As crônicas espanholas do século XVI e a produção de narrativas históricas acerca da América e seus habitantes

June 4, 2017 | Autor: S. Oliveira | Categoria: Cronicas del Nuevo Mundo, Indigenous History, Crónicas de Indias
Share Embed


Descrição do Produto

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS HISTÓRICAS ACERCA DA AMÉRICA E SEUS HABITANTES SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA*

RESUMO: Este artigo apresenta uma análise das crônicas espanholas produzidas entre o século XII e XVI, enfocando os cânones, objetivos, regras, temas recorrentes, lugares de fala de seus principais emissores e o problema do (re)conhecimento da alteridade que as perpassaram. A partir dessa análise buscou-se estabelecer uma discussão acerca dos saberes produzidos sobre a natureza e humanidade ameríndia, cujos usos e significados presidiram o processo de conquista e colonização espanhola da América. PALAVRAS-CHAVE: crônicas espanholas, América, índios, história natural, história moral, conquista, colonização.

* Susane Rodrigues de Oliveira é doutoranda em História pelo Programa de Pós-

Graduação em História da Universidade de Brasília. Este artigo é parte de sua dissertação de mestrado intitulada “Diferentes e desiguais: os incas e suas práticas religiosas no olhar dos cronistas espanhóis do século XVI”, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da UnB. E-mail: [email protected] EM TEMPO DE HISTÓRIAS, N° 05, ANO 5, 2001.

7

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. Walter Benjamin1 .

1.1 A CRÔNICA REAL E A NARRATIVA DOS “GRANDES FEITOS”

N

a Espanha do século XII, por iniciativa do infante Alfonso, futuro Alfonso X de Castilla e León, a crônica1 , tornou-se um modelo de escrita preponderante para se registrar e celebrar os “grandes feitos” históricos. Legitimada como uma “compilación seria, que presente en rigurosa orden cronológico, e indicando as fechas, un relato escrito con estilo cuidado”2 , pautava-se, portanto, ao cânone da época, que prescrevia o padrão de escrita desse tipo de narrativa, aí incluso o critério de rigor na descrição cronológica dos eventos. Na busca pela construção de uma história da Espanha, as crônicas da época de Alfonso X deveriam situar o reino num contexto universal, recorrendo-se tanto aos pressupostos míticos fundadores, como às articulações entre os acontecimentos peninsulares e outros externos3 . Alfonso X concebia essa história como uma recompilação de saberes anteriores, recolhidos nas mais diversas fontes. Para ele, a história não era simplesmente produto da vontade divina, mas, também, uma resposta à necessidade que o homem tem de preservar a memória das realizações de seus antepassados, a fim de delas retirar um ensinamento para a vida4 . Nesta perspectiva, o cronista aparece vinculado não só à uma história sagrada, baseada nas verdades reveladas, mas também à uma história profana, que busca compreender o homem em seu mundo, que é o da natureza e da história. Uma concepção de história segundo a qual, como assinala Neves: O tempo é uma linha reta contínua: é o tempo divino. Mas se este tempo está fora de uma intervenção humana, os homens têm uma história profana. A história profana tem limites estabelecidos; tem um inicio e um fim. Entre um e outro há uma sucessão de ciclos até o ciclo final, ou uma curiosa segunda

8

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... hipótese (que não rejeita necessária ou totalmente a primeira): o mundo tem ‘idades’ semelhantes aos períodos vitais das matérias vivas.5

Se a representação do tempo histórico ancorava-se em uma origem divina, indevassável em seus desígnios, livre de explicações verificáveis, não se descartava, contudo, sua dimensão terrena, profana. Ela se expressa na preocupação com o encadeamento e descrição de determinados fatos da vida humana, ordenados em função da relação do antes e do depois, numa seqüência cronológica em que as coisas humanas possuíam um início, meio e fim, porque baseadas na regra geral dos ciclos “vitais das matérias vivas”. Pautando-se numa “dimensão utilitária”6 , ao abarcar os “grandes feitos” históricos, as crônicas ofereciam ensinamentos morais, sugestões práticas ou normas de vida, tornando-se o cronista, dentre mestres e sábios de seu tempo, um narrador conselheiro. A relação entre o leitor e o sujeito enunciador da crônica encontrava-se, assim, dominada pelo propósito deste em conservar na memória o que foi narrado, como uma das formas de assegurar a possibilidade de sua reprodução. Aí, a memória histórica, constitutiva das crônicas, reinventa o passado, já que, como atenta Albuquerque Júnior, ela “é composta de fragmentos de história domesticados, é a história retirada de seu tempo abstrato para o tempo concreto da vivência”7 . Consoante essa “dimensão utilitária”, as crônicas, sob as ordens de Alfonso X, trataram, sobretudo, da delicada questão da herança gótica, com o propósito de dar legitimidade à luta dos espanhóis cristãos pela reconquista das terras que permaneciam sob o domínio dos muçulmanos. Tendo-se em vista que a invasão de 711 havia sido considerada como um castigo infligido por Deus aos soberanos desprovidos de sentido religioso e moral, já que acusados do pecado da heresia do arianismo, os episódios nelas narrados tinham também um sentido pedagógico, porquanto pretendiam mostrar aos cristãos que Deus queria socorrer a seu povo e restituir-lhe a totalidade de suas terras, ou seja, toda a Espanha visigótica. A promessa da vitória e o “sentimento de invulnerabilidade”8 , característico dos estados cristãos da Península Ibérica em meados do século XIII, justificavam amplamente que se elaborasse uma crônica na EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

