As criticas a censura de cinema e teatro durante o Estado Novo em Portugal Atas e Book Final CIMJ ocr

June 3, 2017 | Autor: Leonor Areal | Categoria: Film Censorship
Share Embed


Descrição do Produto

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro I 2013

Patrícia Contreiras e Cláudia Henriques (Org.)

Centro de Investigação Media e Jornalismo

Centro de Investigação Media e Jornalismo 2014

Atas Congresso Internacional sobre Censura ao Cinema e ao Teatro I 2013

Ana Cabrera e Cristina Castilho Costa (Coord.) Patrícia Contreiras e Cláudia Henriques (Org.)

Centro de Investigação Media e Jornalismo 2014

Ficha Editorial Título Atas do Congresso Internacional Censura ao Cinema e ao Teatro \ 2013 Coordenação Ana Cabrera, Cristina Castilho Costa Organização Patrícia Contreiras, Cláudia Henriques, ISBN 978-989-20-5358-5 Ano 2014, dezembro Edição CIMJ - Centro de Investigação Media e Jornalismo Lisboa, Portugal Redação e Administração Telefone: (+351)21 3642013 Email: [email protected] // web: www.cimi.org Fotografia da Capa Sofia e a Educação Sexual de Eduardo Geada © CIMJ 2014 Todos os Direitos Reservados

Centro de Investlgoçôo Medta e Jomobmo

FCT

Fundação para a Ciénria e a Tecnologia

ÍNDICE Apresentação

Ana Cabrera e Cristina Costa....................................................................................6

I. C i n e m a La censura franquista ante el cine patriótico: el caso de la Guerra Peninsular

Josefina Martinez.......................................................................................................10

Vasculhando os arquivos: a censura ao cinema português

Leonor Areal..............................................................................................................29

As críticas à censura de cinema e teatro (durante o Estado Novo em Portugal)

Leonor A real.............................................................................................................50

Portugal e os filmes ‘antiguerra’ em tempos de revolta estudantil

Gerald B a r................................................................................................................. 68

A censura aos filmes de Ingmar Bergman durante o marcelismo

Ana Bela M orais..................................................................................................... 82

Dissidências (ou a democratização da “geração invisível”)

Helena Brandão........................................................................................................ 97

II. T e a t r o Um achegamento à censura de Castelao e a sua época

Antonio Iglesias Mira ............................................................................................107

Tartufos: acção e reacção

Isabel Maria Alves Sousa Pinto............................................................................120

O teatro do absurdo e a censura salazarista: A bengala, de Prista Monteiro

Márcia Regina Rodrigues...................................................................................... 136

Maria Delia Costa em Portugal: censura à peça Desejo

Miriele Abreu .........................................................................................................149

I I I . Media e Internet Mulheres, censura e internet: os casos Anne Frank e Xuxa Meneguel

Barbara H eller.........................................................................................................160

Lúcio Flávio - sobre a censura ao livro e à adaptação cinematográfica

Sandra Reim ão........................................................................................................174

Notícias da Amadora: estratégias de enfrentamento da censura e desobediência civil Orlando César..........................................................................................................184

Para inglez ver, ou as representações da “Nação” nos primeiros anos do Estado Novo

Maria Cândida Pacheco Cadavez ........................................................................202

IV.Género Mulheres em pretérito (im)perfeito: audiências femininas do passado e memória

Maria João Silveirinha.......................................................................................... 216

The male as a fragile object of desire: Fernando Matos Silva’s The Unloved (O Mal Amado) Érica Valente...........................................................................................................231

As críticas à censura de cinema e teatro (durante o Estado Novo em Portugal)1 Leonor Areal [email protected] Centro de Investigação Media e Jornalismo (CIMJ - FCSH/UNL) Resumo - No longo período de vigência do Estado Novo, a Comissão de Censura foi alvo de diversas críticas e reclamações provindas de vários quadrantes da sociedade: as denúncias por demasiada brandura, as queixas por excesso de zelo, os recursos interpostos pelas empresas de cinema, as críticas surgidas na imprensa, todas elas incomodavam solenemente os censores. Tanto que faziam questão de retorquir publicamente às admoestações e deixar escrita em acta a sua autodefesa. Nas suas reuniões semanais, discutiam-se estes ataques, normalmente considerados como “campanhas” desonestas contra a função que exerciam imbuídos de espírito de “missão”, aliás bem ”espinhosa” por não ser bem compreendida. As críticas, se fossem públicas, eram vistas como afronta e desrespeito, embora a Comissão admitisse o princípio da crítica, desde que “construtiva”. Dos episódios e das farpas lançadas ao poder, pretendo dar conta e expor os seus motivos. Como fonte primária, tomo as actas da Comissão de censura entre 1945 e 1974 e diversos artigos de jornal. O objectivo é compreender a percepção social relativa à censura e os limites possíveis de oposição a ela. E discutir o problema da imagem pública da censura, tópico recorrente e inquietante para as instâncias de censura, que sempre preferem a discrição. Palavras-chave - comissão de censura | cinema | teatro | crítica| imprensa. Introdução Criada em 1945, ainda antes do fim da Grande Guerra, mas prevendo-se já o seu desfecho próximo, a Comissão de Censura aos Espectáculos2 veio dar estrutura orgânica e formalizar as práticas de censura já existentes sob alçada da Inspecção Geral dos Espectáculos, então integrada no Ministério da Educação Nacional3. 1A autora opta pela ortografia tradicional, ao abrigo do artigo 37° da CRP sobre liberdade de expressão. 2 O Decreto-Lei n° 34590 de 11-5-1945 reorganiza a Inspecção Geral dos Espectáculos e indica a composição da comissão de censura - sem a designar formalmente - composta pelo secretário geral do Ministério (da Educação Nacional), pelo inspector dos espectáculos e por 9 vogais (sendo três delegados do SNI) e um secretário nomeados pelo Ministro. 3 AIGE estava integrada no Ministério da Educação Nacional desde 1942 (Decreto-Lei

