AS DIMENSÕES TEOLÓGICAS DA CULPA NO LIVRO “CRIME E CASTIGO” DE DOSTOIÉVSKI

June 29, 2017 | Autor: Everton Carneiro | Categoria: Literatura, Teologia, Moral Culpability and Intrinsically Evil Acts, Pecados, Dostoievski
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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

ÉVERTON ROCHA CARNEIRO

AS DIMENSÕES TEOLÓGICAS DA CULPA NO LIVRO “CRIME E CASTIGO” DE DOSTOIÉVSKI

São Paulo 2014

ÉVERTON ROCHA CARNEIRO

AS DIMENSÕES TEOLÓGICAS DA CULPA NO LIVRO “CRIME E CASTIGO” DE DOSTOIÉVSKI

Trabalho de conclusão de curso apresentado ao Centro de Educação, Filosofia e Teologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial à obtenção do grau de Bacharel em Teologia

ORIENTADOR: Prof. Ms. Jonathan Luis Hack

São Paulo 2014

A Deus, pela graça de poder estudar; aos meus pais pelo incentivo; a Primeira Igreja Batista de Xiquexique pelo apoio e confiança e a Igreja Batista Nova Heliópolis pelo acolhimento.

AGRADECIMENTOS A Deus, pois nele vivemos e nos movemos e existimos, o conhecimento só é possível pelo fato de que ele nos criou também para o labor intelectual. Ao Prof Ms Ivandro Pinto de Menezes da Universidade do Estado da Bahia, por ter me ajudado na elaboração do projeto de pesquisa. Ao Prof Ms Jonathan Luis Hack, por ser um orientador competente e mesmo com a escassez de tempo foi atencioso e preciso em suas diretrizes, e pelo fato de que foi em uma de suas aulas que surgiu a ideia do presente trabalho.

RESUMO Aborda a importância da literatura para a teologia, tomando como exemplo o livro Crime e Castigo de Dostoiévski. Faz uma breve biografia do autor. Pesquisa qual o contexto filosófico e religioso que influenciaram na criação da obra. Conceitua a culpa de acordo com a teologia cristã, em seguida a aplica ao sentimento do protagonista do livro. Conclui ressaltando a importância dos conceitos teológicos para o enriquecimento das ciências humanas, e faz da análise da culpa um exemplo da importância da literatura como porta-voz da teologia. Palavras- chave: Teologia, Literatura, Dostoiévski, culpa, pecado.

ABSTRACT

Addresses the importance of literature to theology, taking as an example the book Crime and Punishment by Dostoevsky. Make a brief biography of the author. Research which philosophical and religious context that influenced the creation of the work. Conceptualizes the blame according to Christian theology, then apply to the book's protagonist feeling. Concludes emphasizing the importance of theological concepts to enrich the human sciences, and makes the analysis of guilt an example of the importance of literature as a spokesman of theology. Key words: Theology, Literature, Dostoevsky, guilt, sin.

SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 9 2 INTRODUÇÃO A OBRA CRIME E CASTIGO.............................................................. 13 2.1

UM

HOMEM

DE

FÉ:

ASPECTOS

BIOGRÁFICOS

DE

DOSTOIÉVISK

.................................................................................................................................................. 13 2.2 Contextualização da obra Crime e Castigo........................................................................ 15 2.3 A obra Crime e Castigo...................................................................................................... 18 3 A CULPA DE RASKÓLNIKOV........................................................................................ 19 3.1 O HOMEM EXTRAORDINÁRIO..................................................................................... 19 3.2 O sentimento de culpa......................................................................................................... 20 4 O CONCEITO DE CULPA NA TEOLOGIA CRISTÃ................................................... 25 4.1 UMA NOÇÃO DA CULPA EM OUTRAS IDEOLOGIAS.............................................. 25 4.2 A culpa na teologia cristã.................................................................................................... 28 5 A CULPA CRISTÃ E A CULPA DE RASKÓLNIKOV................................................. 32 5.1 UMA ANÁLISE TEOLÓGICA DA CULPA DE RASKÓLNIKOV................................ 32 5.2 teologia e literatura: um diálogo possível........................................................................... 36 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................................................. 39 REFERÊNCIAS..................................................................................................................... 42

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1 INTRODUÇÃO É um enorme desafio estudar um autor russo do século XIX, com uma cultura totalmente diferente, a cultura eslava, e ainda por cima sem ter conhecimento profundo da língua original. Porém, apesar dos desafios, é perfeitamente possível estudar Dostoiévski, especialmente pelo fato de ele não ser limitado apenas a época dele. Dostoiévski é universal e interdisciplinar (PAULINO, 2012, p. 15), e os temas tratados em seus livros transcendem o seu tempo e abordam de maneira profunda questões da alma humana, além de contribuir com o pensamento teológico. O livro Crime e Castigo, do referido autor, é um clássico da literatura. A obra citada inspirou diversos pensadores e antecipou questões que só seriam abordadas pela psicologia no século XX. Publicado em 1866, considerada a obra mais importante do autor, Crime e Castigo conta a história do jovem ex-estudante Raskólnikov que na tentativa de se testar como um indivíduo extraordinário – aqueles que moldam a história da humanidade - comete um crime (PONDÉ, 2013, p. 246). Raskólnikov assassina duas irmãs, sendo que o plano inicial era o de matar apenas a personagem má, mas acaba também ceifando a vida da irmã boa, fato que aumenta ainda mais a sua angústia. No livro é bem perceptível que o próprio corpo de Raskólnikov reflete o seu estado emocional, levando-o a ter febres e umas sensações de frio, sem contar os delírios que o deixavam desorientado, despertando nele um forte sentimento de culpa (CARVALHAES, 2013, p. 20). Dentre os vários aspectos possíveis de se explorar na obra em questão, destaca-se a temática da culpa. A culpa é um tema que faz parte da teologia cristã, ela vem sempre relacionada a questão do pecado, “Ele [Adão] não reconheceu o seu pecado e começou a fazer acusação para se livrar da responsabilidade pelo que havia feito. Ambos, homem e mulher, tentaram fugir da culpa.” (CAMPOS, 2012, p. 179). Em Adão, todos a raça humana é culpada por herdar a culpa do primeiro homem, “como representante nosso, Adão pecou, e Deus nos considerou culpados tanto quanto Adão.” (GRUDEM, 1999, p. 407). A culpa é intrinsecamente ligada a um mundo pós-queda, “O pecado removeu a inocência e a substituiu pela culpa e corrupção.” (CULVER, 2012, p. 560). A escrita de Dostoiévski está “[...] fincada em sua postura teológica” (PONDÉ, 2013, p.47), as influências religiosas dele são originárias da mística ortodoxa. A influência cristã é muito forte nas obras de Dostoiévski, ele vê em Cristo a saída para os dilemas existenciais

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humanos. Sendo assim, além da influência da obra Crime e Castigo na psicologia e na filosofia, é impossível não perceber as contribuições teológicas advindas do livro, tais como a doutrina da Graça, a doutrina do pecado juntamente com a culpa. O que possibilita um diálogo entre a teologia e a literatura, ou mais especificamente entre cristianismo e literatura (MAGALHÃES, 2009, p. 21). A obra Crime e Castigo permite muito mais conexões com a teologia, pois explora com profundidade vários aspectos do ser humano, e este como afetado pelo pecado, envolvido por profundas angústias e crises existenciais. A personagem principal, Raskólnikov, se mostra bastante envolvida pela culpa, um tema abordado pela teologia cristã. Sendo assim, de acordo com a obra, o crime de Raskólnikov teria sido perfeito se não fosse pelo fato de ele ter falhado na parte psicológica, ele não foi capaz de suportar a culpa (CARVALHAL, 2013, p. 24). Diante disto, a temática da culpa se destaca e durante quase todo o livro a personagem principal convive com ela. A “culpa” é um tema que pode ser explorado pela psicologia e pela teologia, é interessante notar o sentimento de Raskólnikov instantes após ter cometido o crime: O pavor se apoderava dele cada vez mais, principalmente depois deste segundo assassinato totalmente inesperado. Queria correr dali o mais rápido possível. E se nesse instante ele estivesse em condição de ver e raciocinar de modo mais correto; se pudesse ao menos perceber todas as dificuldades da sua situação, todo o desespero, toda a hediondez e todo absurdo que havia nela, compreender todas as dificuldades e talvez até quanta crueldade ainda teria de superar e praticar para escapulir dali e chegar em casa – é bem possível que ele largasse tudo e dali mesmo fosse denunciar-se, e não por temer de si próprio mas pelo simples horror e repugnância ao que havia praticado. Nele a repugnância crescia particularmente e aumentava a cada instante. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 94)

Tendo em vista a influência cristã do autor e que nas suas obras permeiam uma crítica as ideias niilistas. A maneira como ele retrata o ser humano, com todas as suas angústias e misérias, merece destaque Raskólnikov e o seu sentimento de culpa. As ciências humanas praticamente negam a existência do mal, e consequentemente o problema da culpa não é muito explorado. A teologia cristã aborda a culpa como consequência direta do pecado, a consciência de culpa é o mesmo que ter a consciência de se estar longe da presença de Deus, não se pode separar o pecado da culpa (AULÉN, 2002, p.230). É importante perceber o quanto a literatura pode ser útil como uma ferramenta capaz de ilustrar conceitos teológicos mais complexos, sendo assim:

11 É preciso encontrar e compreender de que forma conceitos teológicos encontram sua realização na interpretação não-religiosa, pressupondo que a literatura de forma bastante desafiadora apresenta verdades que estão no centro da tradição judaico-cristã (MAGALHÃES, 2009, p. 168).

