As Donas da Palavra: gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

June 3, 2017 | Autor: Daniel Simião | Categoria: Southeast Asian Studies, Domestic Violence, Gender, Anthropology of Law
Share Embed


Descrição do Produto

AS DONAS DA

PALAVRA GÊNERO, JUSTIÇA E A INVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TIMOR-LESTE

AS Donas das palavras Eduardo.indd 1

13/01/2016 16:43:17

Fundação Universidade de Brasília Reitor Vice-Reitora

Diretora Conselho Editorial

Ivan Marques de Toledo Camargo Sônia Nair Báo

Ana Maria Fernandes Ana Maria Fernandes – Pres. Ana Valéria Machado Mendonça Eduardo Tadeu Vieira Emir José Suaiden Fernando Jorge Rodrigues Neves Francisco Claudio Sampaio de Menezes Marcus Mota Peter Bakuzis Sylvia Ficher Wilson Trajano Filho Wivian Weller

Coleção NESA - Novos Estudos do Sudeste Asiático ICS

Editora:

Conselho Editorial AIA-SEAS

AS Donas das palavras Eduardo.indd 2

UnB/ AIA-SEAS/Imprensa de Ciências Sociais UnB - Brasilia; ULisboa - Lisboa Paulo Castro Seixas (ISCSP - ULisboa) Ricardo Roque (ICS - ULisboa) Rui Feijó (CES - Universidade de Coimbra) Lúcio Sousa (Universidade Aberta - Lisboa) Vicente Paulino (UNTL - Timor-Leste) Kelly Silva (UnB - Brasília)

13/01/2016 16:43:18

DANIEL SCHROETER SIMIÃO

AS DONAS DA

PALAVRA GÊNERO, JUSTIÇA E A INVENÇÃO DA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA EM TIMOR-LESTE

ICS

AS Donas das palavras Eduardo.indd 3

13/01/2016 16:43:18

Equipe Editorial Gerência de produção editorial Revisão Capa e diagramação Editoração eletrônica

Daniela Alves dos Santos Bezerra Fernanda Gomes (Njobs Comunicação) Jonatas Bonach (Njobs Comunicação) Eduardo Silva de Medeiros Copyright © 2015 by Editora Universidade de Brasília Direitos exclusivos para esta edição: Editora Universidade de Brasília SCS, quadra 2, bloco C, nº 78, edifício OK, 2º andar, CEP 70302-907, Brasília, DF Telefone: (61) 3035-4200 Fax: (61) 3035-4230 Site: www.editora.unb.br E mail: [email protected] Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser armazenada ou reproduzida por qualquer meio sem a autorização por escrito da Editora.

Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília B523

Simião, Daniel Schroeter. As donas da palavra : gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste / Daniel Schroeter Simião. – Brasília : Editora Universidade de Brasília, 2015. 352 p. ; 24 cm. ISBN 978-85-230-1171-0 1. Antropologia do direito. 2. Gênero. 3. TimorLeste. 4. Cooperação internacional. 5. Desenvolvimento. I. Título. CDU 343.55

AS Donas das palavras Eduardo.indd 4

13/01/2016 16:43:18

A Kelly. A meus pais, Cristina e Paulo.

AS Donas das palavras Eduardo.indd 5

13/01/2016 16:43:18

AS Donas das palavras Eduardo.indd 6

13/01/2016 16:43:18

SUMÁRIO MAPAS E FIGURAS ...............................................................9 LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS .............................11 PREFÁCIO ............................................................................13 APRESENTAÇÃO.................................................................19 INTRODUÇÃO ....................................................................35 CAPÍTULO 1 | Modernidades Timorenses .........................45 A dialética da modernização timorense: o dilema de Manufahi ........................................................47 Gênero e o sudeste asiático insular ....................................51 Gênero e resolução de disputas .........................................74 Violência doméstica e os processos de resolução de disputas .. 80 CAPÍTULO 2 | Acorrentadas pela Kultura: os sentidos da violência e a educação dos sentidos .......................................87 O Projeto..........................................................................89 O Distrito.......................................................................117 A Capital ........................................................................141 CAPÍTULO 3 | Construindo a violensia domestika em Timor-Leste ........................................................................ 153 O ensaio geral .................................................................159 A Partitura ......................................................................163 Primeiro movimento: Baucau e a justiça tradicional ........178 Segundo movimento: Ainaro e os serviços multissetoriais ..190 O Entreato de Micató .....................................................199

AS Donas das palavras Eduardo.indd 7

13/01/2016 16:43:18

Terceiro movimento: Maliana..........................................200 Quarto movimento: Oecussi............................................205 Último movimento: Díli..................................................209 Epílogo: uma ditadura participativa?................................210 CAPÍTULO 4 | Criadoras de caso: o lugar e o modo para resolver violensia domestika ............................................... 215 Estragada ou encrenqueira? .............................................217 Os idiomas do Tribunal...................................................220 “Como deveria ser a vida” um manual para os procuradores....253 Treinando a polícia..........................................................259 CAPÍTULO 5 | O Feiticeiro em Desencanto, o Parteiro e o Genitor: recursos ao sistema de justiça e pluralismo jurídico em Díli ................................................................................ 273 A Polícia..........................................................................277 O Tribunal.......................................................................295 A Mediação.....................................................................306 Díli: quando o feiticeiro perde sua magia.........................315 CONCLUSÃO..................................................................... 319 Em busca de uma sociedade civil.....................................321 A dimensão moral da violência........................................324 Em busca da legitimidade................................................328 Comunicação imperfeita..................................................330 Criar uma nova arena.......................................................334 Pretensão equânime: legitimidade e os usos da justiça......335 As donas da palavra..........................................................342 REFERÊNCIAS................................................................... 345

