As contribuições do ALINGO para a descrição da língua brasileira.

June 9, 2017 | Autor: Sebastião Milani | Categoria: Dialectology, Sociolinguistics
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As contribuições do ALINGO para a descrição da língua brasileira.
Sebastião Elias Milani (UFG)

Resumo: ALINGO – Atlas lingüístico de Goiás: léxico-fonético foi desenvolvido a partir da pesquisa de levantamento de dados gravados em cinqüenta pontos de coleta, escolhidos a partir dos mapas ferroviários e rodoviários: todos eles estão à margem de uma importante rodovia. O questionário tinha 229 perguntas, os dados gravados resultaram em tabelas com dados lexicais e fonéticos. Os informantes foram escolhidos considerando o gênero sexual, da escolaridade e da idade. O objetivo era mostrar como a fala em Goiás, sincronicamente, revela a formação diacrônica da língua. Os resultados foram uma descrição dos alofones, revelando a distribuição deles diatopicamente no Estado e a distribuição nos ambientes fonológicos.

Summary: ALINGO - Linguistic Atlas of Goiás: phonetic - lexicon was developed from the data collection survey recorded in fifty collection points, chosen from rail and road maps: the collection points are all on the sidelines of a major highway. The questionnaire had 229 questions; the recorded data resulted in tables with lexical and phonetic data. The informants were chosen considering the sexual genders, education and age. The aim was to show how speech in Goiás, synchronously, reveals the diachronic formation of language. The results were a description of allophones, revealing the distribution of them diatopical in the state and distribution in phonological environments.

Palavras-chaves: Atlas linguístico, língua falada, fonética, geolinguística

Keywords: Linguistic Atlas, spoken language, phonetics, geolinguistic


Introdução
A ideia que se tinha para os resultados, quando se começou a elaboração do projeto do Atlas Linguístico de Goiás – ALINGO, era de ter uma descrição do modo como os goianos falam. Essa descrição foi pensada consoante à gramática normativa brasileira, logo, do ponto de vista fonológico e fonético, morfológico e lexical. Os resultados não poderiam ser surpreendentes, porque os pesquisadores envolvidos tinham uma longa vivência entre o povo de Goiás e sabiam, empiricamente, o que deveria resultar na pesquisa.
O compromisso assumido entre os pesquisadores na proposição do projeto era a de fazer um Atlas lingüístico que tivesse como referência e alvo o ensino de língua nativa brasileira para estudantes de primeiro e segundo graus. Assim, os resultados deveriam estar em condições de serem analisados e estudados por estudantes desses níveis ou por pessoas que tivessem apenas essa formação. A dificuldade estaria na apresentação dos dados fonéticos, conteúdo minimizado nos estudos de primeiro e segundo graus. Certamente pessoas com essa formação teriam dificuldade para ler transcrições fonéticas que tomassem as pronúncias com absoluta distinção, por isso se fizeram agrupamentos de alofones em torno dos mais comuns, marcando-os nas transcrições fonéticas pelos desenhos mais comuns.
A proposição da metodologia, então, seguiu anotações prévias da fala dos goianos e privilegiou ações que pudessem dar voz, por assim dizer, àquilo que de fato ocorria na língua falada em Goiás. Tem-se como compreensão para uma metodologia, no grupo de pesquisadores, que ela é fruto de um estado individual do trabalho a ser executado, logicamente, sendo ligada a outras pesquisas realizadas por tantos outros pesquisadores, as quais tinham objetos ou objetivos semelhantes. A metodologia de uma pesquisa, enfim, é o ponto de vista que faz o objeto promover um avanço no conteúdo dos conceitos, repetidos, no interior de uma corrente científica. A metodologia que se adotou foi composta dos trabalhos conhecidos pelo grupo nas áreas da sociolinguística, geolinguística, etnolinguística, lingüística diacrônica, etc. Acima de tudo, privilegiaram-se os elementos metodológicos que colocariam em destaque as características lingüístico-culturais do povo goiano.
Este texto apresenta, na primeira parte, uma descrição da metodologia empregada e, na segunda parte, uma síntese dos resultados obtidos. Assim, na primeira parte consta uma descrição de todos os passos dados desde a primeira conversa, quando se disse do desejo de fazer um Atlas descritivos da língua falada em Goiás, em todo o território. Em seguida passa-se a uma descrição da elaboração do projeto e da procura de fomento, da coleta dos dados em entrevistas gravadas, da transcrição das entrevistas e da análise dos dados.
A segunda parte consta dos resultados obtidos com as pesquisas elaboradas, sobretudo, daqueles publicados no volume do ALINGO, chamado de léxico-fonético, em que se demonstraram o conhecimento lexical dos goianos para algumas coisas da cultura no estado e a distribuição fonológico-fonética do modo como os goianos pronunciam, tanto do ponto de vista de uma descrição sincrônica como diacrônica desses fatos, ressaltando que as duas descrições são coexistentes na fala dos goianos.


