As contribuições do estudo do patrimônio para a história local e para o ensino da História

June 2, 2017 | Autor: M. Martins Pina | Categoria: Patrimonio Cultural, Ensino de História, Historia Local
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AS CONTRIBUIÇÕES DO ESTUDO DO PATRIMÔNIO PARA A HISTÓRIA LOCAL E PARA O ENSINO DA HISTÓRIA Maria Doralice Nepomuceno Barbosa1 Genilda Pereira Batista Lima2 Max Lanio Martins Pina3 1 Resumo: O presente artigo pretende despertar nos professores de História o interesse pela pesquisa da história local, como meio de tornar suas aulas mais ricas e significativas para os adolescentes do ensino fundamental. Considera a importância do conhecimento da História para a formação integral do indivíduo e como a história do município (Porangatu) pode contribuir para a formação da consciência e da identidade cultural. Estabelece uma estreita relação do patrimônio histórico cultural com a formação dos grupos sociais e seu desenvolvimento, mostrando que o patrimônio pode ser tomado como fonte primária para a des/construção desse processo histórico, sobretudo quando não há documentos escritos. Por fim, relata uma experiência de estudo da história local, que teve origem na execução do projeto de extensão universitária - Educação Patrimonial: educar para preservar. Palavras chave: Ensino de História. História local. Patrimônio cultural. Abstract: This article aims to awaken in history teachers the interest in local history research, as a means of making their richer classes and meaningful to teenagers elementary school. Considers the importance of the history to the integral formation of the individual and how local history can contribute to the formation of consciousness and cultural identity. Establishes a close relationship of cultural heritage with the formation of social groups and their development, showing that the assets can be taken as a primary source for the de/construction of this historical process, especially when there are no written documents. Finally, we report a study of experience of local history, which originated in the implementation of university extension project - Heritage Education: educate to preserve. Keywords: History teaching. Local history. Cultural heritage.

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Especialista em História Econômica (Uni-Evangélica) e em Ciências Sociais (UFG). Docente efetiva da Universidade Estadual de Goiás, Campus Porangatu. Coordenadora de Área do PIBID de História no Campus Porangatu. E-mail: [email protected]. 2 Especialista em Orientação Educacional (FACEN), em Aprendizagem e Diferença (UFG) e em Metodologia do Ensino Superior (UEG). Docente efetiva da Universidade Estadual de Goiás, Campus Porangatu. Coordenadora Pedagógica do Campus Porangatu. E-mail: genildapbl@gmailcom. 3 Mestre em História (PUC-Goiás). Docente efetivo da Universidade Estadual de Goiás, Campus Porangatu. Coordenador Adjunto do Trabalho de Curso de História. Email: [email protected].

Introdução As transformações que vem sofrendo o patrimônio cultural material de Porangatu despertaram alguns docentes do curso de licenciatura em História, da Universidade Estadual de Goiás, Câmpus Porangatu, para a necessidade de desenvolver um projeto de extensão, em educação patrimonial. Com esse objetivo a professora de Didática e Prática de Ensino – Maria Juliana de Freitas Almeida, no ano de 2010, criou o projeto Educação Patrimonial – Conhecer para preservar que, a partir de 2013, vinculou-se às disciplinas de História do Brasil e História Regional. Este projeto leva alunos das escolas públicas de ensino fundamental a conhecerem o patrimônio cultural da cidade, visando despertá-los para sua valorização e preservação como parte integrante da história da cidade e sua identidade cultural. A preservação dos bens patrimoniais ganha valor e sentido quando o bem é preservado em virtude da história nele contida. O contato direto com este legado cultural nos colocou frente a diversos questionamentos a respeito das origens e do desenvolvimento da cidade, fundada, segundo informações orais, durante a mineração do ouro no século XVIII, por isso entendemos que o patrimônio histórico cultural se torna uma importante fonte documental que fala e informa sobre o seu passado. A partir da experiência, vivenciada no projeto de extensão, começamos o levantamento das fontes orais ainda disponíveis e a investigação através das evidências e vestígios possíveis de constatar pela

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observação atenta e criteriosa do patrimônio histórico, a fim de des/construir o quanto possível, a história local. Procuramos neste artigo, fundamentar a importância da História para a formação da cidadania e da consciência histórica e crítica do indivíduo, as mudanças historiográficas, que possibilitaram a valorização da história local e os benefícios que a pesquisa pode proporcionar para professores e alunos pela produção do próprio conhecimento. Ressaltamos a relevância dos estudos locais para o ensino de História, tornando as aulas mais interessantes, mais significativas, além de desenvolver no educando um espírito investigativo. É com esse objetivo que pretendemos mostrar o significado do patrimônio histórico para a história local e o benefício que esta pode trazer para o ensino de História.