AS Donas das palavras Eduardo.indd 8

13/01/2016 16:43:18

MAPAS E FIGURAS

Mapa 1: Ilhas e países do sudeste asiático ..................................... 52 Mapa 2: O arquipélago centrista vs. o arquipélago da troca .......... 60 Mapa 3: Covalima entre os distritos de Timor-Leste .................. 121 Mapa 4: Subdistritos de Covalima ............................................. 125 Mapa 5: Principais grupos linguísticos de Timor-Leste ............... 135 Figura 1: Cartaz da campanha “Labele violensia domestika” ........ 144 Figura 2: Cena do spot de TV “Só os covardes batem em suas mulheres” ................................... 144 Figura 3: Cartaz do IRC: “Violência contra os direitos da mulher” .. 148 Figura 4: Mapping produzido pelo grupo focal em Ainaro......... 198 Figura 5: Mapping produzido pelo grupo focal em Maliana ...... 204 Figura 6: Capa do manual de treinamento a policiais ................. 264

AS Donas das palavras Eduardo.indd 9

13/01/2016 16:43:18

AS Donas das palavras Eduardo.indd 10

13/01/2016 16:43:18

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ASEAN – Association of Southeast Asian Nations APEC – Asian Pacific Economic Cooperation CAVR – Comissão de Acolhimento, Verdade e Reconciliação CEDAW – Conference on Elimination of all forms of Discrimination Against Women CNRT – Conselho Nacional da Resistência Timorense ETTA – East Timor Transitional Administration ETWAVE – East Timor Women Against Violence FALINTIL – Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste FOKUPERS – Forum Komunikasi Untuk Perempuam FNUAP – Fundo das Nações Unidas para as Populações FRETILIN – Frente Revolucionário de Timor-Leste Independente GAO – Gender Affairs Office GPI – Gabinete para Promoção da Igualdade ICRC – International Committee of the Red Cross INTERFET – International Force for East Timor IOM – International Organization for Migration IRC – International Rescue Committee JSMP – Judicial System Monitoring Program OCAA – Oxfam Community Aid Abroad OMT – Organização da Mulher Timorense

AS Donas das palavras Eduardo.indd 11

13/01/2016 16:43:18

ONG – Organização Não-Governamental OPMT – Organização Popular da Mulher Timorense PNTL – Polícia Nacional de Timor-Leste PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento RDTL – República Democrática de Timor-Leste TVTL – Rede de Televisão de Timor-Leste TOT – Training of Trainers UDT – União Democrática Timorense UNMISET – United Nations Mission of Support in East Timor UNDP – United Nations Development Programme UNFPA – United Nations Fund for Population UNICEF – United Nations Children’s Fund UNPOL – United Nations Police UNTAET – United Nations Transitional Administration in East Timor UPV – Unidade de Pessoas Vulneráveis VPU – Vulnerable Persons Unit

AS Donas das palavras Eduardo.indd 12

13/01/2016 16:43:18

PREFÁCIO Luís R. Cardoso de Oliveira O livro de Daniel Simião está destinado a ocupar um lugar de destaque nas bibliotecas de Ciências Sociais, especialmente naquelas preocupadas com a compreensão de processos de administração de conflitos e dos respectivos sensos de justiça que lhes dão sentido. Como realça o autor, sua pesquisa sobre violensia domestika tem lugar em um contexto social em franca ebulição, vivendo um processo dinâmico de formação do Estado, após longa experiência colonial, particularmente conturbada nos últimos 20 ou 30 anos. Se a análise de conflitos constitui uma situação particularmente favorável para a exposição de dilemas sociais vividos pela população, tal quadro é especialmente significativo num contexto de transição com grande abrangência e capilaridade. Se uma das características centrais dos processos de administração de conflitos é a necessidade dos atores lidarem com questionamentos a normas e padrões de interação, frequentemente reinterpretados e sujeitos à incorporação de novos significados, tal quadro é potencialmente acentuado quando desenvolvido em um universo que passa por amplo processo de transição, como é o caso de Timor-Leste. Trata-se também de um dos primeiros trabalhos de pesquisa de antropólogos brasileiros nesta região do mundo, tradicionalmente estudada por pesquisadores europeus e norte-americanos. O livro de Simião, assim como o de Kelly Silva1, são pioneiros nesse novo universo de diálogo que se abre com colegas provenientes das comunidades de antropólogos que tiveram um papel formador

1 Kelly Cristiane da Silva. As nações desunidas. Práticas da ONU e a estruturação do Estado em Timor-Leste. 1ª. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012. v. 1. 457p.

PREFÁCIO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 13

13

13/01/2016 16:43:18

na constituição de nossa disciplina. Aliás, dado o envolvimento de Simião e Silva em Redes mais amplas de pesquisadores trabalhando na região, seus trabalhos representam uma boa oportunidade para exercitar uma das modalidades do que tenho chamado de parcerias dialógicas no diálogo com pesquisadores de outras comunidades antropológicas, as quais seriam marcadas por uma relação de simetria, cujo objetivo não se restringiria à troca de dados, mas enfatizaria sobretudo a troca de perspectivas.2 Uma importante qualidade do livro está no cuidado etnográfico exercitado pelo autor na caracterização das várias situações e contextos sociais nos quais realiza a pesquisa, seja em Díli ou em localidades mais distantes do centro de poder deste novo país. O esforço em captar a multiplicidade de perspectivas em torno do tema da violensia domestika, levando a sério o ponto de vista nativo em todas as circunstâncias, que abarca aqui não apenas diferenças de gênero e região, mas também a importante visão dos representantes de organismos oficiais como a ONU e demais agentes internacionais que contribuíram decisivamente para a institucionalização do discurso do gender, como demonstra o autor. Além disto, essa diversidade nas situações de interlocução se desenvolve num universo multilinguístico no qual o pesquisador tem que dominar pelo menos 3 idiomas: o português (língua oficial do país), o inglês (língua da comunidade internacional), e o tétum (língua franca de Timor Leste). Além destes, Simião também tinha alguma compreensão de malaio ou indonésio. Ainda que essa versatilidade linguística do pesquisador não permitisse que ele interagisse sem dificuldades com toda a população, especialmente em regiões mais distantes da capital, o domínio dessas línguas lhe garantia um rico acesso à compreensão dos conflitos examinados no livro. Evidentemente, isso não quer dizer que ele tenha esgotado as possibilidades de interpretação desses conflitos ou dos pontos

2 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Dialogical and Power Differences in World Anthropologies. Vibrant — Virtual Brazilian Anthropology. V. 5, n. 2, p. 73-81, ago.-dez. 2008, ISSN 18094341. Disponível em: .