A literatura faz parte da vida humana, é uma forma de arte, e como tal expressa um conjunto de valores de uma época, de uma sociedade. Muitas obras literárias estão restritas ao seu próprio tempo e a uma determinada cultura, mas algumas conseguem transcender, e expressar valores e sentimentos que são universais, se tornando clássicos, tal como a obra em questão. Lido no mundo inteiro, o romance Crime e Castigo de Dostoiévski, influenciou psicólogos, filósofos e pensadores. É uma obra de peso que merece ser lida e estudada, e dentre as várias abordagens possíveis, pelo seu caráter interdisciplinar, inclusive a teológica. Pelo fato de a literatura ter um alcance maior entre as pessoas, ela pode ser usada como ferramenta pelos teólogos, pois é capaz de ilustrar por meio de uma história e na vida das personagens, conceitos teológicos que são difíceis de explicar de uma maneira mais fácil. É extremamente importante o diálogo da teologia com a literatura, visto que os autores, bem como os leitores possuem pressupostos teológicos. A obra de Dostoiévski é um bom exemplo de como conceitos teológicos podem ser expressos de maneira mais poética e bem elaborada sem ser simplista. O conceito de culpa se destaca na obra, e dentre as várias características que podem ser exploradas do ponto de vista da teologia cristã, ela é escolhida como ponto de contato entre a obra literária e a teologia. Sendo assim, o presente trabalho tem como principal objetivo analisar como o conceito de culpa na obra Crime e Castigo de Dostóievski se relaciona com a teologia cristã. No capítulo dois, será abordado alguns aspectos biográficos de Dostoiévski. A ênfase será especialmente na influência cristã do autor, já que o mesmo pertencia a igreja ortodoxa russa. Uma breve contextualização do livro mostrará as influências que levaram a criação da obra. Teremos também uma breve introdução do livro, para uma melhor compreensão do tema que será tratado com base na vida da personagem principal – Raskólnikov. No capítulo três, será feita uma análise da culpa, em especial a culpa sentida pelo protagonista do livro. Veremos também a tese do “homem extraordinário” que é defendida por Raskólnikov. No capítulo quatro, além do conceito de culpa na teologia cristã, que é o foco principal do capítulo, é mencionado a visão da culpa em algumas ideologias não cristãs. O

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objetivo do capítulo final será uma análise cristã da culpa de Raskólnikov, assim como um comentário da importância do diálogo entre teologia e literatura.

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2 INTRODUÇÃO A OBRA CRIME E CASTIGO O presente capítulo visa apresentar de maneira introdutória, alguns aspectos relevantes da vida de Dostoiévski úteis para uma melhor compreensão do trabalho. A influência religiosa cristã é muito importante para o entendimento da obra, em especial o cristianismo ortodoxo russo. A personagem principal é o jovem ex-estudante direito Raskólnikov. Veremos também os aspectos filosóficos que influenciaram no livro. Dostoiévski era um crítico das ideologias do seu tempo, bem como um profeta, que anunciava por meio da literatura verdades profundas da fé cristã. 2.1 UM HOMEM DE FÉ: ASPECTOS BIOGRÁFICOS DE DOSTOIÉVSKI Fiodor Mikhailovitch Dostoievski nasceu em Moscou, em 11 de novembro de 1821. O seu pai chamava-se Mikhail Andreievich e a sua mãe Maria Fiodorovna Netchaiev. Dentre os grandes autores russos, Dostoiévski foi o único que não veio de uma família rica, fato bastante relevante na compreensão da visão que ele tomou como escritor, já que possuía uma aguda percepção dos problemas infligidos pela desigualdade social. O bisavô de Dostoiévski era um arcipreste Uniat1 em Bratslava na Ucrânia, seu avô era um sacerdote que pertencia a mesma denominação e o pai estava fadado a seguir o mesmo destino, porém foi para Moscou onde seguiu a carreira médica. O Dr. Dostoiévski era uma figura complicada, apesar de ser um homem religioso e cristão fervoroso possuía um temperamento difícil que acabou influenciando também a vida dos filhos, como descreve Joseph Frank: Ele também era um marido fiel, um pai responsável, e um cristão fervoroso. Estas qualidades não fizeram dele um ser humano amável e encantador, mas as virtudes dele foram tão importantes quanto os seus defeitos para determinar o ambiente no qual Dostoiévski cresceu. (FRANK, 2010, p. 10, tradução nossa)

Fiodor, herdou do pai um descontrole emocional muito grande. Quando o mesmo foi para a prisão na Sibéria passou a sofrer de epilepsia. Paulino (2012), relata que o pai de Dostoiévski morreu em 1839 assassinado pelos servos que se revoltaram pelas condutas despóticas do mesmo; a mãe de Dostoiévski morreu quando ele ainda era pequeno.

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Uniat é a designação de algumas igrejas ortodoxas que preservam a sua própria liturgia, mas se submetem a autoridade papal. Disponível em < http://www.thefreedictionary.com/Uniat>. Acesso em 17 out. 2014. Tradução nossa.

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Ao analisar o relacionamento de Dostoiévski com o pai, pode-se perceber que provavelmente a temática da culpa tão presente em seus personagens venha da sua experiência pessoal, quanto a isso o seu maior biógrafo, Joseph Frank (2010, p. 20-21) afirma, Certas características da natureza de Dostoiévski podem ser atribuídas aos efeitos da sua relação com o pai. Todas as pessoas que tinham um contato pessoal prolongado com Dostoiévski ressaltaram a sua personalidade reservada e evasiva; ele não era alguém que se abria facilmente ou de boa vontade para os outros. Dificilmente havia registros autobiográficos dele que não comentassem esta falta de expansividade, suspeita-se até que este problema pode muito bem ter sido desenvolvido a partir de uma necessidade de dissimular como um meio de lidar com a combinação de capricho e severidade do seu pai. A timidez patológica da qual Dostoiévski sofreu toda a sua vida pode possivelmente também ser atribuída a sua indisposição de se expor, um temor de ser rejeitado e abusado emocionalmente que tinha se tornado um hábito. O mais importante de tudo, como Freud notou, é que Dostoiévski internalizou como uma criança um elevado sentimento de culpa.

A influência cristã na vida de Dostoiévski vem desde a infância e perdurou até a sua morte, mesmo tendo passado por crises, ainda assim permaneceu bastante religioso. Os conceitos da fé cristã eram transmitidos na mais tenra idade, isso fazia com que as crianças vissem o mundo sempre através de uma luz sobrenatural. Até mesmo quando Dostoiévski entrava em conflito com a questão da existência de Deus, ele não conseguia aceitar um mundo sem Deus. (FRANK, 2010, p. 23-24) Devoto desde criança, Dostoiévski estava profundamente enraizado no cristianismo ortodoxo, como afirma Frank (2010, p. 26, tradução nossa) Alguém pode avaliar de tais detalhes como a infância de Dostoiévski o imergiu profundamente em uma atmosfera cultural e religiosa da velha piedade Russa e o aproximou emotivamente das crenças e sentimentos dos camponeses analfabetos ainda intocáveis pela cultura secular Ocidental.

É de suma importância percebermos alguns detalhes da vida de Dostoiévski, detalhes estes que ajudam na compreensão do seu estilo, influências e visão de mundo. A família Dostoiévski permaneceu longe das influências céticas que eram moda entre a aristocracia Russa de sua época. A religião, para a família de Fiódor, não se resumia a ritos, não dividia o mundo entre sagrado e profano. (FRANK, 2010, p. 28) Dostoiévski vai para Moscou estudar engenharia militar. Influenciado e envolvido pelos meios culturais da época ele termina por se envolver com um círculo de socialistas – círculo de Petrachevski – fato que o levou a ser preso em 1849, em seguida foi condenado ao fuzilamento, porém quando a ordem de execução ia ser iniciada, a sentença foi mudada, por ordem do Czar Nicolau I (FRANK, 2012, p.18).

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Dostoiévski foi exilado na Sibéria durante quatro anos, condenado a trabalhos forçados. O impacto emocional e os traumas o marcaram profundamente. A angústia da iminência da morte é retratada no seu livro “O idiota” (PAULINO, 2012, p.18-19). Os aspectos mencionados acima ressaltam apenas algumas das características importantes da vida de Dostoiévski que nos serão úteis no restante deste trabalho, uma abordagem mais ampla fugiria do nosso propósito. Após termos, de maneira breve, levantado alguns episódios da vida de Fiódor: como a sua família, a sua fé cristã vinda do cristianismo ortodoxo e as angústias da prisão, passemos agora a uma análise mais específica do contexto no qual o livro “Crime e Castigo” foi escrito. 2.2 Contextualização da obra Crime e Castigo A obra Crime e Castigo é de 1866 e “representa uma nova etapa na obra Dostoiévski: a etapa dos grandes romances [...]” (BEZERRA, 2009, p. 9). Há uma tensão dramática que se sobressai no livro, isso se dá pelo estilo do autor que cria um labirinto discursivo na qual as suas personagens são encontradas, razão pela qual as falas das mesmas são sinuosas. (BEZERRA, 2009, p. 8) Para uma melhor compreensão da referida obra, faz-se necessário conhecer mais sobre o que inspirou o autor a escrever e quais ideias serviram de base para cada uma das personagens, em especial a principal, Raskolnikov, que são um meio de o pensamento do autor ganhar vida. Ao tratar sobre a construção das personagens devemos perceber: [...] que esses seres só existem no universo da ficção, sendo, portanto, resultado de uma construção lingüística elaborada cuidadosamente pelo autor. A personagem não existe fora das palavras, é um ser de papel. Nessa construção, o autor dá voz aos seus personagens e através deles expressa a sua visão de mundo. (OLIVEIRA; BEHLE, 2009, p. 290)

O romance é narrado em terceira pessoa, o que demonstra uma grande habilidade do autor, já que dessa forma ele consegue fundir a voz dele com a da personagem, dando um efeito maior de realidade, característica marcante no livro, com um narrador que raramente se manifesta na obra. (OLIVEIRA; BEHLE, 2009, p. 290) Como mencionado anteriormente, o conhecimento de alguns aspectos da biografia do autor é muito importante no estudo da obra, especialmente porque nos auxilia na compreensão da origem e criação das personagens. O surgimento do livro remonta à época a qual ele esteve preso na Sibéria, quinze anos depois do seu exílio ele escreve “Crime e Castigo” (GOLIN, 2009, p. 110).

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Foi da prisão que Dostoiévski retirou aquilo que lhe serviria de inspiração, durante os duros anos que lá passara ele leu bastante a Bíblia e aprendeu com o sofrimento, bem como com as pessoas que conheceu. Entre ladrões e assassinos, Fiódor encontraria inspiração para muitas de suas personagens. (GOLIN, 2009, p. 110) Com relação a inspiração que Dostoiévski teve nos anos passados na prisão da Sibéria, Pondé (2013, p. 248-249) relata: Uma outra referência interessante do período da prisão na Sibéria é a de um indivíduo chamado Pavel Aristov, um grande criminoso com o qual Dostoiévski fica impressionado: um indivíduo absolutamente acima da média, que não tem medo de nada, faz tudo o que quer, parece ter controle de todos os músculos de seu corpo, está acima do bem e do mal, com absoluto domínio de tudo o que acontece ao seu redor, que fala de seu crime e das coisas que fez com total isenção – parece não ter nenhuma incompetência humana - ; alguém de fato extraordinário. Mas como uma figura que está além de toda e qualquer incompetência humana pode ser exatamente um criminoso?