A contribuição da História na formação do indivíduo Quando nos referimos a História como ciência ou disciplina escolar, é lugar comum a discussão quanto a sua importância e aplicabilidade na vida cotidiana. Por esta razão lembramos que “Uma das funções básicas da História é permitir a compreensão da vida em sociedade e dos homens que a integram e a transformam” (BOSCHI, 2007, p. 10). Não obstante a importância do estudo da História para perceber a ação humana através do tempo e o desenvolvimento da disciplina histórica nas últimas décadas, no ensino fundamental e médio, passando por uma mudança de concepção de história tradicional, oficial, factual, que apresentava um conhecimento pronto e acabado como verdade

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absoluta, para uma nova concepção de que o conhecimento histórico é uma construção continuamente reelaborada; em que “alunos e professores são sujeitos da história, são agentes que interagem na construção do movimento social” (NADAI, 1993, p. 160), ainda é muito comum depararmos com professores que encontram dificuldades em despertar o interesse de seus alunos para o estudo da História. Muitas vezes ela é vista apenas como o estudo do passado sem nenhuma relação com a realidade do aluno e com a sociedade em que ele vive. Assim, despertar o interesse de crianças e adolescentes para esta disciplina torna-se um desafio, principalmente considerando a contribuição da História para a formação da cidadania, para a apropriação da realidade, do conhecimento e a construção de uma identidade cultural nos educandos, enfim para a formação integral do indivíduo. Ainda segundo Boschi (2007, p. 11) o estudo da História é importante porque esta é inerente ao ser humano, de forma que onde há seres humanos, há História, ou seja, as duas coisas são inseparáveis, fazem parte dos seres humanos em todas as épocas, em todos os lugares. Para ele “a História faz parte de nossas vidas porque somos seu sujeito (nós a transformamos) e também seu objeto (ela nos modifica)”. Por outro lado as histórias infantis e histórias de família, contadas pelos pais ou pelos professores exercem um grande fascínio em crianças e adolescentes. Acrescentemos a isso o interesse que os filmes com temas históricos, as novelas de época, despertam nas pessoas de modo geral. Isso nos leva a entender que é perfeitamente possível levar crianças e adolescentes ao fascínio pela História como ciência, como disciplina

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escolar. O que precisamos é descobrir caminhos e estratégias que despertem o gosto pela História, a história dos homens, das ações humanas, não a dos heróis, ou de indivíduos isolados, mas das sociedades, das mudanças, das permanências. É ver a história (passado) presente na atualidade, isto é, um conhecimento histórico que leve os educandos a interrogarem as questões presentes na sociedade atual e a refletirem criticamente sobre elas. Retomando a ideia de que a História é inerente ao ser humano e necessária para a formação da cidadania, recorremos a Freire (1991, p. 11) quando afirma que “a leitura do mundo precede a leitura da palavra” e a Fausto (1996, p. 13) que ressalta ainda mais:

Sem ignorar a complexidade do processo histórico, a história é uma disciplina acessível a pessoas com diferentes graus de conhecimento. Mais do que isso, é uma disciplina vital para a formação da cidadania. Não chega a ser cidadão quem não consegue se orientar no mundo em que vive, a partir do conhecimento da vivência das gerações passadas. Despertar o gosto pelo estudo da História exige, assim, mudanças nas práticas pedagógicas e o trabalho com a história local pode ser uma alternativa viável por ser mais próxima da realidade do aluno. Mas comumente os professores alegam a ausência de material escrito e o desconhecimento da formação, das origens e do desenvolvimento das sociedades locais para que possam desenvolver esse trabalho em sala de aula. No Brasil, até bem pouco tempo privilegiou-se o estudo da macro