Metodologia, prática dos recursos metodológicos e avanços
O texto do projeto começou a ser escrito a partir de uma idéia e uma constatação. A constatação de que o estado de Goiás não tinha um Atlas lingüístico que abrangesse a pronúncia, o léxico e a diacronia de sua fala. E a idéia de criar um laboratório de estudo de língua na Universidade Federal de Goiás - UFG com um acervo gravado de fala natural dos goianos. LABOLINGGO, como é chamado, congrega vários pesquisadores, desde graduandos em Letras a Pós-doutorandos em Linguística. O plano foi o de criar uma página na rede de computadores, vinculada ao servidor da UFG, em que todos os documentos pudessem ser disponibilizados para todos os interessados: https://labolinggo.letras.ufg.br/.
Um dos objetivos era o de possibilitar pesquisas qualitativas e quantitativas. A pesquisa-ação comportaria cooperação e participação e deveria incluir todas essas possibilidades, já que se teriam dentro do laboratório, além do desenvolvimento do ALINGO, muitos outros projetos de pesquisas, as quais teriam ações metodológicas específicas como participativas ou como cooperativas, de caráter quantitativo ou de caráter qualitativo. Então, desenvolveu-se uma metodologia para a coleta de dados que abrangeria todas essas possibilidades.
Baseando-se em pressupostos da sociolingüística e geografia lingüística, concebeu-se o perfil do informante. Tratado como informante, devidamente esclarecido, tanto sobre as ações de coleta e sua participação e responsabilidade quanto sobre os dados coletados e responsabilidade dos entrevistadores e pesquisadores. Ao final das entrevistas um documento escrito, orientado pelo conselho de ética da Universidade Federal de Goiás, era lido e assinado pelos participantes do evento: informante e entrevistador, uma cópia para cada um.
De muitos modos, esse entrave burocrático dificultou e, até mesmo, impediu a coleta de ser feita. O resultado disso foram duas ações preventivas tomadas pelo coordenador da pesquisa: envolver a Polícia Militar - PM no trabalho e sempre começar a conversa com o informante, antes de começar a gravar, pela leitura do documento de ética. O resultado das duas ações criou circunstâncias interessantes: na presença da PM, os informantes geralmente se dispunham a assinar o documento, por outro lado, a PM começou a ajudar a procurar informantes. No caso de os entrevistadores agirem sozinhos, frequentemente ficavam muito tempo tentando convencer o informante a assinar o documento.
Nos dois casos, os resultados foram muito bons. Com a ajuda da PM - aconselha-se sempre a ter uma autoridade idônea ajudando dentro das comunidades, quando for executar esse tipo de coleta de dados - a coleta era segura e geralmente muito rápida, sobretudo, nos casos em que previamente o comando da PM do ponto de coleta fizera uma lista de prováveis informantes. Isso ocorreu principalmente no início da coleta, porque os entrevistadores estavam ainda receosos do trabalho de campo. Passava-se o perfil dos informantes para um sargento responsabilizado pelo comando para ajudar na seleção deles, geralmente com duas semanas de antecedência, e quando se estava na localidade ele levava os entrevistadores até os informantes.
Para a composição do perfil dos informantes consideraram-se idade, sexo e escolaridade. São fatores sociais muito comuns nesse tipo de pesquisa e de fácil controle. Esses fatores e não outros, porque se queria uma descrição da língua em uso em seu aspecto mais genérico. Para composição do quadro de informantes, para que não acontecessem desvios negativos nos dados, adotaram-se também fatores de exclusão, como doenças debilitantes de qualquer natureza, dentição incompleta, pessoas interessadas em dinheiro ou sexo.
O perfil ficou constituído em três faixas etárias entre 18 e 36 anos, 37 a 46 e 46 em diante. Quanto à escolaridade de 0 a 4 anos de freqüência na escola, de 5 a 8, de 9 a 11 e acima de 11, nesse último caso podendo ser superior incompleto. Geralmente os informantes não contavam os anos em que tinham sido reprovados e diziam dos certificados que tinham: de primário, de ginásio, de colégio e de faculdade. O fato é que ter freqüentado a escola não significa ter certificado, mas ter ficado na escola significa ter se exposto a condições lingüísticas modificadoras. Por isso, as perguntas sempre versavam sobre quantos anos tinham estudado e não sobre os certificados que possuíam.
A escolha dos pontos de coleta seguiu dados históricos da formação do estado de Goiás. Até meados do século XX, Goiás tinha no cavalo e no boi os principais meios de transporte, quando bandeirantes, vindos dos estados do Sul, sobretudo, São Paulo, procurando minérios preciosos e, no período subsequente, vaqueiros ou boiadeiros, vindos dos estados do Piauí e maranhão, povoaram todas as partes. A partir da fundação de Goiânia, em 1933, intensificaram-se as implantações de ferrovias e depois de rodovias, essas muito vinculadas à fundação de Brasília, em 1961. Considerando essas informações, as rodovias foram tomadas como eixos para seleção dos pontos de coleta, ou seja, todos eles estão às margens de uma rodovia, cresceram por causa dela, ou de uma ferrovia antiga, sendo uma cidade antiga.
A coleta se estendeu por quase dois anos. No começo faziam-se coletas em sequencias de 3 e de 4 dias, mas, após algumas viagens, sempre em grupo, passou-se a fazer coleta aos sábados e aos domingos, são os dias em que as pessoas estão com mais tempo e afim de conversar sobre coisas fora da rotina. Geralmente aos domingos pela manhã, em quase todos os pontos de coleta, uma feira-livre acontecia no centro da cidade, nos chamados mercados municipais. Nessas feiras sempre eram encontrados os informantes ideais, de todas as faixas etárias e escolaridades.
O questionário era de 229 perguntas, sobre a vida cotidiana e sobre coisas do passado e, essa parte estruturada, durava em média uma hora. Além de uma ficha social, semi-estruturada, com dados pessoais e informações importantes sobre o informante, os entrevistadores tentavam obter narrativas pessoais sobre qualquer que fosse o assunto que o informante quisesse falar. Essa parte das gravações foi útil nos estudos sobre sintaxe que estão sendo desenvolvidos dentro do LABOLINGGO e foi sempre muito útil nas transcrições fonéticas, quando se tinha dúvida sobre a pronúncia de algum fonema. Juntando as três partes das entrevistas: semi-estruturada, estruturada e livre, algumas entrevistas duraram duas horas, muitas uma hora e meia.
A escolha das entrevistas para compor as amostras transcritas foneticamente por ponto de coleta seguiu critérios definidos desde a feitura do projeto. A Coleta foi organizada seguindo critérios socioliguísticos como se mencionou acima, mas o ALINGO não se ateve a esses critérios, de maneira obsessiva, quanto à amostragem léxico-fonética. Para cada ponto de coleta, foram escolhidas três entrevistas, variando o sexo, a idade e a escolaridade, seguindo sempre a opinião do entrevistador: melhores entrevistas, as condições de feitura da entrevista: silêncio no local, boa dicção, disposição e interesse em dar a entrevista. As entrevistas escolhidas foram transcritas e conferidas duas vezes, depois as dúvidas foram discutidas no grupo e conferidas em programas digitais que analisam sons.