9

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA qual os muçulmanos eram retratados como vencidos, reduzidos a meros comparsas, confinados ao reino de Granada que permanecia como “fortaleza” inexpugnável dos mouros. Alfonso X havia inspirado assim, um gênero – o da crônica real – que se encontrava presidido pelas concepções da Igreja e do Estado, já que, nesse período, os dois poderes – temporal e espiritual – se imbricavam e se complementavam. Seus princípios eram claros e davam pouca margem à possíveis desvios. A unidade fundamental deste relato era o reinado cristão, em que as datas do início e do fim de cada governo encontram-se indicadas a partir dos marcos cronológicos da cristandade: era hispânica, era cristã, advento do Papa, do imperador, etc. O fio condutor constituía-se na sucessão dos reinados, pautada no princípio da hereditariedade, assinalando-se um capítulo para cada governo, precedido por um título explicativo9 . Com Alfonso XI (1312-1350) institucionaliza-se tal gênero literário, tornado-se o cronista um funcionário real, encarregado do registro dos feitos do monarca10 . A pessoa do rei passa, evidentemente, a ser mais do que nunca exaltada, reforçando-se, assim, a celebração dos feitos e a personalização da narrativa histórica. A partir do século XV, com os Reis Católicos, observa-se um maior controle real sobre o trabalho do cronista. Mediante uma série de dispositivos institucionais, laicos e religiosos, determina-se o que podia e o que não podia ser dito nas crônicas11 . A instituição assujeita, assim, o cronista, submetendo-o às suas regras, condição, essa, que lhe concede legitimidade e autoridade de fala. Como pessoa autorizada a falar, pelos poderes institucionais de sua época, o cronista estava, portanto, credenciado a reproduzir apenas um tipo particular de discurso – o discurso histórico épico; como enunciador de um discurso, apenas a ele é conferido reconhecimento e autoridade desde que enunciado sob as formas legitimadas. As crônicas, atravessadas pela vontade de verdade, pelos poderes de nomear e classificar, como discursos hegemônicos de sua época, tendem a exercer uma espécie de pressão, um poder de coerção sobre outros discursos possíveis. Uma vontade de saber que acaba por desenhar planos de objetos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis, que 10

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... impõem ao sujeito/cronista uma certa posição, olhar e função, ao se prescrever as formas de apreensão do objeto, os conhecimentos verificáveis e úteis. Apoiadas sobre um suporte institucional – religioso/governamental,– são, ao mesmo tempo, conduzidas e reconduzidas por todo um conjunto de práticas sociais. Como bem sublinha Foucault, essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios de outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído.12

Nesse sentido, as crônicas revelam, pelos cânones estabelecidos, o modo como a fala era controlada e selecionada, quando se tratava da história dos “grandes feitos” dos monarcas, condutores dos projetos expansionistas da época. A censura espanhola, um dos dispositivos mais explícitos desse poder de “fala”, controlava tudo o que podia ser publicado. Um de seus mais ativos e atuantes dispositivos institucionais, o Santo Oficio, desempenhou nesse contexto, esse papel de controle da sociedade, por meio da vigilância da leitura e publicação de obras. Enfim, como o próprio nome indica, a produção da crônica real esteve, portanto, estreitamente ligada à instituição monárquica e à imagem do soberano. Mais do que um relato ou descrição, no sentido medieval, a crônica era uma “lista” cronologicamente organizada acerca dos acontecimentos que se desejavam conservar na memória e ressaltar como exemplo a serem seguidos. Como um registro literário de natureza descritiva e pedagógica, ela constitui, então, uma rememorização organizada acerca dos “grandes feitos” dos monarcas e das monarquias bastante proliferada nos períodos que se seguiram da Idade Média à conquista da América.

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

11

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA 1.2 AS CRÔNICAS ESPANHOLAS SOBRE O “NOVO MUNDO” Nos séculos XV e XVI as crônicas penetram na América por mandato real, visto que as ordenações sobre conquistas e descobrimentos prescreviam aos que fossem às costas americanas explorar terras, levar um “Veedor” –, geralmente um funcionário da Coroa ou membro do clero que fosse letrado, – para atuar como escrivão responsável pela descrição da terra, de suas riquezas e dos usos e costumes de seus habitantes. Contudo, o registro histórico da realidade americana no século XVI apresentou exceções à esta regra geral. Dadas às circunstâncias do momento, indivíduos nem tão letrados assim – como capitães e soldados e mesmo alguns religiosos – acabaram por tomar a si tal tarefa, o que responde pela existência, como assinala Mignolo, de crônicas feitas por pessoas não “adequadas” ou “autorizadas” para tal prática13 . Nesse momento, os discursos privilegiados são os relativos ao direito, à teologia, à administração, à história. As crônicas, cartas e relatórios, gênero que está instituído com profusão na Espanha e em Portugal durante os séculos XV e XVI, constituem modelos, como assinala Mabel Moraña 14 , que resguardavam aquelas formas discursivas de qualquer suspeita de transgressão contra o princípio de autoridade, pois eran modelos que transmitían su prestigio y que situaban al discurso al margen de la censura. Apropiarse de los cánones imperiales era de alguna manera también una forma de traer al continente los universales humanísticos del Imperio, agrega la investigadora.15

A surpreendente diferença observada entre o “Velho” e “Novo Mundo” criava a necessidade de a América ser reconhecida, ou melhor, incorporada, para atenuar o seu conteúdo perturbador, desconhecido, para a Europa, de forma a assegurar a esta seu poder de nomeação, sua posição de dominação. As crônicas, cartas, diários, relações da conquista e colonização, em suas dimensões informativa, prescritiva e organizacional, respondiam às necessidades do projeto de colonização, inscrevendo-se, portanto, na órbita de um pragmatismo. Nesse sentido, ordenava a cláusula de uma Cédula Real de Felipe II, em 1572: 12