Têm início nesta data as actas que são fonte primária deste ensaio e que estão acessíveis desde 2006 (CF) no Arquivo da Torre do Tombo e desde 2012 através da Internet. Na sua maior parte, as actas são um inventário minucioso dos filmes, peças de teatro e outros espectáculos sujeitos a visto da censura - um inventário burocrático e fastidioso. Porém, quando menos se espera, surgem pormenores e episódios que nos revelam algo mais acerca do funcionamento da comissão e do espírito dos seus vogais. Estes episódios - breves e raros - surgem sobretudo quando os censores entre si discordam da classificação dos filmes e, entrando em diálogo, afirmam suas respectivas posições em acta, seguidas de votação final e cumprindo a decisão da maioria - numa surprendente praxis de democracia interna - mesmo se a posteriori ordens superiores (provindas da Presidência do Conselho) se sobrepõem ao seu parecer. Outro tipo de situações perturbadoras da rotina censória acontece quando a comissão é confrontada com informações exteriores que não controla, nomeadamente as críticas da imprensa, mas também queixas de pessoas conhecidas que chegam aos seus ouvidos. É destas que aqui darei conta, escolhendo quatro episódios significativos. Episódios Na sociedade de penúria do pós-guerra, apesar de tudo pacificada e com esperança renascida, a Comissão de Censura aos Espectáculos (CCE) visionava, lia, analisava e corrigia as peças de teatro e os filmes que eram vistos no país; filmes estrangeiros sobretudo, já que os portugueses eram escassos, mas duplamente controlados através de censura prévia da “planificação” e de censura posterior do filme; podendo até suspender as filmagens, como no caso do filme Camões de Leitão de Barros4. Em Janeiro de 1953, a composição da comissão é totalmente refeita5, n.° 32.241 de 5 de Setembro). Em 1944, é constituído na dependência da Presidência do Conselho, o Secretariado Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo (SNI) que integra os serviços do anterior Secretariado da Propaganda Nacional (criado em 1933) e os serviços de censura (Decreto-Lei n° 33.545 de 23 de Fevereiro). A integração da IGE no SNI é contudo diferida, ficando, em regime de instalação, na dependência conjunta do MNE e da Presidência do Conselho até 1959, quando é de novo reorganizada e finalmente integrada no SNI (Decreto-Lei n.° 42.663 de 20 de Novembro 1959). 4 Em acta n° 29 da CCE de 25-09-1945, foi decidida a suspensão da filmagem de Camões - o Trinca Fortes, após “aprovação do relatório do vogal Melo Matos, tendo sido resolvido que se convidasse a Empresa a suspender os trabalhos até resolução definitiva e que se desse conhecimento do citado relatório a Sua Excelência o Ministro”. Na acta n° 31 de 9-10-1945, “a Comissão resolveu autorizar a continuação dos trabalhos do filme (...) em virtude de terem alguns censores, que assistiram à passagem da parte já [filmada] do referido filme, verificado que os erros e faltas apontados no relatório do vogal Melo Matos e que realmente se verificam no filme, não são de molde a invalidar a continuação da filmagem”. 5 O Decreto-Lei n° 38.964 de 27-10-1952 cria a nova Comissão de Censura dos Espectáculos e ainda a Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores, ambas na alçada do Ministério da Educação Nacional, definido as suas atribuições e uma nova tabela de classificação etária dos espectáculos.

passando a ser presidida pelo novo Secretário Nacional de Informação, Cultura Popular e Turismo, José Manuel da Costa. A nova comissão já não se limita a registar em acta a distribuição de serviço e respectivas decisões - mas discute afincadamente os critérios e as normas por que deve reger-se. Estas são, portanto, actas preciosas para a compreensão e avaliação das actividades de censura aos espectáculos. 1. A lei da assistência de menores a espectáculos públicos (Fev. 1953) Logo em Fevereiro, a alteração legislativa6 que pretendia aperfeiçoar e “regular a assistência de menores a espectáculos públicos” vem estragar o Carnaval às famílias e às empresas de teatro e cinema. Levanta-se uma celeuma na imprensa que, aos olhos da comissão, se trata de uma “campanha dos jornais”7. O presidente da Comissão de Censura, apanhado desprevenido por esta polémica ao voltar de uma missão oficial no estrangeiro, deixou lavrada em acta a sua indignação: Ocupando-se em primeiro lugar da campanha dos jornais, manifestou, em termos da maior repulsa, os baixos propósitos do ataque contra uma medida de flagrante oportunidade e necessidade tomada pelo Governo, que outra coisa não teve em vista senão a sanidade moral do País, a salvaguarda da formação espiritual das futuras gerações e a defesa das idades perigosas contra a acção nociva de muitos espectáculos que antes lhe eram facultados. (...) A objectividade de tão elevados conceitos morais, bem aceites e compreendidos pela geral opinião pública mais sensata e menos egoísta da Nação, foi precisamente aquela a quem se dirigiu o ataque de certos jornais, que lhe deram lugar de relevo nas suas colunas, colocando-se assim, franca e preferentemente, ao serviço exclusivo de inconfessados interesses materiais e dos malefícios maçónicos8. Esta reacção parece-nos talvez exagerada, já que os protestos provêm até de figuras insuspeitas, como o embaixador de Portugal em Madrid, Carneiro Pacheco, que telefonara pessoalmente ao presidente da comissão 6 O Decreto-Lei n° 38.964 de 27-10-1952 cria quatro categorias de espectáculos: “Io - Os espectáculos cinematográficos são vedados a menores de 6 anos; 2o - Os menores de 13 anos só poderão assistir a espectáculos para crianças; 3o - Aos espectáculos que tenham classificação especial para adultos só podem assistir indivíduos com mais de 18 anos de idade; 4o - Aos espectáculos aprovados sem classificação especial pela Comissão de Censura aos Espectáculos poderão assistir todos os indivíduos com mais de 13 anos de idade.” Esta lei vem substituir a anterior Lei n° 1974 de 16-02-1939 que, excluindo igualmente os menores de 6 anos, a não ser em casos excepcionais, apenas estabelecia duas categorias etárias: espectáculos para menores e espectáculos para adultos\ sendo que até aos 12 anos, as crianças só podiam frequentar espectáculos de dia, e a partir dos 15 anos poderiam assistir a espectáculos nocturnos (para menores) ou para adultos quando acompanhados de seus pais. 7 “...promovida por órgãos matutinos da imprensa diária de grande expansão” (não especificados em acta, mas que, após laboriosa pesquisa no Arquivo da Hemeroteca de Lisboa, consegui descobrir serem, pelo menos, O Século, Diário Popular, República. 8Acta n° 5 da CCE de 24-2-1953.

