios e lagos do País; Art 72 - A Constituição assegura: § 17 - O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude(...). As minas pertencem aos proprietários do solo, salvas as limitações que forem estabelecidas por lei (...).

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cultural (histórico e paisagístico) recebia proteção mesmo quando pertencente a propriedade particular, dando significado à limitação de sua utilização em determinadas situações. Tratou de determinados aspectos do meio ambiente natural e artificial, dedicando proteção às belezas naturais, ao patrimônio histórico, artístico e cultural (artigos 10, III e 148) e outros temas, como exemplo, o domínio de ilhas em divisas de estados, tidas como propriedades exclusivas da união e, a forma de aproveitamento industrial de jazidas (artigos 20, 21, 113 e 119). Foi mantida a delegação de competência à União, com mais entrega, houve uma delegação mais alargada, para que os assuntos fossem tratados de acordo com a pauta do tema na política e economia nacional. As matérias citadas foram: riquezas do subsolo, mineração, águas, florestas, caça, pesca e sua exploração (artigo 5º, XIX, j)8. 3.4 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1937

Em relação ao texto constitucional de 1937, de igual modo que a de 1934, se preocupou com a proteção dos monumentos históricos, artísticos e naturais, e dos ecossistemas nativos, dotados de natureza (artigo 134). Houve a inclusão de novos itens de proteção delegados à União, com a possibilidade de legislar sobre minas, águas, florestas, caça, pesca e sua exploração (artigo 16, XIV). Constou também como competência delegada à União tratar sobre subsolo, águas e florestas no artigo 18, “a” e “e”, além de proteger plantas e rebanhos contra moléstias e agentes nocivos. Com uma abordagem mais ampliada, enxergam-se outros pontos 8. Art 5º - Compete privativamente à União: XIX - legislar sobre: j) (...) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca e a sua exploração; § 3º - A competência federal para legislar (...) sobre registros públicos, desapropriações (...); riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca, (...). As leis estaduais, (...) suprir as lacunas ou deficiências da legislação federal(...). Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: III - proteger as belezas naturais e os monumentos de valor histórico ou artístico, podendo impedir a evasão de obras de arte; Art 20 - São do domínio da União: II - os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de um Estado(...); III - as ilhas fluviais e lacustres nas zonas fronteiriças. Art 21 - São do domínio dos Estados: II - as margens dos rios e lagos navegáveis, destinadas ao uso público (...). Art 113 - A Constituição assegura (...) a inviolabilidade dos direitos (...) à subsistência, (...) à propriedade, nos termos seguintes: 20) Aos autores de obras literárias, artísticas e científicas é assegurado o direito exclusivo de produzi-las. Art 119 - O aproveitamento industrial das minas e das jazidas minerais, bem como das águas e da energia hidráulica, ainda que de propriedade privada, depende de autorização ou concessão federal, na forma da lei. § 2º - O aproveitamento de energia hidráulica, de potência reduzida (...) independe de autorização (...). § 4º - A lei regulará a nacionalização progressiva das minas, jazidas minerais e quedas d’água ou outras fontes de energia hidráulica (...). § 5º - A União, nos casos prescritos em lei e tendo em vista o interesse da coletividade, auxiliará os Estados no estudo e aparelhamento das estâncias mineromedicinais ou termomedicinais. § 6º - Não depende de concessão ou autorização o aproveitamento das quedas d’água já utilizadas industrialmente na data desta Constituição, e (...) a exploração das minas em lavra, ainda que transitoriamente suspensa.

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destacados em diversos artigos esparsos e destaque ao meio ambiente do trabalho, que deveria observar condições hígidas para desenvolvimento laboral9. 3.5 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1946

Em 1946 a Constituição seguiu a mesma linha dos dispositivos das cartas anteriores e manteve a defesa do patrimônio histórico, cultural e paisagístico (artigo 175), como também assegurou a competência da União para legislar sobre normas gerais de defesa da saúde, riqueza do subsolo, das águas, florestas, caça e pesca. 3.6 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1967

A Constituição de 1967 trouxe em sua estrutura tratamento semelhante à constituição anterior, sobre a matéria temática, carregada com viés econômico. Também abordou a proteção do meio ambiente artificial, compreendendo o urbano e cultural, além do paisagístico (artigo 172, parágrafo único), e manteve a atribuição da União para legislar sobre normas ambientais gerais (artigo 8º, XVII, h, l)10. 9. (...) Art. 16. Compete privativamente à União: XIV - os bens do domínio federal, minas, metalurgia, energia hidráulica, águas, florestas, caça e pesca e sua exploração; Art. 18. Independentemente de autorização, os Estados podem legislar(...)sobre os seguintes assuntos: a) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia hidrelétrica, florestas, caça e pesca e sua exploração; c) assistência pública, obras de higiene popular, casas de saúde, clínicas, estações de clima e fontes medicinais; e) medidas de polícia para proteção das plantas e dos rebanhos contra as moléstias ou agentes nocivos; Art. 36. São do domínio federal: b) os lagos e quaisquer correntes em terrenos do seu domínio ou que banhem mais de um Estado (...); c) as ilhas fluviais e lacustres nas zonas fronteiriças.; Art. 37. São do domínio dos Estados: b) as margens dos rios e lagos navegáveis destinadas ao uso público, se por algum título não forem do domínio federal, municipal ou particular.; Art. 123. (...) O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva (...). DA EDUCAÇAO E DA CULTURA Art. 128. A arte, a ciência e o ensino são livres à iniciativa individual e a de associações ou pessoas coletivas públicas e particulares. Art. 134. Os monumentos históricos, artísticos e naturais, assim como as paisagens ou os locais particularmente dotados pela natureza, gozam da proteção (...). Art. 137. A legislação do trabalho observará (...): l) assistência médica e higiênica ao trabalhador (...); Art. 143. As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d’água constituem propriedade distinta da propriedade do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial. (...) § 2º - O aproveitamento de energia hidráulica de potência reduzida e para uso exclusivo do proprietário independe de autorização. § 4º - Independe de autorização o aproveitamento das quedas d’água já utilizadas industrialmente na data desta Constituição (...). Art 144. A lei regulará a nacionalização progressiva das minas, jazidas minerais e quedas d’água ou outras fontes de energia assim como das indústrias consideradas básicas ou essenciais à defesa econômica ou militar da Nação. 10. (...) Art. 5.º Compete à União: XV - legislar sobre: l) riquezas do subsolo, mineração, metalurgia, águas, energia elétrica, floresta, caça e pesca; Art. 6.º A competência federal para legislar sobre as matérias do art. 5º, nº XV, letras b , e , d , f , h , j , l , o e r , (...). Art. 28. A autonomia dos Municípios será assegurada: § 1º - Poderão ser nomeados pelos Governadores dos Estados ou dos Territórios os Prefeitos das Capitais, bem como os dos Municípios onde houver estâncias hidrominerais naturais, quando beneficiadas pelo Estado ou pela União. Art. 34. Incluem-se entre os bens da União: I - os lagos e quaisquer correntes de água em terrenos do seu domínio (...); Art. 35.Incluem-se este os bens do Estado os lagos e rios (...). Art. 152. As minas e demais riquezas do subsolo, bem como as quedas d’água, constituem propriedade distinta da do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial. Art.153. O aproveitamento dos recursos minerais e de energia

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3.7 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1969

Na Constituição de 1969, o tratamento acerca do meio ambiente seguiu o mesmo repertório de 1967 e, da mesma forma, estabeleceu as atribuições e competência da União. Trouxe expressão inovadora ao assentar a palavra “ecológica” no texto constitucional, assim consta no artigo 172: “a lei regulará, mediante prévio levantamento ecológico, o aproveitamento agrícola de terras sujeitas a intempéries e calamidades” e que o “mau uso da terra impedirá o proprietário de receber incentivos e auxílio do Governo”. Citado artigo demonstra, antes de Estocolmo, uma sagaz perspicácia, pois, em dois cortes, tratou do que hoje se denomina EIA-RIMA (Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental), instrumento sine qua non para a prática do desenvolvimento sustentável e mais, na segunda parte do mesmo artigo, regulou a função social da propriedade que, da mesma forma como se vê nos tempos atuais, continua aplicável e pode dar causa a desapropriação. 3.8 CONSIDERAÇÕES SOBRE AS CONSTITUIÇÕES PASSADAS

As constituições passadas, a partir de 1934, tiveram em comum a proteção do patrimônio histórico, cultural e paisagístico. De 1946 em diante houve uma consolidação da função social da propriedade, que tem por pressuposto







hidráulica depende de autorização (...). § 1º - As autorizações ou concessões serão conferidas exclusivamente a brasileiros ou a sociedades organizadas no País (...). § 2º - Não dependerá de autorização ou concessão o aproveitamento de energia hidráulica de potência reduzida. § 4º - A União, (...) auxiliará os Estados nos estudos referentes às águas termominerais de aplicação medicinal (...). Art. 157. A legislação do trabalho (...) obedecerão (...) preceitos, (...) que visem à melhoria da condição dos trabalhadores: VIII - higiene e segurança do trabalho; IX - proibição de trabalho a menores de quatorze anos; em indústrias insalubres, (...); XIV assistência sanitária, inclusive hospitalar e médica preventiva, ao trabalhador e à gestante; XVI - previdência, (...) em favor da maternidade e contra as consequências da doença (...); Art 175 - As obras, monumentos e documentos de valor histórico e artístico, bem como os monumentos naturais, as paisagens e os locais dotados de particular beleza ficam sob a proteção do Poder Público. Art 8º - Compete à União: XVII - legislar sobre: h) jazidas, minas e outros recursos minerais; metalurgia; florestas, caça e pesca; I) águas, energia elétrica e telecomunicações; CAPÍTULO IV Dos Direitos e Garantias Individuais; Art 150 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no Pais a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: § 14 - Impõe-se a todas as autoridades o respeito à integridade física e moral do detento e do presidiário. § 34 - A lei assegurará a expedição de certidões requeridas às repartições administrativas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações. Art 158 - A Constituição assegura aos trabalhadores os seguintes direitos, além de outros que, nos termos da lei, visem à melhoria, de sua condição social: IX - higiene e segurança do trabalho; X - proibição de trabalho a menores de doze anos e de trabalho noturno a menores de dezoito anos, em indústrias insalubres a estes e às mulheres; XV - assistência sanitária, hospitalar e médica preventiva; XVI - previdência social, mediante contribuição da União, do empregador e do empregado, para seguro-desemprego, proteção da maternidade e, nos casos de doença, velhice, invalidez e morte; XVII - seguro obrigatório pelo empregador contra acidentes do trabalho; XIX - colônias de férias e clínicas de repouso, recuperação e convalescença, mantidas pela União, conforme dispuser a lei;

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a utilização adequada do ponto de vista do direito do trabalhador e do meio ambiente, sob pena de desapropriação pelo Estado11. Mas essas limitações não foram suficientes para proteção efetiva do meio ambiente. Ficou evidente com o retrospecto sobre as constituições “antigas” que não houve por parte do legislador constitucional uma preocupação com a proteção do meio ambiente de forma holística, mas tão somente o cuidado com temas específicos e pontuais, de acordo com a conveniência, o que não denota, ao menos em um exercício de livre interpretação, um interesse prevencionista, pois não vimos um pensamento estruturado sobre avaliação de causa e efeito em relação à intervenção humana sobre o ecossistema. Na linha do tempo e seguindo os principais movimentos sobre a normatização ambiental, constata-se que até a Constituição Federal de 1988 a tutela do meio ambiente era realizada de acordo com a capacidade de aproveitamento dos recursos naturais, sem objetivos preservacionistas. A preocupação com a proteção do meio ambiente foi muitas vezes efêmera, se limitando a preocupação da poluição específica, o pleno uso dos recursos naturais e suas riquezas. Os bens eram tidos como fonte de utilidade, sendo o ambiente classificado de acordo com a sua finalidade: vital, estético ou cultural. A leitura que se faz desse momento é antropocêntrica, preponderando um arraigado interesse econômico. Os direitos fundamentais têm percorrido um caminho evolutivo contínuo, em constante transformação e aprimoramento. A crise ambiental deflagrada com a teoria da sociedade de risco em 1972 impulsionou uma compreensão mais alargada dos direitos fundamentais, para fazer incluir o aspecto ecológico, além dos já garantidos direitos liberais e sociais. Iniciava-se uma nova era: a era do direito classificado com uma dimensão de solidariedade. Esse novo contexto incluía não mais a visão kantiana individualistas do ser humano, mas iniciava o reconhecimento da dignidade para além da vida humana, incidindo sobre todas as formas de vida de um modo em geral, “à luz de uma matriz jus filosófica ecocêntrica, capaz de reconhecer a teia da vida que permeia as relações entre ser humano e natureza”, como assinalado por Ingo Wolfgang e Tiago Fensterseifer12. Com a forte influência internacional a partir dos princípios declarados 11. Art. 1.228. § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. 12. SARLT, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revistas dos tribunais, 2011.

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em Estocolmo em 1972, houve uma ruptura cultural por conta dos riscos consignados naquele documento, momento em que se inicia uma expressiva preocupação com o meio ambiente, porque sem o devido cuidado no manejo dos recursos ambientais naturais e artificiais, a saúde e a vida humana restariam comprometidas. Essa influência se irradiou por todos os países participantes, e por via reflexa todos os demais posteriormente. É a partir desse pacto global que surgem as primeiras normas ambientais, que tinham como escopo inicial a defesa da saúde humana, que é o pressuposto da saúde ambiental. No decorrer da década de 1970 o movimento em defesa do meio ambiente, iniciado por conservacionistas, como Alexandre Kiss, Jean Dorst, Maurice Strong, Gro Harlem Brundtland, Roberto Burle Marx, José Antônio Lutzenberger, José Goldemberg, Haroldo Mattos de Lemos e muitos outros, começa com a positivação de normas constitucionais ambientais em vários países, além de iniciar-se a escalada da normatização infraconstitucional com destinação ao bem ambiental, que em sentido lato alcança todas as formas de vida e tudo que nela está inserido. Surge então o ecocentrismo, tido como um movimento ambientalista que consiste em atribuir autonomia à natureza e seus elementos, que passam a receber tutela independentemente de sua utilidade pelo homem. Nessa linha os organismos não são simples objetos ou instrumentos a serviço do homem, mas sujeitos relevantes do ecossistema. Norma Sueli Padilha assevera que: A defesa do meio ambiente se fazia apenas pela via indireta da proteção da saúde, e não havia preocupação com a degradação ambiental, mas sim, com a degradação sanitária. Tal limitação da proteção jurídica aos contornos do direito à saúde se mostrou frágil para a defesa do meio ambiente e seus variados componentes, pois mesmo que a proteção ambiental implique, indiretamente, também a proteção da saúde humana, não se tratam, em absoluto, de direitos idênticos, apenas convergentes. 13

4 CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

É com a Constituição de 1988 que se traça o conteúdo, a direção e os limites da ordem jurídica. O tratamento dado ao meio ambiente deixa manifesto a importância do tema na atual conjuntura social. Como bem define Paulo de Bessa Antunes: 13. PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. São Paulo: Elsevier, 2010.

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A constituição Federal modificou inteiramente a compreensão que se deve ter do assunto, pois inseriu, de forma bastante incisiva, o conteúdo humano e social no interior do conceito. Diante da norma constitucional, é possível interpretar-se que o constituinte pretendeu assegurar a todos o direito de que as condições que permitem, abrigam e regem a vida não sejam alteradas desfavoravelmente, pois estas são essenciais, A preocupação com este conjunto de relações foi tão grande que se estabeleceu uma obrigação comunitária e administrativa de defender o meio ambiente. 14

Não obstante estar contido em um capítulo específico e exclusivo para o meio ambiente, a sua proteção ocorre direta e indiretamente. A constituição de 1988 é denominada verde por trazer em sua essência que o ser humano é o elemento ativo e determinante para o equilíbrio ou desequilíbrio da biodiversidade e, por essa razão, precisa conviver harmonicamente com a natureza. Com esta constituição, o meio ambiente foi elevado à categoria de bem jurídico per se, com autonomia em relação a outros bens protegidos pela ordem jurídica, como a saúde humana e outros bens inerentes a pessoa. Restou positivado o direito ao ambiente sadio como um direito fundamental, em que pese não estar no artigo 5º. No entanto, a Constituição faculta a incorporação de novos direitos fundamentais, que podem decorrer da vinculação a protocolos e tratados internacionais, e como tem ocorrido com a matéria ambiental. O resguardo da vida humana começa na constituição. São as normas constitucionais as primeiras a atingir a vida no intuito da ampla proteção: (i) previsão da dignidade da pessoa humana, artigo 1º, III; (ii) direitos e garantias fundamentais, artigo 5º; (iii) meio ambiente ecologicamente equilibrado como essencial a sadia qualidade de vida; artigo 225, que liga à proteção da vida do ser humano. A partir da Constituição, o Poder Público tem o dever de defender e proteger o meio ambiente. Isso significa deixar a esfera da conveniência e oportunidade, sendo, a partir de então, uma obrigação de fazer. É um direito de titularidade coletiva, um direito fundamental, portanto indisponível. A proteção ao meio ambiente no aspecto social está prevista logo no artigo 3º, que estabelece os objetivos da república: desenvolvimento e bem estar social, que tem o bem comum como seu desiderato. O tratamento da proteção ambiental dentro da ordem econômica, que se subordina à ordem social, prescreve que não poderão gerar, de forma alguma, problemas que afetem a qualidade ambiental e impeçam o pleno atingimento dos escopos sociais constitucionais. A ordem econômica se sujeita às regulamentações científicas, técnicas, sociais e jurídicas relacionadas com a gestão ambiental, como por exemplo, o 14. ANTUNES, Paulo de Bessa. Manual de direito ambiental. São Paulo: Lumen Juris, 2012.

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Estudo de Impacto Ambiental - EIA/RIMA, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa tem entre seus princípios a defesa do meio ambiente. Como a proteção do meio ambiente é preponderante de todos e indisponível, é um fator de limitação que regula a livre iniciativa. O mais importante princípio Ambiental é o do Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado, que considera em seu cerne que a sadia qualidade de vida depende de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, não poluído, devendo, portanto, assegurar a manutenção dos ecossistemas com uma estabilidade mínima. (art. 225). Hodiernamente o direito ambiental tal qual se apresenta na constituição e na legislação infraconstitucional é essencialmente preventivo, a exemplo das premissas para atividade econômica, que prevê o licenciamento “conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação.” (art.170, Inc. VI) Os direitos e garantias constitucionais podem ser complementados por tratados internacionais ou convenções em que o Brasil seja signatário, equivalendo a Emenda Constitucional. A incorporação de tratados internacionais é uma tendência por conta da universalização do direito ambiental, rumo a um pacto global, que indica a tendência de um novo modelo de governança: com o poder do Estado diluído pelo processo de globalização, para tornar realidade a todos os povos o desenvolvimento sustentável, deverá haver uma ação integrada das empresas transnacionais, organizações não governamentais e blocos regionais de países, Estados-Nação e Municípios, além de grandes personalidades que atuam como liderança global e podem, individualmente, colaborar para uma coalizão em benefício da sustentabilidade, desde que coloquem o véu da ignorância e se libertem dos interesses próprios, utilizando suas astúcias e o poder de mover montanhas para o bem. Nesse contexto deve ser considerada também a atuação individual de cada cidadão, que buscando informações e tendo acesso legítimo, poderá contribuir mais com escolhas assertivas. A Constituição Federal de 1988, assim como as demais que foram promulgadas após a década de 1970, sofreu influência do direito internacional do meio ambiente, em razão do movimento cultural iniciado naquela época. O artigo 225 traduz a vontade e a direção dada pelos princípios resultantes de Estocolmo, que envolveu os países desenvolvidos e em desenvolvimento, para debate dos problemas ambientais que afetariam o mundo nas próximas décadas se nada fosse feito. O artigo 225 deve ser analisado sob o enfoque de três dimensões, dado os diferentes conjuntos de normas nele contido: (i) caput – norma matriz, que

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declara que todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; (ii) parágrafo primeiro prescreve os instrumentos de garantia e efetividade dos direitos. Por fim, assegura, (iii) parágrafo segundo ao sexto, a proteção constitucional imediata pelo conteúdo ecológico. A garantia constitucional às adequadas condições de vida está no mesmo nível de proteção que os direitos fundamentais. A qualidade de vida depende de um meio ambiente que garanta dignidade e bem estar. A partir do momento em que a Constituição Federal considerou o meio ambiente como um bem autônomo, assegurando garantias mínimas de proteção, denominadas por Canotilho15 como “reserva constitucional do bem ambiente”, impõe-se asseverar que toda legislação infraconstitucional dela decorrente, está adstrita e vinculada ao “principio da proibição de retrocesso”, o que permite dizer que o nível de proteção estabelecido é o parâmetro mínimo a ser considerado. Com oportunidade, para acertar o rumo e construir uma vida em sociedade com harmonia e equilíbrio no ecossistema comum denominado “planeta terra”, impõe obrigatoriamente a construção do conhecimento, a conquista do desenvolvimento na busca contínua de melhoria e eficiência. Foi nesse sentido que a Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento prescreveu em 199116. O meio ambiente é um direito de terceira dimensão, de titularidade humanitária e implementação solidária. Solidariedade porque é dever de todos, em um elo entre Estado e Sociedade, de cuidar do meio ambiente com o compromisso com as futuras gerações. A solidariedade é pressuposto para a conquista da sustentabilidade ambiental. (artigo 225, parte final). Sem pretensão de esgotar a indicação dos artigos que trazem em seu bojo matéria de ordem ambiental na Constituição Federal de 1988, encontram-se diversos artigos e incisos, fazendo-se a transcrição dos mais representativos e a citação em nota de rodapé de outras indicações17. 15. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. 16. A comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, CMMAD, considerou que “ A humanidade é capaz de tornar o desenvolvimento sustentável – de garantir que ele atenda as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem as suas. O conceito de desenvolvimento sustentável tem, é claro, limites – não limites absolutos, mas limitações impostas pelo estágio atual da tecnologia e da organização social, no tocante aos recursos ambientais e pela capacidade da biosfera de absorver os efeitos da atividade humana. Mas tanto a tecnologia quanto a organização social podem ser geridas e aprimoradas a fim de proporcionar uma nova era de crescimento econômico. 17. Art. 5º LXXIII - ação popular; ART. 20 II - as terras devolutas indispensáveis à preservação ambiental; III a XI; Art. 21 IX - ordenação do território e de desenvolvimento econômico e social; XII; XV; XIX; XX diretrizes para o desenvolvimento urbano; XXIII; XXV – garimpagem; ART. 22 IV - águas, energia, informática, telecomunicações e radiodifusão; X; XII; XVIII; XXVI; ART. 23 II; III; IV; VI; VII; IX; XI; ART. 24 I; VI; VII; VIII - responsabilidade por dano ao meio ambiente; XII; ART. 26; II; III; ART. 30 VIII; IX - proteção do patrimônio histórico-cultural. ART. 43§ 2º IV; § 3º; ART. 49 XIV; ART. 91 § 1º III; ART. 174 § 3º; ART. 176 § 1º; § 4º; ART.

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Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. ART. 170 III - função social da propriedade; VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; ART. 186 A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: II - utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; CAPÍTULO VI DO MEIO AMBIENTE Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações. § 1º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Poder Público: I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas; II - preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de material genético;   III - definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;  IV - exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade; V - controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente; VI - promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente; VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.  § 2º - Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo órgão público competente, na forma da lei. § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e 177 I; V; § 3º; ART. 182 § 1º; § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social; § 3º; § 4º I; II; III; ART. 187 § 1º; ART. 200 VII; VIII - colaborar na proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho. ART. 216 I; II; III; IV; V § 1º - patrimônio cultural brasileiro; § 2º; § 3º; § 4º; § 5º; ART. 220 § 3º II; § 4º; ART. 231 § 1º; § 3º.

O MEIO AMBIENTE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824 a 1988

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administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. § 4º - A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais. § 5º - São indisponíveis as terras devolutas ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à proteção dos ecossistemas naturais. § 6º - As usinas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Constituição incorporou os princípios ambientais fundamentais para a consecução do bem-estar social e a compatibilização do desenvolvimento econômico com integração ao meio ambiente pautada na racionalidade, com vistas ao desenvolvimento sustentável. Determinados princípios merecem destaque por fazer parte do cotidiano da sociedade, por exemplo: princípio da precaução, da prevenção, da informação, do poluidor-pagador, da função social (e ambiental) da propriedade, da cooperação entre Estado, iniciativa privada e sociedade. Outra evidência da evolução ambiental constitucional refere-se à responsabilização por danos ambientais em todos os níveis, com sanções penais e administrativas e cíveis, independentemente da obrigação de reparar os danos causados, podendo ser aplicadas de forma concomitante. Possibilitou mecanismos de participação social (ação popular, audiência pública, acesso a informação), e atribuiu não só ao ente público, mas a sociedade o dever de defender e preservar o meio ambiente. Ampliou sua proteção jurídica, tendo nesse espectro considerado o direito humano fundamental como um conjunto homeostático, homem e natureza, consolidando a proteção constitucional ao meio ambiente natural e artificial (urbano, do trabalho e cultural). Nas relações do homem com o meio ambiente, deve-se considerar que a sua defesa não se limita apenas a busca pela subsistência, mas a compreensão de que o conceito da dignidade humana pressupõe uma vida que se desenvolve além da interação física ou química, mas arraigada de qualidade ambiental, que vai contribuir para o atingimento do bem-estar. A materialidade constitucional tratada de maneira ampla, e em certos assuntos com detalhes em temas específicos, assegura a garantia jurídica ao conjunto de condições que

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possibilitam o equilíbrio ecológico, a propriedade psíquica e intelectual e a sadia qualidade de vida em todas as suas formas, pois a vida vivida em um cenário de degradação ambiental compromete a integridade e o desenvolvimento humano. A constitucionalização do ambiente trouxe alguns benefícios tangíveis, com a declaração de direitos que geram reflexos imediatos no como se redefiniu a relação do ser humano com a natureza. Ponto de destaque indelével na Constituição em 1988 foi a instituição de um mecanismo de exploração limitada e condicionada da atividade econômica (artigo 170, inc. VI), considerado por doutrinadores como um capitalismo socioambiental18 Exacerbar a proteção do meio ambiente na constituição, quando poderia estar contido em normas infraconstitucionais, tem mais vantagens do que desvantagens. No campo do direito internacional, o modelo reflete que a constitucionalização de normas ambientais assegura o dever de não degradar (ou utilizar racionalmente), declara direitos e obrigações, coloca limites ao direito da propriedade, atribui poder de polícia e de restrição ao Estado, abre espaço para participação pública, deixa translúcido que in dúbio pro natura e dá sustentação ao controle da constitucionalidade com densidade em parâmetros ambientais constitucionais taxativos (pouco explorado ainda nos tempos atuais). Com a normatividade constitucional ganhando força, a reboque a aplicação das normas ambientais constitucionais de eficácia imediata, podem ganhar plena efetividade. A contraposição que se faz a constitucionalização da tutela ambiental está no risco de colocar em vigor um conceito jurídico ou um princípio de meio ambiente que ainda não tenha sido consolidado, ou que pode estar ultrapassado, como exemplo a expressão “equilíbrio ecológico” (quando poderia ser “estabilidade ecológica”). A utilização do espaço constitucional não deve ficar restrita a verdades absolutas com textos genéricos e abstratos. A constituição nasceu de um desejo soberano impregnado por um movimento dogmático e não deve ser objeto, pelo menos no título dedicado ao meio ambiente, de adjetivos pecadores, uma vez que a matéria ambiental tratada na Constituição Federal de 1988 está em sintonia com as melhores práticas do sistema jurídico internacional, e permite, se aplicada com eficácia, uma harmônica convivência entre desenvolvimento econômico e meio ambiente, assegurando às gerações futuras os recursos naturais disponíveis no planeta. Se tal assertiva não prevalecesse, ficar-se-ia diante da abstração e retórica, tornando inócuo o texto constitucional. 18. Ingo Wolfgang Sarlet e Tiago Fensterseifer, no livro Direito Constitucional Ambiental), onde “a livre iniciativa, a automina privada e a propriedade privada com proteção ambiental e a justiça social (ou socioambiental), tendo como norte normativo, “nada menos” do que a proteção e promoção de uma vida humana digna e saudável e, portanto, com qualidade ambiental) para todos os membros da comunidade estatal.”

O MEIO AMBIENTE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS DE 1824 a 1988

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Poucos sistemas jurídicos, como os Estados Unidos, tutelam o meio ambiente sem contar com apoio expresso na Constituição, o que se assemelha ao que ocorreu no Brasil nas constituições que vigoraram até 1988. Como forma de garantias de direitos, quando o sistema é regulado dessa forma, os operadores do direito apoiam-se em outros princípios (por vezes mais amplos) para encaixar conceitos e aplicar mecanismos jurídicos de defesa do ambiente. O atual estágio de desenvolvimento brasileiro vem trazendo certas evidências de um maior comprometimento e conscientização sobre as questões ambientais, mas o ritmo é ainda de passos curtos, e mesmo com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que se baseou no conceito de desenvolvimento sustentável formulado em 1987 no Relatório de Brundtland, e posteriormente mais divulgado na Conferência Rio-92, o mundo ainda caminha para rumos que desafiam qualquer noção de sustentabilidade. Para reverter esse quadro se impõe a necessidade de vontade política e atitude contundente da sociedade civil, além da necessidade de educação e conscientização, com vistas a se firmar a responsabilidade social individual, em um contexto de Governança Global para causas transversais comuns a todos os povos, como é a questão do meio ambiente. REFERÊNCIAS

ANTUNES, Paulo de Bessa. Manual de direito ambiental. São Paulo: Lumen Juris, 2007. ARAUJO, Luiz Alberto David; JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato. (org.). Direito constitucional ambiental brasileiro. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. CARSON, Rachel L. Primavera Silenciosa. Tradução Claudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Gaia, 2010. DORST, Jean. Antes que a natureza morra. São Paulo: Edgard BlucherLtda, 1973. FREITAS, Juarez. Sustentabilidade: direito ao futuro.Belo Horizonte: Fórum, 2011. FREITAS, Vladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2000.

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MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2012. MAY, Peter H. Economia do meio ambiente. São Paulo: Elsevier, 2010. MILARÉ, Edis. Direito do ambiente: gestão ambiental em foco. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do direito ambiental brasileiro. São Paulo: Elsevier, 2010. SARLT, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito constitucional ambiental: estudos sobre a constituição, os direitos fundamentais e a proteção do ambiente. São Paulo: Revistas dos tribunais, 2011. SIRVINSKAS, Luis Paulo. Tutela constitucional do meio ambiente: interpretação e aplicação das normas constitucionais ambientais no âmbito dos direitos e garantias fundamentais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

CAPÍTULO X

pRotEÇÃo pENal E GaRaNtIaS CoNStItuCIoNaIS

Haroldo Cesar Bianchi Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Doutor em Direito das Relações Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Promotor de Justiça Criminal da Capital do Estado de São Paulo. Professor de Direito Penal da Faculdade de Direito/Centro Universitário de Bauru. Conselheiro do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional do Ministério Público – Escola Superior do Ministério Público do Estado de São Paulo.

1 SURGIMENTO DO ESTADO

A prática de um crime já foi punida por diversas formas. Nos primórdios, na fase da vingança privada (lei de talião - em latim, talis = tal), cometido um delito, sua repressão não via limites nem guardava qualquer simetria com a ofensa praticada, de modo que o autor podia ser açoitado, mutilado e até morto, por ato da própria vítima, seus parentes ou grupo social. Depois, surgiu a composição, em que se era possível escapar do castigo mediante pagamento de dinheiro da época (moeda) ou mesmo através de entrega de bens (armas e animais). Não demorou para que a religião passasse a exercer ascendência sobre os povos, atribuindo-se aos sacerdotes da época a fixação de penas, invariavelmente injustas, que serviriam para reprimir o crime e satisfazer os deuses. Era a chamada vingança divina, que perdurou até a criação do Estado. Segundo a construção filosófica da teoria do Contrato Social, de autoria do filósofo Jean Jacques Rousseau (1712-1778),1 o surgimento do Estado decorreu 1.

MALUF, Sahid. Teoria Geral do Estado, 9. ed.- São Paulo : Sugestões Literárias S/A, 1978, p. 88-91.

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do fato de que, em determinado momento da vida dos grupamentos humanos primitivos, os que acumulavam mais posses passaram a dominar os menos favorecidos. Nesse período de transição do estado de natureza para a sociedade civil, os homens trataram de reunir suas forças, armando um poder supremo que a todos defenderia, mantendo o estado de coisas existente. Queriam salvaguardar a liberdade, que é própria do homem, e inalienável, segundo o direito natural. Era preciso encontrar uma forma de associação capaz de proporcionar os meios de defesa e proteção, com toda a força comum, às pessoas e aos seus bens, pela qual, cada um unindo-se aos demais, não tivesse que obedecer senão a si próprio, ficando tão livre quanto era antes do pacto. Como decorrência, houve necessidade da criação de regras impondo limitações individuais, cujo cumprimento retornaria em favor de toda a comunidade. E é assim até os dias de hoje. Criaram-se regras de comportamento que impõem condutas e estabelecem consequências diversas, vale dizer, punições para os que infringem o ordenamento jurídico. Com a consequente possibilidade de se punir autores de infrações penais, deferiu-se ao Estado-juiz a fixação de penas, as quais devem guardar correspondência com a gravidade do ilícito penal praticado, levar em conta as circunstâncias que cercaram sua prática e cumprir a sua função, que é a de punir o autor da infração do crime sem, contudo, atentar contra a sua dignidade humana. 2 direitos e garantias fundamentais na constituição federal brasileira

As expressões direitos humanos, direitos do homem, direitos naturais, direitos individuais, liberdades fundamentais, liberdades públicas, direitos subjetivos públicos, são sinônimas, entendendo a doutrina constitucional, de um modo geral, de utilizá-las com a mesma significação. Nada obstante, impõe salientar, preferiu o legislador originário brasileiro denominá-las direitos fundamentais, conforme se vê do Título II da Constituição Federal, opção que encontrou apoio na doutrina pátria.2 A leitura do texto constitucional nos leva a compreender que nossa Lei Maior não se refere apenas aos direitos fundamentais que reconhece, mas, também, às garantias fundamentais ali acolhidas. Por conta disso, é possível antever, num primeiro momento, alguma dificuldade para distinguir essas expressões – até 2. Nesse sentido: ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional, p. 77; e SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional, p. 182.

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porque mostram-se correlacionadas, na medida em que ninguém duvida que garantias são direitos e direitos são garantias. Mas certamente serão melhor compreendias levando-se em conta o conteúdo da norma constitucional. Assim, à luz de um dispositivo constitucional, estaremos diante de um direito fundamental sempre que esteja a indicar um conteúdo declaratório ou enunciativo, no sentido de reconhecimento da existência de um direito. Tomemos por exemplo o inciso XI do artigo 5º que declara, que enuncia ser a casa “(...) asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem o consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial”. Nesse caso, inequívoco que a inviolabilidade de domicílio é reconhecidamente um direito fundamental, enunciado, declarado no texto constitucional. De outro lado, estaremos frente a uma garantia fundamental toda vez que o dispositivo constitucional contemplar medidas de conteúdo assecuratório, que emergem para a proteção desses direitos fundamentais. É o caso, por exemplo, do inciso L, do artigo 5º da Constituição Federal, que assegura às presidiárias condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período da amamentação. Vale dizer, há uma garantia constitucional que reconhece a necessidade e a importância de que seja ministrada amamentação ao recémnascido, ainda que a genitora esteja sob a custódia do Estado. Por fim, é possível a existência simultânea de direitos e de garantias fundamentais num mesmo dispositivo constitucional, como é o caso, por exemplo, do inciso X, do artigo 5º da nossa Carta Magna. Na sua primeira parte, esse inciso declara, enuncia que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas”, tratando-se, portanto, nesse ponto, de um direito fundamental. Em seguida, o texto constitucional fixa os meios voltados à reparação desse direitos, caso venha a ser violado, vale dizer, assegura “(...) o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”. Aqui, verifica-se a presença de uma garantia fundamental. Não basta, entretanto, a existência formal de direitos fundamentais em nossa Constituição. É preciso mais que isso. Mostra-se imperioso que gozem de plena efetividade, que deles se extraia o máximo de tudo quanto possam oferecer, que sejam efetivamente afastados da esfera de generalidade, que os coloca no texto constitucional como meras hipóteses, de molde a fazê-los incidir concretamente, em favor de seu destinatário, o ser humano.3 3. Vejamos por exemplo a questão do salário mínimo. Ninguém duvida que o valor fixado pelo Governo Federal não atende, à evidência, as necessidades vitais básicas dos trabalhadores e respectivas famílias, “com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, como quiseram os nossos legisladores constituintes originários (Constituição Federal, artigo 7º, inciso IV). E ainda que se reconheça

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3 princípios constitucionais

Os princípios constitucionais são normas jurídicas destinadas à efetiva observância do poder público estatal e também de todos aqueles que estão submetidos aos seus mandamentos, traduzindo-se em alicerce do sistema jurídico. Como lembra Miguel Reale, “os princípios são juízos fundamentais, que servem de alicerce e de garantia de certeza a um conjunto de juízos, ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade”.4 Na mesma esteira, o entendimento de Walter Claudius Rothenburg, ou seja, os princípios constitucionais outros não são que os “velhos conhecidos princípios gerais de Direito (de um determinado Direito, historicamente situado), agora dignamente formulados através das normas supostamente mais altas do ordenamento jurídico”.5 Esses princípios constitucionais foram inicialmente classificados pela doutrina de Joaquim Gomes Canotilho, adotada pela maioria dos Constitucionalistas brasileiros, dentre eles, Luiz Alberto David Araujo, Vidal Serrano Nunes Júnior,6 José Afonso da Silva7 e Walter Claudius Rothenburg8, que consideram a existência de princípios jurídicos fundamentais, princípios político-constitucionais, princípios jurídico-constitucionais e os princípios-garantia. 3.1 Princípios Jurídicos Fundamentais

Apenas para dar-se uma ideia geral dessa classificação, é lícito afirmar que os princípios jurídicos fundamentais referem-se aos princípios jurídicos gerais. Estes, conquanto não constituam normas explícitas, encontram alicerce no direito positivo. Assim, ninguém duvida que a publicidade dos atos jurídicos, o livre acesso à justiça e a imparcialidade da Administração são princípios que foram implicitamente acolhidos na ordem jurídica, dela extraídos através da arte de interpretar e de aplicar as normas jurídicas.

4. 5. 6. 7. 8.

a importância desse dispositivo constitucional, a ele não se deu efetividade, mas efetividade mesmo, no sentido de resultado verdadeiro, concreto, palpável, através de tomadas de posições governamentais que visem fazer valer esse e outros direitos, reconhecidos como fundamentais, e, portanto, imprescindíveis à satisfação das necessidades humanas. REALE, Miguel. Filosofia do Direito, 19 ed. 2. Tirag.- São Paulo : Saraiva, 2000., p. 87. ROTHENBURG, Walter Claudius, Princípios Constitucionais, Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris Editor, 1999, p. 68. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes Júnior, 2001, p. 82-59. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 18. ed.- São Paulo : Malheiros, 2009, p. 97. ROTHEMBURG, Walter Claudius, 1999, p. 15.

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3.2 Princípios Político-Constitucionais

Também conhecidos por princípios fundamentais ou estruturantes ou princípios políticos constitucionalmente conformadores9 ou ainda normas-princípio, são constituídos, na lição de Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior,10 por decisões ou valorações políticas fundamentais do legislador constituinte, no que se refere à estrutura básica do Estado e às ideias e valores fundamentais triunfantes na Assembleia Constituinte. Refletem, em síntese, a ideologia inspiradora da Constituição e são reconhecidos como limites ao poder de revisão. São exemplos o princípio Republicano (artigo 1º), o princípio Federativo (artigo 1º), o princípio do Estado Democrático de Direito (artigo 1º); o princípio da Separação dos Poderes (artigo 2º); o regime presidencialista (artigo 76). 3.3 Princípios Jurídico-Constitucionais

Geralmente derivam dos princípios político-constitucionais e são também denominados como princípios constitucionais diretivos ou impositivos.11 São informadores da ordem jurídica nacional, como é o caso, por exemplo, dos princípios da igualdade (CF., art. 5º, “caput”, e inc. I), do juiz natural (CF., art. 5º, inc. XXXVII e LIII) e das garantias constitucionais do processo (art. 5º, inc. LIV), e impõem aos órgãos estatais, em especial ao Legislativo, a realização de fins e execução de tarefas. 3.4 Princípios-Garantia

Também identificados como princípios constitucionais gerais, os princípios-garantia, como sugere a própria denominação, são aqueles que estão voltados ao estabelecimento de garantias ao cidadão, significando verdadeiros desdobramentos dos princípios fundamentais, como, por exemplo, o princípio da igualdade (artigo 5º, caput e inciso I); da legalidade (artigo 5º, inciso II); da irretroatividade das leis (artigo 5º, inciso XXXVI); do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV); do juiz natural (artigo 5º, incisos XXXVII e LIII); e ainda os princípios do in dubio pro reo e non bis in idem. 9. Ibidem, p. 68. 10. ARAÚJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, 2001, p. 82-59 11. ROTHEMBURG, Walter Claudius, 1999, p. 68.

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4 Princípios penais constitucionais

São considerados princípios penais-constitucionais o da legalidade (ou da reserva legal) e anterioridade (CF., art. 5º, inc. XXXIX e sua combinação com o art. 1º, do CP), da irretroatividade (CF., art. 5º, inc. XL e sua combinação com o parágrafo único do art. 2º, do CP), taxatividade (como decorrência do princípio da legalidade - CF., art. 5º, inc. XXXIX), direito de ação e legitimidade ativa para a ação penal (CF., art. 5º, inc. XXXV, e sua combinação com o art. 129, inc. I), autoridade competente: o juiz natural (CF., art. 5º, inc. XXXVII), estado de inocência (CF., art. 5º, inc. LVII), humanidade e individualização da pena (CF., art. 5º, inc. XLVI), os quais serão abordados a seguir. 4.1 Igualdade

Ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais, a Magna Carta brasileira, de 1988 estabeleceu os Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Explicitou no artigo 5º que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos indicados nos incisos subsequentes. Inegável que nessa garantia constitucional resta explicitado o desejo do legislador constituinte originário brasileiro de vê-la aplicada não apenas no sentido formal, mas também – e principalmente – no aspecto material, efetivo, real, de tal modo que sejam tratados igualmente os materialmente iguais e desigualmente os materialmente desiguais. 4.2 Legalidade (ou reserva legal) e anterioridade

O artigo 5º, inc. XXXIX, da Constituição Federal, de 1988, e o artigo 1º do Código Penal estabelecem que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal (nullum crimen, nulla poena sine lege), o que significa dizer que só pode haver punição se o fato, em razão de lei, tenha sido considerado infração penal antes de sua prática12. A importância desses dois princípios é inegável e histórica. Além de terem sido inscritos em várias legislações do mundo,13 garantem a segurança 12. Nesse sentido: TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. 11. Tirag.- São Paulo : Saraiva, 2002 13. Filadélfia (1774); Virgínia (1776); Maryland (1776); Código Penal Austríaco (1878); Declaração dos Direitos

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jurídica que deve resultar da relação entre o Estado e o cidadão. Jesús-María Silva Sánchez explicita que o princípio da legalidade proporciona garantia essencial da segurança jurídica: (...) que os cidadãos saibam – na medida do possível, dados os mecanismos através dos quais se adquire tal conhecimento – quais são as condutas que podem realizar e quais não podem, com quais penas podem ser sancionadas as infrações às normas, em que limite processual e com quais condições de execução”. Para isso, “o Direito Penal está obrigado a fornecer toda informação que seja possível, e com a maior publicidade, tanto sobre suas normas proibitivas ou imperativas quanto sobre as sanções e o procedimento adequado para aplica-las. 14 Não só deve haver anterior previsão legal relativamente à infração penal. Também a aplicação da pena depende da prévia existência de lei penal que preveja qual a sanção a ser imposta. Com isso, limita-se, portanto, o poder punitivo do Estado, que detém o monopólio da produção jurídica nacional15. A privação ou restrição da liberdade do ser humano também está subordinada ao princípio da legalidade. É que, tendo nascido livre, a regra é que o ser humano assim deve permanecer. A esse respeito, vale lembrar que liberdade, na expressão de José Afonso da Silva, “é a possibilidade jurídica que se reconhece a todas as pessoas de serem senhoras de sua própria vontade e de locomoverem-se desembaraçadamente dentro do território nacional”.16 A doutrina faz distinção entre a liberdade de locomoção e liberdade de circulação. A locomoção diz respeito à possibilidade se ir, vir, ficar ou permanecer, e abrange o direito de circulação, definido como a “faculdade de deslocar-se de um ponto a outro através de uma via pública ou afetada ao uso público”.17 A liberdade de locomoção e circulação sofre restrições. Assim, não obstante tenham, na vida em sociedade, a faculdade de agir segundo sua própria determinação, as pessoas devem observar os limites impostos para tornar possível o convívio social pacífico, sob pena de se verem tolhidas dessa liberdade. Dada a relevância da liberdade para os indivíduos, entendeu o legislador constituinte originário de tomar para si a tarefa de dizer, de forma absolutamente clara e transparente, que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por do Homem e do Cidadão (1789); Código Penal Francês (1791) e Código Napoleônico (1810). Esse princípio, formulado por Feuerbach, tem sua origem remota na Magna Carta de João Sem Terra, que, em seu artigo 39, estabelecia que nenhum homem livre podia ser punido senão pela lei da terra. Nesse sentido: MIRABETE, Júlio Fabbrini. Manual de Direito Penal. 20 ed.- São Paulo : Atlas, 2003, p. 55. 14. Sánchez, Jesús-Maria Silva. Aproximação ao Direito Penal Contemporâneo. Tradução: Roberto Barbosa Alves – São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 387. 15. FELDENS, Luciano. A Constituição Penal. Porto Alegre : Livraria do Advogado Ed, 2005, p. 30. 16. SIL VA, José Afonso da. 2009, p. 240. 17. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes Júnior, 2001, p. 112-113.

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ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente;18 que dela ninguém seria privado sem o devido processo legal;19 e que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.20 A regra, portanto, é a liberdade, sendo excepcional sua restrição. A ordem escrita da autoridade, de que trata o texto constitucional, traduzse em mandado de prisão, que será lavrado pelo escrivão e assinado pelo juiz, nele constando quem tem qualidade para dar-lhe execução (oficial de justiça e polícia judiciária), assim como o nome, alcunha ou sinais característicos da pessoa que tiver de ser presa a infração penal motivadora da custódia, o valor da fiança arbitrada, quando afiançável a infração.21 A custódia processual penal ou cautelar inclui a prisão em flagrante, a prisão preventiva, a prisão decorrente de pronúncia, a prisão resultante de sentença penal condenatória e a prisão temporária. 4.3 Irretroatividade

O princípio da irretroatividade da lei penal mais gravosa vem estabelecido no inc. XL do artigo 5º, da Constituição Federal/88, e no artigo 2º, parágrafo único, do Código Penal, depreendendo-se desses dispositivos legais que, praticada a infração penal sob o império de determinada lei, seu autor deverá ser julgado segundo a regra jurídica então vigente, ainda que venha ela a ser modificada por lei posterior, que passe a tratar de forma mais severa aquela prática ilícita (lex gravior). De regra, portanto, a lei rege os fatos que foram praticados durante a sua vigência (tempus regit actum). Contrario sensu, a lei penal posterior, que venha em benefício do autor do fato ilícito (lex mitior), deve obrigatoriamente retroagir para alcançar fatos praticados antes de sua vigência. Na hipótese de conflito entre leis penais, em razão de alteração legislativa posterior à prática do crime, decidir-se-á sempre em favor do agente, com a aplicação da lei que lhe for mais benéfica.22 18. Constituição Federal, artigo 5º, inciso LXI. 19. Constituição Federal, artigo 5º, inciso LIV. 20. Constituição Federal, artigo 5º, inciso LVII. 21. Código de Processo Penal, artigo 285 e parágrafo único. 22. O conflito de leis penais no tempo pode dar-se em razão de novatio legis incriminadora (a lei nova passa a considerar fato típico conduta que anteriormente não era punida. É irretroativa, à evidência, em face do princípio da anterioridade da lei penal); abolitio criminis (ocorre quando a inovação da ordem jurídica deixa de incriminar conduta que anteriormente era considerada infração penal. Nesse caso, aplica-se o princípio da retroatividade da lei mais benigna (Código Penal, artigo 2º, caput), extinguindo-se a punibilidade do autor, nos termos do artigo 107, inciso III do mesmo Código); novatio legis in pejus (a lei nova trata o fato delituoso de forma mais severa que a anterior. Não pode retroagir, pena de prejudicar o agente); e novatio legis in mellius (a lei posterior é mais benéfica que a antecedente, devendo retroagir por força do disposto no parágrafo único

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4.4 Taxatividade

O princípio da taxatividade (ou determinação) - desdobramento do princípio da legalidade - é também denominado da determinação ou da clareza, da taxatividade-determinação ou ainda do mandato de certeza. Exige que o legislador, ao formular o conteúdo da norma e respectiva sanção, o faça de maneira clara, evitando casuísmos e conceitos vagos que possibilitem o arbítrio judicial. Busca-se, portanto, com esse princípio, impor acurada técnica legislativa, de tal modo que, elaborada a norma, seja ela precisa na determinação dos comportamentos ilícitos que o legislador penal efetivamente pretende reprimir. 4.5 Direito de Ação e Legitimidade Ativa para a Ação Penal

Abolida a vingança privada, a distribuição da justiça passou a ser exclusividade do Estado, sendo vedado, desde então, fazer justiça pelas próprias mãos.23 Assim, sempre que houver lesão ou ameaça de lesão a bem jurídico tutelado, incumbe ao Estado a aplicação da norma que disciplina a respectiva lide. Esse direito de ação está consagrado na Constituição Federal no capítulo dos Direitos e Garantias Individuais, estabelecendo o artigo 5º, inciso XXXV que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Em matéria penal, esse direito de ação é exercitado através da ação penal pública ou privada, sendo o Estado o detentor do jus puniendi. Quando promovida pelo Ministério Público dizemos que é pública, podendo, nos casos em que a lei o exigir, ser condicionada à representação; e, se ajuizada pela vítima ou seu representante legal, será privada. A regra é que “a ação penal é pública, salvo quando a lei expressamente a declara privativa do ofendido”, segundo se observa do artigo 100 do Código Penal. No Brasil, por força do disposto no artigo 129, inciso I da Constituição Federal, a legitimidade para o ajuizamento da ação penal pública é privativa do Ministério Público.24 Esse monopólio sofre apenas uma exceção, prevista do artigo 2º do Código Penal: “A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decidida por sentença condenatória transitada em julgado”). Nesse sentido: TOLEDO, Francisco de Assis, 2002, pag. 30-44. 23. Código Penal, artigo 345: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena – detenção de 15 (quinze) dias a 1 (um) mês, ou multa, além da pena correspondente à violência”. 24. Essa nova regra constitucional, que estabeleceu a exclusiva legitimidade do Ministério Público para a ação penal pública, fez desaparecer a ação penal ex officio, cuja titularidade era deferida aos magistrados e às autoridades policiais. Assim é que o Código de Processo Penal anterior, prescrevia em seu artigo 26: “A ação penal, nas contravenções, será iniciada com o auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade judiciária ou policial”. A Lei das Contravenções Penais, em seu artigo 17, estabelece: “A ação

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também na Carta de 1988: “será admitida ação penal privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal”, consoante o inciso LIX. 4.6 Autoridade Competente: O Juiz Natural

O princípio do juiz natural está consagrado no inciso LIII do artigo 5º da nossa Carta Magna, o qual estabelece que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”, restando, pois, reforçada a regra insculpida no inciso XXXVII, que proíbe a existência de juízo ou tribunal de exceção. O juiz natural, na doutrina de Fernando da Costa Tourinho Filho, é: (...)aquele cuja competência resulta, no momento do fato, das normas legais abstratas. É, enfim, o órgão previsto explícita ou implicitamente no texto da Carta Magna e investido do poder de julgar. Não basta, assim, que o órgão tenha o seu poder de julgar assentado em fonte constitucional para que se alce a juiz natural. É preciso também que ele atue dentro do circulo de atribuições que lhe fixou a lei, segundo as prescrições constitucionais.25

Compreende-se, assim, que o processo e julgamento do autor de determinada infração penal só pode ser submetido ao juiz ou tribunal aos quais a Constituição Federal atribuir competência, prevenindo-se, pois, arbítrio estatal, que eventualmente poderia pretender direcionar determinado julgamento e influenciar na imparcialidade da decisão.26 4.7 Estado de Inocência

O princípio da inocência já constava da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, em seu artigo 9º: “todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado, e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. No Brasil, foi objeto de preocupação do legislador constituinte, que o inseriu penal é pública, devendo a autoridade proceder de ofício”. Nesse sentido: “As disposições legais, que instituíam outras exceções, foram revogadas pela Constituição, porque não recepcionadas por esta” (Supremo Tribunal Federal – Pleno – HC 67.931-5-RS e Supremo Tribunal Federal – RE – Rel. Carlos Velloso – RTJ 137/906 e 162/643). 25. TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 2. ed. rev. e atual.- São Paulo : Saraiva, 2001, p. 168. 26. Segundo já decidiu o Supremo Tribunal Federal, o postulado da naturalidade do juízo “tem por destinatário específico o réu, erigindo-se em conseqüência, como direito público subjetivo inteiramente oponível ao próprio Estado”. Esse princípio “limita, de um lado os poderes do Estado (impossibilitado, assim, de instituir juízos ‘ad hoc’ ou de criar Tribunais de exceção) e assegura ao acusado, de outro, o direito ao processo perante autoridade competente, abstratamente designada na forma da lei anterior (vedados, em conseqüência, os juízos ‘ex post facto’)” (Supremo Tribunal Federal – HC – Rel. Celso de Mello – j. 25/06/96 – RT 744/489).

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na Carta Política de 1988: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, conforme prescreve o inciso LVII do artigo 5º. Esse princípio chegou a causar alguma controvérsia nos meios jurídicos, em face de equivocada compreensão acerca da extensão de seus efeitos, argumentando-se, então, que não mais seria possível a prisão cautelar. A questão, entretanto, foi resolvida diante da edição da Súmula nº 09 do Superior Tribunal de Justiça estabelecendo que “a exigência da prisão provisória para apelar, não ofende a garantia constitucional da presunção de inocência”. A norma constitucional não presume a inocência do réu, apenas declara em seu favor um estado de inocência, o que não impede sua custódia cautelar por força de prisão provisória,27 prisão em flagrante delito,28 prisão preventiva,29 prisão decorrente de pronúncia,30 e de sentença penal condenatória recorrível,31 nem obsta a realização de diligências coercitivas, como, por exemplo, a busca e apreensão e o sequestro de bens e valores, obviamente desde que a medida esteja assentada em dispositivo legal claro e explícito. 4.8 Humanidade da pena e Dignidade da Pessoa Humana

A preocupação com a dignidade humana é remota e vem sendo traduzida por enunciados reconhecidos mundialmente, os quais integram documentos afirmativos32 de direitos e garantias – ora designados como direitos humanos, ora como liberdades públicas, ora como direitos subjetivos públicos –, conforme demonstram a Magna Charta Libertatum (1215); a Declaração de Direitos do Bom Povo da Virgínia (Estados Unidos, 1776); a Declaração de Direitos do 27. “O princípio da presunção de inocência não ilide e nem se contradiz com o decreto provisório” (Superior Tribunal de Justiça – 5ª T – HC 6697 – Rel. Cid Fláuquer Scartezzini – j. 19/03/98 – DJU 01/06/98, p. 150). 28. “O princípio constitucional da presunção de inocência não impede a prisão em flagrante, aliás, admitida pela própria Constituição Federal, no artigo 5º, inciso LXI” (Superior Tribunal de Justiça – RHC 5.532 – Rel. Assis Toledo – DJU 01/06/96, p. 24.061). No mesmo sentido: Superior Tribunal de Justiça – 6ª T – RHC 6749 – Rel. Anselmo Santiago – j. 06/10/97 – DJU 03/11/97, p. 56.375; Superior Tribunal de Justiça – RHC – Rel. Félix Fisher – j. 27/10/97 – DJU 02/02/98, p. 1.201; e TRF – 4ª R – 2ª T – HC 95.04.03893-0-RS – Rel. Juiz Vilson Darós – DJU 01/03/95; TACRIM-SP – HC – Rel. Ivan Marques – RT 725/579. 29. Supremo Tribunal Federal – 1ª T – HC – Rel. Moreira Alves – j. 03/05/94 – RTJ 156/86; Superior Tribunal de Justiça – 6ª T – RHC 1.322 – Rel. Luiz Vicente Cernicchiaro – j. 12/08/91 – RT 686/388 e TACRIM-SP – HC – Rel. Raul Motta – RJD 26/237. 30. “A prisão provisória, conseqüência natural da sentença de pronúncia (Código de Processo Penal, artigo 408, § 1º), guarda compatibilidade com o disposto no artigo 5º, inciso LVII da Constituição” (Supremo Tribunal Federal – 2ª T – HC 75.798-0 – Rel. Carlos Velloso – j. 23/03/98 – DJU 30/04/98, p. 08). 31. A respeito do tema, confira-se LUISI, Luiz. Os Princípios Constitucionais Penais. 2. ed., rev. e aum. Porto Alegre : Sérgio Antonio Fabris Editor, 2003, p. 46-47. 32. Esses documentos afirmativos são tratados internacionais, nele incluídos as Convenções, os Pactos, as Cartas e demais acordos internacionais. Nesse sentido: GOMES, Luiz Flávio; e PIOVESAN, Flávia. O Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos e o Direito Brasileiro, São Paulo : Revista dos Tribunais, 2000, p. 153.

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Homem e do Cidadão (França, 1789); a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948);33 a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948);34 a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (1950); Convenção e Protocolo relativos ao Estatuto dos Refugiados (1951 e 1966, respectivamente); a Convenção Americana sobre Direitos Humanos ou Pacto de San José da Costa Rica (1969);35 a Convenção Interamericana para Previnir e Punir a Tortura (1985);36 a Declaração de Viena (Conferência Mundial dos Direitos Humanos; 1993); a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994);37 a Declaração de Pequim (1995) etc. Essas cartas políticas, de inestimável importância para a história da humanidade, não integram o direito positivo, mas é força reconhecer que os direitos nela consagrados, vem interferindo positivamente na elaboração das Constituições, na medida em que fornecem elementos ao legislador constituinte originário para o reconhecimento legal dos direitos que se mostram inalienáveis à dignidade do ser humano. Busca-se, como afirmou Konrad Hesse, “Criar e manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade humana, eis aquilo que os direitos fundamentais almejam”.38 Não foi diferente em relação à legislação constitucional brasileira. O art. 1º, inc. III, da Carta Magna brasileira, de 1988, prescreve que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal e constitui-se em Estado Democrático de Direito, tendo, entre seus fundamentos, a dignidade da pessoa humana. Como princípio constitucional, a preservação da dignidade da pessoa humana encontra reflexos na aplicação da pena39, de modo que, por mais grave e hedionda que seja a infração penal praticada, seu autor é um ser humano e, como tal, deve ser considerado e tratado, com direito a julgamento justo e observância de todas as garantias processuais, e, uma vez condenado, deve submeter-se à pena previamente cominada (Constituição Federal, artigo 5º, incisos XXXIX e XL, e Código Penal, artigo 1º), a qual deverá guardar 33. Foi adotada e proclamada pela Resolução 217-A (III) da Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948 e assinada pelo Brasil na mesma data. 34. Aprovada na IX Conferência Internacional Americana, realizada em Bogotá, em abril de 1948. 35. Essa Convenção Americana foi assinada em 1969, em San José, Costa Rica, daí porque é também conhecida como Pacto de San José da Costa Rica. Entrou em vigor em julho de 1978. O Brasil aderiu à Convenção catorze anos depois, em setembro de 1992. 36. Adotada em Cartagena das Índias (Colômbia), em dezembro de 1985, durante o XV Período Ordinário de Sessões da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos. Ratificada pelo Brasil em Julho de 1989. 37. Conhecida como Convenção de Belém do Pará, foi adotada pela Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos em junho de 1994 e ratificada pelo Brasil em novembro de 1995. 38. HESSE, Konrad, apud, BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 6. ed. – São Paulo : Malheiros, 1996, p. 113. 39. MIRABETE, Julio Fabbrini, 2003 p. 57.