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... Por medio de las dichas lenguas [intérpretes], o como mejor podieren, hablen con los de la tierra, y tengan pláticas y conversación com ellos, procurando entender las costumbres, calidades y manera de vivir de la gente de la tierra y comarcanos, informándose de la religión que tienen, ydolos que adoran, con qué sacrificios y manera de culto, si hay entre ellos alguna doctrina o género de letras, cómo se rigen y gobiernan, si tiene reyes, y si éstos son por elección de sangre, y si se gobiernan como república, o por linages; [...] si en la tierra hay metales y de qué calidad.16

Tal tradição literária européia estabelecida com a conquista pode ser pensada como uma proposta de apreensão, de instauração social. Não por acaso, os discursos dos cronistas reiteram que, para o “buen Gobierno”, tornava-se imprescindível que se fizesse uma ampla e minuciosa descrição e averiguação de todas as coisas existentes na América, para melhor conhecê-la, pois, assim, mais facilmente a dominaria. Um conhecimento da terra e do mar, das coisas naturais e morais, espirituais e temporais, eclesiásticas e seculares, passadas e presentes, nas suas dimensões, indispensável para o projeto de colonização e domesticação. Na função de inventário descritivo deste universo desconhecido, as crônicas sobre a América geralmente apresentavam-se estruturadas a partir de dois grandes eixos narrativos – o da natureza e o da cultura. Nesse propósito, iniciavam-se com uma história natural, com as descrições de caráter físico e geográfico: falava-se da terra, de seu clima, hidrografia, relevo, recursos minerais, fauna e flora. As descrições da natureza encontravam fundamento na concepção desta como princípio da vida e do movimento, sendo, entre todas as coisas existente, a mais antiga e venerável, visto que Deus, o seu Criador, a havia criado primeiro que o homem. Amalgando conceitos aristotélicos com princípios da escolástica, acreditava-se que a natureza, por sua causalidade, era o próprio poder do Deus criador17 . Assim, o catolicismo, enquanto saber, estabelecia como um de seus fundamentos em relação ao conhecimento que, ao reconhecer a natureza, se professava um ato de fé e de admiração pelo Criador, pois contemplá-la significava contemplar sua obra, porquanto acreditava-se que a presença divina fazia-se sentir também naquela18 .

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

13

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA Entretanto, os conhecimentos acerca da natureza constituíam também informações indispensáveis, mais úteis e urgentes, na expansão marítima e comercial européia e, sobretudo, na colonização e exploração das terras americanas19 . As informações de tipo geográficas deveriam ser cuidadas, detalhadas e contínuas, de forma a alimentar a Corte com o máximo possível de dados e diagnósticos, expectativas e projetos quanto à viabilidade de exploração econômica da terra e a complexidade que envolvia o processo de colonização ultramarina. Assim, as crônicas dessa época, alusivas à América, ocupavam-se de temas similares que, inventariados sob uma mesma estrutura textual, possuíam uma primeira parte dedicada exclusivamente a fazer descrição físico-geográfica da terra20 . O contato com uma natureza e humanidade distantes e distintas trouxe aos europeus uma série de dúvidas, seguidas de imediatas explicações e nomeações. As primeiras questões se referiam à terra e o céu21 – se estes eram redondos e se aquela era toda habitada –, bem como aos seus habitantes – como eram, se eram feios ou belos, bons ou maus, inteligentes ou estúpidos. Quanto a estes, detinham-se, especialmente, em precisar de onde vieram, como se formaram, como se situavam em relação aos europeus. As repostas eram dadas a partir das comparações entre o Velho e o Novo Mundo, fundamentadas por um sistema de pensamento estruturado a partir de uma lógica binária que opõe natureza e cultura. Uma concepção que estabelece hierarquizações entre os indivíduos de lá e os de cá, tendo em vista que Se os habitantes das terras de além-mar não receberam a Boa Nova, o Saber, mas são homens, é preciso qualificar estes homens “especiais”. Se são seres vivos e têm sinais de hominidade, serão colocados em um canto escuro dos homens, que é mais próximo à natureza, ou seja, um dos menos iluminados pela Luz do Saber. É interessante perceber como o cristianismo daquela época aceita uma divisão tão familiar a nós, ou seja, a que separa Natureza e Cultura.22

Para o europeu, uma vez que o selvagem americano vivia no seio de uma natureza exuberante e virgem, ignorando as leis fundamentais da sociedade, da comunidade familiar e da sociedade urbana, modelo eu14

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... ropeu de sociedade e de sociabilidade, melhor seria que constituísse, então, um capítulo à parte, num livro de História Natural23 . Em tal quadro de pensamento inscreve-se a obra de Las Casas, haja vista sua representação das sociedades indígenas em seu estado natural, ou seja, não corrompido pela civilização. Aí podemos perceber como Las Casas separa natureza e cultura, contrapondo-as. Em sua definição inicial dos índios, afirma que Deus os havia criado como pessoas sem maldade, “’obedientísimas y fidelísimas a sus señores naturales e a los cristianos a quien sirven’”, e que sendo assim, – não desejando riquezas e poder, – estavam aptas “para recibir nuestra santa fe católica’”24 . Os índios, sendo identificados com o estado de natureza, apresentam-se, portanto, “prontos” para receberem a mensagem do evangelho, para se tornarem súditos de Cristo”25 . Sobre tal contraposição, reportamo-nos às reflexões de Neves, extremamente elucidativas: As regiões conquistadas pelo colonialismo mercantilista são as regiões da Natureza. A metrópole é a sede da Civilização. E, apesar da heterogeneidade e da distância, há possibilidade de um relacionamento. E o melhor relacionamento é a troca. A cristandade dá a civilização e os gentios dão a natureza.26