para lhe apresentar reclamações com motivo nos impedimentos que lhe foram postos na admissão de seu filho, menor de 14 anos, que o acompanhava para assistir ao espectáculo carnavalesco do dia catorze do corrente mês, no Teatro Nacional de Dona Maria Segunda9. A agravar a irritação do Secretário Nacional, “só dois jornais diários da manhã e um semanário tinham feito frente ao ataque, colocando-se abertamente em defesa da lei em vigor”. Além disso, muito se ofendera com “o silêncio do órgão da imprensa governamental” - o Diário da Manhã - com cujo director “em discussões, por telefone, quase chegara à beira do seu sacrifício das relações pessoais e fora forçado até a perguntar-lhe se o jornal que dirigia já não tinha princípios de ordem moral a defender”. Recuemos pois uns dias, ao início da polémica, tal como terá sido obrigado a fazer José Manuel da Costa. Em 30 de Janeiro de 1953, o Diário Popular publicara um artigo sobre “A lei que regula a entrada de menores nas casas de espectáculos e as anomalias verificadas durante o primeiro mês da sua entrada em vigor” - tema “que continua a dar motivo a muitas dezenas de cartas dos nossos leitores”. O artigo tenta conciliar essas diversas opiniões, umas mais “descabeladas” e outras “justas”, assinalando que “o sentido moral da lei deveria ser melhor entendido”, pois ele se “destina a evitar mais fácil propagação de ideias e de factos que, mal assimilados por cérebros em formação, só podem, no futuro, tornar-se prejudiciais”. Contudo, o artigo indica que “há arestas a limar, pontos a esclarecer”, salientando algumas incoerências da lei, que impediam, por exemplo, uma menina de 12 anos de ver o filme Robin dos Bosques, ou outras de 16 ou 17 de frequentar as salas de chá dos casinos. A referência seguinte a esta lei encontrei-a, passados 15 dias, no jornal O Século101, noticiando a intervenção na Assembleia Nacional do deputado Pinto Barriga que, elogiando a “grande obra de educação moral” do governo, “pede permissão de consultar nos ministérios da Presidência e da Educação Nacional, os trabalhos (...) em curso destinados a completar (...) a inevitável fase inicial de saneamento, forçosamente quase de carácter negativo ou proibitivo”. Mesmo elogiando veementemente o “engrandecimento patriótico e moral” e a “cristianização dessas almas e consciências juvenis em ampla formação”, parece ver-se aqui sinal de que a lei tem suficientes imperfeições que deverão ser corrigidas. Depois, a 19 de Fevereiro, também no O Século11, um editorial de primeira página, intitulado “Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, revela que “são tantas vozes que se levantam” acerca desta lei, que “é forçoso reconhecer que alguma coisa está a precisar de ponderada revisão”. Defendendo sempre a necessidade de “proteger a formação moral da juventude”, refere, entre outras incoerências, o 9 Tratava-se da peça O senhor roubado de Chagas Roquete. 10 “Sobre a regulamentação da presença de menores nos espectáculos públicos e a produção e distribuição de energia eléctrica o sr. prof. dr. Pinto Barriga pediu esclarecimentos na Assembleia Nacional” in O Século de 14-2-1953. 11 Era seu director João Pereira da Rosa, e director-adjunto Guilherme Pereira da Rosa.

facto de se vedar a entrada a menores de 13 anos em espectáculos que podem ser ouvidos na rádio “por qualquer criança de colo”. As principais vítimas, diz o artigo, são as crianças “para as quais não se criou, em compensação necessária, espectáculos que (...) suprissem os que lhe foram vedados”; mas salienta também o prejuízo das empresas e seus trabalhadores, bem como os dos “pais que não podem deixar os filhos em casa entregues a criadas (que muitas vezes não têm)” e assim não podem eles ir ver um “filme sem classificação especial” - pois estes estão reservados por lei a maiores de 13 anos de idade. Curiosamente, no mesmo jornal, surge um anúncio do filme Amanhã Será Tarde12- “o primeiro filme que desvenda arrojadamente o mundo misterioso dos adolescentes” - que “FOI FINALMENTE AUTORIZADO em virtude da nova lei que regulamenta a entrada de menores”. A razão poderá ser que a nova lei não permitindo de todo o acesso de menores a espectáculos para adultos (nem acompanhados dos pais) - tenha tornado acessíveis só para adultos certos filmes. No dia seguinte, 20 de Fevereiro, de novo na primeira página, O Século publicava um ofício enviado pela União de Grémios dos Espectáculos, chamando a atenção para “os prejuízos que o decreto ocasiona aos empresários”. Esta carta revela que já em 18 de Novembro de 1952 fora enviada ao Ministro da Presidência13 uma exposição onde - “embora se reconhecesse (...) a necessidade urgente de se levantar à volta da juventude e da infância (...) uma cintura de defesa com que lhes fiquem vedados todos os caminhos que não levem à Verdade e ao Bem” - consideravam que “se fora longe demais no aspecto das limitações”. Decorridos dois meses, os prejuízos das empresas revelam-se significativos não apenas nas grandes cidades como na província. Com base nestes dados, a União de Grémios informa que entregará “dentro de dias” uma nova exposição ao ministro. Em seguida, publica-se uma carta de um empresário das Caídas da Rainha explicando “como perdeu dinheiro”, e para quem “não oferece dúvida que, dentro em breve, quase todos - senão todos - os cinemas da província terão de fechar portas”. No dia 21, nova notícia na primeira página dá conta de “numerosos telegramas e cartas de aplauso” ao artigo de ante-véspera n’0 Século, citando uma mensagem enviada pelos empresários do Norte e nomeando mais de uma vintena de empresas que manifestaram “aplauso” à “doutrina do nosso artigo”. A pressão da opinião pública vai continuar n9O Século, com mais apoios de empresas, em 22 e 23 de Fevereiro. Também o vespertino República, no dia 21, publica uma pequena nota14 de comentário às “vivas discussões” suscitadas por este decreto-lei, reforçando a ideia já alhures expressa de que caberia ao Estado, através da classificação dos filmes, aconselhar os pais: “o que vá além disto parece-nos intervenção excessiva, num problema cuja resolução pertence, fundamentalmente, aos pais”. 12 Filme italiano de 1949, realizado por Léonide Moguy, com Vittorio de Sica e Anna Maria Pierangeli, que estreará no Tivoli a 23 de Fevereiro. Classificado para adultos (maiores de 18 anos). 13 João Pinto da Costa Leite. 14Assinada por L.O.G.