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história, além do enfoque dado, como já dissemos anteriormente, ao estudo da história factual que ressaltava os acontecimentos e a memorização de datas e nomes de heróis, de fatos limitados a causas e consequências. Esta prática pedagógica criou a falsa ideia de que a história é feita apenas pelos homens que detém o poder, ou que realizaram grandes feitos. O cidadão comum não faz e não tem história, as sociedades simples não fazem e não tem história. Também as cidades antigas de construções mais simples, que foram construídas por povos pobres, que não tiveram grande expressão na política ou na economia, não contaram com a proteção de seus patrimônios culturais e não ganharam espaço na História. Desprezava-se, também, as memórias orais e a participação das camadas populares na construção histórica. Outra dificuldade que se encontra é a questão do tempo, frente ao conteúdo proposto no currículo escolar.

As mudanças na concepção da História e a História local Para Freire (1991, p. 35) “O Brasil foi ‘inventado’ de cima para baixo, autoritariamente. Precisamos reinventá-lo em outros termos”. Nas últimas décadas, felizmente, despertou-se para o estudo e valorização das culturas locais, tais como as rezas, danças, festas, lendas, mitos, culinária, construções e as mais variadas experiências, enfim o patrimônio local material, imaterial ou mesmo natural, e as memórias tomaram o status de história e constituem como sugestões constantes nos livros didáticos. Esta mudança no processo historiográfico vem acontecendo desde o movimento da Escola dos Annales, ocorrido na França, nos anos de

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1930, quando, segundo Ferreira e Franco (2009, p. 45) os historiadores passaram a questionar a hegemonia da História política e a condená-la como elitista, anedótica, individualista, subjetiva, factual e a propor uma história mais voltada para o econômico e o social. A renovação metodológica dos anos de 1960, no interior dos Annales, criando o movimento da Nova História, abriu um leque de oportunidades de estudos voltados para as minorias, os excluídos e os pobres. Ampliaram-se também os temas de estudo e diversificaram as formas das abordagens. Outro avanço na historiografia foi, sem dúvida, o surgimento da história cultural nas últimas décadas do século XX. Quando “progressivamente a cultura passou a ser entendida como elemento chave para a compreensão das transformações sociais” (FERREIRA e FRANCO, 2009, p. 58). A valorização do papel das pessoas comuns no processo histórico e as manifestações sociais, que colocam em evidência o conflito social e novos atores sociais, mais uma vez despertaram nos historiadores uma renovação metodológica na História, esta tendência permitiu o surgimento, na Itália, da micro história que

contempla temáticas ligadas ao cotidiano das comunidades, às biografias, muitas vezes de figuras anônimas, que passaram despercebidas na multidão, relacionadas à reconstituição de micro contextos. (...) Os elementos do micro, recolhidos pelo historiador, são, na verdade, os indícios, as pistas que lhe permitem refletir sobre questões que não são vistas num primeiro olhar. (FERREIRA e FRANCO, 2009, p. 54).

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Garrido (1992, p. 33) estabelece uma relação entre a micro história e a história local ao considerar que a História deve “analisar e relacionar todos os fenômenos estruturais e superestruturais com a vida cotidiana dos protagonistas da história (...) numa linha historiográfica que denominamos história local ou micro-história”. Também Gonçalves (2007, p. 179) recorrendo a Jacques Revel que associa a micro história com a história local, tomando por base os conceitos geográficos de escala de observação (análise) e de fronteiras. Assim, a diferença entre as duas está na variação da escala de observação ou no estabelecimento de fronteiras que podem ser “largas, fluídas e móveis: o social”. Gonçalves (2007) considera a escolha de fronteiras como uma tarefa do historiador, baseando-se numa escala de observação, com o objetivo de atingir um determinado conhecimento. Cita Revel (1988, p. 28) para quem não há oposição entre a história global e a história local, esta é apenas uma versão diferente de realidades macrossociais. No Brasil, os atuais Parâmetros Curriculares Nacionais para o ensino de História na educação básica passaram a determinar que: “Os estudos de história local constituem o ponto de partida da aprendizagem histórica, uma vez que permitem a abordagem dos contextos mais próximos em que se inserem as relações sociais entre os professores, os estudantes e o meio” (CAIME, 2010, p. 69). Antes de avançar para o estudo da importância desta orientação curricular tomamos de Gonçalves (2007, p. 178) a concepção de história local: “Como conhecimento histórico produtor de uma consciência acerca das relações entre as ações