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proporcionalidade e ser necessária e suficiente para a reprovação e a prevenção do crime (Código Penal, art. 59). O legislador constituinte originário brasileiro foi além ao inserir a proibição das penas de morte (salvo em caso de guerra externa), de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e as cruéis (artigo 5º, inciso XLVII). Também tem assento constitucional o dispositivo que prevê o caráter personalíssimo da pena, que não pode passar da pessoa do condenado, vale dizer, dos autores, coautores e partícipes da infração penal. E mesmo que haja eventual obrigação de reparar o dano e decretação do perdimento de bens, se estendida aos sucessores e contra eles executadas, ainda assim estará restrita ao limite do valor do patrimônio transferido (Constituição Federal, artigo 5º, inciso XLV). A Carta Magna brasileira igualmente assegura aos presos o respeito à integridade física e moral (artigo 5º, inc. XLIX) e, às presidiárias, condições para que possam permanecer com os filhos durante o período da amamentação (artigo 5º, inc. XLX). Como se percebe, o princípio da humanidade das penas é, talvez, aquele em que, em maior medida, caracteriza a origem e a evolução do conteúdo do sistema penal contemporâneo. Antes, passou-se da pena de morte – que vem sendo abolida nos últimos tempos em muitos países civilizados – para as penas privativas de liberdade. Depois, nos dias atuais, observamos importante e progressiva substituição das penas privativas de liberdade por outras menos lesivas, como a multa e o trabalho em benefício da comunidade.40 4.9 Individualização da Pena

Ao elaborar a Carta Política, de 1988, o legislador constituinte originário brasileiro fez inserir no artigo 5º, inciso XLVI, o princípio da individualização da pena, através do qual está o juiz obrigado a fixar a pena, conforme a cominação legal, vale dizer, espécie e quantidade, bem como a determinar a sua forma de execução: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”. O princípio da individualização da pena tem, ainda, assento infraconstitucional, no art. 59, do Código Penal, que estabelece que o Juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e 40. Nesse sentido: PUIG, Santiago Mir. Derecho Penal: parte general. 5. Ed. – Barcdelona: s.e., 1988, p. 94.

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suficiente para a reprovação e prevenção do crime: I – as penas aplicáveis dentre as cominadas: II – a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. 5 PROTEÇÃO PENAL E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

Durante o longo período em que o Brasil manteve-se Colônia de Portugal, inexistiu produção legislativa genuinamente brasileira, de modo que, para solucionar eventuais pontos de tensão surgidos em terras brasileiras, aplicava-se o ordenamento lusitano, composto pelas históricas Ordenações do Reino – Afonsinas, Manuelinas e Filipinas -, bem como por Leis, Alvarás Régios, Regimentos, Provisões, Diretórios e Cartas Régias. As Ordenações continham normas de Direito Penal que contemplavam penas cruéis, arbitrárias e desproporcionais, que variavam entre castigos corporais, morte, servidão, entre outras, ignorando-se por completo o direito da defesa e o princípio da legalidade. O Livro V revela a existência de confusão entre crime e pecado, tanto que a crueldade do castigo para os infratores penais (açoites, degredo, mutilação, queimaduras, morte, confisco, galés, etc.) era meio através do qual buscava-se imprimir temor aos hereges, apóstatas, feiticeiros e benzedeiros, autores de condutas tidas como pecaminosas. Foi a partir do surgimento da primeira Constituição, a do Império do Brasil, de 1824, que se iniciou o estabelecimento de regras voltadas ao reconhecimento de direitos e garantias individuais, conforme se verá a seguir. 5.1 Constituição Política do Império do Brasil, de 1824

Outorgada em 11 de dezembro de 182341 e única do período imperial, a Constituição Política do Império do Brasil42 – conhecida como “Constituição da Mandioca”43 –, entrou em vigência três meses depois, no dia 25 de março de 1824. 41. Após essa data, a manifestação da Assembleia Constituinte propriamente dita foi substituída pelo aval de algumas Câmaras das Vilas, às quais o projeto havia sido enviado. Nesse sentido: LOPES, José Reinaldo de Lima. O Direito na História: lições introdutórias, 3. Ed.- São Paulo : Atlas, 2008. p. 260. 42. Inteiro teor da Constituição de 1824: Disponível em: . Acesso em: 1º/11/2010. 43. A Carta de 1824 ficou conhecida como “Constituição da mandioca” porque a participação no sufrágio destinava-se exclusivamente a quem fosse Eleitor de Província (renda de 200 mil-réis), Deputado (renda de 400 mil-réis) e Senador (renda de 800 mil-réis). Assim, “levava em conta a riqueza de uma sociedade rural e agrária, em que a farinha de mandioca era moeda utilizada para calcular a renda dos produtores rurais. Nesse

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Dentre as diversas disposições nela constantes, tratou no Título 8º “Das Disposições Gerais e Garantias dos Direitos Civis e Políticos dos Cidadãos Brasileiros”, estabelecendo, no art. 179, a inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade. À luz do referido dispositivo constitucional, essa inviolabilidade deveria concretizar-se a partir da observância de diversos princípios, como os da legalidade (1º); da utilidade legal (2º); da irretroatividade da lei (3º); da liberdade de expressão (4º); da liberdade de culto (5º); da liberdade de locomoção e de propriedade (6º); da inviolabilidade de domicílio (7º); da presunção de inocência (8º); da princípio da igualdade (13). Ademais, garantiu a fixação de fiança (9º); definiu as formas legais da prisão (10); fixou o juízo competente (11); afirmou a independência do Poder Judicial (12). A par desses avanços, a Carta ainda trouxe novidades: aboliu penas cruéis: açoites, tortura, marca de ferro quente e todas as mais penas assim consideradas (19); definiu a pessoalidade da pena, afirmando que nenhuma pena passará da pessoa do delinquente e proibindo confisco de bens, a transmissão da infâmia do réu aos parentes em qualquer grau, que seja) (20); determinou regras em relação à prisão, estabelecendo que as cadeias serão seguras, limpas, e bem arejadas, havendo diversas casas para separação dos réus, conforme suas circunstâncias, e natureza dos seus crimes(21).44 5.2 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891

Promulgada em 24 de fevereiro de 1891, a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil adotou como forma de governo a República Federativa, constituída pela união perpétua e indissolúvel das antigas províncias, agora integrantes dos Estados Unidos do Brasil (art. 1º); reconheceu como órgãos da soberania nacional o Poder Legislativo, o Executivo e o Judiciário, harmônicos e independentes entre si (art. 15); e firmou a autonomia dos Estados (art. 63 e ss.) e Municípios (art. 68). A partir dessa Carta, surgiu a doutrina brasileira do Habeas Corpus, instituto nela expressamente previsto (art. 22); definiu-se a separação entre o Estado e a Igreja, extinguindo-se as nomeações de bispos, o provimento dos benefícios eclesiásticos e o beneplácito régio, que era a aprovação estatal dos sentido: BULOS, Vadi Lammêgos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 371. 44. No sentido de “celas”.

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“[...] decretos conciliares, letras apostólicas, bulas pontifícias e quaisquer outras constituições eclesiásticas, como requisito imprescindível e condicionante da vigência de tais documentos, dentro do território nacional”.45 No art. 72, a Constituição reconheceu, ainda, diversos princípios, entre eles o da legalidade (§ 1º), da igualdade (§ 2º), da anterioridade (§ 15), da ampla defesa (§ 16), da liberdade de culto (§ 3º) e de pensamento (§ 12), da livre associação (§ 8º), do acesso ao judiciário (§ 9º), além de dispor sobre a inviolabilidade do domicílio (§ 11) e de correspondência (§ 18). Também fixou regras relativas à prisão processual (§ 13) e ao juízo competente (§15). Proibiu que a pena passasse da pessoa do delinquente (§ 19) e aboliu expressamente a pena de banimento, a pena de morte – exceto para os crimes militares em tempo de guerra (§ 21) e as penas de banimento e de galés (§ 20), confirmando, nesse ponto, o que já dispunha o Decreto nº 774, de 20 de setembro de 1890, do Governo Provisório. 5.3 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934

Com a Revolução de 1930, Getúlio Vargas assume o poder e, dentre diversos outros atos de comando, estabeleceu data para as eleições da Assembleia Constituinte e organizou a Constituinte, promulgando, no dia 16 de julho de 1934, a segunda Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil.46 No Capítulo II, essa Carta tratou dos Direitos e das Garantias Individuais aos brasileiros e estrangeiros residentes no País, concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade (art. 113), adotando os princípios da igualdade e da legalidade (nos 01 e 02); afirmou a inviolabilidade da liberdade de consciência, de crença (nº 05), de religião (nº 06) e dos cultos religiosos (nº 07); garantiu a inviolabilidade do sigilo da correspondência (nº 08), a livre manifestação do pensamento, assegurou o direito de resposta (nº 09); o direito de petição (nº 10); o direito à reunião (nº 11); a liberdade de associação (nº 12); o direito ao livre exercício de qualquer profissão (nº 13); a inviolabilidade de domicílio, exceto nos casos legais (nº 16); o direito à propriedade (nº 17); definiu regras a respeito da prisão (nº 21), estabeleceu a fiança (nº 22); manteve o instituto do habeas corpus (nº 23); garantiu a ampla defesa (nº 24); proibiu foro privilegiado e Tribunais de exceção (nº 25); fixou o juízo competente (nº 26); proibiu a retroatividade da lei, salvo quando beneficiar o réu (nº 27); deu 45. BULOS, 2007, p. 372. 46. SILVA, 2009, p. 81.

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caráter pessoal à pena (nº 28) e proibiu as cruéis, como banimento, morte, confisco ou de caráter perpétuo, exceto no que concerne à legislação militar (nº 29), entre outros, inclusive os outros, não mencionados, mas que resultem do regime e dos princípios adotados por essa Carta (art. 144). Foi curta a duração da Carta de 1934. Com o golpe do denominado Estado Novo, em 1937, nova Constituição entra em vigência no Brasil, como se verá nas anotações adiante. 5.4 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1937

Getúlio Vargas subira ao poder como líder civil da Revolução de 1930, época em que surge um partido fascista, barulhento e virulento – a Ação Integralista Brasileira, cujo chefe, Plínio Salgado, como Mussolini e Hitler, “[...] se preparava para empolgar o poder; reorganiza-se o partido comunista, aguerrido e disciplinado, cujo chefe, Luis Carlos Prestes, também queria o poder”.47 Sob o argumento de que poria fim a essa ameaça comunista que se fazia presente,48 em 10 de novembro de 1937, o Presidente Getúlio Vargas rompe com a ordem constitucional brasileira estabelecida, através de ato de força que contou com o apoio do Ministro da Guerra General Góis Monteiro e outras patentes militares, dissolve a Câmara e o Senado, e revoga a Constituição de 1934. Estabelecido o regime ditatorial, foi outorgada49 a Carta Constitucional de 1937, denominada de “Carta do Estado Novo”, a qual conferiu ao Presidente da República poderes plenos, inclusive para intervenção nos Estados-membros.50 Ao tratar dos Direitos e Garantias Individuais, a Constituição assegurou aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança 47. Ibidem, p. 84. 48. Em 1935 já havia ocorrido a chamada Intentona Comunista, uma espécie de rebelião contra o governo de Getúlio Vargas. Na realidade, o movimento tinha por objetivo derrubar o presidente e tomar o poder. Liderada pela Aliança Nacional Libertadora, a Intentona eclodiu em novembro de 1935, mas foi rapidamente combatida pelas Forças de Segurança Nacional. O movimento ganhou adeptos dentro dos batalhões. Militares de baixa patente inclinados ao comunismo iniciaram a rebelião na noite do dia 23 de novembro de 1935, em Natal, no Rio Grande do Norte, onde os revolucionários chegaram a tomar o poder durante três dias. Depois se estendeu para Maranhão, Recife e por último para o Rio de Janeiro, no dia 27. Disponível em: . Acesso em: 1º/11/2010. 49. À luz da classificação das Constituições, diz-se que, quanto à origem, elas podem ser: a) promulgada ou votada, quando fruto de um processo democrático e elaborada por um Poder Constituinte exercido por uma Assembleia Constituinte; b) outorgada, sempre que decorra de ato autoritário, imposto por um grupo ou governante; e c) cesarista, no caso de ter sido preparada por um ditador, mas submetida a um plebiscito para sua validação. A esse respeito: ARAUJO, Luiz Alberto David e ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano, 2001, p. 03-04. 50. A Carta Constitucional de 1937 é conhecida como “polaca”, em face de ter sido inspirada na Carta ditatorial da Polônia, de 1935. Cf. BULOS, 2007, p. 373 e PIERANGELI, José Henrique. Códigos Penais do Brasil : evolução histórica. 2. Ed.- São Paulo : Revista dos Tribunais, p. 77.

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individual e à propriedade (art. 122); adotou o princípio da igualdade (1º); reconheceu o direito de ir, vir e permanecer (2º); garantiu a liberdade de culto (4º); a inviolabilidade do domicílio e de correspondência, ressalvadas as exceções legais (6º); o direito de petição (7º); a liberdade de associação (9º) e de reunião pacífica (10); definiu regras da prisão em flagrante e da decorrente de pronúncia (11); vedou a extradição de brasileiro (12); proibiu as penas corpóreas perpétuas e garantiu a irretroatividade da lei (13); reconheceu o direito à propriedade, ressalvado o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública (14); garantiu a livre manifestação do pensamento (15), entre outros. Não se pode deixar de reconhecer retrocesso dessa Constituição ao prever a possibilidade de aplicação da pena de morte, como, por exemplo, no caso de homicídio cometido por motivo fútil e com extremos de perversidade (13, alínea “f”), além dos outros casos arrolados nas demais, merecendo severa censura da doutrina.51 A regularidade da aplicação da Constituição de 1937 restou inibida por força do período de ditadura vivenciado no Brasil, no qual “todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava como órgão do Executivo”.52 5.5 Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1946

O histórico legislativo que conduziu à promulgação e vigência da Constituição de 1946 deu-se através da Lei Constitucional nº 09, de 28 de fevereiro de 1945, que objetivava a redemocratização do Brasil, acenando com a possibilidade de eleição direta para Presidente da República, Deputados e Senadores. Foram convocadas as eleições para os cargos de Presidente da República, Governadores de Estado, Parlamento e Assembleias Legislativas Estaduais, as quais se realizariam em 02 de dezembro de 1945. Dois candidatos militares foram apresentados: o brigadeiro Eduardo Gomes e o ex-ministro da Guerra (de Getúlio Vargas), General Eurico Gaspar Dutra, sagrando-se vencedor este último.53 Dois meses depois, em 02 de fevereiro de 1946, instalou-se a Assembleia 51. “A pena de morte é demonstração da mais absoluta irracionalidade que ainda preside certos ordenamentos jurídicos. Em verdade, é resquício de pensamento autoritário que imaginava ser possível a criação de um mundo povoado por homens superiores, dotados de características diferenciadas, destinados a dominar os demais seres vivos sobre a face da Terra, neles incluídos os homens das outras raças”. TELES, Ney Moura. Direito Penal : parte geral – arts. 1º a 2º.- São Paulo : Atlas, 2004, p. 65. 52. SILVA, 2009, p. 85. 53. Nessa época, a Presidência da República vinha sendo ocupada pelo Ministro José Linhares, do Supremo

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Nacional Constituinte, cujos trabalhos estenderam-se até 18 de setembro daquele ano, quando, então, surgiu a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Os direitos e garantias individuais foram inseridos no Capítulo II, restando assegurado aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à propriedade (art. 141); a igualdade perante a lei (§ 1º); a observância do princípio da legalidade (§ 2º), da irretroatividade da lei, salvo para beneficiar o réu (§ 29); a liberdade de pensamento (§ 5º), de consciência e de crença (art. 7º), de associação (§ 12); a inviolabilidade do sigilo da correspondência (§ 6º) e do domicílio (§ 15); o direito de reunião (§ 11) e à fiança (§ 21); a proibição de foro privilegiado nem Juízes e Tribunais de exceção, entre outros. 5.6 Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967

Através do Ato Institucional nº 04, datado de 07 de dezembro de 1966, o Marechal Castello Branco, Presidente da República em exercício, convocou o Congresso Nacional para apreciar o projeto de autoria do Poder Executivo, fixando, para isso, o prazo de 12 de dezembro de 1966 a 24 de janeiro de 1967.54 A “Constituição do Brasil”, assim denominada pelo próprio legislador ordinário, foi promulgada em 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigência em 15 de março do mesmo ano. Somente depois de tratar de temas relativos à Organização Nacional (arts. 1º a 7º), à Competência da União (arts. 8º a 12), à Competência dos Estados e Municípios (arts. 13 a 16), ao Distrito Federal e Territórios (art. 17), ao Sistema Tributário Nacional (arts. 18 a 28), aos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário (arts. 29 a 139) , à Declaração de Direitos sobre a nacionalidade (arts. 140 e 141), aos direitos políticos (arts. 142 a 148) e aos partidos políticos (arts. 149), é que, enfim, o legislador constituinte considerou dos Direitos e Garantias Individuais. Tribunal Federal, de vez que, em 29 de outubro de 1945, os Ministros Militares derrubaram Getúlio Vargas, desconfiados de que tramava sua permanência no poder. Cf. SILVA, 2009, p. 86. 54. A respeito desse posicionamento do executivo federal, José Celso de Mello Filho pontua que “o Congresso Nacional, que deliberou sobre o referido projeto, não mais se apresentava como órgão revestido de legitimidade política, especialmente para esse efeito, tantas e tais as graves ofensas, bem como a arbitrária violência, que sofrera por parte do comando revolucionário. Além disso, ao Congresso foi imposto prazo exíguo (quarenta e dois dias) para o desempenho de suas funções constituintes além de não lhe ter sido reconhecida a faculdade de substituir o projeto do Executivo por outro, de autoria dos próprios parlamentares. Mais do que isso, impôs-se às Mesas das duas casas do Congresso Nacional a obrigação de, mesmo não concluída a votação do projeto até o dia 21/12/1967, promulgarem a Constituição segundo a redação final de uma Comissão Mista, observadas as regras dispostas no art. 8º do Ato Institucional n. 4/66. Na verdade, a outorga desse texto constitucional mascarou-se pela utilização de um Congresso Nacional pressionado e sem garantias. MELLO FILHO, José Celso de. Constituição Federal Anotada. 2. ed. ampl. e atual. São Paulo: Saraiva, 1986, p. 11-12.

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Nesse tópico, a Constituição de 1967 estabeleceu, no art. 150, a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à prosperidade (art. 150, caput), reconhecendo, entre outros, o princípio da igualdade perante a lei, (§ 1º), o princípio da legalidade (§ 2º), o direito de petição (§ 4º e § 30), a liberdade de consciência e de credo (§§ 5º a 7º), a livre manifestação do pensamento (§ 8º), a inviolabilidade de correspondência e o sigilo das comunicações telegráficas e telefônicas (§ 9º), a inviolabilidade do domicílio (§ 10), a ampla defesa (§ 15), o contraditório (§ 16), o direito do autor de inventos industriais e de obras literárias, artísticas e científicas (§§ 24 e 25), o direito de reunião (§ 27) e de associação (§ 28), entre outros, além de proibir a pena de morte, de prisão perpétua, de banimento, ou confisco, ressalvados os casos que menciona (§ 11), o foro privilegiado e Tribunais de exceção (§ 15). 5.6.1 Ato Institucional n. 05, de 1.968

Rompendo com a ordem estabelecida pela Constituição de 1967, o Ato Institucional nº 05, ou simplesmente AI-5, de 13 de dezembro de 1968, considerado o instrumento mais autoritário da história política do Brasil,55 decretou o recesso parlamentar; conferiu ao Presidente da República o poder de intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações constitucionais; suspendeu os direitos políticos e o habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional e a ordem econômica e social e a economia popular; excluiu de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com esse Ato Institucional e Atos Complementares.56 Em 31 de agosto de 1969, por força do Ato Institucional nº 12, o exercício do Poder Executivo passou a ser de atribuição dos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, a eles sendo deferida a confecção do novo texto constitucional, promulgado em 17 de outubro de 1969, como Emenda Constitucional nº 01 à Constituição de 1967 (com vigência a partir de 30 de outubro de 1969). 5.6.2 Emenda Constitucional nº 01, de 1969, à Constituição de 1967

A Emenda Constitucional nº 01, datada de 17 de outubro de 1969, deu nova redação à Constituição de 1967, entrou em vigência em 30 de outubro 55. SILVA, 2009, p. 90. 56. O inteiro teor do Ato Institucional nº 05, de 13 de dezembro de 1968, está disponível em: . Acesso em: 1º/11/2010.

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daquele ano. Foi imposta por junta militar, integrada pelos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar. “Aproveitaram a doença e morte do Presidente Costa e Silva, que pretendia revogar o AI-5 para devolver ao País algumas prerrogativas democráticas”.57 Embora tenha estabelecido uma nova ordem constitucional e haja recebido a denominação de “Constituição da República Federativa do Brasil”, em substituição à “Constituição do Brasil” de 1967, essa Emenda não é considerada como a sétima Constituição brasileira, sob o argumento de que inexistiu o exercício legítimo do poder constituinte originário, mas, sim, “[...] o uso anômalo da competência reformadora, que se revestiu na roupagem de uma emenda constitucional hiperampliativa”. 58Outro entendimento, é no sentido de que, teórica e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova Constituição. “A emenda que implantou a nova ordem funcionou como simples mecanismo de outorga”59, uma vez que verdadeiramente se promulgou texto integralmente reformulado. A Emenda em exame cuidou de tratar, entre outras questões, da censura relativa às publicações que contrariassem a moral e os bons costumes; alargou o prazo do mandato presidencial para cinco anos; estabeleceu eleições indiretas para governos estaduais e eliminou as imunidades parlamentares. 5.7 Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988

Ao assumir a Presidência da República no ano de 1985, em substituição a Tancredo Neves, que falecera depois de eleito para o cargo máximo do Poder Executivo Federal, o então Vice-Presidente José Sarney nomeou uma Comissão de Estudos Constitucionais, para elaborar estudos e anteprojeto de Constituição, para envio à Constituinte, além de encaminhar ao Congresso Nacional a proposta de Emenda Constitucional convocando a Assembleia Nacional Constituinte. Por força do que dispôs a Emenda Constitucional n. 26, datada de 27 de novembro de 1985,60 a Assembleia Nacional Constituinte foi convocada e incumbida de elaborar a nova Constituição brasileira, tendo iniciado os trabalhos 57. 58. 59. 60.

BULOS, 2007, p. 376. Ibidem, mesma página. SILVA, 2009, p. 89. Tecnicamente não se tratou de Emenda Constitucional. “Em verdade, a EC nº 26, de 17/11/1985, ao convocar a Assembleia Nacional Constituinte, constitui, nesse aspecto, um ato político. Se convocava a Constituinte para elaborar Constituição nova que substituiria a que estava em vigor, por certo não tem a natureza de emenda constitucional, pois esta tem precisamente sentido de manter a Constituição emendada. Se visava destruir esta, não pode ser tida como emenda, mas como ato político”. Cf. SILVA, 2009, p. 89.

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em 1º de fevereiro de 1987, durante sessão presidida pelo Ministro José Carlos Moreira Alves, então Presidente do Supremo Tribunal Federal. A Constituição Cidadã, de 1988,61 reconheceu o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. III) e da autodeterminação dos povos (art. 4º, inc. III), além de fixar os direitos e garantias fundamentais, tais como, o princípio da igualdade (art. 5º); a liberdade de pensamento, vedado o anonimato (inc. IV); a inviolabilidade de crença (inc. VI); a inviolabilidade da vida privada, honra e imagem das pessoas (inc. X) e da casa (inc. XI); a inviolabilidade da correspondência das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, excetuados os casos que menciona (inc. XII); o direito de ir, vir e permanecer (inc. XV); a liberdade de reunião (inc. XVI) e de associação, para fins lícitos (inc. XVII); o direito à propriedade (inc. XXII); o acesso ao judiciário (inc. XXXV); a vedação a Juízo ou Tribunal de Exceção (inc. XXXVIII); o princípio da anterioridade (inc. XXXIX) e da irretroatividade da lei, salvo para beneficiar o réu (inc. XL); a vedação da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e cruéis (inc. XLVII); o habeas corpus (inc. LXVIII), entre outros. CONCLUSÕES

O sistema jurídico-penal brasileiro reveste-se de regras estabelecidas para a tutela de bens, valores e interesses, juridicamente relevantes, destinadas à garantia a paz social. As garantias individuais destinadas a essa finalidade estão positivadas na Constituição Federal brasileira, visando justamente honrar a eficácia desses direitos, entre eles, a inviolabilidade da liberdade, do patrimônio etc, além de limitar a intervenção estatal. Em matéria penal, a Carta Magna da República Federativa do Brasil afirma diversos postulados (princípios) que buscam a defesa das garantias individuais, impondo, por consequência, restrições ao poder punitivo do Estado, em favor das prerrogativas individuais. Os princípios constitucionais, de origem inequivocamente iluminista, servem de orientação ao legislador penal para a edição de normas incriminadoras que efetivamente protejam valores coletivos. Como a finalidade do Direito Penal 61. A expressão cunhada por Ulysses Guimarães, então Presidente da Assembleia Nacional Constituinte, está justificada pela “[...] ampla participação popular em sua elaboração e especialmente porque se volta decididamente para a plena realização da cidadania”. SILVA, 2009, p. 92.

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é a garantia da paz social, resta induvidoso que a pena privativa de liberdade só poderá ser cominada quando necessário para a efetiva prevenção e repressão de infrações penais, e, mesmo assim, se inexistirem outras medidas menos gravosas. O princípio da legalidade (ou da reserva legal), dentre os demais arrolados neste trabalho, importa em limitação da potestade punitiva estatal em favor do “status libertatis”, funcionando, portanto, como efetiva proteção dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal. REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO XI

a INFluÊNCIa Do pENSaMENto CRIStÃo NaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS

José Raimundo de Carvalho Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Sacerdote Católico.

Márcio Calçada Fernandes Machado Mestrando em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Advogado. Professor da Faculdade de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva (FAIT). Advogado.

INTRODUÇÃO

Quase todas as Constituições Brasileiras fazem expressa menção em seus preâmbulos à confiança depositada em Deus (1934), colocando-se sob sua proteção (1946, 1967, 1969 e 1988) ou afirmando o amparo divino. Essa percepção da importância de Deus como fundamento de uma sociedade fraterna se origina da indissociável conexão entre a história, a cultura e o próprio Criador, influenciando cogentemente na elaboração de políticas públicas. Percebe-se a relação notória entre Religião e Direito nas Constituições brasileiras começando pelo período imperial, caracterizado por uma íntima e oficial relação do Estado com a Igreja, que com o advento da República, tornouse laico. Apesar disso, através da história brasileira e no atual contexto, podese ainda constatar a influência do pensamento cristão na formação moral dos cidadãos e, além disso, na conformação, criação e aplicação das leis brasileiras. Esse é o caso, por exemplo, da indissolubilidade do casamento propalado pela igreja católica, razão pela qual o divórcio somente foi instituído em 1977, com

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a Lei Complementar 6.515/77, durante o governo do presidente Geisel, que era de confissão protestante1. Além de toda colaboração dos documentos cristãos para a composição da sociedade, principalmente a Bíblia, percebe-se que há igualmente uma influência marcante na composição das normas jurídicas que regem o País. Com referência ao Direito Constitucional temos como influência, por exemplo, Deuteronômio 19,16-182 como base conceitual do Princípio da Ampla Defesa e do Contraditório, respaldado no art. 5º, LV, CF/88. Ainda, o princípio preconizado no art. 5º, LIII, CF/88, encontra semelhança funcional em 2Crônicas 19,83, bem como os princípios da Livre Investigação e da Fundamentação dos Veredictos, que são encontrados em Deuteronômio 13,12-144. No âmbito trabalhista-constitucional o salário era tão resguardado em Deuteronômio 24,14-155 como no disposto no art. 7º, X, CF/88. Assim, tais exemplos servem para ilustrar que a mensagem cristã, baseada no livro bíblico, vai permear toda a compreensão do homem e do como este homem se define à luz da lei positivada, sendo, por sua vez, esta a finalidade do presente trabalho. 1 PENSAMENTO CRISTÃO

Por Pensamento Cristão, ou Filosofia Cristã, entende-se como o pensamento orientado pela verdade revelada por Jesus, o Cristo, diferentemente dos pensamentos helênico (grego) e de outros como os chineses, os hindus, etc. Já à Teologia cabe estudar, explicar e aplicar dogmas da Igreja. Entretanto, a Filosofia Cristã não se contrapõe aos dogmas, mas parte de princípios racionais para explicar Deus e o mundo6. 1. Deuteronômio 24,1: “Quando um homem tomar uma mulher e se casar com ela, então será que, se não achar graça em seus olhos, por nela encontrar coisa indecente, far-lhe-á uma carta de repúdio, e lha dará na sua mão, e a despedirá da sua casa”. (BÍBLIA, 2009, p. 210). 2. Deuteronômio 19,16-18: “Quando uma falsa testemunha se levantar contra alguém, acusando-o de alguma rebelião, as duas partes em litígio se apresentarão diante de Iahweh, diante dos sacerdotes e dos juízes que estiverem em função naqueles dias. Os Juízes investigarão cuidadosamente” (BÍBLIA, 2009, p. 207). 3. 2Crônicas 19,8: “Além disso, Josafá estabeleceu em Jerusalém sacerdotes, levitas e chefes de famílias israelitas, para promulgar as sentenças de Iahweh e julgar os processos” (BÍBLIA, 2009, p. 457). 4. Deuteronômio 13,12-14: “E todo Israel ouvirá, ficará com medo e nunca mais se fará uma ação má como esta em teu meio. Caso ouças dizer que, numa das cidades que Iahweh teu Deus te dará para morar, homens vagabundos, procedentes do teu meio, seduziram os habitantes da sua cidade, dizendo: “Vamos servir a outros deuses”, que não conhecestes” (BÍBLIA, 2009, p. 202). 5. Deuteronômio 24,14-15: “Não oprimirás um assalariado pobre, necessitado, seja ele um dos teus irmãos ou um estrangeiro que mora em tua terra, em tua cidade. Pagar-lhes-ás o salário a cada dia, antes que o sol se ponha, porque ele é pobre e disso depende a sua vida. Deste modo, ele não clamará a Iahweh contra ti, e em ti não haverá pecado” (BÍBLIA, 2009, p. 211). 6. STÖRIG, Hans Joachim. História geral da filosofia. Petrópolis: Vozes, 2008.

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Portanto, percebe-se que os filósofos cristãos buscam uma harmonia entre a razão e a fé, visando maior compreensão da realidade, onde a fé dita metas que devem ser alcançadas pela razão. Contudo, entre os filósofos cristãos há divergência entre as máximas adotadas7, conforme se observa: • Creio porque absurdo: essa máxima representava aqueles pensadores cristãos que julgavam fé e razão irreconciliáveis e subjugavam a razão à superioridade da fé; • Creio para compreender: essa máxima representava o espírito daqueles que julgavam ambos os domínios conciliáveis, mas subordinavam a razão à fé; • Compreender para crer: essa máxima representava aqueles que não apostavam numa conciliação entre fé e razão, mas atestavam o campo próprio de cada uma, devendo, portanto, serem tratadas isoladamente. Para os pensadores cristãos o conhecimento que provém da palavra de Jesus, que é o Deus encarnado, é uma demonstração de amor para aqueles que o reconhecem, ensinando-lhes a humildade e, a partir de sua ressurreição, sendo o caminho da esperança e da salvação dos pecados8. 2 CONSTITUIÇÃO DE 1824.

Trata-se de uma Constituição fortemente influenciada pela supremacia religiosa, que institui o Estado confessional no Brasil onde a religião católica apostólica romana é confirmada como religião oficial da Nação, mas que, no entanto, a influência de todo pensamento cristão não se verificou tão predominantemente ao ponto de reconhecê-la como uma lei fundamentalmente cristã. Por outro lado, embora tal circunstância seja verossímil, é fato certa influência de traços cristãos facilmente identificáveis na Constituição Imperial. O primeiro ponto a ser examinado na Constituição de 1824 diz respeito ao arcabouço do Estado confessional, garantidor do próprio estado monárquico, conferindo, por sua vez, poder ilimitado ao Imperador, conforme dispõe o art. 99. Certo é que o supracitado dispositivo confere e justifica o status sagrado da autoridade imperial, o que de certa maneira justifica a influência do pensamento cristão no texto constitucional. 7. Idem, nota 6. 8. Idem, nota 6.

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Note-se que, embora o conteúdo do pensamento cristão verse sobre uma verdadeira crítica social, no entanto, deve-se adotar certo critério, posto que não se pode considerá-lo genuinamente como um manifesto revolucionário de afronta aos poderes constituídos, até porque em diversos episódios do Novo Testamento se pode depreender uma tendência de conformação e obediência ao poder exercido pela autoridade estatal. Tal exame pode ser justificado através de alguns textos que confirmam a supracitada alegação, como exemplo a própria Carta de Paulo aos Romanos 13,1-29: Todo homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõese à ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação.

Assim, tal fundamento demonstra uma cultura de poder que influenciou a sustentação temporal do poder dos monarcas ao longo da história, iniciandose principalmente na idade média, justamente por influência de toda ideologia cristã advinda da ideia da concessão por Deus do poder temporal do Rei. Ademais, o discurso de Jesus quanto o tributo a César, encontrado nos Evangelhos de Lucas 20,20-2510 e Marcos 12,1411, tende a confirmar a

ideia pela qual o cristianismo não pode ser totalmente entendido como um movimento revolucionário de negação ao poder constituído, o que justifica a tese de sustentação do poder do monarca por concessão divina, conforme conclui o art. 99 da Constituição de 1824. Verifica-se, por sua vez, no texto constitucional imperial, outro traço marcante da fé e do pensamento cristão sintetizada no Preâmbulo da Lei Fundamental de 1824, que demonstra a adesão do poder político e social brasileiro à mística ensejadora do cristianismo. Esta mística é a fé monoteísta representada numa estrutura trinitária, onde se idealiza a figura divina em três pessoas que formam um só Deus: Pai, Filho e Espírito Santo. 9. BÍBLIA. Bíblia de estudo Almeida. Revista e Atualizada. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009. 10. Lucas 20,20-25: “E ficaram de espreita. Enviaram espiões que se fingiram de justos, para surpreendê-lo em alguma palavra sua, a fim de entregá-lo ao poder e à autoridade do governador. E o interrogaram: “Mestre, sabemos que falas e ensinas com retidão, e, sem levar em conta a posição das pessoas, ensinas de fato o caminho de Deus. É lícito a nós pagar a tributo a César ou não? Ele, porém, penetrando-lhes a astúcia, disse: Mostrai-me um denáro. De que traz a imagem e a inscrição? Responderam: “De César. Ele disse então: “Devolvei, pois, o que é de César, e o que é de Deus a Deus” (BÍBLIA, 2009, p. 1059). 11. Marcos 12,14: “Vindo eles, disseram-lhes: Mestre, sabemos que és verdadeiro e não dás preferência a ninguém, pois não consideras os homens pelas aparências, mas ensinas, de fato, o caminho de Deus. É lícito pagar impostos a Cesar ou não? Pagamos ou não pagamos?” (BÍBLIA, 2009, p. 1013).

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Tal circunstância é constatada pelos termos preambulares “Em nome da Santíssima Trindade”, que muito embora esteja mais voltada para o dogma da fé (Segunda Carta aos Tessalonicenses 2,13-16 e Segunda Carta aos Coríntios 13,13)12 do que notadamente ao pensamento cristão, mas que, no entanto, é determinante para a cultura cristã, principalmente no que tange à influência no novo testamento do monoteísmo judaico. Por outro lado, pode ser objeto de análise os dispositivos constantes do Título 8 da Constituição de 1824, atinentes às “Disposições Geraes, e Garantias dos Direitos Civis, e Políticos dos Cidadãos Brazileiros”, notadamente naqueles que versam sobre em um ou outro caso das liberdades gerais, como os incisos do art. 179, visto que traduzem muito a ideia do pensamento cristão lastreado por aquilo que Santo Agostinho definiria como a civitas dei, cuja base platônica é determinante para configurar o Estado que deve basear-se na justiça e na paz13. Vê-se, pois, que a Constituição de 1824, por ser uma lei confessional, não poderia deixar de transparecer o ideário paulino de estabelecer um Estado onde todos formam uma comunidade segundo o espírito de liberdade e moralidade com o escopo de Justiça14. Todavia, este pensamento, principalmente os que estabelecem as garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, não estão emblematicamente colocados em posição de destaque no texto constitucional, o que acaba por demonstrar certo paradoxo frente à ideia da instituição do Estado Confessional Cristão. 3 CONSTITUIÇÃO DE 1891

A Constituição Republicana de 1891, embora tenha projetado aquilo que hoje se define como estado laico com plena distinção entre os assuntos civis e religiosos, no entanto, é possível encontrar traços do pensamento cristão, visto que diante de toda a repulsa a interferência doutrinal da religião mantém em seu conteúdo normas de inspiração cristã, diante da real impossibilidade 12. 2Tessalonicenses 2,13-16 e 2Coríntios 13,13: “Nós, porém, sempre agradecemos a Deus por vós, irmãos queridos do Senhor, porque Deus vos escolheu desde o princípio para serdes salvos mediante a santificação do Espírito e a fé na verdade, e por meio do evangelho vos chamou a tomar parte na glória de nosso Senhor Jesus Cristo. Portanto, irmãos, ficai firmes; guardai as tradições que vos ensinamos oralmente ou por escrito. Nosso Senhor Jesus Cristo e Deus, nosso Pai, que nos amou e nos deu a eterna consolação e a boa esperança pela graça” e “ a Graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós” (BÍBLIA, 2009, p. 1258; p. 1211). 13. MARAFIOTI, Domenico. La Storia tra il Tempo e l’Eternità. Il Contesto del “Civitate Dei” di Sant’Agostino. In: CASALEGNO, Alberto. Tempo ed Eternità in Dialogo con Ugo Vani sj. Milano: San Paolo, 2002, p. 217-234. 14. MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995, p. 58.

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de dissociação da cultura ocidental, amplamente influenciada pelo pensamento baseado nos valores do cristianismo. A primeira característica com fundamento essencialmente cristão encontra-se contida dentro do perfil marcante do nacionalismo, materializado no art. 1º, que dispõe sobre a forma federativa do Estado. Assim o art. 1º da Constituição de 1891, ao definir a forma e regime de governo e a forma de Estado os constrói tendo como base aquilo que conceitua como “Nação Brasileira”, que aparentemente parece estar distante das ideias cristãs, mas que na verdade seu conteúdo é inerente a tal pensamento, pautado, notadamente, na filosofia cristã mais voltada para os aspectos políticos e jurídicos. Embora tal circunstância não esteja permeada por critérios espirituais do pensamento cristão é fato que a ideia de nacionalismo como se conhece nos dias atuais advém, em parte, do pensamento cristão, construído pela Igreja Católica a partir da queda do Império Romano e ascensão da invasão germânica nos idos anos 400 d.C. Sendo assim, despontando não só como liderança espiritual, mas, sobretudo, como liderança política, influenciou e sofreu forte influência dos povos germânicos, razão pela qual se viu obrigada a conjugar o nacionalismo e o direito vivido e concretizado pelos povos bárbaros, personificado na ideia de poder inerente a uma personalidade, com o direito universal e abstrato do pensamento grego, redundando na criação do conceito de Igreja Nacional. Tal situação, originada da conjugação da catolicidade (universalidade) e personalidade particular deu origem à ideia do nacionalismo15, o que acabou

por traduzir-se na estrutura político-social da formação dos Estados, tal como ocorreu na Constituição de 1891. Por outro lado, é visível a influência cristã no texto constitucional quanto aos aspectos que envolvem a ética e a moral, como exemplo os artigos 24 e 50 da Constituição republicana, que sintetizam a feição da moralidade pública. Neste aspecto vislumbra-se o pensamento de Santo Tomás de Aquino, cuja obra determinava a influência da moral no campo da lei jurídica, referendada pelo critério da alteritas do pensamento tomista16. Igualmente, toda a cultura de paz, típica da mensagem cristã, encontra guarida na Constituição Republicana diante da preferência de um Estado de paz, conforme dispõe o art. 88. 15. MONCADA, op. cit, p. 69 16. MONCADA, sequentia, p.81

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Note-se que na Constituição Republicana de 1891 ocorre em seu bojo um rol considerável de direitos declarados garantidores da cidadania, conforme preceituado no art. 72 a 78. Muitos destes direitos alicerçados em princípios de liberdade e igualdade social. Todavia, merece destaque o caput do art. 72, que determina a igualdade de direitos pela Constituição entre brasileiros e estrangeiros residentes no País, confirmando a noção cristã de justiça, através da igualdade plena, também prevista no mesmo dispositivo em seu parágrafo segundo, que acaba por determinar a influência do discurso paulino pertinente à noção de igualdade, como instrumento da civilização do amor, elemento igualmente basilar da teoria agostiniana da civitas dei. Certo é que estes elementos transmitem uma tendência, ainda que tímida, de justificação da promoção da dignidade da pessoa humana, cuja preferência constitucional se faz transparecer no seu texto, como a hipótese do banimento da pena de morte prevista no parágrafo 21 do art. 72, sendo, pois, mais um dispositivo baseado na ideia de promoção da vida, marca determinante na cultura cristã 17, cujo fundamento encontrase no Decálogo, e que como mandamento de Deus, é princípio ensejador da mensagem bíblica. Portanto, conforme o exposto no início do estudo sobre a Constituição de 1891, embora marcante a feição laica do texto constitucional, denota-se certa evolução quanto aos direitos civis que muito se justificam no pensamento cristão de justiça e paz. 4 CONSTITUIÇÃO DE 1934

A Constituição de 1934 consolida uma tendência a ser adotada pelas posteriores Constituições acerca da amplitude do texto constitucional nos assuntos de ordem política, econômica e social, consolidando o cuidado com que a sociedade brasileira confere resguardo ao espírito democrático nacional. Vê-se em seu conteúdo certa influência do pensamento socialista permeado pelos movimentos sociais do seu tempo, e que se encontravam em pauta em todo mundo. Todavia, ao contrário do que se possa imaginar, acabou promovendo uma forte influência do pensamento cristão, até mesmo em razão de tratar-se de um texto constitucional mais abrangente, diferente do que ocorreu com as constituições anteriores. 17. Gênesis 2,7: “E formou o SENHOR Deus o homem do pó da terra, e soprou em suas narinas o fôlego da vida; e o homem foi feito alma vivente.” (BÍBLIA, 2009, p. 7)

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Portanto, a primeira análise merecedora de comentários refere-se ao próprio preâmbulo da Constituição de 1934, que embora mantivesse a característica do Estado laico, conforme se depreende do art. 17. III faz expressa menção quanto à “confiança” depositada em Deus. Assim sendo, conforme já mencionado nos comentários feitos à Constituição de 1891, embora paradoxalmente contraditórios à figura do Estado laico, adota a presença da expressão preambular de confiança em Deus. Certo é que a lei jurídica, o Estado, a sociedade em geral, embora intitulados laicos, jamais conseguiram impedir a influência dos domínios do pensamento cristão, considerando que a força de sua mensagem é parte indissociável da cultura ocidental, razão pela qual a supremacia da força divina, caracterizada pela figura de um só Deus, estruturado na fé monoteísta do antigo testamento, herança da mensagem cristã, predomina na sociedade ocidental em geral, cuja interferência não se dá em razão de uma profissão religiosa, mas, por sua vez, em decorrência do próprio histórico de formação da sociedade ocidental. Igualmente, conforme se deu com a Constituição de 1891, é clara a preocupação do legislador constituinte de 1934 quanto à noção do Estado de paz, cuja preferência é de não provocação bélica, conforme disposto no artigo 4º do texto constitucional, o que vem a enfatizar a influência paulina da civilização de homens comprometidos com a vontade da justiça, onde impera a paz e a fraternidade, e que é base para todo pensamento agostiniano do Estado voltado para o comportamento segundo os critérios celestes. Em seu artigo 10, a Constituição de 1934 menciona de forma inédita a proteção das “belezas naturais”, como gene do que posteriormente se consolidará como tutela do meio ambiente. Em verdade, é possível concatená-la com a ideia preservacionista manifestada em diversas citações bíblicas a começar pelo livro do Gênesis sobre a figuração da criação do universo18.

Ademais a preocupação de tutela ao meio ambiente pode ser também justificada pela filosofia tomista, cuja feição aristotélica justifica a ideia de que o homem deve realizar-se materialmente no mundo que vive, e por ser este mundo uma realidade, a realização humana passa pela ideia de viver bem consigo, com o próximo e com o meio em que vive. Por conseguinte é nítido o enfoque da ética e a probidade exigida dos agentes públicos, conforme se depreende dos artigos 52, § 6º, 57, 61, 65, 69 e 112 da Constituição de 1934, reforçando a ideia da influência da filosofia social e política de Santo Agostinho, que determina prevalência da figura evangélica emblemática da autoridade reta e justa. E nisto

18. Gênesis 1,1: “No princípio criou Deus os céus e a terra.” (BÍBLIA, 2009, p. 4).

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igualmente se escora o pensamento de Santo Tomás de Aquino, exposto no opúsculo De regimine pincipium, onde sustenta a ideia condicional de uma sociedade justa, formada por homens livres e pela existência de um governo reto que zela pelo bem comum da sociedade19. Com efeito, perceptível o grau de importância conferido pela Constituição de 1934 aos direitos da cidadania erigidos como garantias individuais, chancelando o acolhimento da teoria constitucional dos direitos fundamentais. Deste modo é merecedor de destaque o princípio da igualdade previsto nas hipóteses do artigo 113, em patente influência dos textos bíblicos, que consolidam a ideia de que todos são iguais, independente de língua, nacionalidade, sexo, classe social e riquezas, por força do ensinamento manifestado no livro do Gênesis de que o homem é a imagem e semelhança de Deus20. Tal destaque deve ser acompanhado por outros que focam princípios constitucionalmente importantes como o princípio da solidariedade, cuja regulação em vários dispositivos demonstra a preocupação do legislador Constituinte com a inclusão social e, portanto, a dignidade da pessoa humana. Assim, servem como referência o art. 113, números 6 - 34 e o art. 121, § 5º. E, ainda sobre o aspecto da dignidade da pessoa humana, os demais dispositivos do próprio art. 113 como exemplos os números 2 (princípio da legalidade), 25 (impossibilidade de Tribunal de exceção), 29 (banimento da pena de morte ou de caráter perpétuo), bem como o art. 138, alíneas “c”, “d” e “e” (proteção a infância, maternidade, a prole familiar numerosa e a juventude) e o art. 175, § 1º (exclusão territorial de pessoa), que se justificam no âmago da mensagem cristã, conforme se verifica no Evangelho de Lucas21 e no Evangelho de Mateus22, dentre 19. JÚNIOR, José Cretella. Curso de Filosofia do Direito. 7ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 118. 20. Gênesis 1,26: “Façamos o homem à nossa imagem, como nossa semelhança, e que eles dominem sobre os peixes do mar, as aves do céu, os animais domésticos, todas as feras e todos os repteis que rastejam sobre a terra” (BÍBLIA. Bíblia de estudo Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2009, p. 5). 21. Lucas 4,18-19: “Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para evangelizar os pobres; envioume para proclamar a remissão aos presos e aos cegos a recuperação da vista para restituir a liberdade aos oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor” (BÍBLIA, 2009, p. 1030). 22. Mateus 25,31-46: “Quando o Filho do homem vier em sua glória com todos os seus anjos, então se assentará no seu trono glorioso. Em sua presença, todas as nações se reunirão e ele vai separar uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas dos cabritos. Colocará as ovelhas à sua direita e os cabritos, à esquerda. E o rei dirá aos que estiverem à sua direita: ‘Vinde, abençoados por meu Pai! Tomai posse do Reino preparado para vós desde a criação do mundo. Porque tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber, fui peregrino e me acolhestes , estive nu e me vestistes, enfermo e me visitastes, estava na cadeia e viestes ver-me’. E os justos perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome e te alimentamos, com sede e te demos de beber? Quando foi que te vimos peregrino e te acolhemos, nu e te vestimos? Quando foi que te vimos enfermo ou

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outros. Atendendo, pois, à ética cristã do amor ao próximo, que tão bem foi objeto da filosofia tomista, assimilada pela filosofia do direito por meio do conceito da alteridade. Por outro lado, como caráter inaugural e de certa forma marcante no texto constitucional de 1934 encontra-se destacado o Título V sobre a família, educação e cultura, que notadamente quanto à regulação de família, ainda não versada pelas constituições anteriores, em 1934 ganha status constitucional, principalmente para demarcar a indissolubilidade matrimonial, como característica marcante advinda do novo testamento, tal como se confere no Evangelho de Mateus 19,3-923. Finalmente, não se poderia olvidar a análise do regulatório pertinente às condições de trabalho e da proteção ao trabalhador, preceituado nos arts. 120-122 da Constituição de 1934. Em verdade, previstos na Constituição por força da consolidação do pensamento e da pressão sindical que se estabeleceu naquele tempo, formando um novo ramo do Direito, o do Trabalho, mas que certamente teve impulso com o pensamento da doutrina social da Igreja, através da primeira semente que foi a Encíclica papal Rerum Novarum, de 1891, da autoria do Papa Leão XIII (1891), cujo conteúdo serviu de posicionamento da Igreja sobre a tremenda injustiça social e de exigência de uma legislação protetora ao trabalhador24. 5 CONSTITUIÇÃO DE 1937

A Carta Constitucional de 1937, outorgada por Getulio Vargas, foi inspirada nos modelos fascistas europeus institucionalizando o regime ditatorial do chamado Estado Novo. Note-se que o momento histórico era conturbado diante da polarização de pensamentos que redundaram em movimentos como na cadeia e te fomos visitar? E o rei dirá: ‘Eu vos garanto: todas as vezes que fizestes isso a um desses meus irmãos menores, a mim o fizestes’. Depois dirá aos da esquerda: ‘Afastai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o diabo e seus anjos. Porque eu tive fome e não me destes de comer, tive sede e não me destes de beber, fui peregrino e não me destes abrigo; estive nu e não me vestistes, enfermo e na cadeia e não me visitastes’. E eles perguntarão: ‘Senhor, quando foi que te vimos faminto ou sedento, peregrino ou enfermo ou na cadeia e não te servimos? E ele lhes responderá: ‘Eu vos garanto: quando deixastes de fazer isso a um desses pequeninos, foi a mim que não o fizestes’. E estes irão para o castigo eterno, enquanto os justos, para a vida eterna” (BÍBLIA, 2009, p. 985-986). 23. Mateus 19,3-9: “Aproximaram-se dele alguns fariseus para testá-lo com a pergunta: ‘É permitido um homem despedir sua mulher por qualquer motivo?’ Ele respondeu: ‘Não lestes que no princípio o Criador os fez homem e mulher e disse: Por isso o homem deixará o pai e a mãe para unir-se à sua mulher, e os dois serão uma só carne? Assim, já não são dois, mas uma só carne. Não separe, pois, o homem o que Deus uniu’. 7 Eles insistiram: ‘Então, como é que Moisés mandou dar certidão de divórcio, ao despedir a mulher’ Jesus respondeu: ‘Foi por causa da dureza de vosso coração que Moisés vos permitiu divorciar-vos de vossas mulheres. Mas no princípio não foi assim. Eu, porém vos digo: Quem se divorciar de sua mulher, salvo em caso de ‘prostituição’, e se casar com outra, comete adultério.” (BÍBLIA, 2009, p. 975). 24. LEÃO XIII. Rerum Novarum. Carta enc. (15 de Maio de 1891).

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o fascismo e o comunismo, o que culminou com a Segunda Guerra Mundial frente a um mundo dividido. Diante de tais circunstâncias, o texto constitucional de 1937 acaba por refleti-las, considerando o endurecimento e a concentração do poder Estatal, o que de certa maneira gerou um afastamento da influência cristã em seus vários aspectos. Exemplo fiel da situação do momento é o próprio texto preambular, que na Constituição anterior fazia expressa menção a confiança divina o mesmo não ocorreu na Constituição de 1937. Com efeito, pela simples leitura do preâmbulo é possível constatar a ausência de tais expressões diante do flagrante temor no que tange à segurança nacional, o que, no entanto, não afastou o pensamento cristão, mesmo que ainda exercendo parcial influência na fonte constitucional. Assim sendo, embora os direitos relativos à cidadania não ocupassem relevante papel na Constituição de 1937, diante da prevalência do interesse de concentração de poder nas mãos do Poder Executivo, é possível destacarmos que em alguns dispositivos encontra-se a influência de todo um pensamento cristão. Exemplo é o art. 32, que veda qualquer discriminação entre brasileiros natos e desigualdades entre Estados e Municípios, demonstrando-se, pois, uma feição constitucional que, muito embora embrutecida, atenta quanto aos valores de igualdade e solidariedade, ideias que permeiam a filosofia e a mensagem Cristã. Também, assim, a questão da probidade, que embora não estivesse taxativamente caracterizada no texto constitucional, como ocorreu na Constituição de 1934, é aventada no art. 44, alínea “c”, art. 85 e art. 89, demonstrando sintonia com a ética cristã, fruto da construção filosófica de Santo Agostinho25 e Santo Tomás de Aquino26.

Por outro lado, a referência taxativa do Estado de paz contida nas Constituições republicanas anteriores é mencionada de forma muito tímida, em evidente distanciamento com todo arcabouço filosófico cristão, justificando um dualismo de realidades mencionado na obra de Santo Agostinho concernente ao civitas terrena e ao civitas dei27. Assim, o afastamento do poder estatal dos valores celestes, entendendo-se a paz como um dos seus elementos, pode ser retratado, no caso presente, através do relativo estado de alerta bélico ambientado na Constituição de 1937, e que pode ser ilustrado pela imagem agostiniana da influência da

25. LETTIERI, G. Il senso della Storia in Agostino d’Ippona. Roma: Borla, 1988, p. 138. 26. TORREL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino, sua pessoa e obra. São Paulo: Edições Loyola, 1999. 27. Idem, nota 10.

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malignidade sobre o Soberano que, por sua escolha, adere a uma cultura terrena, sem almejar as coisas do alto. A família recebe tratamento destacado, conforme ocorreu na Constituição de 1934, continuando a ser tratada como instituição a ser tutelada pelo Estado e de vínculo indissolúvel, acompanhando toda retórica evangélica, conforme já citado na presente obra através do Evangelho de Mateus 19,3-928. No entanto, neste capítulo voltado para a família, inserido dentro dos direitos e garantias individuais, encontramse expressões curiosas como o dever dos pais em educar sua prole, sendo para tanto considerado uma categoria de direito natural. Art 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular (grifamos).

Com efeito, inequívoca é a sintonia do texto descrito no art. 125 com todo conteúdo do pensamento cristão, notadamente no posicionamento de Santo Tomás de Aquino29, considerando a leitura que faz sobre a lei

divina, a lei natural e a lei humana. Assim, confere a ideia de que a lei natural consiste na “participação da criatura racional na lei eterna”, o que parece ter influenciado o texto constitucional, razão pela qual poder-seia justificar a extrema valoração dada a educação dos pais para com seus filhos diante da ideia da elevada missão de caráter divino. Aliás, todo aludido pensamento tem como base o ensinamento paulino no que tange as reflexões sobre a lei, conforme se depreende da Carta de São Paulo aos Romanos. Outro ponto merecedor de reflexão, ainda definido nas garantias constitucionais, é o que trata sobre a possibilidade dos “pais miseráveis de invocar o auxílio e proteção do Estado para a subsistência da prole” (art. 127 da Const. 1937). Em verdade, mais uma influência dos ideais de proteção da família e da visão de missão da família como entidade divina a ser promotora da multiplicação do gênero humano, protegida por critérios de solidariedade e dignidade da pessoa humana e cuja finalidade é ser tutelada como instituição de estratégia procriatória. Ainda, dentre as expressões curiosas, encontra-se no texto constitucional o regulatório do artigo 145 no que tange à punição da usura, que sem maiores considerações justifica, por si só, a influência

28. Idem, nota 20. 29. Idem, nota 23.

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do pensamento cristão alicerçada em toda base do antigo testamento, conforme se depreende do Salmo 15,530. 6 CONSTITUIÇÃO DE 1946

Quarta Constituição republicana do Brasil, promulgada em 18 de setembro de 1946, baseada nos termos da Constituição de 1934. De caráter liberal, evidenciou as múltiplas tendências políticas da época, permitindo uma maior inserção das garantias individuais e dos direitos sociais, o que corroborou para uma maior participação do pensamento cristão em seu conteúdo. A primeira observação interessante é o retorno no texto do preâmbulo da menção a Deus, após ter sido banida da Constituição de 1937, o que confirma o predomínio através da história brasileira da influência na cultura ocidental do cristianismo. A ideia de probidade é também prevista na Constituição de 1946, conforme se pode observar nas responsabilidades fixadas dos Deputados e Senadores (art. 48 e 54), do Presidente da República e de seus Ministros de Estado (arts. 88-89 e 92-93), e neste diploma de forma inédita a fixação da responsabilidade dos Juízes (art. 96), expandindo-se toda a base da ética cristã, sedimentada por Santo Tomás31, quanto à defesa de que somente é possível

uma sociedade justa quando houver homens livres e um governo reto que zela pelo bem comum da sociedade.

No campo dos direitos e garantias individuais destaca-se o princípio da igualdade (art. 141, § 1º), cuja base é plenamente cristã32, visto que toda mensagem de justiça cristã se dá através da igualdade. Portanto, é em Santo Tomás de Aquino que se projeta toda a preocupação em justificar pela alteridade dos homens a ideia de uma justiça distributiva, que tem bases aristotélicas. Para o pensador cristão “a presença do outro estaria implícita no valor do justo”33. Outra circunstância marcante refere-se ao dispositivo constitucional que preceitua que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. (art. 141, § 2º), fixando o princípio da legalidade. Compreende-se aqui a ideia da lei como predicado do que é honesto, lícito e útil para o cidadão, o que traz consigo todo o pensamento de outro grande pensador cristão que foi Santo Isidoro de Sevilha, que defendia a ideia de que a lei para 30. Salmo 15,5: “Aquele que não dá o seu dinheiro com usura, nem recebe peitas contra o inocente. Quem faz isto nunca será abalado” (BÍBLIA, 2009, p. 543). 31. LETTIERI, G. Il senso della Storia in Agostino d’Ippona. Roma: Borla, 1988, p. 145. 32. 2Coríntios 8,13-14 (BÍBLIA, 2009, p. 1184). 33. NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.125.