O problema surge entretanto sob outro prisma: a perspectiva dos empresários que nem sequer possuem filmes especialmente destinados às crianças. A 23 de Fevereiro, o Diário Popular afixa na primeira página: “É impossível organizar espectáculos cinematográficos para crianças por falta de filmes próprios - diz-nos o presidente do Grémio Nacional das Empresas Cinematográficas”, que “apresentou já uma exposição ao Ministro da Presidência”. Afirmando que nenhuma nação produz filmes especialmente para crianças - além de Branca de Neve e os Sete Anões ou Bambi - Edmundo Ferreira de Almeida destaca, em entrevista, o exemplo de um filme15 para crianças que “passa aqui à categoria de “sem classificação especial”“, ou seja, para maiores de 13 anos. O presidente do Grémio defende que “os menores de 10 a 16 anos, acompanhados dos pais deveriam poder frequentar qualquer espectáculo”. Propondo que a classificação “para crianças” seja substituída pela de “para todos”, “afim de que muitas pessoas deixem de pensar erradamente que aqueles espectáculos são reservados a crianças”. Propõe ainda a diminuição do limite de idade do escalão mais alto de 18 para 16 anos, desde que os menores sejam acompanhados dos pais; e de 13 para 10, “por corresponderem às mudanças de regime escolar”. Em suma, “seria uma forma de reduzir sensivelmente os prejuízos causados nos últimos tempos”. Até que no dia 24, junto com uma nota oficiosa da Presidência do Conselho, que vem dar a polémica por encerrada - “O governo não deixará de estudar seriamente as reclamações e sugestões sobre a entrada de menores nos espectáculos” - é publicado novo editorial n ’0 Século, intitulado “No meio termo é que reside a virtude”, que, além de dar exemplos de outros países, demonstra considerável e irónica contundência: Não! O que se fez, o que se legislou, o que se ordenou e determinou não está, não pode estar certo, embora pensem o contrário aqueles que se empenham em apregoar que nos tempos decorrentes só pode haver povos 15 Jeannot intrepide de Jean Image, o primeiro filme francês de longa-metragem em desenho animado, inspirado no conto do Pequeno Polegar, tendo obtido em 1951 o Grande Prémio do II Festival Internacional de Filmes para Crianças de Veneza. Umas semanas depois, este filme, em português intitulado Aventuras de Joãozinho, volta a ser referido em acta (24 de Março de 1953), a propósito de protestos ouvidos pessoalmente pelo presidente José Manuel da Costa: “Do efeito, porventura causado por essa decisão na opinião pública, tivera a percepção pela estranheza que lhe fora manifestada por pessoa das suas relações, a qual não compreendera os fortes motivos que levaram a considerar sem classificação especial um filme premiado”. O vogal Cortês Pinto “esclareceu que o filme em questão, quer pela natureza da grande maioria das suas cenas, muito principalmente, quer pela sua enorme extensão, era absolutamente impróprio para crianças. E, quanto às qualidades que lhe foram atribuídas, podia afirmar que a classificação que lhe deram apenas servia para demonstrar que naquele certame de cinematografia internacional os classificadores que exprimiram semelhante opinião não tinham a menor competência sobre os problemas da psicologia infantil”. O vogal Dias Saraiva “corroborou os esclarecimentos” do seu colega, atribuindo essa decisão a “um jogo recíproco de entendimentos entre os certames cinematográficos internacionais de Veneza e de Cannes”... o que parece sugerir um suspeito conluio (maçónico?)...

felizes, aptos para o desempenho das suas missões universais e nacionais, desde que a Humanidade inteira viva num perpétuo banho de santidade e inocência, esquecendo a luta, cada vez mais áspera, pela existência para se entregarem inteirinhos às práticas espirituais, com inteiro desprezo pelas que conduzem à conquista do pão de cada dia, e se situam na base de toda a dignidade humana. Há tempo para tudo! À tarde, a mesma nota oficiosa publicada no Diário Popular faz-se acompanhar já da resposta do presidente do Grémio, e de uma Nota da Redacção que parece satisfazer-se com a garantia do governo de que “não deixará de estudar seriamente” o assunto16. O jornal procura cantar vitória, mas tê-la-á? É nesse dia, ao fim da tarde, que a Comissão de Censura aos Espectáculos, pela voz do seu presidente, como vimos, manifestará a sua séria indignação com o assunto, por escrito e em acta - para leitura dos seu superiores e dos vindouros. Percebemos pois que “a salvaguarda de altos interesses morais de cuja defesa nada o demoverá”, nas palavras do comunicado da Presidência do Conselho, vem carregada de intolerância e determinação. A censura e o governo não gostam de ser confrontados - e a lei não mudará senão em 1957. Percebemos também que estava em marcha, de facto, uma reacção fortemente corporativa contra a nova lei - aquilo que o Secretário Nacional considera, como vimos, uma campanha “materialista e maçónica” - apesar dos cuidados reiterados dos intervenientes em aprovar a necessidade de censura dos espectáculos presentes à juventude... Desenvolvimentos José Manuel da Costa parecia realmente enfurecido ao declarar que a comissão “não podia ficar inactiva perante os propósitos da campanha. Bem sabia que era mais difícil defender do que atacar, mas era imprescindível e urgente tomar-se uma atitude”. Assim, propõe dois meios de acção: um relatório a apresentar superiormente, e um “segundo meio de acção”, que “era o da atitude individual dos vogais para tanto dispostos, controvertendo desassombradamente, em artigos a publicar na imprensa, as más intenções da campanha desencadeada”. A este desafio responde o vogal Leite de Sampaio, que diz já ter escrito um artigo para a imprensa, “de que só não promoveu a publicação por ter visto nos jornais a nota oficiosa da Presidência do Conselho, o que o levou a hesitar, pelo receio de ser inconveniente depois disso”. Outro vogal, Garcia Domingues dirá “que discordava de atitudes individuais, a tomar pelos vogais (...), pois, em seu modo de ver, a campanha visava especialmente a doutrina legal” e não a actuação da comissão, “que se limitara durante o curto lapso de tempo de vigência do 16 Negando que tivesse dado entrada qualquer carta dos Grémios. No mesmo dia 24, no Diário Popular, e no dia 25, n9O Século, uma rectificação do presidente do Grémio Nacional das Empresas de Cinema vem dar resposta à nota do governo, corrigindo o lapso do jornalista que escrevera “foi entregue” em vez de que “ia ser entregue”. A 26, O Século noticia já foi entregue ao Ministro da Presidência a exposição assinada pelos Grémios. Até dia 27, o jornal continua a noticiar os apoios expressos aos seus artigos.

decreto a executá-lo, fazendo a classificação dos espectáculos segundo as categorias legais”: A defesa do diploma publicado competia, em sua opinião, à imprensa governamental que tão lamentável e inexplicavelmente se mantinha em silêncio, o que, felizmente, não se dera com alguns jornais que, sem a mesma responsabilidade, logo tomaram a defesa dos princípios que o Governo pretendeu salvaguardar com a publicação do diploma. Registando assim mais uma crítica ao silêncio inexplicável da imprensa governamental - que deveria ter defendido o polémico diploma - Garcia Domingues “entendia que individualmente os vogais não deviam tomar qualquer “ofensiva” contra a campanha, sem que previamente fosse obtido o assentimento de sua Excelência o Ministro da Presidência”. E empurrando para a Inspecção dos Espectáculos a tarefa de elaboração de um relatório, visto ser a “entidade que podia anotar em relatório a experiência já colhida sobre o cumprimento do decreto”, Garcia Domingues pensava que à Comissão competia pôr-se na incondicional disposição de estudar qualquer aspecto do problema que o Governo venha a entender dever ser encarado com ofim possível defutura revisão, embora creia firmemente que estudos dessa natureza não se compadecem com curtos prazos de experiência e que mais cedo se fará o silêncio e virá a adaptação ao regime estabelecido que a aceitação de razões para qualquer alteração legislativa. Com o ânimo mais serenado, o presidente terá sopesado o argumento do “silêncio” e pediu então a Américo Cortês Pinto, enquanto representante da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (CLEM), uma “breve organização dos elementos de informação” destinados ao relatório. Este, porém, alegou fundamentadamente que a organização desses elementos era incompatível com a brevidade pedida pelo senhor presidente, visto que os problemas relativos à psicologia infantil em face do cinema em parte alguma estão suficientemente estudados. Lamentando “verificar que não estavam habilitados a apresentar um trabalho dessa natureza”, o presidente conclui “que deste modo teria de se partir do caos”. Em seguida, encarregou o senhor Doutor Alambre dos Santos de proceder à compilação dos factos concretos apontados pelos jornais, para os trabalhos da comissão especial. Na sessão da semana seguinte17, o presidente lê à comissão a nota recebida do Ministro da Presidência18, João Pinto da Costa Leite, precisando que, embora “a execução da lei tenha tido hesitações e dificuldades”, um único ponto parece digno de atenção deve ser tratado com urgência 17Acta n° 6 de 03-03-1953. 18 Datada de 23-02-1953.