Todavia, tratava-se de uma troca desigual, tendo-se em vista que cultura e natureza não se lhes apresentavam como iguais, nem sinônimas; mantinham entre si uma relação hierarquizada, porque, retomando o referido autor, uma é instrumento abençoado do Senhor que pode modificar a outra; esta só pode se dar àquela. A Natureza não pode, em princípio, modificar a ordem das Coisas e – muito menos – tentar alterar a Ordem da Civilização. Ela – a Natureza – é passiva face ao Sujeito Criador. A troca ainda aqui é desigual e os maniqueísmos são falsas enunciações. Que são o centro emissor de toda história: um centro exterior doa a cultura, salva núcleos periféricos que retribuem com seus produtos – frutos diretos da natureza ou de uma organização da natureza oferecida pelo Norte.27

Com o Renascimento, a “nova ciência”, distanciava o ser humano da natureza, separando o determinismo para um lado e a liberdade para o outro e estabelecendo as relações da criatura humana e das coisas EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

15

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA naturais como relações de domínio entre sujeito e objeto28 . Nessa linha de pensamento é que se desenvolvem as discussões acerca do direito da Coroa espanhola em conquistar e colonizar os naturais americanos. Conforme Hansen: A carência do Bem católico que é produzida quando a perspectiva da verdade cristã constitui uma alma para o indígena que é classificada, no ato, como “animal”, “gentio”, “selvagem” e “bárbaro”, é simultaneamente suplementada por duas espécies básicas e, podemos dizê-lo hoje, complementares de intervenção. Ambas são violentas pelo mero fato de serem intervenções, embora tenham uma violência de graus ou intensidades diversas. Genericamente falando, a intervenção dos que afirmam que o indígena é um “cão” ou um “porco” bestial, bárbaro e “escravo por natureza”, e a intervenção dos que afirmam que é “humano”, mas selvagem, e que deve ser salvo para Deus por meio da verdadeira fé, que o integra como subordinado, escravo ou plebeu.29

Os índios, assim como as mulheres na Europa, constituíam o Outro, identificados como aqueles que se aproximavam do estado de natureza – porque eram ingênuos, selvagens, inferiores, infantis e incapazes, já que representado com traços e características de uma imagem vincada pelo princípio feminino da “inferioridade estrutural” de que fala Delumeau30 . Similarmente às mulheres ocidentais, os índios, independentes do sexo, eram representados a partir de uma definição biológica que respondia por hierarquizações. “Índios” e negros, independentes do sexo, e as mulheres, em razão do sexo e, às vezes, independentes da “raça”, eram vistos como inferiores, desprovidos de discernimento e, portanto, incapazes perante as leis. Tal condição tornava-os passíveis das penalizações por castigos infames de qualquer tipo quando considerados culpados de atos desviantes, sendo que em certas circunstâncias podiam até ser condenados à morte apenas por serem o que eram – “mulheres”, “índios” ou “negros”. Assim, não por acaso, a América é representada como uma mulher, como assinalou Del Priore, Pelo menos assim ela aparece na iconografia entre os séculos XVI e XVII; o ventre opulento, o longo cabelo amarrado com conchas e plumas, as pernas

16

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... musculosas, nus seios. (...) A representação assim construída pelos europeus traduzia um discurso que tentava se impor como concepção social sobre o “Novo Mundo”: a América, como uma bela e perigosa mulher, tinha que ser vencida e domesticada para ser melhor explorada.31

Os preconceitos espanhóis, seja em relação à “natural” vulnerabilidade feminina às influências malignas, seja à sua “natureza” diabólica, foram alguns dos principais argumentos que legitimaram e justificaram as campanhas de extirpação das idolatrias na América. A “natureza”, simbolicamente associada às definições culturais do feminino, era algo que devia ser domesticado e disciplinarizado, dominado, de forma a conter e controlar sua face caprichosa, emotiva, imprevisível, ameaçadora e perigosa. Assim, a imagem construída para representar a América e justificar sua exploração expressa as relações de gênero inscritas no processo da Conquista. Como assinala Del Priore, foi sobre “o corpo dessa América, terra e fêmea,” que “travou-se uma luta”32 . O espanhol, marcado pela obsessão da honra e da castidade das mulheres cristãs e espanholas, violava terras e mulheres nativas, duplamente inferiorizadas em relação ao homem europeu, comportando-se com a violência que se esperava dessa relação de dominação. Assim, parece não surpreender o fato de que as mulheres indígenas tenham enfrentado agressões, castigos, estupros e, em alguns casos, especialmente as mulheres pobres, foram culpadas politicamente de subversão ao poder espanhol33 . Além de uma história natural, as crônicas apresentavam, geralmente, em sua segunda parte, uma história moral, em que contemplam o mundo histórico, modos de ser e das criações humanas no mundo, ou da “vida espiritual” ou das culturas34 . A cultura passa a ser considerada, não só como simples produto histórico, mas também como um produto histórico de conteúdo variável no espaço e no tempo35 . Com a expansão os espanhóis perceberam a existência de vários povos com culturas diversas. Ao tomá-los como objeto de suas narrativas, os cronistas colhem a impressão de aspectos sociais, religiosos e jurídicos, bastante diferenciados dos que vigoravam na cristandade. Como atenta Silva Dias,