Resultados apresentados no ALINGO: léxico-fonético
O objetivo era produzir uma descrição da língua falada em Goiás. Concernente ao que se concebe como descrição é do ponto de vista sincrônico e diacrônico. Logo, o resultado mais importante era mostrar como se fala em Goiás do ponto de vista léxico-fonético, descrevendo sincronicamente a fala e demonstrando como a história da formação do povo permanece marcada na fala. A expectativa era a de ter no conjunto da fala nas entrevistas registrada a variação sincrônica, mas também os traços dos diversos grupos que migraram para o estado e aqui deixaram suas marcas.
Ao se fazer as transcrições fonéticas das entrevistas apareceram os problemas de se saber precisamente quais desenhos do alfabeto fonético internacional se usariam para cada alofone produzido nas diversas regiões do estado. O fato é que nos alofones dos fonemas consonantais em apoio de vogal somente a pronúncia da vibrante múltipla /r/ produziu dúvidas. Havia dúvidas quanto a se privilegiar o aspecto velar ou o glotal, que fique claro que a pronúncia dos goianos não estabelece a distinção de maneira evidente. O fato é que o alofone goiano é gloto-velarizado, uma mistura desses dois pontos de articulação que, em situação de se ouvir as pessoas falando na rua, não se distinguem claramente por um ou por outro.
Essa dúvida também apareceu na pronúncia do alofone em coda de sílaba para a líquida vibrante quando ela é gloto-velarizada. Em Goiás, a grande maioria dos falantes produz esse alofone como retroflexo, em graus variados de marcação. Somente alguns falantes, habitantes das cidades com forte influência dos falares provenientes do Nordeste brasileiro, muito especificamente, provenientes da Bahia, têm pronúncia gloto-velarizada. Como goianos nativos de várias gerações, como era o perfil do informante exigido, esse fato somente ocorre nas cidades ao longo da fronteira com a Bahia e no entorno do Distrito Federal, para onde afluíram nos anos 60 e 70 muitos brasileiros vindos dos Estados nordestinos e nortistas.
Após as transcrições das entrevistas escolhidas, ficou evidenciado que somente produziam esse alofone em coda de sílaba os falantes que, apesar de serem filhos de goianos nativos e serem nativos daquela região, eram mais idosos de 40 anos. Fique marcado o fato de não se ter entrevistado nativos jovens cujos pais não eram nascidos em Goiás ou que tivessem vindo adultos para Goiás. Todos os jovens, abaixo de 40 anos, que foram entrevistados produziram esse alofone como retroflexo. Fique o registro de que os goianos se identificam linguisticamente nesse alofone e gostam dele como expressão de sua natividade.
Assim, fez-se a opção pelos desenhos [x] em início de sílaba e [h] na coda de sílaba. Após se estudarem essas pronúncias, detidamente, inclusive com ajuda de analisadores digitais, chegou-se a conclusão de que eles, em início de sílaba, têm como característica predominante a velarização e, em coda de sílaba, a aspiração. A base para essa conclusão foram as publicações do Atlas lingüístico da Paraíba e do Atlas etnográfico-linguístico da região sul do Brasil, bem como as publicações sobre fonética e fonologia de Thais Cristóforo Silva, Maria Helena Mateus, Dinah Callou e Ionne Leite e Edward Lopes.
Quando se sanaram as dúvidas sobre os alofones em uso em Goiás, numa classificação geral, fez-se a lista dos alofones consonantais e vocálicos. Classificação geral porque não se fez a distinção precisa de todas as possibilidades pronunciadas no estado para cada fonema em todos os falantes. O fato é que se evitou tornar a leitura das transcrições fonéticas uma exclusividade de especialistas. Atenta-se para o já dito de que o objetivo político da pesquisa era produzir um documento escolar, acessível em nível de segundo grau, que pudesse ser discutido e assimilado no ensino de Língua materna brasileira nas escolas.
A melhor fórmula encontrada para facilitar a visualização dos dados foi no formato de tabelas. As cartas foram feitas. São quatrocentas cartas lingüísticas, que não fazem parte do volume léxico-fonético, porque se fez opção pelas tabelas. As tabelas não demandam um conhecimento específico sobre Atlas lingüísticos para serem lidas, mas deviam ser feitas de uma maneira que revelassem as informações por ponto de coleta. Foram feitas com duas colunas, uma em que consta a forma lexical na norma padrão escrita e a transcrição fonética da fala, a outra coluna consta os pontos de coleta onde ocorreu a pronúncia daquele léxico.
Essa é a pergunta número 27 do inquérito: Como chama quando não é nem manhã nem tarde?