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ter força vinculativa deve ser verdadeiramente útil ao cidadão e não contemplar benefícios individuais, contribuindo, assim, para o estudo do Direito quanto a confirmação das características de abstratividade e generalidade da lei34. Deste modo é presente em todo o capítulo referente aos direitos e garantias individuais (art. 141 da Constituição de 1946) a valoração da dignidade da pessoa humana, a solidariedade e a liberdade, atendendo ao critério de fraternidade humana, cujo nascedouro ocorre em Jesus de Nazaré e é propagado na cultura pelo discurso de São Paulo. Todavia, a ideia de solidariedade não se aglutina apenas no capítulo dos direitos e garantias individuais. É igualmente constatável no art. 198, § 2º, que dispõe sobre o dever dos Estados compreendidos na área da seca, de aplicar três por cento da sua renda tributária na construção de açudes, pelo regime de cooperação, e noutros serviços necessários à assistência das suas populações, demonstrando a preocupação do Poder Público com as populações atingidas pelo desastre ambiental da seca e que diante do infortúnio passam à condição de miserabilidade. Tal preocupação resgata todo ideal do solidarismo cristão que tem origem principalmente na fonte evangélica de Mateus 25,35-40. No que tange à ordem social, regulada a partir do art.145 a 162 da Constituição de 1946, vê-se a manutenção do crime de usura, justificando a condenação evangélica da cobiça35. Ademais, depois da Constituição de 1937, mereceu maior destaque em 1946 a tutela do direito do trabalhador, que extensivamente foi tutelado nos mais diversos aspectos, conforme se depreende do artigo 157. Determina-se, assim, que na lei constitucional, mais uma vez, a noção do trabalho recebe um tratamento diferenciado, conceituando-o como elemento de dignificação do homem, em sintonia com o pensamento cristão, que o considera como essencial ao homem justo e o eleva a condição divina36. Por último, a ideia de família, oriunda do casamento indissolúvel e a proteção da prole são mantidas, conforme ocorreu nas Constituições de 1934 e 1937, reafirmando a influência da importância da família como base de uma sociedade ocidental cristã, seguindo os moldes evangélicos37. 34. NADER, op.cit, p. 122. 35. Êxodo 20,17: “Não cobiçarás a casa do teu próximo, não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma do teu próximo.” (BÍBLIA, 2009, p. 86). 36. João 6,27: “Esforçai-vos, não pelo alimento que se estraga, e sim pelo alimento que permanece até à vida eterna. É este o alimento que o Filho do Homem vos dará, porque Deus Pai o marcou com seu selo” (BÍBLIA, 2009, p. 1078). 37. Hebreus 13,4: “Venerado seja entre todos o matrimônio e o leito sem mácula; porém, aos que se dão à prostituição, e aos adúlteros, Deus os julgará.” (BÍBLIA, 2009, p. 1295).

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7 CONSTITUIÇÃO DE 1967

Foi a quinta Constituição republicana do Brasil, promulgada em 24 de janeiro de 1967. Preparada pelo governo militar e aprovada pelo Congresso Nacional, que embora elaborada em meio ao período de regime de exceção deixou transparecer muitos elementos da filosofia cristã, alguns inclusive insculpidos de forma inédita na história das constituições. Como primeira análise confirma-se em seu preâmbulo a menção a Deus, costumeira nas Constituições brasileiras, com exceção da Carta de 1937. A exemplo das Constituições de 1934, 1937, 1946, também se preocupa com a probidade do agente público, regulando os crimes de responsabilidade para Deputados e Senadores (art. 36), Presidente da República e Ministros de Estado (art. 84/88), bem como para os Juízes (art. 109), mas uma vez confirmando o pensamento tomista da ideia do Soberano justo e probo. Com efeito, quanto aos direitos e garantias individuais é possível encontrar, conforme a Constituição de 1946, a previsão do princípio da igualdade, legalidade e solidariedade, mantendo-se fiel aos ensinamentos cristãos, lastreados na Justiça e alteridade jurídica, conforme o pensamento de Santo Tomás de Aquino38,

merecendo comentários o destaque mencionado na parte final do § 1º do art. 150, que prevê punição à discriminação racial. No mesmo sentido, também merecedor de comentários, é o art. 8, inciso XII, que mesmo distante do capítulo dos direitos e garantias individuais, ao vincular como atribuição da União Federal a organização da defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente a seca e as inundações, traduz o mesmo espírito de solidariedade e fraternidade com os que sofrem, resultado inequívoco da influência da cultura cristã�.

Não distante, encontra-se a previsão de assistência judiciária aos comprovadamente necessitados disposta no § 32 do art. 150 da Constituição de 1967, que do mesmo modo, ao inaugurar todo o caminho ideológico do acesso à Justiça, prestigia o critério de solidariedade por meio do critério da igualdade. O art. 157 traz em seu caput a expressão justiça social, que, indubitavelmente, não tem outra raiz que não seja o ensinamento de Santo Tomás de Aquino39, dentro do critério de que cabe ao homem interagir na sua realidade para transformá-la no mundo ideal. Ademais, o próprio artigo traz os elementos que justificam a Justiça social, conforme enumerados nos incisos: I- Liberdade de iniciativa; II- Valorização do trabalho como condição da dignidade 38. Idem, nota 23. 39. Idem, nota 23.

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humana; III- Função social da propriedade; IV - Harmonia e solidariedade entre os fatores de produção; V- Desenvolvimento econômico. Em especial destaque merece prestígio a conotação do texto constitucional da valorização do trabalho como elemento essencial da dignidade humana, confirmando todos os comentários feitos no presente trabalho ao analisar a Constituição de 1946, constatando-se, no entanto, um crescente quadro evolutivo quanto ao assunto do trabalho. Por sua vez, a função social da propriedade inaugura a tutela social da propriedade que de certa maneira tem toda sua essência voltada para os aspectos históricos e dogmáticos de ambientação bíblica, no que tange à terra e, consequentemente, à propriedade como concessão divina, conforme percebe-se em Deuteronômio 16,2040. Por fim, a manutenção da família tendo como base o casamento indissolúvel, bem como a proteção a prole encontram-se inalteradas conforme os dispositivos da Constituição de 1946. 8 EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969 A Emenda Constitucional de 1969, embora não seja para muitos juristas uma nova Constituição, no entanto diante das inúmeras alterações que promoveu na Constituição de 1967, sem critérios bem definidos, acabou por produzir um texto novo e praticamente independente da Constituição de 1967, o que ensejou a impressão de uma nova Constituição. Mesmo diante de um texto extremamente autoritário, não se constata maiores alterações da influência do pensamento cristão conforme já se encontrava do texto constitucional de 1967. Contudo, merece destaque o advento da Emenda 9/77, que aboliu a indissolubilidade do casamento, mas que, porém, manteve como norma constitucional a proteção da família. 9 CONSTITUIÇÃO DE 1988 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 difere de todas as demais Constituições anteriores em razão de sua índole humanitária, isto é, voltada à coletividade. Por isso mesmo é classificada como uma Constituição de vanguarda por atentar taxativamente quanto ao princípio da solidariedade social, dos direitos humanos, moldando um Estado democrático tendente a 40. Deuteronômio 16,20: “A justiça, somente a justiça seguirás; para que vivas, e possuas em herança a terra que te dará o SENHOR teu Deus.” (BÍBLIA, 2009, p. 205)

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dignificar a promoção humana em todos os seus aspectos, o que muito favorece a influência do pensamento cristão em seu contexto, considerando que se coadunam em todos os seus princípios. Com efeito, embora diante de uma sociedade plural e de um Estado laico, a Constituição Cidadã de 1988 conseguiu demonstrar maior equivalência com o pensamento e a cultura cristã que as demais Constituições do País, apresentando a conotação de um Deus plural, conforme bem aduz Francisco Adalberto Nóbrega em sua obra “Deus e Constituição”41: Concluindo, pode-se dizer que, não obstante a presença decisiva do catolicismo nas origens e ao longo da história do Brasil, o Senhor da invocação constitucional não pertence só aos católicos, mas antes, é o Pai de todos, sem distinção, sobrepondo-se às dessemelhanças de raça e credo. Aliás, essa concepção, que tem como visto um embasamento jurídico, guarda simetria com o conceito teológico de macroecumenismo. Tal situação pode ser evidenciada, desde o início, no texto constitucional, pela análise do Preâmbulo que, além de tradicionalmente fazer expressa menção a Deus, otimiza toda a sua índole, através da clara preferência, sem qualquer licença, pelos valores soberanos. Desse modo, pauta-se numa sociedade justa, fraterna e igualitária e libertária, sem preconceitos, cuja harmonia social e a paz são as bases da política, tanto interna quanto externa. Portanto, somente sob este aspecto, torna-se possível entendermos a plena sintonia com o pensamento cristão, posto que todo o Preâmbulo traduz a mensagem de Jesus de Nazaré, coadunando-se completamente com a tão sonhada civitas Dei propagada por Santo Agostinho42. Vê-se, assim, que em toda a extensão do texto constitucional, em vários dos seus dispositivos, é possível constatar a presença irradiante da Dignidade da Pessoa Humana que, juntamente com os valores sociais, são elevados ao grau máximo dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Isto estreita ainda mais os laços da lei humana com a lei natural, que tem sua validade, segundo o pensamento tomista, quando a criatura toma consciência do seu elevado conceito de semelhança e imagem de Deus. Em verdade, o conceito principiológico da dignidade da pessoa humana, conferido pela Constituição de 1988, acabou por maximizar dentro da estrutura da lei fundamental a presença inarredável da cultura ocidental cristã, razão pela qual todos os conceitos defendidos na filosofia cristã são amplamente confirmados e encontram-se dentro de uma ampla valoração normativa. 41. NÓBREGA, Francisco Adalberto. Deus e Constituição, 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 20 42. Idem, nota 10.

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O art. 2º da Constituição de 1988 confere como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, dentre outros, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, que, em verdade, seguem todos o posicionamento tomista, baseado na necessidade de que o homem deve conhecer a sua realidade para possa modificá-la. Além do mais, poder-se-ia incluir neste raciocínio o art. 4º, que dispõe sobre o posicionamento político brasileiro frente às relações internacionais voltados para a promoção da cultura da paz e de não intervenção, com total preferência aos direitos humanos e a igualdade entre povos, o que responde à indagação evangélica: quem é o meu próximo?43 Ademais, coroando toda a sintonia da Constituição de 1988 com o fundamento do pensamento cristão, encontra-se o art. 5º. Este eleva sobremaneira os direitos e garantias individuais ao grau de direitos fundamentais que, por sua vez, trazem toda carga dos direitos inerentes à essência do próprio homem, manifestada pela ideia de correlação do Ser Criador com a sua criatura, e que se estrutura na alteridade, segundo o pensamento de Santo Tomás de Aquino44. Assim, encontra-se o princípio da igualdade, com atenção especial conferida a igualdade entre homens e mulheres; o princípio da legalidade, que também pauta a estrutura dos atos da Administração Pública (art. 37); o princípio da solidariedade, que também é projetado pela regulação das relações familiares (art. 226) e da proporcionalidade, como instrumento de regulação na esfera tributária (art.150, inc. II). Por sua vez, a Constituição de 1988, ao conjugar o princípio da solidariedade com o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, prestigia, em seu texto, a ordem social, o direito à saúde, à educação e à assistência social que, ao sofrer regulação taxativa na ordem constitucional, confirmam-se como pontos estratégicos de atuação estatal e sintetizam a mensagem evangélica depreendida do pensamento paulino concernente a construção do mundo ideal, formado por homens novos para um mundo novo. Quanto à família, mesmo diante do rompimento da indissolubilidade do casamento, ocorrido na égide do texto constitucional de 1969, a mesma manteve ainda sob tutela do Estado, configurando-se como um anseio quase que inconsciente de mantê-la como instituição divina de base imprescindível à estrutura estatal. 43. Lucas 10,29 (BÍBLIA, 2009, p. 1042). 44. Idem, nota 23.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante de todo estudo realizado para elaboração do trabalho, uma certeza surgiu: é impossível dissociar a lei positiva, conceituada por Santo Tomás de Aquino com a lei humana, de toda a cultura ocidental cristã; isto porque a influência do pensamento cristão pode ser explicada simplesmente pelo fenômeno histórico, cujo diagnóstico é que a filosofia cristã foi, e continua sendo, a mais bem sucedida filosofia de todo o pensamento humano. A partir de seus conceitos, as atividades do conhecimento humano foram construídas, principalmente no campo de Direito, cuja razão de existir encontra-se muito próxima do limiar da condição humana. Desse modo, ao mesmo tempo, se diviniza, quando permeada por sentimentos como os de solidariedade, fraternidade e igualdade, que nem sempre a razão pode explicar, mas que sempre serão perseguidos pelo Direito para uma melhor sociabilidade humana. Denota-se, portanto, que as Constituições brasileiras, com mais ou menos intensidade, deixam transparecer em seus textos a influência da cultura cristã, determinada pelo pensamento que lhe personificou. Seja na Constituição Imperial de 1824, que em razão do caráter confessional escudado no Poder Divino justificou o poder temporal do Imperador, sejam nas subsequentes Constituições republicanas de 1891, 1934, 1937, 1946, 1967/69 e 1988, que mesmo frente aos progressos e retrocessos, maturaram a adesão da prevalência constitucional do caráter garantidor dos direitos humanos, tal como destacado na Constituição federal de 1988, e que uma vez fundamentalizados no sistema constitucional brasileiro, determinam o ideário cristão da solidariedade e da igualdade no ordenamento jurídico brasileiro, já que são fontes basilares da teoria dos direitos fundamentais. REFERÊNCIAS

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LEÃO XIII. Rerum Novarum. Carta enc. (15 de Maio de 1891). LETTIERI, G. Il senso della storia in Agostino d’Ippona. Roma: Borla, 1988, p. 138-159. MARAFIOTI, Domenico. La storia tra il tempo e l’eternità. Il Contesto del “Civitate Dei” di Sant’Agostino. In: CASALEGNO, Alberto. Tempo ed eternità in dialogo con ugo vani sj. Milano: San Paolo, 2002, p. 217-234. MONCADA, L. Cabral de. Filosofia do Direito e do Estado. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. NADER, Paulo. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2001. NÓBREGA, Francisco Adalberto. Deus e Constituição, 3ª ed. Petrópolis: Vozes, 1999. STÖRIG, Hans Joachim. História geral da filosofia. Petrópolis: Vozes, 2008. TORREL, Jean-Pierre. Iniciação a Santo Tomás de Aquino, sua pessoa e obra. São Paulo: Edições Loyola, 1999.

CAPÍTULO XII

o DIREIto Do tRaBalHo NaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS

Winnicius Pereira de Góes Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná. Especialista em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Arthur Thomas. Especialista em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná. Especialista em Direitos Humanos e Democracia pelo Ius Gentium Conimbrigae da Faculdade de Direito de Coimbra. Bolsista da Fundação Araucária. Advogado.

INTRODUÇÃO

Com exceção do período compreendido entre a Constituição Imperial e a primeira Constituição Republicana, houve tentativas de regular as relações de trabalho e emprego por meio de legislação ordinária ou através da constitucionalização de direitos trabalhistas. As influências do capitalismo liberal e das Revoluções Industriais e Tecnológicas que impactaram os modos de gerenciar, organizar e dividir o trabalho refletiram sobre as relações laborais, marcadas pela exploração predatória da força de trabalho humano em condições desumanas e degradantes. A própria lógica do capitalismo liberal (predatório) alicerçado na exploração do trabalho humano levou ao surgimento da consciência coletiva dos trabalhadores e aos movimentos sociais por melhores condições de trabalho, que tiveram como resultado o surgimento dos primeiros direitos sociais em leis, constituições e tratados internacionais.

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Sem dúvida, no segmento infraconstitucional a medida Estatallegislativa mais importante está na edição da Consolidação das Leis do Trabalho, promulgada em 1943 e ainda vigente. No plano Constitucional, em que pese o Brasil tenha presenciado as ótimas tentativas de constitucionalização do Direito do Trabalho nas Constituições de 1934 e 1946, somente com a edição e promulgação da Constituição Federal de 1988, já em tempos de globalização neoliberal, é que, de fato, consolidou no país a cultura de direitos sociotrabalhistas, adjetivados fundamentais, a serviço da valorização do trabalho humano e da proteção do primado do trabalho, com vistas à construção de uma sociedade justa, livre e solidária, promovedora do bemestar e justiça social, por conseguinte, convergente à máxima valorativa da dignidade da pessoa humana. Este texto analisou as constituições brasileiras e sua relação com o Direito do Trabalho. Para isto, trilhou a história constitucional brasileira no que diz respeito aos direitos sociotrabalhistas, desde a Constituição Imperial até a Constituição Democrática de veste humanística consagrada pelo legislador constituinte originário em 1988, estabelecedora do patamar mínimo civilizatório voltado à inclusão social do trabalhador no contexto da globalização neoliberalcapitalista. 1 O PROCESSO DE CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO DO TRABALHO NO BRASIL: DO IMPÉRIO AO REGIME MILITAR

A Revolução Industrial, que impactou o mundo do trabalho e consolidou definitivamente o sistema político e econômico liberal-capitalista de produção a partir do Século XVIII, alterou profundamente o modo de organização e divisão do trabalho, sobretudo, no espaço territorial europeu e norte-americano. Conduzida pelas inovações tecnológicas, logo de início, a lógica do capitalismo liberal, alicerçado na compra e venda da força de trabalho, impôs como principal incidência da Revolução Industrial sobre as relações laborais e diretamente relacionada à exclusão social do trabalhador, a expropriação do saber metodológico acerca do ofício, mediante a transferência do controle sobre os métodos de produção. Antes centralizados nos trabalhadores, o conhecimento metodológico do processo produtivo passa para o domínio exclusivo do industrial-capitalista, novo (e único) detentor dos meios e técnicas (tecnologia) produtivas. Neste passo, o industrial capitalista insere no ambiente da fábrica novos modelos de organização e divisão do trabalho, condicionados à separação do

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trabalho intelectual do manual. O trabalho torna-se cada vez mais fragmentado em funções específicas, de atividades repetitivas e limitado, associado à imposição de condições de trabalho degradantes e desvalorizadoras do trabalho humano. Contudo, a própria lógica capitalista de exploração do trabalho humano, voltada para a acumulação de riquezas, contribuiu para a formação da consciência coletiva dos trabalhadores. Nos primeiros nuances do sindicalismo, os trabalhadores associados promoveram embates sócio-trabalhistas em face do capitalismo-liberal predatório, com vistas à obtenção de melhores condições de trabalho. Como resultado, surgem as primeiras disposições legais de Direito do Trabalho, muitas delas hoje constitucionalizadas. 1.1 A CONSTITUIÇÃO IMPERIAL DE 1824

No Brasil colonial do Século XVIII, o cenário político, econômico e social era consideravelmente diverso dos países nos quais a produção foi impulsionada pela Revolução Industrial (e tecnológica) de índole capitalista-liberal. A estrutura social e econômica brasileira apoiava-se no escravismo e na agricultura. Até então, não havia se delineado a composição social e econômica em torno de indústrias (ou pólos industriais) e novas técnicas produtivas que deram origem a classe operária vendedora de sua força de trabalho na Europa e nos Estados Unidos. Neste contexto, o modelo de produção escravista brasileiro ao mesmo tempo em que impediu o desenvolvimento industrial e o surgimento de uma nova classe de trabalhadores, diga-se de passagem, assalariados, acomodou a sociedade brasileira sobre a exploração do trabalho escravo, desprovido de direitos e dignidade. Este modelo social contribuiu para a inexistência de formulações jurídicas e políticas em torno de direitos sociotrabalhistas (infraconstitucionais ou constitucionalizados). Em outras palavras, os cenários social, econômico e político colonial brasileiro ainda não haviam sido contaminados pelo sistema capitalista-liberal de produção, organização e divisão do trabalho, ao ponto de enraizar os ideais informadores da Revolução Industrial, conformadoras das bases predatórias de exploração da força de trabalho que, mais tarde, dariam substância à formação da consciência coletiva da classe operária ao encontro dos direitos sociotrabalhistas. A primeira Constituição “genuinamente” brasileira surgiu dois anos após a declaração da independência brasileira em 07 de setembro de 1822, outorgada, precisamente, no ano de 1824.

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De modo geral, embora a Constituição de 1824, marcadamente influenciada pela ideologia liberal, tenha estabelecido rol de direitos individuais sob os auspícios da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, como por exemplo, o direito à legalidade, propriedade, irretroatividade da lei, igualdade, liberdade de pensamento, inviolabilidade de domicílio e correspondência1, não houve o estabelecimento de direitos sociotrabalhistas, admitindo-se, inclusive a exploração do trabalho escravo. Diante da não regulação ou oferecimento de direitos sociais aos trabalhadores livres, a Constituição Imperial se limitou a declarar o trabalho livre (artigo 179, inciso XXIV) e aboliu as corporações de ofício, seus juízes, escrivães e mestres (artigo 179, inciso XXV). Por este motivo, conclui-se que não havia qualquer intenção do Estado brasileiro em intervir para limitar as formas de contratação ou fixar direitos sociotrabalhistas mínimos. Estabelece-se o modelo de Estado Liberal sem reciprocidade social. Porém, a despeito das influências liberais que ascenderam sobre os subscritores da Constituição Imperial, foi durante a vigência desta Constituição que surgiram as primeiras leis estritamente trabalhistas, dentre elas, merecem destaque a Lei 396/1846, que tratava da contratação de empregados estrangeiros, permitindo-se somente a contratação de dois empregados estrangeiros por empresa. Destaca-se ainda, segundo Mozart Victor Russomano, a Lei Áurea, que ao abolir o regime de escravidão em 13 de maio de 1888 “foi, sem dúvida, muito embora quase ninguém tenha dito, a lei trabalhista mais importante até hoje promulgada no Brasil” 2. Certamente a Lei Áurea colaborou para a formação de uma nova massa de trabalhadores, agora livres para vender sua força de trabalho aos liberais-capitalistas, detentores dos meios de produção em seus primeiros passos em direção à industrialização do país. 1.2 A CONSTITUIÇÃO DE 1891

Em 24 de fevereiro de 1891, seguidamente à proclamação da República, foi promulgada a primeira Constituição Republicana Brasileira, fortemente influenciada pela constituição norte-americana e inspirada na ideologia liberal. Nesse sentido, os traços da Constituição Republicana de 1891 em muito se aproximaram da Constituição Imperial, sobretudo porque o texto conduzido 1. BREGA FILHO, Vladimir. Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Conteúdo Jurídico das Expressões. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 32. 2. RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. Curitiba: Juruá, 2005. p. 30.

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por Rui Barbosa se limitou a prever seção específica para uma declaração serial de direitos individuais, sendo, inclusive, a primeira Constituição brasileira a prever o habeas corpus3. No que diz respeito às questões trabalhistas, a Constituição de 1891 apenas declarou direitos vagamente “e de certo modo, refletindo o conceito que se dava à Constituição e o espírito liberal que modelou os traços fisionômicos mais vivos da nascente República Brasileira”4. Em vista disso, Vladimir Brega Filho5 afirma que constituição ora analisada “não pode ser considerada uma Constituição de vanguarda”, haja vista que “Na época, já surgia uma classe trabalhadora que foi esquecida pelos republicanos, não sendo reconhecidos direitos sociais.” Em outras palavras, Arnaldo Sussekind, apoiado em Afonso Arinos de Mello Franco, explica que influenciados pela Constituição norte-americana e pela literatura jurídica ideologicamente liberal, acreditava-se que “a legislação trabalhista infringia o princípio da liberdade contratual e que, além disso, ainda que fosse permitida, seria da competência dos Estados.”6 Assim, a Constituição de 1891, de forma extremamente simplificada, limitou-se a enunciar, em seu artigo 72, § 24, que “é garantido o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial”, evidenciando-se, deste modo, sua índole liberal e a afirmação do Estado Liberal brasileiro sem reciprocidade social. Neste período não houve preocupação com questões sociais dos trabalhadores e, consequentemente o Direito do Trabalho não recebeu a atenção devida pelo legislador constituinte da época. No entanto, no plano infraconstitucional ocorreram inúmeras tentativas para assegurar direitos aos trabalhadores, exemplificados nos projetos legislativos abaixo anotados: 1) de Leovigildo Figueiras (1893), propondo, no Brasil, o homestead americano pelo qual a casa do trabalhador rural ficaria excluída da penhora; 2) de Costa Machado (1893), sobre contrato de trabalho, cópia da legislação monarquista e que não passou pela Comissão de Constituição e Justiça dos Deputados; 3) de Moraes e Barros (1895) sobre contrato de trabalho agrícola, com ligeiras modificações feitas à Lei n. 2827, de 15 de março de 1879; 4) de Chagas Lobato (1895), também sobre homestead; 5) de Moraes e Barros (1899), sobre prestação de serviços agrícolas; 6) de Lacerda Franco (1900), sobre crédito rural e 3. FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2012. p. 76. 4. RUSSOMANO, Mozart Victor. Op. cit., p. 30. 5. BREGA FILHO, Vladimir. Op. cit., p. 33. 6. SUSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 4 ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2010. p. 30 apud FRANCO, Afonso Arinos de Mello. Curso de Direito Constitucional Brasileiro. vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 1960.p.165.

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agrícola e sociedades cooperativas; 7) de Bernardino de Campos (1901), instituindo privilégio para o pagamento de dívidas, do qual resultou o Decreto n. 1150 sobre salários do trabalhador rural; 8) de Francisco Malta (1903), sobre homestead; 9) de Medeiros e Albuquerque (1904), sobre acidentes de trabalho; 10) de Gracho Cardoso e Wenceslau Escobar (1908), também sobre a mesma matéria; 11) de Nicanor do Nascimento (1911), sobre horário mínimo de trabalho e funcionamento dos estabelecimentos comerciais, em que previa casos de acidente do trabalho; 12) de Figueiredo Rocha e Rogério de Miranda (1912), sobre trabalho operário em geral, com limitação da jornada diária de trabalho em 8 horas e pagamento de diárias de dois terços para o operário que ficasse inutilizado no trabalho; 13) de Adolpho Gordo (1915), sobre acidentes do trabalho; 14) de Maurício de Lacerda (1917), propondo a criação do Departamento Nacional do Trabalho, a limitação da jornada diária de trabalho a 8 horas, a criação de conciliação e arbitragem obrigatórias, regulando o trabalho das mulheres, criando creches, fixando a idade mínima de 14 anos para a admissão de menores empregados, fixando normas sobre contrato de aprendizagem, além de outras proposta7.

Somente a partir dos crescentes movimentos sociais organizados nos anos de 1920, que resultaram na reforma constitucional brasileira de 1926, por meio da edição de Emenda Constitucional, firmaram-se as primeiras disposições diretas sobre Direito do Trabalho (artigo 54, n. 28). Além disso, atribui-se ao Congresso Nacional a competência para legislar sobre questões trabalhistas. De resto a reforma constitucional não impulsionou a construção de legislação trabalhista de impacto no ambiente social, com medidas legislativas direcionadas à inclusão social do trabalhador, mas, ao definir a competência legislativa do Congresso Nacional sobre a matéria, “tornou-se possível a uniformização das normas brasileiras sobre trabalho, bem como o seu mais rápido processo de desenvolvimento e progressiva melhora técnica”8. Do ponto de vista político, a reforma constitucional de 1926 concentrou ainda mais o poder nas mãos do Executivo, causando a frustração das expectativas quanto a uma reforma política liberal e democrática, o que levou, anos mais tarde, à Revolução de 1930 e a ascensão de Getúlio Vargas ao poder, bem como ao Movimento Constitucionalista de 1932, fatos históricos que revelam a alma da Constituição de 19349. 1.3 A CONSTITUIÇÃO DE 1934

Do mesmo modo que as Constituições brasileiras anteriores, o legislador constituinte, durante a elaboração das disposições da Constituição de 1934, 7. NASCIMENTO, Curso de Direito do Trabalho. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 62. 8. RUSSOMANO, Mozart Victor. Op. cit., p. 31. 9. FACHIN, Zulmar. Op. cit., p. 78-79.

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abraçou a ideologia liberal (liberal-individualista), ao firmar, repetidamente, diversos direitos individuais contidos nas Constituições precedentes. Todavia, inovou o legislador constituinte originário, ao incluir, pela primeira vez na história política-jurídica brasileira, os direitos sociais, por influência das Constituições do México, de 1917, e de Weimar, de 1919 (socialdemocrata). Nesta quadra da história brasileira, contemporânea da Crise de 1929, símbolo das crises do capitalismo e do modelo de Estado Liberal que cedera lugar ao Estado de Bem-Estar Social (principalmente na Europa e Estados Unidos da América), intervencionista no domínio econômico e garantidor de direitos sociais positivamente assegurados pelo Estado, surge a Constituição de 1934, que em seu Título “Da ordem econômica e social” (artigo 115 a 143) preconizou a posição interventiva estatal no domínio econômico, com reflexos no ambiente social. Seguiu-se, portanto, no Brasil, a linha política e constitucional traçada na Europa e Estados Unidos (por exemplo, políticas intervencionistas como o New Deal, capitaneada pelo Presidente norte-americano Franklin Delano Roosevelt), voltada para o fortalecimento do Estado de Bem-Estar Social como resposta aos movimentos sociais, inclusive de trabalhadores, iniciados ainda no início do Século XX, motivados pela busca de direitos sociais em geral e, igualmente, de direitos sociotrabalhistas, como meios de assegurar melhores condições de trabalho e incluir socialmente o trabalhador. A questão social toma conta da pauta política e jurídica estatal. Para a regulação da seara trabalhista, o legislador constituinte brasileiro elencou uma série de direitos nos artigos 120 e 121 da Constituição de 1934. Teve-se o objetivo de melhorar as condições de trabalho, destacando-se dentre eles a proibição de diferença de salário para um mesmo trabalho, por motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil; o salário mínimo, capaz de satisfazer às necessidades normais do trabalhador e consequentemente às necessidades de sua família; o trabalho diário não excedente a oito horas; a proibição de trabalho a menores de 14 anos e do trabalho noturno a menores de 16 e em indústrias insalubres, a menores de 18 anos e a mulheres; o repouso de preferência aos domingos; férias anuais remuneradas; a indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa; assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante sem prejuízo do salário e do emprego; a instituição de previdência, mediante contribuição igual da União, do empregador e do empregado, a favor da velhice, da invalidez, da maternidade e nos casos de acidentes de trabalho ou de morte; a regulamentação do exercício de todas as profissões; o reconhecimento das convenções coletivas de trabalho, dos sindicatos e associações profissionais;

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regulação especial para o trabalho agrícola; e a organização de colônias agrícolas para serem habitadas por trabalhadores desempregados e por pessoas que vivam em regiões economicamente empobrecidas. Com efeito, a Constituição de 1934 primou pela instituição da Justiça do Trabalho (artigo 122), com seus Tribunais do Trabalho e Comissões de Conciliação, como parte da Administração Federal e vinculada ao Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio10. Porém, as inserções ao texto constitucional de 1934 de direitos sociais trabalhistas não causaram impacto nas relações laborais, muito menos no plano social, tendo-se em vista que foram “promessas” que permaneceram vivas somente no discurso valorizador do trabalho e, por tudo isso, inefetivas quanto à sua aplicação, sobretudo pelo pouco tempo em que vigorou a Constituição11, substituída pela Constituição outorgada em 1937 pelo Presidente Getúlio Vargas. 1.4 A CONSTITUIÇÃO DE 1937

A Constituição de 1937, mais conhecida como “a Polaca”, instituiu o Estado Novo de Getúlio Vargas e adotou claramente critérios antidemocráticos, de caráter nazista e fascista, mediante a consolidação da supremacia do Poder Executivo e silenciamento do Poder Legislativo, que teve suas funções centralizadas na figura do Presidente da República.12 O regime totalitário conduzido por Getúlio Vargas, ao menos formalmente, manteve em grande parte o rol de direitos individuais das Constituições precedentes, contudo, na prática, estes direitos foram reiteradamente violados com o objetivo precípuo de manter o quadro político vigente à época. Ainda em tempos de construção política e ideológica em torno do Estado de Bem-estar social, como reflexo das influências nazifascistas que “punham sua tônica sobre as leis de proteção ao trabalho”13, no que tange aos direitos sociais, foram mantidas a intervenção estatal na economia e a plena regulação trabalhista pela via constitucional (garantia de direitos sociotrabalhistas – artigo 137 da Constituição, e a instituição da Justiça do Trabalho – artigo 139). Somase a isto o estímulo a legislação protetiva do trabalhador em face da exploração socialmente excludente e predatória capitalista. Entretanto, inobstante tenha-se conduzido a atuação estatal para a estruturação do Estado de reciprocidade social, também sob a batuta ideológica 10. 11. 12. 13.

SUSSEKIND, Arnaldo. Op. cit., p. 37. BREGA FILHO, Vladimir. Op. cit., p. 35 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 23ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 83. RUSSOMANO, Mozart Victor. Op. cit., p. 32.

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nazifascista, os direitos sociais foram preservados com algumas restrições. Como exemplos destas restrições, expõe-se o fato de que o artigo 138 da Constituição reconheceu a livre associação profissional ou sindical e, ao mesmo tempo, condicionou a regularidade sindical à apreciação estatal. O Estado intervinha diretamente nas ações de sindicalistas e, por meio de um Conselho Nacional de Economia (“composto de representantes de vários ramos da produção nacional, designados, dentre pessoas qualificadas pela sua competência especial, pelas associações profissionais ou sindicais reconhecidas em lei, garantida a igualdade de representação entre empregados e empregadores”14) estabelecia as categorias de sindicatos. Esta condição jurídica e política ocasionou a caracterização dos sindicatos de trabalhadores perante a sociedade não como entidades de direito privado, autônomas para organizar e desenvolver suas atividades em favor dos trabalhadores, mas como entidades controladas e organizadas diretamente pelo Estado, atuantes a seu serviço. Além disso, sob a égide do Estado Novo foram proibidos os movimentos coletivos de trabalhadores (conflitos coletivos) por meio da greve e do lockout, considerados “recurso anti-social (sic) e nocivo à economia e a continuidade da elaboração das leis trabalhistas de modo amplo” 15. Por fim, foi neste período de totalitarismo alicerçado sobre diretrizes constitucionais a serviço do Estado Novo que foi editada a Consolidação das Leis do Trabalho, em 1º de maio de 1943, promovedora de diversos direitos sociotrabalhistas e até hoje vigente. 1.5 A CONSTITUIÇÃO DE 1946

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrocada dos regimes nazista e fascista que, como visto, ascenderam sobre o Estado Novo instituído e comandado por Getúlio Vargas, viu-se no Brasil a queda do regime totalitarista e a redemocratização do país, representada pela promulgação de uma nova Carta Constitucional no ano de 1946. A redemocratização brasileira tomou como base a Constituição de 1934, tanto no que concerne aos direitos individuais (aboliu a pena de morte, de banimento, de confisco e perpétua, previu o habeas corpus e o mandado de segurança) quanto às disposições elaboradas para satisfazer as exigências do campo social. 14. Ibidem, p. 69 15. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Iniciação ao Direito do Trabalho. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 55.

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Inobstante isso, conduzidos pelos ideais balizadores do modelo de Estado de Bem-estar Social, no Título V, Da Ordem Econômica e Social, o legislador constituinte assegurou o princípio da função social da propriedade (artigo 147), condicionada à promoção do bem-estar social e diretamente associada à justa promoção da “distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos”. Igualmente, pela primeira vez uma Constituição brasileira tratou explicitamente da valorização do trabalho humano, ao recomendar a conciliação da liberdade de iniciativa privada (princípio de caráter liberal-capitalista) com a valorização do trabalho humano (princípio de caráter socialista)16. Deste modo, característica presente nos Estados que adotou o modelo de Estado de Bem-estar social, o primado do trabalho ganhou importância política e jurídica junto à sociedade brasileira. O direito de greve foi reestabelecido, assim como se reconheceu o repouso remunerado em domingos e feriados, a estabilidade ao trabalhador rural. Por outro lado, o legislador constituinte se mostrou omisso quanto ao direito coletivo do trabalho, ao não tratar deste tema na Constituição de 1946. Outro fato relevante contido na Constituição de 1946 está na integração da Justiça do Trabalho ao Poder Judiciário (artigo 94), que nas Constituições anteriores estava ligada a órgãos públicos de natureza administrativa.17 Foi justamente no período compreendido entre a Constituição de 1946 e a sua substituição pela Constituição de 1967, que o Brasil, semelhantemente aos países que adotaram o modelo de Estado de Bem-estar social, intervencionista no campo econômico e no mundo do trabalho, vivenciou “um circulo virtuoso, portanto, de crescimento e distribuição de renda à base do emprego e da correspondente retribuição material e cultural”18, por vezes assegurada pela via constitucional. Em 1964 o Brasil, mais uma vez teve o regime democrático substituído por um regime autoritário, consumado com o Golpe Militar que depôs o Presidente João Goulart. Três anos após a substituição do regime democrático pelo de exceção militarizado, veio a lume a Constituição de 1967. 1.6 A CONSTITUIÇÃO DE 1967

A Constituição em questão marcou o período negro na história políticosocial brasileira. Trata-se de Constituição proveniente da instauração de regime 16. FACHIN, Zulmar. Op. cit., p. 91. 17. SUSSEKIND, Arnaldo. Op. cit., p. 37. 18. DELGADO, Maurício Godinho. Capitalismo, trabalho e emprego. Entre o Paradigma da Destruição e os Caminhos de Reconstrução. São Paulo: LTr, 2008. p. 79.

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militar ditatorial caracterizada por disposições que, embora previssem direitos individuais, não tiveram efetividade, principalmente diante da edição dos seguidos Atos Institucionais (o principal deles foi o Ato Institucional de nº 5) que suspenderam o exercício destes direitos. Com relação aos direitos sociais relacionados aos trabalhadores, estes foram mantidos. No título “A Ordem Econômica” (artigo 157), voltada para a realização da justiça social, fundamentou-se, mais uma vez, a livre iniciativa associada à valorização do trabalho humano como condição para a plena efetividade da dignidade humana e requisito para a configuração da verdadeira função social da propriedade. O direito de greve foi mantido por meio da conjugação dos artigos 158, inciso XXI e 157, § 7º. Também se fixou o direito ao salário mínimo; a proibição de diferença de salário por motivo de sexo cor ou estado civil; a participação do trabalhador nos lucros da empresa; a duração do trabalho em oito horas diárias; a idade mínima para o trabalho em 12 anos. A Constituição de 1967 também inovou a ordem justrabalhista ao instituir, pela via constitucional, o seguro-desemprego (artigo 158, inciso XVI), posto em prática apenas em 1986, e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (artigo 158, inciso XIII), criado anteriormente por lei ordinária no ano de 1966. Durante a vigência da Carta Constitucional de 1967, também foi o período em que se viu a crise do Estado de Bem-estar Social acentuada pela crise energética do petróleo de 1973 e pelo o surgimento de novas tecnologias (informática e microeletrônica), que trouxeram novamente ao cenário político e econômico os ideais liberais, traduzidos nos interesses norte-americanos e ingleses. Trata-se de período histórico personificado nas figuras políticas de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, que com suas políticas neoliberais durante a década de 1980, impulsionaram a adoção de medidas desregulamentadoras e flexíveis no tocante à regulação das relações de trabalho e emprego, como meio de possibilitar a competição em um mercado globalizado e livre de barreiras econômicas. Foi neste paradigma, de cariz globalizante (e neoliberal), que se consolidou a redemocratização brasileira com a promulgação da Constituição Federal de 1988, estruturante do Estado Constitucional Democrático de Direito brasileiro sobre bases humanísticas consubstanciadas nos direitos fundamentais individuais e sociais.

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2 O DESAFIO À CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 EM UM MUNDO GLOBALIZADO

A globalização, processo característico da nova fase do capitalismo designado neoliberal, desde o seu início, a partir da crise energética de 1973, esteve associado ao progresso tecnológico e científico dos meios de transmissão de dados, informações e de comunicação (instantânea), que tiveram como efeito a profunda transformação das estruturas políticas, sociais, culturais e econômicas, com reflexos sobre o mundo do trabalho. Neste novo paradigma mercadológico, no qual prevalece a ideologia capitalista neoliberal, privilegia-se o capital especulativo-financeiro, apoiado no consumismo. Tem-se, portanto, a modificação da fonte primária de acumulação, por meio do abandono da matriz industrial alicerçada no trabalho. O trabalho perde importância19. A intensificação das relações econômicas internacionais balizadas na ideologia neoliberal, caracterizadas pela alta competitividade, voltadas à satisfação do mercado consumidor e aliada ao capital financeiro-especulativo, levou à formação de blocos econômicos, com grande circulação de pessoas (trabalhadores, empresários, técnicos, cientistas etc), bens, mercadorias, transportes e investimentos no mercado financeiro (títulos, câmbios, fundos, ações). Com efeito, este novo paradigma globalizante construído a partir da mudança radical na matriz tecnológica e logística pela informática e microeletrônica digital, possibilitou a explosão do mercado especulativo e consumista. Este novo paradigma mercadológico, apoiou-se na rapidez da formalização das transações monetárias pela via eletrônica, que por ser cada vez mais intenso acelerou “as formas mais flexíveis de produção industrial e de meios de transporte, novas redes de interconexões entre finanças e informatização eletrônica, nova organização mundial do comércio”20 e a reforma da gerência, organização e divisão do trabalho. As novas características mercadológicas obviamente colaboraram para a relativização da valorização do trabalho humano. Por conseguinte, a rigidez contratual alicerçada em direitos disponibilizados aos trabalhadores nas Constituições precedentes a 1988, antes considerada necessária à valorização do trabalho humano e à segurança do trabalhador, gradualmente, na visão neoliberal, torna-se descartável, 19. ROMITA, Arion Sayão. Globalização da Economia e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997. p. 28. 20. BRIGADÃO, Clóvis; RODRIGUES, Gilberto M. A. Globalização a olho nu. O mundo conectado. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004. p. 18.

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passível de flexibilização ou desregulamentação (supressão de direitos), para atender a lógica mercadológica do capitalismo neoliberal: competição e consumo. A competição entre os Estados faz o investimento especulativo ir de um lugar a outro em busca de melhores benefícios. Assim, enquanto o poder político permanece local o capital é personagem global. Nessa esteira, a nova matriz tecnológica funciona como meio facilitador do fluxo da moeda (eletrônica), de um lugar para outro, de modo que se um país oferece uma taxa de juros superior ao de outro país para atrair capitais de investidores, certamente, outro país, também oferecerá taxas de juros ainda mais compensadoras para atrair para si tais investimentos, transferidos instantaneamente. “Essas idas e vindas de transferências, quando envolvem muito dinheiro ou muitos investimentos ao mesmo tempo, são um complicador para a estabilidade de governos”21, geram insegurança política, econômica, social, precarização das relações laborais e a exclusão social do trabalhador. A solução apresentada pelo capitalista neoliberal sempre está resumida na desregulamentação e na flexibilização contratual trabalhista, vista como medida de fomento a competição no mercado globalizado. Em uma tentativa de minar o primado do trabalho a ideologia neoliberal agride a matriz cultural do trabalho e do emprego, o que acarreta, na prática, ao Direito do Trabalho e aos direitos fundamentais sociotrabalhistas, a mera função discursiva. Posta assim a questão, a desconstrução do primado do trabalho no Estado neoliberal, centraliza-se em torno da desconsideração do sentido tradicional de emprego regular, visto como fórmula anacrônica dentro do sistema capitalista neoliberal globalizado. A ordem dada aos Estados que adotam a ideologia neoliberal é flexibilizar e desregulamentar, com o fim único de evitar a rigidez mercadológica. O ideal para o Estado inserido neste paradigma é “tornar-se flexível, quer dizer, mais dócil e maleável, fácil de moldar, cortar e enrolar, sem oferecer resistência ao que quer que se faça com ele”22, para competir, produzir e consumir. Segundo Zygmunt Bauman, o verdadeiro significado das expressões flexibilidade e desregulamentação para o capital neoliberal globalizado é revelado pela vontade do capitalismo neoliberal de usufruir da “liberdade de ir aonde os pastos são verdes, deixando o lixo espalhado em volta do último acampamento para os moradores locais limparem”, o que também significa, acima de tudo, “desprezar todas as ‘considerações que não fazem sentido 21. Ibidem, p. 74. 22. BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. p. 112.

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economicamente’”23. Diante destas assertivas, pode-se afirmar que em no contexto neoliberal globalizado, o trabalho e seu primado, consagrados na Constituição, constituem-se em considerações a serem desprezadas, para dar lugar ao capital financeiro-especulativo, consumista e competitivo, e o lixo espalhado materializa-se no desemprego, na aplicação de fórmulas contratuais precárias e excludentes, na insegurança política, social e econômica. Por sua vez, a redemocratização brasileira oriunda do enfraquecimento do regime de exceção militar, cujo ápice se deu com a promulgação da Constituição Federal de 1988, consolidou-se neste ambiente político, econômico e social (planetário), pendente de observações e impactado pelas ideias neoliberais defensoras das modificações no mundo do trabalho relacionadas à desregulamentação e flexibilização. Em outras palavras, a Constituição de 1988 nasce em ambiente político-econômico inóspito, direcionado, sobretudo, para a estruturação de um mercado produtor altamente competitivo e predatório, no qual, a proteção do valor trabalho permanece em segundo plano. Seguindo-se a análise, nota-se que a Constituição Federal de 1988 rompeu definitivamente com o paradigma constitucional e político anterior. Em seu texto observa-se a mescla das ideologias liberais e sociais, no sentido de valorizar o trabalho humano, por intermédio do estabelecimento de uma série de direitos fundamentais, individuais e sociais, todos de cunho humanístico. São direitos constitucionalizados representantes da influência das declarações internacionais de direitos humanos firmados após o encerramento da Segunda Guerra Mundial. Não foi por acaso que juntamente com a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III), cerne do ordenamento jurídico brasileiro, o legislador constituinte originário colocou como um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito brasileiro, os valores sociais do trabalho (artigo 1°, inciso IV). Também não foi por mero capricho que o legislador constituinte originário fundou a ordem econômica e social, respectivamente, sobre a valorização do trabalho humano e o primado do trabalho, legítimos meios de promoção da existência digna, do bem-estar e da justiça social. Nessa esteira, a força moral e normativa da Constituição de vestes humanísticas consagrada em 1988, representante da vontade de Constituição do povo brasileiro, coloca a serviço do trabalhador e da sociedade, direitos sociais especificamente direcionados às relações de trabalho e emprego em seu Título II. Com efeito, a partir do artigo 6º tem-se uma série de direitos fundamentais sociais que calharam por estabelecer, nas palavras do Ministro 23. Ibidem, p. 112.

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do Tribunal Superior do Trabalho, Maurício Godinho Delgado24, o patamar civilizatório constitucional mínimo para a proteção do trabalhador, urbano e rural, independente de raça, cor, sexo, idade e estado civil. Ou seja, a Constituição Federal de 1988 estabelece extenso rol de direito fundamentais sociotrabalhistas integrantes do patamar mínimo civilizatório, com vistas à diminuição das sequelas provocadas por medidas políticas e econômicas neoliberais-capitalistas tomadas em meio ao fenômeno da globalização, que ocasionaram a desvalorização do trabalho humano (tentativas de desconstruir o primado do valor trabalho e emprego), sob a alegação de que “a permanência da noção de centralidade do trabalho e emprego inviabilizaria, drasticamente, a aplicação do receituário do mercado econômico”25. Certamente, a Constituição Federal de 1988 apresenta um belo discurso social-trabalhista, voltado à inclusão social do trabalhador e à construção do paradigma social alicerçado no trabalho digno enquanto valor e direito fundamental inafastável do legítimo Estado Democrático de Direito. No que tange às relações laborais, o discurso constitucional alicerça-se, sobretudo, nos direitos fundamentais sociotrabalhistas, caracterizados pela sua indisponibilidade frente às exigências do capital, por serem direitos integrantes de grupo de direitos e valores constitucionais inseridos no núcleo pétreo, rígido e absoluto da Constituição. Nunca houve na história brasileira uma Constituição apresentou discurso tão voltado à constitucionalização de direitos trabalhistas, tratados como direitos fundamentais e instrumentos de afirmação do Estado com reciprocidade social, o que envolve a inclusão social do trabalhador nos braços da valorização do trabalho e emprego, para atingir seu objetivo de construir uma sociedade livre, justa e solidária (artigo 3°, inciso I da Constituição Federal). O desafio posto pela globalização (neoliberal-capitalista) ante a Constituição é justamente a superação do discurso em torno dos direitos de sociotrabalhistas. A despeito de ser função do Estado “proteger e preservar o valor trabalho digno por meio da regulamentação jurídica”26 constitucional ou infraconstitucional em um paradigma econômico neoliberal propício à prevalência do capital especulativo-financeiro sobre o primado do trabalho, vive-se um tempo em que muito se fala em direitos fundamentais, qualificados por um protagonismo nunca visto antes em nossa história. 24. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5 ed. São Paulo: LTr, 2006. p. 117. 25. Idem, 2008, p. 31. 26. DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. p.209.

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Em como consequência do rápido desenvolvimento científico, tecnológico e econômico, desenvolvem-se direitos fundamentais individuais e sociais (relacionados ao trabalho e emprego) a toque de caixa. Porém, este desenvolvimento não se reflete nas relações sociais e laborais em mundo atualmente globalizado (achatado, de distâncias encurtadas). De certo modo, há uma ruptura entre o discurso humanista e de direitos fundamentais e a praxe política executiva e legislativa, que colaboram para a manutenção e fortalecimento do Estado excludente no tocante as diferenças sociais, econômicas, políticas e culturais originadas por suas escolhas, sejam elas de substância neoliberal ou livre desta influência. Ao final, geralmente observa-se que as escolhas resultam na inefetividade contingente ou estrutural dos direitos sociais sociotrabalhistas, solucionáveis, no primeiro caso pela atuação jurisdicional e, no segundo pela atuação legislativa27. Sob o viés constitucional, a desregulamentação e a flexibilização contratual trabalhista difundida pelos ideólogos do neoliberalismo não são as melhores soluções. Ora, se o discurso constitucional atual valoriza o trabalho humano e aponta uma série de direitos em favor da inclusão social do trabalhador e, por consequência, de sua família, obviamente, também serve de instrumento à autodeterminação individual e coletiva do ser humano dotado de dignidade. A rigidez da legislação trabalhista constitucionalizada e consolidada, a segurança do primado do valor trabalho, caso sejam flexibilizadas ou desregulamentadas, tornar-se-ão irremediavelmente fadadas ao discurso, qualificáveis como projeto constitucional inacabado e carente de efetividade. Noutras palavras, a redução da rigidez trabalhista por meio de medidas flexibilizadoras ou desregulamentadoras criam “mecanismos de desestabilização do valor trabalho digno”28 em favor da predominância do capital especulativofinanceiro neoliberal, combatente do primado do trabalho. Com toda certeza estas medidas colocam em risco o patamar mínimo de direitos constitucionalizados civilizatórios construídos em defesa da inclusão social do trabalhador. Destarte, em que pese estejam pacificadas as discussões acerca dos direitos fundamentais sociotrabalhistas, hoje, a Constituição Federal de 1988 e o problema da inclusão social do trabalhador inserido em ambiente social e econômico exposto às brisas da globalização de bases neoliberais, pugnadora da desregulamentação e flexibilização contratual, enfrentam o desafio da superação 27. FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. trad. Alexandre Salim, Alfredo Copetti Neto, Daniela Cademartori, Hermes Zanetti Júnior, Sérgio Cadematori. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 115. 28. DELGADO, Gabriela Neves. Op. cit., p. 195.

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do discurso. Somente esta superação possibilitará a efetivação do patamar mínimo civilizatório constitucional de raízes humanísticas. CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Século XVIII, enquanto europeus e norte-americanos vivenciavam a mudança de paradigmas político, social e econômico decorrentes da Revolução Industrial e da ascensão do capitalismo liberal apoiado na exploração do trabalho humano, o Brasil, recém-emancipado politicamente, manteve sua economia escravista-agrícola, sem indícios de formação da nova classe de trabalhadores assalariados explorados pelo capital. Inicialmente, no Estado brasileiro, não houve qualquer menção sobre direitos sociais em suas primeiras cartas políticas, o que veio a ocorrer significativamente a partir da Constituição de 1934, curiosamente a Constituição do Estado Novo, regime autoritário comando por Getúlio Vargas de ascendência nazifascista. Neste passo, começa a ganhar corpo a cultura jurídica e política centralizada nos direitos sociais, em parte, como consequência do espraiamento do modelo de Estado de bem-estar social (intervencionista), fato que interferiu diretamente no modo de conduzir as políticas públicas e a construção da literatura jurídica. Assim, a Constituição Democrática de 1946 e a Constituição de 1967, esta elaborada durante o regime de exceção militar, mantiveram os direitos sociais de cariz laboral em seu texto. Para o bem da verdade, tem-se que a Constituição Federal de 1988 definitivamente constitucionalizou o Direito do Trabalho, ao consagrar como um de seus fundamentos os valores sociais do trabalho. Igualmente, encontrase no texto constitucional atual a ordem econômica fundada na valorização do trabalho humano e a ordem social estabelecida sobre o primado do trabalho, para, assim, chegar-se a uma sociedade justa, livre e solidária, capaz de proporcionar ao ser humano bem-estar e justiça social, tendo no horizonte a dignidade da pessoa humana. Porém, diante da globalização neoliberal acompanhada pela precarização das relações de trabalho e emprego que conduzem a exclusão social do trabalhador, a Constituição Federal de 1988 vive o mesmo dilema das Constituições precedentes: a ameaça à efetividade dos direitos sociais, hoje decorrente da adoção de medidas flexibilizantes e desregulamentadoras, caracterizadas, sobretudo, pelo aviltamento dos direitos sociolaborais em favor do capital.

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O remédio contra a insanidade neoliberal da desvalorização o trabalho e dos direitos sociotrabalhistas está na própria Constituição. O texto Constitucional que instituiu o Estado Democrático de Direito brasileiro em 1988, centralizado na dignidade da pessoa humana, estabeleceu parâmetros absolutos que integram um patamar civilizatório mínimo de índole humanista. Destaca-se que todos estes parâmetros estão direcionados essencialmente à defesa dos trabalhadores, possuem eficácia horizontal e vertical, indispensáveis, principalmente, à atuação Estatal e seus poderes constituídos. Em tempos de globalização neoliberal, calcada no capitalismo predatório especulativo-financeiro, a inclusão social do trabalhador depende do grau efetividade dos direitos sociotrabalhistas constitucionalizados. A tarefa de fazêlos efetivos está posta frente ao Estado, questão solucionável pela via legislativa ou judiciária, mediante atuação com os olhos voltados à vedação de retrocesso social e à superação dos dilemas de natureza laboral pela via constitucional. REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar, 1999. BREGA FILHO, Vladimir. Direitos Fundamentais na Constituição de 1988. Conteúdo Jurídico das Expressões. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. BRIGADÃO, Clóvis; RODRIGUES, Gilberto M. A. Globalização a olho nu. O mundo conectado. 2. ed. São Paulo: Moderna, 2004. DELGADO, Gabriela Neves. Direito fundamental ao trabalho digno. São Paulo: LTr, 2006. DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. 5 ed. São Paulo: LTr, 2006. ______. Capitalismo, trabalho e emprego. Entre o Paradigma da Destruição e os Caminhos de Reconstrução. São Paulo: LTr, 2008. FACHIN, Zulmar. Curso de Direito Constitucional. 5. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2012. FERRAJOLI, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. trad. Alexandre Salim, Alfredo Copetti Neto, Daniela Cademartori, Hermes Zanetti Júnior, Sérgio Cadematori. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. MEDEIROS, João Bosco. Redação Científica. A prática de fichamentos,

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resumos, resenhas. 11. ed. São Paulo: Atlas, 2010. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de Direito do Trabalho. 17ª ed. São Paulo: Saraiva, 2001. ______. Iniciação ao Direito do Trabalho. 30ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. ROMITA, Arion Sayão. Globalização da Economia e Direito do Trabalho. São Paulo: LTr, 1997. RUSSOMANO, Mozart Victor. Curso de Direito do Trabalho. 9ª ed. Curitiba: Juruá, 2005. SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional. 23ª ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2004. SUSSEKIND, Arnaldo. Direito Constitucional do Trabalho. 4 ed. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2010.

CAPÍTULO XIII

a FaMílIa NaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS

Maria Amélia Belomo Castanho Mestre em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná - Campus Jacarezinho. Advogada.

INTRODUÇÃO

A família, agrupamento humano natural, considerado célula da sociedade e estrutura de organização social, passou por alterações em sua configuração ao longo da história. No Brasil, a família que conhecemos a partir do império, correspondeu ao modelo tradicional centralizado na figura do patriarca, formada a partir do casamento, voltada à procriação, à subsistência de seus membros, a preservação do patrimônio e consequentemente à manutenção de status social. No decorrer dos séculos, a família brasileira alterou-se e adaptou-se às exigências da vida moderna. Este fenômeno se reflete no campo do direito, visto que este prima por adaptar-se às exigências da sociedade de seu tempo. O tema é de extrema relevância para a sociedade e consequentemente para o direito, pois ainda que pertença à esfera privada gera reflexos na esfera pública, de modo que pelo direito deve ser protegido. Mas no Brasil, nem sempre foi assim. O direito brasileiro levou certo tempo até reconhecer a importância deste instituto e guardar-lhe o devido cuidado. Abre-se, neste momento, a oportunidade de se discutir acerca do tratamento que a família recebeu das Constituições brasileiras, bem como,

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verificar se o ordenamento vigente em cada período histórico foi capaz de perceber suas necessidades, respeitar seus contornos e assegurar direitos e deveres. O objetivo deste trabalho volta-se ao estudo da temática proposta, no âmbito constitucional que vigorou no Brasil desde a época do império até o ordenamento atual, regido pela Constituição Federal de 1988. Para tanto, o trabalho divide-se em dois capítulos. Inicia-se com um breve histórico acerca dos moldes que constituem as famílias brasileiras, suas características ao longo dos séculos e sua importância perante a sociedade de seu tempo. A partir desse ponto, o enfoque segue rumo à análise da família no bojo das constituições brasileiras, passando por cada uma com o objetivo de avaliar se houve preocupação do legislador quanto ao tema, bem como, avaliar o alcance da norma. O trabalho é finalizado com a análise da Constituição Federal de 1988, vigente atualmente, onde é possível perceber maior sensibilidade do legislador frente à temática que ora se discute. Ao longo do trabalho é possível perceber, sempre com olhos voltados ao momento histórico que atravessava o país, em quais constituições o instituto da família ganhou tratamento, o modo como ele se deu e seu alcance, objetivando analisar se os anseios sociais foram efetivamente atendidos e qual foi a real contribuição constitucional para a sociedade e para a família. 1 BREVE EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA

A história nos revela profundas transformações no modo de viver em família. Não existem documentos que comprovem com precisão o que aconteceu nas épocas mais primitivas. Surgiram várias hipóteses, suposições de pesquisadores e cientistas que tentam reconstruir uma época longínqua. Segundo Caio Mário da Silva Pereira (1995, p.16), “quem rastreia a família em investigação sociológica, encontra referências várias a estágios primitivos em que mais atua a força da imaginação do que comprovação fática”.1 Um dos registros acerca do tema pode ser verificado na clássica obra de Jean Jacques Rousseau – O Contrato Social – onde o tema é relacionado com o primeiro modelo de sociedade política: A mais antiga de todas as sociedades, e a única natural, é a da família [...] A família é, portanto, se se quiser, o primeiro modelo das sociedades políticas: o chefe é a imagem do pai, o povo é a imagem dos filhos; e todos eles, tendo nascido iguais e livres, só alienam a sua liberdade com 1. PEREIRA. Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. V.5, Direito de Família 10. ed.Rio de Jeneiro: Forense, 1995, p.16

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vistas à sua utilidade. Toda a diferença está em que, na família, o amor do pai pelos filhos o paga dos cuidados que lhes presta; ao passo que no Estado o prazer de comandar supre a falta desse amor que o chefe não tem pelos seus povos.2

Trata-se do retrato da família patriarcal, que imperou durante séculos, e foi a organização familiar básica de muitas sociedades, inclusive da sociedade brasileira, para quem foi o grande modelo de vida, influenciada pela miscigenação das culturas indígena, européia e africana, o que deflagrou uma população formada por traços diversos. A família patriarcal tinha como característica principal o fato de ser extensa, composta pelo núcleo central (pai, esposa e filhos legítimos). Contava, ainda, com grupos de agregados (tios, tias, primos, noras, genros, serviçais, escravos, entre outros), todos dominados pelo patriarca, dotado de autoridade absoluta. Em meados do século XVIII, verificou-se, no Brasil, baixa qualidade de vida da população, muita ociosidade, falta de saúde, promiscuidade. Era necessária a atuação forte do Estado no sentido de proporcionar trabalho para as pessoas ociosas, ensinar ofícios, promover a saúde pública. [...] tornava-se necessário cuidar mais agressivamente da saúde das tropas e da população em geral, que estava sendo corroída pelos leprosos, aleijados e doentes incuráveis: surgiram, a partir dos meados do Século XVIII, os primeiros hospitais leprosários. A família, portanto, ainda no século XVIII, surgia como estrutura mediadora do disciplinamento dos povos, promovida pelo Estado. E a medicina, nesse momento foi convocada como instrumento auxiliar nessa tarefa.3

O Estado percebeu a necessidade de converter as famílias, através da higiene, aos propósitos do Estado. Esta foi a função da medicina higienista na época. Passou-se, pois, a disciplinar as crianças, os hábitos alimentares, buscouse disciplinar as mulheres para que se dedicassem à gestação, alimentação das crianças e educação dos adultos do futuro. Tudo isso porque o Estado precisava de homens ordeiros, que vivessem no equilíbrio da ordem e do progresso, de modo que pudessem oferecer sua vida ao país. Quanto aos indivíduos que compunham o corpo social, vale lembrar que para sobreviverem socialmente, deveriam pertencer a um círculo familiar, pois seu bem-estar social estava diretamente relacionado ao pertencimento de um grupo familiar. 2. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social: Discurso sobre a origem da desigualdade entre os homens. Tradução Rogério Fernandes. Lisboa/PT: Portugália Editora, 1968, p. 76 3. FONSECA SOBRINHO, Délcio da. Estado e população: Uma história do planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos: FNUAP, 1993,p. 47/48.