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de sujeitos individuais e/ou coletivos em um lugar dimensionado em sua ordem de grandeza como uma unidade”. O estudo de história local pretende tornar o “ensino de História mais interessante e atraente, na medida em que são abordados temas mais próximos da realidade e da vivência do aluno, tanto no tempo como no espaço” (BARBOSA, 2015, p. 2). Contribui para formação de uma consciência histórica e critica da realidade social. Através desse estudo o aluno apropria de sua realidade que é singular e específica em relação às demais, toma conhecimento e passa a valorizar as experiências culturais de sua comunidade. Outra consequência positiva desta abordagem histórica é a criação de um sentimento de pertencimento do indivíduo a sua comunidade através da identificação que este passa a ter com sua cultura, enfim, permite a criação de uma identidade cultural. O desconhecimento da história local pode levar o indivíduo a alienação, a não se sentir enraizado em uma coletividade e a negar sua própria identidade. Segundo Freire apud Dias e Soares (2007, p. 72) “o ser alienado não procura o mundo autêntico. Isto provoca uma nostalgia: deseja outro país e lamenta ter nascido no seu. Tem vergonha de sua realidade”. Considerando

a

ausência

de

textos

escritos

para

o

desenvolvimento do trabalho pedagógico o professor necessariamente deve partir para o trabalho de pesquisa que é o ápice do processo ensino aprendizagem. A pedagogia é enfática em defender que não há ensino sem pesquisa, o que fica comprovado em “A Pedagogia da Autonomia” de Paulo Freire que considera sobre a formação do professor:

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Que o formando, desde o princípio mesmo de sua experiência formadora, assumindo-se como sujeito também da produção do saber, se convença definitivamente de que ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades para sua produção ou sua construção. (FREIRE, 1996, p. 24-25). Em defesa de uma educação que eduque para a autonomia e a liberdade do indivíduo Freire (1996) é sempre enfático em ressaltar o positivo da pesquisa no ensino, pois ao construir um conhecimento juntos professor e aluno, este último vai se transformando em sujeito da construção e da reconstrução do saber ensinado, assume-se como um ser social e histórico que o torna um ser pensante, comunicante e transformador. Nisto consiste a autonomia que deve ser a finalidade última da educação.

A relação entre o patrimônio cultural e a História local Mas qual é a fonte a ser pesquisada para a construção do conhecimento das vivências das gerações passadas, ou seja, para a des/construção da história local? No nosso entendimento, na ausência de documentos escritos, existem duas fontes básicas para esta pesquisa. Uma delas são as memórias que podemos recuperar através dos depoimentos dos mais idosos. Estes muitas vezes foram testemunhas dos acontecimentos ou são verdadeiros baús de informações passadas de geração em geração, através de seus antepassados. As fontes orais constituem mais uma fonte documental para a história que os

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movimentos de renovação historiográfica do século XX passaram a valorizar. Para Thompson apud Garrido (1993, p. 34) “as fontes orais estão na base da mais antiga e da mais recente forma de fazer História”. A outra fonte são os vestígios deixados através do patrimônio cultural material, os sítios históricos que são lugares de memória, por excelência. No entanto, há que se considerar outras fontes que se constituem no patrimônio imaterial, tais como as festas, as danças, as rezas, as lendas, os mitos, as músicas e o folclore em geral. Neste trabalho consideramos sobretudo o patrimônio cultural material, ou os sítios históricos como vestígios e evidencias da história local. Para Cainelli e Schmidt (2009, p. 139) este estudo pode ser uma estratégia de aprendizagem que garanta uma melhor apropriação do conhecimento por parte do estudante, inserindo-o na comunidade onde vive, gerando nele atitudes investigativas a partir do seu conhecimento, facilitando sua percepção de continuidades, diferenças, mudanças, conflitos e também permanências. Contribui, também para a construção de uma história mais plural, menos homogênea, além de dar vozes aos sujeitos históricos silenciados, uma vez que a história local não consta nos livros didáticos. Por isso mesmo, neste caso, professores e alunos fazem a experiência de construir o próprio conhecimento. O que permite o desenvolvimento da escrita e da leitura não somente de textos grafados, mas a leitura do mundo que o rodeia, o desenvolvimento da expressão oral e escrita, da percepção da desconstrução e construção do conhecimento histórico e das possibilidades de agir e interagir na

