As contribuições estrangeiras para o \" Projecto De Bases para o Codigo das Aguas da Republica\" de Alfredo Valladão

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AS CONTRIBUIÇÕES ESTRANGEIRAS PARA O “PROJECTO DE BASES PARA O CODIGO DAS AGUAS DA REPUBLICA” DE ALFREDO VALLADÃO Alexandre MAGRINELI DOS REIS Assessor da Presidência, Fundação Estadual do Meio Ambiente – FEAM, Minas Gerais, Brasil, +553139151197, [email protected] Aluno do Curso de Mestrado Profissional em Sustentabilidade Socioeconômica e Ambiental da Universidade Federal de Ouro Preto, Minas Gerais, Brasil

RESUMO Em 30 de dezembro de 1906, o Governo Federal brasileiro foi autorizado, por meio da Lei nº 1.617, artigo 35, XX, a mandar organizar as bases de códigos normativos rural, florestal, mineração e de águas do país. Para a codificação dos recursos hídricos nacionais, o Ministro de Indústria, Viação e Obras Públicas confiou o trabalho ao jurista mineiro Alfredo de Vilhena Valladão. No ano seguinte, o insigne jurista entrega à Presidência da República e ao Congresso Nacional seu “Projecto de bases para o Codigo das Aguas da Republica”, juntamente com ampla Exposição de motivos que, publicados pela Imprensa Nacional, geram a obra “Bases para o Código das Aguas da Republica”. Mesmo seu texto não tendo tramitado como proposto e o Código das Águas resultante do processo legislativo (Decreto n.º 24.643, de 10 de julho de 1934) só ter sido sancionado 27 anos depois, a obra de Valladão é vista como uma das mais completas leis de águas já produzidas, tendo influenciado posteriormente legislações de outros países. Curioso é que, ao influenciar outras legislações, a obra de Valladão completa um ciclo, uma vez que ela mesma foi formulada com base em doutrinas jurídicas e normas legais de diversos países. Este ponto é o foco do presente trabalho: apresentar as principais influências internacionais do Anteprojeto, tanto no campo doutrinário como normativo, e, especialmente, verificar se as normas portuguesas anteriores à proclamação de independência brasileira serviram também como fonte do trabalho ora em análise. O trabalho concentra-se na análise da publicação de Alfredo Valladão, doutrina pertinente e na documentação existente do processo legislativo que originou o Decreto n.º 24.643, de 10 de julho de 1934. Busca-se demonstrar que aliado a uma produção normativa originariamente brasileira, o Projeto de Bases do Código de Águas da República inovou por introduzir conceitos normativos não só de legislações estrangeiras existentes, mas também posicionamentos doutrinários que sequer tinham sido normalizados em seus países de origem. Palavras-chave: águas, Brasil, legislação estrangeira, código de águas, Alfredo Valladão.