A temática do “homem extraordinário” é fundamental na construção da personagem principal, é possível inclusive relacionar Dostoiévski a Nietzsche, já que a teoria do homem extraordinário – um homem-deus – que estaria acima dos valores morais, provavelmente influenciou Nietzsche em sua filosofia do super-homem. (Golin, 2009, p. 115) A obra Crime e Castigo traz consigo uma profunda análise filosófica, como também faz duras críticas a algumas visões excessivamente otimistas do homem. Sendo assim, muitos o consideram pessimista, mas Na realidade, esse pessimismo é apenas um modo que o senso comum encontra para descrever o tipo de sensação um tanto asfixiante que brota das críticas contundentes de tais autores com relação às crenças humanistas-naturalistas. (PONDÉ, 2013, p. 16)

Portanto a visão de Dostoievski como um autor pessimista surge pelo fato de ele não ser um pensador que advoga das filosofias mais proeminentes na ciência que transferem para o homem o centro do Universo. O conceito de pecado da religião é totalmente abolido da ciência, fazendo com que o homem seja tido como um ser que nasce bom mas que é corrompido pelo meio, quanto a isso Pondé (2009, p. 249) escreve: Em Crime e Castigo veremos a teoria do homem ordinário e extraordinário através da qual Dostoiévski dialoga com a fundamental herança maquiaveliana e nietzschiana (evidentemente que não diretamente com esta por uma questão de “datas”), e a teoria do meio na qual Dostoiévski questiona o moderno conceito de “meio social e psicológico” e seu determinismo, sofisticação a serviço da negação do Mal.

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Como vimos na biografia de Dostoiévski, desde criança ele convive com a religião, de maneira que a sua vida e pensamento, bem como os seus livros são profundamente marcados por este fato, sendo assim, Entender Dostoiévski como mero objeto de uma crítica literária de base psicológica ou sociológica (ou mesmo unicamente literária) implica miopia hermenêutica: sem religião não há compreensão de sua obra; só o analfabetismo dogmático em filosofia da religião pode esperar compreendê-la sem o socorro do pensamento religioso. (PONDÉ, 2013, p. 26)

Portanto é imprescindível compreender a influência da mística ortodoxa que marca o desfecho do livro, como já mencionado desde criança Dostoiévski já tinha um contato com a Bíblia, o livro de Jó foi marcante para ele. Há uma forte influência dos Evangelhos em sua obra. Um tema de destaque em sua obra é a questão da busca por Deus. O Cristianismo Ortodoxo é marcado pela experiência com Deus, o que contrasta com a teologia Ocidental que enfatiza o intelecto, a fé não depende de uma construção racional ou de estar em sintonia com a ciência. (GOLIN, 2009, p. 116 - 117) Dostoiévski fazia teologia com os seus escritos, razão pela qual ele é um autor profundo e relevante para a teologia cristã até mesmo a Ocidental Embora Dostoiévski não seja teólogo, ele produzia teologia por meio de seus escritos literários. Ele acreditava que Deus falava por meio dele e na perspectiva da ortodoxia era um místico, por isso seus escritos são permeados de uma religiosidade profunda. (GOLIN, 2009, p. 117).

Na obra também há questões políticas e ideológicas, a que mais marca é o anticapitalismo que se destaca na figura de Lújin – personagem apresentado de maneira negativa – porém isso não faz de Dostoiévski um revolucionário. A teoria do crime permitido desenvolvido pela personagem principal é bastante polêmica por conta das tendências políticoideológicas de caráter revolucionário que marcaram a época na qual o autor vivia. (BEZERRA, 2009, p.12) Portanto, é perceptível que para compreender o livro Crime e Castigo é importante perceber o contexto tanto histórico quanto filosófico, bem como a forte influência religiosa do autor. Várias questões são abordadas por Dostoiévski, cada uma das suas personagens é construída a partir de diferentes referenciais. A riqueza e profundidade da obra são a união de uma série de fatores que contribuíram para que o autor a produzisse tornando-a um clássico da literatura mundial, portanto, ao observar a trajetória do autor podemos perceber que: [...] Dostoiévski chega a Crime e Castigo após percorrer um caminho longa e solidamente pavimentado pela experiência literária e a reflexão filosófica. Na experiência literária ele consolidou uma engenhosa arquitetônica de vozes que

18 interagem na tessitura do romance, provocando-se, sondando-se, usando um discurso de mão dupla em que uma procura antecipar a possível réplica da outra. No campo da reflexão está com uma visão filosófica do mundo construída e definida. (BEZERRA, 2009, p. 11)

2.3 A obra Crime e Castigo O livro conta a história de um ex-estudante pobre de Direito, que mora em Pettesburgo na Rússia - chamado Raskólnikov, que abandona a faculdade por não ter mais condições de se manter. O mesmo recebe uma pequena ajuda da mãe, que recebe um valor baixo de sua pensão anual, e da irmã que trabalha como governanta em casas de família sendo vítima de abuso sexual por um homem rico. Toda a história gira em torno de um crime cometido por Raskólnikov ou Ródia, como é chamado por sua mãe. O crime é cometido para testar a sua teoria do homem extraordinário, ou seja, aqueles que transformam a história e estão acima do bem e do mal. As vítimas do crime são duas irmãs: Aliena Ivánovna, que era agiota, com quem Raskólnikov conseguia dinheiro, penhorando alguns objetos e Lisavieta, que surge no momento do crime e também é morta para se evitar qualquer testemunha. Dostoiévski se apaixona por Sônia que é filha de um amigo seu, Marmieládov, obrigada a se prostituir para sustentar as crianças de sua madrasta. Sônia será muito importante na vida de Raskólnikov. Ao descrever a personagem principal Bezerra (2009, p. 12) afirma: Homem de sensibilidade aguçadíssima e dotado de uma erudição impressionante para a pouca idade, ele desenvolve uma engenhosa teoria dos indivíduos “ordinários” e “extraordinários”, que tem origem na experiência dos grandes criminosos da história, entre os quais ele escolheu Napoleão como objeto preferido de sua reflexão e polêmica. O substrato da reflexão de Raskólnikov é o seguinte: Napoleão derramou rios de sangue para consolidar a civilização burguesa, que tem em sua macroestrutura o sistema bancário como símbolo maior, e a história o absolveu. Então, por que eu, Rodion2 Románovitch Raskólnikov, não posso matar uma mísera velha agiota, que repete na microestrutura da sociedade o que o sistema bancário faz na macroestrutura? [...]

Raskólnikov não conseguirá ir adiante com a sua teoria e termina por ter a consciência atormentada, juntamente com o seu drama o livro vai mostrando a sociedade ao seu redor, tudo gira em torno do protagonista. (OLIVEIRA; BEHLE, 2009, p. 293) Sendo assim, passemos então a uma análise mais profunda da personagem principal.

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O nome completo da personagem principal é Rodion Românovitch Raskólnikov

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3 A CULPA DE RASKÓLNIKOV Neste capítulo, examinaremos com mais detalhes o aspecto psicológico da personagem, em especial o sentimento de culpa da mesma. Iniciaremos com a tese defendida por Raskólnikov do homem extraordinário. Por que será que Rodion fracassou em se tornar o homem extraordinário? Em seguida faremos uma análise do sentimento de culpa que persegue Raskolnikóv e o torna doente. Será possível perceber que Dostoiévski antecipa uma abordagem psicanalítica mesmo antes do surgimento da mesma por Freud. 3.1 O HOMEM EXTRAORDINÁRIO Como foi mencionado no capítulo anterior, dentre os vários aspectos possíveis de se analisar o livro Crime e Castigo, iremos nos ater a questão da culpa. Para tanto, faz-se necessário um recorte do sentimento da personagem principal – Raskólnikov. Como já foi dito acima, só é possível compreender Raskólnikov à luz da teoria do “homem extraordinário”. Qual o objetivo do homem extraordinário? Quanto a isto, Pondé (2009, p. 252) afirma: “Para o extraordinário o sentido é função de sua atividade criadora (ou construtiva), que age sobre o abismo ontológico (não há justificação transcendental para os valores), e, portanto, ele pode fazer o que quiser.” É importante mencionar as próprias palavras de Raskólnikov: [...] Eu insinuei pura e simplesmente [em um artigo] que “o homem extraordinário têm o direito... ou seja, não o direito oficial, mas ele mesmo tem o direito de permitir a sua consciência passar... por cima de diferentes obstáculos, e unicamente no caso em que a execução da sua ideia (às vezes salvadora, talvez, para toda a humanidade) o exija (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 268)

Dentre os exemplos de indivíduos extraordinários da história, Raskólnikov se inspira em Napoleão de quem fala o tempo inteiro (PONDÉ, 2013, p. 250). Ele fica fascinado e desenvolve uma personalidade “napoleônica”, que visava o bem maior da sociedade e que acreditava possuir a moral correta para matar (FRANK, 2010, p. 489). Será que Raskólnikov consegue se convencer da sua teoria? Ele tenta sustentar a sua ideologia, é ela que está por trás de todas as suas ações, porém ele fracassa em se convencer da mesma (PONDÉ, 2013, p. 253–254). A agonia da personagem principal é notável, bem como o seu desespero por não conseguir se convencer daquilo que queria. A falha de Raskólnikov faz parte do propósito do autor, do contrário, o mesmo se encontraria em um grau de degradação absoluta do ser humano (PONDÉ, 2013, p.253). A falha de Raskólnikov é a sua salvação. “Na

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realidade, a rotação da posição de Raskólnikov no livro é perceber que ele não consegue se convencer de que é um indivíduo extraordinário” (PONDÉ, 2013, p. 256) A agonia da personagem é bastante destacada, tendo em vista que esta característica é marcante no autor cujos grandes personagens “[...] estão sempre, aparentemente, num estado alterado, febris, numa agonia constante. Raskólnikov sua frio.” (PONDÉ, 2013, p. 255) como fica evidente neste trecho do livro, logo após o crime: O pavor se apoderava dele cada vez mais, principalmente depois desse segundo assassinato totalmente inesperado. Queria correr dali o mais rápido possível. [...] é bem possível que ele largasse tudo e dali mesmo fosse denunciar-se, e não por temer por si próprio mas pelo simples horror e repugnância ao que havia praticado. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 94)

Portanto, percebe-se que Raskólnikov fracassa em seu intento, já que não deveria ser levado pelas emoções, pois o homem extraordinário age pelo bem da humanidade e de maneira racional e calculista, como WU (2010, p. 264) afirma: apesar de Raskólnikov reivindicar para si a pertença aos extraordinários, o fato é que o seu comportamento é sempre ambíguo e hesitante, algo entre a tentativa de ajuste ao perfil napoleônico e a repressão do sentimento de culpa que não se cala nunca.