(...)- o da organização de espectáculos para crianças. Uma oportuna e conveniente definição das condições a que esses espectáculos devem obedecer, por forma a facilitar às empresas a sua organização em termos aceitáveis, tiraria à campanha que se está fazendo a maior parte da sua força, porque é esse, ao que se julga, o único ponto fraco na execução do novo regime. Assim, 15 dias depois19, três vogais são encarregados de redigirem os elementos e normas orientadoras quanto à selecção de filmes. A resolução é pois remetida para outra altura, mas não mais alterada. Ilações Este episódio - clamoroso como foi - é demonstrativo da impenetrabilidade da comissão de censura, tenaz em não ceder a críticas, mesmo se elas vêm de meios próximos, por receio de se desautorizar, mas sujeitando-se afinal à antipatia e ao descrédito geral. Raramente, em três décadas, a comissão aceita rever decisões, mesmo nos frequentes recursos interpostos pelas distribuidoras para negociação dos cortes. E se concede, por vezes, alterar as suas decisões, fá-lo apenas em situações discretas ou informais. A comissão detesta perder a face publicamente. A sua força ou “autoridade” provinha do seu critério peremptório e imutável. Ao invés de acompanharem os tempos e os costumes, os censores tendem a encerrar-se cada vez mais em critérios rígidos. Por outro lado, este episódio é demonstrativo do papel dos jornais na formação e na afirmação da chamada opinião pública. Note-se que com o silêncio de consentimento até no órgão oficioso do governo, segundo as queixas expressas em acta. Os jornais, cautelosamente, sempre, apoiando as razões políticas de Estado (a defesa moral da juventude), mas discordando firmemente na aplicação prática e, sobretudo, fazendo eco das razões corporativas20 - e apesar da censura de imprensa - chegam a incomodar o poder e a colocar em causa os funcionários políticos. Apenas a intervenção directa de Salazar consegue pôr ponto final na polémica. Reconhecemos, portanto, nos jornais e nos grémios essa capacidade de pressionar o poder político, mesmo se o resultado foi nulo, neste caso. Este decreto só virá a ser revogado 4 anos depois, em 1957, com a reorganização desta comissão que perderá a palavra “censura” para passar a chamar-se Comissão de Classificação e Exame dos Espectáculos (CECE), mas sem alterações significativas da classificação etária21. 19Acta n° 8 da CCE de 17-03-1953. 20 As corporações eram consignadas como organizações de diálogo e negociação na estmtura política do Estado (vide Patrícia Vieira, 2011: 88). 21 O Decreto-Lei n.° 41.051 de 1-4-1957, “tendo em vista a conveniência de atenuar certas disposições”, pouco altera as classificações etárias: apenas muda a designação “para crianças” que passa aplicar-se a espectáculos a partir dos 4 anos, ficando a categoria a partir de 6 anos a designar-se “para todos”; o terceiro escalão desce de 13 para 12 anos. É aumentado, de dois para quatro, os números de elementos da CLEM, “escolhidos

2. Polémica institucional Em Agosto de 1953, uma nova polémica vem perturbar a rotina dos censores. Um artigo publicado no Diário Popular a 24 de Agosto, da autoria do presidente da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (CLEM), recentemente criada22 e possuidora, aliás, de dois representantes na Comissão de Censura aos Espectáculos, é recebido como um ataque traiçoeiro. Trata-se neste caso de uma crítica por excessiva brandura da comissão. Escreve o professor João Serras e Silva no artigo "Não há rede que vede peixe" a propósito do filme Hoje às 8,3023: Passa a moeda moeda falsa, o género alterado, o joio no trigo, o artigo escondido na alfândega, passam os estudantes cábulas, e passam filmes na tela, filmes que às vezes não deveriam passar. Foi o caso, e caso muito notado, de passar com autorização para menores de 13 anos, ofilme Hoje às 8 e meia, que muitas pessoas acharam venenoso - coisas um tanto cruas que aos 15 anos emocionam e põem a sensibilidade em grita, cenas imorais de indiferença e abandono de família e cenas de roubo, feitas com galanteria. Como passou esta fita, desde que há uma censura rigorosa para os espectáculos de menores? Como passou? Preocupado em defender o prestígio da comissão a que presidia, Serras e Silva presume as culpas noutro lado: Sabemos que os membros da comissão para a literatura e espectáculos de menores não a autorizou nem a viu, não lhes cabendo portanto a responsabilidade desta maléfica exibição. O caminho foi outro. Mas como encontrou a empresa esse caminho? As possibilidades apontadas são várias: desde a magra remuneração do pessoal ao excesso de trabalho dos censores, passando ainda pelo “pequeno interesse” do público “nesta fiscalização”, onde há “muita gente que tem em pequena conta os interesses da moral” - estabelecendo um paralelo com a fiscalização de alimentos. Por fim, conclui esperando que o governo “suprirá a falta que deu lugar a este perçalco”. No dia seguinte, em reunião semanal da comissão24, o censor Eurico Serra propõe que o filme “seja novamente visto para lhe ser mantida ou alterada a classificação que lhe foi atribuída”, acrescentando que se devia oficiar ao presidente da Comissão de Literatura e Espectáculos para Menores (...) esclarecendo-o sobre as condições normais a que estão sujeitos os filmes para a sua apreciação pela Comissão de Censura. Mas que, entretanto, achava conveniente que se aguardasse o regresso do pela Presidência do Conselho”. 22 Pelo mesmo Decreto-Lei n° 38964 de 27-10-1952 que criara a nova lei de assistência de menores a espectáculos. 23 Meet me tonight, de Anthony Pelissier, estreado em 30-07-1953 no cinema São Jorge em Lisboa. 24 Acta n°31 da CCE de 25-8-1953.