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realidade. Outro aspecto positivo é que desenvolve uma relação afetiva com o patrimônio pesquisado e com a própria história, que a partir daí ganha significado e valor permitindo a preservação do mesmo. Em outras palavras promove-se além da pesquisa histórica, a educação patrimonial. E de acordo com Horta:

A educação patrimonial é um instrumento de “alfabetização cultural” que possibilita ao indivíduo fazer a leitura do mundo que o rodeia, levando-o à compreensão do universo sociocultural e da trajetória histórico-temporal em que está inserido. Este processo leva ao reforço da auto estima dos indivíduos e comunidades e à valorização da cultura brasileira, compreendida como múltipla e plural. (HORTA, et al., 1999: p. 6). Estabelecemos desta forma uma estreita relação entre a história local e a educação patrimonial, pois para ambas o patrimônio é a fonte primária do conhecimento que deve ser revisitado e contextualizado na história regional e em alguns aspectos, na nacional, num processo permanente, sistemático e dialético. Na fala de Horta podemos perceber a compreensão das diferenças e da multiplicidade de culturas do nosso povo, que o estudo do patrimônio e da história local pode possibilitar no educando.

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Uma experiência de estudo da História local a partir do estudo do patrimônio Desde o ano de 2013 desenvolvemos um trabalho de extensão com acadêmicos do Curso de História da Universidade Estadual de Goiás, na sede do Câmpus Porangatu. Esta cidade originou-se de um pequeno povoado fundado no século XVIII, na época da mineração do ouro. O Arraial permaneceu após o esgotamento do ouro e teve seu nome mudado em 1943, quando passou a se chamar Porangatu sendo emancipado em 1948. Não foi possível, até o presente, localizar documentos sobre sua fundação ou registros da produção de ouro nesta mina. Mas a história da descoberta do ouro passou de geração em geração e está na memória coletiva das antigas famílias. Segundo informações orais, o Negro Dunga, escravo que acompanhava a bandeira de João Leite, que estava acampada nas proximidades do atual centro histórico, encontrou as primeiras pepitas de ouro num córrego que passa naquele local. Em torno da mina surgiu o povoado que recebeu o nome de Arraial do Descoberto da Piedade, mas comumente chamado apenas “Descoberto”. Não se sabe ao certo o ano que se deu esta descoberta, nem a duração e a produção de ouro da mina. No século XIX apareceram informações mais precisas de viajantes que registraram passagem pelo Descoberto da Piedade. O mais conhecido registro é de Raimundo José da Cunha Matos que no início da década de 1820, nomeado como Governador de Armas para Goiás, visitou todos os arraiais da Capitania e enviou um relatório sobre a situação destes para D. Pedro I. Mais tarde este relatório foi publicado pelo Instituto Histórico e

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Geográfico Brasileiro. Segundo ele “o Descoberto da Piedade tinha 37 casas humildes, uma delas servia como casa de oração. O arraial havia decaído de sua antiga prosperidade devido aos ataques dos índios” (MATTOS, 1979, p. 119). Em meados do século XX surgiu uma lenda também ligada à Bandeira de João Leite. Esta criou o mito de que havia naquela bandeira um jovem que se apaixonou pela índia Angatu, que era muito bela e pertencia a uma sociedade indígena que vivia no local onde foi fundado o povoado. O romance foi proibido pelo cacique, mas como eles continuavam o namoro, o rapaz foi aprisionado e queimado na fogueira. Ao morrer ele gritou “morro por Angatu”. O desconhecido criador da lenda certamente quis valorizar a presença indígena na região e criar uma representação para o nome atual da cidade: “Porangatu”. Esta representação foi constante nos desfiles em comemoração ao aniversário de emancipação política do município nas décadas de 1960 a 1980. No entanto, acabou gerando a ideia confusa de que a cidade surgiu com a índia Angatu e provocou um quase esquecimento quanto ao escravo Negro Dunga e a descoberta do ouro. O arraial do “Descoberto” passou por longo período de estagnação, recebendo algumas correntes migratórias no final do século XIX e primeiras décadas do XX. Com a chegada da Rodovia Belém Brasília, que passava bem próximo ao povoado, muitas famílias pioneiras se mudaram para as proximidades da rodovia, deixando um conjunto arquitetônico de quase dois séculos, que passou a ser apenas um bairro da cidade. É um casario numa praça em volta da Igreja Nossa Senhora da