O sentimento de culpa o dominava mesmo com todas as tentativas de suprimi-lo. 3.2 O sentimento de culpa Raskólnikov fracassou em pertencer a classe dos extraordinários. O sentimento de culpa predominou e fez com que Raskólnikov vivesse atormentado. Quanto a este sentimento Carvalhal (2010, p. 4 - 5) escreve: Tendo por base as ideias de Freud (1923), o sentimento de culpa resulta de tensões entre o Ego e o Superego, que será manifestada pela necessidade de castigo [...] grande parte do sentimento de culpa deve normalmente permanecer no inconsciente, e que o aumento desse sentimento de culpa inconsciente pode transformar pessoas em criminosos. Assim sendo, em muitos criminosos, especialmente nos principiantes, é possível detetar um sentimento de culpa muito poderoso, que existia antes do crime, e, portanto, não é o seu resultado, mas sim a sua causa. Desta forma, o criminoso, obteria alívio ao poder ligar este sentimento inconsciente de culpa a algo real e imediato (Freud, 1916)

Ainda com relação ao sentimento de culpa, a psicologia oferece importantes contribuições. Carvalhal em seu trabalho oferece ferramentas valiosas para uma análise do sentimento de culpa da personagem. A respeito da culpa ele comenta sobre os dois tipos, a persecutória (2010, p. 9 – 10):

21 Grinberg (2000), tendo por base os conceitos de angústia persecutória e de posição esquizo-paranóide3 propostos por Klein (1948), acredita que o aparecimento da culpa persecutória é condicionado por situações persecutório-depressivas4 primárias onde intervêm sentimentos de angústia, medo, desespero, dor e pena pelo estrago feito ao objeto. [...] as pessoas dominadas por uma grande culpa persecutória, são bastante marcadas por muito ressentimento, dor, medo e autocensura, bem como, pela atemporalidade onde o passado, o presente e o futuro se confundem.

E a culpa depressiva (2010, p. 15): [...] este sentimento de culpa é indispensável à capacidade de amar, pois é este que nos permite elaborar o luto e reparar o objeto amado. A principal característica da culpa depressiva é o desejo de reparar o objeto que se sente destruído pelos impulsos destrutivos.

Sendo que nos dois tipos, tanto na culpa persecutória quanto na culpa depressiva, “[...] mesmo em diferentes proporções, podem coexistir ao longo da vida, tendo em vista que um será mais predominante do que o outro consoante domine o instinto de vida ou o instinto de morte e claro está, das diferenças individuais dos sujeitos” (CARVALHAL, 2010, p. 15). Em várias circunstâncias no livro, percebe-se sem muitas dificuldades o sentimento de culpa presente em Raskólnikov. Ele não é bem sucedido no intento de entrar para o rol dos extraordinários. Há um momento em que a personagem ensaia o crime que planeja cometer, porém ele se sente extremamente enojado por aquilo que está prestes a fazer (CARVALHAL, 2010, p. 17). É interessante notar que ele acaba criando uma empatia com Marmeladóv, uma das personagens que é alcoólatra. Em Marmeladóv havia um forte sentimento de culpa, fato que muito provavelmente leva Raskólnikov a se identificar com ele. Durante toda a obra, esta profunda empatia só é encontrada entre os dois. (CARVALHAL, 2010, p. 17). A maneira como Raskólnikov e Marmeladóv se conhecem na taberna é interessante: Acontecem certos encontros com pessoas que desconhecemos inteiramente, por quem começamos a nos interessar à primeira vista, como que de repente, súbito, antes que articulemos uma palavra. Foi exatamente essa a impressão que produziu em Raskólnikov o visitante que estava sentado a distância e parecia um funcionário público aposentado. Mais tarde o jovem recordaria várias vezes essa primeira impressão e chegaria a atribuí-la a um pressentimento. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 28)

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Para uma melhor compreensão dos termos técnicos: personalidade esquizoide: é marcada por uma intensa utilização de mecanismos defensivos, especialmente a dissociação tanto em relação ao objeto como ao Ego; personalidade paranoide: a principal característica deste tipo de personalidade no que se refere ao sentimento de culpa, é a sua tendência para projetar para fora e nega-lo sistematicamente. 4 Personalidade melancólica ou depressiva: nestes tipos de personalidade, a culpa é um dos sintomas mais evidentes através das autocensuras, apatia, ressentimento, indiferença, humilhação, pesar, angústia, tristeza, desvalorização, irritabilidade, mau-humor, e as atitudes autopunitivas.

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Outra cena importante na percepção do sentimento de culpa de Rodion, é a do sonho com uma égua. No sonho ele vê uma égua sendo assassinada de maneira brutal. Depois disto, Raskólnikov percebe que não conseguiria matar a velha como planejou, ele não seria capaz de dominar os seus sentimentos (CARVALHAL, 2010, p.18). Tanto a culpa quanto o seu desejo de expiação não são reconhecidos de maneira consciente por Raskólnikov após o crime, porém os sonhos dele ajudam a esclarecer. (CARVALHAL, 2010, p. 18–19). Quanto ao sonho de Rodion, o narrador da história comenta: Os sonhos de um homem doente se distinguem frequentemente por um relevo inusual, pela expressividade e uma excepcional semelhança com a realidade. [...] Tais sonhos, doentios sonhos, sempre ficam por muito tempo na memória e produzem forte impressão sobre o organismo perturbado e já excitado do homem. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p.69–70).

Outro fato importante de ser notado, é que o corpo de Raskólnikov termina por evidenciar os seus conflitos emocionais. Tremores, medos, suor frio, todas estas sensações expressam o conflito interno, evidenciando uma culpa persecutória. (CARVALHAL, 2010, p.20). Como fica exemplificado neste trecho: No primeiro instante pensou que fosse enlouquecer. Um frio terrível o envolvia; mas o frio vinha também da febre, que há muito tempo o acometera enquanto ele dormia. Agora lhe batia um calafrio tal que os dentes por pouco não lhe saltavam da boca e ele se sentiu inteiramente entorpecido. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 103)

Em um dado momento, Rodion vai repugnar os atos de bondade do seu amigo Razumíkhin e de outras personagens que aparecem na trama. Raskólnikov começa a desconfiar que todos já estavam cientes do seu crime e que escondiam dele. Neste instante, os pensamentos de Rodion tomavam a forma de um delírio persecutório. Ele já começava a projetar a sua destrutividade nas pessoas que o rodeavam (CARVALHAL, 2010, p. 22). Como se pode observar neste trecho do livro: Mal a porta fechou-se atrás dela, o doente livrou-se do edredom e pulou meio louco fora da cama. Com uma impaciência pungente, convulsiva, esperou que eles se fossem logo para pôr mãos à obra imediatamente após a saída. Mas em quê, a que obra – agora era como se ele estivesse esquecido, de propósito. “Senhor! Diz-me apenas uma coisa: eles estão sabendo de tudo ou ainda não? E vamos que já saibam e apenas finjam, bulam comigo enquanto estou deitado, mas de repente entre e digam que já sabiam de tudo há muito tempo e só estavam... O que era mesmo que eu ia fazer agora? [...]. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p.140)

Por conta do desequilíbrio emocional, Raskólnikov comete uma série de falhas. Em vários momentos na história, ele deixa transparece-la. Por exemplo: quando ele deixa a porta aberta após assassinar as duas irmãs; os vários desmaios dele, inclusive um na delegacia; ele chega a retornar na cena do crime etc. (WU, 2010, p.264). É importante perceber que:

23 Que todos estes descuidos exprimem a tensão que o personagem vive internamente, entre a esperança de ser o próximo Napoleão, e um sentimento cada vez maior de culpa e exigência de punição. Ao contrário de como os criminosos são retratados, procurando manter distância do crime cometido, o percurso de Raskólnikov vai justamente em direção contrária, rumo ao crime. Há aí uma continuação do masoquismo do homem do subsolo 5, mas em um nível punitivo mais elevado, devido à culpa em relação ao crime. (WU, 2010, p.264)

Rodion sofre o tempo inteiro no livro, mesmo tendo tentado justificar o seu crime criando uma teoria. Antes de cometer o assassinato, ele sofre por não saber se seria capaz de atingir o patamar de homem extraordinário, depois do mesmo, o sofrimento vem como tortura por ele ter conhecimento de que não era. Isto provoca nele uma angústia muito forte (CARVALHAL, 2010, p. 34–35). Em um momento importante do livro podemos observar Raskólnikov se defrontando com a sua culpa: E se eu passei tantos dias sofrendo por saber: Napoleão o faria ou não? – então eu já percebia claramente que não sou Napoleão... Eu suportei todo, todo o tormento dessa conversa fiada, Sônia, e desejei arremessá-la toda de cima dos meus ombros: Sônia, eu quis matar sem casuística, matar para mim, só para mim! A esse respeito eu não queria mentir nem a mim mesmo! Não foi para ajudar minha mãe que eu matei – isso é um absurdo! Eu não matei para obter recursos e poder, para me tornar um benfeitor da humanidade. [...] Eu precisava saber de outra coisa, outra coisa me impelia: naquela ocasião eu precisava saber, e saber o quanto antes: eu sou um piolho, como todos, ou um homem? Eu posso ultrapassar ou não! (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 427 – 428)

Rodion é marcado por intenso conflito interior, o sofrimento e a dor são inevitáveis, e é desta maneira que ele vivencia o seu sentimento de culpa. Durante todo o livro, é possível perceber a luta de Raskólnikov com a culpa. A angústia o domina de tal de forma que ele aceita a punição para fugir dela. Raskólnikov só voltaria a ter paz novamente, se pagasse pelo seu crime, ele teria que se render as autoridades. Por causa da culpa, ele mesmo sentia uma necessidade de punição, pois só assim poderia ter alguma esperança no futuro (CARVALHAL, 2010, p. 35). Já no final do livro, após ter cometido o crime, encarado o castigo, então ele começa a encontrar a sua redenção. A culpa persecutória de Raskólnikov começa a se tornar uma culpa depressiva. O amor de Rodion por Sônia o salva do abismo. (CARVALHAL, 2010, p. 36). Vejamos um dos momentos importantes do final do livro:

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homem do subsolo faz referência a outra obra de Dostóievski, Memórias do subsolo. “O personagem de Memórias, que não tem nome, Raskólnikov e Ivan Karamázov [...] formam uma espécie de trilogia dos agoniados na obra de Dostoiévski; agoniados por conta do exercício da razão levado ao paroxismo.” (PONDÉ, 2013, p.230)

24 Eis que se lembrou das palavras de Sônia: “vai a um cruzamento, faz uma reverência ao povo, beija a terra, porque pecaste também perante ela, e diz a todo mundo em voz alta: “Eu sou um assassino!”. Tremeu todo ao se lembrar disso. E já estava tão oprimido pela desesperadora melancolia e pela inquietação de todo esse tempo, mas especialmente das últimas horas, que acabou se precipitando para a possibilidade dessa sensação inteira, nova, completa. Ela lhe chegou de súbito como uma espécie de acesso: começou a lhe arder a alma como uma fagulha e de repente se apossou de tudo como fogo. Tudo nele amoleceu, e as lágrimas jorraram. Do jeito que estava caiu no chão... (DOSTOIÉVSKI, 2001, p.533 – 534)

Até aqui, vimos o quanto Rodion foi dominado pela culpa. Fato que é muito importante, especialmente do ponto de vista da religião cristã. É o que passaremos a analisar no próximo capítulo, uma definição do conceito de culpa no cristianismo.