14

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 14

13/01/2016 16:43:19

de vista vigentes, mas quer dizer sim que sua etnografia demonstra com sucesso que suas interpretações encontram respaldo no ponto de vista nativo e nas condições de existência efetivamente vividas pela população pesquisada. Faço essa observação porque um dos aspectos simultaneamente mais interessantes e mais polêmicos do livro é sua interpretação, parcialmente inspirada em um importante slogan implementado pelo Gabinete para a Promoção da Igualdade (GPI), segundo o qual “a violência de gênero não faz parte da cultura de Timor Leste”. Isto é, as práticas do bater corretivo, de carácter pedagógico, tradicionalmente acionadas no país não seriam percebidas como atos de violência. O fato do referido Gabinete ser dirigido por Micató, uma líder bastante representativa das lutas pela independência do Timor Leste e pela igualdade de direitos para as mulheres, faz do slogan uma peça particularmente interessante para análise. Diferentemente do discurso do gender propagado pelos vários agentes internacionais atuando em Timor-Leste, o qual identifica qualquer agressão física contra a mulher como um ato de violência, os vários discursos da população local compartilham a preocupação de distinguir entre o bater pedagógico e o bater abusivo, que provoca insulto. Este último seria acompanhado pelos sentimentos de vergonha e humilhação, ausentes nas situações classificadas como bater pedagógico, quando a mulher teria dado motivos para a ação corretiva do marido. É esta distinção que permite compreender, inclusive, casos como o da esposa do técnico de impressão em Díli que – após 10 anos de casamento durante os quais teria sido corrigida pelo marido com agressões físicas sem que isto jamais tivesse se constituído em problema para a relação do casal – pede separação no momento em que passa a experimentar todo ato de bater como tendo um carácter abusivo, fazendo com que a dimensão pedagógica desapareça ou perca o significado até então mais usual. Embora Simião assinale que, em quase todos os distritos que participaram da consulta nacional sobre o tema da violensia domestika, teria prevalecido a ideia de que a agressão física nas relações conjugais só deveria ser criminalizada quando passasse dos

PREFÁCIO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 15

15

13/01/2016 16:43:19

limites, isso não quer dizer que os atos de agressão moderada com motivação pedagógica fossem sempre aceitos em sua plenitude, mas sim que nesses casos a agressão não provocaria vergonha ou indignação e não seria percebida como um ato de violência. Em contraposição, a etnografia chama a atenção para casos de violência simbólica, sem agressão física, envolvendo insulto moral e sofrimento para as mulheres atingidas, mas de difícil percepção para a comunidade internacional ou para o sistema de justiça estatal em Timor-Leste, que só levaria em conta a agressão física. Nesta direção, além de apresentar uma discussão crítica e criativa sobre a noção de violência, a etnografia de Simião dá uma contribuição importante para outros 3 temas inter-relacionados: o da relação entre direitos individuais e direitos coletivos; o do pluralismo jurídico; e, o da relação entre justiça e reparação. A reestruturação da justiça estatal no novo Estado Nação e seu papel privilegiado na administração de casos de violensia domestika traz novos dilemas para a população no enfrentamento de conflitos envolvendo agressões à mulher. Enquanto as várias modalidades locais de administração desses conflitos tinham como foco a recomposição das relações entre os grupos aos quais pertencem as partes, a justiça estatal criminaliza as respectivas agressões tendo como referência e objetivo a punição do culpado. Tal orientação privilegia a proteção dos direitos individuais da vítima, independentemente do feixe de relações nas quais as partes estão envolvidas no âmbito de suas comunidades de origem. Ainda que tal procedimento procure garantir a observação de direitos intrínsecos às partes, inviabiliza a definição de um desfecho que promova a recomposição da relação entre os respectivos grupos sociais. Além disso, como nos casos de alegação de estupro, por exemplo, os direitos da vítima não encontram respaldo social quando radicalmente dissociados de sua inserção na comunidade local, e a eventual prisão do suposto agressor pune o acusado mas não repara a agressão nem restaura os direitos da vítima! Isso tudo é agravado pelo fato de que em alguns desses casos trata-se de relações sexuais consentidas, mas sem o respaldo das famílias das partes, e ante a dificuldade de formalizar a relação

16

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 16

13/01/2016 16:43:19

e acordar os termos do barlaque, riqueza da noiva, o caso chega à justiça estatal que se limita a punir o acusado. Na realidade o exemplo citado reflete um processo de transformação da disputa, que sai da área cível para a penal, assim como das instituições de justiça locais para a estatal, relativamente frequente em contextos sociais em que o pluralismo jurídico está institucionalizado. Nesses contextos, quando uma das partes em litígio fica insatisfeita com as perspectivas de desfecho no âmbito da comunidade local, aciona a polícia ou o poder judiciário em que o conflito é Redefinido unilateralmente em termos mais favoráveis para aquele que toma a iniciativa nesse procedimento, ganhando contornos radicalmente distintos do problema que originou o conflito. O que chama a atenção nos casos relatados por Simião é a frequente insatisfação de ambas as partes com o desfecho produzido na justiça estatal em casos desse tipo, sugerindo que sob qualquer ângulo que se analise a administração desses conflitos seria desejável uma melhor articulação entre as instituições de justiça locais e estatais. Finalmente, os casos analisados por Simião chamam a atenção para os limites da justiça punitiva para reparar os direitos daqueles que se sentiram agredidos. Embora o contraste entre as instituições de justiça locais e estatais enfatize a diferença de foco, por um lado, na recomposição das relações entre os grupos a que pertencem as partes e, por outro lado, na proteção aos direitos do indivíduo, Simião também discute a importância da dimensão temática do reconhecimento na administração dos conflitos em tela, associada ao resgate da identidade moral ou da dignidade das partes. Nos casos em que esta é uma dimensão importante dos conflitos e das demandas das partes, a reparação dos direitos agredidos ou desrespeitados demandaria processos de elaboração simbólica e de elucidação terapêutica aos quais a justiça estatal, punitiva, é totalmente impermeável.