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No Brasil, a partir da metade do século XIX, a família patriarcal começou a enfraquecer. O êxodo rural e a urbanização se deram de forma acelerada. Houve movimentos de emancipação feminina, surgimento da indústria e revoluções econômico-sociais, além das imensas transformações comportamentais que puseram fim à instituição familiar nos antigos moldes patriarcais como a única formação familiar possível. A família moderna constituiu-se em um núcleo evoluído a partir do desgaste do modelo clássico, matrimonializado, patriarcal, hierarquizado, e heterossexual, centralizador de prole numerosa que conferia status ao casal. Este seu remanescente vem optando cada vez mais por prole reduzida, sobreposição de seus papéis, ou mesmo a inversão destes, em que a autoridade parental se apresenta não raro diluída ou quase ausente. A partir daí, revolucionam-se as relações intergenéricas, abalando a dissociação masculino-público e feminino-privado, que passa a ser alternada, repercutindo decisivamente sobre a configuração nova família brasileira. 2 TRATAMENTO CONSTITUCIONAL DA FAMÍLIA BRASILEIRA

A história brasileira mostra que o Estado, por diversas vezes, interveio no âmbito privado das famílias sob a alegação de defesa do interesse público. A submissão da família à cidade foi imposta em nome do corpo, da raça, da classe e do Estado. Esta dimensão coercitiva, no entanto, foi temperada pela criação de um novo mito da função social do grupo familiar. A Instituição senhorial devia perder seu antigo poder, mas para ganhar um papel bem mais nobre e grandioso. O corpo e a ‘alma’ higiênicos deixavam o exíguo espaço da casa, para se projetarem no imenso espaço do Estado. A medicina social insistia em mostrar que a saúde do Estado estava para a família assim como a saúde de um filho estava para a de uma mãe. A instituição da família nuclear era a célula mater da sociedade.4

O que se denota é que embora de caráter privado, a família se correlacionava diretamente com o Estado por meio do social, e desta forma era por ele constantemente vigiada. Pois, preocupava ao Estado as pessoas doentes, ociosas, criminosas, eis que tudo isso contribuía de forma negativa ao progresso, e sobrecarregava as instituições públicas. Conforme ensina Araújo Castro: “Diversas Constituições estabelecem medidas especiais de proteção à família. Nada mais lógico. A família é o principal elemento da sociedade, e a sociedade não é senão o Povo, que 4. COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edições Graal, 2004, p. 147/148

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constitui a nação. Proteger, pois, a família, é trabalhar pelo engrandecimento da Nação”.5 Mais que uma simples conjugação do público com o privado, verificou-se um governo através da família: Os procedimentos de controle social contam muito mais com a complexidade das relações intra-familiares do que com seus complexos, mais com seu apetite de promoção do que com a defesa de seus bens (propriedade privada, rigidez jurídica). Mecanismo maravilhoso, que já permite tanto responder à marginalidade com uma despossessão quase total dos direitos privados, quanto favorecer a integração positiva, a renúncia à questão do direito político por meio da busca privada do bem-estar.6

A partir do século XX, o papel do Estado se ampliou de modo que este não estava interessado somente em manter a ordem e promover o progresso. Iniciou-se a era do Bem-Estar Social. Nesse sentido o Estado passou a atuar de uma forma diferente, promovendo a vigilância, mas evitando a promoção da violência, buscando a normalização das condutas através da lei. A população, sem violência, é submetida à dominação. Do poder de soberania do soberano ao poder sobre a vida. Das relações de soberania para as relações de disciplina. Do código da soberania, da lei enquanto vontade do soberana, para o código da normalização, da lei enquanto regramento.7

A normalização passa a ser dirigida pela cidadania, que suaviza a política social ao mesmo tempo que estabelece os deveres e direitos dos setores públicos e privados. Para Weber “Ao Estado cumpre fazer chegar ao indivíduo a informação supostamente capaz de prevenir o acontecimento; ao indivíduo, também supostamente informado, caberá assumir os riscos decorrentes de suas ações”. 8 Assim, resta claro a importância da célula familiar para a sociedade e, considerando-se esta como uma instituição social, caberá ao direito o dever reconhecê-la e regulamentar seus direitos e deveres dentro da esfera social. Como se verá nos tópicos seguintes, nem sempre o legislador constituinte esteve atento ao tema e por vezes não empenhou o devido cuidado. Mas a realidade acabou apontando para a necessidade de um olhar mais atento até que, finalmente, o tema alcançou o status constitucional adequado o qual, por certo, ainda passará por muitos aprimoramentos. 5. CASTRO, Araújo. A Constituição de 1937. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2003, p. 305 6. DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Tradução M. T. da Costa Albuquerque. Rio de Janeiro: Graal, 1986, p. 89 7. WEBER, César Augusto Trinta. Programa de Saúde da Família: Educação e Controle da População. Porto Alegra: AGE, 2006, p. 36/37. 8. Ibid., p. 87.

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2.1 A FAMÍLIA: DO IMPÉRIO À REPÚBLICA - AS CONSTITUIÇÕES DE 1824 E 1891

No ano de 1822 o Brasil deixou de ser colônia de Portugal para tornar-se um império, independente e soberano. Com a independência política do Brasil iniciou-se no dia 03 de junho do ano de 1822, o primeiro processo constitucional brasileiro, por iniciativa do príncipe D. Pedro, que através do decreto convocou a primeira Assembleia Geral Constituinte da história brasileira. A primeira constituição brasileira – e única do período imperial - ao invés de ter sido promulgada, foi outorgada em razão das divergências de opiniões que ocorreram durante o processo constitucional. Já no anteprojeto verificou-se o caráter classista, e, consequentemente, antidemocrático do texto, com certa discriminação quanto aos direitos políticos, além de uma postura claramente elitista que deixou de fora temas como latifúndio e escravismo, a fim de não colocar em risco a aristocracia rural brasileira. Outro perfil da constituição do império foi a xenofobia anticolonialista. Houve limitação do poder do imperador D. Pedro I, que perdeu o controle das forças armadas para o parlamento. Enfim, o projeto constitucional foi consagrado pelos desejos da classe dominante que até então encontrava-se oprimida pelo regime colonial. Ao longo do período que antecedeu a declaração de independência do Brasil, ou seja, no período colonial, houve fortalecimento da família patriarcal. Isto se deu em virtude de o governo português não conseguir se fazer representar em toda a colônia. Assim, a família tinha grande importância na situação de estado do indivíduo, pois era por meio dela que os indivíduos eram situados no mundo. Deste modo, o modelo patriarcal de família se justificava para a época. O Brasil deixou de ser colônia, criou sua primeira constituição, porém, inobstante a importância do instituto da família para a sociedade daquela época, a Constituição do Império não dedicou qualquer dispositivo à família. Também não havia qualquer lei extravagante que cuidasse do tema. Assim, muito embora oficialmente independente de Portugal, as Ordenações Filipinas, por meio da Lei Imperial de 20 de outubro do ano de 1823, continuaram a viger no Brasil, de modo que o direito das famílias continuou sendo objeto das leis portuguesas e da igreja9. De outro turno, verificou-se a preocupação do texto constitucional de 1824 com a proteção da família imperial portuguesa no Brasil, é o que se verifica: 9. Para detalhes acerca do tema, vide AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da família de fato. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2002.

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Art. 107. A Assembléa Geral, logo que o Imperador succeder no Imperio, lhe assignará, e á Imperatriz Sua Augusta Esposa uma Dotação correspondente ao decoro de Sua Alta Dignidade. Art. 108. A Dotação assignada ao presente Imperador, e á Sua Augusta Esposa deverá ser augmentada, visto que as circumstancias actuaes não permittem, que se fixe desde já uma somma adequada ao decoro de Suas Augustas Pessoas, e Dignidade da Nação. Art. 109. A Assembléa assignará tambem alimentos ao Principe Imperial, e aos demais Principes, desde que nascerem. Os alimentos dados aos Principes cessarão sómente, quando elles sahirem para fóra do Imperio. Art. 112. Quando as Princezas houverem de casar, a Assembléa lhes assignará o seu Dote, e com a entrega delle cessarão os alimentos. Art. 113. Aos Principes, que se casarem, e forem residir fóra do Imperio, se entregará por uma vez sómente uma quantia determinada pela Assembléa, com o que cessarão os alimentos, que percebiam. Art. 114. A Dotação, Alimentos, e Dotes, de que fallam os Artigos antecedentes, serão pagos pelo Thesouro Publico, entregues a um Mordomo, nomeado pelo Imperador, com quem se poderão tratar as Acções activas e passivas, concernentes aos interesses da Casa Imperial. Art. 115. Os Palacios, e Terrenos Nacionaes, possuidos actualmente pelo Senhor D. Pedro I, ficarão sempre pertencendo a Seus Successores; e a Nação cuidará nas acquisições, e construcções, que julgar convenientes para a decencia, e recreio do Imperador, e sua Familia.

Desta feita, considerando a ausência de dispositivo legal no Brasil que cuidasse do direito das famílias, a vigência das Ordenações Filipinas em território brasileiro, e, considerando ainda, que a constituição do império estabeleceu como oficial a religião católica, tem-se que o casamento somente era oficialmente considerado quando celebrado pela autoridade Católica.10 Não tardou para que os conflitos se iniciassem, pois, no Brasil, existiam indivíduos pertencentes a outras religiões que não a católica e que desejavam o reconhecimento do matrimônio entre aqueles que não professavam o catolicismo. Para amenizar os conflitos dessa ordem foi, então, publicada a Lei 1.144 de 11 de setembro de 1861, que ampliou a possibilidade de casamentos, desde que celebrados entre cristãos (ainda que não católicos), já que o Brasil era um Estado Confessional. Surge, então, o que podemos chamar de efeitos civis aos casamentos religiosos: a Lei 1.144/1861 “[...] deu efeitos civis aos casamentos religiosos realizados pelos não católicos desde que estivessem devidamente registrados”. Para tanto, foi criado “o registro civil estatal para atender à situação dos não católicos”.11 O casamento civil somente foi legitimado por meio do Decreto n. 181 de 1890: 10. AZEVEDO, 2002, p.123-124. 11. WALD, Arnoldo. Curso de direito civil brasileiro. Direito de família. 10. ed. São Paulo, Revista dos Tribunais, 1995, v. 4, p. 31.

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255 Art. 108. O casamento civil, único válido nos termos do art. 108 do Dec. N. 181 de janeiro último, precederá sempre as cerimônias religiosas de qualquer culto com que desejem solenizá-lo os nubentes. O ministro de qualquer confissão que celebrar as cerimônias religiosas do casamento antes do ato civil, será punido com seis meses de prisão e multa correspondente à metade do tempo.

No ano de 1889 foi Proclamada a República, e estabeleceu-se um governo provisório que, na pessoa de Rui Barbosa, manteve os ideais acerca do casamento que prevaleceram na Constituição subsequente. A primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891), de caráter não intervencionista e liberal, defendia o individualismo. Nossa segunda constituição e a primeira republicana tem sua origem embrionária em um projeto elaborado por uma comissão de notáveis republicanos nomeados pelo governo provisório e aqui já nominados, resultado da fusão de três outros projetos, cuja redação final foi de Francisco Rangel Pestana [...] ela foi modelada, em seus princípios fundamentais, pela constituição Norte Americana. 12

Quanto ao tratamento dispensado a família, destaque-se que a Constituição de 1891 trouxe somente um único dispositivo no bojo da sessão dedicada à declaração de Direitos: “Art. 72, § 4°: a república só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita”. O dispositivo demonstra clara intenção política, vez que, por meio dele, retirou-se da Igreja Católica o poder de controle sobre o ato jurídico do casamento. Tal dispositivo reflete o Direito Constitucional desta época se preocupava com questões políticas, com o exercício do poder, com as atribuições do Estado, manutenção da ordem e da segurança. Vê-se, portanto, que tanto a Constituição Imperial quanto a primeira Constituição da República não colocaram a família no rol de suas prioridades. 2.2 A FAMÍLIA NA ERA VARGAS – AS CONSTITUIÇÕES DE 1934 e 1937

O mundo atravessava a primeira grande guerra mundial, seguida da queda da bolsa de Nova York. O liberalismo clássico não atingia seus objetivos e clamava-se por uma nova ordem político-social que atendesse não somente os interesses das classes dominantes, mas também das categorias mais frágeis e vulneráveis. No Brasil não era diferente. Diante da crise política, econômica e social, deflagrou-se no ano de 1930, um movimento liderado por Getúlio Dorneles 12. OLIVEIRA. José Sebastião. Fundamentos Constitucionais do Direito de Família. São Paulo: RT, 2002, p. 26.

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Vargas que culminou no fim da primeira república com a deposição do então presidente Washington Luis Pereira de Souza. Em meio a este contexto histórico, em 16 de julho de 1934 foi promulgada a segunda constituição republicana do Brasil. Seu texto representou a transição entre o Estado Liberal Clássico para o Estado Intervencionista. Ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um título sobre a ordem econômica e social e outro sobre a família, a educação e a cultura, com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição alemã de Weimar. [...] fora, enfim, um documento de compromisso entre o liberalismo e o intervencionismo.13

Dentro dessa perspectiva, a Constituição de 1934 determinou ao Estado o dever de especial proteção à família e dedicou um capítulo (artigos 144 a 147) para cuidar dos temas casamento e nascimento dos filhos, estabelecendo regras e conceitos. Art 144 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Parágrafo único - A lei civil determinará os casos de desquite e de anulação de casamento, havendo sempre recurso ex officio , com efeito suspensivo. Art 145 - A lei regulará a apresentação pelos nubentes de prova de sanidade física e mental, tendo em atenção as condições regionais do País. Art 146 - O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento perante ministro de qualquer confissão religiosa, cujo rito não contrarie a ordem pública ou os bons costumes, produzirá, todavia, os mesmos efeitos que o casamento civil, desde que, perante a autoridade civil, na habilitação dos nubentes, na verificação dos impedimentos e no processo da oposição sejam observadas as disposições da lei civil e seja ele inscrito no Registro Civil. O registro será gratuito e obrigatório. A lei estabelecerá penalidades para a transgressão dos preceitos legais atinentes à celebração do casamento. Parágrafo único - Será também gratuita a habilitação para o casamento, inclusive os documentos necessários, quando o requisitarem os Juízes Criminais ou de menores, nos casos de sua competência, em favor de pessoas necessitadas. Art 147 - O reconhecimento dos filhos naturais será isento de quaisquer selos ou emolumentos, e a herança, que lhes caiba, ficará sujeita, a impostos iguais aos que recaiam sobre a dos filhos legítimos.

É a primeira vez que o tema ganha certa relevância em uma constituição brasileira. Contudo, resta claro que o texto constitucional preocupou-se com a instituição do casamento como instrumento de origem da família, mas de modo formal, deixando de apresentar um conceito de família e seu alcance como direito material. 13. SILVA. José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 31ª ed. rev. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2008. p. 82.

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E nesse sentido observa Jaques Paulino que: “Pela preocupação com aspectos nitidamente secundários (pagamento de emolumentos, selos, impostos e procedimentos de habilitação) pode-se dizer que a Constituição de 1934 é uma constituição Cartorial”. 14 Não obstante este caráter formal adotado pela Constituição em comento, uma importante conquista há de ser lembrada, qual seja: a inserção da família sob proteção especial do Estado, conforme se observa da leitura do caput do artigo 144 citado acima. Este ganho configurou, segundo Paulo Luiz Netto Lobo, como uma destinação típica do Estado Social, e “que será repetida em todas as Constituições subseqüentes”. 15 Ainda, do texto constitucional, verificou-se o cuidado do legislador em atribuir ao Estado o dever de socorrer as famílias de prole numerosa. Art 138 - Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos termos das leis respectivas: [...] d) socorrer as famílias de prole numerosa;

Isto porque a família brasileira na década de 30 era geralmente constituída de prole numerosa. E também, porque a política governamental assumia um claro perfil natalista sob o argumento de que o crescimento populacional seria bom para o desenvolvimento do país. É o que observa Delcio da Fonseca Sobrinho: “A possibilidade de que o Brasil pudesse se desenvolver, tornar-se ‘grande, é diretamente vinculada, por Getúlio Vargas, ao crescimento de sua população”.16 A ordem institucional inaugurada com a revolução de 1930 incluiu, dentre suas inovações legais, dispositivos que podem ser considerados, pelo menos em primeira aproximação, ‘pró-natalistas’ [...]. As preocupações com a formação eugênica da ‘raça brasileira’ fizeram também presentes, como pode ser constatado no texto do artigo 138 da Carta Constitucional de 1934.17

Mas o momento histórico continuava acenando para crises. A sociedade brasileira passou a sofrer influência política de duas ordens: a extrema direita que fundou a Ação Integralista Brasileira (AIB), com caráter fascista pregava um Estado totalitário, e de outro lado a esquerda, com inspiração socialista representada pela Aliança Nacional Libertadora (ANL), que também tinha caráter totalitário. 14. PAULINO, Jaques. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1962, p. 259. 15. LOBO, Paulo Luiz Netto Lobo. A repersonalização das relações de Família. In: Bittar, Carlos Alberto (coord.) O Direito de Família e a Constituição de 1988. São Paulo. Saraiva, 1989, p.60. 16. FONSECA SOBRINHO,1993, p. 70. 17. FONSECA SOBRINHO, 1993, p. 67/68.

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Getúlio Vargas mostrou-se contra o socialismo e sob este pretexto efetuou o conhecido golpe de 1937, após o qual, contrariando as oposições políticas, e contando com o apoio militar e popular, derrubou a Constituição Federal e declarou o Estado Novo. Cumpre esclarecer que a Constituição de 1937, que criou o Estado Novo de Getúlio Vargas tinha um caráter autoritário e centralizador. Por meio dela foi suprimida a independência entre os três poderes e também sobre a liberdade partidária. O Congresso Nacional foi fechado, os prefeitos passaram a ser nomeados por governadores de estados, e os governadores passaram a ser nomeados pelo presidente. Em síntese, teve a Constituição dos Estados Unidos do Brasil, de 1937, como principais preocupações: fortalecer o Poder Executivo, a exemplo do que ocorreria em quase todos os países, [...]. a Carta de 1937 não teve, porém, aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo o Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por dia de decretos-leis que ele próprio depois aplicava [...].18

É sob este contexto histórico que se analisa o tratamento constitucional dispensado à família pela constituição de 1937. Considerando que a Constituição foi outorgada pela autoridade que vigorava quando da elaboração da constituição de 1934, poucas alterações foram realizadas em seu texto, mormente no que tange à família. É o que se depreende da leitura dos dispositivos transcritos abaixo: Art 124 - A família, constituída pelo casamento indissolúvel, está sob a proteção especial do Estado. Às famílias numerosas serão atribuídas compensações na proporção dos seus encargos. Art 125 - A educação integral da prole é o primeiro dever e o direito natural dos pais. O Estado não será estranho a esse dever, colaborando, de maneira principal ou subsidiária, para facilitar a sua execução ou suprir as deficiências e lacunas da educação particular. Art 126 - Aos filhos naturais, facilitando-lhes o reconhecimento, a lei assegurará igualdade com os legítimos, extensivos àqueles os direitos e deveres que em relação a estes incumbem aos pais. Art 127 - A infância e a juventude devem ser objeto de cuidados e garantias especiais por parte do Estado, que tomará todas as medidas destinadas a assegurar-lhes condições físicas e morais de vida sã e de harmonioso desenvolvimento das suas faculdades. O abandono moral, intelectual ou físico da infância e da juventude importará falta grave dos responsáveis por sua guarda e educação, e cria ao Estado o dever de provê-las do conforto e dos cuidados indispensáveis à preservação física e moral. Aos pais miseráveis assiste o direito de invocar o auxílio e proteção do Estado para a subsistência e educação da sua prole. 18. SILVA, 2008, p. 83.

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O texto constitucional continuou dispensando à família proteção especial do Estado e também se ateve à situação daquelas com prole numerosa. Nota-se preocupação com a educação dos filhos, cuja obrigação deixou a cargo dos pais com a colaboração estatal. Ainda, verificou-se o reconhecimento de igualdade entre os filhos naturais e os legítimos (uma grande conquista para a sociedade daquela época). Além disso, a preocupação do Estado com a infância e juventude, o que pode ter contribuído para a posterior diminuição do número de filhos entre os casais, visto que com a escolarização da criança, esta assumiu situação de passividade diante da economia familiar. O caráter centralizador do Estado, marca desta Constituição, muito embora atribua à família o dever de cuidado com os membros da família, chama para si, a responsabilidade, em casos de falta grave e abandono por parte dos responsáveis. Esta Constituição, a “Polaca”, foi alvo de muitas críticas, especialmente no que tange a sua inefetividade. A doutrina afirma que sua ideologia não teria sido suplantada em razão de sua origem totalitária, e que seu texto não teria passado de palavras soltas que não alcançaram os direitos positivos trazidos no seu bojo19. 2.3 A FAMÍLIA NAS CONSTITUIÇÕES DE 1946, 1967 E A EMENDA CONSTITUCIONAL N. 1 DE 1969

Neste tópico trata-se do estudo, em conjunto, das Constituições de 1946, 1967 e 1969 (ou Emenda Constitucional n. 1 de 17.10.1969). Isto porque, no campo constitucional da família houve pouca ou nenhuma alteração com relação às constituições anteriores. A Constituição de 1946, promulgada em 18 de setembro de 1946 representou a redemocratização do país. “A carta Magna de 1946 toma como paradigma o modelo delineado em nossa primeira Constituição da República, conjugada com a orientação da Constituição de 1934”. 20 Manoel Gonçalves Ferreira Filho esclarece que: [...] é fruto da 2a Guerra Mundial. Formada nesta o Brasil, depois de algumas tergiversações de Vargas, entre democracias e luta contra ditaduras. Vitoriosas as primeiras, vitoriosa a causa da democracia que 19. Para detalhes acerca deste tema vide: ANDRADE, Paes de. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. Portugal: Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 2003. 20. CRETELLA JR., José. Elementos de Direito Constitucional. 4. ed. rev. atual. ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 52.

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os aliados tomaram por bandeira contra o totalitarismo nazi-fascista, não pode mais Vargas sustentar sua ditadura paternalista contra a maré montante que os acontecimentos internacionais ensejavam. 21

Dentro deste contexto, a sociedade brasileira atravessava um período de mudanças. O Brasil via o crescimento de uma política salarial, desenvolvimento industrial, imigração e rápido crescimento urbano. Os grandes centros urbanos não estavam preparados para receber a massa de trabalhadores rurais que migravam para as cidades. A família brasileira também passava por transformações. Ainda no modelo patriarcal, o seu chefe geralmente migrava do meio rural para o centro urbano mantendo a esperança de que após se estabilizar a família se juntaria novamente. A realidade mostrou que famílias numerosas, de 6, 8 e 10 filhos largados aos cuidados maternos, sem qualificação profissional alguma, na maioria analfabeta, subsistia em situação precária, subnutrida, presa fácil para as moléstias endêmicas. A mortalidade infantil cresceu de tal forma que tornou o Brasil campeão negativo das estatísticas mundiais.22

Mas no que tange ao conteúdo normativo constitucional no âmbito da família, como já se mencionou, mantiveram-se os institutos inspirados nas constituições anteriores, ou seja, a família sob a especial proteção do Estado, o casamento continuava indissolúvel e reconhecimento do casamento religioso e civil. A inovação que se observa é no sentido da assistência à maternidade, infância e adolescência. É o que se depreende da leitura dos artigos 163 e 164 que seguem: Art 163 - A família é constituída pelo casamento de vínculo indissolúvel e terá direito à proteção especial do Estado. § 1º - O casamento será civil, e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e as prescrições da lei, assim o requerer o celebrante ou qualquer interessado, contanto que seja o ato inscrito no Registro Público. § 2º - O casamento religioso, celebrado sem as formalidades deste artigo, terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, for inscrito no Registro Público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente. Art 164 - É obrigatória, em todo o território nacional, a assistência à maternidade, à infância e à adolescência. A lei instituirá o amparo de famílias de prole numerosa.

Mas, a família ainda não alcançara o status de prioridade. O Brasil enfrentava dificuldades de diversas ordens. Segundo observa José Afonso da 21. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Comentários à Constituição Brasileira. V 1. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 5. 22. AGUINAGA, Hélio. A Saga do planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: Top Books, 1996, p. 67.

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Silva, a Constituição de 1946 não conseguiu se realizar plenamente: “Sob sua égide, sucederam-se crises políticas e conflitos constitucionais de poderes, que se avultaram logo após o primeiro período governamental, quando se elegeu Getúlio Vargas [...]”. 23 Queremos devolver o Brasil à democracia, diziam os militares, mas antes vamos aproveitar o momento para introduzir algumas reformas e mudanças que possam garantir a longevidade de nossa ‘democracia’ e articulação do Brasil com a economia mundial. [...] O caminho escolhido pelos militares não poderia ter sido outros que o da centralização de fortalecimento do Poder Executivo. [...] Castelo Branco preocupava-se intensamente com a recepção e repercussão deste ou daquele ato, desta ou daquela Constituição ‘lá fora’, na Europa e nos Estados Unidos, pois a caracterização do golpe colocaria mal o Brasil no mundo democrático. Mas essa preocupação não nos impede de constatar que a verdadeira Constituição daqueles anos foram os atos institucionais.24

Em meio a crises, a Constituição de 1967, promulgada em 24 de janeiro, entrou em vigor durante a presidência do Marechal Arthur da Costa e Silva e foi fortemente influenciada pela Carta de 1937. Como característica principal verificou-se a preocupação com a segurança nacional e revelou-se mais autoritária do que as constituições anteriores, pois, reduziu a autonomia individual permitindo a suspensão de direitos e garantias individuais. Sob essas características, a Constituição de 1967, não inovou no campo da Família. Apenas manteve os direitos já conferidos pelas constituições anteriores. A constituição de 1967 manteve formalmente os mesmos direitos e garantias individuais, mas a prática contestou o texto adotado, deixando para a lei ordinária (art. 150), estabelecer os termos em que seriam exercidos esses direitos ‘visando à realização da justiça social e à preservação e ao aperfeiçoamento do regime democrático’, segundo expunha o Ministro da Justiça Carlos Medeiros Silva no ofício que acompanhou o projeto oficial.25

Esta Constituição vigorou por curto espaço de tempo e outro texto constitucional foi preparado para substituí-la. O novo texto, a Emenda Constitucional n. 1 de 17.10.1969, promulgou o que para alguns se considera a sétima Constituição da República Federativa do Brasil. Sua denominação é causa de divergências doutrinárias, pois para alguns trata-se de emenda constitucional (Pinto Ferreira, Paulo Bonavides entre outros), e para outros, 23. SILVA, 2008, p. 85. 24. ANDRADE, Paes de. BONAVIDES, Paulo. História Constitucional do Brasil. Portugal: Universidade Portucalense Infante D. Henrique, 2003, p. 433. 25. Ibid., p. 447.

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embora intitulada de Emenda, possui tecnicamente caráter de nova constituição (Aliomar Baleeiro)26. A Emenda Constitucional n. 1 de 1969, ou Constituição de 1969, muito embora também não tenha se dedicado a fundo aos assuntos da família, mantendo os direitos já consagrados, por meio da Emenda Constitucional n. 9 de 1977 implantou o divórcio. Este foi um marco da modernização do direito de família no Brasil.

 Art. 175. A família é constituída pelo casamento e terá direito à proteção dos Podêres Públicos. § 1º - O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 9. de 1977) § 1º - O casamento somente poderá ser dissolvido, nos casos expressos em lei, desde que haja prévia separação judicial por mais de três anos; (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 9. de 1977) § 2º O casamento será civil e gratuita a sua celebração. O casamento religioso equivalerá ao civil se, observados os impedimentos e prescrições da lei, o ato fôr inscrito no registro público, a requerimento do celebrante ou de qualquer interessado. § 3º O casamento religioso celebrado sem as formalidades do parágrafo anterior terá efeitos civis, se, a requerimento do casal, fôr inscrito no registro público, mediante prévia habilitação perante a autoridade competente. § 4º Lei especial disporá sôbre a assistência à maternidade, à infância e à adolescência e sôbre a educação de excepcionais. O Brasil continuava inserido num cenário de crise e desde 1964, quando do golpe, havia uma luta pela conquista do Estado Democrático de Direito. Assim, a Emenda Constitucional n. 26, de 27 de novembro de 1985, convocou a Assembleia Nacional Constituinte para elaborar a próxima constituição. O longo período ditatorial pelo qual o Brasil atravessava rumava para seu fim. Havia manifestações populares para reivindicação de eleições diretas e o retorno do regime democrático. Para Zulmar Fachin, “o retorno ao regime democrático era ‘natural, apesar de muitos insistirem na continuidade do regime ditatorial”.27 O período de transição da ditadura militar instalada em 1964 para a Nova República foi, certamente, o mais doloroso de todos quantos a história marcou em nosso País. Da Monarquia para a República não se observaram excessos que registrassem, como neste período, a violência do poder autoritário, com presos políticos sem culpa formada, torturas nos cárceres [...] 28 26. Para detalhes acerca deste tema vide: ANDRADE, BONAVIDES, op. cit., p. 448. 27. FACHIN, Zulmar. Teoria Geral do Direito Constitucional. 2ª Ed. Londrina: Universidade Estadual de Londrina, 2006, p. 100. 28. ALMEIDA; BONAVIDES, 2003, p. 448.

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A Constituinte foi convocada e após longos debates a Constituição vigente fora substituída por outra, nova. Desta vez, um texto rico e desafiador, de caráter democrático, voltado à proteção de direitos e garantias individuais. O pacto federativo foi restabelecido. Dentre tantas conquistas inovou no campo da família, sua regulamentação ganhou novos contornos, os quais serão analisados no tópico seguinte. 2.4 A CONSTITUIÇÃO CIDADÃ de 1988 E A FAMÍLIA BRASILEIRA ATUAL

Inicialmente cumpre destacar que no decorrer da história das constituições brasileiras a sociedade sofreu mudanças e junto com ela a família. Não era mais possível ignorar a realidade. É certo que atualmente as famílias continuam num processo de individualização de seus membros, seu elemento central já não representa necessariamente o patriarca ou grupo. Este trabalha em função do bem-estar dos indivíduos. Houve ao longo da história um caminhar que culminou na família que conhecemos hoje. Alteraram-se os papéis homem-mulher na manutenção da família, trabalho doméstico, participação no orçamento familiar e educação dos filhos. E, como bem menciona Paulo Luiz Netto Lôbo: O princípio do pluralismo das entidades familiares rompe com a tradição centenária do direito brasileiro de apenas considerar como instituto jurídico o casamento, desde as Ordenações do Reino, todas as Constituições brasileiras (imperial e republicanas) estabeleceram que apenas a família constituída pelo casamento seria protegida pelo Estado. Apenas a Constituição de 1988 retirou do limbo ou da clandestinidade as demais entidades familiares, nomeadamente a união estável e a entidade uniparental (pai ou mãe e filhos). Os integrantes dessas famílias – relegadas a meros fatos sociais, não jurídicos – eram destituídos de direitos familiares idênticos.29

A Constituição de 1988, diante de tal realidade, alargou o conceito de família e seu conteúdo reconheceu suas novas configurações, assegurou-lhe direitos e atribuiu-lhe relevância diante da nova ordem social. Para José Sebastião de Oliveira: “pela análise dos vários dispositivos constitucionais destinados à família contemporânea, verifica-se quão importante ela é para a sociedade e para o Estado, bem como as diversas e complexas relações que lhe são inerentes”30. 29. in WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; LEITE, Eduardo de Oliveira (coord.). Repertório de Doutrina Sobre Direito de Família: Aspectos Constitucionais, civis e processuais. V.4. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1999, p. 315. 30. OLIVEIRA. José Sebastião. Fundamentos Constitucionais do Direito de Família. São Paulo: RT, 2002, p. 48.

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Nesse sentido, com a promulgação da Constituição cidadã houve uma forte tendência à constitucionalização do Direito de Família, ou seja, este ganhou tutela constitucional a qual buscou reduzir as imposições e alargar o espaço de liberdades. Grande parte do Direito Civil está na Constituição, que acabou enlaçando os temas sociais juridicamente relevantes para garantir-lhes efetividade. A intervenção do Estado nas relações de direito privado permite o revigoramento das instituições de direito civil e, diante do novo texto constitucional, forçoso ao intérprete redesenhar o tecido do Direito Civil à luz da nova Constituição.31

Com a constitucionalização do Direito de família verificaram-se alterações nos princípios que regulam as relações familiares e, assim, tornou-se possível dar mais efetividade ao comando constitucional. Agora, qualquer norma jurídica em direito de família exige a presença de fundamento de validade constitucional. Essa é a nova tábua de valores da Constituição Federal, especialmente no tocante à igualdade de tratamento dos cônjuges. [...] Procedeu o legislador constituinte ao alargamento do conceito de família, calcado na realidade que se impôs, emprestando juridicamente ao relacionamento existente fora do casamento. Afastou da idéia de família o pressuposto de casamento, identificando como família também a união estável entre um homem e uma mulher. [...] nesse redimensionamento, passaram a integrar o conceito de entidade familiar as relações monoparentais: um pai com seus filhos. Agora, para a configuração da família, deixou de se exigir a necessidade de existência de um par, o que consequentemente, subtraiu de seu conceito a finalidade procriativa.32

No mesmo sentido, Guilherme Calmon Nogueira da Gama: Houve uma mudança significativa dos princípios e preceitos reguladores das relações familiares – inclusive as de ordem patrimonial – para o fim de proporcionar o cumprimento efetivo das normas constitucionais, especialmente relacionadas aos direitos fundamentais no âmbito das famílias contemporâneas, com base no valor, princípio e cláusula geral de tutela da pessoa humana prevista no artigo 1º, inciso III, do texto de 1988, e especializado em vários preceitos e princípios de Direito de Família, como a especial proteção do Estado às famílias, a assistência do Poder Público às adoções e às outras origens não-sanguineas, a dignidade da futura pessoa humana no planejamento familiar, entre outros. 33

No Capítulo VII, do Título VIII: Da Ordem Social, a Constituição de 1988 dedicou à família apenas dois artigos (226 e 227), porém, de conteúdo 31. DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 33. 32. Ibid., p. 33/34. 33. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. A nova filiação: O Biodireito e as relações parentais: o estabelecimento da parentalidade-filiação e os efeitos jurídicos da reprodução assistida heteróloga. Rio de Janeiro: Renovar, p. 4.

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bastante denso e significativo. Manteve alguns institutos já reconhecidos pelas constituições anteriores, porém, inovou ao reconhecer novas formas de família e novos direitos e deveres aos seus membros. Destaquem-se: a idéia de filiação, o conceito de entidade familiar e o livre planejamento familiar. Estabeleceu-se a co-gestão na chefia da sociedade conjugal: o marido não a exerce mais isoladamente. O que ocorre atualmente é uma igualdade de direitos e deveres. Nenhum mais é chefe do outro. No artigo 226, § 5º, da Constituição da República vê-se de forma expressa que: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. A monoparentalidade há muito tempo já existia, assim como o concubinato. O que não existia era o reconhecimento e a regulamentação por parte do legislador, e isso finalmente ocorreu com a promulgação da Constituição de 1988. Assim, como o legislador teve que acompanhar uma mudança de pensamento por uma parte da sociedade, que manteve pressões sobre o meio legislativo e também com a impossibilidade de ignorar uma situação tão latente e freqüente, o Estado passou a reconhecer e proteger esse tipo de família. Qualquer que seja a postura adotada pela doutrina, relativamente à previsão constitucional, ficou suficientemente claro que o surgimento da noção de entidade familiar ao lado da família tradicional, ou da família monoparental, abandona o vocabulário moralizador que qualificava situações relativamente atípicas para reconhecer, sem vacilações, a existência de um fenômeno social, uma nova forma familiar com a qual será necessário, bom ou mal grado, conviver e legislar daqui para o futuro.34

Implantou-se o divórcio como meio de dissolução do casamento35. Com a Emenda Constitucional 66/2010, houve um significativo avanço na disciplina do divórcio, visto que já não se exige o cumprimento de prazos ou a discussão de causas e culpa. Com a nova redação do artigo 226, § 6º da Constituição Federal passou a haver apenas um requisito exigido para a obtenção do divórcio, que é o estado civil de casado. Saliente-se que a nova disciplina do divórcio veio a atender os anseios de uma sociedade capaz de decidir sobre a manutenção ou rompimento do instituto do casamento, afastando a interferência do Estado no âmbito privado. Além do tratamento do divórcio, a Constituição Federal de 1988 passou a aceitar a união estável como entidade familiar. 34. LEITE, Eduardo de Oliveira. Famílias Monoparentais: A Situação Jurídica de pais e mães solteiros, de pais e mães separados e dos filhos na ruptura da vida conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,p. 19. 35. Lei nº 6.515 de 26 de dezembro de 1977. E Emenda Constitucional 66/2010.

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Neste ponto, vale destacar o recente julgamento da ADI 4226, por meio da qual o Supremo Tribunal Federal entendeu que a união homoafetiva é entidade familiar, e que dela decorrem todos os direitos e deveres que emanam da união estável entre homem e mulher. Pode-se afirmar que referido julgamento representou quebra de paradigmas e consequentemente um avanço para o Direito de Família, visto que reconheceu as uniões homoafetivas estáveis como entidades familiares o que até então vinha sendo sonegado do regime jurídico. Ainda, frise-se que a proposta constitucional também passou a rechaçar o tratamento discriminatório entre os filhos, e deu valor sócio-afetivo às relações, afastou o casamento como único e exclusivo elemento formador da família, muito embora a família tradicional, formada através do casamento, ainda seja valorizada pelo legislador que determinou a facilitação da conversão da união estável em casamento. Mantendo uma tradição de nossas Constituições (com exceção da de 1891), assegurou os efeitos civis ao casamento religioso. Determinou que a união estável fosse reconhecida como entidade familiar, emitindo comando ao legislador infraconstitucional para que facilitasse a sua conversão em casamento. Revelou-se ainda, mesmo diante do progresso constitucional, uma preocupação com a formalização da situação. [...] o casamento continua a ser prestigiado pelo texto constitucional.36

Tem-se o reconhecimento pela ordem jurídica em vigor, da nova família brasileira, com seus novos modelos de pais e filhos. A Constituição reconheceu expressamente e pela primeira vez na história das constituições brasileiras, o direito de liberdade para que os casais possam planejar sua família. Ou seja, a eles é dado decidir livremente e sem a interferência do Estado, se realmente desejam ter filhos, quantos e em qual intervalo de tempo. Deste modo a procriação deixou de ser uma finalidade da família e o Estado assumiu papel fundamental na oferta de recursos educacionais e científicos que assegurem o regular exercício deste direito. Um ganho de extrema importância para toda a sociedade. Encontra-se no capítulo VII do título VIII que trata “Da Ordem Social”, no artigo 226, § 7º, in verbis: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. 36. ARAUJO, Luiz Alberto David. SERRANO JR., Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 12 ed. rev. atual. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 517.

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De uma breve leitura é possível perceber que o exercício do planejamento familiar passou a estar condicionado à observância dos princípios da dignidade da pessoa humana (fundamento da República Federativa do Brasil) e da paternidade responsável. A Constituição Federal de 1988, bem como a legislação infraconstitucional superveniente a 1988 buscaram reconhecer realidades sociais existentes no segmento da família, traçando novos rumos do direito brasileiro com inúmeros e importantes avanços. [...] A paternidade e a maternidade passam a sofrer uma releitura, pois ‘ter pai’ e ‘ter mãe’ representam direitos resultantes dos princípios constitucionais da paternidade responsável e da isonomia entre os filhos, da garantia à convivência familiar, todos reconhecidos no texto constitucional, nos artigos 226 e 227.37

Inegável que a Constituição Federal de 1988 avançou no campo da família. Reconheceu as diversas formas de instituição familiar, e manteve o comando já consagrado nas constituições anteriores, qual seja: “especial proteção do Estado”, o que indica que o poder público desempenha um papel decisivo no desenvolvimento de programas e políticas públicas voltadas à família a fim assegurar seus direitos e garantir-lhes efetividade. A Constituição Cidadã rompeu com valores historicamente estabelecidos, buscou adequar seu texto com uma ordem jurídica desejada, mas que nem sempre era vivida no cotidiano, e normatizou instituições que sempre estiveram à margem da ordem jurídica. A vida em sociedade é dinâmica, assim como o direito também o é. Novas configurações familiares surgirão com o tempo, e cumpre ao legislador estar sempre atento para acompanhar tais mudanças de modo a garantir que o direito trabalhe efetivamente para atingir sua finalidade. Considerações finais

Por meio deste estudo foi possível analisar a família pelo viés constitucional brasileiro. Revelou que ao longo da história deste país nem sempre a família ocupou posição de destaque. Tal afirmação se denota já na Constituição do Império que priorizou temas relacionados às questões de independência do país, deixando os cuidados com a família a cargo Igreja e das Ordenações Filipinas que vigoraram no Brasil ainda por algum tempo. Na primeira Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891), de caráter não intervencionista e liberal, deu-se início ao tratamento 37. GAMA, 2003, p.3.

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constitucional da família com o reconhecimento do casamento civil como o único válido perante a República, o que retirou da Igreja o controle sobre tal ato jurídico, e refletiu a preocupação do Estado com questões políticas. Com relação à Constituição de 1934 verificou-se que o tema ganhou maior notoriedade com a inserção da família sob especial proteção do Estado. Um ganho importante que se refletiu nas constituições subsequentes. Porém cumpre lembrar que o texto estava voltado à questões de cunho formal. Seguindo-se, estudou-se o conteúdo da Constituição de 1937, onde se pode perceber que seu texto além de manter a família sob proteção especial do Estado também se ateve à situação daquelas com prole numerosa. Esta Constituição reconheceu a igualdade entre os filhos naturais e legítimos, e preocupou-se com a educação deles. Já a Constituição de 1946, manteve os institutos inspirados nas constituições anteriores e inovou quanto ao tratamento à maternidade e à infância e adolescência. Com a Emenda Constitucional n. 1 de 1969 não se verificaram inovações, mas a Emenda Constitucional n. 9 de 1977 implantou o divórcio, o que caracterizou um marco da modernização do Direito de Família no Brasil. Foi então com a Constituição de 1988 que houve a constitucionalização do Direito de Família, reduzindo-se imposições e alargando-se o espaço de liberdades. A Constituição Cidadã manteve alguns institutos já reconhecidos pelas constituições anteriores e promoveu grandes inovações. Não há mais discriminação entre os filhos, entidade familiar e o livre planejamento familiar foram expressamente reconhecidos. Os cônjuges foram equiparados em direitos e deveres, e a monoparentalidade foi regulamentada. Facilitou-se o divórcio. O casamento continua a ter uma superioridade jurídica, e o legislador lhe dá maior privilégio, mas foi de grande valia o reconhecimento que se deu aos outros tipos de família que apareceram na sociedade, as chamadas “entidades familiares”. A partir desse momento, a realidade familiar se transformou drasticamente, pois a Constituição de 1988 reconheceu e o Estado passou a proteger os novos tipos de família que já existiam, mas que até então não haviam recebido qualquer tratamento legislativo. Conforme se demonstrou ao longo do trabalho, a família possui uma configuração dinâmica. Assim, tanto o legislador quanto o aplicador do direito devem estar atentos à realidade que se apresenta, pois inexiste uma legislação completa e exaustiva capaz de enfrentar todas as situações fáticas possíveis. Assim

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também é o texto constitucional. Desta forma, há necessidade de se conhecer os mecanismos postos à disposição do operador do Direito, para que, aplicados adequadamente possam abranger aqueles fatos que não foram, ou não puderam ser enfrentados pelo legislador. REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO XIV

CoNtRolE DE CoNStItuCIoNalIDaDE NaS CoNStItuIÇÕES BRaSIlEIRaS

Marcelo Specian Zabotini Mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino. Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil de Pessoas Jurídicas no Estado de São Paulo.

Peter Panutto Mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino. Diretor e professor de Direito Processual Civil da Faculdade de Direito da Puc-Campinas. Advogado. Membro da Comissão de Educação Jurídica da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo.

INTRODUÇÃO

Definida a Constituição como a organização sistemática dos elementos constitutivos do Estado, através da qual se definem a forma e a estrutura deste, o sistema de governo, a divisão e o funcionamento dos poderes, o modelo econômico e os direitos, deveres e garantias fundamentais1, a Jurisdição Constitucional e a aferição da compatibilidade as leis e atos normativos e a Constituição se apresentam como importantes mecanismos de estabilização da ordem jurídica e de concretização de direitos. Com o advento das Constituições rígidas e a necessidade de respeito a seus fundamentos, surgiram dois grandes modelos mundiais de controle de constitucionalidade das leis: o difuso e concentrado. 1.

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 23.

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

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Nos Estados Unidos da América, surgiu o modelo difuso, que atribui aos juízes em geral a defesa da Constituição. Na Áustria, surgiu o modelo concentrado, exercido mediante atuação exclusiva de uma Corte Constitucional criada para este fim. O presente trabalho aborda tais modelos de controle de constitucionalidade, bem como sua adoção pelas Constituições Brasileiras de 1.824, 1.891, 1.934, 1.937, 1.946, 1.967 e Emenda Constitucional 1 de 1.969, culminando na apresentação dos mecanismos adotados pela Constituinte de 1.988 e introduzidos por emenda ao texto constitucional, enquanto ferramentas para a garantia do acesso à Justiça e a concretização de direitos. 1 Controle de Constitucionalidade - MODELOS2 1.1 MODELO DIFUSO

Trata-se do controle de constitucionalidade atribuído a todos os órgãos do Poder Judiciário, quando do julgamento de casos concretos de sua competência. Também chamado de modelo americano, sua concepção guarda relação com o advento da Constituição dos Estados Unidos da América de 1.787 e a previsão de obediência à Constituição por todos os juízes, conforme artigo VI, cláusula 2ª (supremacy clause): This Constitution, and the Laws of the United States which shall be made in Pursuance thereof; and all Treaties made, or which shall be made, under the Authority of the United States, shall be the supreme Law of the Land; and the Judges in every State shall be bound thereby, any Thing in the Constitution or Laws of any State to the Contrary notwithstanding.3

O controle difuso da compatibilidade dos atos normativos com a Constituição, porém, foi consagrado nos Estados Unidos da América em 1.803, quando do julgamento do caso Marbury versus Madison. A sentença, da lavra do juiz John Marshall, estabeleceu que: (...) Ou havemos de admitir que a Constituição anula qualquer medida legislativa, que a contrarie, ou anuir que a legislatura possa alterar a Constituição por medidas ordinárias. Não há por onde se contestar o dilema. Entre as duas alternativas não se descobre meio termo. Ou 2. PANUTTO, Peter. Fiscalização de Constitucionalidade. Modelos e Evolução. In Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo: RT, jan-mar/2012. 3. “Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos em sua execução e os tratados celebrados ou que houverem de ser celebrados em nome dos Estados Unidos constituirão o direito supremo do País. Os Juízes de todos os Estados dever-lhes-ão obediência, ainda que a Constituição ou as leis de algum Estado disponham em contrário”. CUNHA JÚNIOR, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. São Paulo, Saraiva: 2004, p. 406.

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a Constituição é uma lei superior, soberana, irreformável mediante processos comuns, ou se nivela com os atos da legislação usual, e, como estes, é reformável à vontade da legislatura. Se a primeira é verdadeira, então o ato legislativo contrário à Constituição não será lei; se é verdadeira a segunda, então as Constituições escritas são esforços inúteis do povo para limitar um poder pela sua própria natureza ilimitável. Ora, com certeza, todos os que têm formulado Constituições escritas, sempre o fizeram no objetivo de determinar a lei fundamental e suprema da nação; e conseguintemente, a teoria de tais governos deve ser a da nulidade de qualquer ato da legislatura ofensivo à Constituição. Essa doutrina está essencialmente ligada às Constituições escritas, e, assim, deve-se observar como um dos princípios fundamentais da nossa sociedade (...).4

O modelo americano tem como característica marcante garantir a autonomia dos juízes na defesa da Constituição, consignando a todos os integrantes do Poder Judiciário, e, em especial à Suprema Corte, a tarefa de proteger a Constituição, não somente no que tange à distribuição do poder entre a federação e os Estados-Membros, mas também frente à atuação dos poderes federais, e em especial o Poder Legislativo5. Neste modelo uma norma infraconstitucional que desrespeita a Constituição é nula de pleno direito, cabendo ao juiz que apreciar o conflito de interesses declarar tal nulidade. Portanto, em regra a sentença será declaratória quanto à inconstitucionalidade, com efeitos ex tunc e inter partes. 1.2 MODELO CONCENTRADO

O controle concentrado de constitucionalidade é aquele em que um único órgão, Tribunal (ou Corte) Constitucional, é criado com a finalidade especifica de aferir a compatibilidade entre Constituição e demais atos normativos. Estas Cortes são denominadas tribunais ad doc, os quais têm a específica função de controlar a constitucionalidade das leis e dos atos dos poderes do Estado, afirmando, sobremodo, a supremacia das constituições, mormente aquelas forjadas a partir da segunda guerra mundial6. O modelo concentrado também é chamado de austríaco, pois foi idealizado e concretizado na Constituição Austríaca de 1.920, a qual teve projeto redigido por Hans Kelsen, a pedido do governo daquele país7. 4. FERREIRA, Luis Pinto apud VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2000, p. 37. 5. Tremps apud Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2002, p. 266. 6. Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2002, p. 284. 7. Cappelletti, Mauro. O Controle Judicial de Constitucionalidade das Leis no Direito Comparado. Porto Alegre: Fabris, 1.984, p. 68.

CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

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Neste sistema, a arguição de inconstitucionalidade se dá pela via principal, ou seja, por meio de ação própria, endereçada à Corte Constitucional, a qual decidirá o caso abstrato, podendo anular a norma tida como inconstitucional, com eficácia erga omnes. 2 O Controle Brasileiras

de

Constitucionalidade

nas

Constituições

Desde sua emancipação política do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, as constituições brasileiras apresentam a rigidez e supremacia necessárias ao estabelecimento de um sistema de controle de constitucionalidade. Com efeito, exceção feita à Constituição do Império de 1.824, apontada pela doutrina como exemplo de Constituição semirrígida ou semiflexível, todas as Constituições brasileiras previram a supremacia da Constituição seja mediante a adoção de processo legislativo qualificado para a emenda constitucional, seja mediante o estabelecimento de instrumentos para o controle de constitucionalidade. 2.1 Constituição Politica do Imperio do Brazil (de 25 de março de 1.824)

Na lição de Lenio Luiz Streck, no período compreendido entre o descobrimento até 1.532 o Brasil foi terra sem lei (período das feitorias)8. De 1.532 até 1.549, com o desdobramento do território em capitanias hereditárias, passaram a vigorar os forais e cartas de doação, bem como das Ordenações Manuelinas. Com a assunção do trono por Filipe II (1.581), foram editadas as Ordenações Filipinas, que funcionaram como eixo para a aplicação do Direito no território do Brasil-Colônia. Proclamada a Independência, face à ausência de imediata edição de texto constitucional, continuou o Brasil a ser regido conforme as leis e ordenações portuguesas, gradativamente substituídas por ordenamento próprio. Finalmente, em 22 de abril de 1.824, considerando o movimento constitucionalista impulsionado pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 1.7899, foi oferecida, jurada, outorgada, registrada na 8. Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002, p. 313. 9. Artigo 16. Toda sociedade na qual a garantia dos direitos não for assegurada, nem a separação de poderes determinada, não tem Constituição.

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Secretaria de Estado dos Negocios do Imperio do Brazil a fls. 17 do Liv. 4º de Leis, Alvarás e Cartas Imperiaes e publicada a primeira constituição brasileira, contendo em seu bojo 179 artigos, o último deles reservado aos direitos civis e políticos. Embora tenha constado de seu artigo 3º a instituição de um governo monárquico, hereditário, constitucional e representativo, a carta política em comento não cuidou especificamente do controle da constitucionalidade das leis e atos normativos. Semirrígida, a Constituição reputou constitucional apenas as matérias relativas ao respeito aos limites, e attribuições respectivas dos Poderes Politicos, e aos Direitos Politicos, e individuaes dos Cidadãos (art. 178), estabelecendo como previsões tendentes a garantir supremacia ao texto constitucional, dentre outras, o inciso IX do artigo 15, que atribuiu ao Poder Legislativo a tarefa de velar na guarda da Constituição10, bem como o Capitulo IV do Título 5º (Da Proposição, Discussão, Sancção, e Promulgação das Leis), sobretudo os artigos 62 a 66, que atribuíram ao Imperador a competência para meditar, sancionar ou recusar sanção aos projetos de lei11. Quanto ao Poder Moderador, tratado em título próprio (Título 6º), este foi conferido em caráter permanente ao Imperador e concebido como a chave de toda a organisação Politica para que este incessantemente vele sobre a manutenção da Independencia, equilibrio, e harmonia dos mais Poderes Politicos (art. 98). Ao Imperador, pessoa inviolável, sagrada e não sujeita a responsabilidade alguma (art. 99), foi conferido poder para sancionar decretos e resoluções da Assembleia Geral, para que tenham força de lei, aprovar e suspender resoluções dos conselhos provinciais, prorrogar ou adiar a Assembleia Geral, suspender magistrados, dissolver e convocar nova composição para a Câmara dos Deputados, quando o exigir a salvação do Estado. Com efeito, dispunha o art. 101: Art. 101. O Imperador exerce o Poder Moderador: I. Nomeando os Senadores, na fórma do Art. 43; II. Convocando a Assembléa Geral extraordinariamente nos intervallos das Sessões, quando assim o pede o bem do Imperio; III. Sanccionando os Decretos, e Resoluções da Assembléa Geral, para que tenham força de Lei: Art. 62.; IV. Approvando, e suspendendo interinamente as Resoluções dos Conselhos Provinciaes: Arts. 86, e 87; 10. Art. 15. E’ da attribuição da Assembléa Geral: (...) IX.Velar na guarda da Constituição, e promover o bem geral do Nação. 11. Art. 64. Recusando o Imperador prestar seu consentimento, responderá nos termos seguintes. - O Imperador quer meditar sobre o Projecto de Lei, para a seu tempo se resolver - Ao que a Camara responderá, que - Louva a Sua Magestade Imperial o interesse, que toma pela Nação.

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V. Prorogando, ou adiando a Assembléa Geral, e dissolvendo a Camara dos Deputados, nos casos, em que o exigir a salvação do Estado; convocando immediatamente outra, que a substitua; VI. Nomeando, e demittindo livremente os Ministros de Estado; VII. Suspendendo os Magistrados nos casos do Art. 154; VIII. Perdoando, e moderando as penas impostas e os Réos condemnados por Sentença; IX. Concedendo Amnistia em caso urgente, e que assim aconselhem a humanidade, e bem do Estado.

Quanto ao Poder Judiciário (Título 6º), desprestigiado junto aos estados europeus à época, sobretudo a França, disciplinado na Constituição do Império em apenas quatorze artigos, não ganhou relevo na apreciação de questões constitucionais, reservando a Constituição de 1.824 ao juiz apenas a função de aplicar a lei12. Nem mesmo as garantias tradicionalmente atribuídas à função jurisdicional – inamovibilidade, irredutibilidade de vencimentos e vitaliciedade – foram contempladas pela Carta Constitucional, que trouxe apenas a última das características, ressalvando expressamente a possibilidade de mudança dos magistrados de um a outro lugar (art. 153), e de suspensão pelo Imperador (art. 154). Nos dizeres de Zeno Veloso, invocando lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello: “os homens públicos do Império, ao elaborarem a Carta de 1.824, sofreram a influência dos doutrinadores políticos da Inglaterra e da França, e os juízes, de então, estavam poucos afeitos ao direito Constitucional dos Estados Unidos”.13 No entanto, o texto teve por mérito de absorver e superar as tensões entre o absolutismo e o liberalismo, marcantes no seu nascimento, para se constituir, afinal, no texto fundador da nacionalidade e no ponto de partida para nossa maioridade constitucional14 2.2 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 24 de fevereiro de 1.891)

A Constituição de 1.891, primeira republicana, teve grande significado pela ruptura com o sistema monárquico e, por consequência, com o modelo estatal e ordenamento jurídico português monárquico. O período, de aproximação com o movimento constitucionalista norte-americano, fica evidente na expressão “Estados Unidos do Brasil”. 12. Art. 152. Os Jurados pronunciam sobre o facto, e os Juizes applicam a Lei. (g.n.). 13. VELOSO, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belo Horizonte. Ed. RelRey. 2000. p. 30. 14. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2008, p. 163.

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Com o intuito de constituir um Estado livre e democrático, foi formado o Estado federativo (experiência centrípeta – art. 1º), com supressão do Poder Moderador e a adoção do modelo clássico de tripartição de poderes. Houve avanço, também, com a não repetição da excludente de responsabilidade do chefe do executivo (responsabilização do Presidente por crimes comuns e de responsabilidade – arts. 53 e 54). A prática de ato atentatório à Constituição, nos termos do artigo 54, foi alçada à condição de crime de responsabilidade15. Quanto ao controle de constitucionalidade, objeto do presente estudo, foi adotado o modelo descentralizado ou difuso, com atribuição de controle abstrato preventivo ao Presidente da República nos seguintes termos: Art 37 - O projeto de lei adotado em uma das Câmaras será submetido à outra, e esta, se o aprovar, enviá-lo-á ao Poder Executivo, que, aquiescendo, o sancionará e promulgará. § 1º - Se, porém, o Presidente da República o julgar inconstitucional ou contrário aos interesses da Nação, negará sua sanção, dentro de dez dias úteis, daquele em que recebeu o projeto, devolvendo-o nesse mesmo, prazo à Câmara, onde ele se houver iniciado, com os motivos da recusa. (g.n.).

Quanto à atuação jurisdicional, pontua Gisela Maria Bester que nossa história do controle de constitucionalidade iniciou com a adoção do modelo difuso, de inspiração norte-americana, ainda na Constituição Provisória de 1.89016. O texto constitucional, que reservou oito artigos ao Poder Judiciário, trouxe a previsão da garantia da irredutibilidade de vencimentos dos magistrados (art. 57, §1º) e a atribuição ao Supremo Tribunal Federal da competência para julgar, em grau de recurso, as controvérsias que veiculem questionamento à validade de leis ou atos de Governo em face da Constituição: Art 59 - Ao Supremo Tribunal Federal compete (...) III - rever os processos, findos, nos termos do art. 81. § 1º - Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: a) quando se questionar sobre a validade, ou a aplicação de tratados e leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado for contra ela; b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.

Semelhante atribuição foi conferida aos Juízes e Tribunais Federais, para processar e julgar as causas em que alguma das partes fundar a ação, ou a defesa, 15. Art 54 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentarem contra: (...) 2º) a Constituição e a forma do Governo federal; 16. BESTER, Gisela Maria. Direito Constitucional. Vol. I – Fundamentos Teóricos. São Paulo. Manole: 2005. p. 400.