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

17

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA para lá do princípio de unidade essencial do gênero humano, os Descobrimentos estabeleceram também a doutrina de uma diversidade profundíssima de estruturas, costumes e crenças entre as sociedades do globo. E essa diversidade tornava impraticável a universalização – pelo menos a universalização automática – dos critérios jurídicos e morais em vigor na cristandade, e impedia que se aplicassem aos novos continentes as regras de governo e convivência em uso entre os cristãos.36

Nesse sentido, os descobrimentos desencadearam entre os conquistadores um processo de tomada de consciência dos deveres religiosos não cumpridos ou mal cumpridos, e acima de tudo dos deveres do apostolado cristão. A América, particularmente a área de colonização portuguesa, impressionou-os sobretudo pela ausência de qualquer indício de anúncio do Evangelho, por vezes até de qualquer religião organizada ou mesmo de uma fé definida. Já que com relação a outras regiões, como por exemplo, México e Peru, os europeus pensaram que a palavra dos apóstolos havia chegado de alguma forma. Os europeus visualizaram entre as populações dos incas e astecas, vestígios das antigas cristandades e reminiscências doutrinais do cristianismo. Mas verificam sobretudo que já não se podia falar ali de comunidades cristãs, pois grande parte dos indivíduos vivia sem a mais tênue idéia dos mistérios da Encarnação ou dos ensinamentos de Jesus. Como ressalta a já referida Silva Dias, tratava-se de “mundos religiosos que naturalmente os deviam impressionar, pelo positivo e o negativo da sua realidade. Uma realidade diferente daquela com que se tinham familiarizado na Europa e no Norte de África”37 . Significativamente, o principal aspecto abordado por esta história moral é a religião, a vida espiritual dos povos que se pretendia conquistar. A intenção de se escrever uma história dos costumes, leis e governos dos primeiros habitantes da América encontrava sua justificativa precisamente na concepção providencialista do mundo, de que a providencia divina poderia ajudar a lograr a salvação eterna dos índios38 . Segundo Eliott,

18

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... La atención de los misioneros hacia el mundo indígena y sus formas de vida se explica en gran parte por pura necesidad y pragmatismo: “Este reconocimiento de que una empresa misionera com éxito era imposible sin una comprensión de la vida y las formas de pensamiento indígenas fue al mismo tiempo el estímulo y la justificación de los grandes estudios sobre la historia, religión y sociedad precolombianas emprendidos por los miembros de las órdenes religiosas en los últimos años del siglo XVI”.39

Trata-se de perspectiva que atravessa as narrativas históricas dessa época, traço comum constitutivo e para o qual se deve atentar pois, segundo Edmundo O’Gorman, “cualquier pueblo sólo revelará su sentido cuando se le considerada desde esa perspectiva trascendental”40 . Na análise da conquista espanhola da América, além dos interesses comerciais e mercantis da colonização que a presidem, inclui-se o providencialismo, uma das dimensões da visão de mundo de vários cronistas religiosos espanhóis, entre eles, Acosta e Murúa. Persuadidos de que o Evangelho de Cristo, rejeitado pela idolatria gentílica, tinha de fato sido anunciado aos povos do “Velho do Mundo”, ambos situam os habitantes do “Novo Mundo” sob esta perspectiva transcendental, como povos de uma terra selvagem, na qual aos religiosos, sobretudo aos jesuítas “soldados de Cristo”, pela providência divina teriam a missão de prepará-los para o advento e triunfo do evangelho na América. Assim, as crônicas apesar e por conta de terem surgido para relatar os feitos dos monarcas, como um serviço real, encontram-se igualmente perpassadas pelo “espíritu ético español y busca ser advertencia e consejo de buenos governantes, espejo de verdad y ejemplo de doctrina”41 . Dessa forma, o oficio do cronista, como disse Oviedo, “es de evangelista y conviene que esté en persona que tema a Dios”42 . Desde o começo da conquista da América, a dimensão religiosa da ação missionária indissociava-se da político-militar. A lealdade à Coroa, a repulsa ao Demônio, a defesa da fé, a missão de conversão, o dever de propagar o catolicismo, a invencibilidade dos espanhóis, a incapacidade dos índios, o castigo divino dos que ofendem a Deus, são enunciados reiterados nas narrativas destes cronistas.

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

19

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA Nessa perspectiva, o tempo histórico é um tempo linear, desenvolvendo-se a história segundo um plano da providência divina. O sentido único da história da humanidade é revelado por Deus aos homens, apresentando-se a Igreja Católica como a instituição responsável pela orientação espiritual com vistas à busca da salvação. Trata-se de uma reformulação que vai se impondo a partir dos séculos V e VI da era cristã, perdurando durante toda a Idade Média, até ser questionada pelo movimento renascentista, quando estudiosos humanistas retomam a tradição de crítica dos filósofos e pensadores da Antigüidade. A concepção do homem como centro do universo, referenciando o ato e a atividade de conhecer, coexiste com a perspectiva centrada nas verdades reveladas, no doutrinamento da escolástica. A dimensão religiosa da visão de mundo permanece, portanto, tendo suas ressonâncias entre filósofos e estudiosos dos séculos posteriores, revelando a força instauradora do imaginário cristão e das instituições religiosas, na construção de uma história sobre a América. Além dessa dimensão mítica e religiosa, tem-se a presença do empirismo, uma perspectiva de pensamento que se expressa na cultura do Renascimento e que enfatiza o papel da experiência na produção do conhecimento, ao recusar qualquer explicação que não se apoie em evidências provadas e comprovadas. Tal duplicidade de perspectivas, presente nas crônicas espanholas do século XVI sobre a América, – a providencialista e a humanista, – é constitutiva do sistema de pensamento dessa época. Não encontrou, todavia, dificuldades maiores em disseminar-se pela católica Península Ibérica porque, como assinala Neves, não necessita, para viver, expulsar outras maneiras de pensar o mundo. Esse realismo foi capaz de conviver com múltiplas manifestações do imaginário social que construíram objetos e projetos hoje considerados fantásticos. (...) renascimento e razão (...) A razão não excluí o Mito, ela não é inimiga da religião; o combate Razão X Religião é peculiar ao classicismo – terá que aguardar dois séculos para se apresentar como tema para o saber ocidental. (...) A laicização do saber religiosos a partir do fim da Idade Média não é, pois, uma derrota dos “verdadeiros ideais cristãos”; apenas o contrário: estende seu saber às novas formas de conhecimentos então ativadas e as envolve, confere-lhes o