Meio dia ['mej 'ʤiɐ]
Montes Belos, Cachoeira Dourada, Caldas Novas, Formosa, Alto Paraíso, Quirinópolis, São João d'Aliança, Anápolis, Aruanã, Bom Jardim, Palmeiras, Campos Belos, Crixás, Piranhas, Santa Terezinha, Vianópolis, Rio Verde, Cristalina, Mineiros, Jaraguá, Araguapaz, Buriti Alegre, Corumbaíba, Edéia, Nova América, Nova Glória, Três Ranchos, São Simão, Rubiataba, Ceres, Posse.
Meio dia ['mejʊ 'ʤiɐ]
Caldas Novas, Formosa, Iporá, Itumbiara, Jataí, São João d'Aliança, Anápolis, Aragarças, Aruanã, Crixás, Jussara, Luziânia, Santa Terezinha, São Miguel, Uruaçu, Vianópolis, Rio Verde, Cristalina, Jaraguá, Araguapaz, Buriti Alegre, Edéia, Nova América, Paraúna, Itaberaí, Três Ranchos, São Simão, Santa Rita, Porangatu, Goiás, Ceres, Posse, São Domingos.
Meio dia ['mew 'ʤɪɐ]
Cachoeira Dourada, Alto Paraíso, Crixás, Planaltina.
Meio dia ['mew 'dɪɐ]
São Domingos.
Meio dia [ mεj 'diɐ]
Campos Belos.
Volta do dia ['vɔɽtɐ dʊ'ʤiɐ]
Corumbaíba.
Horário do almoço
[o'ɾaɾjʊ daw'mosʊ]
São Domingos.