PREFÁCIO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 17

17

13/01/2016 16:43:19

AS Donas das palavras Eduardo.indd 18

13/01/2016 16:43:19

APRESENTAÇÃO Em 2005 defendi minha tese de doutorado junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade de Brasília, sob orientação de Luís R. Cardoso de Oliveira. O trabalho foi o resultado de quatro anos de pesquisa acerca de programas de gênero e desenvolvimento em Timor-Leste, então uma jovem nação, recém-saída de um traumático período de luta e transição para a independência. A banca de avaliação generosamente recomendou que a tese fosse publicada, coisa que eu pretendia realizar brevemente. Os anos que se seguiram, contudo, foram de intensa atividade de trabalho, o que acabou me impedindo de dedicar esforços para a publicação. Hoje, quase uma década depois de defendida a tese, o trabalho ganha, enfim, a forma de livro, conservando seu título original e praticamente o mesmo texto então apresentado. A espera, contudo, foi proveitosa, uma vez que essa publicação se dá, agora, em parceria com a Associação Ibero-Americana de Estudos do Sudeste Asiático (AIA – SEAS), a Imprensa de Ciências Sociais (ICS – Universidade de Lisboa), o Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional de conflitos (INCT – InEAC) e a Editora da Universidade de Brasília, consolidando uma frutífera interlocução com colegas de Portugal e Brasil que vem se debruçando sobre temas de estudo em Timor-Leste há mais de uma década. A escolha por manter a íntegra do texto original não foi fácil. Nos últimos dez anos muita coisa mudou em Timor-Leste, assim como o campo de estudos no país se expandiu consideravelmente. Eu mesmo desenvolvi novas pesquisas na região, trazendo dados que permitiriam adensar ou matizar muitos dos elementos desenvolvidos no texto original. Por outro lado, considerei que os aspectos centrais deste trabalho se mantém plenamente atuais e a publicação do texto com seu teor original possibilitaria à

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 19

19

13/01/2016 16:43:19

leitora e ao leitor acessar um momento específico da construção de meus argumentos, podendo acompanhar seus desdobramentos nos artigos que venho publicando com outros interlocutores, especialmente desde 2009. Ao mesmo tempo, o livro se tornaria um documento acerca de um precioso momento da vida social de Timor-Leste, retratando, em tempo presente, muitas das dinâmicas sociais próprias do primeiro ano da autodeterminação leste-timorense. Reservei-me, assim, o direito de fazer apenas pequenos ajustes e complementações, além de procurar incorporar algumas das sugestões recebidas por ocasião da defesa da tese. Nesta apresentação gostaria de enfatizar algumas dimensões que considero centrais neste trabalho. Faço-o também em resposta a críticas que o trabalho recebeu nos últimos anos, e que me parecem refletir uma compreensão equivocada do que de fato escrevi.

A invenção da violência doméstica A pesquisa de que este livro resulta tinha, inicialmente, um foco bastante claro: estudar as práticas de organizações internacionais que trabalhavam com o tema de gênero em Timor-Leste. Logo na primeira semana em campo, contudo, ficou claro que o tema central que ocupava projetos de cooperação para o desenvolvimento no país era o da violência doméstica. Esse era, portanto, o objeto de interesse de meus interlocutores, e por ele segui com a pesquisa, que acabou por se tornar uma etnografia dos processos, tensões e disputas de significado em torno da categoria de “violência doméstica”, ou, como usada por meus interlocutores, violensia domestika, de acordo com a ortografia do tétum, língua nacional leste-timorense. Meus principais interlocutores foram, portanto, os atores institucionais. Acompanhando o cotidiano dos projetos desenvolvidos pela cooperação internacional sobre o tema, tive acesso a uma Rede de atores locais, igualmente organizados em torno de instituições, que criavam uma panóplia de documentos, eventos e práticas discursivas assentadas em duas categorias

20

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 20

13/01/2016 16:43:19

centrais: gender e violensia domestika. Foi no contexto desses espaços de interlocução que tive acesso a outras narrativas públicas sobre gênero e violência (vinda de atores locais) que, aos poucos, foram delineando o percurso do raciocínio desenvolvido na tese. Dada a centralidade das categorias violensia domestika e gender, optei por mantê-las com sua grafia original, em tétum, ao longo de todo o texto. Isso me permite deixar claro que as tomo como categorias nativas, em seu sentido êmico, e não como ferramentas de análise, distinguindo-as do uso que faço de “gênero”, como conceito analítico, e “violência” em sua acepção mais comum entre nós. Um elemento central no processo descrito neste livro é o projeto modernizador que, articulando diversos atores locais e internacionais, buscava difundir em Timor-Leste as ideias-valores próprias da modernidade, em especial a noção de indivíduo e de igualdade entre homens e mulheres. Ao conjunto de práticas discursivas fundadas nessas ideias-valores atribuo o nome de “discurso do gender”. Faço-o não para estigmatizar ou reificar tais práticas, mas sim para destacar sua singularidade, enquanto um tipo de representação acerca de uma sociabilidade ideal que atravessa fronteiras nacionais e produz práticas e embates políticos locais muito semelhantes, expressivas de um conjunto de ideias com as quais, diga-se, possuo grande afinidade. Ao falar em “discurso do gender” busco, contudo, construir um estranhamento em relação a tais práticas que me parece bastante benéfico para a compreensão de seus pressupostos e, com isso, seus potenciais e limites de ação enquanto força transformadora da realidade. Faço-o, portanto, não para criticar esse discurso, mas para melhor compreender as práticas produzidas por ele, tarefa, a meu ver, inerente a qualquer boa etnografia. Isso me permite igualmente fugir das armadilhas de uma definição categórica do conceito de gênero, uma vez que o campo político e epistêmico que gira em torno desse conceito mostra a imensa variedade de interpretações e compreensões acerca do que, afinal, seja “gênero”. Quando falo, portanto, no “discurso do gender” estou me referindo a práticas discursivas que buscavam transformar