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Piedade com algumas ruas adjacentes e um beco. São construções de adobe com alicerces de pedra em modelos coloniais, a maioria bastante simples, que com o passar do tempo começaram a se transformar em ruinas, sofrendo a demolição natural ou sendo demolidas pelos novos proprietários para dar lugar a construções mais modernas. Outras receberam pequenas reformas, ou grandes reformas, apagando a memória e a história de dois séculos de ação humana neste espaço. Do antigo casario, pouco resta em original e o que resta está bastante danificado. Foi no sentido de despertar para a valorização e preservação deste patrimônio cultural de Porangatu que teve início o projeto de extensão Educação Patrimonial: Conhecer para Preservar, desenvolvido por acadêmicos do Curso de Licenciatura em História, junto a turmas das últimas séries do ensino fundamental de escolas públicas da cidade. O trabalho está ligado às disciplinas de História do Brasil e História Regional. A escolha do tema do projeto e do público alvo decorreu da necessidade de criar uma consciência cultural que leve os adolescentes a atitudes de valorização, preservação e conservação da memória e do patrimônio cultural existente. Além do projeto de extensão, também os acadêmicos participantes do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID) vem desenvolvendo trabalhos com o patrimônio cultural e a história local em Porangatu. Assim, passamos ao levantamento bibliográfico do tema reunindo obras e artigos que trabalham sobre a memória, o patrimônio, as cidades. Estes textos passam por debates e discussões dos acadêmicos que depois

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elaboram palestras que são desenvolvidas para alunos do Ensino Fundamental, abordando conceitos básicos sobre memória coletiva e individual, cultura, identidade e patrimônio; as diversas classificações de patrimônio, o conceito de tombamento e suas classificações: municipal, nacional e da humanidade, as leis e os órgãos de defesa dos bens patrimoniais. O domínio dos conceitos abordados tende a levá-los a interagir com as manifestações culturais reconhecendo-as como elementos de sua própria identidade cultural. Em seguida, tanto os acadêmicos como o público alvo são levados em visitas monitoradas ao sítio histórico para conhecimento, in loco, do patrimônio local. Nesse momento necessariamente os envolvidos entram em contato com a história de Porangatu, desde suas origens até meados do século XX quando praticamente é construída uma nova cidade deixando o antigo Descoberto como vestígio de um passado remoto. O sítio histórico de Porangatu foi delimitado e tombado pela lei Municipal 590/84, como Patrimônio Municipal que deve ser protegido e preservado em suas características originais. O sítio abrange as ruas e o casario da ocupação inicial, até as ruas que sobem para a parte nova da cidade, cujas construções em art déco, contam a história dos meados do século XX e a transição entre o antigo e o moderno, quando com a chegada de importantes correntes migratórias e a cidade já crescia rumo a rodovia que ligaria Goiás ao Estado do Pará. No entanto, a lei que data do ano de 1984, nunca foi posta em prática por falta de regulamentação e definição de onde devem vir os recursos para esta preservação. Em 2007

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foi aprovado o Plano Diretor do município que em seu artigo 66, parágrafo II afirma:

São consideradas Áreas Especiais de Interesse Histórico e Cultural: a área delimitada do Descoberto – com seu conjunto arquitetônico, os edifícios históricos caracterizados pelo antigo Fórum, a antiga Cadeia Pública, a Praça e a Igreja Nossa Senhora da Piedade, o Casarão, a Praça do Poço do Milagre e a antiga Casa dos Correios, bem como as áreas lindeiras as citadas. Porém, não houve a revogação da Lei de Tombamento de 1984. Consideramos que a mudança da concepção de patrimônio para a de área especial de interesse histórico e cultural, a qual elenca apenas alguns edifícios como bens históricos, respeita o momento atual do país que possibilita a muitas famílias o acesso a moradias mais modernas, e reconhece implicitamente a incapacidade do poder público de oferecer recursos para a restauração do antigo casario de modo a evitar sua demolição natural e permitir a convivência do tradicional com o moderno. Esta constatação torna mais urgente o registro da história da cidade que liga suas origens e desenvolvimento a esse patrimônio que corre grande risco de se perder. Ao longo desse tempo foi restaurado o casarão que foi a residência do primeiro prefeito e hoje funciona nele um museu que leva o seu nome: Museu Ângelo Rosa de Moura. Este museu guarda um importante acervo arqueológico das sociedades indígenas que viveram nesta região – Norte do Estado de Goiás. A coleta e estudo deste acervo foi feita pela empresa