presidente da Comissão. Assim o assunto ficou à espera mais uma semana. Então25 Eurico Serra esclarece o presidente e vai mais longe dizendo que o referido artigo “se permite levantar dúvidas sobre a isenção dos vogais da Comissão de Censura que classificaram o filme e consequentemente desprestigiar a mesma Comissão” sendo ele próprio um dos dois vogais que classificara o filme. O Presidente, “já informado anteriormente de um certo número de factos”, e em presença de um ofício do Presidente do Conselho, entendia que a este “deveria ser enviado o processo do filme com o respectivo relatório dos vogais responsáveis, acompanhado de oficio que ele próprio iria redigir e em que exporia as normas de trabalho seguidas pela Comissão”. A resposta de Salazar veio no dia seguinte26, subtil e lapidar: Não sei se aos exploradores de cinemas convirá mais a suspensão durante alguns meses da classificação do que a reclassificação para maiores de dezoito. Não sendo provável que seja mantida a classificação actual, conciliar-se-iam todos os interesses, modificando-a desde já. Não deixa o Presidente do Conselho de se mostrar compreensivo da “benevolência” dos censores, reconhecendo a dificuldade criada pela necessidade de haver “espectáculos para os jovens dos treze aos dezoito e não haver filmes próprios para eles”. Contudo remata: “Julgo porém que mais vale não haver espectáculos do que permitirem-se maus espectáculos” - frase extraordinária que encerra a própria censura num apertado colete moral e define a posição do regime perante as artes e a cultura. Ainda na sessão anterior, o presidente da Comissão lamentara também uma crítica de cinema no Diário da Manhã27, acto que “não parece estar certo (...) dado tratar-se de um jornal órgão oficioso do Governo”. O Presidente do Conselho, porém, é mais moderado na condenação do crítico de cinema, apenas considera que o lugar de destaque era escusado: Quando à crítica do Diário da Manhã: fez-se saber ao Jornal que não deveria ter posto na sua crónica em tão evidente posição a Censura e os seus critérios, podendo aliás a crítica dos filmes ser apresentada com o rigor que mereçam. 4-IX-953 - a) Oliveira Salazar Este episódio mostra-nos, primeiro, como uma crítica à tolerância da comissão é imediatamente aceite e vem reforçar a severidade dos critérios; e, em segundo lugar, como a comissão de censura por vezes se podia sentir entre a espada e a parede, entalada entre dois tipos de críticas perfeitamente contrárias umas acusando a sua benevolência, outras a sua severidade. Por isso, o seu desejo, aos poucos, vai sendo o de passar o mais possível desapercebida - que não se notem os cortes, que não haja alterações de critérios, 25 Acta n° 32 da CCE de 1-9-1953. 26 Datada de 4-9-1953, constando da Acta n° 33 de 8-9-1953. 27 Não consegui encontrar esta crítica.

que não se mencione sequer a existência da comissão - que porém todos sabiam existir. O receio dos censores de serem postos em causa tem expressão nas palavras com que (repetidas vezes) se atribuem a dificuldade da sua “missão espinhosa”28*. A autoridade que possuem fá-los pensar que devem estar isentos dessa vulnerabilidade, exercendo o seu poder com grande convicção ideológica e superioridade paternalista. Porque este é afinal o receio de todas as censuras: o receio de também ser censurado. Por tal, todas as censuras desejam ser discretas, sabendo o quanto podem desagradar e o quanto lhes desagrada serem eles mesmos censurados. 3. A ineficaz censura à imprensa As críticas à comissão continuaram ao longo dos anos, críticas que rastreámos sobretudo a partir dos comentários dos censores em acta. Assim, surgem casos em que - perante as críticas de imprensa - os censores dos espectáculos acusam uma incompreensível benevolência da comissão de censura à imprensa. Em Fevereiro de 1957, o vogal Caetano Beirão declara: que, em face das muito frequentes críticas que a actuação da Comissão vem sofrendo nos últimos tempos, por parte da imprensa, lhe parece necessário que seja tomada posição sobre o assunto, já que, não só julga natural que a Comissão procure salvaguardar o seu prestígio de Serviço do Estado, como também reputa indispensável que a sua autoridade não seja diminuída para que (...) se mantenha (...) aquele respeito que advém do prestígio de que gozam as decisões desta Comissão19. Apesar de reconhecer “a impossibilidade manifesta de uma eficiente vigilância ao acatamento das disposições legais relativa à frequência dos espectáculos públicos segundo a sua classificação”, admite ainda que uma crítica, feita com seriedade, às decisões da Comissão, apontando concretamente os erros e advogando uma decisão que pareça mais justa é perfeitamente aceitável, salutar, benéfica para uma mais acertada classificação e para uma sempre desejada uniformidade de critérios infelizmente as nossas decisões não podem estar isentas de erro, de tão humanas que têm de ser. (...) mas que um constante ataque à Comissão, sem concretização dos seus objectivos, feito com o patente intuito de a desautorizar, sem afirmações concretas que vinculem os seus autores, além de processo jornalístico condenável, é procedimento que não tem conhecimento de que tenha sido pela Censura à Imprensa autorizado para com outro Serviço do Estado. 28

Por exemplo: “Eduardo Brazão chamou a atenção dos Senhores Vogais para a delicadeza da missão para que foram escolhidos, e que, dada a incompreensão do público e a aspereza da crítica, a tomam, por vezes, deveras espinhosa” (Acta n° 1 da CECE, de 23-7-1957). Acta n° 212 da CCE de 5-2-1957.