20

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... seu sentido. Aumenta o seu poder.43

Convivendo entre dois modelos aparentemente díspares de apreensão do mundo, – o da tradição da escolástica e do experimentalismo moderno, – as crônicas espanholas se caracterizam por esse hibridismo, com o predomínio daquela. A perspectiva mística, ascética e moralizadora, manifesta no projeto de ordenamento do mundo, segundo o ethos cristão, inclui o uso de procedimentos racionais e metódicos para aumentar seu poder quando inventaria índios, natureza e fronteiras – escatológicas e morais – entre os habitantes daqui (América) e os de lá (Europa). Sob esse imaginário atravessado por visões pragmáticas e religiosas é que se opera a apreensão do mundo ameríndio, pela utilização de um conjunto de “normas, valores, linguagem, instrumentos, procedimentos e métodos de fazer frente às coisas e de fazer coisas e ainda, o próprio indivíduo”44 . Opera, assim, com um poder de coesão interna do tecido imensamente complexo de significações que impregnam, orientam e dirigem a vida dos indivíduos. A diversidade de cultos, ídolos e crenças religiosas dos índios serviu para disseminar, nas crônicas, o “retrato” de uma humanidade diferente, cuja diferença era sinônimo de perigo e estranhamento. Este “retrato”, como bem assinalou Del Priore, procurava convencer o leitor, cristalizando representações e ensinamentos polêmicos, discretos ou explícitos do que seria o Novo Continente. Atrás de tais imagens, a cristandade européia projetava-se como superior, poderosa, remida pela fé e consagrada pelo avanço técnico.45

A repugnância em pensar a diferença revela-se nas crônicas que são finalmente a vontade discursiva de ordenar o mundo em espaços simbólicos já conhecidos, de estabelecer um regime de verdade sobre o Outro, ao nomeá-lo como bárbaro, demoníaco, selvagem, tirano, índio, já que não é cristão, branco e nem “civilizado”. Destinadas a um largo público, tinham o objetivo de familiarizar ao máximo o leitor com fenômenos e eventos ali descritos. Por um mecanismo de “ancoragem”, as representações formuladas sobre os índios se apoiEM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

21

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA avam ou se amarram nas anteriores, operando de forma a tornar o “novo” mais facilmente assimilado porquanto encontra referências e “aceitação” nas concepções já formadas e consolidadas acerca do objeto representado. Dessa forma, as representações construídas pelos espanhóis acerca dos índios, suas práticas e crenças religiosas, são percebidas e compreendidas a partir de um conjunto de saberes assentados em paradigmas cristãos e europeus, num processo, como argumenta Moscovici, em que “a memória prevalece sobre a dedução, o passado sobre o presente, a resposta sobre o estímulo, as imagens sobre a ‘realidade’”46 . Consoante à sua visão de mundo, os espanhóis fizeram a leitura dos povos das Américas que foram, assim, identificados e julgados à luz dos pensamentos e valores da cultura ocidental. Disso resulta, nas crônicas, o uso freqüente de termos como “bárbaro”, “civilizado”, “selvagem”, “primitivo” e mesmo a denominação “índios” para referir-se aos nativos, mediante uma linguagem significativamente investida de conotação colonizadora. Diferentes do europeu e, ao mesmo tempo, vistos e descritos como grupo homogêneo, sem diferenças expressivas entre seus pares e inter-inidividuais, já que, como atenta Neves, não há ‘índios’ no sentido de uma pluralidade e especificidade culturais ou ‘raciais’ ou históricas. Quando se fala de ‘índios’, o plural é relativo a uma coleção de indivíduos que podem entre si nomear-se de maneira distinta mas que, para o português, é, no essencial, uma mesma realidade e única realidade. (...) uma coleção de indivíduos sem nomes, mais ou menos próximos e/ou perigosos. Há, então, um movimento duplo em direção à homogeneização: apagam-se as diferenças culturais tribais e as diferenças inter-individuais.47

Tal homogeneização apresenta-se básica para o projeto de dominação do colonizador – português ou espanhol – tendo-se em vista que, ao apagar as diferenças culturais “tribais” e as diferenças inter-individuais, acaba por controlar os poderes e perigos de uma diversidade aleatória, assujeitando-os a uma unidade católica e cristã. Nesse sentido, impunha-se, portanto, a necessidade de um conhecimento detalhado, de um esquadrinhamento do mundo americano de forma a melhor dominá-lo, a inscrevê-lo no ethos cristão e católico, a acomodá-lo sob imagens e re22