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Zanettini Arqueologia, sob responsabilidade dos arqueólogos Paulo Zanettini e Margareth de Lourdes Souza, que contaram com o apoio da 14ª Superintendência Regional do IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional, e de professores da Universidade Federal de Goiás. Parte do material coletado está exposto ao público e apresenta uma coleção de carimbos corporais inteiros, além de vários artefatos de pedra polida, fragmentos de cerâmica e urnas funerárias. Segundo consta no relatório final da pesquisa:

O acervo pré-colonial resgatado totalizando mais de 84.000 peças a maioria correspondendo a fragmentos de cerâmica (prancha 91). Além de ser um acervo representativo, do ponto de vista qualitativo, pode-se afirmar a natureza inédita desse acervo na região, apresentando diversas peças associadas aos contextos sociais, simbólicos e rituais de povos agricultores ceramistas que se estabeleceram nessa área. Urnas funerárias, adornos, carimbos corporais: artefatos que participaram ativamente das relações sociais vivenciadas nesses contextos. Também foi resgatado um acervo numeroso de artefatos relacionados às atividades de obtenção, preparo, manutenção e consumo de alimentos. (SOUZA e ZANETTINI, 2004, p. 173). No final da década de 1990, ocorreu a restauração da Igreja Matriz Nossa Senhora da Piedade, construída por volta de 1880 em estilo colonial, sobre um morro artificial. Para a construção do morro transportaram terra em carro de bois, pois na mentalidade dos antigos moradores a Igreja deveria estar num lugar mais elevado. Após várias

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reformas, a Igreja voltou às características originais, e recebeu uma praça à sua volta. Em trono da Igreja existe um conjunto de casas com arquitetura do século XIX já bastante descaracterizado, assim como o casario antigo das demais ruas. Foi também construída uma praça em torno do Poço do Milagre. Este poço foi a única mina de água potável encontrada no local à época do início do povoamento, pois as demais eram de água salobra. Conta-se que foi considerado um milagre para que pudessem se estabelecer no local, daí o seu nome. Atualmente está incompleta a restauração da antiga pensão que sediará o Arquivo Histórico Municipal. O casario da praça Santa Terezinha, do início dos anos 1900, também tombado como patrimônio, praticamente desapareceu com a construção de novas casas, e no lugar da praça foi erguida uma escola com muros altos e uma quadra de esportes. Nas visitas monitoradas tentamos recuperar, o quanto possível, o que está na memória coletiva dos descendentes das famílias pioneiras, relacionando cada ponto do sítio histórico com as informações orais disponíveis e fazendo uma observação atenta das transformações, das condições de preservação, das permanências, da convivência do moderno com o tradicional, enfim, tentamos estabelecer uma ponte entre o passado e o presente através da memória e do patrimônio. Assim, a memória cumpre uma função social e histórica. É notável o interesse que desperta, nos acadêmicos e nos adolescentes, esse novo olhar, o olhar historicizado sobre o patrimônio, procurando o passado nele contido.