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 21

21

13/01/2016 16:43:19

a realidade local em direção a um projeto de sociabilidade fundado na ideologia individualista (DUMONT, 2000). Essa ideologia é também a base para a construção da ideia de violensia domestika. O conjunto de interlocuções que desenvolvi entre 2002 e 2003 no trabalho de campo que deu origem a esse trabalho, já me permitia ver quão pequena era a penetração dessa ideologia em muitos dos universos de relações sociais vigentes em Timor-Leste. Minhas pesquisas mais recentes, localizadas no universo de uma aldeia específica, têm reforçado cada vez mais essa constatação. Por mais problemático que seja tomar Timor-Leste como unidade de análise, podemos dizer que a ideia de um indivíduo tomado como descolado do conjunto de relações sociais conformadoras de atributos pessoais, é ainda um projeto bastante incipiente na construção da subjetividade nas aldeias timorenses.1 O valor atribuído a uma pessoa depende muito do contexto de relações no qual essa pessoa se inscreve. Vale, aqui, o mesmo que Strathern e Wagner já apontaram para outras áreas da Melanésia: a pessoa se constitui por meio das relações que estabelece.2 No caso de Timor-Leste, as alianças de casamento são centrais no estabelecimento dos valores relativos de wife-givers e wife-takers (umane e manefoun, em tétum), trazendo consigo todo um conjunto de direitos e obrigações que não são, de modo algum, atributos de um indivíduo genérico, mas de um ser relacionalmente posicionado. Nesse sentido, o processo de disseminação e sensibilização para os valores do discurso do gender, assentados na ideia de um indivíduo com iguais direitos, é um desafio e um processo em construção que encontra resistência, conflitos e tensões de várias ordens. Esta obra retrata parte dessas tensões presenciadas no primeiro ano da independência leste-timorense. A principal tensão (ou disputa de significado) sobre a qual me debruço refere-se ao sentido dado à violensia domestika.

1 SIMIÃO, Daniel. Sensibilidades Jurídicas e Respeito às Diferenças: cultura, controle e negociação de sentidos em práticas judiciais no Brasil e em Timor-Leste. Anuário Antropológico, v. 39 (2), p. 237-260, 2014. 2 Cf. STRATHERN, M.; GODELIER, M. (Org.). Big Men and Great Men: Personifications of Power in Melanesia. Cambridge: Cambridge University Press, 1991.

22

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 22

13/01/2016 16:43:19

Participando dos múltiplos espaços públicos de articulação de discursos locais sobre o tema (consultas, workshops, seminários etc.), muitos dos quais criados pelas dinâmicas próprias dos projetos de desenvolvimento estudados, observei ser comum uma interpretação segundo a qual nem todo gesto de agressão deveria ser tomado como violensia. Para uma socialidade fundada nas relações e não no indivíduo, não necessariamente a agressão física é sancionada publicamente como violência. Essa forma de interpretar a agressão intrafamiliar era percebida pelos atores que operavam com o discurso do gender e costumava ser criticada com base na ideia de que haveria, em Timor-Leste, uma excessiva “tolerância para com a violência”. Proponho, contudo, que entenderemos pouco do que efetivamente se passava se pusermos a questão nesses termos. Não se trata de haver maior ou menor “tolerância” para com a violência, mas sim de onde se localiza a fronteira que permite a significação de um ato de agressão como atitude de violência. Nesse sentido, pareceu-me mais adequado falar em violência apenas quando houvesse a percepção de que um determinado ato configurava uma atitude indevida, ou uma atitude lesiva ao sujeito, intencionalmente aplicada. O discurso do gender elaborado em torno da ideia de violensia domestika tratava justamente de construir o plano moral no qual o ato de agressão ganharia a conotação de atitude indevida e, portanto, de violência, abrindo com isso a porta para a validação social de uma nova gama de sentimentos, de outra forma não necessariamente associados à agressão física. Orientado pelos valores dessa ideologia do indivíduo e da igualdade, o discurso do gender promove um tipo de sensibilização que institui uma nova moralidade para o ato da agressão, mudando significativamente o sentido desse ato. É esse processo de transformação de moralidades orientadoras de significados que chamo de “invenção da violência doméstica”.3

3 Mais recentemente Nina Hall, argumentando a partir de uma perspectiva feminista, tem sustentado argumento similar. Cf. HALL, Nina. East Timorese Women Challenge Domestic Violence, Australian Journal of Political Science, n. 44, v. 2, 2009, p. 309-325.