Quanto à localização no mapa de cada ponto de coleta, caso o leitor do Atlas quisesse localizar, considerando que fosse isso uma informação relevante, além da curiosidade que a internet não pudesse resolver, um mapa do estado de Goiás, com todos os pontos de coleta escritos pelo nome das cidades, foi colocado antes das tabelas. O fato é que essas informações, de natureza não específica do Atlas lingüístico, como número de habitantes, tamanho do município, principais atividades econômicas, etc., que muito comumente aparecem nos Atlas lingüístico, são abundantemente encontradas nas páginas na rede de computadores das cidades brasileiras, ou mesmo em outras páginas com informações enciclopédicas.
O questionário tem quinze grupos de perguntas: o espaço geográfico, fenômenos atmosféricos, os nomes para a comida e as coisas da cozinha, atividades agropastoris e vida no campo, fauna e flora, corpo humano, convívio e comportamento social, ciclos da vida, religião e crença, jogos e diversões infantis, habitação, vestuário e acessórios, vida urbana. Esse questionário, que foi apresentado em tabelas, comporta perguntas das faces mais importantes da vida cotidiana de uma pessoa em sociedade. Privilegiou-se o aspecto mais rural da vida dos goianos, isso garantiu uma historicidade mais clara da formação da população. É preciso dizer que, em muitos casos, ficou patente a caracterização como cidadãos urbanos dos goianos.
Tal característica de pessoas urbanas para os goianos, mesmo em cidades muito pequenas, ficou muito caracterizada nas perguntas sobre atividades agropastoris e vida no campo e fauna e flora. Os informantes do grupo mais idoso, acima de 46 anos, respondia às perguntas geralmente com um exemplo da vida quando eram jovens e os jovens, da faixa etária entre 36 e 46 anos, respondiam com uma memória narrada pelos pais ou avós. Os mais jovens, da faixa etária de 18 a 36, quando respondiam era porque a família tinha fazenda ou teve fazenda e ouviu contar, mas no geral diziam que não sabiam, porque não conviviam com coisas da fazenda.
Deve-se considerar a utilização de outro questionário em pesquisas semelhantes no futuro. Nesse novo questionário incluir questões sobre agricultura mecanizada e trabalho profissional em produção agrícola em grande escala. A fauna e a flora deverão estar associadas aos animais domésticos ou muito comuns, mesmo nas áreas urbanas. Certamente incluir questionário sobre o trabalho na indústria e no comércio, trânsito motorizado, saúde e escola. Em princípio isso parece não atrapalhar, para um estudo fonético o que importa é a pronúncia, porém, quando se tem muitas respostas não sei, acaba comprometendo estudos lexicais e até mesmo fonéticos. Nesse caso, a opção foi então olhar outras entrevistas, além das três escolhidas, para se ter com clareza qual eram as respostas para aquelas perguntas.
Em todos os quinze grupos de perguntas as respostas, do ponto de vista lexical, foram muito semelhantes em todos os pontos de coleta. A variação fonética também não causou surpresas, sabia-se que na fronteira com a Bahia, devido ao modo como se fala naquele Estado, certos fonemas apresentam alofones distintos do resto do Estado. Assim mesmo, considerando ou excluindo esses poucos fonemas, que estão restritos a um grupo específico de cidadãos, o estado de Goiás é de norte a sul e de leste a oeste muito regular também quanto à variação fonética. Evidentemente, todas as áreas do Estado têm história de povoamento semelhante, com os mesmos grupos de migrantes se mudando para lá nas mesmas épocas.
Os estudos de alguns léxicos que apareceram nas respostas se mostraram muito produtivos tanto do ponto de vista sincrônico quanto diacrônico. Evidentemente essas análises poderiam ser feitas com todos os léxicos que apareceram nas respostas. Esses foram escolhidos porque apresentaram um número elevado de variantes e porque apresentaram formas muito diferentes entre si. Claramente a ação do tempo e do uso das formas fez com que erros de pronúncia e hipercorreções modificassem a aparência fonética das formas.
Pela análise das formas orvalho, rodamoinho e almôndega demonstraram-se aspectos interessantes da variação sincrônica e diacrônica dos fonemas consonânticos e vocálicos. A forma orvalho apareceu com a pronúncia desde [ɔh'vaλʊ]/ [oɽ'vaλʊ] até a forma [nu'valʲʊ]/ [no'valʲʊ]. As transformações são extremas e são muito interessantes. Como formas intermediárias de transformação apareceram [aɾu'valʲʊ]/ [uɾu'vaj].