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4 O CONCEITO DE CULPA NA TEOLOGIA CRISTÃ Agora, iniciaremos com abordagens não-cristãs da culpa. Nietzsche, Feuerbach, Marx, filósofos famosos que criticaram duramente o cristianismo. Notemos que alguns deles criticaram de maneira mais direta o conceito de culpa da religião, outros, por conta do relativismo moral o fizeram de maneira indireta. Será possível perceber também como a religião foi expulsa dos debates filosóficos. Por fim, analisaremos a culpa segundo a teologia cristã. 4.1 UMA NOÇÃO DA CULPA EM OUTRAS IDEOLOGIAS Antes de prosseguirmos com uma análise cristã da culpa, vejamos algumas visões antagônicas ao Cristianismo. Muito do que vimos até agora, em especial na Obra Crime e Castigo, faz uma crítica direta ou indiretamente a algumas correntes filosóficas. Grande parte da tradição filosófica grega discutiu a viabilidade da autonomia moral e psicológica humana a partir da razão. [...] nas agonias das personagens de Dostoiévski vemos o mergulho no abismo dessa autonomia atormentada. [...] A filosofia renascentista voltará a esta afirmação de autonomia humana, associada ao “otimismo” do culto da personalidade e dos avanços científicos e comerciais, fundando uma noção, ainda que vaga, de perfectibilidade humana para além de qualquer necessidade de heteronomia ou pecabilidade estrutural. (PONDÉ, 2009, p. 244)

Sendo assim, visto que a grande parte da tradição filosófica é antropocêntrica e focada na autonomia da razão, a ideia de culpa como pecado é abolida. Iniciaremos a nossa análise de visões contrárias ao Cristianismo por um dos filósofos mais polêmicos. Friedrich Nietzsche (1844–1900), principal filósofo alemão do século XIX. Poderá ser chamado de o filósofo da evolução. Para ele, não apenas os seres vivos evoluem, mas a religião, a sociedade, filosofia e lógica também seriam fruto da evolução. O valor da natureza consiste, segundo Nietzsche, na existência de indivíduos afortunados, gênios, super-homens. O superhomem é um ser superior, como César e Napoleão. Os indivíduos superiores são todos diferentes (CLARK, 2012, p. 406–407). Para Nietzsche, o monoteísmo é algo ruim, porque a ideia de um Deus único, implica também em apenas um padrão para todos os homens. O Cristianismo é nocivo a individualidade, já que iguala a todos. A única norma aceita pelo super-homem é: Seja você mesmo. O valor dos indivíduos superiores é independente de qualquer bem que possam fazer a sociedade. Os mesmos são valiosos por si mesmos, como uma manifestação da vontade de potência (CLARK, 2012, p. 408).

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Ao comentar sobre o livro Genealogia da Moral, de Nietzsche, Farias (2013, p.123) afirma: No entender de Nietzsche (2007), a suposição religiosa que alimenta a crença de um Deus que se sacrificou pelos homens dá origem a uma nova culpa. Na lógica religiosa cristã, Deus (todo-poderoso) viveu no martírio em prol dos homens (inferiores). Aqui, surge uma dívida para com Deus. Mas como pode um ser efêmero e fraco compensar tamanha dívida? A resposta é simples: não pode. A impossibilidade de remissão exigiu que o homem transformasse sua vida em um martírio, em um eterno sacrifício.

Nietzsche via de maneira negativa a culpa advinda do cristianismo. Como fica expresso neste trecho do seu livro: [...] recordemos a causa prima do homem, o começo da espécie humana, o seu ancestral, que passa a ser amaldiçoado (“Adão”, “pecado original”, “privação do livre-arbítrio”), ou a natureza, em cujo seio surge o homem, e na qual passa a ser localizado o próprio mau [sic] (“demonização da natureza”), ou a própria existência, que resta como algo em si sem valor (afastamento niilista da vida, anseio do Nada, ou anseio do “contrário”, de um Ser-outro, budismo e similares) – até que subitamente nos achamos ante o expediente paradoxal e horrível no qual a humanidade atormentada encontrou um alívio momentâneo, aquele golpe de gênio do cristianismo: o próprio Deus se sacrificando pela culpa dos homens, o próprio Deus pagando a si mesmo, Deus como o único que pode redimir o homem daquilo que o próprio homem se tornou irredimível – o credor se sacrificando por ser devedor, por amor (é de se dar crédito?), por amor a seu devedor!... (NIETZSCHE, 2007, p. 80)

Outro filósofo que atacava as doutrinas cristãs, e consequentemente o conceito de culpa, era Ludwig Feuerbach (1804–1872). Ele é responsável por começar ou recomeçar um humanismo no qual o homem é a medida de todas as coisas. A verdade é determinada na concordância; a humanidade é o padrão decisivo. Atacou o cristianismo, fez um exame psicológico na sua obra A natureza do cristianismo. Para ele, crenças religiosas são desejos disfarçados, que refletem a incapacidade do homem controlar a natureza. O progresso da religião consistirá na evolução do cristianismo em uma antropologia religiosa, Deus seria cada vez mais substituído pela humanidade. (CLARK, 2012, p. 393) Feuerbach possuía um entendimento de que o cristão desdenhava da natureza, sendo que para ele a mesma seria o fundamento da existência. Isto ficava evidente na doutrina da Criação e na doutrina do Pecado Original. Esse desprezo pela natureza se fundamentava em um sentimento de culpa, condicionado pela fraqueza humana. Desta forma a natureza corrompida do homem tinha que ser negada, o que para o filósofo equivalia a um desdém à própria razão de existir. (CHAGAS; REDYSON; DE PAULA, 2009, p. 54–55) Vejamos nas palavras do próprio Feurbach como ele via a questão da culpa: Mas, com o mesmo direito do bem, também o mal não se deve somente a mim; não é minha culpa, pelo menos não somente minha, é também culpa das

27 relações, dos homens com os quais estive em contato desde o início, é culpa da época na qual nasci e fui educado que eu tenha estes ou aqueles defeitos e fraquezas. Assim como todo século tem sua própria doença, tem também seus vícios predominantes, isto é, tendências predominantes para isto ou aquilo, tendências estas que não são más em si mas que se tornam más ou viciosas somente por sua preponderância, pela repressão que elas fazem a outras tendências e instintos de igual direito. (FEUERBACH, 1989, p.140 – 141)

Feuerbach vai preparar o caminho para outros filosófos, Karl Marx (1818–1883) e Friedrich Engels (1818–1883). Para o último, a vida se originou da matéria não-viva, por conseguinte o homem seria originado da natureza e o pensamento do cérebro. Marx considerava Hegel e Feuerbach muito religiosos. O homem como um produto biológico, tinha os seus pensamentos e ideologias formados em seu cérebro, eram ecos da vida material. A moralidade e a religião aceita por uma nação dependem da estrutura social. O homem é determinado pela sociedade. A teoria ética dos dois era relativista, não há uma moralidade absoluta. (CLARK, 2012, p. 394 – 400) Homens perfeitos são incapazes de sentir culpa, homens que se coloquem acima do bem e do mal. Como foi discutido em Dostoiévski, no capítulo anterior, vimos que Raskólnikov falhou em ser um homem extraordinário e sentiu todo o peso da sua culpa. A ideia da culpa é tratada sob várias perspectivas. Mas é inadmissível para a maioria das discussões das ciências humanas considerar a culpa como consequência do pecado. As ideias dos filósofos acima são responsáveis por desconstruir a validade epistêmica da religião no debate filosófico. Se seguirmos Feuerbach, Deus e sistemas religiosos são fruto da projeção psicológica (raiz da fantasmática metafísica decorrente) das qualidades melhores que existem na natureza humana, logo, trata-se de uma alienação que priva o ser humano de sua verdadeira capacidade de agir no mundo. Para Marx, religião nada mais é do que um sistema de idéias, fruto da alienação da consciência no mecanismo de produção da matéria econômica, logo também uma espécie de fantasmática a serviço da perda de percepção autônoma da realidade, instrumento de poder daqueles que possuem a administração desta produção material. [...] E para Nietzsche, nada além do que ressentimentos de covardes. (PONDÉ, 2009, p.243)

É intrínseca a natureza humana a tendência para o mal. Fato que é demonstrado até mesmo por meio da psicologia. Em 1971, foi realizado uma experiência na Universidade de Stanford. O Doutor Philip Zimbardo foi o responsável por conduzir o estudo juntamente com a sua equipe, 24 pessoas selecionadas dentre 70 voluntários, as prisões foram efetuadas pela própria polícia local. (ZIMBARDO, 2014) A pesquisa é considerada um marco na psicologia que analisa o conflito e as relações humanas ao aprisionamento. Uma simulação de uma prisão foi montada na Universidade, alguns estudantes eram sorteados para serem guardas e outros prisioneiros durante 2 semanas,

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porém durou apenas 6 dias. A razão de durar menos tempo é que a experiência saiu do controle. (ZIMBARDO, 2014). As pessoas envolvidas na experiência, inclusive o próprio pesquisador, apresentaram problemas, começaram a se comportar de maneira cruel e desumana. Comentando sobre o estudo, o doutor Zimbardo (2007, p. 195) afirma o seguinte: Porém, com o passar do tempo, este experimento surge como uma poderosa ilustração do impacto potencialmente tóxico de sistemas e situações ruins que fazem pessoas boas se comportarem de maneira patológica que são estranhas a natureza delas. A cronologia narrativa deste estudo, a qual eu tentei recriar fielmente aqui, revela vividamente a extensão na qual um jovem comum, normal e saudável pode sucumbir, ou ser seduzido por forças sociais inerentes naquele contexto comportamental – assim como eu e muitos dos outros adultos e profissionais que adentramos seus limites abrangentes. A linha entre o bem e o mal, que se pensava ser impermeável, provou-se, muito pelo contrário.