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 23

23

13/01/2016 16:43:19

Faço essas observações pois, ao longo dos últimos anos, pude perceber que meu trabalho nem sempre foi bem compreendido. Em duas ocasiões Machado referiu-se a meu texto apresentando-o de maneira que, a meu ver, revela uma compreensão inadequada das ideias aqui desenvolvidas. Em texto de 2010, Machado4 faz crer que meu trabalho adota uma postura de relativismo inconsequente ao inferir que, por não significar socialmente uma atitude de violência, o ato de agressão não produziria maiores consequências para a subjetividade das mulheres timorenses. Não digo isso, nem poderia dizê-lo, uma vez que o material com o qual trabalhei, para além das distintas trajetórias de vida com que interagi, era composto por narrativas de circulação pública (falas de mulheres e homens em eventos públicos, depoimentos em registros policiais e autos processuais etc.), mais do que por narrativas pessoais sobre experiências vividas, que, mesmo presentes, eram filtradas por circunstâncias particulares. O que afirmo é que a instituição de uma nova moralidade, produtora da categoria violensia domestika, torna possível um sentimento de insulto moral que não era socialmente reconhecido até então. É nesse sentido que falo em uma “dor de novo tipo”, que se pode observar em narrativas como aquela sobre uma mulher que, circulando em ambientes fortemente marcados pela ideia de direitos individuais, sente-se envergonhada por apanhar do marido. O caso, referido por Machado, e citado no segundo capítulo deste livro, é tomado por mim como uma narrativa de terceira mão que, lida à luz das falas observadas em situações descritas anteriormente (no mesmo capítulo e no seguinte), permite compreender a importância de um enquadramento moral específico para a atribuição de significado à agressão física. Tomada isolada de seu contexto, a referência a essa narrativa pode facilmente se prestar a uma caricatura do raciocínio aqui apresentado. Contudo, é preciso analisa-la como um indício, entre outros tantos, que, em um jogo de interpretações, apontam para as condições sociais de produção do insulto moral. 4 MACHADO, Lia Z. Feminismo em Movimento. São Paulo: Editora Francis, 2010.

24

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 24

13/01/2016 16:43:19

O insulto moral, no sentido que tomo emprestado de Luís R. Cardoso de Oliveira,5 pressupõe a interpretação dada por uma pessoa ao ato de outra, como tendo a intenção de atacar sua dignidade. É, assim, uma categoria útil para falar do reconhecimento social da pessoa e daquilo que é percebido socialmente como sua substância moral digna. As narrativas observadas nesse trabalho evidenciam as diferentes formas de se estabelecer as fronteiras entre o que é ou não tomado como insulto. Assim, é interessante notar (vide as posições enunciadas publicamente por homens e mulheres no terceiro capítulo deste livro) que atos menos ofensivos à sensibilidade dos direitos individuais sejam tomados, em muitos casos, como atitudes insultantes, como a desconsideração à vontade da mulher em assuntos relativos ao cotidiano familiar, esses sim entendidos, à luz da moralidade pública vigente, como uma atitude de violensia. Ao mesmo tempo, ao manter a grafia em tétum de violensia, conseguimos estranhar mais facilmente os pressupostos dessa categoria. Fazer isso é pôr em perspectiva a forma naturalizada como alguns de nós, cientistas sociais, tendemos a lidar com a categoria “violência”, tomando-a como auto evidente e, de certa forma, reificando-a. Penso que ao criar esse estranhamento, tornamos mais evidentes as condições sociais da percepção da “violência”, contribuindo para a compreensão de processos fundamentais a qualquer projeto de transformação da realidade. Mais recentemente, ao elaborar uma oposição entre estudos antropológicos sensíveis ao diálogo com o feminismo e aqueles “que não reconhecem a dívida com os movimentos sociais feministas e de sexualidade”, Machado cita meu trabalho como exemplo deste último tipo, especialmente no sentido de ignorar a “consideração dos saberes situados dos pesquisadores e dos saberes dos sujeitos em foco, a partir de suas posições no contexto interacional e de relações de poder ou hierarquia”. Segundo Machado,6 eu

5 CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís R. Direito Legal e Insulto Moral: dilemas da cidadania no Brasil, Québec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002. 6 MACHADO, Lia Z. Interfaces e deslocamentos: feminismos, direitos, sexualidades e antropologia. Cadernos Pagu, n. 42, jan.-jun. de 2014, p. 13-46.

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 25

25

13/01/2016 16:43:19

pressuporia uma “unidade cultural” em Timor-Leste, tomando as narrativas públicas que ouvi como tradução direta do que seja a “cultura” timorense e sua relação com a violência doméstica. Para a leitora e o leitor atento desse livro, há de ficar evidente que cito, extensa e frequentemente, a ideia de que o saber produzido (pelo pesquisador e por seus interlocutores) é sempre situacional e dependente de contexto. Faço-o não só por referência a autoras do campo dos estudos feministas (Butler e Haraway, entre outras), mas por pesquisadoras que estudam o campo social do gênero nas múltiplas modernidades do sudeste asiático (Errington, Ong, Peletz e Stivens, por exemplo). É surpreendente que Machado atribua a meu trabalho a qualidade de tomar a “cultura” como uma entidade reificada. Um movimento central neste livro trata justamente de descrever e analisar as disputas locais sobre o sentido da “cultura timorense” e o lugar da violensia domestika nessa “cultura”. Exploro, em especial no segundo capítulo (retomando o tema na conclusão), o slogan criado pelo Gabinete para a Promoção da Igualdade, GPI (violensia basea ba gender la’os parte kultura Timor-Leste nian), indicando que se tratava justamente de abrir uma discussão acerca de que práticas caracterizariam a kultura timorense. Para deixar evidente que tomo kultura como categoria nativa (sobre a qual se desenrola uma intensa disputa política e simbólica), adotei, para a atual publicação, a grafia da palavra tal como usada em tétum: kultura.7 Com isso, tal como originalmente fiz com gender e violensia domestika, deixo mais claro que se trata de estudar a vida social dessas categorias em um campo em transformação, evitando, assim, o possível mal-entendido de que esteja pressupondo a existência de uma cultura timorense

7 Mais recentemente, Kelly Silva e eu exploramos justamente algumas das várias dimensões dessa disputa de significados sobre a “tradição” timorense. Cf. SILVA, Kelly; SIMIÃO, Daniel. Coping with “traditions”: the analysis of East-Timorese nation building from the perspective of a certain anthropology made in Brazil. VIBRANT, Virtual Brazilian Anthropology, Brasília, v. 9, n.1, jun. 2012. Kelly Silva desenvolve essa reflexão em outro texto indicando como ela produz uma kultura, com “k”, semelhantemente ao kastom melanésio. Cf. SILVA, Kelly. O governo da e pela kultura. Complexos locais de governança na formação do Estado em Timor-Leste. Revista Crítica de Ciências Sociais, v. 104, 2014, p. 123-150.