As formas [no'valʲʊ] e [nu'valʲʊ] sugerem dois possíveis processos. Primeiro, a apócope do fonema vocálico nas formas [aɾʊ'valʲʊ], [oɾʊ'vaj], [ɔɾʊ'vaλʊ] e [uɾʊ'valᴶʊ] e consequente desenvolvimento dos traços da nasal dental. A forma inicial resultaria nas formas [no'valʲʊ] e [nu'valʲʊ] por uma baixa precisão no uso das formas originais ou por uma tentativa de corrigir a forma original. A segunda possibilidade seria uma dissimilação entre as líquidas presentes na mesma articulação. Ressalta-se que é comum o rotacismo entre esses fonemas na história da língua portuguesa, devido à proximidade dos pontos de articulação. Assim, a apócope poderia ter acontecido posteriormente à dissimilação. Nas duas possibilidades, os fenômenos são paralelos entre si e podem ter ocorrido juntos (MILANI et al, 2015, p. 276).

A forma rodamoinho passa pela forma redemoinho, sendo o léxico mais comum entre os goianos, e chega a forma ridimoinho. Essa última nem tem uma ortografia oficial. De modo evidente esse é um substantivo composto, no caso de redemoinho, por dois substantivos em justaposição: rede e moinho, e por uma forma verbal roda e um substantivo moinho, também por justaposição, no caso de rodamoinho. Passa-se da forma rodamoinho para rodomoinho, para rodemoinho, para redemoinho, para redimoinho e para ridimoinho. A mudança nas vogais da primeira forma do composto causaria a africação do /d/ em contato com o /i/. A segunda forma do composto moinho, quase sempre pronunciada trocando o /o/ pelo /u/, chega a ser pronunciado ['mũj̃].

Nessas formas, que são as mais pronunciadas entre os goianos, só têm fonemas altos e um médio-alto. A depender da região em que se fez a coleta, os fonemas adjacentes às vogais sofrem ou não alterações. Além da nasalização por contaminação da primeira casa já comentada, o [d] se altera ou não diante do [i], dependendo do falante. O próximo passo desse processo de ajuste da forma na fala é a metafonia do [i] para a primeira casa, ficando o signo somente com fonemas altos: [xiʤimu'ĩɲʊ], [xiʤimu'ĩʊ], [xiʤi'mũɲʊ], [xiʤimu'ĩ] e [xidi'mũj̃] (MILANI et al, 2015, p. 287).