Sendo assim, a tendência para o mal é um fato comprovado cientificamente. O Cristianismo atribui tal tendência de pecado, e tem muito a contribuir com o debate sobre o tema. As críticas feitas a religião citadas anteriormente não se sustentam diante da grande parte da produção conceitual em filosofia da religião, especialmente a reflexão antropológicofilosófica do cristianismo (PONDÉ, 2009, p.243). “Existem determinados conteúdos filosóficos ou antropológicos na tradição cristã que podem ser de grande valor para problemas filosóficos contemporâneos, ou mesmo clássicos” (PONDÉ, 2009, p.243). Passemos, então a uma análise da culpa na teologia cristã.

4.2 A culpa na teologia cristã A culpa é vista inicialmente como um sentimento. Provavelmente isto se deva ao legado de Freud. Para muitas pessoas no ocidente, a culpa é vista como um desconfortável sentimento de remorso que as impede de desfrutar da vida plenamente. A legitimidade da culpa é questionada, visto que sentimentos que interfiram no bem-estar do ser humano são deploráveis. Alguns defendem a ideia de tratar o sentimento e não a causa ou ação que o originou. O padrão moral é substituído por um modelo situacional ou médico do pecado. Sendo assim, o termo “culpa” é totalmente destituído de sentido. (SHERLOCK, 2007, p. 167–168) Para a tradição cristã, a culpa não é um sentimento, constrangimento ou humor, mas um estado, um estado de quem se encontra no erro, diante de Deus ou de outros seres humanos. O homem se torna indigno, do ponto de vista cristão, por conta da realidade do pecado e suas

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desastrosas consequências. O relacionamento dele com Deus se torna prejudicado (SHERLOCK, 2007, p. 169). O pecado atinge o relacionamento humano com Deus, com o próximo, com a criação e consigo mesmo. A atual abordagem da culpa como um sentimento, é absolutamente insuficiente como resposta a uma atitude errada. Porém o efeito do pecado nos sentimentos humanos não pode ser deixado de lado (SHERLOCK, 2007, p. 169). Desde quando o homem caiu em pecado, ele não quis assumir a responsabilidade. Adão não reconheceu o próprio pecado, mas tentou se livrar da culpa, fazendo acusações. Tanto o homem, quanto a mulher tentaram fugir da culpa. Eles não se arrependeram, não houve uma tristeza profunda pelo pecado. “Então, disse o homem: A mulher que me deste por esposa, ela me deu da árvore, e eu comi” (Gn 3.12) (CAMPOS, 2012, p.179). Adão transferiu a culpa do pecado para Eva. O versículo supracitado também revela que Adão culpou até mesmo o próprio Deus. A mulher por conseguinte jogou a culpa na serpente, “Disse o Senhor Deus a mulher: Que é isso que fizeste? Respondeu a mulher: A serpente me enganou, e eu comi” (Gn 3.13). Até hoje, a tendência do ser humano é culpar os outros por uma responsabilidade própria (CAMPOS, 2012, p.180 – 183). O pecado inclui a culpa. A palavra culpa tem dois sentidos. Ela pode indicar algo que faz parte da condição do pecador, que é inerente a sua natureza. Mas, pode também, indicar a situação do homem diante da justiça e a sua obrigação de satisfazê-la. Esta culpa só pode ser removida quando satisfizer as exigências da lei. Ela significa tanto o merecimento da condenação, quanto o ser passível de punição por violar a lei (BERKHOF, 2009, p. 215 – 216). Quanto a isso, é importante mencionar as palavras de Culver (2012, p. 425): [...] entende-se que a culpa inclui não só o aspecto da culpabilidade, como na linguagem do tribunal, quando os jurados relatam: “Nós julgamos o réu culpado de acordo com a acusação”, mas também a obrigação de sofrer o castigo, como no momento do anúncio do juiz: “Eu o condeno à morte por enforcamento”. Em sentido mais limitado, culpado define o estado do ofensor, e o castigo define as consequências como dívida para com a justiça. O primeiro aspecto não pode ser mudado por coisa alguma; o último aspecto pode ser removido após o cumprimento da pena [...].

O pecado não pode ser separado da culpa, de maneira que um é intrínseco ao outro, tratam da mesma coisa sob perspectivas diferentes. O culpado deve tanto a Deus quanto ao seu próximo (Mt 18.23 ss.). Negar a culpa é continuar obstinadamente no pecado e tentar fugir de Deus, inutilmente (AULÉN, 2002, p. 230).

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“Ai de mim! Estou perdido! Porque sou um homem de lábios impuros, e habito no meio de um povo de impuros lábios, e os meus olhos viram o Rei, o Senhor dos Exércitos!” (Is 6.5). Este versículo do profeta Isaías expressa bem a consciência religiosa da culpa. É um exemplo claro daquele que se reconhece como culpado. A consciência de culpa é aquela que percebe que está separada de Deus, e pelo fato de ser devedora, está sujeita ao julgamento (AULÉN, 2002, p. 231). Todo pecado se torna culpa, pois quando o homem se coloca diante de Deus é proferido sobre ele o julgamento. A consciência da culpa, como ela é de fato e em um sentido religioso, é a consciência de que o homem no seu estado atual merece apenas a total rejeição por parte de Deus. Quem julga é Deus, isto pressupõe o conhecimento do julgamento de Deus, bem como estar submetido ao mesmo. Não são os ideais humanos que fazem o julgamento (AULÉN, 2002, p. 231). Quando a consciência do pecado assume a forma de consciência da culpa, já é evidente que o problema da culpa não pode depender da relação entre a pecaminosidade individual e a inter-relação solidária no pecado. Se o pecado é, ao mesmo tempo, inevitável e necessário, o fato da inevitabilidade não pode afastar ou diminuir o fato da culpa. [...] A consciência religiosa não procura desculpas para o pecado. Nada mais incompatível com essa condição do que procurar discutir com Deus sobre a importância das “disposições”, do “ambiente”, da educação, ou sobre a fronteira dos pecados voluntários, deliberados e intencionais e o ponto onde começa a culpa. [...] Segundo o julgamento da autoconsciência religiosa, o homem descobre ser culpado não só quando pode decidir que agiu com “plena liberdade” – se tal fosse possível -, mas também porque o pecado não pode ser separado da sua vontade (AULÉN, 2002, p.232).

Não existem graus de culpabilidade. O conceito de pecado sempre se refere ao homem como um todo, o julgamento de Deus contra o pecado é sempre radical e incondicional. Diante de Deus, não faz sentido nenhum diferenciar pecados entre os que causam maior ou menor culpabilidade. Por menor que um pecado pareça na concepção humana, ele já é suficiente para tornar a pessoa condenada diante de Deus (AULÉN, 2002, p. 234). Como se livrar da culpa? A mensagem cristã se resumiria a desespero se terminasse apenas na culpa resultante do pecado. É aqui que entra o perdão, que se trata da restauração da comunhão e do relacionamento filial com Deus que foram quebradas pelo pecado. O perdão dos pecados é um milagre, já que é oferecido a alguém totalmente indigno. Quando o pecador é perdoado, ele recebe uma nova vida em Cristo e fica livre da penalidade da culpa (AULÉN, 2002, p.237-248). Como vimos, a culpa não é abordada apenas do ponto vista religioso. É possível utilizar o conceito em um sentido puramente moral. Dependendo da referência que utilizarmos, a culpa

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pode ser abordada como atos individuais em contextos específicos, adotando uma ótica empírica e psicológica. Dessa forma, a análise fica restrita apenas às relações humanas, o que Lutero denominava Coram hominibus. Sendo assim, termina por cair em um relativismo (AULÉN, 2002, p.235). Faremos agora uma análise da culpa de Rodion a partir do conceito de culpa exposto neste capítulo.

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5 A CULPA CRISTÃ E A CULPA DE RASKÓLNIKOV O presente capítulo visa a analisar a culpa de Rodion à luz da teologia cristã. Veremos que as características da culpa de acordo com o Cristianismo são encontradas na personagem de Dostoiévski. No segundo bloco do capítulo nos propusemos a fazer alguns comentários acerca da relação entre teologia e literatura. Desde o início deste trabalho, é possível perceber a importância de uma boa obra literária como ferramenta para o estudo e compreensão da teologia. 5.1 UMA ANÁLISE TEOLÓGICA DA CULPA DE RASKÓLNIKOV É interessante notar um pouco do pensamento religioso de Raskólnikov. Como vimos, Rodion reconheceu que matou apenas porque sentiu vontade. Roskólnikov tenta se convencer do seu ateísmo, apesar de não ser ateu (PONDÉ, 2013, p.254). Vejamos uma das cenas quando Rodion está próximo de confessar a Sônia o crime que havia cometido, neste momento ele começa a fazer perguntas: - Então, Sônia, tu rezas muito a Deus? – perguntou-lhe. Sônia calava, ele aguardava a resposta em pé a seu lado. - O que seria eu sem Deus? – sussurrou de pronto e com energia, lançandolhes subitamente um olhar breve com seus olhos chamejantes, e apertou forte a mão dele. “Bem, é assim mesmo!” – pensou ele. - E Deus, o que faz por ti em troca disto? – continuou ele, perscrutando. Sônia fez um longo silêncio, como se não conseguisse responder. Seu peito fraco arfava todo de agitação. - Cale-se! Não faça perguntas! O senhor não tem esse merecimento!... – exclamou de chofre, olhando para ele severa e irada. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p.334 – 335).

Sônia, que é mencionada acima, se torna extremamente importante para Rodion, já que é através dela que ele atinge a redenção. Dostoiévski mostra a inocência de Sônia em meio a degradação. Ao mesmo tempo que ela é uma personagem rude possui uma grande fé. Ela mostra a Raskólnikov com a própria vida, um exemplo do que é um amor auto sacrificial cristão. A atitude de Sônia incomoda profundamente a Raskólnikov. Quanto mais se contrasta o amor com as ideologias radicais, mais monstruosas elas ficam (FRANK, 2010, p. 500). Yancey (2004, p. 150), resume bem a questão: Apesar de Crime e Castigo retratar um ser humano desprezível que comete um crime desprezível, o bálsamo lenitivo da graça penetra na vida de Raskolnikov por intermédio da pessoa da prostituta convertida chamada Sônia, que o segue durante todo o caminho até a Sibéria e o leva à redenção.