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1 INTRODUÇÃO O período final do século XIX e início do século XX foi a época do surgimento de um avanço tecnológico sem precedentes para a humanidade: a produção, comercialização e uso em larga escala da energia elétrica, que passou a constituir uma nova atividade econômica. Desde que, em 1879 LOUREIRO (2007), Dom Pedro II concedeu a Thomas Edson o privilégio de introduzir no Brasil equipamentos elétricos, esse novo ramo econômico só cresceu em nosso, disposto a abastecer uma indústria ainda emergente e uma população que queria evoluir na sua condição urbana – muitos recém-saídos do campo. Mais e mais empresas estrangeiras chegavam para explorar o lucrativo negócio da energia hidroelétrica, cujo potencial não faltava ao país. Estas empresas iam conduzindo suas atividades em um vazio legal, pois a legislação em vigor não estava preparada para esta nova realidade. Sendo assim, em 30 de dezembro de 1906, o Governo Federal brasileiro foi autorizado, por meio da Lei nº 1.617, artigo 35, XX, a mandar organizar as bases de códigos normativos rural, florestal, mineração e de águas do país. Para a codificação dos recursos hídricos nacionais, o Ministro de Indústria, Viação e Obras Públicas confiou o trabalho ao jurista mineiro Alfredo de Vilhena Valladão. No ano seguinte, o insigne causídico entrega à Presidência da República e ao Congresso Nacional seu “Projecto de bases para o Codigo das Aguas da Republica”, juntamente com ampla Exposição de motivos que, publicados pela Imprensa Nacional, geram a obra “Bases para o Código das Aguas da Republica”. Valladão, já no início da “Exposição de motivos apresentada ao Exmo. Sr. Ministro da Indústria, Viação e Obras Públicas”, lamenta possíveis imperfeições em seu trabalho, decorrente da rapidez com que se deu sua elaboração, deixando a cargo dos legisladores da época as alterações e correções necessárias, em uma mesura aos membros do Poder Legislativo da época, a quem cabia legalmente a função da produção normativa. Sobre a abrangência de seu trabalho, afirma não tratar das águas marítimas, limitando-se às águas terrestres, pois era ali que se encontrava o atraso normativo nacional, a discordância de interpretações e o prejuízo para um país controlar e regular as pressões econômicas sobre o uso das águas - especialmente de um setor elétrico emergente. Em uma primeira menção às normas de direito supranacional, Valladão alega que outro motivo para não incluir as águas marítimas no “Projecto de bases” é que a matéria também é da seara do direito comercial e do direito internacional, este último expressamente excluído do texto, bem como a questão das águas minerais, que o jurista remete para posterior criação de um código específico, o que viria a ser o Código de Águas Minerais (Decreto Lei nº 7.841/43). Quando o assunto é decisão entre a consolidação normas existentes ou a criação de um código, a opção é pela segunda. Ao citar algumas das fontes do Direito Civil em vigor no Brasil à época, como o Direito Romano e as Ordenações, o autor critica a carência nacional tanto legal como doutrinária sobre o tema. Neste ponto, é direta a menção às pesquisas em doutrinas e legislações estrangeiras em busca de contribuições para o “Projecto de Bases”: “E, para tanto, indispensável é o exame do assumpto na legislação dos povos cultos, onde modernamente, o regimen das aguas tem estado em activa elaboração. Foi trabalho que me impuz. Hauri nesta fonte quanto me pareceu conveniente, para adaptar à tradição de nosso direito, organizando as bases de um código, que correspondesse ás necessidades econômicas e sociaes do momento.” (redação original) VALLADÃO (1907) E quais foram estas influências? De que países Valladão pesquisou doutrinas e legislações ? Em uma primeira leitura, podemos identificar textos doutrinários e legislações dos seguintes países:

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Alemanha, Argentina, Áustria, Bélgica, Chile, Espanha, Estados Unidos, França, Itália, Portugal, Prússia e Suíça. Abordaremos, em seguida, alguns pontos do projeto, analisando como esta produção jurídica internacional relacionou-se ou contribuiu para a formação do “Projecto de Bases para o Codigo das Aguas da Republica” 2 AS INFLUÊNCIAS DA DOUTRINA E LEGISLAÇÃO ESTRANGEIRA NO “PROJECTO DE BASES PARA O CÓDIGO DAS ÁGUAS DA REPÚBLICA” Alfredo Valladão continua sua Exposição de Motivos passando a tratar de pontos específicos de seu projeto. Ao iniciar toda a explicação sobre águas e propriedade, o autor resgata elementos do Direito Romano e Feudal, analisa textos de doutrinadores italianos, das Ordenações do Reino, e afirma inclusive transpor em seu trabalho artigo do Código Civil Português vigente à época. Sua abordagem sobre águas comuns, públicas e privadas e a dominialidade pública da água passa pela utilização ou não dos critérios de navegabilidade e flutuabilidade. Buscam-se em normas espanholas e suíças exemplos de outros países, além de argumentação na doutrina italiana – esta uma constante em todo o texto. Em um dos poucos momentos em que o jurista mineiro cita situações de países da América do Sul, apresenta como é o regime de domínio público no Chile e Argentina. Continuando a discorrer sobre a dominialidade pública, buscou uma ampliação das regras vigentes no Brasil sobre o domínio público das águas, além do modelo clássico que prioriza a navegabilidade, estendendo-o às correntes flutuáveis, partindo do Direito Romano, do conjunto de regras em vigor e das diferenciações feitas quanto ao conceito de rio, torrente e ribeiro. A análise da doutrina italiana e os exemplos de outros países fazem com que o autor modifique posicionamento anterior emitido, incluindo no domínio público os cursos d’água flutuáveis. Curioso é que Valladão deixou claro que não incluiria em seu Anteprojeto uma definição do que seria navegação e flutuação. Alega que cabe aos profissionais da área hídrica tal ofício, de modo a evitar que um conceito ali incluído pudesse restringir o desenvolvimento da ciência hídrica que se desenvolvia no país. Para o controle de quais seriam as correntes públicas, o jurista cita a utilização de cadastros oficiais. Entretanto, argumenta que sua função seria de mero instrumento administrativo, não sendo por si só elemento de definição legal da afetação pública ou privada de um curso d’água ou locus de solução de divergências sobre tal afetação, o qual seria o Poder Judiciário. Novamente se valendo de textos de doutrinadores italianos, Valladão afasta o caráter de definidor do destino legal do uso público da água, e decidiu por não incluir tal instrumento no Código que escreveu. Em seguida, passa-se ao tratamento das águas de domínio privado. Uma proposta inicial de Valladão é restringir ao domínio privado só aqueles cursos d’água de interesse dos setores econômicos, como os ligados à geração de hidroeletricidade. Aplica-se, assim, um sistema de exclusão. Sobre o aproveitamento dos cursos d’água, o jurista questiona como executá-lo diante da negativa do proprietário ribeirinho. Sua pesquisa encontrou três sistemas aplicáveis à situação: concessões, licitações e associações sindicais. Para os três sistemas são apresentados prós e contras. Ao analisar as concessões e seu regime de desapropriações para utilidade pública, questões como a determinação do quantitativo de potencial de uso que justificaria a utilidade pública e a possibilidade de conflito com proprietários fizeram com que Valladão expressasse sua preferência por outros sistemas. Já o sistema de licitações é entendido pelo autor como uma opção melhor, explicada com base na doutrina francesa da individualização da queda d’água para fins de uso. Entende que o uso deste sistema deve ser cercado com cautela, de modo a conter abusos. Valladão vê no sistema de associações sindicais a melhor solução para normalizar o aproveitamento do cursos d’água, especialmente no setor hidroelétrico. Mas dificuldades decorrentes