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em disposição da Constituição federal e todas as causas propostas contra o Governo da União ou Fazenda Nacional, fundadas em disposições da Constituição, leis e regulamentos do Poder Executivo, ou em contratos celebrados com o mesmo Governo (art. 60). Merecem destaque, também, a possibilidade de auto-organização dos Estados (ainda que sem a correspondente previsão do controle de constitucionalidade das leis e atos normativos face às constituições estaduais) e o elastecimento do rol da declaração de direitos (art. 72), ainda que passíveis de restrição nas hipóteses constitucionais de estado de sítio (Arts. 80 e seguintes). A rigidez constitucional, prevista desde a Constituição anterior, passou a albergar todo o texto constitucional, verificando-se a tutela da supremacia da Constituição mediante o estabelecimento de procedimento qualificado para a reforma constitucional (arts. 90 e seguintes) e a vedação de reforma dos projetos tendentes a abolir a forma republicano-federativa, ou a igualdade de representação dos Estados no Senado (art. 90, §4º). 2.3 Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1.934)

A Constituição Federal de 1.934, promulgada no primeiro governo de Getúlio Vargas, merece referência por seu caráter democrático, por conta da previsão do voto secreto e obrigatório, da ampliação do sufrágio quanto aos votos das mulheres, da criação da Justiça Eleitoral e pelo estabelecimento de um rol constitucional de direitos do trabalhador (notabilizam-se a previsão de salário mínimo, de jornada de trabalho, do direito ao repouso semanal obrigatório e férias anuais remuneradas, de indenização por dispensa sem justa causa). A Carta Política manteve, quanto ao objeto do presente estudo, a previsão do controle difuso de constitucionalidade de leis e atos normativos do poder público, a cargo dos órgãos do Poder Judiciário e, em sede recursal, ao Supremo Tribunal Federal, conforme estabelecido em seu artigo 76: Art. 76 - À Corte Suprema compete: (...) 2) julgar: (...) III - em recurso extraordinário, as causas decididas pelas Justiças locais em única ou última instância: a) quando a decisão for contra literal disposição de tratado ou lei federal, sobre cuja aplicação se haja questionado; b) quando se questionar sobre a vigência ou validade de lei federal em face da Constituição, e a decisão do Tribunal local negar aplicação à lei impugnada;

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c) quando se contestar a validade de lei ou ato dos Governos locais em face da Constituição, ou de lei federal, e a decisão do Tribunal local julgar válido o ato ou a lei impugnada; d) quando ocorrer diversidade de interpretação definitiva da lei federal entre Cortes de Apelação de Estados diferentes, inclusive do Distrito Federal ou dos Territórios, ou entre um deste Tribunais e a Corte Suprema, ou outro Tribunal federal. (g.n.).

No entanto, em que pese a permanência do caráter difuso do controle de constitucionalidade, a Carta Política de 1.934 trouxe inovações que aproximaram o Brasil de aspectos inerentes ao controle abstrato de constitucionalidade.17 Neste sentido o artigo 91, IV, de referida Constituição18, que atribuiu ao Senado Federal a competência para suspender a execução de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, após receber a comunicação de tal decisão pelo Procurador-Geral da República. Desta forma, a decisão do Supremo, que no processo judicial tinha eficácia inter partes e efeito ex tunc passaria, com a suspensão da execução da lei pelo Senado, incidir contra todos, ainda que com efeitos ex nunc, garantindo-se assim a segurança jurídica, pois nenhum juiz ou tribunal poderia aplicar a lei cuja execução tinha sido suspensa pelo Senado Federal 19 Entretanto, faltava à Constituição de 1934 a atribuição da competência ao Supremo Tribunal Federal para proferir decisões de inconstitucionalidade com eficácia erga omnes, situação que gerou proposta de emenda de autoria do Deputado Nilo Alvarenga para criação de uma Corte Constitucional brasileira, nos moldes do modelo austríaco de controle de constitucionalidade. Segundo Nilo Alvarenga os mais belos e generosos princípios de direito público consagrados nos textos constitucionais de nada valeriam sem as necessárias garantias de sua efetividade. Estas garantias são dadas pelo controle de constitucionalidade das leis20 Contudo, tal modificação não chegou a ser introduzida no texto constitucional. A despeito da não aprovação da proposta de criação de uma Corte Constitucional, a Constituição de 1.934 teve o mérito de introduzir em tutela da ordem constitucional a possibilidade de intervenção da União nos Estados, para assegurar a observância dos princípios constitucionais especificados nas letras a 17. Cunha Júnior, Dirley da. Controle Judicial das Omissões do Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 439. 18. Art. 91 - Compete ao Senado Federal: (...) IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário; (...) 19. Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2002. p. 345. 20. Palu, Oswaldo Luiz. Controle de Constitucionalidade. Conceitos, sistemas e defeitos. São Paulo: RT, 2001. p. 125.

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a h , do art. 7º, nº I21, e a execução das leis federais22. Segundo Zeno Veloso a intervenção, neste caso, seria decretada por lei federal (art. 12, § 1°), e só se efetivaria depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomasse conhecimento da lei federal que a tivesse decretado e lhe declarasse a constitucionalidade (art. 12, § 2°), o que implicava, a contrario sensu, a declaração de inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo estadual que tivesse ensejado o processo interventivo.23

Além disso, para Lenio Luiz Streck24, a introdução do instituto do mandado de segurança como instrumento para tutela dos direitos e garantias individuais face a ato manifestamente inconstitucional constituiu avanço considerável da Carta de 1.934, nestes termos Art. 113 - A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes: (...) 33) Dar-se-á mandado de segurança para defesa do direito, certo e incontestável, ameaçado ou violado por ato manifestamente inconstitucional ou ilegal de qualquer autoridade. O processo será o mesmo do habeas corpus, devendo ser sempre ouvida a pessoa de direito público interessada. O mandado não prejudica as ações petitórias competentes.

Finalmente, cumpre destacar o aperfeiçoamento do sistema de controle de constitucionalidade mediante a previsão da cláusula da reserva de plenário que, na lição de Luís Roberto Barroso, espelha o princípio da presunção da 21.

Art. 7º - Compete privativamente aos Estados: I - decretar a Constituição e as leis por que se devam reger, respeitados os seguintes princípios: a) forma republicana representativa; b) independência e coordenação de poderes; c) temporariedade das funções eletivas, limitada aos mesmos prazos dos cargos federais correspondentes, e proibida a reeleição de Governadores e Prefeitos para o período imediato; d) autonomia dos Municípios; e) garantias do Poder Judiciário e do Ministério Público locais; f) prestação de contas da Administração; g) possibilidade de reforma constitucional e competência do Poder Legislativo para decretá-la; h) representação das profissões; (...) 22. Art. 12 - A União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo: (...) V - para assegurar a observância dos princípios constitucionais especificados nas letras a a h , do art. 7º, nº I, e a execução das leis federais; (...) § 1º - Na hipótese do nº VI, assim como para assegurar a observância dos princípios constitucionais (art. 7º, nº I), a intervenção será decretada por lei federal, que lhe fixará a amplitude e a duração, prorrogável por nova lei. A Câmara dos Deputados poderá eleger o Interventor, ou autorizar o Presidente da República a nomeá-lo. § 2º - Ocorrendo o primeiro caso do nº V, a intervenção só se efetuará depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomar conhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade. (...) 23. Veloso, Zeno. Controle Jurisdicional de Constitucionalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2000. p. 3. 24. Streck, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. Uma Nova Crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2002. p. 348.

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constitucionalidade das leis, que para ser informado exige um quórum qualificado do tribunal25. 2.4 Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 10 de novembro de 1.937)

Inspirada na Constituição da Polônia e outorgada por Getúlio Vargas com o intuito de concretizar os ideais revolucionários de 1.930 e superar as vissiscitudes da sua antecessora, a Constituição de 1.937 trouxe duas singularidades importantes, quanto ao processo legislativo e o controle de constitucionalidade26. No plano legislativo, a Constituição previu a possibilidade de edição, pelo Presidente da República, de decretos-lei sobre as matérias de competência legislativa da União enquanto não se reunisse o Parlamento Nacional (constituindo exceção, durante o período da ditadura Vargas, a reunião e atuação do Parlamento). No plano jurisdicional, mantida a possibilidade do controle difuso da compatibilidade dos atos normativos com o texto constitucional e a cláusula de reserva de plenário, foi excluída a possibilidade de suspensão do ato normativo inquinado pelo Senado Federal e introduzida a possibilidade de cassação da decisão oriunda do Poder Judiciário quando a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal..27

Segundo Paulo Bonavides, estabeleceu-se controle político unicamente em proveito do Executivo (...) e não da ordem constitucional, como ocorre nas formas legítimas em que ele costuma se institucionalizar por via de ação28. Relevante, nesse ponto, exemplo indicado por Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco, de decisão do 25. BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro. 4ª Ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 96. 26. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2008, p. 169. 27. Art 96 - Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou de ato do Presidente da República. Parágrafo único - No caso de ser declarada a inconstitucionalidade de uma lei que, a juízo do Presidente da República, seja necessária ao bem-estar do povo, à promoção ou defesa de interesse nacional de alta monta, poderá o Presidente da República submetê-la novamente ao exame do Parlamento: se este a confirmar por dois terços de votos em cada uma das Câmaras, ficará sem efeito a decisão do Tribunal. 28. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 329.

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Presidente da República de confirmar, contrariando decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal, textos de lei da União editados pela própria presidência, determinando a incidência do imposto de renda sobre os vencimentos dos servidores estaduais e municipais, em medida que Sobrepôs o seu arbítrio à vontade objetiva da Carta Política, revelada pelo tribunal, num gesto insólito que pareceu confirmar, simultaneamente, pelo menos duas das importantes teorias filosófico-políticas: a de Fernando Lassalle, para quem os problemas constitucionais, basicamente, não são problemas jurídicos, mas questões de poder; e a de Hans-Georg Gadamer, que reputa incompatíveis hermenêutica jurídica e regimes de força, porque nesses governos de fato o senhor absoluto, melhor do que ninguém, sempre poderá “explicar” as suas próprias palavras e sobrepô-las às regras usuais de interpretação, de resto não vinculativas para ele. 29

Quanto ao mandado de segurança, o instituto foi subtraído do rol de direitos e garantias constitucionais, passando a gozar exclusivamente de regramento infraconstitucional, que afastou da via mandamental a possibilidade de apreciação judicial dos atos do Presidente da República, Ministros de Estado, Governadores e interventores dos Estados.30 2.5 Constituição dos Estados Unidos do Brasil (de 18 de setembro de 1.946)

Se a Constituição de 1.934 foi fruto da revolução constitucionalista de 1.932 e veio em resposta ao anseio de democratização do país, a Constituição de 1.946 veio para resgatar os valores democráticos sufocados pela Carta Outorgada por Getúlio Vargas em 1.937. Com a repetição da intervenção federal para preservação dos princípios da forma republicana representativa, da independência e harmonia dos Poderes, da temporariedade das funções eletivas, limitada a duração destas à das funções federais correspondentes, da proibição da reeleição de Governadores e Prefeitos, da autonomia municipal, da prestação de contas da Administração e das garantias do Poder Judiciário, mais uma vez instrumentalizou-se a arguição da inconstitucionalidade por ato do Procurador-Geral da República e exame pelo Supremo Tribunal Federal. Repetiu-se, também, a previsão do controle preventivo abstrato, 29. MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 2ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2008. 30. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 197.

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mediante veto pelo Presidente da República de projeto de lei inconstitucional (art. 70, §1º, CF). Destaca-se, ainda, como solenidade de reforço à supremacia da Constituição, a regra do art. 83 que previu para o Presidente da República a obrigação de, no ato da posse, prestar o seguinte compromisso: “Prometo manter, defender e cumprir a Constituição da República, observar as suas leis, promover o bem geral do Brasil, sustentar-lhe a união, a integridade e a independência.” No mesmo sentido a previsão da punição do Presidente da República por crimes de responsabilidade, pela prática de atos que atentassem contra a Constituição Federal (art. 89). Foi na vigência da Constituição de 1.946 que se institucionalizou o controle abstrato e concentrado da constitucionalidade no Brasil, pela Emenda Constitucional 16/65, que atribuiu ao STF a competência para julgar e processar originariamente a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, proposta pelo Procurador-Geral da República (alínea k do inciso I do art. 101). Sem prejuízo, foi mantida a sistemática de controle de constitucionalidade difuso por todos os juízes, aos quais estabeleceu-se as garantias da vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos31, bem como as vedações dantes não explicitadas, nos termos do art. 96. Quanto ao STF (art. 101), permaneceu com a competência para apreciação, em caráter revisional deste controle. Quanto ao controle da compatibilidade entre ordenamento infraconstitucional e constituições estaduais, muito embora a Constituição Federal tenha previsto o poder constituinte decorrente (art. 18), a inobservância das Constituições Estaduais não foi erigida a fundamento para a intervenção de Estado em Município (art. 23). Contudo, foi admitida a possibilidade de criação, pelo Poder Legislativo e em âmbito infraconstitucional, de processo de controle de constitucionalidade de lei ou ato normativo municipal em face da Constituição Estadual, com julgamento perante o Tribunal de Justiça do Estado. É importante ressaltar, nesse ponto, que embora a Emenda Constitucional nº 16, de 26 de novembro de 1.965 tenha inaugurado a sistematização do controle abstrato e concentrado da compatibilidade das leis e atos normativos e incorporado a competência para julgamento às estabelecidas para o Supremo 31. Art 95 - Salvo as restrições expressas nesta Constituição, os Juízes gozarão das garantias seguintes: I vitaliciedade, não podendo perder o cargo senão por sentença judiciária; II - inamovibilidade, salvo quando ocorrer motivo de interesse público, reconhecido pelo voto de dois terços dos membros efetivos do Tribunal superior competente; III - irredutibilidade dos vencimentos, que, todavia, ficarão sujeitos aos impostos gerais.

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Tribunal Federal32, o referido sistema de controle de constitucionalidade gozou de pouca efetividade durante a vigência da Constituição de 1.946, seja em virtude do advento de nova ordem constitucional em 1.967, seja por conta da atribuição de iniciativa exclusiva ao Procurador-Geral da República, à época responsável também pelo exercício da função atualmente atribuída à AdvocaciaGeral da União e passível de nomeação e exoneração ad nutum pelo Presidente da República33. 2.6 Constituição da República Federativa do Brasil de 1.967 e Emenda Constitucional nº 1, de 17 de outubro de 1.969

A Constituição de 1.967 não trouxe grandes inovações no que tange ao controle de constitucionalidade concebido sob a égide da Constituição de 1.946 e Emenda Constitucional 16/1.965. Assim, foram mantidos o controle difuso, com competência atribuída a todos os juízes e tribunais, observada a reserva de plenário34, e o controle concentrado, exercido pelo Supremo Tribunal Federal mediante iniciativa do Procurador-Geral da República. Quanto ao controle de constitucionalidade das leis municipais e estaduais face à Constituição Estadual, embora tal previsão não tenha sido contemplada pela Constituição de 1.967, a omissão foi superada na Emenda Constitucional 01/1.969, que previu expressamente controle com caráter interventivo. Interessante inovação foi a representação para fins de interpretação de lei ou ato normativo federal ou estadual, introduzida pela EC 7/77 e com iniciativa reservada ao Procurador-Geral da República e competência para apreciação pelo Supremo Tribunal Federal. A medida, suprimida na Constituição Federal de 1988, previa mecanismos semelhantes aos previstos atualmente para a interpretação das leis face à Constituição, na Ação Direta de Constitucionalidade e ao previsto para as súmulas vinculantes, principalmente quanto aos efeitos desejados. Exercido o controle difuso, a suspensão da execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais ficou a cargo do Senado (art. 45). Da mesma forma, foi mantido o veto de constitucionalidade de projeto de lei, 32. Art. 2º As alíneas c , f , i e k do art. 101, inciso I, passam a ter a seguinte redação: (...) k) a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador-Geral da República; (...). 33. Art 126 - O Ministério Público federal tem por Chefe o Procurador-Geral da República. O Procurador, nomeado pelo Presidente da República, depois de aprovada a escolha pelo Senado Federal, dentre cidadãos com os requisitos indicados no artigo 99, é demissível ad nutum. 34. Art 111 - Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público.

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pelo Presidente da República tanto no texto de 24 de janeiro de 1.967 quanto no de 17 de outubro de 1.969. Quanto à reserva de plenário, importante ressaltar que art. 116, em seu texto de origem, previa que somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros poderiam os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do poder público tendo o a Emenda Constitucional 7/77 facultada a apreciação, também, por maioria absoluta dos membros de órgão especial35. Na lição de Pontes de Miranda, a regra da reserva de plenário atende, em parte, à hierarquia das regras jurídicas e decorre da necessidade de que se haja discutido e meditado o assunto, a fim de não ser excessivamente fácil a desconstituição de leis ou de outro ato do poder público, por eiva de inconstitucionalidade36. Vale ressaltar quanto à iniciativa das medidas de controle de constitucionalidade que, não obstante a importância institucional do Ministério Público à época, a instituição não gozava à época da independência funcional necessária ao seu manuseio perante o poder público, uma vez que o Procurador-Geral da República, ainda de acordo com o Pontes de Miranda, era órgão da União; não só a representava, presentava-a, como órgão que era37. Assim, persistiu até 1.987, ora por ausência de previsão constitucional, ora por conta do estreitamento da legitimidade ativa ou fragilidade políticoinstitucional do legitimado, controle de constitucionalidade que pouco contribuiu para a esta estabilização da ordem jurídica e de concretização de direitos. 2.7 Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988

A Constituição da República Federativa do Brasil de 1.988, marco da redemocratização do país e na consolidação dos direitos e garantias fundamentais, manteve o sistema de controle de constitucionalidade difuso vigente e tornou mais sofisticado o controle de constitucionalidade abstrato. Único legitimado ativo até então para propositura das medidas tendentes ao controle de constitucionalidade abstrato, o Procurador-Geral da República, chefe do Ministério Público da União (art. 128, §1º), deixou de cumular a atribuição de atender, de forma consultiva ou contenciosa, os interesses da União 35. Art. 116. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial (Artigo 144, V), poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 1977) 36. MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969. Tomo III. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1970, comentários ao art. 116, p. 590-591. 37. MIRANDA, Pontes. Comentários à Constituição de 1967 com a Emenda n. 1, de 1969. Tomo IV. 2ª Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 1970, comentários ao art. 119, p. 44.

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– atribuição transferida à Advocacia-Geral da União (arts. 131 e 132). Além disso, afastada a possibilidade de demissão ad nutum, o órgão passou a gozar da autonomia e estabilidade necessárias para a plena tutela da Constituição face a atos perpetrados pelo Poder Público38. Ademais, a própria legitimidade ativa para propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade foi ampliada com a inclusão do Presidente da República, da Mesa do Senado Federal, da Mesa da Câmara dos Deputados, da Mesa de Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal, do Governador de Estado ou do Distrito Federal, do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, de partido político com representação no Congresso Nacional e de confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (art. 103). A ampliação de legitimados a propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade demonstra a ênfase conferida pelo Constituinte de 1.988 ao controle concentrado de constitucionalidade, vez que as grandes questões constitucionais passaram a ser solucionadas, em sua maioria, por esta forma de controle, marcado pela celeridade processual e pela possibilidade de imediata suspensão do ato normativo impugnado39. Da mesma forma, ampliou-se o objeto do controle de constitucionalidade na medida em que: “As omissões do legislador são conhecidas tanto se forem totais, vale dizer, se não ele tiver cumprido uma obrigação constitucional de legislar (...), quanto parciais, quando atuou de forma incompleta, insuficiente ou parcial e, via de regra, discriminatória”40. Nesse sentido a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (art. 103, §2º), que embora constitua proposta jurídica válida, mas de operatividade comprovadamente difícil com vistas aos seus objetivos: ‘compelir’ psicológica ou indiretamente o Legislativo a realizar suas funções41 e o Mandado de Injunção (art. 5, LXXI), subutilizado conforme balanço das decisões da Corte Suprema proposto por Oscar Vilhena Vieira42, são medidas que colaboram para o 38. Art. 52. Compete privativamente ao Senado Federal: (...) XI - aprovar, por maioria absoluta e por voto secreto, a exoneração, de ofício, do Procurador-Geral da República antes do término de seu mandato; Art. 128. O Ministério Público abrange: (...) § 2º - A destituição do Procurador-Geral da República, por iniciativa do Presidente da República, deverá ser precedida de autorização da maioria absoluta do Senado Federal. 39. MENDES, Gilmar Ferreira. Direitos Fundamentais e Controle de Constitucionalidade. Estudos de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 209. 40. SAMPAIO, José Adércio Leite. A Constituição Reinventada pela Jurisdição Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey. 2002, p. 201. 41. FIGUEIREDO, Marcelo. O Mandado de Injunção e a Inconstitucionalidade Por Omissão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p. 84. 42. VIEIRA, Oscar Vilhena. Supremo Tribunal Federal – Jurisprudência Política. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1994, p. 139-147.

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estabelecimento de uma verdadeira jurisdição constitucional. Há, contudo, como progredir, constituindo interessante proposta a substituição daqueles agentes que, inertes, deixarem de atuar para a concretização da Constituição pois A falha de atuação no sentido da plena realização constitucional pode provocar, sob o ângulo político e sociológico, uma perda de legitimidade do sujeito em princípio investido pela constituição, abrindo espaço para a emergência de outros sujeitos dispostos a resgatar essa legitimidade em seus diversos modos de manifestação. Atualmente, mostram-se os órgãos judiciais incumbidos do controle de constitucionalidade, com a utilização de técnicas modernas de decisão, os mais aptos a proceder à alteração de competência, apresentando-se este câmbio como alternativa eficaz de sanção contra o descumprimento da constituição.43

Outra inovação introduzida no ordenamento jurídico com o advento da Emenda Constitucional nº 3, de 17 de março de 1.993 foi a Ação Declaratória de Constitucionalidade44, inicialmente reservada ao Presidente da República, à Mesa do Senado Federal, à Mesa da Câmara dos Deputados e ao ProcuradorGeral da República e, após, elastecida aos demais legitimados para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2.004). Segundo José Afonso da Silva O objeto da ação é a verificação da constitucionalidade da lei ou ato normativo federal impugnado em processos concretos. Nisso ela corta o iter de controle de constitucionalidade pelo método difuso que se vinha desenvolvendo naqueles processos.45

A medida, sem similar no direito comparado, volta-se para a certeza do direito e a economia processual, recebe severas críticas do jurista português Jorge Miranda: (...) o instituto apresenta-se bastante vulnerável: desde logo, porque, para tanto, bastaria atribuir força obrigatória geral à não declaração de inconstitucionalidade; depois, porque diminui o campo de fiscalização difusa; e, sobretudo, porque o seu sentido útil acaba por se traduzir num acréscimo de legitimidade, numa espécie de sanção judiciária, a medidas legislativas provenientes dos órgãos (salvo o Procurador-Geral da República) a quem reserva a iniciativa.46 43. ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por Omissão e Troca de Sujeito – A perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 209. 44. A lei 9868/99 regula a ADIN e ADC. 45. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 33ª Edição. São Paulo: Malheiros, 2010. p. 58. 46. MIRANDA, Jorge. Manual de Direito Constitucional. Tomo 6. 7ª Edição. Coimbra: Coimbra Editora, 2003, p. 72.

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Com a equiparação dos legitimados e à semelhança dos efeitos obtidos na sentença de procedência na ação declaratória de constitucionalidade e na improcedência da ação direta de inconstitucionalidade, no entanto, ambas as medidas passaram a constituir faceta de um só mecanismo de controle de constitucionalidade. A par dos mecanismos listados, a Constituição Federal de 1.988 previu ainda a arguição de descumprimento de preceito fundamental, medida que ampliou o espectro de incidência do controle de concentrado para permitir sua incidência sobre ato normativo anterior ao advento da Constituição em vigor e, ainda, ato normativo Municipal, com a superação dos entraves doutrinários e jurisprudenciais estabelecidos quanto ao controle de constitucionalidade de tais atos normativos. A arguição de descumprimento é medida de cunho judicial, que promove o controle concentrado da constitucionalidade das leis e atos normativos e não normativos, desde que emanados do Poder Público. Com a arguição, tem-se a complementação do sistema pátrio de controle da constitucionalidade, com uma medida extremamente aberta à correção dos atos estatais violadores da Constituição.47 Qualificando-se como um modo concentrado e eventualmente concreto de fiscalização de constitucionalidade, a arguição permite que o controle de constitucionalidade genérico, apreciando a validade do ato com efeitos extensivos, ocorra com base no exame de um caso específico, enriquecendo nosso sistema com uma modalidade direta (concentrada) de controle concreto de constitucionalidade. Até então, ou esse conhecimento imediato ocorria desvinculado de caso específico (em tese, por meio de fiscalização abstrata de constitucionalidade), ou a questão constitucional surgia ligada ao caso específico e era apreciada pelo juízo naturalmente competente (controle difuso de constitucionalidade), podendo chegar ao Supremo Tribunal Federal, a mais das vezes, apenas em grau extremo de recurso extraordinário48. A Emenda Constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2.004, inseriu no âmbito do controle de constitucionalidade o instituto da súmula vinculante (art. 103-A), como reforço à idéia de estabelecimento de uma única e definitiva interpretação jurídica para o texto constitucional e suas repercussões. Ponderadas a permeabilidade da ordem constitucional e a segurança jurídica, optou o 47. BASTOS, Celso Seixas Ribeiro. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e Legislação Regulamentadora. In Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei n.º 9.882/99. André Ramos Tavares e Walter Claudius Rothenburg (Organizadores). São Paulo: Atlas, 2001. 48. ROTHENBURG, Walter Claudius. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. In Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei n.º 9.882/99. André Ramos Tavares e Walter Claudius Rothenburg (Organizadores). São Paulo: Atlas, 2001.

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constituinte derivado pela segunda, com o estabelecimento de mecanismo para solução definitiva acerca da (in) constitucionalidade e vinculante para os Poderes Executivo e Judiciário, visando-se uma interpretação única e igualitária pelo Poder Judiciário e pela Administração Pública49. A súmula vinculante emitida pelo Supremo Tribunal Federal vincula a interpretação jurídica por parte dos demais tribunais inferiores, da Administração Pública, bem como do próprio Poder Legislativo quando no exercício de funções atípicas, que devem aplicá-lo obrigatoriamente toda vez que verificada subsunção do caso concreto com os fundamentos jurídicos motivadores do respectivo conteúdo de declaração de inconstitucionalidade, constitucionalidade ou interpretação conforme, de norma constitucional secundária ou de norma infraconstitucional. Não possui natureza jurídica legislativa, e sim jurisdicional, porque considerada como produto de função interpretativa desempenhada pelo Supremo Tribunal Federal no exercício de jurisdição constitucional. Conclusão

Com o intuito de tutelar a Constituição surgiram dois grandes modelos mundiais de controle de constitucionalidade. Nos Estados Unidos da América foi implantado o controle difuso o qual permite a todo o Poder Judiciário a garantia da Constituição, permitindo aos juízes em geral a não aplicabilidade de leis inconstitucionais, quando da análise de casos concretos. Na Áustria surgiu o controle concentrado de constitucionalidade com a criação de uma Corte Constitucional, não pertencente ao Poder Judiciário, com competência exclusiva para decidir sobre a inconstitucionalidade de leis e atos administrativos. O desenvolvimento do controle de constitucionalidade acarretou na aproximação de tais modelos. Adotou-se originalmente no Brasil o modelo difuso (Constituição Federal de 1.891). A partir da emenda constitucional nº 16/65, incorporou a ordem constitucional pátria o controle concentrado por meio da “representação contra inconstitucionalidade”, consolidando-se assim o controle misto presente na Constituição de 1.988. A Constituição Federal de 1.988 (e emendas) manteve a previsão dos dois modelos, dando mais ênfase, contudo, ao controle concentrado e a medidas para uniformização da interpretação constitucional. Foi ampliado o rol dos legitimados a propor a Ação Direta de Inconstitucionalidade, concebido o 49. MORAES, Alexandre de. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Atlas, 2010. p. 795.

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controle de constitucionalidade das omissões legislativas através da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão e do Mandado de Injunção, introduzida a Ação Declaratória de Constitucionalidade e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental e a Súmula Vinculante. As medidas de controle concentrado, acrescidas à possibilidade de reconhecimento da (in)constitucionalidade in concreto e à formação de verdadeira Jurisdição Constitucional colocam o Brasil em posição de destaque na garantia da Constituição, do acesso à Justiça e da concretização dos direitos e garantias fundamentais. REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO XV

CoNtRolE CoNCENtRaDo DE CoNStItuCIoNalIDaDE EStaDual

Antônio da Silva Ortega Mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Amazonas. Analista Judiciário da Justiça Federal de São Paulo.

Felipe Gomes Salgueiro Mestrando em Sistema Constitucional de Garantia de Direitos pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito Civil e Processual Civil pela Instituição Toledo de Ensino. Analista Judiciário da Justiça Federal de São Paulo.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho teve por finalidade precípua analisar o tratamento dispensado ao controle de constitucionalidade estadual em todas as Constituições Federais vigentes, ressaltando que somente com a Constituição Federal de 1988 é que a temática ganhou relevância, especialmente diante da redação do art. 125, § 2º, que conferiu aos Estados-Membros a competência para instituírem representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual. É o poder constituinte derivado decorrente concedido pelo poder constituinte originário, ou seja, permite que os Estados Membros e o DF criem a representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual. A Constituição Federal proíbe a atribuição de legitimidade para a propositura a um único órgão.

A FAMÍLIA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

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No mais, há questões importantes que envolvem a competência do Tribunal Estadual acerca da matéria que está em confronto com a Constituição Estadual, pois há matérias que pelo princípio da simetria são de absorção obrigatória e outras não. De fato, antes da CF de 1988, os Estados elaboravam suas próprias constituições, bem como instituíam sistemas de defesas próprios, a exemplo do controle de constitucionalidade estadual. Não obstante, a maioria dessas normas advinha da repetição de normas centrais editadas pelo Poder Constituinte Originário, normas estas que na verdade, já integravam o ordenamento jurídico dos Estados-membros, e, portanto, independeriam de repetição no corpo da Constituição dos Estados. A despeito das Constituições, exceto a de 1946 e a de 1988, terem silenciado no tocante à matéria, elas apresentaram suas contribuições de diferentes modos e intensidade, para a evolução do controle de constitucionalidade em âmbito estadual, culminando no atual sistema. Importante destacar a Emenda Constituição n. 16, de 1965, que acrescentou o inciso XIII ao art. 124 da Constituição Federal de 1946, possibilitando que a lei estabeleça o processo, de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de Município, em conflito com a Constituição do Estado. Entretanto, o sugerido ato normativo não foi elaborado, de modo que ficou sem efeito a redação introduzida pela EC 16/95. Ademais, A Constituição Federal de 1967 e a Emenda de 1967 silenciaram a respeito do assunto. Neste ponto, destaca-se o artigo 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, o qual não ordena a repetição obrigatória nas Constituições Estaduais de dispositivos previstos no corpo da Constituição Federal quando do exercício do poder constituinte derivado decorrente, mas tão apenas a observância dos princípios contidos na Constituição Federal. Assim, observar os princípios previstos na CF não implica necessariamente em transcrevê-los. Essa prática de simplesmente repetir as disposições da CF retira dos Estados-Membros a liberdade que a própria Constituição lhes conferiu. Desde que não haja contrariedade às normas centrais, não há qualquer vedação na formulação de normas estaduais inovadoras em qualquer campo, o que inclui a formulação de um sistema de controle de constitucionalidade. O essencial, portanto, é respeitar as normas centrais, o que não implica a integral reprodução das mesmas. Na verdade, todas as Constituições Estaduais disciplinaram o controle de

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constitucionalidade. Algumas foram além e instituíram, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, caso das constituições do Acre, Amazonas, Bahia, Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Rondônia, Santa Catarina e São Paulo. 1 A evolução do controle de constitucionalidade ESTADUAL nas Constituições FEDERAIS Brasileiras 1.1 Constituição Imperial de 1824

Em 25 de março de 1824 foi outorgada a “Constituição Política do Império do Brasil” que não previa um controle judicial de constitucionalidade de leis ou atos normativos. Nesta época havia apenas um controle político atribuído ao Poder Legislativo, o qual produzia, interpretava e revogava as leis. Ademais, o Poder Moderador colocava-se como um super-poder, tendo a atribuição para intervir nos demais Poderes, tornando inviável o controle de constitucionalidade das leis, até porque a incumbência de dirimir os conflitos entre poderes cabia ao Imperador, e não ao Poder Judiciário. Não é por outro motivo que o art. 154 da constituição de 1824 trazia a seguinte redação, in verbis: Art. 154. O Imperador poderá suspendel-os por queixas contra elles feitas, precedendo audiencia dos mesmos Juizes, informação necessaria, e ouvido o Conselho de Estado. Os papeis, que lhes são concernentes, serão remettidos á Relação do respectivo Districto, para proceder na fórma da Lei.

Conforme anota Carlos Roberto de Alckmin Dutra1 “a Constituição do Império de 1824, por influência do direito europeu, não previa o controle de constitucionalidade”. Clève sintetiza muito bem a questão do controle de constitucionalidade sob a égide da Constituição Imperial: Não foi apenas o dogma da soberania do Parlamento que impediu a emergência da fiscalização jurisdicional da constitucionalidade no período monárquico. O imperador, enquanto detentor do Poder Moderador, exercia uma função de coordenação; por isso competia a ele (art. 98) manter a independência, o equilíbrio e a harmonia entre os demais poderes. Ora, o papel constitucional atribuído ao Poder Moderador, chave de toda a organização política, nos termos da Constituição, praticamente inviabilizava o exercício da função de 1.

DUTRA, Carlos Roberto de Alckmin. O Controle Estadual de Constitucionalidade de Leis e Atos Normativos. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 37.

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297 fiscalização constitucional pelo Judiciário. Sim, porque, nos termos da Constituição de 1824, ao Imperador cumpria resolver os conflitos envolvendo Poderes, e não ao Judiciário.2

E nem poderia ser diferente, pois se a carta foi outorgada pelo próprio Imperador, não poderia se esperar que ele deixasse escapar de seu controle qualquer assunto que envolvesse a soberania. Então, apenas para registrar, a Carta de 1824 está fora dos estudos do controle concentrado e difuso das leis. Porém, nesse período destaca-se o Decreto 510, de 22 de junho de 1890, que instituiu o recurso para o STF, da decisão da Justiça do Estado, em última instância, “quando se contestar a validade de leis ou atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos os atos ou essas leis impugnadas (art. 58, §1°, b)”. Logo depois, o Decreto 848, de 11 de outubro de 1890, instituiu de forma discreta o sistema de controle por via de exceção, estabelecendo que “na guarda e aplicação da Constituição e das leis nacionais a magistratura federal só intervirá em espécie e por provocação da parte”. Tal orientação foi mantida pela Carta Magna de 1891 (artigos 59, §1° e 60), estudada a seguir. Como se vê, a legislação infraconstitucional já dava seus primeiros passos no que toca ao controle de constitucionalidade pelo Poder Judiciário, ainda que sem respaldo constitucional. 1.2 Constituição Republicana de 1891

Com o advento da Carta Constitucional Republicana de 1891, sob influência do constitucionalismo norte-americano, o controle jurisdicional difuso ingressou no ordenamento jurídico constitucional. No entanto, tratavase de um controle ainda incipiente, tendo em vista que houve, por parte do Judiciário, relativa timidez na aplicação do referido controle. Ademais, é pertinente lembrar que, no intuito de tornar clara e efetiva a aplicação dos preceitos constitucionais relativos ao controle de leis, foi promulgada, em 1894, a Lei 221 que previa in verbis: “Os juízes e Tribunais apreciarão a validade das leis e regulamentos e deixarão de aplicar aos casos ocorrentes as leis manifestamente inconstitucionais e os regulamentos manifestamente incompatíveis com as leis ou a Constituição”. Após a proclamação da República, o direito constitucional precisava se desvincular de um sistema imperial onde imperava o poder moderador. Com 2. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª edição. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000. p. 81

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efeito, agora influenciada pela constituição americana, a carta de 1891 fez a transição de um regime monárquico para um republicano. Como já mencionado, adotou-se o sistema americano de controle de constitucionalidade das leis (judicial review). Mas, antecipa-se em afirmar que não havia aqui o controle no sistema concentrado, o que exclui qualquer possibilidade dos Estados-Membros adotarem tal sistema de controle no seio de suas constituições estaduais, em obediência ao princípio da simetria. Segundo Ana Ferraz, a partir da previsão da instituição do poder decorrente por parte dos Estados-Membros, boa parte da doutrina entendia que, no exercício desse poder, os Estados poderiam criar mecanismos próprios de controle da constitucionalidade no âmbito de sua competência.3 Ao Supremo Tribunal Federal, na época composto por quinze juízes, competia na forma do art. 59, § 1º, julgar os recursos: (...) “b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do tribunal do Estado, considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.”

Dessa forma, o direito brasileiro implantou o controle difuso de constitucionalidade das leis, também conhecido por incidental ou repressivo. Analisando a constituição de 1891, constata-se que não apenas ao Poder Judiciário caberia zelar pela guarda da Constituição, mas também ao Congresso estava incumbida a mesma missão. O artigo 35 prescrevia, in verbis: “Incumbe, outrossim, ao Congresso, mas não privativamente: 1º) velar na guarda da Constituição e das leis e providenciar sobre as necessidades de caráter federal”. Ora, zelar pela Constituição significa manter a soberania do texto constitucional frente às normas inferiores. Nada impediria o Congresso emendar a Constituição Federal trazendo um sistema de controle concentrado das leis semelhante ao atual. Mas, isso não ocorreu na carta de 1891. Ressalta-se, entretanto, ter havido um grande avanço em relação ao regime constitucional anterior, vez que o controle difuso surgia como parâmetro desse importante mecanismo de insurgência face às leis inconstitucionais. A Constituição Paulista de 14.07.1891, em seu artigo 20, caput, prescrevia caber ao Congresso Estadual fazer leis, suspendê-las, interpretá-las e revogálas. No item 12 (art. 54, § 1º da Constituição Estadual Paulista) do mesmo artigo previa atribuição ao Parlamento estadual para “anular as resoluções e atos 3. FERRAZ, Anna. Poder Constituinte do Estado-Membro. 1ª ed. São Paulo: Editora RT, 1979. p. 203

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das municipalidades quando contrários à Constituição Estadual paulista e à Constituição Federal”. Aqui fica evidenciado que, ao menos no Estado de São Paulo, já havia um controle político de constitucionalidade posterior ou repressivo, tanto exercido pelo Poder Legislativo quanto pelo Poder Executivo estadual, surgindo então um embrião do controle de constitucionalidade estadual, mas ainda sem respaldo constitucional. 4 1.3 Constituição Federal de 1934

Até então o controle político de constitucionalidade realizado pelos poderes Executivo e Legislativo preponderava. A partir de 1934, os Estados passaram a prever o controle difuso de constitucionalidade, restando às Assembleias Estaduais o poder de suspender as leis estaduais e municipais já declaradas inconstitucionais pelo Judiciário Estadual. Segundo Anna da Cunha Ferraz, as novéis Constituições Federais fizeram com que as Constituições Estaduais fossem transcrevendo os modelos centrais da União, deixando, aos poucos, de atentarem para a natureza e função dos próprios poderes para criar mecanismos peculiares de defesa da constituição estadual.5 Entre as Constituições de 1934 a 1946 os Estados-membros prosseguiram na formulação de seus próprios sistemas de controle de constitucionalidade: (…) discriminando claramente a natureza do controle, conforme incidisse ele sobre leis e atos estaduais (caso em que o controle jurisdicional, via de exceção, predominava) e sobre leis e atos municipais (quando predominava o controle político direto).6

Nesse período, foi criada a ação direta interventiva, o primeiro mecanismo de controle concentrado de leis. Esse sistema, entretanto, não foi aderido pelas constituições estaduais. De qualquer modo, a partir da Carta Constitucional de 1934 várias inovações foram realizadas. A primeira delas tratava da declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos do Poder Público pelos Tribunais, exigindo que a mesma só obtivesse êxito para a sua aprovação com a concorrência dos votos da maioria absoluta de seus membros. Este princípio foi reiterado em todas as constituições que a sucederam, inclusive no art. 97 da atual Constituição Brasileira. 4. Ibidem, p. 194. 5. FERRAZ, Anna. Op. cit. p. 205. 6. Ibidem, p. 206.

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Cremos que dentre as inovações trazidas pela Carta de 1934, a que mais se destacou foi a competência do Senado Federal para suspender, no todo ou em parte, leis ou atos normativos declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. A importância foi tamanha que tal disposição também acabou sendo repetida pelas demais constituições, exceção feita à Constituição de 1937. Senão vejamos: Art. 91 - Compete ao Senado Federal: 1 – colaborar com a Câmara dos Deputados na elaboração de leis sobre: (...) IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário; Art. 179 - Só por maioria absoluta de votos da totalidade dos seus Juízes, poderão os Tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato do Poder Público.

Outra inserção trazida pela constituição em comento foi a “representação interventiva” conforme o art. 12, que previa a intervenção federal nos Estados mediante provocação do Procurador Geral da República. Também na Constituição de 1934 foi introduzido, mesmo que de forma tímida, o controle de constitucionalidade por via de ação, atribuindose ao Procurador-Geral da República a legitimidade para provocar o exame do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da lei declaratória de intervenção, no caso de violação dos chamados princípios constitucionais sensíveis (art. 12, 2°, cumulado com o artigo 7°, I a - h). Vejamos: Artigo 12 - A União não intervirá em negócios peculiares aos Estados, salvo: (...) V - para assegurar a observância dos princípios constitucionais especificados nas letras a a h , do art. 7º, nº I, e a execução das leis federais; § 2º - Ocorrendo o primeiro caso do nº V, a intervenção só se efetuará depois que a Corte Suprema, mediante provocação do Procurador-Geral da República, tomar conhecimento da lei que a tenha decretado e lhe declarar a constitucionalidade.

O controle jurisdicional por via direta, dito interventivo, introduzido na Constituição Federal de 1934 como pressuposto para a intervenção federal nos Estados (art. 12, §2°), não foi transportado para as Constituições Estaduais, que nele não se inspiraram para criarem modelos semelhantes com vistas à defesa das Constituições Estaduais.

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1.4 Constituição Federal de 1937

A constituição de 1937, conhecida como “Constituição Polaca”, imposta de forma autoritária ao povo brasileiro, manteve, no essencial, o modelo de controle da constitucionalidade inaugurado em 1891. Assim, em relação ao controle de constitucionalidade só houve retrocessos. A começar pela representação interventiva que não foi albergada pela Constituição de 1937, bem como a disposição referente à faculdade de suspensão pelo Senado Federal de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Importante salientar, contudo, que ficou mantida a forma de controle difuso de constitucionalidade, assim como a necessidade do voto da maioria absoluta dos membros do Tribunal ou ato do Chefe do Executivo para a declaração de inconstitucionalidade. Pretendeu-se enfraquecer a supremacia do Poder Judiciário no exercício do controle da constitucionalidade das leis, possibilitando ao Poder Executivo tornar sem efeito a decisão de inconstitucionalidade proferida pelo Tribunal, na hipótese de lei declarada inconstitucional, por iniciativa do Presidente da República, fosse confirmada por pelo menos dois terços de cada uma das casas do Congresso. Anote-se que na época, não havia Congresso, pois este não fora convocado, sendo o seu papel exercício pelo próprio Presidente da República, mediante decreto-lei. Ademais, o Poder Judiciário não podia se pronunciar acerca de questões exclusivamente políticas, conforme artigo 94, in verbis: “Art. 94 - É vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas.” No mais, não há artigos que tratam especificamente sobre o controle de constitucionalidade estadual, todavia, o texto constitucional faculta aos Estadosmembros o exercício de todo e qualquer poder do qual não haja proibição expressa. Vejamos: Artigo 7º - Compete privativamente aos Estados: [...] IV - exercer, em geral, todo e qualquer poder ou direito, que lhes não for negado explícita ou implicitamente por cláusula expressa desta Constituição.

E ainda: Art 10 - Compete concorrentemente à União e aos Estados: [...] V - fiscalizar a aplicação das leis sociais;

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Assim, a própria Constituição estabeleceu como competência concorrente dos Estados e União a fiscalização da aplicação das leis sociais, o que, muito embora se refira à aplicação, pode ser interpretada no sentido de se conferir à União e aos Estados-Membros a possibilidade de controlar difusamente a constitucionalidade das leis. 1.5 Constituição Federal de 1946

No anteprojeto da Constituição de 1946 tentou-se vedar ao Senado Federal a possibilidade de suspensão da execução de leis ou atos normativos declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário. Não obstante, o projeto não prosperou de maneira que o sistema da Carta de 1934 foi mantido. Ademais, o controle difuso de constitucionalidade persistiu, assim como o quorum exigido para que os Tribunais declarassem a inconstitucionalidade de leis. A Constituição de 1946 seguiu e aperfeiçoou os contornos da Constituição de 1934, desprezando a de 1937. Assim, manteve-se a chamada ação direta interventiva (art. 8°, parágrafo único), bem como a competência do Senado Federal para suspender no todo ou em parte lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do STF (art. 64). In verbis: Art. 8º - A intervenção será decretada por lei federal nos casos dos nº s VI e VII do artigo anterior. Parágrafo único - No caso do nº VII, o ato argüido de inconstitucionalidade será submetido pelo Procurador-Geral da República ao exame do Supremo Tribunal Federal, e, se este a declarar, será decretada a intervenção. Art. 64 - Incumbe ao Senado Federal suspender a execução, no todo ou em parte, de lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal.

Tal Constituição não cuidou, a princípio, de qualquer modalidade de controle direto de constitucionalidade, quer de lei federal, quer de lei estadual perante a Constituição Federal, prevalecendo, tão-somente o controle difuso de constitucionalidade na defesa de direitos individuais. Mas, a principal novidade que interessa para esse trabalho foi trazida pela Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965, que inaugurou no Brasil o controle concentrado ou abstrato da constitucionalidade dos atos normativos federais e estaduais, com a criação de representação genérica de inconstitucionalidade (hoje denominada ação direta de inconstitucionalidade por ação).

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Assim, a redação da aliena k do art. 101, I, da Constituição de 1946 foi alterada para acrescentar às competências originárias do Supremo Tribunal Federal a de processar e julgar “a representação contra inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador Geral da República”. Desse modo, essa emenda trouxe duas importantes inovações. Primeiramente, criou a ação genérica de controle de constitucionalidade das leis federais e estaduais, ao introduzir no art. 101, I da constituição a seguinte alínea, in verbis: k. A representação contra a inconstitucionalidade de lei ou ato de natureza normativa, federal ou estadual, encaminhada pelo Procurador Geral da República;

Após, possibilitou a criação, por lei, de ação direta para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato de município, em conflito com a Constituição do Estado, ao introduzir no art. 124, in verbis: Art. 124 (...) XIII – a lei poderá estabelecer processo de competência originária do Tribunal de Justiça, para declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato do Município em conflito com a Constituição do Estado.

Surge aqui o controle concentrado no âmbito estadual. Alerta-se que a priori somente as leis municipais poderiam ser contestadas em sede de controle abstrato face à constituição estadual. Quanto às leis e atos normativos estaduais frente à Constituição Federal não havia ainda qualquer previsão. Mas, desde já, adverte-se que a importante autorização constitucional não durou muito, pois a Carta de 1967 não trouxe o dispositivo constante da emenda 16/65 que autorizava a criação pelos Estados-Membros da representação de inconstitucionalidade, não havendo previsão, portanto, para a instituição de fiscalização de constitucionalidade de leis ou atos normativos municipais em face das constituições estaduais, de competência originária dos tribunais de justiça. A ação direta desprendia-se dos casos de intervenção e permitia que a lei em tese, ou ato normativo, federal ou estadual, fossem impugnados por inconstitucionalidade, genericamente, e não necessariamente no caso concreto. Enquanto a ação interventiva aplicava-se aos casos concretos, a ação direta aplicava-se às leis federais ou estaduais em tese. No mais, o constituinte reformador escolheu pela inexistência de direito autônomo dos Estados para criar sistemas próprios de controle de constitucionalidade da Constituição do

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Estado, ao menos em relação às leis e atos municipais, e por isso mesmo previu tal criação na própria Constituição Federal. Por fim, vê-se que não estabeleceu o constituinte originário um sistema completo de controle de constitucionalidade, abrangente de todas as hipóteses de violação da Constituição Federal ou Estadual, pois deixou sem previsão o controle de lei estadual, frente à Constituição Estadual. A competência do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 101, III, alínea a, para julgar, em recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância por outros tribunais ou juízes “quando a decisão for contrária a dispositivos dessa Constituição ou à letra de tratado ou lei federal”, restou recuperada. Com efeito, a possibilidade de “cassar” a decisão do Supremo Tribunal Federal, mediante voto de dois terços de cada casa, estava afastada. Mantida também a competência do Senado Federal de suspender a execução de lei ou decreto declarado inconstitucionais em decisão definitiva do Supremo Tribunal Federal. Introduzido, portanto, o controle concentrado no Brasil, necessário esclarecer em poucas palavras o significado desse importante mecanismo de garantia da supremacia da constituição. Segundo Canotilho: Chama-se controlo por via principal porque as questões de inconstitucionalidade podem ser levantadas, a título principal, mediante processo constitucional autônomo, junto de um Tribunal (Tribunal Constitucional, Tribunal Supremo) com competência para julgar da desconformidade dos actos – sobretudo normativos – de autoridades públicas. Neste tipo é consentido a certas e determinadas entidades a impugnação de uma norma inconstitucional, independentemente da existência de qualquer controvérsia.7

No controle concentrado não há litígio, não há partes. Há, na verdade, uma ação onde se impugna a constitucionalidade de um ato normativo. Ainda, para Canotilho sobre o controle abstrato: Relacionado com o controlo concentrado e principal, o controlo abstrato significa que a impugnação da constitucionalidade de uma norma é feita independentemente de qualquer litígio concreto. O controlo abastracto de normas não é um processo contraditório de partes; é, sim, um processo que visa sobretudo a “defesa da constituição” e do princípio da constitucionalidade através da eliminação de actos normativos contrários à constituição. Dado que se trata de um processo objectivo, a legitimidade para solicitar este controlo é geralmente reservada a um número restrito de entidades.8 7. CANOTILHO, J. J. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª edição. Editora Almedina, p. 893. 8. Idem.

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De 1946 a 1965, as Constituições federadas mantiveram o mesmo sistema posterior a 1934, em que vigorava, ao lado dos controles políticos, o controle judicial difuso perante a constituição estadual tanto dos atos legislativos estaduais quanto dos municipais. Em suma, a Emenda Constitucional 16, de 26 de novembro de 1965, introduziu, dentre as atribuições do Supremo Tribunal Federal, a competência para processar e julgar originariamente a representação do Procurador-Geral da República, por inconstitucionalidade de lei ou ato normativo federal ou estadual. Desse modo, houve uma extensão do controle direto de constitucionalidade às leis federais, desvinculando o exercício da ação de inconstitucionalidade do processo interventivo. Logo, passou-se a adotar no direito constitucional brasileiro, ao lado do controle difuso, o julgamento da constitucionalidade da norma federal ou estadual, em tese, sem outra finalidade que não a de preservar o ordenamento jurídico da intromissão de leis com ele incompatíveis. 1.6 Constituição Federal de 1967

Não obstante a Constituição de 1967 ter mantido a ação genérica de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo de federal ou estadual frente à Constituição Federal, nada há nesses textos em relação ao controle genérico de lei ou ato estadual ou municipal frente à Constituição Estadual. Todavia, a CF de 1967, com a Emenda Constitucional n. 1 de 1969: (…) criou, ao nível do Estado-membro, a modalidade de ação interventiva e, como prius para a intervenção, a representação e inconstitucionalidade de lei ou ato municipal, com a finalidade de assegurar a observância, pelos municípios, dos princípios da constituição estadual.9

Assim, o direito autônomo dos Estados Federados, por meio do Poder Constituinte Decorrente, permitiu a introdução de sistemas próprios de defesa da constitucionalidade, não encontrando óbice na Constituição de 1967/1969. Tal Constituição se limitou a reproduzir as disposições da Carta Magna de 1946 referentes ao controle de constitucionalidade, omitindo, porém, a disposição que permitia a disciplina do processo de competência originária dos Tribunais de Justiça dos Estados para que os mesmos pudessem declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo municipal contrário à Constituição Estadual. Com a Emenda 1 de 1969 foi introduzida a representação interventiva da lei municipal: 9. FERRAZ, Anna da Cunha. Op. Cit. p. 205.

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Art. 15. A autonomia municipal será assegurada: (...) § 3º A intervenção nos municípios será regulada na Constituição do Estado, sòmente podendo ocorrer quando: (...) d) o Tribunal de Justiça do Estado der provimento a representação formulada pelo Chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios indicados não Constituição estadual, bem como para prover à execução de lei ou de ordem ou decisão judiciária, limitando-se o decreto do Governador a suspender o ato impugnado, se essa medida bastar ao restabelecimento da normalidade;

Aqui a controvérsia assumiu maior relevância, em face do silêncio da Carta Magna, a qual contemplou apenas a representação do chefe do Ministério Público local para assegurar a observância dos princípios indicados na Constituição Estadual, bem como para prover a execução de lei, como já mencionado. Sendo assim, a Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo consagrou na Constituição de 1967 uma modalidade genérica de controle abstrato de constitucionalidade, de iniciativa do Procurador Geral do Estado, segundo concluímos da leitura do parágrafo único do artigo 51 da Constituição Estadual Paulista, in verbis: Parágrafo Único. Compete ao Procurador-Geral do Estado, além de outras atribuições conferidas por lei, representar ao Tribunal competente sabre a inconstitucionalidade de leis ou atos estaduais e municipais, por determinação do Governador ou solicitação do Prefeito ou Presidente de Câmara interessado, respectivamente.

A Constituição de 1967foi omissa quanto ao controle direto genérico de leis e atos estaduais e municipais contestados frente a constituição estadual, o que parecia indicar o reconhecimento que essas questões seriam de plena autonomia auto-organizatória de cada Estado-membro. A Emenda Constitucional n. 7/77 atribuiu ao Supremo Tribunal Federal a competência para interpretar, com efeito vinculante, ato normativo federal ou estadual, outorgando ao Procurador Geral da República a legitimidade para propor essa representação (art. 119, I, e). Tal emenda previu também a possibilidade de concessão de medida cautelar em sede de representação de inconstitucionalidade (art. 119, I). 1.7 Constituição Federal de 1988

O controle de constitucionalidade dos Estados-membros engloba o controle difuso-incidental e o controle concentrado-principal.

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No controle difuso, via de exceção, tanto os juízes como os tribunais estaduais podem examinar, à luz de um caso concreto, a inconstitucionalidade de qualquer ato ou lei. Por outro lado, no controle concentrado-principal, somente os tribunais estaduais podem avaliar, abstratamente, a validade de uma lei ou ato normativo municipal ou estadual em face de qualquer norma da Constituição estadual, quando do julgamento das ações diretas. Cabe aos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal, exclusivamente, processar e julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição Estadual; a ação direta de inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma da Constituição Estadual; a ação direta de inconstitucionalidade interventiva. A competência para julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual é tanto do Supremo Tribunal Federal como dos Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito federal. Deve-se observar com rigor, que na hipótese da contestação ser em face da constituição federal a competência é exclusiva do STF; quando em face da Constituição Estadual, a competência será dos Tribunais de Justiça. Não há consenso doutrinário acerca da questão que envolve o controle concentrado estadual em se tratando de norma da Constituição Estadual que repete norma da Constituição Federal. Referindo à polêmica acerca da competência para o julgamento da ação, aponta Dirley da Cunha Junior10. Para a solução da vexata cumpre verificar se a norma da Constituição do Estado cuida de “norma de reprodução” ou de norma de imitação”, na criativa distinção que faz Raul Machado Horta. De feito, se tratar de norma de reprodução, isto é, aquela que repete na Constituição Estadual norma da Constituição Federal que o Estado está obrigado a observar, independentemente de sua previsão ou não na Constituição Estadual (Ex.: arts 34, VII; 35; 145 e 150 da CF/88), a solução adequada seria aquela que apontasse para a competência do STF para julgar a ação direta de inconstitucionalidade de lei ou ato estadual que a violasse, porquanto se trata de genuína norma constitucional federal. Porém, se cuidar de norma de imitação, ou seja, aquela que o Estado repete em sua Constituição com teor idêntico à norma da Constituição Federal, o que o faz no gozo de sua autonomia política, pois poderia, inclusive, não observá-la, a resolução apropriada seria a que definisse a competência dos Tribunais de Justiça, uma vez que a norma repetida se trata de autêntica norma constitucional estadual. 10. CUNHA JUNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. Editora Podivm. 3ª edição. 2009, p. 480.

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O STF adotou solução diversa, admitindo a competência dos tribunais de justiça em ambas as hipóteses, desde que o parâmetro do controle seja a Constituição do Estado, porém com a seguinte diferenciação: em relação às normas de reprodução, da decisão dos Tribunais de Justiça cabe recurso extraordinário para exame pelo Supremo Tribunal Federal, já de referência às normas de imitação, a decisão dos Tribunais de Justiça, a decisão dos Tribunais de Justiça é irrecorrível. Com a abertura da democracia brasileira, veio a carta política de 1988, trazendo profundas alterações no ordenamento jurídico pátrio, especialmente no controle de constitucionalidade de leis e atos normativos. Precisamente, autorizando o exercício do poder decorrente e a fiscalização da constitucionalidade das leis ou atos normativos municipais e estaduais em face da Constituição Estadual, os Estados deverão nos termos do art. 125 e parágrafos da carta vigente: Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta Constituição. § 1º A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça. § 2º Cabe aos Estados a instituição de representação de inconstitucionalidade de leis ou atos normativos estaduais ou municipais em face da Constituição Estadual, vedada a atribuição da legitimação para agir a um único órgão.

O Distrito Federal também possui competência para fiscalizar a constitucionalidade nos moldes dos Estados-Membros. Conforme BULOS11: “Tendo em vista o disposto no art. 32, par. 1º, da Constituição da República, o Distrito Federal exerce competências legislativas reservadas aos Estados e Municípios. Com base nisso, o Supremo Tribunal Federal entendeu ser possível o controle concentrado de lei ou ato normativo distrital em face do Texto Maior.” Em regra, as Constituições Estaduais, trazem como legitimados a proporem a ação direta de inconstitucionalidade no âmbito estadual, o Governador do Estado, o Procurador Geral de Justiça, o Prefeito, a Assembléia Legislativa, a Câmara Municipal, o Conselho Seccional da OAB, partido político legalmente instituído e entidade de classe com base no estado e entidade sindical com base no estado (art. 118, CE de Minas Gerais). Note-se que a Constituição Federal não especificou quais são os legitimados para a propositura da Ação Direta de Inconstitucionalidade de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição Estadual, 11. BULOS, U.L. Constituição Federal Anotada. 5ª edição. Cidade: Editora Saraiva. 2003. p.1077.

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vedando a instituição de um único legitimado. Então, pelo princípio da simetria, os Estados devem observância aos princípios estabelecidos na Constituição Federal, procurando incluir dentro de seu sistema normativo a mais precisa obediência sob pena de inconstitucionalidade material frente ao texto maior. Para Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior: O princípio da simetria, segundo consolidada formulação jurisprudencial, determina que os princípios magnos e os padrões estruturantes do Estado, segundo a disciplina da Constituição Federal, sejam tanto quanto possível objeto de reprodução nos textos das Constituições Estaduais. 12

Entretanto, a simples previsão na Carta de 88, autorizando os Estados a exercerem a fiscalização abstrata trouxe inúmeras incertezas. A principal diz respeito ao confronto de leis estaduais ou municipais com preceitos da Constituição estadual que reproduzem normas da Constituição Federal. É preciso diferenciar normas de reprodução obrigatória e normas de imitação. Se o constituinte estadual está obrigado a incluir no corpo da constituição do Estado-Membro norma da Constituição Federal, estamos falando de normas de reprodução obrigatória. Se, ao contrário, o constituinte estadual está diante de normas de reprodução facultativa, o caso é de normas de imitação. CONSIDERAÇÕES FINAIS

De início foi criticada a forma de repetição obrigatória de certas normas ditas centrais, até porque estas já integram, por si só, o ordenamento jurídico dos Estados-membros, independente de repetição. Caberia ao Poder Constituinte Decorrente apenas complementar a obra do Constituinte Federal naquilo que julgar pertinente, já que essa prática de simplesmente repetir as disposições da CF retira dos Estados-Membros a liberdade que a própria Constituição lhes conferiu. O próprio artigo 11 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da CF atual não ordena a repetição obrigatória dos princípios constitucionais pelas Constituições Estaduais, mas apenas a sua observância. A CF de 1891, por sua vez, inovou trazendo o controle difuso de constitucionalidade. Fez-se destaque à Constituição Paulista de 14.07.1891, que em seu artigo 20, caput, prescrevia caber ao Congresso Estadual fazer leis, suspendê-las, interpretá-las e revogá-las. Nota-se aí um controle político de 12. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo. Saraiva, 2002, p. 14.