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Ao mesmo tempo que Rodion faz questionamentos sobre Deus, ele tem um desejo de conhece-lo. Em meio a agonia de uma consciência culpada, apenas Cristo poderia trazer alívio e perdão. Ele percebe que Sônia, Lisavieta – uma de suas vítimas inocentes – e Katerina Ivanovna, mesmo em meio as suas misérias mantiveram a sua fé. No meio da emoção ele pede para que Sônia leia para ele um trecho do Novo Testamento (FRANK, 2010, p.335). Sobre a cômoda havia um livro qualquer. Cada vez que passava ao lado no seu vaivém ele o notava; agora pegou e passou-lhe a vista. Era o Novo Testamento em tradução russa. O livro era velho, usado, encadernado em couro. - De onde vem isso? – gritou ele do outro canto do quarto. Ela continuava em pé no mesmo lugar, a três passos da mesa. - Trouxeram para mim – respondeu ela, como que a contragosto e sem olhar para ele. - Quem trouxe? - Lisavieta trouxe, fui eu que pedi. “Lisavieta! Estranho!” – pensou ele. A cada instante tudo em Sônia ia assumindo um aspecto cada vez mais estranho e maravilhoso para ele. Levou o livro à luz e se pôs a folheá-lo. - Onde está a passagem que fala de Lázaro? – perguntou de súbito. (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 335).

Como vimos no capítulo anterior, a culpa não é um sentimento, mas um estado. Um estado de quem se encontra no erro tanto diante de Deus quanto dos homens e é assim que encontramos Raskólnikov, culpado. Assim como Lázaro - que na obra, simboliza a possibilidade de ressurreição moral de Rodion (FRANK, 2010, p. 501) -, Raskólnikov precisava de uma intervenção divina para sair da situação na qual se encontrava. Teorias como as do “homem extraordinário” não são uma novidade, desde a queda da raça humana no pecado, temos atitudes semelhantes. A consequência do pecado é a morte espiritual, marcada pela alienação. Ao invés de sentirem como deuses, Adão e Eva sentem vergonha, por causa de suas consciências culpadas. [...] Uma vez que Adão e Eva declaram a sua autonomia, eles logo percebem que cada um deles tem a capacidade e a vontade para decidir independentemente o que é bom e o que é mau (WALTKE, 2007, p. 263).

Fazendo um paralelo, Raskólnikov negava qualquer princípio moral e se achou apto a agir conforme a sua própria vontade. O mesmo desejo por autonomia que é visto no pecado original é encontrado em Rodion. A mesma condição de culpado, que só se agravou depois do crime é vista no capítulo 3 de Gênesis. Após o assassinato, Raskólnikov sentiu o peso e a angústia de não se enquadrar na classificação de homem extraordinário.

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A tendência do homem de fugir da responsabilidade pelos próprios pecados também é vista em Raskólnikov. Adão e Eva fugiram das suas reponsabilidades, a culpa chegou a ser jogada no próprio Deus só para não assumirem o erro. Para justificar o próprio pecado, Rodion criou toda uma teoria. O desejo que ele tinha de ser como Deus permanece. Na teologia cristã, apenas Deus pode definir o que é certo ou errado. Raskólnikov imaginava que mataria pelo bem da humanidade. [...] Cem mil boas ações e iniciativas que poderiam ser implementadas e reparadas com o dinheiro da velha, destinado a um mosteiro! Centenas, talvez milhares de existências encaminhadas; dezenas de famílias salvas da miséria, da degradação, da morte, da depravação, das doenças venéreas – e tudo isso com o dinheiro dela. Mate-a e tome-lhe o dinheiro, para com a sua ajuda dedicar-se depois a servir toda a humanidade e a uma causa comum: o que você acha, esse crime ínfimo não seria atenuado por milhares de boas ações? Por uma vida – milhares de vidas salvas do apodrecimento e da degradação. Uma morte e cem mil vidas em troca – ora, isso é uma questão de aritmética. Aliás, o que pesa na balança comum a vida dessa velhota tísica, tola e má? Não mais que a vida de um piolho, de uma barata, e nem por isso ela vale porque a velhota é nociva (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 80).

Há sempre um discurso que traz a ideia de ser como Deus, ou de ser como um homem acima de todos os demais. A culpa que é inerente ao pecado, persegue a raça humana. Logo após a queda Adão fugiu de Deus, atitude que nós vemos boa parte do tempo em Raskólnikov. Vimos isso no diálogo com Sônia, ele tentava se convencer de que era ateu, porém era religioso; mas isso também fica evidente em algumas atitudes dele, vejamos algumas: “Graças a Deus que foi apenas um sonho! – disse ele, sentando-se debaixo de uma árvore e tomando fôlego profundamente. – Mas o que é isso? Será que não estou começando a ficar com febre tendo um sonho repugnante como esse?” Todo o seu corpo era como se estivesse moído; a rua estava confusa e escura. Pôs os cotovelos nos joelhos e apoiou a cabeça em ambas as mãos. “Meu Deus! – exclamou ele – Será, será que eu vou pegar mesmo o machado, que vou bater na cabeça, vou esmigalhar o crânio dela... vou deslizar no sangue viscoso, quente, arrebentar o cadeado, roubar e tremer; esconder-me, todo banhado de sangue... com o machado... Meu Deus, será possível?” [...] Ele sentiu que já se havia livrado daquele terrível fardo que o vinha sufocando há tanto tempo, e súbito a leveza e a paz lhe invadiram a alma. “Deus! – rezou – me mostra o meu caminho, e eu renego esse maldito... sonho meu!” (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 74–75)

A queda do homem no início da criação, se deu em um ambiente paradisíaco. O pecado veio de dentro, após a tentação. O homem não é apenas um produto do meio. No final, o próprio Rodion reconheceu que matou porque quis, tanto ele quanto o seu amigo Razúmichin estavam na mesma condição social, porém Raskólnikov escolheu cometer um crime. Este fato não é por acaso, já que Dostoiévski criticava todo tipo de determinismo, como afirma Wu (2010, p. 263): Embora Crime e castigo gire em torno de um crime tal como corriqueiramente é entendido, a decomposição desse crime em elementos mais

35 fundamentais e metafísicos é que torna essa obra algo ímpar na história da literatura, pois o que Dostoiévski faz não é nada mais que demonstrar a insuficiência da interpretação usual, seja ela legalista ou baseada exclusivamente em fatores sociais. Na verdade, Dostoiévski inverte os vetores da tese que dita que o meio determina o homem, situando o problema do crime no interior do indivíduo. Trata-se, não mais de como a sociedade forma o indivíduo, mas discutir se e como os grandes indivíduos poderiam moldar a sociedade, o que seria obrigatoriamente um crime, pois romperia com as normas convencionadas anteriormente.

A culpa é consequência do pecado, os dois se encontram ligados. Conforme o capítulo anterior, vimos que o relacionamento do pecador com Deus só é restaurado quando o mesmo reconhece a sua culpa. “[...]a salvação de Raskólnikov ocorre no momento em que ele se reconhece como pecador.” (PONDÉ, 2013, p. 257). O pecado no livro de Dostoiévski é visto como um exílio de Deus, uma descaracterização da natureza humana, o homem deixando de cumprir o seu papel, caindo na miséria e totalmente mal. O ser humano por conta do pecado termina por destruir tudo o que ele se aproxima (PONDÉ, 2013, p. 257). Assim como a tendência da humanidade, depois do pecado de Adão, foi uma crescente decadência, as personagens de Dostoiévski também, inclusive Raskólnikov. Dostoiévski empurra o ser humano abismo abaixo, para o esgotamento da sua condição caída, da sua desgraça, justamente como pensador religioso que era; ou seja, leva-nos a perceber o engano que é a aposta naturalizante do humanismo moderno (PONDÉ, 2013, p. 259).

Antes de prosseguirmos na única esperança de Raskólnikov, é necessário analisar a visão de Dostoiévski com relação a Cristo. Quando falamos da perspectiva cristã da culpa, vimos que apenas em Cristo é possível obter o perdão dos pecados. Para o autor de Crime e Castigo, a sua visão de Jesus fica bem resumida em sua famosa frase: “Se alguém me provasse que Cristo está fora da verdade, e que na realidade a verdade estivesse fora de Cristo, então eu preferiria permanecer com Cristo ao invés de permanecer com a verdade.” (DOSTOIÉVKI apud FRANK, 2010, p. 408). Já nas últimas cenas do livro, vemos Rodion lendo o Evangelho que Sônia lhe dera: Tinha o Evangelho debaixo do travesseiro. Pegou-o maquinalmente. O livro pertencia a ela, era aquele mesmo de onde ela lhe havia lido a ressurreição de Lázaro. No início da vida de galé ele pensou que ela fosse atormentá-lo com religião, puxar conversa sobre o Evangelho e lhe impor os livros. Mas, para a sua maior surpresa, ela não tocou neste assunto uma única vez, nenhuma vez sequer lhe sugeriu o Evangelho. Ele mesmo o pediu a ela um pouco antes de adoecer, e ela lhe trouxe o livro em silêncio. Desde então ele nem o havia aberto (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 559–561).

A conversão de Raskólnikov não se dá uma vez, no epílogo do livro, percebe-se que o encontro dele com Deus toma continuidade. Razão pela qual Pondé (2013, p. 248) escreve:

36 [...] me parece um erro dizer que Raskólnikov chega a Deus em Crime e Castigo. Ele tem uma rotação em seu movimento, sai da posição em que estava, mas não faz o caminho todo. Seria difícil imaginar, por exemplo, que ele faria por Sônia a mesma coisa que ela faz por ele.

O próprio narrador do livro no último parágrafo vai mencionar isto: Mas aqui já é outra história, a história da renovação gradual de um homem, a história do seu paulatino renascimento, da passagem progressiva de um mundo a outro, do conhecimento de uma realidade nova, até então totalmente desconhecida (DOSTOIÉVSKI, 2001, p. 561).

Como vimos, os elementos cristãos da culpa são encontrados em Raskólnikov. Sendo assim, foi possível perceber a riqueza do livro Crime e Castigo. A profunda influência cristã do autor que nós vimos no primeiro capítulo ficou bastante evidenciada. Dostoiévski era da igreja ortodoxa russa. Mesmo possuindo uma maneira diferente de fazer teologia, menos racional e mais mística, contribui bastante com a teologia cristã de uma maneira geral. O otimismo religioso de Dsotoiévski fica evidente na obra, como afirma Pondé (2013, p.46): Seu otimismo – que é característico da mística ortodoxa – aparece de forma clara no final de Crime e Castigo, naquilo que os ortodoxos chamam metanoia, um conceito grego para explicar a ideia de transformação do indivíduo a partir das contínuas visitas que Deus faz à sua alma. Portanto, podemos falar de um processo radical e constante de conversão mística. O que acontece com Raskólnikov, personagem principal de Crime e Castigo, é um processo metanoico em embrião, ainda que no caso dele não haja concordância entre os scholars de que esse processo ocorreu plenamente.