Essa forma, pelas transformações que passou, produziu variações nas vogais, transformações por metafonia, que colocam os fonemas vocálicos /a/, /o/, /e/, /i/ como pares alofônicos. O /e/ também faz par com o /ε/ numa forma que ocorreu num ponto de coleta na região de influência do falar baiano.
Nas formas cotovelo, tornozelo, urubu e terçol foi possível observar, nas metafonias que os fonemas vocálicos da língua falada em Goiás apresentam, alofonias entre quase todos entre si. Isso pode ser observado também em outras formas que apareceram no ALINGO.

Nos exemplos acima, chama atenção a primeira pré-tônica em [a]: [sa'lusʊ], [kɐtu'velʊ], [ɐɾu'bu]. O processo de dissimilação faz aparecer um [a] nessa posição. Esses são os três exemplos aqui elencado, mas tal fato ocorre com qualquer vocábulo que apresentar sequências de fonemas semelhantes: [ɐɾu'vaj], [ɐɾu'valʲʊ], [ɐlu'bɾinɐ], [ka'tokʊ], [kɐ̃'lɪbɾɪ] etc (MILANI et al, 2015, p. 289).

A forma Almôndega foi a que mais apresentou modificações. Ocorreram a [aɫ'mõdᵉgɐ]>[aw'mõdegɐ], consideradas as pronúncias mais próximas da norma padrão, e muitas transformações seguidas produzem as formas, muito comuns entre os goianos, [aw'mõkɐ]>[a'mõkɐ]>['mõkɐ]. Em almôndega ocorreu o fenômeno do desvozeamento do traço sonoro de /g/>/k/, que ocorreu também com a forma sabugo [sa'bugʊ]>[sa'bukʊ] e a forma cócegas ['kɔsegɐ] >['kɔsekɐ].

Da forma [aw'mõdigɐ] passa-se à forma [aw'mõnikɐ], nesse caso ocorre o ensurdecimento da consoante velar. Esse fenômeno vai redundar na forma mais comum entre os goianos de nomear esse prato: [ɐɽ'mõkɐ], [aɽ'mõkɐ], [ɐr'mõkɐ]; não apareceu nas gravações transcritas a forma com a líquida gloto-velarizada [ah'mõkɐ], mas ela é possível e já foi ouvida pelos participantes da pesquisa. Essa transformação para o ensurdecimento ou para a sonorização foi encontrada em larga escala na coleta: para o ensurdecimento nas formas [sa'bugʊ]> [sa'bukʊ], [mũgu'za]> [mũkũ'za]> [mũku'za]> [muku'za], ['kɔsegɐs]>['kɔsekɐs]>['kɔskɐ], para sonorização nas formas ['kɾinɐ]> ['gɾinɐ], [kɐ̃'bɔtɐ]> [gɐ̃'bɔtɐ] (MILANI et al, 2015, p. 282).

Nos estudos que se fez do diminutivo sobre os dados do ALINGO ressaltou-se o conceito da não marcação morfemática do masculino em relação à sempre marcação do feminino no léxico falado em Goiás. Levantaram-se muitas formas de diminutivo e se mostrou que a erosão fonética retira das formas masculinas a marca de gênero, que são sempre mantidas no feminino. Quando a forma é originalmente no feminino ou comum de dois gêneros, ao sofrer a erosão fonética, a forma que resulta é de gênero masculino, porque a finalização da forma resultante é sempre com fonema /i/, que não é marca de gênero, mas que se instala como marca para o masculino. Por isso, todas as vezes que numa forma o morfema de diminutivo sofreu erosão fonética, resultou numa forma masculina.

(...) [kasʊ'lĩɲɐ], um substantivo comum de dois gêneros, o gênero não é marcado, e termia com o fonema /a/. O processo é o mesmo das outras formas com gênero marcado. A partir da redução da forma à condição de oxítona com a vogal tônica /ῖ/, morfema classificatório do gênero masculino, a palavra passa para a condição de gênero marcado em masculino, exigindo que a forma feminina seja também marcada. Assim, a expressão fica o [kasʊ'lĩ] e a [kasʊ'lῖɐ], substantivos comuns biformes, que se referem a filhos de sexo macho ou fêmea no diminutivo, porque na forma normal tem-se [ka'sulʊ]/[ka'sulɐ] para o menino e para a menina somente [ka'sulɐ] (MILANI et al, 2015, p. 281).