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constitucionalidade posterior ou repressivo exercido pelo Legislativo quanto pelo Executivo estadual, excluindo-se o Poder Judiciário. A partir da CF de 1934, os Estados passaram a prever o controle difuso de constitucionalidade, restando às assembléias estaduais o poder de suspender as leis estaduais e municipais já declaradas inconstitucionais pelo Judiciário Estadual. A grande inovação tratava da declaração de inconstitucionalidade de leis ou atos do Poder Público pelos Tribunais, exigindo que a mesma só obtivesse êxito para a sua aprovação com a obtenção dos votos da maioria absoluta de seus membros, bem como a competência do Senado Federal para suspender, no todo ou em parte, leis ou atos normativos declarados inconstitucionais pelo Judiciário. Com a Constituição de 1934 foi introduzida, mesmo que de forma tímida, o controle de constitucionalidade por via de ação, atribuindo-se ao ProcuradorGeral da República a legitimidade para provocar o exame do Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade da lei declaratória de intervenção, no caso de violação dos chamados princípios constitucionais sensíveis. O controle jurisdicional por via direta, dito interventivo, introduzido na Constituição Federal de 1934 como pressuposto para a intervenção federal nos Estados (art. 12, §2°) não encontrou eco nas Constituições Estaduais. A CF de 1937 foi retrógrada em relação ao tema do controle de constitucionalidade. A começar pela representação interventiva que não foi albergada, bem como a faculdade de suspensão pelo Senado Federal de lei declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal. Não há artigos que tratam especificamente sobre o controle de constitucionalidade estadual, todavia, o texto constitucional faculta aos Estados-Membros o exercício de todo e qualquer poder do qual não haja proibição expressa, o que permite interpretação no sentido de se conferir à União e aos Estados-Membros a possibilidade de controlar difusamente a constitucionalidade das leis. A Constituição de 1946 seguiu e aperfeiçoou os contornos da Constituição de 1934, desprezando a de 1937. Assim, manteve a chamada ação direta interventiva (art. 8°, parágrafo único), bem como a competência do Senado para suspender no todo ou em parte lei ou decreto declarados inconstitucionais por decisão definitiva do STF (art. 64). De qualquer modo, a principal novidade foi trazida pela Emenda Constitucional n. 16, de 26 de novembro de 1965, que inaugurou no Brasil o controle concentrado ou abstrato da constitucionalidade dos atos normativos federais e estaduais, com a criação de representação genérica de inconstitucionalidade (redação da aliena k, do art. 101, I, da Constituição de 1946). Possibilitou ainda a criação, por lei, de ação direta para a declaração de

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inconstitucionalidade de lei ou ato de município, em conflito com a Constituição do Estado, ao introduzir no art. 124, inciso XIII. Surge aqui expressamente o controle concentrado de constitucionalidade no âmbito estadual. Não obstante a Constituição de 1967, conjuntamente à EC 1969, ter mantido a ação genérica de declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo de federal ou estadual frente à Constituição Federal, nada há nesses textos em relação ao controle genérico de lei ou ato estadual ou municipal frente à Constituição Estadual. Assim, o direito autônomo dos Estados Federados, por meio do Poder Constituinte Decorrente, permitiu a introdução de sistemas próprios de defesa da constitucionalidade, pois não encontravam óbice na Constituição de 1967/1969. A Constituição Federal de 1988 previu, com exclusividade, aos Tribunais de Justiça e do Distrito Federal, competência para processar e julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) de lei ou ato normativo estadual ou municipal em face da Constituição Estadual; a Ação Direta de Inconstitucionalidade por omissão (ADI por omissão) de medida para tornar efetiva norma da Constituição Estadual; a Ação Direta de Inconstitucionalidade interventiva (ADI interventiva), visando à intervenção dos Estados nos seus Municípios para assegurar a observância dos princípios constitucionais sensíveis indicados nas respectivas Constituições estaduais. Além disso, trouxe a possibilidade dos Estados instituírem no âmbito de sua competência a Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) de lei ou ato normativo estadual questionado em face da Constituição Estadual e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) decorrente da Constituição Estadual. Assim, constata-se que a Constituição de 1988 aperfeiçoou o sistema judicial de controle de constitucionalidade, mantendo a combinação do controle difuso e concentrado. Com a nova carta magna houve um aumento de modelos de controle concentrado-principal da constitucionalidade, conforme adrede comentado. REFERÊNCIAS

ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional. 6ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. BARROSO, Luís Roberto. Constituição da República Federativa do Brasil Anotada e Legislação Complementar. 2ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1999.

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BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. 1ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 1998. BUENO, José Antonio Pimenta. Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Império. Rio de Janeiro. Typografia Imp. E Const. De J. Villeneuve e C. Rua do Ouvidor, 65. Ano 1857. BULOS, Uadi Lamego. Constituição Federal Anotada. 5ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2003. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6ª ed. Coimbra: Livraria Almedina, 1998. CLÈVE, Clèmerson Merlin. A Fiscalização Abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. CUNHA JUNIOR, Dirley. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. Salvador: Editora Podivm, 2009. DUTRA, Carlos Roberto de Alckmin. O Controle Estadual de Constitucionalidade de Leis e Atos Normativos. 1ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. FERRAZ, Anna. Poder Constituinte do Estado-Membro. 1ª ed. São Paulo: Editora RT, 1979. HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3ª ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2002. MENDES, Gilmar Ferreira Mendes. O controle abstrato de constitucionalidade do direito estadual e do direito municipal. Revista de Direito Público, Brasília, v. 2, n.5, p. 52-112, jul-ago-set/2004. SILVA, Almiro do Couto. Ação Direta de Inconstitucionalidade de Lei Estadual ou Municipal frente à Constituição Estadual. Repensando o Cabimento do Recurso Extraordinário. Revista da AJURIS, v. 34, n. 107, p. 9-17, set/2007. SLAIBI FILHO, Nagib. Ação Declaratória de Constitucionalidade. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994.

CAPÍTULO XVI

o DIREIto CoNStItuCIoNal À RaZoÁVEl DuRaÇÃo Do pRoCESSo

Willian Cleber Zolandeck Mestrando em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná. Especialista em Direito Civil e Empresarial pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Professor da Faculdade Metropolitana de Curitiba. Advogado.

INTRODUÇÃO

A prestação da atividade jurisdicional pelo Estado sempre gerou reflexões e questionamentos, em especial no que se refere à adequação e justiça dos pronunciamentos judiciais. Ocorre que, nos últimos anos, tem-se notado que a justiça da decisão judicial está ligada, muitas vezes, ao momento em que ela é proferida. Isto significa que a prestação da tutela jurisdicional não basta mais ser adequada e justa, devendo-se, também, realizar-se de forma célere. No Brasil, especialmente a tempestividade da justiça tem sido objeto de preocupação pelos agentes estatais, tendo em vista o verdadeiro caos neste aspecto verificado no Poder Judiciário, pelos órgãos de controle, sobretudo o Conselho Nacional de Justiça, criado pela Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004. Neste sentido, partindo-se da premissa de que a jurisdição é prestada, em grande parte, pelo monopólio estatal, deve-se buscar a prestação de uma tutela adequada, justa e célere, com o intuito de garantir verdadeiramente o acesso à justiça, como prevê o texto constitucional.

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Destaque-se, também, que o prejuízo verificado na intempestividade da justiça é ainda maior em relação aos carentes, que tem menor condição de resistência ao tempo de duração do processo. Assim, entendendo que, em determinadas situações, a demora na entrega da prestação jurisdicional acarreta em inquestionável exclusão social, necessário o cumprimento pelo Estado do preceito constitucional da razoável duração do processo (art. 5º, LXXVIII), sob pena da intempestividade representar a própria denegação da justiça. Neste contexto, em se caracterizando o atraso injustificado do processo, configura-se a deficiência da prestação jurisdicional, que legitima a propositura de ação de reparação de danos contra o Estado. Para tanto, impõe-se a caracterização de violação ao novo preceito constitucional, que garante o direito à razoável duração do processo. Além disso, imprescindível a demonstração de determinados pressupostos, como o dano experimentado pelo jurisdicionado e o nexo causal entre este e a demora sem justo motivo na entrega da prestação jurisdicional. 1 JURISDIÇÃO

O Estado desenvolve suas atividades fundamentais através dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, que, embora independentes, são harmônicos entre si (artigo 2º, da Constituição Federal de 1988), constituindo, na realidade, um todo indissociável. As funções típicas de cada um são conhecidas, merecendo aprofundamento, como base para a compreensão deste trabalho, no papel do Judiciário, revelado, sobretudo, pelo conhecimento do conceito e das principais características da jurisdição. 1.1 CONCEITO

Para Vicente Greco Filho a jurisdição pode ser entendida como sendo um “poder, função e atividade de aplicar o direito a um fato concreto, pelos órgãos públicos destinados para tal, obtendo-se a justa composição da lide”1. Neste sentido, a jurisdição é poder porque representa manifestação de império do Estado perante os particulares; é também função porque tem por objetivo dar cumprimento a ordem jurídica debatida na lide; e, ainda, é atividade, 1. GRECO FILHO, Vicente. Direito processual civil, volume 1. 19. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 169.

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pela presença de manifestações e atos externos consistentes na construção de obrigações através de um título. Para possibilitar o correto exercício da jurisdição, esta apresenta alguns princípios fundamentais, como a inércia, a indeclinabilidade, a inevitabilidade, a indelegabilidade, além das características da substitutividade, consistente na substituição da vontade das partes pelo Estado, e da definitividade, que diz respeito ao caráter imutável da decisão judicial. Com efeito, embora existam algumas estruturas especializadas, de ordem federal ou estadual, a justiça é única e nacional, representando verdadeiro poder estatal. 1.2 ESPÉCIE DE SERVIÇO PÚBLICO

Compreendida a noção de jurisdição, deve-se, então, analisá-la sob a perspectiva do conceito de serviço público, para entender a relação próxima existente entre os institutos, também imprescindível para o entendimento deste estudo. Maria Sylvia Zanella Di Pietro conceitua o serviço público como sendo “toda atividade material que a lei atribui ao Estado para que exerça diretamente ou por meio de seus delegados, com o objetivo de satisfazer concretamente as atividades coletivas, sob regime jurídico total ou parcialmente público”2. A concepção de serviço público é, portanto, composta por dois elementos essenciais: o substrato material que se caracteriza pela prestação de utilidade ou comodidade aos administrados e o formal indispensável, consistente em um regime específico de Direito Público3. Considerando estas premissas, verifica-se a presença de tais elementos também na atividade jurisdicional. A utilidade é representada pela resolução de conflitos existentes na sociedade através da prestação do serviço aos cidadãos; já o regime jurídico é, logicamente, de direito público, eis que prestado através de regras eminentemente públicas. Na doutrina pátria, resta pacificado o entendimento de que o serviço judiciário é espécie de serviço público, posto que presentes os elementos que o caracterizam. Como diz Juary C. Silva, o serviço judiciário “outra coisa não é senão um serviço público monopolizado pelo Estado, que não o delega aos particulares”4. 2. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 8. ed. São Paulo: Atlas, 1997. p. 80. 3. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Curso de direito constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. p. 425. 4. SILVA, Juary C. A responsabilidade do Estado por atos judiciários e legislativos: teoria da responsabilidade unitária do Poder Público. São Paulo: Saraiva, 1985. p. 118.

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No mesmo sentido é o posicionamento de José Cretella Junior ao afirmar que “O serviço judiciário é, antes de tudo, serviço público (...). O ato judicial é, antes de tudo, um ato público, ato de pessoa que exerce o serviço público judiciário”5. José da Silva Pacheco, adotando a mesma posição, frisa que “tendo sido usada a expressão ‘serviço público’, há que concebê-la como gênero, de que serviço administrativo seria mera espécie, compreendendo a atividade ou função jurisdicional e também a legislativa, e não somente a administrativa do Poder Executivo”6. Sobre o tema, relevante a contribuição de Rita de Cássia Zuffo Gregório: Evidencia-se, por conseguinte, que o exercício da função jurisdicional consiste na prestação de serviço público de fundamental importância para a sociedade e o acesso à justiça além de ser um direito fundamental do cidadão, consubstancia-se ainda em um dever do Estado, consagrado no princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional7.

Inquestionável, portanto, a caracterização do serviço judiciário como espécie de serviço público. 1.3 MONOPÓLIO

Como se pôde observar, sobretudo pelo conceito e a natureza pública, resta evidenciado que a jurisdição é exercida em grande parte através do monopólio pelo Estado, destacando-se, assim, o princípio da indeclinabilidade, que, segundo Vicente Greco Filho, consiste em dizer que: as atribuições do Judiciário somente podem ser exercidas, segundo a discriminação constitucional, pelos órgãos do respectivo poder, por meio de seus membros legalmente investidos, sendo proibida a abdicação dessas funções em favor de órgãos legislativos ou executivos. A jurisdição apresenta, também, uma indelegabilidade interna, isto é, cada órgão tem suas funções, devendo exercê-las segundo as normas de processo, na oportunidade correta, não se permitindo a atribuição de funções de um para outro órgão. 8

Isto ocorreu porque o Estado, em determinado momento histórico, avocou para si o monopólio da jurisdição, proibindo os particulares de defender 5. CRETELLA JÚNIOR, José. A responsabilidade do Estado por atos judiciais. São Paulo: Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 13-22. 6. RT 635:103. 7. GREGÓRIO, Rita de Cássia Zuffo. A responsabilidade civil do Estado-juiz. 2009. Dissertação. (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo. Disponível em: < http://www.teses. usp.br >. Acesso em 25 jan. 2012. 8. GRECO FILHO, Vicente, op cit., p. 169.

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seu direito pelas próprias mãos. A partir de então, os conflitos existentes na sociedade somente encontrarão solução com a atuação efetiva do Estado, através da função jurisdicional, que é exercida pelo Poder Judiciário. 1.4 ARBITRAGEM

Todavia, embora o monopólio da jurisdição seja uma característica presente em nosso Estado de Direito, a promulgação da Lei n. 9.307, no ano de 1996, acarretou, de certa maneira, na relativização desta pré-compreensão. Trata-se de lei que permite a resolução de conflitos por particulares, porém, através de livre escolha das partes, e somente em casos que tratem de direitos patrimoniais disponíveis. Em outras palavras, consiste em exceção ao monopólio da jurisdição, pois permite que particulares julguem as controvérsias sociais, inclusive, possuindo a decisão arbitral o mesmo efeito da sentença judicial. Tratando do assunto, José Rogério Cruz e Tucci esclarece: Infere-se, de logo, que o legislador atribuiu natureza publicística ao juízo arbitral, consubstanciado em equivalente jurisdicional, por opção das partes. A despeito de ser instituído por meio de um instrumento negocial de cunho privado (convenção arbitral), o desenrolar do processo de arbitragem é tão jurisdicional quanto aquele que tramita perante a justiça estatal9.

Embora exista esta possibilidade, a jurisdição estatal ainda prevalece em nosso país, sendo o Poder Judiciário responsável pela solução da grande maioria dos conflitos sociais. Além disso, considerando a limitação da matéria, determinadas situações emergenciais que envolvem direitos indisponíveis (como a saúde, a vida e a integridade física), e demandam uma solução célere, apenas poderão encontrar resposta no Poder Judiciário. 2 ACESSO À JUSTIÇA

O artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988 estabelece que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se de princípio fundamental que pressupõe a possibilidade de que todos, indistintamente, possam levar as suas demandas ao Poder Judiciário, desde que obedecidas as regras estabelecidas pela legislação processual para 9. TUCCI, José Rogério Cruz e. Garantias constitucionais do processo e eficácia da sentença arbitral. Arbitragem e Poder Público. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 153.

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o exercício do direito, obrigando-se, por conseguinte, o poder estatal a uma resposta ao cidadão. Neste sentido, como se procura demonstrar, esta resposta deve apresentar algumas condições de eficácia imprescindíveis, ou seja, não é uma simples resposta, mas um pronunciamento adequado, justo e tempestivo. Esta é a concepção de Eduardo Cambi: O art. 5º, XXXV, da CF não assegura apenas o direito de acesso à justiça. De nada adiantaria possibilitar o ingresso à justiça se o processo judicial não garantisse meios e resultados. Por isso, especialmente após o acréscimo, pela Emenda Constitucional 45/2004, do inciso LXXVIII ao art. 5º da CF, a exemplo da interpretação do art. 6º, n. 1, da Convenção Européia dos Direitos do Homem e do Cidadão, o inciso XXXV da CF deve ser interpretado como um direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, célere e efetiva10.

Diante destas constatações, evidencia-se uma relação cada vez mais próxima do processo com o texto constitucional, caminhando aquele de acordo com a orientação deste. Vários são os exemplos que corroboram com esta linha de pensamento, em especial algumas previsões do artigo 5º, da Constituição Federal de 1988 (XXXV – inafastabilidade do controle judicial, LIV – devido processo legal, XXXVII e LIII – juiz natural, entre outras). Portanto, como esclarece Sandro Gilbert Martins “é inegável (...) que o direito processual civil, armado com todo esse arsenal de garantias, passou a ter papel fundamental para a realização e manutenção da vida democrática”11. É o processo como instrumento necessário à democracia. Neste passo, relevante a contribuição de Carla Evelise Justino Hendges, ao observar que: O direito de acesso à justiça somente se concretiza mediante garantia de duração razoável do processo, com pronta e eficaz resposta às lides postas, na forma preconizada pela Emenda Constitucional nº 45. A demora no processo configura ofensa ao princípio do acesso à justiça, ou até denegação da justiça. 12

Mesmo porque, nas palavras de José Roberto dos Santos Bedaque “a solução dos litígios pela via jurisdicional não pode ser morosa, a ponto de tornar-se praticamente inútil para quem necessita e tem direito à tutela”13. 10. CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo e neoprocessualismo: direitos fundamentais, políticas públicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 219. 11. MARTINS, Sandro Gilbert. A defesa do executado por meio de ações autônomas: defesa heterotópica. 2. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 25. 12. HENDGES, Carla Evelise Justino. A responsabilidade civil do Estado pela demora na prestação jurisdicional. Revista da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (AJUFERGS), Porto Alegre, n. 05, 2008. Disponível em: < http://www.ajufergs.org.br/ > Acesso em: 10 maio 2012. 13. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Efetividade do processo e técnica processual. São Paulo: Malheiros,

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2.1 INSTRUMENTALIDADE DO PROCESSO

Nesta linha de raciocínio, a concepção atual do processo se vincula à instrumentalidade, ou seja, o processo como instrumento para a realização do direito material, relativizando-se o binômio direito e processo pensado por Chiovenda. Esta relativização passa pelo filtro constitucional onde estão alocados os grandes temas do direito processual, como o devido processo legal, o contraditório, a ampla defesa, o juiz natural, o princípio da inafastabilidade da jurisdição, o princípio da motivação das decisões judiciais e, agora, de forma inovadora, o princípio da razoável duração do processo, prova maior de que temos uma Constituição dirigente para o processo. A noção do processo como instrumento para a realização do direito substancial é entendida por Cândido Rangel Dinamarco como sendo um: terceiro momento metodológico do direito processual, caracterizado pela consciência de instrumentalidade como importantíssimo pólo de irradiação de ideias e coordenador dos diversos institutos, princípios e soluções. O processualista sensível aos grandes problemas jurídicos sociais e políticos do seu tempo e interessado em obter soluções adequadas sabe que agora os conceitos inerentes à sua ciência já chegaram a níveis mais do que satisfatórios e não se justifica mais a clássica postura metafísica consistente nas investigações conceituais destituídas de endereçamento teleológico. 14

Em relação ao tema, Eduardo Cambi destaca: Incorpora-se, pois, a noção de efetividade do mecanismo processual, antes reservada à sociologia, passando a ser estudada pela dogmática jurídica. O direito processual jamais poderá impedir a realização do direito substancial, sendo que todo obstáculo, presente na lei processual, deve ser analisado à luz do art. 5º, XXXV, da CF15.

Representa, portanto, algo posto à disposição dos cidadãos com o objetivo de torná-los mais felizes (ou menos infelizes), através da eliminação do conflito social, com uma justa decisão16. Com efeito, o direito fundamental de acesso à justiça não se limita a possibilitar a provocação do Judiciário para a tutela do direito, mas envolve também e, sobretudo, uma resposta adequada ao cidadão. Resposta esta, que, em certas situações, apenas será adequada se for célere. Sobre isso, pertinente a expressão de Kazuo Watanabe ao defender o direito à ordem jurídica justa17. 14. 15. 16. 17.

2006. p. 165. DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 20. CAMBI, Eduardo, op cit., p. 221. DINAMARCO, Cândido Rangel, op cit., p. 304. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e a sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pellegrini e DINAMARCO,

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Luiz Guilherme Marinoni, em outras palavras, destaca o direito de: acesso a um processo justo, a garantia de acesso a uma justiça imparcial, que não só possibilite a participação efetiva e adequada das partes no processo jurisdicional, mas que também permita a efetividade da tutela dos direitos, consideradas as diferentes posições sociais e as específicas situações de direito substancial18.

Assim, o direito fundamental de acesso à justiça tem ligação íntima e inafastável com a efetividade do processo. 2.2 EFETIVIDADE DO PROCESSO

A efetividade do processo, enquanto instrumento de realização da justiça, é algo que preocupa a doutrina moderna, sobretudo pelo risco de ineficácia da tutela jurisdicional. Como adverte José Carlos Barbosa Moreira “toma-se consciência cada vez mais clara da função instrumental do processo e da necessidade de fazê-lo desempenhar de maneira efetiva o papel que lhe toca”19. Desse modo, o ordenamento processual deve atender de forma completa e efetiva o pleito levado ao Judiciário. Verifica-se, então, que a noção de efetividade se liga ao resultado do pronunciamento judicial, ou seja, aos efeitos práticos necessários para a tutela dos direitos subjetivos discutidos na demanda. Luiz Guilherme Marinoni observa a necessidade das legislações modernas “construir procedimentos que tutelem de forma efetiva, adequada e tempestiva os direitos”20. Desta concepção, constata-se que o papel do processo, como instrumento, consiste na prestação de uma tutela jurisdicional adequada, efetiva e justa. Nesta linha de raciocínio, Sandro Gilbert Martins observa: Sendo a missão do processo a solução dos conflitos sociais, proporcionando paz e harmonia aos indivíduos, deve estar aparelhado com normas capazes para não somente se limitar aos âmbitos das simples declarações, mas também traduzir providências práticas que, de forma efetiva para cada caso concreto, possibilitem a satisfação do direito21. Cândido Rangel (coords.). Participação e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998. p. 128. 18. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 28. 19. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tendências contemporâneas do direito processual civil. In: Temas de direito processual. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1984. p. 03. 20. MARINONI, Luiz Guilherme. Tutela antecipatória, julgamento antecipado e execução imediata da sentença. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 20. 21. MARTINS, Sandro Gilbert, op cit., p. 26.

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Esta providência prática, imprescindível para a satisfação do direito, em certas situações, encontra-se intimamente ligada a tempestividade da manifestação judicial. Em outras palavras, a noção de efetividade do processo envolve também a necessidade da prestação de uma tutela jurisdicional célere, capaz de proporcionar ao indivíduo a satisfação daquilo que levou à jurisdição estatal. Como entende José Rogério Cruz e Tucci, ao destacar que “ao lado da efetividade do resultado que deve conotá-la, imperioso é também que a decisão judicial seja tempestiva”22.

O mesmo entendimento de Luiz Guilherme Marinoni, que ensina “Mas, não há como esquecer, quando se pensa no direito à efetividade em sentido lato, de que a tutela jurisdicional deve ser tempestiva e, em alguns casos, ter a possibilidade de ser preventiva”23. Assim, o pronunciamento judicial somente cumprirá com sua missão precípua se promover a satisfação do direito de modo efetivo e adequado, o que envolve, inevitavelmente, uma tutela justa e célere. 3 RAZOÁVEL DURAÇÃO DO PROCESSO

Como se pôde perceber a duração do processo envolve a própria noção de efetividade processual. Por isso, a tempestividade da jurisdição tem sido, nos últimos anos, objeto de discussão na doutrina moderna. No Brasil, estes questionamentos têm crescido consideravelmente após a constatação pelos órgãos de controle, sobretudo o Conselho Nacional de Justiça, de que a justiça brasileira é lenta. Lentidão que tem acarretado imensuráveis prejuízos aos cidadãos, que, por vezes, são verdadeiramente esquecidos pela justiça. 3.1 DIREITO FUNDAMENTAL À TEMPESTIVIDADE

Embora a obrigatoriedade de uma tutela eficaz fosse uma exigência já prevista no texto normativo constitucional (art. 37), que exige eficiência dos serviços públicos em geral, houve recente alteração normativa, que estabeleceu de modo expresso o direito fundamental à tempestividade da tutela jurisdicional. 22. TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 64. 23. MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais. Disponível em: < http://marinoni.adv.br/>. Acesso em: 07 jul. 2011. p. 09.

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A Emenda Constitucional n. 45, de 30 de dezembro de 2004, inovou ao garantir a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade da tramitação: Art. 5º (...) - LXXVIII a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

A recente previsão constitucional se fundamenta na morosidade da entrega da prestação jurisdicional ao indivíduo, que se mostra uma circunstância constante no Judiciário brasileiro. A normativa constitucional busca alcançar a melhora efetiva da prestação jurisdicional, que, por vezes, mostra-se ineficaz, não somente pelos vícios inerentes à jurisdição propriamente dita, mas sim e, sobretudo, pela demora na entrega do resultado útil ao jurisdicionado. Sobre a correta interpretação do novo preceito, Rejane Soares Hote frisa que: Transparece o referido dispositivo constitucional o que, já há tempos, os melhores estudiosos do direito defendiam, isto é, garantir apenas livre e irrestrito acesso ao Judiciário não é suficiente. É de salutar importância que a entrega da tutela jurisdicional seja feita em tempo razoável e amparada pelas garantias fundamentais do processo, de forma que seja possível ao jurisdicionado ter assegurado de forma efetiva o seu direito, dentro de um lapso de tempo razoável24.

A mesma concepção tem Cândido Rangel Dinamarco, ao defender o direito ao processo justo e efetivo, e à justiça de resultados: o direito moderno não se satisfaz com a garantia da ação como tal e por isso é que procura extrair da formal garantia desta algo de substancial e mais profundo. O que importa não é oferecer ingresso em juízo, ou mesmo julgamento de mérito. Indispensável é que, além de reduzir resíduos de conflitos não jurisdicionalizáveis, possa o sistema processual oferecer aos litigantes resultados justos e efetivos, capazes de reverter situações injustas. Tal é a idéia de efetividade da tutela jurisdicional, coincidente com a plenitude do acesso à justiça e a do processo civil de resultados25.

Por outro lado, não há dúvida de que a demora da prestação da tutela jurisdicional pode acarretar em prejuízos irreparáveis, e ainda mais graves do que aqueles decorrentes do mérito da discussão judicial. Sobre o problema da demora do processo, Gelson Amaro de Souza também demonstra preocupação ao observar que “Nada mais constrangedor e até mesmo causador de sofrimento do que a indecisão criada por situações 24. HOTE, Rejane Soares. A garantia da razoável duração do processo como direito fundamental do indivíduo. Revista da Faculdade de Direito de Campos, Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, n. 10, 2007. 25. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 4. ed., São Paulo: Malheiros, 2000, I, t.2, p. 798.

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litigiosas, enquanto a lide não é resolvida. Traumática como se sabe, é a demora no provimento jurisdicional final”26.

José Rogério Cruz e Tucci, igualmente, ressalta:

O processo é o instrumento destinado à atuação da vontade da lei, devendo, na medida do possível, desenvolver-se, sob a vertente extrínseca, mediante um procedimento célere, a fim de que a tutela jurisdicional emerja realmente oportuna e efetiva. 27

Portanto, a razoável duração do processo passou a ser um direito fundamental do cidadão que provoca a tutela jurisdicional. Tutela esta, ressaltese novamente, que é exercida, em grande, de forma monopolizada pelo Estado, com exceção do juízo arbitral em algumas situações específicas. Ademais, oportuno salientar que a referida norma tem eficácia imediata, não tendo caráter meramente programático, como se poderia imaginar. Em relação à eficácia do novo preceito constitucional, o ensinamento de Humberto Theodoro Júnior é relevante: A garantia constitucional de duração razoável para a conclusão dos processos não corresponde a uma norma programática, mas a um preceito implantado com definitividade e eficácia plena e imediata, como, aliás, se passa com todas as garantias e direitos fundamentais (CF, art. 5º, §1º). 28

A mesma concepção é adotada por Vicente de Paula Ataide Junior: Não existe a necessidade de complementação legislativa ordinária para conferir ampla eficácia aos novos direitos fundamentais, até porque o próprio inciso não faz a previsão de tal necessidade, ao contrário do que ocorre com a Constituição italiana. 29

Não se mostram, portanto, legítimas quaisquer justificativas baseadas neste aspecto, sobretudo porque a implantação do direito à razoável duração do processo à condição de direito fundamental trouxe como consequência natural a definitividade e a plena eficácia. Também sobre o tema, importante a lição de Nelson Nery Junior e Rosa Maria de Andrade Nery: A norma garante aos brasileiros e residentes no Brasil o direito a razoável duração do processo, judicial ou administrativo. Razoável duração do 26. SOUZA, Gelson Amaro de. Direitos humanos e processo civil. Argumenta – Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, n. 5, p. 22, 2005 27. TUCCI, José Rogério Cruz e, op cit., p. 27. 28. THEODORO JUNIOR, Humberto. Direito fundamental à razoável duração do processo. Revista Eletrônica do Curso de Direito da OPET, Faculdades OPET, Curitiba, 2011. ISSN 2175-7119. Disponível em: < http:// www.anima-opet.com.br >. Acesso em: 20 jan. 2012. 29. ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula. Embargos à execução contra Fazenda Pública: ausência de efeito suspensivo e imediata expedição do precatório. Revista CEJ, Brasília, Ano XIII, n. 47, p. 27-31, out./dez. 2009. p. 28.

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processo é conceito legal indeterminado que deve preenchido pelo juiz, no caso concreto, quando a garantia for invocada. Norma de eficácia plena e imediata (CF 5º, §1º), não necessita de regulamentação para ser aplicada. Cabe ao Poder Executivo dar os meios materiais e logísticos suficientes à administração pública e aos Poderes Legislativo e Judiciário, para que se consiga terminar o processo judicial e/ou administrativo em prazo razoável. 30

Fica, assim, evidenciado, que a norma constitucional que garante a razoável duração do processo tem aplicabilidade imediata, não dependendo de norma regulamentadora ou qualquer outra medida de natureza legislativa. Mesmo porque, embora a Constituição Federal tenha consagrado expressamente o direito à razoável duração do processo apenas com a Emenda Constitucional n. 45/2004, esta garantia já era exigível do Estado, como observa Rita de Cássia Zuffo Gregório: De seu turno, o direito a celeridade processual foi expressamente consagrado com a inserção do inciso LXXVIII ao artigo 5º da Constituição Federal, embora este direito fundamental já estivesse previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica, de 1969, ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992), e também, mas em outros termos, na Lei Orgânica da Magistratura Nacional – LOMAN, no seu artigo 35, incisos II, III e VI. 31

Além disso, o dever de respeito ao princípio da legalidade democrática, que envolve também o cumprimento dos prazos no processo judicial, é presente nas Constituições brasileiras antes mesmo de 1988. Como ressalva Fernando Horta Tavares: A seu turno, Efetividade do Direito e do Processo passa, também, por uma idéia bem mais simples e que esta à nossa mão, neste momento: a de se respeitar o Princípio da Legalidade Democrática (Brasil e Portugal), já há muito previsto em nossas Constituições e Códigos de Processo, isto é, estritos cumprimentos dos prazos codificados não só pelos sujeitos processuais litigantes, como comumente se exige, mas também e principalmente pelos órgãos judiciários e administrativos32.

Não bastasse isso, o princípio da eficiência, aplicável aos serviços públicos estatais em sentido amplo, já constava expressamente do texto constitucional (artigo 37)33. 30. NERY JR, Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Constituição Federal comentada e legislação extravagante. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006. p. 140. 31. GREGÓRIO, Rita de Cássia Zuffo, op cit., p. 14. 32. TAVARES, Fernando Horta. Acesso ao direito. Duração razoável do procedimento e tutela jurisdicional efetiva nas Constituições brasileira e portuguesa. In: MACHADO, Felipe Daniel Amorim; OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de (coords.). Constituição e Processo. Belo Horizonte: Del Rey, 2009. p. 272. 33. MODESTO, Paulo. Notas para um debate sobre o princípio constitucional da eficiência. Revista Eletrônica de

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Neste passo, sobre a sua abrangência, Paulo Modesto esclarece que “o princípio da eficiência, além disso, pode ser percebido também como uma exigência inerente a toda atividade pública”34. Tal circunstância sugere a interpretação no sentido de que o novo preceito constitucional, na realidade, trata-se de extensão de norma pré-existente, como entende Filipe Casellato Scabora: O direito à razoável duração do processo é a extensão normativa do princípio da eficiência, estipulando-lhe os limites e competências. Retomando os dizeres de Gasparini, a razoável duração do processo é a conjugação dos valores da rapidez, perfeição e rendimento que compõe a eficiência dos serviços públicos. 35

Constata-se, pois, que o direito à solução do litígio judicial em tempo razoável, embora não previsto expressamente, já era uma garantia decorrente do conjunto normativo da Constituição Federal de 1988. 3.2 O TEMA NAS CONSTITUIÇÕES BRASILEIRAS

O direito fundamental a razoável duração do processo, como se expôs, foi introduzido expressamente no ordenamento jurídico nacional através da Emenda Constitucional n. 45/2004, que acrescentou no art. 5º, da Constituição Federal de 1988, o inciso LXXVIII. Evidencia-se, então, que não havia referência expressa sobre este direito nas Constituições brasileiras anteriores (1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967), nem mesmo no texto originário da Constituição Federal de 1988. Todavia, no contexto abordado neste estudo, o direito em obter uma resposta judicial tempestiva poderia ser fundamentado, do mesmo modo, no princípio da eficiência, o qual foi introduzido no art. 37 (da Constituição de 88), através da Emenda Constitucional n. 19/1998, embora a eficiência já constasse implicitamente em alguns dispositivos originários da Constituição Federal de 1988 (artigo 74, II, artigo 144, § 7º). Direito Administrativo, Salvador, Brasil, n. 10, maio/junho/julho, 2007, ISSN 1981-1861. Disponível em: < http://www.direitodoestado.com/revista>. Acesso em: 19 maio 2012. 34. Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:. 35. SCABORA, Filipe Casellato. Responsabilidade civil do Estado e a morosidade processual. Revista Eletrônica de Direito, UNESP, Franca, São Paulo, Brasil, vol 1, n. 1, 2010. eISSN 2179-4359. Disponível em: . Acesso em: 1º abril. 2012.

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Isto significa que embora a recente alteração normativa promovida pela Emenda Constitucional n. 45 tenha estabelecido de modo expresso o direito fundamental à tempestividade da tutela jurisdicional, a obrigatoriedade de uma tutela eficaz era uma exigência já prevista no texto normativo constitucional (art. 37), que exige eficiência dos serviços públicos em geral, no que, inclui-se, o serviço público judiciário. Ademais, o direito à tempestividade da tutela jurisdicional, embora expressamente consagrado pela Emenda n. 45, e implicitamente trazido pela Emenda n. 19 (pelo contexto da eficiência), já era exigível do Estado brasileiro, ao teor do artigo 8º.1, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto San Jose da Costa Rica, de 1969), que foi ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, através do Decreto n. 678 /92. Na concepção de Humberto Theodoro Junior: É de observar que a duração razoável não foi propriamente introduzida em nosso processo pela Emenda Constitucional nº 45. Já havia um consenso de que sempre esteve implícita na garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV). Isto porque não se pode recusar à economia processual, em si mesma, a categoria de um dos princípios fundamentais do moderno processo civil, e, assim, a garantia de duração razoável do processo já seria uma garantia fundamental originariamente consagrada pela Constituição de 1988. Com efeito, por força do § 2º de seu art. 5º, os direitos e garantias fundamentais não são apenas os expressos nos diversos incisos daquela declaração, mas incluem, também, “outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”36.

Lembrando que o princípio do devido processo legal (art. 5º, LIV) e o direito de acesso à justiça (art. 5º, XXXV), também utilizados para justificar uma tutela jurisdicional célere, surgiram no Brasil expressamente somente na Constituição Federal de 1988, apesar de estarem implícitos no ordenamento constitucional anterior. Constata-se, portanto, nestes parâmetros, que o tema em análise passou a ser previsto expressamente apenas na Constituição Federal de 1988, e somente após a Emenda Constitucional n. 45, de 2004, no entanto, o conjunto normativo originário da atual Constituição, que serve de baliza ao desenvolvimento regular do processo judicial, permitia exigir a celeridade do processo antes disso, em especial com fundamento no princípio da eficiência (Emenda Constitucional n. 19. de 1998), no direito de acesso à justiça e no princípio do devido processo legal (texto originário da Constituição de 1988). 36. THEODORO JUNIOR, Humberto, op. cit., p. 10.

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3.3 SIGNIFICADO DA EXPRESSÃO

Compreendido o direito à tempestividade da tutela jurisdicional como um direito fundamental, mostra-se, neste momento, imprescindível entender o verdadeiro significado da expressão “razoável duração do processo”, constante da mencionada norma constitucional. A tarefa não é fácil, como alertam Flávia Moreira Guimarães Pessoa e Dilson Cavalcanti Batista Neto: Conceituar a Razoável Duração do Processo é tarefa árdua. Primeiramente, porque não há no direito constitucional, nem no infraconstitucional qualquer referência ao que seria razoável duração de um processo. Em virtude deste fato, grande parte da doutrina entende que se trata de conceito jurídico indeterminado37.

Assim, deve-se, inicialmente, ressalvar que a expressão “razoável duração do processo” não pode ser entendida unicamente como o direito a um processo rápido. Falar em celeridade não é o mesmo que exigir aceleração processual. Mesmo porque, a celeridade, como expressão do princípio do devido processo legal, significa a negação do excesso, ou seja, uma estrutura de equilíbrio entre as demais garantias38. Nesta linha de raciocínio, importante a perspectiva de Carnelutti, citado por Cruz e Tucci, ao dizer que: a semente da verdade necessita, às vezes, de anos, ou mesmo de séculos, para torna-se espiga (veritas filia temporis)... O processo dura; não se pode fazer tudo de uma única vez. É imprescindível ter-se paciência. Semeia-se, como faz o camponês; e é preciso esperar para colher-se. (...). O slogan da justiça rápida e segura, que anda na boca dos políticos inexperientes, contém, lamentavelmente, uma contradição in adiecto: se a justiça é segura não é rápida, se é rápida não é segura39.

Isto significa que exigir apenas a rapidez do processo poderia acarretar em desrespeito a outras garantias também fundamentais, como o devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, todas previstas no texto constitucional. Trata-se, na realidade, de compreender a expressão como o momento adequado para a satisfação do direito pretendido e invocado pelo jurisdicionado, considerando as peculiaridades do caso concreto. 37. BATISTA NETO, Dilson Cavalcanti; PESSOA, Flávia Moreira Guimarães. Direitos fundamentais e a razoável duração do processo. Disponível em: Acesso em: 11 mai. 2012. 38. RAMOS, Carlos Henrique. Processo civil e o princípio da duração razoável do processo. Curitiba: Juruá, 2008. p. 64. 39. TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e processo, op cit., p. 27.

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Na concepção de Rita de Cássia Zuffo Gregório: Para aferir a razoabilidade, deve ser considerada, em cada caso concreto, a proporcionalidade entre os meios processuais empregados e a entrega da tutela jurisdicional, que é a finalidade da atividade judiciária, indagandose, nesse contexto, se há então uma equação ponderada40.

Por outras palavras, não há como fixar um prazo para cada processo, considerando as singularidades existentes. Lembrando-se, ainda, que questões como a complexidade da demanda, o comportamento da partes, entre outras, do mesmo modo, devem ser consideradas para o fim de verificar a tempestividade da tutela. Sobre o tema, relevante a contribuição de Cintra, Grinover e Dinamarco, que observam “Na prática, três critérios devem ser levados em conta na determinação da duração razoável do processo: a) a complexidade do assunto; b) o comportamento dos litigantes; c) atuação do órgão jurisdicional”41. Mesmo porque como bem ressalva José Joaquim Gomes Canotilho “A «aceleração» da protecção jurídica que se traduza em diminuição de garantias processuais e materiais (prazos de recurso, supressão de instâncias) pode conduzir a uma justiça pronta mas materialmente injusta”42. Tratando do novo preceito constitucional, Luiz Guilherme Marinoni observa: Esse direito fundamental, além de incidir sobre o Executivo e Legislativo, incide sobre o Judiciário, obrigando-o organizar adequadamente a distribuição da justiça, a equipar de modo efetivo os órgãos judiciários, a compreender e a adotar técnicas processuais idealizadas para permitira tempestividade da tutela jurisdicional, além de não poder praticar atos omissivos ou comissivos que retardem o processo de maneira injustificada.43

Como se percebe da perspectiva de Marinoni, o direito à razoável duração do processo, além de incidir sobre as três esferas de poder, envolve também os meios adequados e necessários à tempestividade da tutela jurisdicional. Diante deste quadro, considerando estes pressupostos, deve-se averiguar se houve ou não violação ao direito à razoável duração do processo, para o fim de fixar a hipótese de cabimento e legitimar o ingresso de eventual ação de reparação de danos. 40. GREGÓRIO, Rita de Cássia Zuffo, op cit., p. 15. 41. CINTRA, A. C. de A.; GRINOVER, A. P.; DINAMARCO, C. R. Teoria Geral do Processo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 93. 42. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 677. 43. MARINONI, Luiz Guilherme. Curso de processo civil: teoria geral do processo. v. 1. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. p. 225

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4 FATORES QUE INFLUENCIAM NA DEMORA DO PROCESSO

Constatado o direito do cidadão em ver a solução de seu processo em tempo razoável, que seja suficientemente capaz de satisfazer a proteção e a defesa de seu direito, importante destacar os fatores que acarretam no atraso da entrega da prestação jurisdicional. 4.1 INSTITUCIONAIS

Tradicionalmente se evidencia que uma justiça eficaz não é objetivo primordial na escala de prioridades dos Poderes Executivo e Legislativo. Inclusive, no Brasil, como observa Dalmo de Abreu Dallari “tem havido sempre nítida prevalência do Executivo, secundado pelo Legislativo, aparecendo o Judiciário, na prática, como o Poder mais fraco”44.

Na concepção de Cruz e Tucci “o problema da intempestividade da tutela jurisdicional está ligado a vetores de ordem política, econômica e cultural”45. 4.2 DE ORDEM TÉCNICA E SUBJETIVA

A demora do processo encontra influência também em questões de ordem técnica e subjetiva. Tecnicamente, talvez as maiores barreiras sejam de ordem legislativa, considerando, em especial, os caminhos que permitem ao demandado procrastinar o feito por longo período. Lembre-se que não se está a defender a inobservância de normas e princípios imprescindíveis ao correto exercício da jurisdição, como a ampla defesa e o devido processo legal. Todavia, alguns entraves processuais são injustificados. Tanto é verdade que se tem dado prioridade as reformas processuais, tanto no âmbito do direito cível, quanto no que diz respeito à matéria penal, com a finalidade de trazer mais agilidade ao trâmite do processo. As paulatinas reformas do Código de Processo Civil, ao que parece, estão alinhadas com a incessante busca de um processo civil mais efetivo e justo. Isso foi possível de observar com muita clareza já quando da tratativa 44. DALLARI, Dalmo de Abreu. O poder dos juízes. São Paulo: Saraiva, 1996. p. 77. 45. TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e processo, op cit., p. 101.

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da tutela específica, prevista no artigo 461 e seguintes do diploma processual civil, que teve como precedente histórico o artigo 84 do Código de Defesa do Consumidor. Neste sentido, também merece destaque a mudança trazida pela Lei n. 11.232/2005, referente à execução de título judicial, que criou a nova regra consistente no cumprimento de sentença no mesmo processo de conhecimento, a fim de, em última análise, tornar a entrega da prestação jurisdicional mais ágil e célere, evitando-se a formação de um novo e autônomo processo. É o momento chamado de “sincretismo processual”, ou seja, reunião da fase de cognição e execução em um único processo. Nesta mesma linha refletem as alterações trazidas pelas Leis 11.187/05, 11.276/06, 11.277/06 e 11.280/06. Sobre os objetivos do anteprojeto que trata da elaboração do novo Código de Processo Civil, Benedito Cerezzo Pereira Filho, professor da Universidade de São Paulo e membro da Comissão do referido anteprojeto, destacou a doutrina de Luiz Guilherme Marinoni, segundo o qual “uma dogmática jurídica preocupada em construir um processo justo e capaz de outorgar tutela adequada, efetiva e tempestiva aos direitos a partir de novas regras processuais civis (Código de Processo Civil, nota prévia à 1ª edição)”46. O aspecto subjetivo, igualmente, tem grande repercussão na tempestividade da tutela jurisdicional. Neste contexto, destaque-se a falta ou inadequada preparação dos funcionários da justiça, que, não raras vezes, são responsáveis pela ineficiência do serviço judiciário. Problema este ainda maior naqueles Estados em que a administração das serventias é privada. Nestes casos sequer tem o Estado condições de escolha ou alternativa de qualificação de pessoal. A qualificação profissional e pessoal do magistrado também reflete na condução adequada do processo. Condução que efetivamente é prejudicada pelo volume imenso de processos destinados a poucos juízes, fato que, sem dúvida, da mesma forma, influencia na eficiência da justiça. Nesse passo, também merece destaque o descumprimento (ou não observância) de prazos por parte dos magistrados e auxiliares da justiça. Não resta dúvida de que esta circunstância traz consequências nocivas à atividade jurisdicional. 46. PEREIRA FILHO, Benedito Cerezzo. Um código novo ou uma nova reforma ampla?. Jornal Gazeta do Povo, Curitiba, p. 12, 09 abr. 2010. Caderno Vida e Cidadania: Justiça.

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4.3 INSUFICIÊNCIA MATERIAL

A estrutura do Judiciário, igualmente, aparece como causa importante da demora do processo. Instalações precárias, materiais e equipamentos defasados são alguns exemplos da dificuldade enfrentada por aqueles que dependem da prestação jurisdicional. E não apenas estes sofrem, mas também aqueles que integram a estrutura do Judiciário, como juízes, promotores e auxiliares da justiça. Como frisa Dalmo Dallari “Na realidade, não poucos magistrados são constrangidos a exercer a judicatura em dependências improvisadas ou com instalações muito precárias, com deficiência de espaço e sem o mínimo conforto necessário para o eficiente desempenho de suas tarefas”47.

Não há dúvida, portanto, de que a falta de estrutura adequada, com boas instalações, equipamentos modernos e materiais condizentes contribui (e muito) para o atraso da entrega da prestação jurisdicional. No entanto, tais dificuldades não são hipóteses excludentes de responsabilidade estatal, como ressalva Samuel Miranda Arruda: Diz-se também que o estrito cumprimento deste direito fundamental dos litigantes depende, principalmente, do dispêndio de recursos que o Estado não possui. Neste último caso, o argumento utilizado procura, por vias transversas, dar um caráter meramente programático aos dispositivos que asseguram o direito. Com frequência essas assertivas são desconsideradas pelos tribunais que, embora louvando o esforço do poder público, compreendem que o cumprimento de uma obrigação básica não pode ser tão facilmente escamoteado, apenas com fundamento em genéricos protestos de dificuldade econômica e ausência de estrutura material48.

Evidencia-se, então, que, embora os fatores relacionados sejam causa de atraso da prestação jurisdicional, não eximem o Estado de responsabilidade pela eficiência e qualidade do serviço público judiciário, em especial pelo caráter de monopólio, ainda presente em grande parte da jurisdição. 5 EXCLUSÃO SOCIAL

Considerando as premissas tratadas, sobretudo a perspectiva do processo como instrumento de realização da justiça, o atraso imotivado pode trazer consequências nocivas de natureza grave aos litigantes. 47. DALLARI, Dalmo de Abreu, op cit., p. 156. 48. ARRUDA, Samuel Miranda. O direito fundamental à razoável duração do processo. Brasília: Brasília Jurídica, 2006. p. 311.

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Pode ocorrer, em determinações situações, verdadeira exclusão social decorrente do atraso na solução do conflito levado ao Judiciário. Sobre a importância da realidade social para o processo, Marinoni esclarece que “Se o processo pode ser visto como instrumento, é absurdo pensar em neutralidade do processo em relação ao direito material e à realidade social. O processo não pode ser indiferente a tudo isso”49. A exclusão aqui referida se refere, essencialmente, aos casos cujo direito objeto do processo envolve aspectos do princípio da dignidade da pessoa humana. São alguns exemplos as questões previdenciárias e aquelas relacionadas à saúde ou integridade física, como o fornecimento de medicamentos ou a realização de cirurgias, entre outros. 5.1 OS ESQUECIDOS DA JUSTIÇA

A gravidade da situação é tamanha que a morosidade da justiça virou regra e a celeridade exceção. A questão é que o problema da intempestividade da prestação da tutela jurisdicional tem formado um contingente de cidadãos, que podem ser chamados de ‘esquecidos da justiça’. Devido a falta de estrutura e o excesso de serviço, os auxiliares da justiça (responsáveis pela entrega da tutela) não conseguem pensar no indivíduo, mas apenas no processo, como instrumento físico. Ou seja, a dignidade e as condições psíquicas e sociais dos envolvidos no processo são deixadas de lado. Neste panorama, temos juízes preocupados em diminuir a pilha de processos de seus gabinetes, auxiliares da justiça envolvidos com o cumprimento de tarefas (expedição de ofícios, juntada de documentos, etc), enquanto o cidadão pena pela demora do resultado prático e útil da tutela. 5.2 RESISTÊNCIA

O problema se torna mais preocupante quando as pessoas envolvidas no processo são carentes, pois o poder de resistência destes é mínimo se comparável com aqueles de maior poder aquisitivo. Portanto, os carentes, que não tem condições de contratar e manter um advogado durante certo tempo, sofrem ainda mais, porque dependem muitas 49. MARINONI, Luiz Guilherme. O direito à tutela jurisdicional efetiva na perspectiva da teoria dos direitos fundamentais, op. cit., p. 16.

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vezes das defensorias públicas, as quais, como se sabe, em grande parte do país, possuem estrutura física e de pessoal precárias. Desta forma, se a intempestividade da justiça pode acarretar normalmente danos ao cidadão, o atraso da entrega da prestação jurisdicional em relação aos mais carentes é verdadeira e inquestionável forma de exclusão social. Sobre isso, pertinente a menção de Mauro Cappelletti, citado por Cruz e Tucci, segundo o qual a intolerável duração do iter processual constitui: fenômeno que propicia a desigualdade.... é fonte de injustiça social, porque a resistência do pobre é menor do que a do rico: este, e não aquele, pode, via de regra, aguardar, sem sofrer grave dano, uma injustiça lenta... Um processo longo beneficia, em última análise, a parte rica em detrimento da parte desafortunada50.

Não cumpre, assim, o Estado sua função institucional de realizar a justiça no meio social, através da solução efetiva dos conflitos sociais pelo Judiciário, evidenciando-se, nesta forma de atuação (ou omissão), espécie de dominação estatal dos menos favorecidos econômica e socialmente. Neste aspecto, tratando da necessidade de disponibilização de estrutura de poder para a libertação do cidadão, importante a concepção de Gilberto Giacoia, segundo o qual: Tem-se, assim, que o Estado Constitucional de Direito somente se concebe enquanto emanação de uma estrutura de poder a serviço da libertação do homem, nunca de sua dominação, compreendida no sentido de cerceamento aos direitos derivados de sua condição humana51.

Portanto, a eficiência do processo, como instrumento do Estado a serviço da população, é imprescindível para preservar o princípio da dignidade da pessoa humana, norte fundamental da Constituição Federal de 1988. Mesmo porque, como pondera Vicente de Paula Ataíde Junior “É necessário, sobretudo, dar operacionalidade aos novos direitos fundamentais, fazendo-os funcionar efetivamente na administração diária da justiça, de modo que a tutela indenizatória se torne desnecessária”52. Todavia, embora o cumprimento do preceito da razoável duração do processo seja o objetivo primordial do texto constitucional, deve-se ressaltar que eventual violação, que acarrete no atraso injustificado da prestação jurisdicional, gera o dever de indenizar por parte do Estado. Esta é a concepção de Paulo Hoffman: 50. TUCCI, José Rogério Cruz e. Tempo e processo, op cit., p. 111. 51. GIACOIA, Gilberto. Justiça e dignidade. Argumenta – Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, Universidade Estadual do Norte do Paraná, Jacarezinho, n. 2, p. 19-20, 2002. 52. ATAIDE JUNIOR, Vicente de Paula, op cit., p. 28.

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O Estado passa a ser responsável ‘objetivamente’ pela exagerada duração do processo, motivada por culpa ou dolo do juiz, bem como por ineficiência da estrutura do Poder Judiciário, devendo indenizar o jurisdicionado prejudicado – autor, réu, interveniente ou terceiro interessado – , independentemente de sair-se vencedor ou não da demanda, pelos prejuízos materiais e morais53.

Assim, não há dúvida de que a razoável duração do processo é direito fundamental de eficácia imediata, que impõe ao Estado o dever de prestar a atividade jurisdicional em tempo razoável, sob pena de responsabilização civil. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo permitiu entender que o direito fundamental previsto no artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal de 1988, não se refere somente ao direito de acesso à justiça, mas sim e, sobretudo, ao direito a uma justiça justa. Por outras palavras, não basta ao Estado acolher as demandas que lhe são levadas pelo cidadão, é necessário também que ele as julgue de modo adequado, visando o resultado prático e útil. Ganha relevância a concepção do processo como instrumento para que isto seja realmente possível. É o processo visto como meio para a garantia dos direitos fundamentais previstos no texto normativo constitucional. No entanto, para concretizar este objetivo, o processo deve ser efetivo. Efetividade que compreende uma prestação jurisdicional adequada, justa e tempestiva. Assim, o momento da satisfação do direito passa a ser elemento essencial do ideal de justiça, pois, em certas situações, o atraso do processo pode acarretar em exclusão social, especialmente em relação aos carentes, que tem menor poder de resistência ao tempo. O cidadão passou a ter, deste modo, um direito fundamental à razoável duração do processo, ao teor do artigo 5º, inciso LXXVIII, do texto constitucional (trazido pela Emenda Constitucional n. 45/2004), noção ligada diretamente à satisfação do direito e não ao tempo propriamente dito. Mesmo porque não se poderia conceber em um Estado Democrático de Direito a inobservância de princípios fundamentais a sua manutenção, como o devido processo legal e a ampla defesa, em privilégio apenas da celeridade do processo. Contudo, não se pode também esquecer do tempo de duração do processo 53. HOFFMAN, Paulo. Razoável duração do processo. São Paulo: Quartier Latin, 2006. p. 99.

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como elemento essencial de uma jurisdição justa, sobretudo quando a realização da justiça se vincula diretamente ao elemento temporal. Constata-se, então, que a justiça tardia, em certas ocasiões, representa, inequivocadamente, a própria denegação da justiça. Neste contexto, embora o direito ao processo em tempo razoável já fosse uma garantia presente no ordenamento jurídico nacional (Pacto de São José da Costa Rica, integrado à ordem jurídica pátria através do Decreto nº 678, de 06 de novembro de 1992), o novo preceito constitucional (artigo 5º, LVXXIII) consagrou expressamente o direito fundamental do cidadão à razoável duração do processo, norma de aplicabilidade imediata. Ressalvando-se a pré-existência do princípio da eficiência, que, embora formalmente introduzido no artigo 37 da Constituição Federal, através da Emenda Constitucional n. 19/1998, já constava implicitamente em alguns dispositivos originários da Constituição Federal de 1988. Portanto, efetivamente não havia nenhuma referência expressa sobre este direito fundamental nas anteriores Constituições brasileiras, constituindo-se em novidade de natureza formal. Por outro lado, materialmente, não houve grande inovação, sobretudo pelas implicações do direito de acesso à justiça e do princípio do devido processo legal, sob o enfoque da celeridade da resposta judicial, tal como analisado neste estudo. Diante disso, conclui-se que o Estado responde diretamente pelos prejuízos oriundos do mal funcionamento da atividade judiciária, no que se inclui o atraso injustificado na entrega da prestação jurisdicional, devendo ressarcir às vítimas através de uma justa indenização, tendo somente a possibilidade de ação de regresso contra o magistrado ou auxiliar da justiça responsável, em respeito ao Estado Democrático de Direito e as normas do sistema jurídico nacional. REFERÊNCIAS

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CAPÍTULO XVII

aCESSo ao JuDICIÁRIo E a EFEtIVaÇÃo DE DIREIto

Gelson Amaro de Souza Doutor em Direito Processual Civil pela PUC/SP, Professor concursado para os cursos de graduação e mestrado em direito da Universidade Estadual do Norte do Paraná – (Campus de Jacarezinho), ex-diretor e professor da Faculdade de Direito da Associação Educacional Toledo de Presidente Prudente-SP. Procurador do Estado (aposentado) e advogado em Presidente Prudente - SP.