A partir do que vimos até aqui, foi possível perceber o quanto a teologia e a literatura podem contribuir uma com a outra, já que a temática da culpa da teologia cristã é bem ilustrada no livro. Discutiremos isto no próximo tópico. 5.2 teologia e literatura: um diálogo possível Há uma relação intrínseca entre teologia e literatura. O Cristianismo é conhecido como uma religião do livro. O Cristianismo sobreviveu e influenciou outras culturas através da palavra escrita. O conteúdo foi sendo repassado através dos mais variados escritos no decorrer da história (MAGALHÃES, 2009, p. 9–10). Pelo fato de o Cristianismo ser literatura, é inescapável uma leitura que não seja restrita apenas aos interesses confessionais. A importância dele é mantida, mas ele se renova nas mais diversas áreas da cultura. A salvação é retratada de maneira escrita nas mais diversas formas e estilos. De maneira bem dinâmica ela influencia a cultura e também as igrejas (MAGALHÃES, 2009, p. 12–13).

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Vários textos bíblicos influenciaram o imaginário ocidental. Uma diversidade de temas é tratada e incorporada nas vidas das pessoas; fazem parte das suas cosmovisões, ainda que não seja de maneira explícita. A influência cristã permeia toda a cultura, os valores etc. os textos bíblicos são traduzidos para a realidade social e para o imaginário das pessoas (MAGALHÃES, 2009, p. 13-14). Quanto a relação entre cristianismo e literatura, Magalhães (2009, p. 21) comenta: Essa relação entre Cristianismo e literatura, que se expressa primeiramente na fórmula Cristianismo como literatura, conhece muitos outros exemplos que vão além do livro considerado canônico. Os romances cristãos, as autobiografias de personagens da nossa história, as biografias produzidas em grande quantidade, os contos que marcaram muitos escritores ocidentais, as poesias que estão presentes em verdadeiras joias da literatura universal são exemplos de um Cristianismo que não pode ser separado da literatura. Por reconhecer essa relação intrínseca, Dostoievski pregava uma síntese entre cristandade e as grandes formas literárias.

Não há, portanto, um método único para abordar teologia e literatura. A utilização de um método vai depender do objetivo do pesquisador. Há um pluralismo teológico, bem como uma diversidade de gêneros literários, sendo assim os métodos também serão variados. Não será possível escolher o melhor método, mas sim aquele que torne possível a abordagem pretendida (MANZATTO, 2007, p. 5 – 6). Os grandes autores cristãos não estão restritos aos interesses institucionais da igreja, como afirma Kuschel (1999, p. 14): As obras dos grandes representantes da “literatura cristã” trataram de refletir sobre a problematização da fé e expressar a experiência de fragmentação e insondabilidade da existência piedosa. E isso marca uma distinção profunda entre esses escritores e uma massa de leitores ligados à Igreja, que se limitou muitas vezes a apropriar-se de forma indevida dos autores, com o intuito de apenas confirmar as próprias convicções. A “literatura cristã” é melhor do que a fama que tem.

Todas as realidades humanas, em especial a literatura, são suscetíveis a apresentar elementos da revelação de Deus. A literatura é uma criação humana, ela possui elementos que revelam informações sobre um Deus Criador. O objetivo da aproximação entre teologia e literatura é buscar o que ela tem de importante para se conhecer sobre Deus. Sendo assim, a literatura não seria um desvio, mas um dos caminhos para a reflexão teológica (MANZATTO, 2007, p. 8). Quanto a esta questão é importante observar como a teologia reformada se relaciona com a cultura, se utilizando do conceito de graça comum, quanto a isto Caldas Filho (2001, p. 3) escreve:

38 A teologia reformada se relaciona com a cultura através da doutrina da graça comum, isto é, graça para todos, não “ordinária”, a benção divina para todos indistintamente, eleitos ou não. Todas as atividades, conquistas e progressos científicos, econômicos, políticos e culturais da civilização humana têm lugar na história devido à graça comum de Deus. É o próprio Calvino quem cunha e desenvolve nas Institutas o tema da graça comum. Ele reconhece que toda e qualquer capacidade humana, em qualquer área, é dom divino, que deve ser usado para o bem-estar da humanidade.

Quando se lê um livro que possui elementos religiosos, a exemplo de Crime e Castigo, deve-se levar em conta que é possível fazer uma análise que vai além do entretenimento. Fazse necessário, portanto analisar o discurso do livro partindo dos pressupostos que já se possui sobre Deus, bem como as suas implicações para todos os seres humanos (GASPARI, 2011, p. 3). A literatura pode se tornar uma ferramenta valiosa para a teologia, ao fazer uma análise sobre o modelo da realização. Este modelo entende que a literatura atualiza, concretiza e interpreta a sua própria maneira as verdades estabelecidas pela Bíblia (MAGALHÃES, 2009, p. 181). Ao comentar sobre isto, Magalhães (2009, p. 181) faz uma definição na qual o próprio Dostoiévski se encaixaria: Nota-se aí [no modelo da realização] um reconhecimento da literatura como porta-voz da teologia, não no sentido de instrumentalização catequética de tornar a literatura serva dos interesses evangelizadores da Igreja, mas de assumir que, num mundo que se foi distanciando cada vez mais da linguagem da Igreja, a literatura trabalha de forma mais livre com as narrativas bíblicas, tornando sua compreensão mais acessível ao ser humano de hoje, que viveu um processo de secularização enorme no contexto europeu.

Portanto, uma boa teologia será capaz de dialogar com as mais diversas áreas da vida humana, especialmente com a literatura. A arte está em todos os lugares. Várias reações são encontradas no meio evangélico com relação a arte literária, alguns a rejeitam totalmente de uma maneira ingênua, fruto de uma má teologia, outros a abraçam de maneira acrítica (CALDAS FILHO, 2001, p. 6–7). Portanto, uma correta reação evangélica seria assumir a postura do diálogo entre a teologia e a literatura.

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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS No capítulo inicial, vimos que o autor era um homem de fé que desde a infância foi fortemente influenciado pelo cristianismo. A sua ida a prisão, bem como o seu próprio sofrimento serviram de base na criação da personagem. Mesmo sem ser um teólogo, no sentido estrito do termo, ele faz teologia. Em seguida, analisou-se a culpa da personagem principal, fato que é marcante como característica da mesma. Raskólnikov fracassou em se tornar um “homem extraordinário”. A culpa e o pecado estão intrinsecamente ligados, mesmo com a exclusão da religião no debate acadêmico, é possível comprovar cientificamente a maldade humana que gera a culpa. Rodion, é uma ilustração bastante adequada das consequências do pecado para o ser humano que afetou também a relação do homem consigo mesmo. Diante da análise da culpa do protagonista do livro, ficou evidente a importância da literatura para a teologia como uma porta-voz que é mais acessível as pessoas. Como vimos, a personagem principal do livro Crime e Castigo é uma ilustração adequada do conceito de culpa cristão. Vimos que as influências cristãs da obra não são por acaso, mas um reflexo da própria cosmovisão do autor. Dostoiévski também tece no decorrer do seu romance, uma crítica as correntes filosóficas de sua época: O niilismo, o racionalismo, o capitalismo, o comunismo etc; são algumas das ideias criticadas por Dostoiévski. Raskólnikov, o protagonista da história, é uma ilustração do quanto é impossível fugir da culpa. Mesmo que se relativize os valores e a moral, ainda assim a consciência continua como uma juíza implacável. O ceticismo, ou o materialismo não se sustentam diante da complexidade e imprevisibilidade da vida humana. Dostoiévski consegue através de suas personagens mostrar com precisão o quanto é impossível desvendar todos os labirintos na natureza do ser humano. Rodion é a encarnação do homem moderno, orgulhoso, prepotente, racionalista etc. Os grandes pensadores do século XIX foram responsáveis por desconstruir a religião e bani-la dos debates. O conceito de pecado é abandonado em prol de um otimismo excessivo com relação ao homem, com o desenvolvimento da ciência, novos mitos surgem. Da mesma forma que Adão, Raskólnikov tentou ser autônomo e fugir do Criador, mas só encontrou miséria, desespero, angústia e culpa.

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Por mais que os homens criem ideias e teorias que descartem a religião, não conseguem escapar da consequência delas. Raskólnikov, segundo a abordagem cristã, já é culpado por natureza, porém o seu crime aguça ainda mais o sentimento de culpa. O seu fracasso é fundamental para leva-lo a Deus, a sua conversão não se dá de maneira fácil, ele sofre, adoece, e chega ao fundo do poço. No final do livro Rodion se ver rendido ao Evangelho. A sua tese do “homem extraordinário” fracassa totalmente diante da fé sincera de uma mulher simples e sofredora. Em uma época na qual as igrejas deixam de falar da culpa para não desagradar as pessoas e pregam a Glória antes da cruz, o resultado é um cristianismo inócuo. Crime e Castigo é um antídoto contra a fé fácil. Dostoiévski é um profeta que por meio da literatura nos chama a reflexão. A obra reflete a própria vida do autor, com todos os seus dilemas e lutas, mas que foi marcado pela Graça encontrada nas páginas do Novo Testamento que recebeu na prisão. Sendo assim, é de suma importância o diálogo entre a literatura e a teologia. Ambas são diferentes, mas importantes. Uma como a porta-voz da outra, falando de maneira mais aproximada aos leigos. Ao se utilizar Dostoiévski, um autor de bastante profundidade, percebese que a literatura não precisa ser um instrumento da Igreja necessariamente. A literatura consegue um alcance maior entre as pessoas e se utiliza de uma linguagem mais pessoal. Essa pesquisa poderia ser expandida, já que a mesma analisou apenas uma das personagens, seria igualmente possível analisar a culpa em outras personagens como Marmieládov. Dostoiévski é conhecido pela profundidade dos seus livros quanto a natureza humana, Crime e Castigo possui várias personagens igualmente complexas que poderiam ser exploradas. Tratou-se aqui da questão da culpa, mas existem outros temas teológicos relevantes na obra como a salvação, arrependimento, conversão, doutrina Graça etc. A relevância acadêmica da presente pesquisa se dá pela contribuição que a mesma oferece para um maior diálogo da teologia com a literatura. Há vários trabalhos relevantes com a mesma temática, a maioria são de teólogos de linha mais liberal. Há poucos trabalhos que partam de uma teologia Reformada. Portanto, a importância das questões levantadas por Dostoiévski continuam bastante atuais e pelo fato de serem em forma de literatura criam uma ponte capaz de trazer a religião de volta aos debates acadêmicos. É notável o crescimento de uma visão de mercado dentro das igrejas evangélicas, marcada por uma visão excessivamente otimista da natureza humana. Talvez, este trabalho também possa contribuir em mostrar para a

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igreja a extrema necessidade de uma visão bíblica da natureza humana, bem como a importância de perceber a importância de se envolver com a cultura.

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