O problema não é pois já do foro público, mas configura um problema institucional, interno aos órgãos do regime, atribuído à: benevolência que Comissão de Censura à Imprensa tem mostrado ao autorizar a publicação de toda a espécie de ataques à Comissão de Censura aos Espectáculos. Contudo, considera ainda que se trata de mais uma “campanha” da parte da imprensa, que não pode compreender e que considera tanto mais insólita quanto é certo que, enquanto a orientação da Comissão era norteada por instruções mais rígidas, as críticas eram muito raras e geralmente visavam isolados casos concretos; hoje, que há instruções para aplicação de critérios mais largos, verifica-se que a crítica recrudesce.30 Três meses passaram e, em Maio de 1957, “uma vez que essas críticas, longe de cessar, estão tomando carácter habitual e crescendo de intensidade”, dois vogais referem a necessidade de ser chamada para o assunto a atenção do Presidente da Comissão31, visto que: ou esses ataques são justos e para pôr-lhes cobro torna-se preciso sanear as directivas que orientam a Censura; ou são falsos, e nesse caso, é inevitável e urgente que a Comissão encare a gravidade dos factos e assuma uma atitude. O vogal Eurico Serra solicita em acta32 ao presidente da comissão (ausente na reunião) o esclarecimento público dessas críticas. Como nas actas não se volta a falar sobre este assunto, não sabemos... se o terá feito. 4. O problema da televisão Em 1957, a televisão iniciou as suas emissões hertzianas. E maior tolerância em relação à censura das peças de teatro e de filmes portugueses foi recomendada pelo então Ministro da Presidência, Marcelo Caetano33. Pouco 30 “A título exemplificativo citou vários insertos (?) nos jornais "Diário de Lisboa” e "Diário Ilustrado" e, nomeadamente, um artigo de hoje da secção "Espectáculo" do "Diário de Lisboa"“. “Para quando afinal a nova Lei de Teatro? (...) Pior do que isso: assim se explica que, tendo o Conselho de Teatro aprovado uma peça para uma das companhias subsidiadas, essa peça das companhias seja sujeita a nova fiscalização de ideias e a reprove”. Diário de Lisboa, 5-2-1957. 31 Era então presidente da Comissão o novo Secretário Nacional de Informação, Eduardo Brazão, de 7-2-1956 a 28-1-1958. 32 Acta n° 227 de 21-5-1957. 33 “À Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos. As disposições relativas à Televisão carecem de ser interpretadas e aplicadas com espírito suficientemente compreensivo para não impedir o lançamento e a expansão da nova modalidade de informação e espectáculo. (...) Seria muito desejável que a Comissão procurasse uma forma de facilitar à Televisão a apresentação dos filmes portugueses, cuja exibição

tempo depois, em Julho desse ano, uma nova lei34 viria substituir a anterior, ajustando-se (teoricamente) à realidade e aos protestos havidos desde 1953, e remodelando de novo a comissão (que mudava a designação para CECE). A nova lei adequava-se à nova realidade: o surgimento da televisão, onde foi colocado um censor delegado35. Contudo, em 1958, começam a surgir novas críticas públicas, precisamente por disparidade de critérios de classificação entre as peças ao vivo e as peças televisivas - necessariamente destinadas a “todos”. Desta vez, uma verdadeira campanha foi montada pelo Diário Ilustrado que durante 14 dias a fio publica todos os dias, na primeira página, um artigo da série “O cinema e a TV em Portugal”36. Contundente, advogando soluções e entrevistando numerosos profissionais do sector, o jornalista Nuno Rocha faz um dossier único e importante, que aqui resumirei a alguns títulos significativos: “A novidade que o caso português apresenta é o cinema e a televisão não estarem em situações idênticas - Espectáculos teatrais e cinematográficos “para maiores de 17 anos” não têm limite de idade na TV”37. O problema é, pois, colocado a partir da constatação de critérios de censura divergentes entre o teatro e o cinema, por um lado, e a televisão, por outro, onde a permissividade parece maior, quando seria de esperar que fosse menor dado ser um espectáculo para todos. Porém, a questão central não é tanto a exibição, mas essencialmente a distribuição, onde as empresas se sentem prejudicadas: “O problema complicase e há que encontrar uma solução que evite uma crise da indústria de espectáculos sem prejudicar a TV”38; “O espírito de coexistência deve substituir a competição entre a TV e o cinema”39. Assim, depois de consultados vários profissionais do cinema e da televisão, contextualizado o panorama da indústria de espectáculos noutros países, e focado o problema internacional da diminuição de público provocada pela concorrência da televisão, a série de artigos sugere que: “A dobragem seria uma porta de salvação para o cinema português - afirmam-nos algumas personalidades estava a correr com agrado geral. Uma reclassificação desses filmes talvez seja a única possível só para efeitos da Televisão, uma vez feitos alguns cortes que num caso ou outro se mostrem aconselháveis. 13-5-1957, Marcello Caetano” (despacho transcrito na Acta n° 227 da CCE, de 21-5-1957). Três semanas depois, Eduardo Brasão “deu conhecimento à Comissão de uma Nota (...) em que o Senhor Ministro da Presidência, focando a dificuldade existente na elaboração de programas para a Televisão, chama a atenção dos censores para a necessidade de ser facilitada quanto possível (...) a censura de peças de teatro que se lhe destinam” (Acta n° 230 da CCE de 11-06-1957). 34 O Decreto-Lei n.° 41051 de 01-04-1957 altera o regime em vigor sobre a assistência de menores a espectáculos públicos e revoga o Decreto-Lei n.° 38964. 35 Caetano de Carvalho que, “como delegado desta Comissão junto da que funciona na Radio Televisão Portuguesa, providencia no sentido da uniformização de critérios” (Acta s/n da CECE de 29-9-1965). 36 Entre 25 de Fevereiro e 13 de Março de 1958. 37 Diário Ilustrado, 26-02-1958 38 Diário Ilustrado, 25-02-1958 39 Diário Ilustrado, 27-02-1958

representativas”40. Subiste porém o antigo problema da classificação dos espectáculos: Por outro lado, o decreto-lei que cria a classificação dos espectáculos, aceitável quanto às intenções que o determinaram, vem, inopinadamente, vibrar um novo golpe na exibição em Portugal. A família, que antigamente aproveitava o sábado ou o domingo para ir ver cinema com os filhos, deixou de o fazer. A quem deixar os filhos, se estes não podem entrar na sala escura? 41 Mas a maior concorrência nem é a da televisão per se (pouca gente ainda possuía televisor em casa), mas dos cafés que com um aparelho de TV atraem o público para um espectáculo gratuito e isento de taxas. É desta concorrência que os exibidores de cinema se queixam: Enquanto os cafés vêem as suas casas repletas de público, e as receitas elevadas a 4 ou 5 vezes mais, apenas com um aumento de despesa de cerca de 2$50 diários, os cinemas, que continuam a suportar pesadíssimos encargos, estão quase vazios, desanimados e com prejuízos que obrigarão uns a encerrar e outros a reduzir os seus espectáculos por semana42. Assim, “os cinemas protestam - não contra a televisão. Pedem (...) eliminação dos espectáculos públicos nos estabelecimentos de porta aberta”, sugestão aliás defendida no Congresso da União Europeia dos Exibidores de Filmes, em Madrid. E defendendo que “o cinema é para as massas, a televisão para o indivíduo”, pedem a proibição de instalar aparelhos de TV em locais públicos, além da uniformização de critérios de classificação e ainda “não permitir a passagem de filmes na TV antes de 5 anos após a sua estreia nos cinemas”43. A Comissão, começando a sentir-se incomodada, não podia deixar de acusar o facto. O vogal Caetano de Carvalho, preocupado com o “prestígio da Comissão”, expõe a situação: ojornalista sr. Nuno Rocha tem-se referido no Diário Ilustrado "à diferença de critério usado pela Comissão perante o mesmo filme ou a mesma peça de teatro, conforme se destinam ou não à televisão, citando como prova o caso da peça Esta Noite Choveu Prata,"aprovada para a Televisão, depois de efectuados cortes, com a classificação para todos. (...) O mesmo tema fora igualmente tratado nas colunas de Novidades?Como é de opinião que para manter o prestígio da Comissão o público deve ser esclarecido devidamente, aquele Senhor Vogal inquiriu se não poderia aplicar-se ao caso o artigo 60° do Regulamento que permite um esclarecimento público44. 40 Diário Ilustrado, 28-02-1958 41 Ibidem. 42 Diário Ilustrado, 01-03-1958 43 Ibidem. 44 Acta n° 33 da CECE de 4-3-1958.