Gelson Amaro de Souza Filho Jornalista Graduado pela Universidade do Oeste Paulista e Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Antônio Eufrásio de Toledo de Presidente Prudente/SP

INTRODUÇÃO

Não é de agora que as Constituições da República têm se preocupado com o acesso ao judiciário e a concretização do direito dos jurisdicionados. Nada obstante a boa vontade do constituinte, tal desiderato ainda está longe de ser alcançado. A Constituição da República, hoje considerada a constituição cidadã, está muito avançada e se encontra disparadamente à frente da legislação infraconstitucional. Pela norma constitucional o ingresso ao Judiciário é incondicionado (art. 5º XXXV), o que não é seguida por normas infraconstitucionais que ainda insistem em condicionar o ingresso ao Judiciário, sendo que estas, muitas vezes, impedem o julgamento de mérito em várias situações, não se permitindo a concretização do direito. Hodiernamente, fala-se muito em constitucionalização do processo,

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As Constituições do Brasil análise histórica das constituições e de temas relevantes ao constitucionalismo pátrio

mas na prática, ainda reinam dificuldades para a perfeita adequação das regras processuais ordinárias às modernas normas constitucionais. Permanece ainda a preocupação com as formalidades obsoletas do passado, esquecendo-se, que o direito é muito mais importante do que a forma. A Constituição da República, ao dispor que não se pode retirar da apreciação do Judiciário qualquer alegação de lesão a direito, quis garantir a apreciação e, se for o caso, a efetivação do direito, independentemente de qualquer formalidade. 1 HISTÓRICO CONSTITUCIONAL DO ACESSO À JUSTIÇA

O acesso ao judiciário nem sempre foi assegurado de modo explícito nas Constituições que existiram anteriormente. A primeira Constituição brasileira foi editada em 1.824, com a denominação de Constituição Política do Império em 23.03.1824. No art. 179 tratou das garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos, mas não contemplou de forma expressa o direito de acesso ao Judiciário. O parágrafo trinta do art. 179, garantiu a apenas a reclamação aos órgãos, legislativo e executivo, sem nada falar sobre o Judiciário. Após a proclamação da república em 24-02-1891, foi publicada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, que apesar de falar em Declaração de direitos, na Seção II e relacioná-los no art. 72, também nada expressou a respeito do acesso à justiça. Esta Constituição foi emendada em 1926, mas o silêncio a respeito permaneceu. Em 1.934 foi editada a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, apesar de falar em Direitos e Garantia Individuais no cap. II, no art. 113 falou em petição aos Poderes Públicos, mas nada mencionou sobre o acesso à justiça. O mesmo silêncio se repetiu na Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 1.937, nada constando a respeito no art. 122 que cuidou dos Direitos e Garantias Individuais. Somente com a Constituição dos Estados Unidos do Brasil de 18.09.1946 é que apareceu pela primeira vez de forma expressa a garantia do acesso ao Judiciário. No art. 141, par. 4º, apareceu pioneiramente a expressão: “A lei não poderá excluir da apreciação do Poder judiciário qualquer lesão de direito individual”. Era a garantia do acesso ao Judiciário, restrito ao direito individual, época que ainda não falava em direito coletivo. A mesma expressão apareceu na Constituição do Brasil de 24.01.1967, contemplando o acesso ao Judiciário no art. 150, § 4º. Esta Constituição

ACESSO AO JUDICIÁRIO E A EFETIVAÇÃO DE DIREITO

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foi alterada pela Emenda Constitucional nº 1, de 17.10.1969, mas a mesma redação foi mantida, no art. 153, § 4º, com o acréscimo da possibilidade de condicionamento pelo esgotamento prévio das vias administrativas desde que não fosse exigida garantia de instância, nem ultrapassado o prazo de cento e oitenta dias para decisão do pedido. Em progressão e um tom bem mais avançado, a atual Constituição da República federativa do Brasil de 1988, afastando-se do individualismo puro que a antecedia, no Título II tratou Dos Direitos e Garantias Fundamentais, no Capítulo I, cuidou dos direitos e deveres individuais e coletivos. Pela primeira vez, surgiu a preocupação com o coletivo. No artigo 5º, XXXV, está expresso: “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça ao direito”. De regra não há mais o condicionamento de esgotamento da via administrativa previsto na Constituição anterior1 e nem limitação ao direito apenas individual. Hoje a garantia do acesso à justiça alcança tanto o direito individual, bem como o direito coletivo. 2 Acesso à justiça e a concretização do direito

É muito comum confundir-se o acesso à justiça com o simples acesso ao judiciário. O direito de ação, puro e simples não pode ser considerado acesso à justiça2. Tais expressões não devem ser confundidas. Como não se devem confundir a tutela jurídica com a jurisdicional e nem esta com a tutela do direito. O acesso à justiça e a concretização do direito somente acontece quando for efetivamente empreendida a tutela do direito. Quando se fala em tutela jurídica, está se referindo ao mínimo que fica muito aquém da expectativa do jurisdicionado, porque este almeja o acesso à justiça com a concretização de seu direito, o que somente pode ser alcançado com a tutela do direito e não com a simples tutela jurídica. A tutela jurídica é o caminho a ser percorrido para se alcançar a verdadeira tutela do direito que é a concretização do direito e representa o acesso justiça. Antes do acesso à justiça com a concretização do direito, o que se tem é o acesso ao judiciário, mas não o almejado acesso à justiça3. 1. Salvo a única hipótese prevista de esgotamento prévio no art. 217, § 1º da CF, em relação ao desporto. 2. [...] “logo o direito de ação não deve se subsumir no mero ingresso da pessoa ao sistema judiciário, mas sim o acesso a uma ordem jurídica justa”. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional –Nova concepção de jurisdição, pp. 148-149. São Paulo: Método, 2008. 3. “Neste sentido, vários dogmas precisam ser transpostos. Primeiro é essencial que se extirpe do mundo jurídico a compreensão de que o acesso à justiça se limita tão-somente ao direito a uma sentença, mesmo que de mérito”. SAMPAIO JUNIOR, José Herval. Processo Constitucional – nova concepção de jurisdição, p. 122. São Paulo: Método, 2008.

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A tutela do direito além de ser uma tutela jurídica que poderá ser prestada pelo Judiciário, ela também pode ser obtida extrajudicialmente, como já ensinava CHIOVENDA4. A tutela do direito pode se dar pela via jurisdicional ou pela via extrajudicial e, está ligada à realização do direito. Melhor acontece quando se dá a tutela do direito em que este é protegido e realizado sem a necessidade da via jurisdicional. O processo jamais foi um bem, aprioristicamente. É um mal necessário. Somente existe porque nem sempre o direito que deveria ser tutelado extrajudicialmente, o é. O interesse em buscar a via judicial somente ocorre quando o direito for violado ou ameaçado de violação. Quando se dá a tutela do direito extrajudicialmente, desnecessária se torna a tutela jurisdicional por falta de interesse. 3 Conceito de tutela jurídica

A tutela jurídica é o gênero da qual se extrai as demais espécies de tutela, como a do processo, a da jurisdição e a do direito. A tutela do processo que se liga às formalidades procedimentais visa pura e simplesmente tutelar o procedimento (processo) através do rígido regime das formalidades. Recebe esse nome por se cuidar de proteger direitos que tanto pode ser de natureza material, como de natureza processual. Quando se fala em tutela jurídica, vem à tona a possibilidade dela aparecer nas várias modalidades de tutelas existentes, tais como, a tutela do procedimento, a tutela jurisdicional e a tutela do direito, propriamente dita. 4 Espécies de tutela jurídica

A tutela jurídica se apresenta nas mais variadas formas e pode se ligar apenas à proteger o processo, apenas a uma prestação jurisdicional independentemente de quem será o vencedor ou ainda em tutela do direito, quando este for efetivamente protegido ou realizado. 4.1 Tutela do processo

Sempre houve uma grande preocupação com a tutela do processo por amor à forma. No entanto, enquanto se prestigia a forma, desprestigia-se o direito que é o fim em si mesmo. 4. CHIOVENDA, Giuseppi. “Y esta declaración lógica de certeza como determinante de la tutela jurídica, seria el signo distintivo de lacto jurisdicional em general de las outra formas de tutela jurídica que puedem encontra-se fuera del processo”. La acción, p. 83.

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O processo civil ainda sofre a influência de uma herança do processo romano, que era extremado em suas formalidades5. Todavia, precisamos dar conta de que as épocas são outras. A sociedade evoluiu e com ela evoluíram os mais diversos seguimentos sociais e, entre estes, o direito. Não se pode proteger o processo e desproteger o direito. Hoje, mais do que nunca, há necessidade de se privilegiar o direito quando colocado em confronto com a forma. Sabe-se que a forma e as formalidades foram criadas para tutelarem o processo. Mas também se sabe que o processo é o meio para atingir um fim e não o próprio fim. A lógica aponta que não se deve prestigiar o meio (processo) em detrimento do fim (direito). Não se pode perder tempo com incidente processual infrutífero e retardar ou nunca se chegar à concretização do direito.6 A teoria das nulidades que está reclamando por uma releitura, porque não mais atende ao interesse maior da sociedade que é atingir o quanto antes a tutela do direito. A começar com a obsoleta e vetusta nulidade do processo (procedimento). O processo é uma abstração sem forma e sem substância palpável; não tem cor, não tem peso e não pode conter vício. Por isso, não pode ser atingido por qualquer nulidade. Eventual vício dos atos atinge o procedimento, mas, jamais o processo em si mesmo ou como já restou exposto alhures, todo processo é legal, o que pode ser ilegal é o procedimento7. O Código de Processo Civil, apesar de fazer referência à nulidade do processo (art. 246), é de se notar que não é o processo atingido por qualquer nulidade. A nulidade somente atinge o procedimento (arts. 249 e 250, do CPC). Somente os atos do procedimento podem ser nulos e não o processo em si mesmo (art. 249, do CPC). Tanto é assim, que o juiz ao declarar nulo o procedimento ele declarará quais os atos que serão atingidos pela nulidade, aproveitando-se o processo (procedimento) até então (art. 249, do CPC). Fosse o processo anulado, ele desapareceria por completo e não poderia ser reaproveitado. As formalidades procedimentais visam tutelar o processo (mais propriamente, o procedimento), mas não se preocupam com o direito em si 5. “ainda se reveste de um formalismo e autonomia que andam na contramão da efetividade dos direitos de um modo geral, ou seja, contra a sua própria razão de ser”. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional –Nova concepção de jurisdição, p. 43. São Paulo: Método, 2008. 6. Ao condenar as formalidades custosas e desnecessárias, MORELLO, expõe: [...] “uma infructuosa cuestion de competência o um vano incidente parásito”. MORELLO, Augusto Mário. Persona, sociedad y derecho, p. 211. Buenos Aires: Lajouane, 2006. 7. Esta questão foi tratada com maior amplitude em “Fraude à execução e o direito de defesa do adquirente, pp. 173:199”. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002.

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mesmo. Como foi exposto em outra oportunidade, o “que importa hoje é a satisfação do direito e não mais a satisfação do processo”8. Enquanto se preocupa em demasia com o processo (procedimento), afasta-se do objetivo principal que é a concretização do direito. É necessário, antes se preocupar com as garantias constitucionais voltadas para a concretização do direito e somente depois com as formalidades infraconstitucionais. Como bem explica MORELLO, em qualquer disciplina, nenhum tema pode ser objeto de análise solitária, senão diante da análise do sistema em conexão com os demais princípios e com o direito em geral, sem o qual se perde boa parte de seu significado e seu alcance9. 4.2 Tutela Jurisdicional

A tutela jurisdicional é proteção que o Estado procura dar ao interessado portador de uma pretensão. Portanto, surge como necessária a separação entre direito e pretensão. A pretensão não corresponde ao direito, visto que nem todo aquele que tem pretensão tem direito. Já ensinou PONTES DE MIRANDA10, que tanto aquele que tem pretensão de direito material, bem como aquele que está obrigado tem direito de ir ao judiciário para buscar uma tutela jurisdicional. Resulta dizer que esta modalidade de tutela jurisdicional já está ligada à atuação da jurisdição e guarda séria relação ao julgamento de mérito. Assim é que MARINONI11, afirma que tanto a sentença de procedência como a de improcedência presta a tutela jurisdicional, não importando se concede ou não o direito pretendido pela parte. Esta modalidade de tutela representa o ato do Juiz em apreciar o pedido e julgar o mérito da causa, seja a favor de qualquer das partes. Com razão observa ORTIZ12, que as condições da ação atuam como condicionantes ao julgamento 8. SOUZA, Gelson Amaro de. Tutela de urgência e definitividade do provimento judicial. In: Tendências do moderno Processo Civil Brasileiro – Aspectos individuais e coletivos das Tutelas preventivas e ressarcitórias. (Org) Lucio Delfino, Fernando Rossi, Luiz Eduardo Ribeiro e Ana Paula Chiovitti, pp. 323, 347. Belo Horizonte: Fórum, 2008. 9. Detengámonos em uno de lós princípios procesales, el de economia, aunque como e cualquier disciplina, ningún tema es objeto de análise en solitário sino radicado em un plexo sistêmico, interconectado con lós demás princípios y con el Derecho en general y su interpretación”. MORELLO, Augusto Mário. Persona, sociedad e derecho, p. 203. Bueno Aires: Lajouane, 2006. 10. “Tanto o que tem a pretensão de direito material quanto o obrigado dispõem da pretensão à tutela jurídica”. PONTES DE MIRANDA; Tratado da ação rescisória, p. 11. Rio de Janeiro: Forense, 5ª ed. 1996. 11. MARINONI, Luiz Guilherme. “Ainda que a sentença seja de improcedência, é evidente que essa sentença lhe presta tutela jurisdicional, não importando se não concede a tutela do direito. A tutela jurisdicional é a resposta da jurisdição ao direito de participação em juízo das partes”. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos. RDPC, v. 37, p. 536. Curitiba, Gênesis, julho/setembro, 2005. 12. “As condições da ação operam, portanto, especificamente no plano da prestação da tutela jurisdicional de

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do mérito, sendo que a ausência de qualquer delas impede a prestação da tutela jurisdicional. No mesmo sentido proclama MARINONI13, que se o autor exerce o direito de ação para obter a tutela jurisdicional do direito, mesmo que a sentença não reconheça a pretensão de direito material, ainda assim, presta a tutela jurisdicional, respondendo ao direito de ação. No dizer de MARINONI14, o procedimento, além de conferir oportunidade à adequada participação das partes e a possibilidade de controle da atuação pelo juiz, visando proteção ao direito material e à efetiva tutela dos direitos. Nota-se a preocupação com a efetivação do direito e não mais com a simples efetivação do processo, este como meio, para se chegar ao fim que é a entrega efetiva do direito a quem o efetivamente o tem. Para a sociedade moderna o que importa é o acesso ao direito e a consecução da ordem jurídica justa e, não só, o acesso ao judiciário. Para o jurisdicionado, de nada adianta ter acesso ao judiciário e ao processo, se ao final, contudo, não se alcançar o direito, objetivo maior. Não interessa uma simples decisão judicial favorável, se o direito mesmo, não for alcançado. Também decisão favorável tardia e sem aptidão para efetivar o direito, já não interessa mais a ninguém. O que interessa é a efetivação do direito (fim) e não só a efetivação do processo (meio) e nem a pura prestação jurisdicional em simples tutela cognitiva. Dizer o direito deixou de ser importante, o que mais importa é realização e não o simples reconhecer. 4.3 Tutela do direito

A tutela do direito difere das demais tutelas mencionadas. Desta forma não se pode confundir a tutela do processo e a tutela jurisdicional que são meios, com a tutela do direito que é o fim. Até mesmo YARSHELL15 que chegou a manifestar pela equivalência dos termos “tutela jurisdicional” e “tutela de direitos”, em outro ponto16, parece admitir a distinção entre uma e outra ao afirmar que a tutela jurisdicional, embora se traduza em termos claros, merece alguma reflexão, dada a associação a que induz com a idéia de tutela de direitos. mérito, condicionando-a, de modo que, ausentes quaisquer uma delas, inexistente o direito a esta espécie de tutela, inviabilizando a apreciação do pedido, com conseqüente extinção do processo sem julgamento de mérito”. ORTIZ, Mônica Martinelli. Âmbito da cognição das questões de ordem pública nos tribunais superiores e exigência de preqüestionamento. REPRO, V. 128, p. 177. São Paulo: RT, outubro de 2005. 13. MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos. RDPC, v. 37, p. 536. Curitiba. Gênesis, julho/setembro, 2005. 14. MARINONI, Luiz Guilherme. Técnica Processual e Tutela dos Direitos, p. 145. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. 15. YARSHELL, Flávio Luiz. Tutela jurisdicional, p. 29. São Paulo: Atlas, 1999. 16. Idem, idem, p. 28.

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Possível notar-se que ao admitir a associação das duas figuras, está admitindo a diferença entre uma e outra. Até porque, a mesma coisa não pode se associar consigo mesmo. A associação sempre há de se dar entre entes diferentes. Pode se ver que nos casos em que a tutela jurisdicional (julgamento de mérito) seja contra o autor, fica afastada qualquer hipótese de tutela de direito, que pelo julgamento demonstrou não existir ao autor, muito embora, mesmo assim, a tutela jurisdicional foi prestada. O direito fundamental à tutela judicial se efetiva pelo simples agir em juízo em busca da tutela jurisdicional que se efetiva pela apreciação do mérito da causa, seja a favor ou contra o autor. Todavia, com o observa MARINONI17, a prestação jurisdicional que reconheça o direito do autor, ainda está longe de corresponder a uma efetiva tutela de direito material. A tutela jurisdicional deverá ser prestada de acordo com o pedido (art. 460 do CPC), mas a tutela do direito pode ser aquém do pedido. Ao julgar o pedido da parte, o juiz poderá atendê-lo em toda sua extensão, bem como, poderá atendê-lo apenas parcialmente, o que implica em tutela do direito menor do que foi pedido. O juiz pode conceder menos direito do que o autor pediu, somente não pode julgar menos do que se pediu, isto é, deixar parte do pedido sem julgamento. O principio da congruência somente se aplica na relação pedido e sentença, mas não na relação julgamento e concessão. A tutela jurisdicional por si só, pode não atender a pretensão do autor que visa a realização de um direito e que exige atuação além de uma simples prestação jurisdicional. A mera acessibilidade aos órgãos judiciais e a mera definição de que tem direito e quem não o tem, não é o suficiente em todos os casos. Observa SPADONI18 que o direito de ação reconhecido constitucionalmente, não pode ser considerado como a possibilidade de acesso ao judiciário, mas deve ser visto como garantia constitucional a uma atividade jurisdicional plena, adequada e eficaz à tutela do direito. Para esse autor a tutela a ser concedida deve ser ampla e aproximar o máximo possível daquele resultado que seria obtido caso o direito fosse respeitado ou cumprido espontaneamente19. O direito processual que regula a atividade processual, não pode se contentar com o simples acesso ao Judiciário, mais que isto, é necessário provimento jurisdicional que atribui e ao mesmo tempo efetive o direito da 17. MARINONI, Luiz Guilherme. Da ação abstrata e uniforme à ação adequada à tutela dos direitos. RDPC, v. 37, p. 542. Curitiba. Gênesis, julho/setembro, 2005. 18. SPADONI, Joaquim Felipe. Ação inibitória, p. 23. 19. Idem.

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parte. Acesso à justiça se dá quando a parte alcançar a concretização de seu direito. Isto é, que seu direito seja efetivado e incorporado ao seu patrimônio20. 5 Tutela cognitiva

A tutela de conhecimento é a mais ampla e pode ser encontrada entre as figuras da tutela completa e da tutela incompleta. Na primeira hipótese encontra-se aquela tutela jurisdicional que por si só já é o suficiente para satisfazer o interessado. A tutela incompleta é aquela em que se exige outra atividade a seguir para que o direito seja efetivamente atendido. 5.1 tutela jurisdicional completa

Entre as modalidades de tutela jurisdicional completa, encontramos as mais comuns que são a tutela declaratória e constitutiva, que de regra encerram o processo, sem necessidade providência jurisdicional posterior. Todavia, excepcionalmente poderá se encontrar nesta espécie a sentença condenatória, quando não for possível ou desnecessária outra atividade jurisdicional para o cumprimento do julgado. 5.1.1 Declaratória

Alerta MARINONI21, que tanto a sentença declaratória, bem como a constitutiva, podem ser consideradas suficientes por si mesmas. Considera que a simples prolação da sentença, nessas modalidades, é o bastante para que se considere a prestação jurisdicional integral22. A sentença declaratória pura é sem qualquer sombra de dúvida uma das formas de tutela jurisdicional completa, quando julga o mérito. É completa por que não precisa de nenhum outro ato ou procedimento para a efetivação da tutela da pretensão pedida pelo autor. Seja caso de procedência ou de improcedência, a tutela é exauriente da pretensão do 20. “Ainda nesse condão, é imprescindível que todos os operários do direito passem a compreender que a maior preocupação desta ciência deve ser a efetiva tutela dos direitos”. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional –Nova concepção de jurisdição, p. 08. São Paulo: Método, 2008. 21. MARINONI, Luiz Guilherme. “A sentença declaratória e a sentença constitutiva sempre foram consideradas sentenças suficientes em si. A mera prolação dessas sentenças é bastante para que a prestação jurisdicional seja integral”. Técnica processual e tutela dos direitos, p. 41. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2004. 22. “Nas chamadas ações declaratórias, costuma-se dizer que ocorre verdadeira confusão dos pedidos mediato e imediato, “porque na simples declaração da existência ou inexistência da relação jurídica se esgotam a pretensão do autor e a finalidade da ação”. VIANA, Juvêncio Vasconcelos Viana. A causa de pedir nas ações de execução”, p. 93. In Causa de pedir e pedido no processo civil, CRUZ E TUCCI, José Rogério e BEDAQUE, José Roberto dos Santos (coords). São Paulo: RT. 2002.

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autor, não comportando ou não exigindo outro procedimento jurisdicional posteriormente. 5.1.2 Constitutiva

Seguindo os passos da sentença declaratória, a sentença constitutiva também dispensa procedimento judicial posterior, podendo assim, ser classificada como tutela completa. A sentença constitutiva não exige nova atuação jurisdicional, o que a caracteriza como tutela completa, porque o direito da parte fica satisfeito somente com a constituição ou a desconstituição pretendida. 5.1.3 Condenatória

A sentença condenatória é a que mais tem preocupado a doutrina, principalmente depois de uma brilhante exposição apresentada por BAPTISTA DA SILVA23 no Primeiro Congresso Internacional de Direito Processual Civil realizado em Brasília no ano de 1995, quando afirmou tratar-se providência inócua, porque a simples condenação não implica na realização do direito, que estaria a reclamar por outro processo para a sua efetivação que era o processo de execução. Esse pensamento foi ganhando raízes e não faltaram aqueles que criticavam a definição de sentença constante do artigo 162, § 1º do CPC, não poupando argumentos visando a sua modificação, o que veio acontecer com a reforma tópica realizada pela Lei 11.232/2005. Pela nova redação do artigo 162, § 1º do CPC, desapareceu a expressão “ato que extingue o processo”, o que fez com que a grande maioria da doutrina entendesse que a sentença não é mais o ato que extingue o processo. No entanto, se a sentença não extinguisse o processo de conhecimento, ela jamais seria alcançada pela coisa julgada, pois, esta somente se configura quando do último julgamento no processo24. Pensamos que tal avaliação fora feita de forma apressada25 e que a sentença continua sendo o ato que extingue o processo da mesma forma como acontecia antes da Lei 11.232/2005. O que pensamos é que esta Lei veio para simplificar o 23. BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Exposição feita no Primeiro Congresso Internacional de Direito Processual Civil, realizado em Brasília no ano de 2005. 24. Em artigo intitulado “Sentença – em busca de uma nova definição”, em co-autoria com SOUZA FILHO, Gelson Amaro de, foi afirmado que a mudança da redação do art. 162, § 1º do CPC, por si só não teve o condão de mudar a essência e, que a sentença, a nosso ver continua sendo o ato que extingue o processo. Esse trabalho foi publicado no Repertório IOB, v. III, nº 5, 2009. 1ª quinzena, março, 2009. 25. Existe ainda uma relutância em se reconhecer a distinção entre “processo” e “procedimento”, quando esta diferença está claramente demonstrada nos artigos 22, I e 24, XI, da CF. Pelo primeiro só a União pode legislar sobre processo; pelo segundo, os Estados e Distrito federal também podem legislar sobre procedimento.

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procedimento executivo (cumprimento de sentença), dispensando a instauração de outro processo26 que antes era o de execução de sentença, passando essa execução (cumprimento) ser realizada por simples procedimento27 executivo e não mais por processo de execução. O que se afastou foi a necessidade de novo processo de execução, mas, isso não implica dizer que o processo de conhecimento continua mesmo após a sentença com trânsito em julgado. Todavia, impõe-se notar que nem toda sentença proferida no processo de conhecimento condenatório, vai exigir processo ou procedimento de execução posteriormente. Existem sentenças condenatórias que não comportam processo ou procedimento de execução, sendo a própria sentença autosuficiente ou autosatisfativa, de tutela completa28. Ainda que se quisesse sustentar que a sentença condenatória não extingue o processo de conhecimento, ao menos no caso de condenação do devedor a emitir declaração de vontade, como previsto no artigo 466-A do CPC, haverá de reconhecer que nesta hipótese, a sentença extingue o processo, pela simples razão de que nenhuma outra providência executiva será cabível, visto que a sentença por si mesmo produz todos os efeitos necessários. O mesmo se pode dizer, quando se tratar de sentença proferida em processo de natureza condenatória, mas que a sentença seja de improcedência. Mesmo que o autor busque a tutela condenatória, mas, se a sentença dá pela improcedência do pedido, a tutela jurisdicional foi prestada e, necessariamente, a sentença está pondo fim ao processo, porque nada resta a executar, porque sentença de improcedência não se executa29. 5.2 Tutela jurisdicional incompleta

Diferentemente da tutela jurisdicional completa que não exige outra providência jurisdicional, a incompleta não é autosuficiente e exige atividade 26. Dispensa-se novo processo de execução somente para a sentença condenatória civil comum, pois ainda se exige tal processo para outros casos, como na condenação da fazenda pública, na condenação criminal para execução no cível, na sentença condenatória estrangeira, na sentença arbitral e em caso de execução individual de sentença condenatória coletiva. Essa matéria foi tratada com mais detalhes em nosso: “Efeitos da sentença que julga embargos à execução”. São Paulo: Editora MP, 2007. 27. Não se pode confundir processo e procedimento. O processo de conhecimento condenatório pode encerrarse e após iniciar-se, o procedimento executivo. Alias, alguns países, a execução de sentença é realizada por procedimento extrajudicial, através de Cartório de Notas. No Brasil também há procedimento (não processo) de execução extrajudicial em favor dos credores contra os devedores do SFH, através do famigerado Decreto 70, cujo vício (inconstitucionalidade) notável é o próprio credor dirigir o procedimento. 28. CPC. “Art. 466-A. Condenado o devedor a emitir declaração de vontade, a sentença, uma vez transitada em julgado, produzirá todos os efeitos da declaração não emitida”. Artigo acrescido pela Lei nº 11.232/2005. 29. Na sentença de improcedência, o que se pode executar são verbas de sucumbência. Mas essa execução será em outro procedimento, porque no mesmo procedimento não se pode mudar a causa de pedir e o pedido após o saneamento do processo e nem mesmo as partes, após a citação, por imperiosa disposição proibitiva do art. 264 e parágrafo único, do CPC.

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jurisdicional ulterior para a efetivação do direito. O exemplo mais comum desta modalidade é a sentença condenatória, que de regra, exige atividade jurisdicional posterior para concretizar o direito do interessado. Essa sentença é uma tutela de definição, serve como indicativo de direito, mas não serve para a sua realização. Somente providências ulteriores é que podem chegar à realização do direito. 5.2.1 Tutela condenatória

Talvez a maior responsável pela modificação da redação do art. 162, § 1º do CPC, tenha sido a sentença condenatória que, de regra30, exige processo ou procedimento posterior para impor o cumprimento (execução) da sentença. A sentença condenatória quando condena ao pagamento de quantia ou entrega de coisa, obrigação de fazer ou não fazer, apenas define o direito, isto é, quem tem razão e quem não a tem. Mas, para por aí, caracterizando uma tutela incompleta. Somente em procedimento executivo (cumprimento de sentença) é que o vencido é forçado ao cumprimento da obrigação. Neste caso, tem-se que a tutela jurisdicional foi incompleta, pois, a sentença reclama por providências jurisdicionais posteriores, para se chegar à concretização do direito. Alguns casos reclamam verdadeira ação (e processo) de execução para que se alcance a concretização do direito. Em se tratando de sentença penal condenatória, para ser executada no cível há necessidade de processo de execução e não simples procedimento de cumprimento. No caso de sentença arbitral, exige processo de execução. O mesmo se dá para o caso de sentença condenatória estrangeira. Ainda para a execução singular de sentença condenatória coletiva pelo particular que sofrera prejuízo, há necessidade de processo de liquidação e, depois, processo de execução em separado. Neste contexto, pode-se dizer que há a Tutela (prestação) jurisdicional, mas, ainda não há a tutela do direito e, por isso, ainda não se pode falar em atendimento à ordem jurídica justa. Existe a tutela jurisdicional, mas ainda não há a tutela do direito, propriamente dita, que vem a ser a concretização do direito. 6 Os diferenciais entre as tutelas

Quando se fala em acesso à justiça, vem logo a ideia de tutela jurisdicional, que é aquela que aprecia o pedido feito pela parte e que corresponde ao mérito da causa. Somente quando o pedido é apreciado é que se pode dizer que houve 30. Diz-se “de regra”, por que o artigo 466-A do CPC, não admite qualquer providência executiva posteriormente.

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acesso à jurisdição. Mas o acesso à jurisdição ainda não representa acesso à ordem jurídica justa, pois, nem sempre será o suficiente para a efetivação (concretização) do direito. De outra forma a tutela do processo e a tutela jurídica ficam aquém da tutela jurisdicional, visto corresponder a provimentos judiciais, sem o julgamento do mérito. Na primeira visa-se tutelar o processo, e na segunda a emitir provimentos judiciais fora do contexto meritório, sem a análise do pedido feito pela parte. Nesta linha de raciocínio pode-se dizer que as tutelas do processo e jurídica não prestam a jurisdição, que é direito e ao mesmo tempo garantia constitucional (art. 5º, XXXV, da CF). Somente a tutela jurisdicional que é aquela que julga o mérito do pedido da parte é que atende a previsão constitucional de acesso à justiça. A norma do art. 5º, XXXV, da CF, não contenta com o simples ingresso no Judiciário, exige-se mais, que exista julgamento de mérito, ou seja, julgamento do pedido da parte. Com o julgamento de mérito pode-se dizer que houve tutela jurisdicional, mas, casos existem em que esta tutela ainda é incompleta e para o acesso à justiça exige providência executiva para a concretização do direito, o que se pode falar em tutela do direito ou concretização do direito. O acesso à justiça não se limita apenas ao acesso ao julgamento do mérito da causa, vai mais além, pois, dependendo da pretensão do jurisdicionado, o acesso à justiça somente se dá com a concretização do direito e não com o simples julgamento. Somente quando o direito for efetivado e incorporado ao patrimônio do jurisdicionado é que se pode falar em acesso à ordem jurídica justa ou efetiva tutela do direito. 7 Acesso ao Judiciário e acesso à jurisdição

Não se pode confundir o simples acesso ao judiciário, como acesso à jurisdição e nem o acesso a esta última com o acesso à ordem jurídica justa. O nosso sistema processual é de um formalismo exagerado, que nem sempre ao acessar o judiciário, estará tendo acesso à jurisdição. O acesso ao judiciário se dá com o simples ingresso com qualquer ação e iniciando o processo (art. 262 e 263, do CPC). O acesso à jurisdição somente se dá quando o mérito da causa é julgado. Muitos dos jurisdicionados que acessam o Judiciário, não conseguem ver seu pedido julgado, em razão do formalismo excessivo que povoa o nosso sistema jurídico. O acesso à jurisdição somente se dá quando o jurisdicionado tem a sua pretensão (pedido) julgada o que corresponde ao julgamento de mérito. Todavia,

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as legislações processuais colocadas a nível infraconstitucional, vez por outra, criam pressupostos ou condições, como obstáculos ao julgamento de mérito e, por via de consequência, impedem o acesso à jurisdição que é o julgamento do pedido. Hoje, mais do que nunca, faz-se necessária releitura31 das normas infraconstitucionais, para afastar o formalismo extremo que está a impedir o acesso à jurisdição. As condições da ação (impedem o seguimento da ação) e os chamados pressupostos processuais que na maioria das vezes nada têm a ver com o processo, senão apenas com o procedimento, tornam-se empecilhos ao acesso à jurisdição, e, com isso, impedem o acesso à ordem jurídica justa. Já não se pode mais privilegiar as formas em detrimento do direito. É tempo e hora de nova releitura das formalidades processuais, eliminando-as, para possibilitar o acesso à justiça e à ordem jurídica justa, que é o que mais importa para o jurisdicionado. As formalidades excessivas podem agradar aos profissionais do direito, mas, por certo, não agradam, não interessam e nem atendem as necessidades dos jurisdicionados. 8 O regramento constitucional

A Constituição da República em seu art. 5º, XXXV, deixou clara a sua preocupação com a tutela jurisdicional, a ponto de dizer quer “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. ARAÚJO e NUNES JUNIOR, afirmam que com estes dizeres “a Constituição da República empalmou a princípio da inafastabilidade da jurisdição”32. Seguindo a mesma trilha, PENTEADO FILHO33 afirma trata-se de princípio constitucional da inafastabilidade da jurisdição com amplo acesso à justiça assegurado ao jurisdicionado o que é essencial ao Estado de direito, acrescentando que é dever do Judiciário a solução dos conflitos. 31. “Entende-se por modelo constitucional de processo, para fins de compreensão da extensão do direito a uma tutela efetiva, o conjunto de garantias constitucionais referentes ao processo dispostos no rol de direitos e garantias fundamentais e que, de forma expressa, vinculam toda a atuação jurisdicional, impondo um releitura de todas as normas processuais, de modo que os valores ali dispostos restem consagrados em todas as situações fáticas submetidas a um processo judicial e algumas delas até mesmo a um processo administrativo”. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional –Nova concepção de jurisdição, p. 117. São Paulo: Método, 2008. 32. “Sob a dicção de que ‘a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito’, a Constituição da República empalmou o principio da inafastabilidade da jurisdição, que em síntese, de um lado, ou outorga ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição e, de outro, faculta ao indivíduo o direito de ação, ou seja, o direito de provocação daquele”. ARAUJO, Luiz Alberto David e NUNES JUNIOR, Vidal Serrano. Curso de Direito Constitucional, p. 114. São Paulo: Saraiva, 2ª ed. 1999. 33. PENTEADO FILHO, Nestor Sampaio. Manual de Direitos Humanos, p. 65. São Paulo: Método, 2008.

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FACHIN34 perfila entendimento no sentido de que a norma constitucional assegura a todos o direito fundamental de acesso aos órgãos jurisdicionais para a defesa dos seus direitos. Não se pode negar que o espírito da Constituição da República é exatamente este. Todavia, ainda existem autoridades ou mesmo normas infraconstitucionais que de forma direta ou indireta, afastam ou dificultam o exercício deste direito fundamental35. Como parece ser de entendimento óbvio, a Constituição da República, com a norma estigmatizada no art. 5º, XXXV, quis dizer que a todos é facultada a via judicial, para se ter acesso à justiça, que é alem da definição do direito, a sua efetiva concretização. Entre as tutelas acima mencionadas, a principal é a tutela do direito36. Somente a tutela do direito é capaz de atingir a paz social, objetivo maior do processo e da atividade jurisdicional. As limitações que impedem o julgamento de mérito e a efetiva concretização dos direitos, impostas pelas normas infraconstitucionais, prejudicam a pacificação social e não atendem ao fim último que inspirou o constituinte a positivar a garantia do acesso à justiça e à ordem jurídica justa37. 9 Alguns obstáculos do acesso à justiça

A tendência moderna é facilitar o acesso à justiça, com a universalização da tutela jurisdicional, para se chegar à efetiva tutela do direito. Lembra FACHIN38, que para a consecução desse desiderato, é necessária a transposição de alguns obstáculos impeditivos de ingresso em juízo, a fim de permitir o maior número de pessoas a demandar, sem o que estaria comprometida a garantia de acesso à justiça. Neste passo, afirma SAMPAIO JÚNIOR, “que hoje para a população pobre essa previsão não passa de uma grande ilusão”39. 34. FACHIN, Zulmar. Direitos fundamentais e cidadania, p. 17. São Paulo: Método, 2008. 35. “Infelizmente, ainda existem, com muita frequência, autoridades governamentais que limitam a eficácia de algumas normas constitucionais, não só por deixarem de aplicá-las diretamente, mas principalmente por restringirem a sua eficácia indireta, ou seja, não reconhecendo, muitas vezes, os direitos e garantias fundamentais previstas de modo categórico nas Constituições, o que impõe aos profissionais do direito um novo pensar sobre a própria concepção de jurisdição, ação e processo, ante esse movimento mundial de constitucionalização de todo o direito, já que o Poder Judiciário, em nosso país, é o protetor direito de todos os direitos”. SAMPAIO JUNIOR, José Herval. Processo Constitucional – nova concepção de jurisdição, p. 3. São Paulo: Método, 2008. 36. [...] “daí a ideia que estamos desenvolvendo de que a jurisdição tem como escopo maior tutelar os direitos e para tanto todas as técnicas são válidas, desde que respeitem as próprias garantias aqui comentadas”, idem, idem, p. 146. 37. “Pensar em uma atividade jurisdicional que não vise obrigatoriamente à pacificação social é tratar essa função pública com descaso”. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional – Nova concepção de jurisdição, p. 12. São Paulo: Método, 2008 38. FACHIN, Zulmar. Direitos fundamentais e cidadania, p. 19. São Paulo: Método, 2008. 39. SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional – Nova concepção de jurisdição, p. 123. São Paulo: Método, 2008.

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9.1 Custas processuais

Entre tantos outros fatores que restringem o acesso à justiça, pode-se dizer das custas processuais, que têm afastado muita gente do acesso à justiça. A Constituição Federal ao prever o acesso à justiça no art. 5º, XXXV, o fez na melhores das intenções sem deixar margem ao legislador ordinário a imposição do pagamento de custas que pudesse impedir ou dificultar o pleno acesso à justiça e à ordem jurídica justa. 9.2 Exigência de depósito

A exigência de depósito antecipado para se recorrer ou se propor ação é outro obstáculo ao acesso à justiça imposto pelo legislador ordinário e que contraria a Constituição da República. A legislação ordinária exige depósito para se recorrer (art 899, parágrafos 1º, 2º, 6º e 7º, da CLT) e o art. 488, II, do CPC, exige depósito para a propositura da ação rescisória. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que a exigência de depósito para ação em que se discute crédito tributário é inconstitucional (Súmula vinculante 28). Mas esta súmula é muito tímida, pois, restringiu somente às ações em que se pretendem discutir crédito em ação de natureza tributária. E em outras ações e recursos, seja na esfera judicial e na esfera administrativa? Porque não se estender o mesmo entendimento para todos os recursos e ações? 9.3 Ausência de ampla defesa

A Constituição da República prevê ainda o direito ao contraditório e a ampla defesa em qualquer processo ou procedimento (art. 5º, LV) com todos os meios e recursos a esta inerentes. Todos os meios e recursos visados pela garantia constitucional implicam na mais ampla possibilidade probatória com aceitação de todos os meios de prova. No entanto, o legislador ordinário, vez por outra impõe norma que viola esta garantia, ao estabelecer limite ou proibição ao uso de determinada prova. O art. 401, do CPC, impede a prova exclusivamente testemunhal para contrato acima do décuplo do salário mínimo. O art. 55, parágrafo 3º, da Lei 8.213/90, afirma que para a contagem de tempo de trabalho não se admite a prova exclusivamente testemunhal, o que é, sem dúvida uma afronta aos princípios da ampla defesa e do acesso à justiça40. 40. “O direito fundamental à prova, por sua vez, encontra-se assentado em bases constitucionais principiológicas do devido processo legal, da ação, da ampla defesa e do contraditório”. TAVARES, Fernando Horta e CUNHA, Mauricio Ferreira. O direito fundamental à prova e a legitimidade dos provimentos sob a perspectiva do direito

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9.4 Condições da ação

Pela norma constitucional a ação é incondicionada. A garantia do acesso à justiça prevista como direito fundamental, não permite qualquer condicionamento para a obtenção da tutela jurisdicional. Todavia, o art. 267, do CPC, prevê casos em que o processo deve ser extinto sem julgamento de mérito, o que quer dizer, sem a prestação jurisdicional (julgamento de mérito) e, por consequência, sem a concretização do direito da parte. Entre estes casos de impedimento de julgamento de mérito (prestação jurisdicional) está a falta de uma das condições da ação (art. 267, VI, do CPC). Trata-se de norma impeditiva ou restritiva do acesso à justiça, cuja formalidade precisa ser repensada, porque atenta contra a garantia constitucional do acesso à justiça e à ordem jurídica justa. 9.5 Pressupostos processuais

Outro ponto que restringe em muito o acesso à justiça, está no artigo 267, IV, do CPC, segundo o qual, será o processo extinto sem julgamento de mérito (prestação jurisdicional) quando ausente qualquer pressuposto processual. Pela norma Constitucional, não se percebe qualquer exigência de pressuposto para se ter acesso à jurisdição que sua inteireza abrange a tutela de direito que é a concretização deste. É uma exigência infraconstitucional e que impede o exercício do direito fundamental ao acesso à justiça e a concretização do direito. 9.6 Presunção absoluta

O absolutismo não pode ser aceito em nada neste mundo. Muito menos em termos de direito e acesso à justiça. Sempre foi um equívoco denominar-se a presunção de “absoluta”, até porque, se se trata de algo absoluto, não pode ser presunção, tem de ser certeza e não apenas presunção. A presunção apenas dispensa a demonstração da certeza, mas não pode ser tida como a própria certeza. Se no passado foi admitida a chamada (inadequadamente) “presunção absoluta”, a partir da Constituição de 1988, esta figura restou extirpada do nosso meio jurídico. Presunção absoluta era aquela que não permitia defesa e nem prova em contrário. Hoje, em todo processo e procedimento é permitida a ampla defesa e, por via de consequência, prova em contrário (art. 5º, LV, da CF). democrático. REPRO, v. 195, p. 112, maio de 2011.

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A garantia constitucional do acesso à justiça exige o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV, da CF) em qualquer processo e procedimento, não se permitindo mais, a vetusta presunção absoluta, onde não se admitia prova e nem defesa em contrário. Hoje, em qualquer processo ou procedimento haverá direito ao contraditório e produção de prova e ampla defesa, afastando a figura da presunção absoluta. Não obstante isto, o legislador ordinário de forma desavisada e contrariando a garantia constitucional, ainda mantém a expressão presunção absoluta, em ofensa ao acesso à justiça e à ordem jurídica justa, como pode se ver no artigo 659, § 4º do CPC. A norma do art. 659, § 4º do CPC, afirma que o registro da penhora constituirá em presunção absoluta do conhecimento por parte de terceiro, induzindo ao pensamento de que este não poderá se defender e nem fazer prova em contrário. Se fosse assim, de que valeria o art. 5º, LV, da CF? Será que o legislador desconhece que o registro também pode conter falha? Ou será que o funcionário que certifica a inexistência de ônus não pode cometer falha na certificação? Essa norma é inconstitucional e viola o direito de acesso à justiça (art. 5º XXXV da CF) e o direito ao contraditório e à ampla defesa (art. 5, LV, da CF). A atual Constituição da república não alberga mais, tal modalidade de presunção (se é que antes poderia ser assim chamada). O direito a ampla defesa afasta qualquer imaginação de presunção absoluta. 9.7 Prescrição e decadência

Outro aspecto interessante é o que diz respeito à prescrição e decadência. Estes institutos previstos em legislação infraconstitucional, sem dúvida, impedem o acesso à justiça e a concretização do direito. Muito embora a conjugação dos artigos 295, IV e 269, IV do CPC, pode levar ao entendimento de que o seu reconhecimento é julgamento de mérito (tutela jurisdicional), em verdade é um impedimento ao acesso à justiça e à realização do direito. Levando-se em conta que a norma do art. 5º, XXXV, da CF, afirma que a lei não pode afastar da apreciação do Judiciário qualquer lesão ou ameaça a direito, estes institutos ferem a Constituição da República porque impedem, o acesso à justiça e à concretização do direito. No caso da prescrição, fica o interessado impedido de acessar a justiça (perda da pretensão), mas o seu direito persiste violado sem poder ingressar juízo. Como se falar em existência de direito, violação deste e, ao mesmo tempo, falar-se em impossibilidade do credor ter acesso à justiça?

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Conclusão

Com estas ponderações, encerro o presente estudo, conclamando aos estudiosos do direito que façam uma releitura das condições da ação e dos pressupostos processuais, para evitar que tais formalidades continuem a impedirem o acesso à justiça e a concretização do direito. Não adianta somente as pregações sobre a constitucionalização do processo. Mais que isto, é necessária a efetiva tomada de posição e colocar em prática as garantias constitucionais sobre o processo, com vistas ao pleno acesso à justiça e à ordem jurídica justa e, não somente, o acesso ao judiciário sem se alcançar a prestação jurisdicional e/ou a concretização do direito. A simples tutela jurídica ou o acesso ao judiciário, por si mesmos, não atendem ao mandamento constitucional, por não solucionarem a lide e nem alcançar a paz social, que é o objetivo maior do processo através do acesso à justiça. Sem a concretização do direito. não se pode falar em paz social. Referências

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CAPÍTULO XVIII

atIVISMo JuDICIal E o StF

Nathália Mariáh Mazzeo Sánchez Aluna regular (bolsista CAPES) do Programa de Pós-graduação stricto sensu em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Especialista em Direito Aplicado pela Escola da Magistratura do Paraná. Professora do Curso de Direito da Faculdade de Ensino Superior Dom Bosco em Cornélio Procópio/PR. Advogada.

INTRODUÇÃO

Este trabalho, construído a partir de pesquisas relacionadas a publicação anterior1, pretende a análise do conceito de ativismo judicial e sua relação com a promoção do acesso à justiça. Sem pretensão de esgotar o tema, no primeiro tópico trata-se do conceito atribuído ao fenômeno, demonstrando em que sentido a questão da judicialização da política e do ativismo judicial se cruzam, a primeira delas inclusive como consequência natural da opção constitucional quanto à extensão do controle de constitucionalidade de atos normativos. No segundo tópico, confronta-se brevemente o ativismo judicial com a prática oposta da moderação (ou auto-contenção), num objetivo de aclarar as características que anunciam uma ou outra atitudes judiciais. Num último tópico, analisa-se sucintamente algumas decisões do Supremo Tribunal Federal, desde meados do século XX até sua formação mais recente, 1.

SÁNCHEZ, Nathália Mariáh Mazzeo; SOARES, Marcos Antônio Striquer. O ativismo judicial e o paradigma da integridade na filosofia jurídica de Ronald Dworkin. In: Vladmir da Silveira. (Org.). Anais do XX Congresso Nacional do CONPEDI - Vitória. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2011, v. 20, p.10162-10182.

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analisando em que sentido o posicionamento (e a argumentação jurídica) se modificaram para atender às exigências da concepção de Direito proclamada. Nos casos mais recentes, toma-se como partida casos em que o tribunal supremo do sistema jurisdicional brasileiro se valeu da técnica da “interpretação conforme a constituição” para alargar os limites da norma objetada, em visível manipulação do texto para além de sua pretensão originária. Finalmente, a conclusão repousará na verificação de que, a despeito das conjunturas sociais e constitucionais que possibilitam a judicialização da política no Brasil, o ativismo judicial coloca-se como instrumento de ultrapassagem das barreiras normativas democraticamente estabelecidas pelo legislador, o que não raro tem sido observado na construção de métodos de modificação da norma jurídica (interpretação conforme a constituição) pelo Supremo Tribunal Federal. 1 O ATIVISMO JUDICIAL

Durante os quase quatorze anos de vida da Constituição da República Federativa do Brasil, publicada em outubro de 1988, não causa espanto – pelo menos na última década – a manifestação do Supremo Tribunal Federal quanto a temas de natureza essencialmente política. Isso porque, em especial após as trágicas consequências demonstradas pela 2ª Guerra Mundial, as Constituições modernas, a contrário de serem apenas documentos políticos despidos de autoaplicabilidade (que outrora serviam mais de fundamentação ideológica, sem formatação normativa), passam a ser verdadeiras normas jurídicas, donde emanam não só os direitos subjetivos dos cidadãos como também os parâmetros de aplicação e interpretação (assim como de criação) das demais normas do ordenamento. Baseando-se nessa modificação das estruturas de poder é que alguns autores como Mauro Cappelletti2 justificam o “agigantamento” do poder Judiciário. Segundo Luis Roberto Barroso3, as causas de tal fenômeno vão desde a necessidade de um Judiciário forte e independente (como consequência da democracia moderna), passando por uma descrença no poder Legislativo – o que ele chama de “crise de representatividade e de funcionalidade dos parlamentos em geral” –, até o descomprometimento das instâncias legiferantes, que se abstêm de trazer para si os debates mais polêmicos avocados no meio social. Tais fatores, aliados ao princípio da garantia do acesso à Justiça, trouxeram 2. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores?. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1993. p. 43. 3. BARROSO, Luis Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil contemporâneo. Disponível em: http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/constituicao_democracia_e_ supremacia_judicial_11032010.pdf. Acesso em: 10 fev 2012.

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ao órgão de cúpula do sistema jurisdicional brasileiro questões tais como a pesquisa com células-tronco embrionárias (ADI 3.510/DF), a vedação ao nepotismo (ADC 12/DF associada à súmula vinculante n. 13), a não recepção da lei de imprensa (ADPF 130/DF) e, recentemente, o reconhecimento da união estável e entidade familiar entre pessoas do mesmo sexo (ADI 4277/DF e ADPF 132). É verdade que, ao lado dos fatores apontados por Barroso, o sistema de jurisdição constitucional utilizado no Brasil contribui em grande parte para o alargamento dessas competências do STF, uma vez que todo juiz é obrigatória e necessariamente juiz constitucional (autorizado à análise e interpretação direta da Constituição Federal, com poderes de declaração incidental de inconstitucionalidade da legislação ordinária em face da Constituição), além do fato de que o rol de legitimados à propositura de ação direta de controle de constitucionalidade expandiu-se consideravelmente com o advento da nova ordem constitucional. No contraponto desse fenômeno da judicialização da política – como seu irmão “bastardo” – surge o programa do ativismo judicial, que encontrou forte manifestação no início do século XX, especificamente nos Estados Unidos, com as decisões do tribunal Warren4, oportunidade inclusive em que a denominação passou a ter caráter pejorativo. Nas palavras de Ronald Dworkin o conceito se coloca da seguinte forma: O programa do ativismo judicial sustenta que os tribunais devem aceitar a orientação das chamadas cláusulas constitucionais vagas [...]. Devem desenvolver princípios de legalidade, igualdade e assim por diante, revêlos de tempos em tempos à luz do que parece ser a visão moral recente da Suprema Corte, e julgar os atos do Congresso, dos Estados e do presidente de acordo com isso.5

No mesmo sentido é o posicionamento de Barroso, para quem “[...] a ideia de ativismo judicial está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes.”6 Exemplos de atitudes dessa natureza seriam a aplicação da Constituição a situações não originariamente incluídas no texto expresso da norma, a imposição de obrigações de fazer ao Poder Público em sede de políticas públicas (tais como a concessão de medicamentos de alto custo sem previsão orçamentária), bem como a declaração 4. BARROSO, Luis Roberto. A americanização do direito constitucional e seus paradoxos. In: Temas de direito constitucional, t. IV, p. 144 e s. Rio de Janeiro: Renovar, 2006. 5. DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 215. 6. BARROSO, Luis Roberto. Judicialização, Ativismo Judicial e Legitimidade Democrática. Disponível em: . Acesso em: 28 abr. 2012. p. 5.

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de inconstitucionalidade de atos normativos com fundamento em critérios mais maleáveis do que a afronta direta ao texto constitucional.7 Assim, enquanto a judicialização da política se coloca como um fato decorrente da própria característica constitucional brasileira, o ativismo judicial pode ser visto mais como uma postura dos tribunais, que audaciosamente autorizam-se a interpretações mais abertas de princípios tais como a “igualdade”, a “liberdade”, a “dignidade da pessoa humana”, entre outros.8 Decisões quanto à segregação nos Estados Unidos em meados do séc. XX, por exemplo, foram decisões fortemente ativistas, porquanto a Suprema Corte norte-americana reconheceu um direito moral individual contra o Estado e determinou que fossem modificadas as imposições do Legislativo e do Executivo que discriminavam brancos e negros. Foi uma ingerência do Judiciário em decisões tomadas pelas outras funções do Poder e, portanto, uma decisão ativista. Acontece que, não raro, os Tribunais são chamados a decidir questões cujo conteúdo ou repercussão política é um tanto quanto significativo. É o caso, por exemplo, da decisão do Supremo Tribunal Federal em 23 de fevereiro de 2006 quando do julgamento do HC 82.959/SP9 (Rel. Min. Marco Aurélio) que declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do §1º do art. 2º da Lei. nº 8.072 de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), afastando o óbice à progressão de regime em crimes dessa natureza. Trata-se de uma decisão sobre a inconformidade de texto de lei com a Carta Magna brasileira, mas que gera uma grande modificação não só na opinião popular, mas também nas políticas públicas criminais. O tema da posição ativa do juiz e do controle judicial dos atos das demais funções do Poder (Executivo e Legislativo) já foi objeto de estudos nas mais diversas esferas da prática judicial, a exemplo dos trabalhos de Guilherme Marinoni e de Mauro Cappelletti no âmbito do direito processual civil e dos trabalhos de Gilmar Ferreira Mendes em direito constitucional. Em sua obra “Juízes Legisladores?”, por exemplo, Cappelletti trata o fenômeno do agigantamento do Judiciário como um acontecimento natural, que advém da sobrecarga do Legislativo. Denominando-o “Terceiro Poder”, coloca o Judiciário como um contrapeso necessário aos demais poderes políticos.10 Para ele, essa ingerência do Judiciário não constitui, a nenhum tempo, um vício de legitimidade democrática: 7. Idem. 8. OLIVEIRA, Cláudio Ladeira. Ativismo Judicial, Autorestrição Judicial e o Minimalismo de Cass Sunstein. Diritto & Diritti, v. 1, p. 1-21, 2008. p. 4 9. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. HC 82959. Disponível em: Acesso em: 29 abri. 2012. 10. CAPPELLETTI, op. cit. p. 43.

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363 Um judiciário razoavelmente independente dos caprichos, talvez momentâneos, da maioria, pode dar uma grande contribuição à democracia; e para isso em muito pode colaborar um judiciário suficientemente ativo, dinâmico e criativo, tanto que seja capaz de assegurar a preservação do sistema de checks and balances, em face do crescimento dos poderes políticos, e também controles adequados perante os outros centros de poder (não governativos ou quase-governativos), tão típicos das nossas sociedades contemporâneas.11

Para Marinoni12, o papel do Judiciário deve se dar no sentido de possibilitar o acesso à Justiça. Inócuo seria o posicionamento do juiz que aplica a lei sem alinhá-la ao conteúdo do direito à sua época. Pelo motivo mesmo de que a noção de Estado é variável no tempo é que a Jurisdição deve também acompanhar tais mudanças. Não podemos mais aceitar a idéia de que o juiz atua a vontade da lei,como se a lei fosse a expressão tranqüila da vontade geral. O escopo de atuação da vontade da lei, como concebido, reflete a ideologia do Estado liberal, que em determinado momento pretendeu até mesmo proibir o juiz de interpretar a lei, vedando a interferência do Judiciário naquilo que constituía a expressão da vontade geral e identificava-se com a liberdade.13

O trabalho de Gilmar Ferreira Mendes sobre o controle de constitucionalidade faz referência expressa às lições do juiz Marshall14: “Definiram-se e demarcaram-se os poderes da legislatura; e, para que sobre tais limites não ocorresse erro, ou deslembrança, fez-se escrita a Constituição.”15. Ainda em estudo sobre a inconstitucionalidade substancial, Mendes analisa um dos pontos que considera mais importantes e divergentes no que tange ao controle de constitucionalidade, qual seja, a inconstitucionalidade decorrente do desvio de poder, que é a incompatibilidade entre os objetivos da lei e os fins consagrados na Carta Magna, ou seja, a violação ao princípio da proporcionalidade (ou da proibição do excesso). Sobre o tema, o autor cita o posicionamento de diversos ordenamentos jurídicos, tais como o alemão, que erige à categoria de norma constitucional os princípios da proporcionalidade (verhältnismässigkeit) e da proibição de excesso (übermassverbot), para constatar a adequação das leis com relação aos meios e fins, de sorte a evitar desnecessárias restrições a direitos fundamentais. Lembra, 11. 12. 13. 14.

Ibid., p. 107. MARINONI, Luiz Guilherme. Novas linhas do processo civil. 2.ed. São Paulo: Malheiros, 1999.p. 185. Ibid., loc. cit. Juiz norte-americano Chefe de Justiça dos Estados Unidos e presidente da Suprema Corte daquele país no séc. XIX, notadamente conhecido por suas emblemáticas decisões que deram início à consolidação do poder de revisão do Judiciário. 15. MARSHALL, 1839 apud MENDES, Gilmar Ferreira. Controle de constitucionalidade: aspectos jurídicos e políticos. São Paulo: Saraiva, 1990. p. 11

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no entanto, a ressalva do Tribunal alemão no sentido de que decisões dessa natureza só devem ser tomadas em casos raros e especiais, tendo em vista que são juízos políticos, econômicos e sociais que necessitam uma posição cautelosa por parte da Corte Suprema16. Em análise ao direito português, o autor menciona a elevação que o princípio da proporcionalidade em sentido amplo (ou princípio da proibição do excesso) teve também naquele ordenamento. Nos termos do estudo realizado por Canotilho, essa elevação à categoria de norma constitucional seria “[...] um limite constitucional à liberdade de conformação do legislador”.17 Desta forma, resta clara a implicação que o tema tem na interpretação do direito, até porque tem-se evidenciado um posicionamento ativista do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, exposto em decisões de usual grande repercussão social, tais como as decisões relativas ao §2º do art. 5º da Constituição Federal18. 2 ATIVISMO VERSUS MODERAÇÃO JUDICIAL

Em contraposição ao ativismo encontra-se o modelo da moderação judicial. Ao contrário, o programa da moderação judicial afirma que os tribunais deveriam permitir a manutenção das decisões de outros setores do governo, mesmo quando elas ofendam a própria percepção que os juízes têm dos princípios exigidos pelas doutrinas constitucionais amplas, excetuando-se, contudo, os casos nos quais essas decisões sejam tão ofensivas à moralidade política a ponto de violar as estipulações de qualquer interpretação plausível, ou, talvez, nos casos em que uma decisão contrária for exigida por um precedente inequívoco.19

Dentro da moderação judicial podemos encontrar correntes diversas, mais ou menos radicais, mas ainda assim contrárias ao ativismo judicial. São elas as correntes cética e da deferência judicial. Numa compreensão cética do direito, os indivíduos não teriam quaisquer direitos morais contra o Estado, mas tão somente os direitos jurídicos assegurados pela Constituição (“violações inquestionáveis da moralidade pública concebidas pelo constituinte ou estabelecidas pelo precedente judicial”). Os fundamentos que justificam tal ideia são: a) não há atos moralmente errados ou certos; ou b) 16. MENDES, op. cit., p. 36-44 passim. 17. CANOTILHO, 1986 apud MENDES, Ibid., p. 45. 18. A exemplo da impossibilidade de prisão civil do depositário infiel (Súmula Vinculante 25) e da dispensa da exigência de diploma de curso superior para a prática do jornalismo (RE 511.961/SP). 19. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 216.

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um ato só é moralmente certo ou errado dependendo de seu impacto sobre o interesse geral, desta forma, errado é aquilo que prejudica a comunidade como um todo e certo é aquilo que traz algum benefício à comunidade; ou ainda c) o bem estar do indivíduo está incorporado ao da comunidade, portanto quando a comunidade está bem não há como o indivíduo não estar também. Já no âmbito da deferência judicial, não se argumenta que os cidadãos não tenham direitos morais contra o Estado; eles têm, mas a defesa de tais direitos não caberia ao Judiciário, pois os Tribunais não são as instituições políticas adequadas para reconhecer tais direitos. 3 ATIVISMO JUDICIAL NA PRÁTICA: A “EVOLUÇÃO” DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Muito se comenta na atualidade acerca da postura ativista do Supremo Tribunal Federal, no sentido de que a Corte Suprema do país teria adotado um posicionamento mais participativo na realização dos direitos e garantias fundamentais, mesmo à revelia de conteúdos mais ou menos explicitamente delimitados na Constituição. Esse posicionamento, que será melhor detalhado à frente, tomou diversos contornos desde o nascimento do Supremo. Isso porque o próprio controle de constitucionalidade das leis no Brasil teve, em seu início, constituição bastante distinta da que se conhece hoje. Antes de declaração de independência do Brasil-colônia, havia já, por determinação do Príncipe Regente D. João, a intenção de constituir in loco um tribunal que pudesse julgar os processos em última instância, definitivamente. A dificuldade de remeter todos os recursos a Lisboa, portanto, levou à criação da Casa da Suplicação do Brasil em 1808,20 mas seu alcance de julgamento encontrava-se bastante limitado em decorrência da situação de absoluta dependência em que o Brasil se encontrava em relação ao Reino de Portugal. Já no Brasil independente, a competência do Supremo Tribunal de Justiça (denominação do órgão de cúpula da Justiça brasileira)21 era bastante limitada. Isso porque ao Legislativo era outorgado o poder de “fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las”, bem como “velar na guarda da Constituição” (art. 20. MELLO, Celso de. Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República). 2. ed. Brasília: Supremo Tribunal Federal, 2007. Disponível em: . Acesso em: 15 ago. 2012. p. 9. 21. Idem. p. 7.