26

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 26

13/01/2016 16:43:19

uniformatada e homogeneamente experimentada. Isso não impede, contudo, que me refira a universos de significados compartilhados que trazem consequências para o sentido atribuído localmente a distintas práticas de justiça, como veremos mais abaixo. Nesses casos, posso me referir a um “contexto cultural”, sem pressupor que ele imponha um consenso geral pacificado sobre as interpretações a serem dadas, por exemplo, à agressão interpessoal. Assim, afirmo na conclusão desta obra: Ao inventar a violensia domestika, o discurso do gender torna viável uma dor de novo tipo, própria de quem se sente insultado; uma dor que não tem existência ontológica, mas que só existe na medida em que a instituição de um novo conjunto de valores altere a dimensão moral do ato de agressão. Assim, sob um certo ponto de vista, não poderia ser mais acertada a frase de Micató [o slogan do GPI]. Até aquele 25 de novembro de 2002, a violensia domestika certamente não fazia parte da kultura de Timor-Leste. Quando escrevo isso, não estou, de modo algum, dizendo que as mulheres timorenses não sentiam dor quando apanhavam de seus maridos, nem que tivessem, por uma razão “cultural” qualquer, uma maior predisposição para aceitar esse tipo de comportamento. Isso seria uma postura de relativismo cultural ingênuo e inconsequente, que, quero crer, a leitura atenta deste livro facilmente desmentirá. O que afirmo é que, por um lado, a dor possui vida social, e o insulto moral, como todo produto de interpretação simbólica, depende de significados sociais localizados. Por outro lado, estou a dizer que a esfera pública timorense, em 2003, era o palco de uma intensa disputa pelos significados do que fosse a kultura e de qual seria (ou deveria ser) seu posicionamento diante do conjunto de valores subjacentes à violensia domestika. Dito de outra forma, por um lado, esse livro é uma etnografia sobre o papel das narrativas de gênero (dentre as quais o discurso do gender) naquilo que Kelly Silva vem chamando de “processos

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 27

27

13/01/2016 16:43:19

de invenção, transposição e subversão da modernidade”. E por outro lado, é também uma etnografia acerca da reinvenção da kultura. O que faço aqui é uma descrição de discursos enunciados por atores localizados (homens e mulheres) em contextos de interação que explicito tanto na introdução da obra quanto em cada um de seus capítulos – contextos que dependiam muito de minha posição (igualmente explicitada e considerada) enquanto homem e estrangeiro. Tais narrativas, produzidas em situações criadas pelas práticas de cooperação internacional (workshops, consultas, lançamentos de campanhas e publicações etc.) nos ajudam a compreender melhor as tensões que operavam em diferentes níveis da esfera pública leste-timorense em 2003. Um dos discursos aí presentes (à época, o mais recorrente nos eventos acompanhados no interior do país) postulava situações nas quais o ato de agressão não significava, necessariamente, violência. Na Díli de 2003 eram muitos os atores que contestavam esse discurso. A etnografia que apresento aqui detalha práticas produzidas por esses discursos e que tinham como um de seus focos de ação a transformação de um conjunto de representações reificada na forma de uma kultura.

Justiça(s) Ao lado da discussão sobre os sentidos da violência, um outro debate marca essa etnografia: aquele acerca dos sentidos de justiça. As práticas de invenção da violensia domestika em Timor-Leste implicavam, igualmente, um esforço de transposição dos processos para uma arena regulada pelo Estado, por meio de um sistema legal e judicial moderno, em contraste com as diversas formas locais de resolução de conflitos, vigentes nas aldeias e sukus de Timor-Leste. Com isso, a pesquisa me aproximou dos estudos sobre formas de resolução de conflitos, levando-me ao encontro de um rico (e, nos últimos anos, crescente) campo de interlocução entre antropologia e direito. Nesse sentido, a pesquisa retrata dois aspectos centrais da questão. Em primeiro lugar, vemos como o campo de tensões

28

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 28

13/01/2016 16:43:19

políticas dentro do qual se desenhou um modelo de funcionamento do sistema judicial no início dos anos 2000 (modelo que sofreu algumas inflexões ao longo dos últimos dez anos) mostrava-se avesso ao reconhecimento de outras sensibilidades jurídicas8 que não aquela própria do direito positivo de matriz civilista. Como resultado, o modelo de funcionamento das instituições de justiça acabava se distanciando das expectativas de justiça das pessoas que a ele recorriam, uma vez que estas estavam habituadas a outras formas de equacionamento de seus conflitos, bem menos marcadas pela ideologia individualista, como dito acima. Evidentemente isso trazia consequências para a forma como os resultados dos julgamentos eram percebidos pelas partes, especialmente nos casos de violensia domestika. Por outro lado, a etnografia indica formas comuns de subversão do modelo de justiça formal, então recorrentes, que aproximavam a atuação de policiais e juízes das práticas de mediação feitas nas aldeias e sukus, práticas que faziam mais sentido para as expectativas de justiça das partes, mas eram duramente criticadas por agentes de modernização. Nos últimos anos tenho investido bastante em explorar as tensões entre as formas de justiça recorrentes em Timor-Leste, especialmente os conflitos entre sensibilidades jurídicas subjacentes às práticas estatais de justiça e as formas locais de resolução de conflitos, com pouco amparo legal, mas grande legitimidade local.9 Somente cinco anos após a conclusão da tese tive condições de construir um universo de interlocução denso em uma aldeia timorense (o suku de Lisadila, em Maubara), o que me tem permitido, somente agora, acompanhar práticas locais de resolução de conflitos. Certamente isso me faz rever algumas das observações postas no texto de 2005, contudo, pelas razões expostas no início dessa apresentação, prefiro oferecer à leitora e ao leitor o texto original, deixando para os artigos

8 Tomo a noção de sensibilidade jurídica no sentido dado por Geertz, em: GEERTZ, C. Local Knowledge: fact and law in comparative perspective. In: ______ .Local Knowedge: further essays in interpretative anthropology. New York: Basic Books, 1983. 9 Ver como exemplo: SIMIÃO, Daniel. Sensibilidade Jurídica e Diversidade Cultural: dilemas timorenses em perspectiva comparada. In: SILVA, Kelly; SOUSA, Lucio. (Org.) Ita Maun Alin: o livro do irmão mais novo. Lisboa: Colibri, 2011.