Em resposta, o então presidente Eurico Serra, recomenda aguardar por uma decisão superior: pensa porém que a campanha jornalística em causa se refere principalmente à assistência de menores à exibição de televisão em cafés, clubes e outros centros semelhantes, matéria que é estranha às atribuições da Comissão. Que é certo que se poderia aplicar a disposição do artigo 60° do Regulamento no que se refere às críticas dos critérios de classificação. Trata-se porém de matéria regulada no despacho interpretativo de Sua Excelência o Ministro da Presidência, de 13 de Maio de 1957, despacho comunicado à Comissão para seu conhecimento apenas, o que portanto exclui o seu uso publicamente. Achava por isso preferível aguardar quaisquer medidas que sobre os problemas de televisão e dos espectáculos o Governo, eventualmente, possa tomar. Eurico Serra mostra-se agora mais prudente do que quando era vogal. Mas a polémica continua diariamente na imprensa e o presidente não perderá a ocasião - como já um ano antes desejara - de enviar uma nota para a imprensa. Assim, a 15 de Março, a CECE manda publicar uma resposta no Diário Ilustrado - “Não há regime especial para a exibição na TV de filmes e peças de teatro - afirma a Comissão de Exame e Classificação de Espectáculos” - de cujo conteúdo o presidente informa os vogais da comissão na reunião semanal seguinte: “...deu conhecimento à Comissão de que, ao abrigo do artigo 12° do Regulamento, mandou para a imprensa diária a nota que seguidamente se transcreve”, onde se justifica que o despacho interpretativo de Sua Excelência o Ministro da Presidência, de 13 de Maio de 1957, (...) admitiu a possibilidade de classificação dos filmes a exibir na televisão desde que neles fossem feitos os cortes considerados necessários para poderem ser vistos por todos; Que, em cumprimento destas determinações, a classificação de peças e filmes a exibir na televisão só é alterada, em relação à classificação para fins de teatro ou de cinema, quando sujeitos a cortes e modificações que permitem, sem diferenças de critérios, a sua exibição para todos; Não é portanto exacto, contrariamente ao que tem sido referido, que a televisão seja autorizada a projectar, sem qualquer limitação, filmes de fundo ou peças de teatro, classificadas para adultos45. Todo este episódio, que marcou o debate público durante duas semanas, mostra um outro aspecto do jogo de gato e rato entre Estado e jornais, entre censores e censurados: que a classificação etária dos filmes é o pomo da discórdia - ou o pretexto possível para ela - mas que a existência propriamente da censura raramente é posta em causa. Se isso acontecia por obra e graça da censura de imprensa não sabemos, mas é bem provável.

45 Acta

n° 35 da CECE de 18-3-1958.

Conclusões Recapitulemos então algumas das ilações atrás retiradas destes (e outros) casos exemplares. As autoridades mostram-se por princípio intolerantes e perfeitamente determinadas, não querendo ceder ou dar azo a perderem razão. É um facto que a censura e o governo não gostam de ser confrontados. Mas, por receio de se desautorizar, a censura sujeita-se afinal à antipatia geral. Por isso, aos poucos, vai tentando passar o mais possível desapercebida. Nada incomoda mais a censura do que ser notória. (Por exemplo: numa outra discussão relatada em acta fala-se dos cortes aplicados a priori pelas empresas, o que pode desprestigiar a comissão, crendo o público que foi ela que os aplicou.) A censura gosta de passar incógnita. Porque afinal o receio de todas as censuras é o receio de ser censurado. Assim, preferem resolver divergências através de contactos pessoais discretos e recatados (como diversos testemunhos confirmam). Do lado das boas intenções, têm a convicção de que devem proteger o país e o povo ignorante de saber mais da vida e da arte do que eles. Consideram-se magnânimos por aceitarem que, apesar de tudo, as críticas são legítimas, desde que... construtivas46. Mas mostram-se muito humildes e dispostos a rever critérios sempre que a emenda seja determinada superiormente (vários casos há). Assinale-se a saudável discordância interna, com discussão de ideias, acalorada por vezes, e resolução final por voto (havendo casos em que o presidente é vencido). Há ainda a registar os desacertos com a Comissão de Censura à Imprensa - e com a CLEM - que não sei se foram episódicos ou se revelam outras tensões de cariz orgânico ou meramente pessoal. A preocupação cimeira dada ao estatuto e imagem pública da censura, que estes exemplos mostram, não será exclusiva dos regimes totalitários; efectivamente, outros estudos parecem indicar que esta preocupação é muito maior nas sociedades ditas democráticas, onde a censura se exerce subrepticiamente. É notório o papel da imprensa enquanto contra-poder efectivo e meio de pressão temível, apesar de domesticada e censurada. Desenha-se pois, subtilmente, um jogo de forças que pode ser signifícante para o estudo da censura durante o Estado Novo português.

46 Por exemplo, a propósito de uma crítica n’0 Século: “por tratar-se de um artigo que em lugar de encerrar uma crítica construtiva e justa visa unicamente diminuir o prestígio desta Comissão, deverá ser dado dela conhecimento superiormente para os fins que forem julgados mais convenientes” (Acta 239 da CECE, de 7-3-1962).

Bibliografia António, Lauro (2001), Cinema e Censura em Portugal. Lisboa: Museu República e Resistência. Cabrera, Ana (2008), A censura ao teatro no período marcelista, Revista Media & Jornalismo 12: 27-58. Cabrera, Ana, ed. (2013), Censura Nunca Mais - A censura ao teatro e ao cinema. Lisboa: Aletheia. Carvalho, Arons de (1999), A Censura à Imprensa na Época Marcelista. Lisboa: Minerva. Pina, Luís de (1993), Estreias em Portugal 1918-1957. Lisboa: Cinemateca. Príncipe, César (1999), A Censura de Salazar e Marcelo Caetano. Lisboa: Caminho. Vieira, Patrícia (2011), Cinema no Estado Novo - A encenação do regime. Lisboa: Colibri.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.