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... presentações construídas a partir da visão européia, integrá-lo à sua cosmografia e cosmogonia. Uma inscrição e inserção hierarquizada na qual a América emergia como o resultado de uma genealogia imaginativa que conferia realidade a um continente até então invisível aos europeus, mas indispensável para a realização do sentido da história universal.48

Considerando-se que a partir da posição de colonizadores europeus é que foram projetadas a dos colonizados ameríndios, tudo que os espanhóis viam, ouviam, e mesmo o que de antemão esperavam ver e ouvir sobre aqueles, encontra-se filtrado pelas lentes de seu imaginário, suas verdades, seu lugar de visibilidade social Aqui, as reflexões de Todorov acerca de tão desigual relação, são esclarecedoras: “Eles sabem antecipadamente o que vão encontrar; a experiência concreta está lá para ilustrar uma verdade que se possui, não para ser interrogada, segundo as regras preestabelecidas em vista de uma pesquisa da verdade.”49 Nessa mesma direção sinaliza Foucault, quando evoca o “regime de verdade” de cada sociedade, que opera conforme sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros e falsos, a maneira como sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.50

Observa-se que, no esforço em estabelecer suas “’política geral’” de verdade, os conquistadores espanhóis, ao incluírem a América e seu povo em suas práticas discursivas, transformam o não-familiar em familiar, ancorando o “novo”, o desconhecido, em seu universo representacional. A descrição dos indígenas e seus costumes torna-se assim um discurso fundador, aquele que instaura e cria uma nova memória e uma outra tradição, desautorizando o sentido anterior. Segundo Orlandi,

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

23

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA Esse dizer irrompe no processo significativo de tal modo que pelo seu próprio surgir produz sua “memória”. (...) cria condição de sentidos projetando-se para frente e para traz, trazendo o novo para o efeito do permanente (...) Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só pode ser assim.51

Dessa disputa política, no interior de epistemes, produz-se um saber sobre os índios, uma forma de ordenamento do mundo. Um saber perpassado por conceitos familiares ao quadro de pensamento cristão europeu da época, que confere o estatuto de veracidade aos seus enunciados. Um saber que mobiliza forças no processo de assujeitamento dos colonizados e que responde pela instauração de hierarquias, lugares sociais, desigualdades e diferenças entre índios e europeus, entre homens e mulheres, cristãos e pagãos, entre os indivíduos dos dois mundos que se encontram e se confrontam.

NOTAS: BENJAMIN, Walter. “O narrador”. In: Magia e técnica, arte e política: Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. 3ª ed, São Paulo: Brasiliense, v. 1, 1987, p. 3.

1

“CRÓNICA – (1. chronica; del greco chroniká, libro en que se refieren los sucesos por orden del tiempo). f. s. XII al XX. Historia en que se observa el orden de los tiempos. 1ª Crónica general, 1275.” – Martin Alonso. Enciclopédia del idioma. Diccionario histórico y moderno de la lengua Española (siglos XII al XX) Etimológico, tecnológico, regional e hispanoamericano. Tomo I, Madrid: Aguilar, 1958, p. 1275. 2

CARNAVAGGIO, Jean. Historia de la Literatura Española, 1: La Edad Media. Barcelona: Ariel, 1994, 101. 3

“CRÓNICA GENERAL – Bibliogr. Obra histórica, espécie de história universal, atribuída a Alfonso X el Sabio (quien sólo fué su inspirador o director), y que compreende desde la creación del mundo hasta el reinado de Fernando III el Santo. Se editó en Zamora, hacia el 1541.” – Diccionario Enciclopédico Ilustrado de la Lengua Española. Tomo I. Buenos Aires: Limpida Fons, 1943, p. 811. 4

5

CARNAVAGGIO, Jean. Op. cit, p. 101.

24

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... NEVES, Luiz Felipe Baêta. O Combate dos Soldados de Cristo na Terra dos Papagaios: colonialismo e repressão cultural. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1978, p. 34. 6

7

BENJAMIN, Walter. Op. cit., pp. 200-221.

JÚNIOR, Durval Muniz de Albuquerque. “Violar Memórias e Gestar a História: Abordagem a uma problemática fecunda que torna a tarefa do historiador um ‘parto difícil’”. In: CLIO: Revista de Pesquisa Histórica. Recife: Universidade Federal de Pernambuco, n.º 15, 1994, p. 48. 8

9

CARNAVAGGIO, Jean. Op. cit., p. 102.

10

Idem, ibidem, pp. 102-103.

Idem, p. 103. Alfonso XI mandou Fernãn Sánchez de Valladolid fazer uma crônica de seus feitos, a intitulada Crónica de Alfonso XI. 11

12

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Rio de Janeiro: GRAAL, 1985, p. 244.

13

FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996, p. 17.

MIGNOLO, Walter. “Cartas, crónicas y relaciones del descubrimiento y la conquista”. In: MADRIGAL, Luis Íñigo. Historia de la Literatura Hispanoamericana. Tomo I Época Colonial. 3ª ed., Madrid: CATEDRA, 1998, p. 78. Os freqüentes “pedidos de desculpas” que precedem algumas crônicas, possivelmente revelariam, assim, não apenas uma protocolar “falsa modéstia”, mas, inclusive, o constrangimento sincero de estar exercitando indevida e inadequadamente um oficio que tem seus preceitos e regras definidas, bem como as pessoas autorizadas para fazê-lo. 14

Ver reflexões preliminares de Mabel Moraña ao número monográfico que dirige na Revista de Crítica Literaria Latinoamericana. Apud PIZARRO, Ana (org.) América Latina: Palavras, literatura e cultura. A situação colonial. São Paulo: Memorial; Campinas: UNICAMP, v. 1, 1993, p. 31. 15

PIZARRO, Ana. “Palabra, literatura y cultura en las formaciones discursivas coloniales”. In: PIZARRO, Ana (org.). Idem, ibidem, p. 31. 16

MURÚA, Martín de. Historia del origen y genealogía real de los Reyes Incas del Perú. Introd., notas y arreglo por Constatino Bayle, Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Instituto Santo Toribio de Mogrovejo, 1946, p. 5. Transcrito conforme o original. 17

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 4ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 699. 18

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

25

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA 19

MIGNOLO, Walter. Op. cit., pp. 87-88.