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da realidade brasileira fizeram com que este acreditasse no uso deste último sistema somente a título provisório, entrando em vigor o sistema de licitações. Em seguida, são tratados na Exposição de motivos aspectos referentes às águas comuns, públicas e particulares e iniciam-se as argumentações sobre desapropriação. Apresenta-se sua definição, o critério de utilidade pública e suas duas hipóteses (interesse direto e indireto do Estado) e o de necessidade pública e as especificidades do setor elétrico. É incluída no Código a ideia, oriunda da doutrina francesa, da existência de usinas públicas e privadas como medida de controle do setor. Alfredo Valladão passou, então, a explicar os aspectos dos conceitos jurídicos que se aplicariam ao leito e às margens de rios. Trata do álveo, margens, acessão, aluvião, resgatando as origens do Direito Romano sobre tais matérias e avançando nos dispositivos legais, usando elementos do direito italiano, francês e dispositivos do Código Civil Português. Em seguida, temos uma exposição sobre os diversos usos das águas e seus enquadramentos no Anteprojeto do Código, tanto aqueles gerais e comuns a todos os cidadãos como aqueles especiais e sujeitos à concessão do Governo. Navegação, caça, pesca, agricultura, uso industrial e saneamento são tratados dentro dos aspectos dos dispositivos elaborados, abordando as doutrinas e posições sobre o tema recolhidas por Valladão. A autorização para o uso se dá por concessão do Poder Público, respeitados os direitos de uso adquiridos antes do Código por título legítimo ou por prescrição trintenária e com hipóteses de extinção e inalienabilidade. Numa nova matéria, começa-se a tratar na Exposição sobre o domínio hídrico no regime federativo brasileiro e a competência de seus entes quanto às águas. São apresentados exemplos do Direito Internacional, Estados Unidos, Argentina, Alemanha, Suíça e Áustria. O autor buscou harmonizar as competências quanto ao domínio hídrico, normalização e poder de polícia administrativa. Valladão caminha para o fim de sua exposição tratando das correntes, desobstrução, do regime das nascentes, águas pluviais, consórcios e servidões legais de aqueduto, todos estes temas com influências das doutrinas estrangeiras. Por fim, cabe uma menção especial ao Livro VI, relativo às águas nocivas. Logo de início, o artigo 143 enquadra com um ilícito penal conspurcar ou contaminar águas, prevendo não só responsabilização penal mas o custeio das ações para recuperação da salubridade daquela água (art. 144). Mesmo no caso de atividades industriais (art. 145) poluam a água, deve ser providenciada a limpeza delas por qualquer processo, ou que sejam encaminhadas para o esgoto – o que seria a parte ruim e simplista do dispositivo-, além de indenizar ribeirinhos afetados. Tal lógica é o que entendemos atualmente ser o princípio do poluidor-pagador. Ou seja, muito antes da implementação de modelos de gestão conceituados pelo mundo na atualidade, o texto de Alfredo Valladão já trazia dispositivos com tal princípio, o que, mais uma vez, demonstra o caráter avançado e inovador de seu texto. 3 CONCLUSÃO O texto foi recebido como um grande modificador da situação nacional sobre a matéria. Entretanto, não agradou as empresas do setor elétrico (como a companhia de energia Light paulista – The San Paulo Light and Power -, que fez forte lobby contrário) LOUREIRO (2007). Talvez isto explique sua curiosa tramitação. De sua entrada no Congresso em 1907, foi revisto por uma Comissão em 1917 e aprovado pela Câmara dos Deputados em 1920, sem contudo, ter continuado sua tramitação para o Executivo. Tal situação estranha, contudo, permitiu ao legislador aprimorar seus conhecimentos de outros sistemas, como o americano e francês, no que tange à regulação do uso comum da água – como o uso hidroelétrico LOUREIRO (2007). Foi no Governo Vargas que este texto, já revisto, foi notado como uma boa oportunidade para a iniciativa centralizadora e de controle deste governo, o que levou à sua assinatura e publicação na forma do Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934.

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Mesmo não sendo o texto integral original de Valladão, isto não tirou o mérito de sua iniciativa, pela sua cultura, capacidade acadêmica e esforço de pesquisa. As ideias contidas em seu “Projecto de bases para o Codigo das Aguas da Republica” e no Código de Águas de 1934 influenciaram legislações de outros países POMPEU (1999), que encontraram na norma uma das mais completas leis de águas produzidas. Pode-se dizer que foi uma feliz retribuição deste esforço de um jurista mineiro que, ao criar o novo e compilar as boas iniciativas existentes no mundo no que tange à gestão do Estado sobre as águas, contribuiu para o novo Direito que o século XX necessitava. BIBLIOGRAFIA LOUREIRO, Luiz Gustavo Kaercher. A indústria elétrica e o código das águas: o regime jurídico das empresas de energia, entre a concession de servisse public e a regulation of public utilities. Porto Alegre (Brasil), Sérgio Antônio Fabris Ed., 2007. POMPEU, Cid Tomanik. “Águas doces no direito brasileiro”, in Águas doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação, editado por Escrituras, São Paulo, São Paulo, Brasil, 1999, pp. 601-636. VALLADÃO, Alfredo. Bases para o Codigo das Aguas da República. Rio de Janeiro (Brasil), Imprensa Nacional, 1907.

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