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15, nº 8º e 9º)22. Além disso, a existência do Poder Moderador implicava no absoluto controle de todas as esferas de Poder pelo Imperador. Na Constituição da República de 1891 (momento em que se estabelece a denominação até hoje utilizada: Supremo Tribunal Federal)23, a despeito da possibilidade de controle difuso de constitucionalidade24, o papel do Supremo enquanto guardião das questões constitucionais em caráter geral (erga omnes) era considerado intolerável. Nesse sentido a posição de Rui Barbosa, para quem: “Os tribunais não intervêm na elaboração da lei, nem na sua aplicação geral. Não são órgãos consultivos nem para o legislador, nem para a administração.”25 Ainda limitando o âmbito de atuação do STF, a Constituição de 1934, muito embora autorizasse ao Senado a suspensão de ato normativo que tenha sido declarado inconstitucional pelo Supremo (art. 91, IV)26, vedava expressamente o pronunciamento do Tribunal acerca de questões políticas; deveria se ater, portanto, à análise jurídica (art. 68)27. Não foi outro o posicionamento da Constituição de 1937. Sob a égide de um regime autoritário, o Judiciário, que já se encontrava impedido de declarar a inconstitucionalidade de leis (por ocasião da vigência do Decreto-Lei n. 1.564/39 que confirmou todos os textos outrora declarados inconstitucionais pelo Supremo), foi novamente expressamente proibido de conhecer de questões políticas (art. 94)28. A inovação trazida pela Constituição de 1946, no entanto, parece ter incentivado os ministros do Supremo Tribunal Federal a se aventurarem nas declarações de inconstitucionalidade. O próprio art. 101 da Constituição (que tratava da competência do Supremo) alargou o âmbito de incidência da Corte. Ademais, a figura da representação interventiva (prevista nos arts. 7º e 8º da 22. BRASIL. Constituição (1824). Constituicão Politica do Imperio do Brazil. Disponível em: . Acesso em: 25 jun. 2012. 23. MELLO, Celso de. op. cit. p. 8. 24. Nesse sentido o parágrafo primeiro do art. 59 da Constituição da República: “§ 1º - Das sentenças das Justiças dos Estados, em última instância, haverá recurso para o Supremo Tribunal Federal: [...] b) quando se contestar a validade de leis ou de atos dos Governos dos Estados em face da Constituição, ou das leis federais, e a decisão do Tribunal do Estado considerar válidos esses atos, ou essas leis impugnadas.” BRASIL. Constituição (1891). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 17 ago. 2012. 25. BARBOSA, Rui. Trabalhos Jurídicos. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1965. (Série Obras Seletas de Rui Barbosa XI 1849-1923). p. 83. 26. “Art 91 - Compete ao Senado Federal: [...] IV - suspender a execução, no todo ou em parte, de qualquer lei ou ato, deliberação ou regulamento, quando hajam sido declarados inconstitucionais pelo Poder Judiciário;” BRASIL. Constituição (1934). Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 17 ago 2012. 27. “Art 68 - É vedado ao Poder Judiciário conhecer de questões exclusivamente políticas.” Loc. Cit. 28. BRASIL. Constituição (1937). Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: . Acesso em: 19 ago 2012.

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Carta Magna) condicionava a validade da lei de intervenção (em alguns casos) à verificação da constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal. A proibição expressa direcionada aos órgãos jurisdicionais de conhecer de questões políticas é retirada do texto constitucional. São desse período alguns julgados colacionados por Gilmar Ferreira Mendes29. Em meados do séc. XX, por exemplo, o Tribunal se pronunciou com relação à extrapolação da competência do Legislativo, em ofensa aos princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade. Foi da lavra do Ministro Orozimbo Nonato a decisão de 21 de setembro de 1951, quando se manifesta acerca dos limites do poder de taxar do ente público. Mesmo admitindo que o Judiciário só deveria proclamar a inconstitucionalidade que fosse flagrante, o Ministro afirma que essa própria inconstitucionalidade pode advir não de afronta expressa ao texto, mas de descumprimento do “espírito da lei”: A propósito escreve Carlos Maximiliano, nos referidos ‘Comentários à Constituição’, que ‘só se proclama em sentença, a inconstitucionalidade, quando esta é evidente, fora de toda dúvida razoável’, acrescentando que ‘os tribunais só fulminam os atos dos outros poderes quando a ilegalidade é flagrante, não deixa margem à dúvida razoável.’ [...]. Ponderea também Lucio Bittencourt, que [...] ‘há mister, para se afirmar a inconstitucionalidade, que ocorra conflito com alguma norma ou algum mandamento da Constituição, embora se considere, para êsse fim, não apenas a lera do texto, mas, também, ou preponderantemente, o ‘espírito’ do dispositivo invocado. 30

Da mesma forma, em decisão de 28 de março de 1984, sob a relatoria do Ministro Moreira Alves, o Supremo declarou a inconstitucionalidade do art. 118 da Lei n. 383/80 do estado do Rio de Janeiro, por considerar abusivos os valores para que foram elevadas as taxas judiciárias naquele ente da federação.31 Mais recentemente, na expansão da atuação do Supremo Tribunal Federal em sede de controle de constitucionalidade, tem-se verificado a incidência do método da “interpretação conforme a constituição”. Sustentandose na concordância doutrinária e jurisprudencial acerca da supremacia da Constituição, o método impõe o reconhecimento de que todas as normas jurídicas hierarquicamente inferiores à Constituição devam ser interpretadas em 29. Controle de constitucionalidade. Op. cit. p. 46. 30. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 18331/SP. Disponível em: . Acesso em: 19 ago 2012. 31. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rp 1077/RJ. Disponível em: . Acesso em: 19 ago 2012.

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consonância com a Lei Maior.32 De outra sorte, a presunção da constitucionalidade das normas (presunção juris tantum) leva igualmente à pretensão de manutenção do ordenamento jurídico.33 O método, tradicionalmente, é de ser admitido sempre que a interpretação dele resultante não viole o texto literal da lei e não altere seu significado de modo a inverter completamente a concepção original do legislador ao editálo. É o limite, inclusive, estabelecido pela Corte Constitucional alemã (o Bundesverfassungsgericht) em decisões desta natureza.34 Dessa forma, o controle de constitucionalidade pelo método da interpretação conforme a Constituição constitui-se em forma hábil à manutenção do texto constitucional, por uma questão de segurança jurídica e respeito à construção constitucional, sem violação da norma que poderia ser retirada do ordenamento jurídico. Ocorre que, por conta da indeterminação destes limites, a linha que define “interpretação conforme” e “alteração legislativa” é bastante tênue. Por isso é que, nos casos em que a interpretação conforme a constituição extrapole os limites a ela estabelecidos e modifique ou alargue substancialmente as hipóteses de incidência do texto normativo, a doutrina italiana tem convencionado denominar tais decisões de “manipulativas”.35 Nas decisões manipulativas, o órgão responsável pela interpretação constitucional modifica ou adita normas que sejam submetidas à sua apreciação, exatamente por entender que o conteúdo original da norma estaria em contrariedade com a Constituição, o que faz na tentativa de adequá-lo às pretensões constitucionais.36 Mendes, assim, classifica tais decisões em duas espécies distintas (do gênero decisões manipulativas): a) as de efeitos substitutivos e; b) as de efeitos aditivos. As decisões manipulativas de efeitos substitutivos seriam aquelas em que o juízo constitucional, ao declarar a inconstitucionalidade de determinada norma, o faz somente na parte em que, ao invés de estabelecer tal disciplina, a norma estabeleceu outra, disciplina esta que, se mantida, tornará a norma inconstitucional.37 Por sua vez, as decisões manipulativas de efeitos aditivos têm sido conceituadas pela doutrina como aquelas nas 32. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. 5. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 1430. 33. NEVES, Marcelo. Teoria da inconstitucionalidade das leis. São Paulo: Saraiva, 1988. p. 145. 34. MENDES, Gilmar Ferreira. Jurisdição constitucional: o controle abstrato de normas no Brasil e na Alemanha. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 261. 35. Idem., Curso de direito constitucional, op. cit. p. 1430-1431. 36. GUASTINI, Riccardo. Lezioni di teoria costituzionale. Torino: G. Giappichelli, 2001. p. 222. 37. MENDES, op. cit. p. 1433.

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quais a declaração de inconstitucionalidade da norma não se restringe a dela extrair aquilo que é contrário à Constituição, mas a alargar o texto da lei, para nele incluir outras hipóteses dantes não previstas.38 No primeiro caso (decisões manipulativas de efeitos substitutivos), o Supremo Tribunal Federal já utilizou de tal técnica na decisão da ADI-MC 2.332/DF39, de relatoria do então Ministro Moreira Alves (caso em que, inclusive, foi vencido o relator nesse ponto), quando o Tribunal decidiu que a expressão “de até seis por cento ao ano” constante do art. 15-A do DecretoLei n. 3.365 de 21 de julho de 1941 (alterado pela Medida Provisória nº 2027-43 de 27 de setembro de 2000) deveria ser substituída pela expressão “diferença eventualmente apurada entre 80% do preço ofertado em juízo e o valor do bem fixado na sentença”. Tratava-se de caso em que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil insurgia-se quanto à forma de incidência de juros compensatórios sobre a indenização devida aos proprietários desapossados de suas terras por força de desapropriação por necessidade/utilidade pública e interesse social. Assim, para adequar a interpretação da norma à pretensão constitucional, foi substituída parte do texto original por outro, de acordo com a concepção exarada pela Corte Constitucional. Já no segundo caso (decisões manipulativas de efeitos aditivos), vê-se que a técnica tem sido utilizada tanto no controle concentrado de constitucionalidade (através do método de interpretação conforme a constituição em ações diretas) como por meio do controle difuso (operado no caso concreto, através dos remédios constitucionais individuais, como o mandado de injunção). Nesse sentido, notável é o caso da ADPF 5440, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, em que foi admitida a possibilidade de interrupção da gravidez nos casos de fetos comprovadamente anencefálicos, numa interpretação aditiva do art. 128 do Código Penal. Tratava-se de ação proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) em que se pleiteava pelo reconhecimento da anencefalia, inviabilidade do feto e a consequente antecipação terapêutica do parto. Em decisão final de 12 de abril de 2012, o Tribunal, por maioria de votos, decidiu pela declaração de inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção da 38. Idem., p. 1432. 39. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (Med. Liminar) 2332-2. Disponível em: . Acesso em: 20 abr 2012. 40. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (Med. Liminar) 54-8. Disponível em: . Acesso em: 01 mai. 2012.

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gravidez de feto anencéfalo é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal. No caso da utilização do mandado de injunção, emblemática foram as decisões41 que determinaram a aplicação da Lei n. 7.783/89 (que dispõe sobre a greve na iniciativa privada) aos servidores públicos, estendendo de forma aditiva o âmbito de incidência da norma, por expressa falta de regulamentação. Outro exemplo de notório caráter manipulativo aditivo foi a decisão proferida no RMS 22.307, que estendeu o âmbito de incidência de norma que concedeu revisão de vencimentos a um grupo determinado de servidores públicos (militares), para abarcar outro grupo não mencionado na referida lei (civis). Decisões desta natureza têm sido correntes na jurisprudência de países tais como a Itália, Espanha e Portugal. São decisões que respondem, conforme Augusto Martín de La Vega42, a anseios comuns em quaisquer sistemas de controle de constitucionalidade, por conta de alguns fatores inegavelmente comuns às ordens constitucionais modernas, como por exemplo: a) o caráter programático das Cartas Constitucionais, com maior natureza política e que objetiva o desenvolvimento social; b) a manutenção de um ordenamento jurídico-positivo infraconstitucional com resquícios autoritários; e c) a crescente incapacidade do Legislativo para responder prontamente às exigências constitucionais e à adequação do ordenamento preexistente à nova ordem constitucional. Mais recentemente, inclusive, decisão proferida na ADI 4.277/DF43, de relatoria do Min. Ayres Britto, reconheceu a existência de entidade familiar entre casais homoafetivos, outorgando-lhes a possibilidade de reconhecimento de união estável entre si. A decisão, que invocou interpretação conforme a Constituição ao § 3º do art. 226 da própria Constituição Federal, apoiou-se na existência de direitos não explícitos no texto para afirmar que o conceito de entidade familiar disposto no caput daquele artigo não poderia ser interpretado de maneira restritiva. Vê-se, portanto, que, no transcurso do tempo, muitas foram as decisões proferidas pelo STF. A pergunta que se faz, inevitavelmente e a despeito dos objetivos que pretendam ser alcançados com as decisões de natureza política do Supremo Tribunal – por melhores que possam se demonstrar –, é: os fundamentos dessas decisões coadunam-se com o modelo de Estado e de Direito que escolhemos enquanto comunidade? 41. Mandados de Injunção n.ºs 670/ES, 708/DF e 712/PA. 42. LA VEGA, Augusto Martín. La sentencia constitucional em Italia. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2003. p. 229-230. 43. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.277. Disponível em: . Acesso em: 19 ago 2012.

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CONCLUSÃO

Na evolução da Teoria da Constituição, vê-se que a importância que o texto adquiriu no transcorrer dos tempos foi se modificando. De carta política despida de autoaplicabilidade, as constituições se transformaram em verdadeiras normas jurídicas que impõem condutas ao ente público no paradigma do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a Constituição da República Federativa do Brasil apresenta características peculiares. Repleta de princípios informadores das condutas humanas, ela estabelece parâmetros elevados de observância obrigatória. Nessa conjuntura, o amplo rol de legitimados à propositura de ações diretas, bem como a preocupação em realizar as pretensões constitucionais, levaram à inevitável judicialização de questões políticas. Apresentadas ao Judiciário, as angústias da sociedade clamam pela aplicação do “braço forte” do juiz, chamado a resolver o que não encontra amparo na Legislatura. Mas nem sempre o Supremo Tribunal pôde utilizar-se de sua jurisdição para proclamar a “correta” interpretação das normas máximas do ordenamento jurídico pátrio. Conforme foi observado, por muitos anos a proibição de análise de questões políticas pelo STF pretendeu estabelecer a perfeita divisão das funções do Poder. Somente após a promulgação da Constituição da República em 1946 é que o Supremo passou a, de forma mais incisiva, imiscuir-se nas questões que, decorrentes do Legislativo ou do Executivo, pudessem demonstrar qualquer incompatibilidade com a Constituição. Ainda nessa época, no entanto, as manifestações não adquiriam o refinamento dos argumentos jurídicos esposados nos últimos anos. Conforme demonstrado, a alteração do Estado de Direito e seu mais “novo” papel de promover os direitos e garantias fundamentais dos cidadãos e da coletividade impôs ao Judiciário uma atuação mais direta na consecução dos fins constitucionais. O ativismo judicial, portanto, nesta conjuntura, vislumbra solo fértil ao seu crescimento. Ressaltam-se, assim, as decisões do Supremo Tribunal Federal que, na utilização do instrumento da “interpretação conforme a Constituição”, ampliam o âmbito de incidência da norma jurídica, em espaços nunca dantes desbravados pelo Legislativo. Na análise do método da interpretação conforme, vê-se que a modificação dos limites originariamente estipulados (adequação ao texto e à intenção legislativa) levou à construção das decisões manipulativas de efeitos aditivos e substitutivos, o que importa em verdadeira criação

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legislativa, inovando para os casos em que o legislador originário jamais havia concebido. Nesse sentido, emblemáticas foram as decisões do Supremo Tribunal Federal nos últimos anos, alargando sobremaneira o campo de incidência de determinadas normas e, em outros casos, criando novas regras jurídicas dantes inexistentes. Se de um lado, a pretensão judiciária repousa na tentativa de realização da justiça no caso concreto, de outro a postura ativista demonstra, no mínimo, problemas da ordem da legitimidade democrática do Judiciário, que se infiltra nas funções ordinárias do Legislativo. A despeito do inconteste benefício social revelado por algumas decisões do Supremo (a exemplo do reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas) vê-se que o exercício argumentativo esposado pelo Tribunal denota decisão de cunho ativista, em que a discussão pública é deslocada de seu lugar de excelência (Legislativo) para a tribuna de um órgão composto por 11 membros indicados pelo Presidente da República, o que evidencia, no mínimo, um problema de representatividade e reconhecimento social das instâncias legiferantes. REFERÊNCIAS

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Supremo

Tribunal

Federal.

AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE (Med. Liminar) 2332-2. Disponível em: . Acesso em: 20 abr 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. RE 18331/SP. Disponível em: . Acesso em: 19 ago 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Rp 1077/RJ. Disponível em: . Acesso em: 19 ago 2012. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4.277. Disponível em: . Acesso em: 19 ago 2012. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1993. DWORKIN, Ronald. O império do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

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CAPÍTULO XIX

a GaRaNtIa Do aCESSo À JuStIÇa ao EStRaNGEIRo No BRaSIl E Na VISÃo Do DIREIto INtERNaCIoNal Luís Renato Vedovato Mestre e Doutor em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da USP. Professor da Faculdade de Direito da PUC de Campinas e da FACAMP.

INTRODUÇÃO

A complexa e, na maioria dos casos, penosa situação do estrangeiro solicitante de ingresso e a relação entre direito interno e direito internacional são os temas em debate no presente trabalho. O foco é investigar como se pode incrementar o acesso à justiça para esses estrangeiros na zona primária de fronteira brasileira com o auxílio dos ditames do direito internacional. Sendo importante, nesse momento, enfatizar que ao se fazer referência ao direito internacional, fazse alusão a todo o grupo de normas que o formam. Além disso, é sabido que o Brasil, por ter aumentado sua importância econômica mundial nas últimas décadas, tem recebido muitos migrantes, em especial aqueles provenientes de países da América do Sul. Durante o aumento do fluxo migratório continental para o Brasil, reconhece-se uma política migratória incentivadora, tendo-se em vista as frequentes edições de normas que permitem a regularização documental daqueles que aqui buscam seu destino. O que não parece existir de forma clara é uma política de permissão de acesso à justiça àqueles estrangeiros que aguardam sua admissão em território nacional.

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O direito interno e o direito internacional, no entanto, exigem que essa política seja construída e implementada. O debate, então, envolve saber o que é necessário para se cumprir as normas internacionais e a Constituição no tocante ao acesso à justiça do solicitante de ingresso na zona primária de fronteira brasileira. O tema também se fecha no que concerne ao objeto, pois, trata da questão específica do acesso à justiça. Inegável que a ampliação da relevância do direito internacional é sensível e se aprofunda, no Brasil, com a sujeição do país à jurisdição da Corte Americana de Direitos Humanos, o que aconteceu em 10 de dezembro de 19981. O aprofundamento das relações entre direito internacional e interno, chamada por Marcelo Neves2 de transconstitucionalismo faz nascer críticas por conta da criação de supostas limitações internas, especialmente no tocante à criação de leis contrárias a tratados internacionais. Também a crítica recai sobre o efeito irradiante dos direitos humanos, que se expandem cada vez mais, especialmente em função de uma interpretação expansiva da proteção dos direitos humanos3. Nesse sentido, a interação, a interdependência e os conflitos potenciais entre as obrigações internacionais de direitos humanos e a liberdade de ação dos governos nacionais e os legisladores têm sido objeto de debate no Brasil nos últimos anos. O que acontece, porém, em menor escala no que toca ao estrangeiro, pois, tido como cidadão de segunda classe, pois não possui direito a participação em processo eleitoral, salvo em casos excepcionais, como é o do português no Brasil. A crítica, que se aprofunda quando envolve normas mais protetivas a estrangeiros, foi levantada contra o conteúdo dinâmico de normas internacionais de direitos humanos e as limitações trazidas à evolução das legislaturas nacionais, além do tema dos recursos escassos para direitos sociais. Parte-se das normas previstas nos instrumentos internacionais, embora os problemas normativos e desenvolvimentos inerentes a esses instrumentos não podem ser separados do segundo aspecto do debate: o papel dos organismos internacionais de direitos humanos, em especial o da Corte Americana de Direitos Humanos. Assim, destaca-se a relevância do direito internacional no tocante ao acesso à justiça, 1. CARVALHO RAMOS, A. D. Direitos Humanos Em Juízo Comentários Aos Casos Contenciosos E Consultivos Da Corte Interamericana De Direitos Humanos E Estudo Da Implementação Dessas Decisões No Direito Brasileiro. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 30. 2. NEVES, M. Transconstitucionalismo. 1º ed. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 35. 3. KOCH, I. E.; VEDSTED-HANSEN, J. International Human Rights and National Legislatures - Conflict or Balance. Nordic Journal of International Law, v. 75, p. 3, 2006, p. 4.

A GARANTIA DO ACESSO À JUSTIÇA AO ESTRANGEIRO NO BRASIL E NA VISÃO DO DIREITO INTERNACIONAL

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pois busca superar as lutas políticas internas, que podem levar estrangeiros ao desamparo. 1 O ACESSO À JUSTIÇA E O DIREITO INTERNACIONAL

Enfrentar a questão sobre como as decisões internacionais devem ser aplicadas internamente é de suma relevância, por conta disso, o diálogo das fontes entre direito interno e direito internacional é tido como necessário por Carvalho Ramos4, especialmente após a vinda da Emenda Constitucional 45/04, nos seguintes termos: Vivemos um momento de reapreciação e de evidente valorização do Direito Internacional dos Direitos Humanos pelo Supremo Tribunal Federal (STF). A Emenda Constitucional 45, de 8 de dezembro de 2004 (EC 45/04), que introduziu o § 3º do artigo 5º da Constituição Federal (CF/88), estimulou a revisão da jurisprudência do STF sobre os tratados internacionais de direitos humanos.

Logo, como o acesso à justiça é um dos principais direitos humanos, pois instrumento para o direito de se ter direitos, importante a alusão à Convenção Americana, em seu art. 8º, para iniciar a discussão sobre o acesso à justiça, que assim dispõe: Art. 8o Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: a) direito do acusado de ser assistido gratuitamente por um tradutor ou intérprete, caso não compreenda ou não fale a língua do juízo ou tribunal; b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; 4. CARVALHO RAMOS, André. O Diálogo das Cortes: O Supremo Tribunal Federal e a Corte Interamericana de Direitos Humanos. In: AMARAL JÚNIOR, Alberto do; JUBILUT, Liliana Lyra. (Org.) O STF e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 805.

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e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; f ) direito da defesa de inquirir as testemunhas presentes no Tribunal e de obter o comparecimento, como testemunhas ou peritos, de outras pessoas que possam lançar luz sobre os fatos; g) direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessarse culpada; e h) direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior.

Há posicionamentos doutrinários que ressaltam a limitação à possibilidade de ação do Poder Legislativo interno, tendo em vista a regulação por tratados internacionais, o que, para alguns5, pode ser tido como uma afronta à democracia, apesar de parecer, nesses debates, esquecida a participação do Legislativo na formação dos tratados. De forma exemplificativa e simplista, é possível serem identificados duas formas diferentes, mas complementares, de abordagens para a questão dos direitos humanos em face da legitimidade democrática. A primeira abordagem pode, em certa medida, ser caracterizada como uma estratégia mais defensiva, na medida em que postula que não existe qualquer conflito necessário entre direitos humanos e democracia. Como se percebe, tal linha de raciocínio é baseado em um conceito de democracia qualificada, que percebe a legitimidade democrática não exclusivamente decorrente do apoio popular e de tomada de decisão majoritária, mas também incluindo a proteção dos direitos individuais e coletivos e as liberdades, uma defesa contramajoritária. Portanto, a defesa dos direitos humanos como um elemento conceitual da democracia é, logicamente, ligada à fundação de direito internacional dos direitos humanos (DIDH). De fato, o DIDH é formado por princípios e normas de restrição do poder soberano dos governos e legisladores, o que fortalece a democracia. A preocupação com a estrutura internacional para proteção de direitos internos nasce com base na experiência trágica dos excessos que se viram resultar da soberania irrestrita desses poderes na exploração doméstica, como é o caso do Nazismo alemão, entre tantos outros exemplos. Seguindo nesse raciocínio, a interdependência entre direitos humanos e democracia deve ser vista de forma mais positiva por referência a normas concretas de direitos humanos, incluindo a recente jurisprudência da Corte Americana de Direitos Humanos. Logo no início do período pós-II Guerra Mundial, instrumentos de proteção internacional de direitos humanos realmente identificavam uma clara ligação entre tais direitos e democracias estáveis e 5. Sobre os críticos, numa visão mais global, cf. (KOCH; VEDSTED-HANSEN, 2006, p. 5)

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pacíficas, baseadas no primado da lei. O preâmbulo da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 apontou a atos de barbárie resultante da violação de direitos humanos e à proteção dos direitos humanos por parte do Estado de Direito como essencial para construção da participação popular. Assim, a interdependência positiva articulada se tornou mais clara, ou, pelo menos, mais evidente a partir das decisões da Corte Americana, que começaram a ser exaradas a partir do final da década de 80, quando passam a surgir decisões sobre aplicação de princípios e normas de direitos humanos nos casos em que a Corte foi chamada a tomar uma posição sobre o conflito aparente entre as liberdades individuais e coletivas valores e princípios democráticos. Tomando o sistema Europeu como exemplo paralelo, num caso relativo à dissolução de um partido político, a Corte Européia afirmou, com referência explícita ao preâmbulo da Convenção, que “a democracia, portanto, parece ser o único modelo político previsto pela Convenção e, portanto, a única compatível com ele”6. Em outro caso, a Corte aceitou a dissolução de um partido, na sequência de uma análise abrangente de que o programa do partido e as políticas formavam um pano de fundo contra os princípios gerais da formação do Estado e da democracia no sistema da convenção7. Auxiliando no avanço da questão, é importante lembrar que a expressão “Acesso à Justiça” adquiriu o significado atual no final da década de 1970. Anteriormente, era associada ao acesso às instituições judiciárias governamentais. No pós-Guerra, no campo jurídico, ocasionalmente, aparecia como uma descrição do objetivo e os benefícios da assistência judiciária, ou dos meios de igualdade perante a lei8. No final dos anos 1970, porém, a expressão adquiriu um novo e mais amplo significado: a possibilidade de o indivíduo usufruir das diversas instituições, governamentais (e não governamentais), judiciais e extrajudiciais, para poder perseguir a justiça9. Ao mesmo tempo, a guerra fria ainda trazia dificuldades para a implementação de normas de direito internacional dos direitos humanos. A queda do muro de Berlin trouxe um novo impulso para a proteção internacional dos direitos humanos, colocando o Direito Internacional em posição de protagonista. O Direito Internacional trouxe claros reflexos para o Brasil nesse ponto. 6. O caso analisado foi o Partido Comunista Unido da Turquia v. Turquia, ECtHR julgamento de 30 de janeiro de 1998, parágrafo. 45 7. Cf. Refah Partisi e outros v. Turquia, ECtHR julgamento de 13 de fevereiro de 2003 (GC), parágrafos. 86-136 8. GALANTER, M. Access to Justice in a World of Expanding Social Capability. Fordham Urban Law Journal, v. 37, p. 115, 2010, p. 117. 9. GALANTER, M. Access to Justice in a World of Expanding Social Capability. Fordham Urban Law Journal, v. 37, p. 115, 2010, p. 118.

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Como exemplo pode ser citado o art. 595 do CPP, que, por força do art. 8º da Convenção Americana, acima citada, teve sua revogação acelerada. Tal dispositivo determinava que o condenado em primeira instância só poderia ter sua apelação apreciada caso não fugisse da prisão10. Em referência ao judiciário, pois o reflexo acima reconhecidamente recaiu sobre o poder legislativo, as consequências chegaram com dois casos famosos, Damião Ximenez e Maria da Penha. Em ambos os casos, o sistema interamericano (no primeiro caso, a decisão foi da Corte, e no segundo, da Comissão) debruçou-se sobre a negação de acesso à justiça feita pelo Brasil. Neles, houve condenação ao Brasil por negar acesso à justiça aos prejudicados, merecendo, no primeiro caso, especial menção, na decisão, à atuação do representante do poder judiciário, como será adiante discutido. O acesso à justiça também é importante componente para identificar o desenvolvimento do país, pois é uma parte vital do mandato do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) com a finalidade de reduzir a pobreza e fortalecer a governabilidade democrática. Dentro do contexto mais amplo da reforma da justiça, nicho específico do PNUD, identifica-se como necessário o apoio à justiça e à criação de sistemas relacionados para que eles funcionem para os pobres e desfavorecidos. O implemento do acesso à justiça também é consistente com o forte empenho do PNUD para que a Declaração do Milênio alcance seus objetivos. Buscando assim, conforme relatório do PNUD publicado em março de 2004, capacitar os pobres e desfavorecidos a buscar soluções para a injustiça e fortalecer os laços entre as estruturas formais e informais, combatendo preconceitos inerentes a ambos os sistemas. Tudo isso poderá fornecer acesso à justiça para aqueles que de outra forma seriam excluídos. Dessa forma, assim como no final da segunda guerra foi relevante para a proteção dos direitos de primeira geração, é identificável agora a atuação do direito internacional para tentar buscar a concretização dos direitos sociais. 2 O BRASIL, O ESTRANGEIRO E O ACESSO À JUSTIÇA

Na história do Brasil, são destacados dois grandes momentos migratórios internacionais. O primeiro é o chamado período clássico e o segundo, tido como o período recente de migração11. Nesse último, o movimento não foi apenas 10. STEINER, S. H. D. F. A Convenção Americana Sobre Direitos Humanos E Sua Integração Ao Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, p. 44. 11. FISCHER-BOLLIN, P. (Ed.). Migración y políticas sociales en América Latina, p. 60.

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de pessoas se deslocando para o Brasil, como ocorreu no primeiro, mas inclui também pessoas que saíam do país. Todavia, Lopes12 defende que os fluxos migratórios para o Brasil começaram muito antes de 1870, nos seguintes termos: “A história do Brasil pode ser contada a partir das migrações. A primeira grande ‘migração’ foi realizada pelos nativos que aqui viviam quando do ‘descobrimento’, e remonta a época pré-histórica.”. De fato, o maior fluxo global de pessoas ocorreu entre 1850 e 1950, e o Brasil sofreu as consequências desses deslocamentos um pouco tardiamente, o que pode ser visto pela comparação com os demais países do mundo, pois ganhou força apenas no meio da segunda metade do século XIX. Esses deslocamentos se estenderam por alguns anos após o auge global, tendo em vista que o Brasil recebeu grande fluxo de migrantes também após a Segunda Guerra Mundial. A ditadura militar, na década de 1970, e a crise econômica, na década de 1980, fizeram o fluxo de migração para o Brasil cair em excesso, permitindo que fosse dito que a população brasileira teria já alcançado estabilidade13. Pode-se, assim, concluir que o Brasil é um país de migrantes. No período de 1870 a 1970, o Brasil recebeu 9% do total de migrantes do mundo14 Em finais do século XX15, 40% da população seria formada por quem saiu de seu local de origem para procurar melhoria de condições econômicas de vida em outros lugares, sendo o Nordeste do País identificado como o principal foco de origem desses emigrantes16. Segundo Patarra17, deve ser considerado o cenário em que foram assumidos os compromissos internacionais para a efetivação dos direitos humanos dos estrangeiros migrantes, devendo ser reconhecido o papel dos Estados e as políticas sociais que merecem ser aplicadas aos processos nacionais 12. LOPES, C. M. S. Direito de imigração: o Estatuto do Estrangeiro em uma perspectiva de direitos humanos. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009, p. 275. 13. FIESS, N. M.; VERNER, D. Migration and Human Capital in Brazil During the 1990s. SSRN eLibrary. Disponível em: . Acesso em: 2 abr. 2012. 14. Cf. FISCHER-BOLLIN, P. (Ed.). Migracion y políticas sociales em America Latina, p. 61. 15. FIESS, N. M.; VERNER, D. Migration and human capital in Brazil during the 1990s. SSRN eLibrary. 2003. p. 2. Disponível em: < http://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=636455>. Acesso em: 2 abr. 2011. 16. Ibidem, p. 7. 17. De acordo com Patarra: “é extremamente importante considerar o contexto de luta e compromissos internacionais assumidos em prol da ampliação e efetivação dos Direitos Humanos dos migrantes. É preciso reconhecer o novo, difícil e conflitivo papel dos Estados Nacionais e das políticas sociais em relação aos processos internacionais e internos de distribuição da população no espaço – cada vez mais desigual e excludente. Há que se tomar em conta as tensões entre os níveis de ação internacional, nacional e local. É de fundamental importância considerar que os movimentos migratórios internacionais constituem a contrapartida da reestruturação territorial planetária – que, por sua vez, está intrinsecamente relacionada à reestruturação econômico-produtiva em escala global.” (PATARRA, N. L. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes, fluxos, significados e políticas. São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 3. DOI: 10.1590/S0102-88392005000300002, 2005. p. 23.)

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e internacionais, especialmente relativos à distribuição de pessoas pelo globo. Para Patarra18, é possível se elaborar um resumo para se ter uma visão clara sobre os “pontos que permanecem como contribuições imprescindíveis para o debate”, pois, destacando os principais, (1) o Brasil passa a fazer parte da reestruturação produtiva internacional, refletindo no emprego e no que se chama de “nova questão social”; (2) por conta das crises econômicas, especialmente as enfrentadas a partir da década de 80, a circulação pelo mundo passou a ser necessária para o enfrentamento dos novos desafios trazidos pela globalização; e (3) a circulação de capital, tendo como destino ou origem o Brasil, passou a ser relevante. A situação menos favorável de vizinhos da América do Sul, no entanto, tem colocado o Brasil em um novo desafio, em particular quando a questão envolve assistência social e direito à saúde. Pela pesquisa de Nogueira, Dal Prá e Fermiano19, ao se debruçarem sobre a situação do direito à saúde nos hospitais brasileiros próximos às fronteiras do País com os países do Mercosul, é possível identificar, como forma de alerta, que há um aumento de custos financeiros para os municípios, por conta do atendimento a não residentes. E continuam os autores20, ao fazerem alusão às respostas da pesquisa, afirmando que parte delas é contrária à concessão do direito à saúde ao estrangeiro com fundamento em uma insuficiência do próprio sistema, que não atende também aos anseios dos brasileiros. O governo brasileiro, no entanto, aparentemente alheio aos impactos econômicos do ingresso de estrangeiro em seu território, não tem se preocupado em criar políticas públicas em que se objetive a inserção do migrante estrangeiro, especialmente garantindo-lhe, na zona primária de fronteira, o acesso à justiça. 18. PATARRA, N. L. Migrações internacionais de e para o Brasil contemporâneo: volumes, fluxos, significados e políticas. São Paulo em Perspectiva, v. 19, n. 3, p. 25. 19. NOGUEIRA, V. M. R.; DAL PRÁ, K.; FERMIANO, S. A diversidade ética e política na garantia e fruição do direito à saúde nos municípios brasileiros da linha da fronteira Mercosul. Cad. Saúde Pública, v. 23, suppl. 2, p. S227-S236, 2007. p. 228: “[...] peso causado aos municípios para arcar com os custos financeiros dos atendimentos aos usuários não residentes, sendo esse o fator primordial para a negação do direito. A orientação de não atendimento por parte dos gestores foi uma das respostas explicativas para a não garantia dos direitos por apenas 3% dos respondentes”. 20. Ibidem, p. 232. Segundo os doutrinadores em comento: “Parte das respostas contrárias à garantia do direito ao usuário não brasileiro é motivada por uma insuficiência do próprio sistema, que não atende, também, os brasileiros de forma satisfatória. Assim, parece não estar em jogo o fato de a pessoa ser estrangeira, mas essencialmente a debilidade das políticas de saúde brasileiras. Alertam para o peso causado aos municípios para arcar com os custos financeiros dos atendimentos aos usuários não residentes, sendo esse o fator primordial para a negação do direito. A orientação de não atendimento por parte dos gestores foi uma das respostas explicativas para a não garantia dos direitos por apenas 3% dos respondentes. Parte das respostas contrárias à garantia do direito ao usuário não brasileiro é motivada por uma insuficiência do próprio sistema, que não atende, também, os brasileiros de forma satisfatória. Assim, parece não estar em jogo o fato de a pessoa ser estrangeira, mas essencialmente a debilidade das políticas de saúde brasileiras.” (ibidem, p. 228).

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Mais do que uma simples criação de política pública sobre o ingresso de estrangeiros, a integração no Mercosul demonstra exigir a realização de uniformizações nas políticas de saúde, conforme apontado por Nogueira, Dal Prá e Fermiano21. Em tal trabalho, as conclusões indicam a necessidade de aprofundamento “das referências teóricas recentes sobre harmonização da atenção à saúde nos blocos regionais”22, além de demonstrar a importância adquirida pelos conhecimentos sobre os sistemas de valores, ou, em outras palavras, “o patamar de solidariedade que se quer alcançar, visto que as distinções entre os países são gritantes”23. Faz-se necessário salientar que a Lei no 6.815/1980, denominada Estatuto do Estrangeiro, por ter nascido em período ditatorial, dá ao estrangeiro um tratamento de exclusão. Seus dispositivos são meios para proteção do Estado diante de uma possível “ameaça estrangeira”. O texto do Estatuto do Estrangeiro, evidente, deve ser interpretado sob a luz da Constituição Federal de 1988, o que serve para mitigar os impactos ideológicos do tempo em que foi criado. Como adverte C. M. S. Lopes24: “A lei 6815/80, que foi promulgada por decurso de prazo e em tempos ditatoriais, mereceria uma revisão que a vinculasse aos novos tempos de democracia”. Até mesmo na Constituição de 1988, a referência, inserida no art. o 5 , caput, a estrangeiros residentes no País pode ser tida como uma redação equivocada, a qual, por construção doutrinária e jurisprudencial, foi afastada da sua literalidade. De outra parte, não foi enfrentado, pela legislação interna brasileira, o tema relativo à fruição de direitos sociais pelos estrangeiros. O paradoxo da migração também aqui pode ser identificado, ou seja, o estrangeiro que se encontra no País deve ter os mesmos direitos que o nacional, porém, isso intensifica as restrições à entrada de migrantes. Como descrito por Illes, Timóteo e Pereira25: “[...] [u]ma reportagem da BBC-Brasil (27 de março de 2008), citando dados da Polícia Federal e do Ministério Público do Trabalho, mostra que o Brasil tem sido um destino escolhido por um número cada vez maior de imigrantes em busca de oportunidades. Ainda segundo a reportagem, de 2004 a 2007, houve um aumento de 51% no total de 21. NOGUEIRA, V. M. R.; DAL PRÁ, K.; FERMIANO, S. A diversidade ética e política na garantia e fruição do direito à saúde nos municípios brasileiros da linha da fronteira Mercosul. Cad. Saúde Pública, v. 23, p. 234.. 22. Ibidem, p. 236. 23. Ibidem, p. 238. 24. LOPES, C. M. S. Direito de imigração: o Estatuto do Estrangeiro em uma perspectiva de direitos humanos. Porto Alegre: Núria Fabris, 2009. p. 649. 25. ILLES, P.; TIMÓTEO, G. L. S.; PEREIRA, E. Tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho na cidade de São Paulo. Cad. Pagu, p. 219-251, 2008. p. 202.

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novos estrangeiros no país; quando se consideram apenas países sulamericanos, o aumento foi de 144% entre 2004 e 2007”.

Os autores26 em referência destacam que há um crescimento da importância da migração pelo mundo, pois o recém-iniciado século XXI tem demonstrado, em diversos países do mundo, níveis recordes de imigração, segundo dados do Fundo de População das Nações Unidas – UNFPA –, atualmente, existem mais de 200 milhões de migrantes no mundo. No entanto, a criação de um aparato que garanta o acesso à justiça aos solicitantes de ingresso é algo faltante na estrutura brasileira, pois, apesar de se alegar que há falhas em nossas instituições, no caso do atendimento aos estrangeiros, essas instituições, mesmo com limitações, não estão a eles disponíveis. Necessário, então, verificar-se como essas instituições poderiam agir. A história constitucional brasileira demonstra que não houve preocupação específica com a garantia do acesso à justiça para o estrangeiro, especialmente o pleiteante de ingresso ou o que busca a regularização no país27. Em nenhum dos diplomas máximos, nem mesmo na atual Constituição, há dispositivo sobre ser o acesso à justiça garantido ao estrangeiro, salvo a existência da proteção genérica dos direitos ao estrangeiro residente (que é interpretada e aplicada de forma ampla para abarcar todo estrangeiro) estabelecida no caput do art. 5º da Constituição Federal. De 1824 a 1988, o direito constitucional brasileiro deixa o estrangeiro ao desamparo, que se mostra nas zonas primárias de fronteira e na não possibilidade de levar seus pleitos ao judiciário, mormente o que se busca discutir o seu ingresso no território nacional. Tal omissão se torna cada vez mais sensível, pois, o Brasil tende a aumentar o seu campo de atração de migrantes, podendo, por questões econômicas, tornarse um destino de pessoas do mundo todo com intensidade cada vez maior. 3 OS ESTRANGEIROS E O ACESSO À JUSTIÇA NA FRONTEIRA

A zona de fronteira é um local de vulnerabilidade para os indivíduos, em particular para os estrangeiros. Nesse espaço, o Estado ainda não recebeu o migrante, que, por sua vez, já está longe de seu Estado de origem. Tal preocupação foi exposta por Carvalho Ramos28, quando relatou 26. ILLES, P.; TIMÓTEO, G. L. S.; PEREIRA, E. Tráfico de pessoas para fins de exploração do trabalho na cidade de São Paulo. Cad. Pagu, p. 200. 27. Para um aprofundamento sobre o tema acesso à justiça, confira-se: TRINDADE, E. A. (Org.) ; MELLIM FILHO, O. (Org.) . Acesso à Justiça. 1. ed. Campinas: Editora Alínea, 2012. 28. CARVALHO RAMOS, A. Direito dos Estrangeiros no Brasil: imigração, direito de ingresso e os direitos dos estrangeiros em situação irregular. In: SARMENTO, D.; IKAWA, D.; PIOVESAN, F. (Coord.). Igualdade,

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caso concreto no qual, sem a atuação fiscalizadora de agentes públicos na zona primária de fronteira, os agentes da polícia federal agiam de forma ilegal substituindo o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE) e, por que não dizer, o próprio Poder Judiciário. O autor ressalta, ainda, que importante precedente foi levado à discussão no Tribunal Regional Federal da 3a Região, porém, só pôde acontecer pelo fato de que familiares do estrangeiro que estava passando por limitação de seus direitos submeteram seu pleito ao Judiciário, por meio de um habeas corpus. Isso permite dizer que o acesso à justiça é fundamental para a proteção de direitos, pois muitos outros casos podem não ter alcançado os tribunais. Dessa maneira, para que haja maior possibilidade de acesso, é importante destacar o papel do Ministério Público Federal, da Defensoria Pública Federal e da Polícia Federal nesse cenário. Decerto, todos esses órgãos devem atuar sob a luz da Constituição Federal, e assim atuam, porém, a possibilidade de que os atos sejam reanalisados, especialmente pelo Judiciário, pode permitir que a proteção ao estrangeiro seja implementada. Logo, tais órgãos deveriam ser representados na zona primária de fronteira. Conforme destacado na obra Migración y políticas sociales en América 29 Latina , as principais zonas de fronteiras estão no Estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela, com cerca de 10 mil bolivianos, que para lá foram em busca de oportunidades de emprego; Estado do Acre, em que não há estimativas numéricas de estrangeiros, mas focados, na grande maioria, na construção civil e no emprego doméstico. Na região da tríplice fronteira, que envolve Brasil, Paraguai e Argentina, destaca-se Foz do Iguaçu, no Paraná, com demanda para serviços no comércio e na agropecuária. Em Corumbá, a tríplice fronteira envolve Brasil, Bolívia e Peru. Nela a demanda é específica para o setor de serviços. Também há fronteira envolvendo três países – Brasil, Peru e Colômbia –, em Tabatinga, distante 1.105 km de Manaus, com fluxos de migração dos indocumentados, com mão de obra pouco qualificada e baixo nível de instrução30. Os desafios apontados envolvem, especialmente nas fronteiras, o enfrentamento de questões ligadas aos temas de saúde, educação, assistência social e previdência. Será preciso enfrentar o planejamento e a realização de políticas públicas nessas áreas de fronteira para que se possam colher dados necessários diferença e direitos humanos, p. 741. 29. Ibidem, p. 65. 30. Ibidem, loc. cit.

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destinados à realização da escolha trágica sobre o direito de ingresso do estrangeiro. Isso levando-se em conta que os estrangeiros são sujeitos de direitos. Com relação aos aludidos direitos, Carvalho Ramos31 bem destaca o tema, ao elencar os direitos garantidos aos estrangeiros e lembrar que os tratados de direitos humanos, integrantes do rol garantido aos migrantes, não obedecem à lógica da reciprocidade, devendo ser aplicados, pois formados por obrigações objetivas impostas aos Estados que deles fazem parte. A garantia de direitos aos estrangeiros ganha, assim, relevância e merece ser observada pelo legislador brasileiro. Faz-se mister, pois, que se analisem as consequências da política de garantia de direitos a estrangeiros. Para McGinnis e Somin32, como uma forma de melhor estruturar os mecanismos de concessão de acesso à justiça a estrangeiros, é necessário que se amplie a aplicação dos direitos fundamentais, fazendo-os acessíveis aos estrangeiros migrantes como meio de melhor efetivar a democracia do Estado – o que se busca no Brasil, que alicerça as bases para sua recente abertura política. Para tanto, os autores arrolam três razões fundamentais, advogando que a garantia de direitos aos estrangeiros facilita a representação democrática de pessoas que em rigor não possuem voz nos processos de participação popular33. Como segunda razão apontada, defendem que a garantia de direitos aos estrangeiros é demonstração de que a democracia está em crescimento, pois tem condições de atentar para as necessidades das minorias. Os autores fazem a ressalva de 31. Segundo CARVALHO RAMOS, A. Direito dos Estrangeiros no Brasil: imigração, direito de ingresso e os direitos dos estrangeiros em situação irregular. In: SARMENTO, D.; IKAWA, D.; PIOVESAN, F. (Coord.). Igualdade, diferença e direitos humanos, p. 731/732: “Os direitos dos estrangeiros no Brasil podem ser divididos em três grandes categorias. A primeira delas é a categoria dos direitos fundamentais previstos na Constituição. O artigo 5o, caput, estabelece que os estrangeiros (residentes) possuem os direitos elencados no seu corpo.” O autor destaca que o termo residente já foi superado pela doutrina e pela jurisprudência. E continua: “Uma segunda categoria são os direitos fundamentais por irradiação, graças à cláusula aberta do artigo 5o, parágrafo segundo da Constituição, que estabelece que os direitos lá elencados não excluem outros decorrentes dos tratados internacionais ratificados pela República Federativa do Brasil. Assim, os direitos previstos na Convenção Americana de Direitos Humanos, no Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, entre outros tratados internacionais de direitos humanos, são também invocáveis pelos estrangeiros. Por fim, há os direitos previstos em leis ordinárias e também em tratados internacionais diversos, em geral bilaterais”. 32. McGINNIS, J. O.; SOMIN, I. Democracy and International Human Rights Law (July 01, 2009). Notre Dame Law Review, v. 84, n. 4, p. 1.739-1.798, May 2009; Northwestern Public Law Research Paper n. 08-08; George Mason Law & Economics Research Paper n. 08-19. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2011. 33. Ibidem, p. 1.793: “There are, however, three important reasons why there is a stronger representationreinforcement argument for imposing migration rights on democratic states than other possible international law norms. First and most important, migration rights facilitate the representation of people who have no voice whatsoever in existing democratic processes in entry states. In the case of those whose states of origin are nondemocratic, they lack any representation in any democratic process anywhere. This situation is qualitatively different from that of citizens of established democracies, who generally have at least some substantial voting rights, even if imperfect ones. One possible analogy within a democracy is the situation of black Americans in the Jim Crow era South, at a time when they were denied the right to vote. Yet even they could potentially gain that right by migrating to the North, as many in fact did. By contrast, citizens of nondemocratic nations have no hope of gaining the franchise unless they are allowed to migrate to a democracy.”

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que seria possível restrição de direitos aos estrangeiros, quando hostis a sistemas democráticos34. A terceira razão para se garantirem direitos aos estrangeiros é fazer que pessoas de países autoritários e pobres, segundo os autores, possam passar a conviver com uma estrutura mínima de bem-estar social, o que serviria para difundir a consciência democrática pelo mundo35. A globalização, nesse contexto, é o motor para a difusão da democracia e para o aprofundamento dos casos envolvendo estrangeiros. Segundo Law36, a globalização afeta de forma direta os direitos garantidos constitucionalmente, devendo ser interpretados com base nessa realidade além fronteiras. Bratton, McCahery e Vermeulen37 entendem que a circulação de pessoas 34. McGINNIS, J. O.; SOMIN, I. Democracy and International Human Rights Law (July 01, 2009). Notre Dame Law Review, v. 84, n. 4, p. 1.739-1.798, May 2009; Northwestern Public Law Research Paper n. 08-08; George Mason Law & Economics Research Paper n. 08-19. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2011. p. 1.794: “Second, most potential representation-reinforcing reforms for democratic states are subject to serious disagreement on the merits. […] By definition, a mature democracy is likely to already provide those representation-reinforcing policies whose democracy promoting elements are beyond serious contestation. Therefore, there is a strong case for avoiding the imposition of a single, unitary international rule on widely controversial aspects of the democratic process. Obviously, migration rights are also highly disputed on a variety of grounds. However, there is little if any doubt that extending them would promote democracy from the standpoint of the migrants, whose ability to choose the form of government they live under would be greatly increased. As noted above, we are willing to accept restrictions on migration rights where migration would undermine democracy by introducing an extremely large population of immigrants hostile to basic liberal democratic values.” 35. Ibidem, p. 1.794: “Finally, an additional reason for giving preference to migration rights is the truly enormous gains in human well-being that might result from enabling residents of poor and undemocratic regimes freer access to more advanced and more liberal societies. The income gains alone are staggering. A Mexican worker immigrating to the United States, for example, can expect a permanent two-to-sixfold increase in his or her wages. Gains in protection for basic human rights are potentially even greater. Numerous governments engage in extensive repression of ethnic, religious and other types of minority groups. Often, the repression exceeds anything found in liberal democratic states. In the most extreme (but far from uncommon) cases, genocide and mass murder have led to the deaths of over 200 million people during the past century. Lesser but still severe forms of group repression also abound under authoritarian and totalitarian governments. If even a small fraction of those suffering from such abuses can avail themselves of the opportunity to migrate to freer societies, the potential human rights benefits would be enormous. Some might contend that the poorest and most oppressed are unlikely to be able to migrate. That will certainly be true in the case of many people. However, history shows that even severely oppressed people often emigrate if allowed entry by liberal democratic states. Examples include the Vietnamese and Cambodian “boat people” Who fled highly oppressive totalitarian regimes in the 1970s and 1980s. Recent studies show that a liberalization of immigration regimes by advanced nations would lead to enormous wage gains by migrants from many of the world’s poorest countries. Not all of the world’s poor and oppressed populations are mobile; but enough are to ensure that freer international migration would lead to major benefits for them. Some of the potential representation-reinforcement gains from migration rights could be realized even if the migrants were not granted full citizenship rights by their host countries, and were instead brought in as temporary guest workers. Such migrants could still greatly increase their economic well-being and be able to ‘vote with their feet,’ thereby exercising some choice over the policies they wish to live under. Guest worker programs in Germany, Singapore, and elsewhere have offered valuable opportunities to migrants from poor countries. These programs extend migration rights to citizens of poor and oppressed societies without allowing them to dilute the voting power of current residents of liberal democratic states.” 36. LAW, D. S. Globalization and the Future of Constitutional Rights. 102 Northwestern University Law Review 1277 (2008); San Diego Legal Studies Paper n. 07-91. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2011. 37. BRATTON, W. W. et al. Does Corporate Mobility Affect Lawmaking? A Comparative Analysis (January 2008). ECGI – Law Working Paper n. 91/2008; Georgetown Law and Economics Research Paper n. 1086667; Amsterdam Center for Law & Economics Working Paper n. 2008-01. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2011. 38. GORDON, J. Transnational Labor Citizenship. Southern California Law Review, v. 80, p. 503, 2007. Disponível em: . Acesso em: 17 jul. 2011. 39. Cf. VEDOVATO, Luís Renato. Ingresso do estrangeiro no território do estado sob a perspectiva do Direito Internacional Público. 2012. 213 f. Tese (Doutorado em Direito Internacional) – Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012, p. 172. 40. Conforme FISCHER-BOLLIN, P. (Ed.). Migración y políticas sociales en América Latina, p. 65. 41. Cf. CARVALHO RAMOS, A. O Supremo Tribunal Federal e o Direito Internacional dos Direitos Humanos. In: SARMENTO, D.; SARLET, I. W. (Coord.). Direitos Fundamentais no Supremo Tribunal Federal: balanço e crítica. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2011. p. 3/36. 42. Segundo Carvalho Ramos: “Nesse ponto, há de se valorizar a atividade de ponderação de interesses que é desenvolvida, sem maiores traumas, pelos órgãos internacionais judiciais ou quase-judiciais de direitos humanos”. E continua o autor, demonstrando sua preocupação, nos seguintes termos: “Mas, chegamos ao ponto do problema: não é suficiente assinalar, formalmente, os direitos previstos no Direito Internacional, registra com júbilo, seu estatuto normativo de cunho constitucional e usar, no limite, fórmulas de primazia da norma mais favorável. Esse esquema tradicional de aplicação do Direito Internacional dos Direitos Humanos não é mais adequado para levarmos os direitos humanos internacionais a sério” (Ibidem, p. 32).

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4 DESAFIOS AO ACESSO À JUSTIÇA

A partir da perspectiva do usuário, segundo o PNUD, no relatório de 2004, o sistema de justiça é frequentemente enfraquecido por: a. Os longos atrasos, os custos proibitivos para se valer do sistema, a falta de disposição legal e acessível representação, que seja confiável e com integridade, abuso de autoridade e de poder, resultando em buscas ilegais, apreensões, detenção e prisão e execução de leis e aplicação falha e eletiva de ordens e decretos; b. Severas limitações em recursos existentes, tanto na simples previsão legal quanto na prática. A maioria dos sistemas jurídicos não fornece remédios que sejam preventivos, oportunos, não discriminatórios, adequados, justos e dissuasivos; c. Viés de gênero e outras barreiras na lei e os sistemas jurídicos: inadequações nas leis existentes que falham ao proteger as mulheres, crianças, pobres e outras pessoas desfavorecidas, incluindo as pessoas com deficiência e os possuidores de baixos níveis de alfabetização; d. Falta de proteção de fato, especialmente para as mulheres, crianças e homens nas prisões ou centros de detenção; e. Falta de informação adequada sobre o que é deve estar disponível à população nos termos da lei, o que prevalece na prática, além do conhecimento de direitos pela população; f. A falta de sistemas adequados de assistência judiciária; g. Limitação à participação do público nos programas de reforma; h. Número excessivo de leis; i. Formalistas e caros processos judiciais (em litígios civis e criminais e nos processos administrativos); j. Prevenção contra o sistema jurídico por razões econômicas, o medo, ou a sensação de futilidade do propósito. Dessa maneira, o direito internacional por meio das organizações internacionais pode servir de criador de paradigmas para identificar dificuldades na efetivação do acesso à justiça43. O que poderia ser tido como um caminho para que se busquem direitos sociais44. 43. REGAN, F. After Access to Justice. Alternative Law Journal, v. 18, p. 152, 1993, p. 29. 44. GOOD, M. Access to Justice, Judicial Economy, and Behavior Modification: Exploring the Goals of Canadian Class Actions. Alberta Law Review, v. 47, p. 185, 2009, p. 5.

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De fato, o acesso à justiça está estreitamente relacionada a erradicação da pobreza e o desenvolvimento humano. Existem fortes ligações entre o estabelecimento de governança democrática, redução da pobreza e garantir o acesso à justiça. A governança democrática é posta em causa, onde o acesso à justiça para todos os cidadãos (independentemente do sexo, raça, religião, idade, classe ou credo) é ausente. O acesso à justiça está também estreitamente ligado à redução da pobreza, pois ser pobre e marginalizado significa estar privado de escolhas, oportunidades, acesso aos recursos básicos e de ter uma voz no processo decisório. Falta de acesso à justiça limita a eficácia da redução da pobreza por meio dos programas de governos democráticos, trazendo barreiras à participação, à transparência e à responsabilização45. Mecanismos informais de justiça são muitas vezes mais acessíveis às pessoas pobres e desfavorecidas, e podem ter o potencial de fornecer rapidamente as soluções necessárias a preços acessíveis e compreensíveis para as camadas desfavorecidas da população46. Mas eles nem sempre são eficazes e não resultam necessariamente na justiça47. O PNUD apóia lei uniforme sobre o tema com o intuito de demonstrar a necessidade de sistemas tradicionais evoluírem para servir a justiça, no pleno respeito das normas internacionais de direitos humanos, tais como igualdade, não discriminação por razões de idade ou status social, o respeito pela vida e garantias do devido processo penal para os réus. Há uma tendência geral, como identificado em vários países, para a realização de reformas do judiciário, como ocorrido no Brasil, com o objetivo de ampliar o acesso à justiça, levando a se concentrar em programas de apoio a mecanismos formais de justiça, especialmente os processos de julgamento pelo Judiciário. Isso é compreensível, do ponto de vista de governança 48. No entanto, na perspectiva do acesso à justiça, é essencial que os parâmetros comuns de avaliação sejam aplicados tanto aos mecanismos formais quanto informais de justiça. Assim, a abordagem do PNUD na reforma do sector da justiça centra-se sobre o reforço da independência e da integridade dos dois sistemas de justiça, tornando-os tanto mais ágeis e eficazes para satisfazerem as necessidades de justiça para todos, especialmente dos pobres e marginalizados. 45. MACDONALD, R. A. Access to Justice and Law Reform. Windsor Yearbook of Access to Justice, v. 10, p. 287, 1990, p. 32. 46. BLOCH, F. S. Access to Justice and the Global Clinical Movement. Washington University Journal of Law and Policy, v. 28, p. 111, 2008, p. 12. 47. SPENDER, P. Access to Justice in the Super Tribunals. Legaldate. Recuperado de http://content.ebscohost. com/ContentServer.asp?T=P&P=AN&K=52223866&EbscoContent=dGJyMNLr40SeqLU4yOvqOLCmr0iep 65Sr6a4TLKWxWXS&ContentCustomer=dGJyMPGrtlGuq7FJuePfgeyx%2BEu3q64A&D=aph, 2010, p. 220. 48. MACDONALD, R. A. Access to Justice and Law Reform. Windsor Yearbook of Access to Justice, v. 10, p. 287, 1990, p. 47.

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CONCLUSÃO

Pelo que se pode depreender, para que possa ser identificada uma ampliação de acesso à justiça para os estrangeiros, as estruturas do Estado devem estar presentes na zona primária de fronteira. Só assim, poderá haver garantia que os direitos dos estrangeiros sejam violados. Além disso, destacam-se os métodos para monitorar a implementação de uma melhora no acesso à justiça, que devem incluir: relatórios (nomeadamente os de organismos de direitos humanos), a validação dos dados notificados, e os métodos participativos. Vale dizer também que é fato que indicadores adequados são essenciais. Os indicadores de resultados ajudam a avaliar a realização progressiva dos direitos humanos das pessoas desfavorecidas. Na seleção de indicadores, deve ser dada preferência àqueles com potencial para capacitar as partes interessadas e traduzir-se em política de desenvolvimento. O que exige uma análise rigorosa dos riscos dos programas de acesso à justiça, e o estabelecimento de estratégias adequadas para gerir os riscos. É importante que a informação sobre a natureza do acesso à justiça suporte programas de justiça, sendo transparente e facilmente acessível, incluindo formatos de fácil acesso para os grupos pobres e vulneráveis. Enfim, o direito internacional parece apontar para a necessidade de um constante incremento e validação dos seus caminhos para que o acesso à justiça, que exige políticas públicas, não se perca em ações pouco eficazes e protelatórias, que podem limitar os direitos de estrangeiros, especialmente os pleiteantes de ingresso. BIBLIOGRAFIA

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