Como a escolha dos pontos de coleta, em princípio, foi feita seguindo as principais rodovias que cortam o estado, as fronteiras do estado, como pontos de coleta, têm cidades importantes, com grande fluxo de pessoas. As cidades de Goiás se desenvolveram ou às margens de ferrovias ou às margens de rodovias. As ferrovias antigas estão praticamente abandonadas e rodovias foram construídas ligando todos os lugares. Assim, as fronteiras rodoviárias apresentam características lingüísticas muito distintas, de acordo com o fluxo de pessoas que passam por ali. A propositura era demonstrar que nas fronteiras traços distintivos inesperados para aquela região podem acontecer e que as fronteiras demarcam quais traços distintivos são influências na fala geral da população.

Do estado de Minas Gerais, região Sudeste, recebeu a influência dos falares caipiras, muito caracterizado pela execução do /R/ pós-vocálico como retroflexo, mas também caracterizado pela execução dos morfemas de diminutivo apocopados. Ressalta-se que os estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul receberam essas mesmas influências. Nas fronteiras dos estados do Pará e do Tocantins, estados da região Norte, cuja população tem uma formação - até meados do século XX - semelhante à de Goiás, com muitas influências indígenas e nordestinas, esses vindos com o manejo da criação do gado no século XIX, constatou-se a presença de glotalização na execução do /R/ pós-vocálico e manutenção do /t/ e do /d/ diante de /i/ como dental. Fatos semelhantes ocorrem nos falantes da fronteira com a Bahia, estado que pertence a região Nordeste, porém, a constante migração de baianos para o estado de Goiás faz presente a influência e o reforço desses traços naquela fronteira (MILANI et al, 2015, p. 290).

Conclusão
Ficou evidenciado nos dados de muitas formas que apareceram na coleta, que a língua guarda, no interior do uso que as diferentes camadas sociolingüísticas fazem dela, uma memória dessas transformações metaplasmáticas. Neste artigo, trouxeram-se os exemplos almôndega, rodamoinho e orvalho como ilustração para esse fato, mas as tabelas do ALINGO sempre apresentam dados produzidos por falantes usuários da norma padrão e dados produzidos por muitos outros usuários que apresentam a aplicação dos recursos de transformação da lexia. O fato é que nas tabelas de descrição sincrônica ficaram as marcas da diacronia da língua.
Sempre que se faz um estudo de ordem diacrônica, a forma léxica de onde se parte para verificar as transformações fonéticas é a padronizada. Como exemplo, sempre se parte do latim clássico para se estudar a forma da língua neolatina. Então, nas análises diacrônicas do ALINGO partiu-se da forma padronizada em língua portuguesa para se demonstrar as transformações para a língua falada em Goiás. O fato é que uma parte dos goianos corrige sua fala com base na forma padrão adquirida na escola, sendo esse falante uma referência para se dizer da existência de uma norma padrão. A partir da suposição de uma norma padrão, de muitas formas vinculadas à permanência na escola, as outras camadas da população produzem sua fala.
Em se considerando isso, na fala sincrônica dos goianos registrada nos dados fonéticos transcritos das gravações e publicada no livro ALINGO, está registrada a diacronia das transformações metaplasmáticas. O fato é que são essas e não outras as transformações que o tempo produz no interior do léxico de uma língua e é fato também que raramente ocorre a substituição da forma de origem por outra forma, enquanto todas as camadas diastráticas, diafásicas e diatópicas continuarem a existir na sociedade. Enquanto elas existirem, somente a norma padrão é definitiva, por ser o ponto de partida e ser ela recuperada quando se deseja um falante linguisticamente mais treinado.
Goiânia é o ponto de dispersão da língua prestigiada no Estado de Goiás. Isso não foi uma descoberta, mas uma constatação. Nas cidades do interior do Estado existe a necessidade de demonstrar a identidade goiana e a referência é Goiânia. O que se prevê é que a tendência da população de todo o Estado é a de imitar o falar da capital. Certamente, isso resultará na assimilação e aplicação dos traços fonéticos considerados característicos do falar da capital. Ressalta-se o fato de isso já estar ocorrendo, restando um grupo muito pequeno de falantes, discriminados, que, por alguma razão historiográfica, estão fora dessa padronização.

Referências
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CALLOU, Dinah & LEITE, Yonne. Iniciação à Fonética e à Fonologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003.
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