Cf. CASTILLO, G. Céspede del. Textos y documentos de la America Hispánica (14921898). Tomo XIII. Barcelona: Editorial Labor, 1988, p. XXII-XXV. 20

21

Idem, ibidem, p. XXIV.

Entre os autores espanhóis conhecidos que tratam desta questão, destacamos: José de Acosta (1979), Cieza de León (1945), Pedro Pizarro (1968) e Sarmiento de Gamboa (1960). 22

23

NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 41.

DEL PRIORE, Mary. “Retrato da América quando jovem”. In: Revista Estudos Históricos, n.º 9, América, vol. 5, Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1992, p. 11. 24

LAS CASAS Apud IGLESIAS, José Luis Pereira. “La imagen de las Indias en el Pensamiento eclesiástico indiano: valoración historiográfica y perspectivas de futuro”. In: Extremadura en la evagelización del Nuevo Mundo: Actas y estudios. Extremadura: Colección Encuentros, 1988, p. 25. 25

26

NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., p. 41.

27

Idem, ibidem, p. 42.

28

Idem.

DIAS, J. S. da Silva. Os descobrimentos e a problemática cultural do século XVI. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1973, p. 217. 29

HANSEN, João Adolfo. “A servidão natural do selvagem e a guerra justa contra o bárbaro”. In: NOVAES, Adauto (org.). A descoberta do Homem e do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 351. 30

DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. 31

DEL PRIORE, Mary. “Imagens da terra fêmea: a América e suas mulheres”. In: VAINFAS, Ronaldo (org.) América em tempo de conquista. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 149. 32

33

Idem, ibidem, p. 149.

SILVERBLATT, Irene. Luna, Sol y Brujas – Gênero y clases en los Andes prehispánicos y coloniales. Cusco: Centro de Estudios Regionales Andinos Bartolomé de Las Casas, 1990, p. 158.

34

26

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

AS CRÔNICAS ESPANHOLAS DO SÉCULO XVI E A PRODUÇÃO DE NARRATIVAS... 35

ABBAGNANO, Nicola. Op. cit., p. 503.

“O estado e a cultura começaram a assomar, desde então, concretamente, nas inteligências, como criação do homem na história. E a noção de arquétipo divino começou também a ceder o terreno à noção de processo natural. Promoveram-se na ética, na estética, no direito, na própria política, com timidez de início, com celeridade depois, as categorias e calores da natureza. E com isso modificou-se a própria concepção da cultura – espacializando-a, temporalizando-a, naturalizando-a”. DIAS, J. S. da Silva. Op. cit., pp. 218-219. 36

37

Idem, ibidem, p. 220.

38

Idem, p. 82.

O’GORMAN, Edmundo. Prólogo in: ACOSTA, Jose de. História natura y moral de las Indias. 2ª ed., México: Fondo de Cultura Economica, 1962, p. XXXIV. 39

ELLIOT, J. H. El Viejo y el Nuevo Mundo, 1492-1650. Madrid, 1972, p. 48. Apud IGLESIAS, José Luiz pereira. Op. cit., p. 40.

40

41

O’GORMAN, Edmundo. Op. cit., p. XLII.

PORRAS BARRENECHEA, Raúl. Fuentes Historicas Peruanas. Apuntes de un curso universitario. Lima, Inst. R P Barrenechea, 1968, p. 147. 42

43

Idem, ibidem.

44

NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., pp. 31-32.

CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto 2: Os domínios do homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 229. Os discursos providencialistas da conquista põem em relevo a dimensão providencialista do imaginário espanhol acerca daquela, bem como seu poder apelativo e força imperativa, legitimadores de práticas de violências que respondem pela instauração de hierarquias, inclusões ou exclusões sociais. Põem em relevo como o imaginário social constituí uma peça efetiva e eficaz do dispositivo de controle da vida coletiva e, em especial, do exercício da autoridade e do poder, bem como de lugar e o objeto de conflitos sociais. 45

46

DEL PRIORE, Mary. “Retrato da América quando jovem”. Op. cit., p. 13.

MOSCOVICI Apud SÁ, Celso Pereira de. Núcleo das Representações Sociais. Rio de Janeiro: Vozes, 1996, p. 48. 47

48

NEVES, Luiz Felipe Baêta. Op. cit., pp. 45-46.

49

STADEN, Hans. “A Manipulação do Sagrado”. In: GIUCCI, Guillermo. Viajantes EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

27

SUSANE RODRIGUES DE OLIVEIRA do Maravilhosos (O Novo Mundo), São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 196. TODOROV, Tzvetan. A conquista da América: a questão do outro. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1988, p. 25. 50

51

FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 10ª ed., Rio de Janeiro: Graal, 1992, p. 07.

ORLANDI, Eni Puccinelli. Terra à vista – discurso do confronto: velho e novo mundo. São Paulo: Cortez, 1990, pp. 13, 114. 52

28

EM TEMPO DE HISTÓRIAS, Nº 5, ANO 5, 2001.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.