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Numa terceira etapa realizamos oficinas nas escolas campos: em 2013 e 2014 trabalhamos na Escola Municipal Nossa Sra. da Piedade, que está localizado no sítio histórico e a partir de 2015 direcionamos o projeto para o Colégio Estadual Presidente Kennedy. A cada ano é escolhida uma oficina diferente de acordo com a sugestão dos participantes, pois nesta etapa já criaram um envolvimento com o patrimônio estudado. Assim foram realizadas exposições de objetos antigos pertencentes às famílias dos próprios alunos, em que todas as turmas da escola são levadas a visitar a exposição e os próprios alunos contam a história dos objetos. Exposição de banners sobre os principais monumentos do antigo “Descoberto” e sua história, oficinas de preparação e apresentação de slides do sítio histórico. Em todos os momentos da execução do projeto não perdemos o foco da história local. No decorrer dos anos o contato direto com os vestígios históricos, com a memória oral das antigas famílias, percebemos que a história das origens da cidade e o seu desenvolvimento, estão presentes no patrimônio. É a partir daí que o projeto toma uma nova dimensão para além da extensão, da educação patrimonial e passa à pesquisa, o levantamento da história local e sua contextualização na história regional e do Estado de Goiás. Intensificam-se as leituras de teóricos sobre memória, patrimônio, as cidades, o fenômeno urbano e história regional, surgem novas perguntas, dúvidas e um espírito investigativo que coloca o antigo Descoberto no centro da reflexão histórica. Para Pesavento (2007, p. 16) a cidade do presente contém a cidade do passado. As transformações, as mudanças que acontecem na cidade ao

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longo do tempo apagam as materialidades e sociabilidades do passado, mas ao fazer sua leitura o historiador pode descobrir que a cidade do presente abriga a cidade do passado ou que na cidade do presente estão contidas várias cidades do passado. “A cidade sempre se dá a ver, pela materialidade de sua arquitetura ou pelo traçado de suas ruas, mas também se dá a ler, pela possibilidade de enxergar, nela, o passado de outras cidades, contidas na cidade do presente” (PESAVENTO, 2007, p. 16). Na ausência de documentos escritos necessariamente temos de recorrer às fontes orais e ao antigo Descoberto como evidência da história das origens de Porangatu. Algumas luzes já assinalam caminhos, como por exemplo a dissertação de mestrado defendida recentemente por Maria juliana de Freitas Almeida e que apresenta uma rica pesquisa documental sobre o Sertão de Amaro Leite ao qual o Descoberto pertencia. Esta pesquisa certamente ajudará a encaixar as peças do nosso quebra cabeças a respeito da sua origem mineratória e o desenvolvimento da pecuária como sustentação do povoamento. É importante também compreender o impulso recebido a partir das últimas décadas do século XIX e nas primeiras do XX com a chegada de várias famílias vindas do Nordeste e do atual Estado do Tocantins e sobretudo o advento da Rodovia Belém Brasília que possibilitou a passagem do antigo Descoberto para a atual cidade de Porangatu e consolidou a sua inserção estadual.

no cenário regional e

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Conclusão A partir das observações feitas durante o desenvolvimento do projeto de extensão universitária Educação Patrimonial: Conhecer para Preservar percebemos que existe uma estreita relação entre o patrimônio cultural e a história local e que o estudo desta é uma estratégia para despertar no adolescente o interesse e o gosto pelo estudo de História. Uma história que parte da realidade mais próxima dá sentido concreto ao estudo de realidades mais distantes no espaço e no tempo. Inicialmente, o que se pretendia era educar para a preservação do patrimônio existente em Porangatu, como um direito e um dever de cidadania, pois o mesmo vem sofrendo profundas alterações ou abandono, chamar a atenção para a crise de valores que predomina no mundo globalizado que transforma em descartável o antigo e o tradicional. Porém ao tomar o patrimônio como fonte primária do nosso trabalho, vimos que o antigo Descoberto abriga outra ou mesmo outras cidades do passado, que ele é fonte primária para o estudo da História de Porangatu e que somente a relação entre este patrimônio com a história das origens e transformações pelas quais a cidade passou poderá dar um sentido para sua preservação. A identidade cultural que pretendemos formar nos adolescentes envolvidos no projeto será possível se estes compreenderem o processo histórico que levou a construção daquele espaço. Esta história que não está nos livros didáticos precisa ser construída através da pesquisa; do levantamento das fontes orais ainda disponíveis; da leitura do patrimônio como vestígio e evidência histórica, como ponte entre o presente e o passado.

A leitura de trabalhos

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científicos sobre a região, que já apresentam uma fonte documental confiável também são importantes para esta pesquisa. Tanto a pesquisa e produção do conhecimento histórico, como a própria história local constituem numa excelente contribuição para o ensino de história e para a formação da consciência cultural e da identidade cultural, do senso de pertencimento que pretendemos formar nos educandos.

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