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 29

29

13/01/2016 16:43:19

que venho publicando mais recentemente a revisão de algumas das dimensões aqui analisadas. Um elemento central da análise, contudo, continua válido: o de que mais do que um choque de paradigmas entre duas formas de justiça, tínhamos em Timor-Leste, em 2003, a construção de práticas híbridas de justiça, com recurso a saberes judiciais que incorporavam modos de ser e estar no mundo muitas vezes não previstos na legislação importada por assessores internacionais. Nos usos feitos pela população de Díli dos recursos judiciais, no modo como a justiça de Estado era incorporada pelos seus habitantes, os modos locais e o sistema formal de justiça não se antagonizavam, mas se sobrepunham. Eram formas diferentes de se buscar solução para casos de diferentes tipos, ou que demandam diferentes tratamentos, e os habitantes de Díli aprenderam rapidamente a circular entre uma e outra forma. Ao mesmo tempo, a realidade timorense permite evidenciar os limites da judicialização de conflitos em relações persistentes. Por envolver sujeitos que se constroem por meio de uma teia de relações, como indicado acima, os conflitos a serem julgados em Timor-Leste frequentemente implicam pessoas previamente relacionadas, muitas vezes por vínculos familiares. Aqui os limites que um modelo judicial fundado no indivíduo e nos direitos individuais tem para o equacionamento adequado dos conflitos ficam ainda mais evidentes. Nesse sentido, os processos locais de mediação muitas vezes têm um potencial muito maior para atender a dimensão do reconhecimento10 – a dimensão pela qual as partes desejam sentir-se adequadamente ouvidas e ter suas demandas tratadas com a devida consideração. Tal observação desdobrou-se em estudos feitos no Brasil entre 2006 e 2013, por mim e outros colegas, visando justamente avaliar os limites da judicialização para a percepção da justiça nos casos da nova legislação brasileira de combate à violência doméstica, a Lei Maria da Penha, promulgada em 2006.11

10 Penso particularmente nas três dimensões temáticas identificadas por Cardoso de Oliveira (2004), usualmente presentes em causas judiciais: a dimensão dos direitos, dos interesses e do reconhecimento. 11 Ver como exemplo: RIFIOTIS, Teophilos. Judicialização das relações sociais e estratégias de

30

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 30

13/01/2016 16:43:19

Novamente, devo ressalvar aqui que não se trata de advogar pela simples defesa de práticas locais de mediação em casos de violência doméstica, ou de edulcorar as formas locais de mediação e julgamento, como se as mesmas promovessem uma recomposição harmônica de relações, que agrade a todos. Trata-se, isso sim, de descrever, etnograficamente, as contradições do processo de implantação de uma justiça formal e os impactos disso para as pessoas (em especial as mulheres) que se veem envolvidas nesse processo. De certa forma, os resultados dessa preocupação podem ser sintetizados em passagem da conclusão deste livro: No campo que articula gênero e justiça na sociedade civil emergente em Timor-Leste, há uma negociação em curso para a construção do interesse público. Os atores que poderiam compor esse campo, contudo, não falam de igual para igual. De um lado, as autoridades tradicionais seguem dando vida às formas locais de resolução de conflitos, mas sem reconhecimento oficial. De outro, com poder político, mas sem tanta capilaridade, o discurso do gender busca se afirmar como uma narrativa hegemônica para a construção e resolução de casos na área da violensia domestika. Ao prescindir, contudo, de uma conversa a sério com os operadores das formas locais de justiça, esse discurso se distancia da possibilidade de construção de um modelo verdadeiramente consensual.12

reconhecimento: repensando a ‘violência conjugal’ e a ‘violência intrafamiliar’. Revista Katálysis, Florianópolis, v. 11, n. 2, p. 225-236, 2008. Ver ainda: SIMIÃO, Daniel; CARDOSO DE OLIVEIRA, L. Roberto. Judicialização e estratégias de controle da violência doméstica: a suspensão condicional do processo no DF entre 2010 e 2011. No prelo. 12 Certamente a realidade presente em Timor-Leste é distinta daquela de 2003, havendo já experiências de construção dialógica de espaços compartilhados de justiça. Um retrato mais atualizado disso pode ser visto em: UNDP – Timor-Leste. Breaking the cycle of Domestic Violence in Timor-Leste: access to justice options, barriers and decision-making processes in the context of legal pluralism. Díli, out. 2013. Disponível em: . Acesso em: 8 fev. 2015.

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 31

31

13/01/2016 16:43:19

Agradecimentos Por fim, registro aqui meu profundo agradecimento a um conjunto de interlocutores, colegas, amigos e instituições que marcaram, não só a pesquisa original que resulta neste livro, mas toda a trajetória de estudos sobre Timor-Leste que venho percorrendo na última década. Antes, contudo, agradeço aos apoios institucionais que viabilizaram a publicação dessa obra, em especial ao INCT-Ineac e ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade de Brasília. A Luís Roberto Cardoso de Oliveira, agradeço pela cuidadosa orientação deste trabalho, quando de sua produção enquanto tese, bem como pela continuada disposição para o diálogo, mais recentemente, como colega de departamento e de núcleo de estudos. Aos membros da banca que avaliou a tese, Roberto Kant de Lima, Mariza Correa, Wilson Trajano Filho e Gustavo Lins Ribeiro, agradeço as leituras atentas e valorosas contribuições, que procurei incorporar na presente publicação. Nos últimos dez anos, a interlocução com colegas de outros países que têm em Timor-Leste uma referência de pesquisa tem sido fundamental. No nome de Paulo Castro Seixas – a quem conheci ainda em campo, em 2003, e que muito me estimulou a ampliar universos de interlocução – agradeço a todos os colegas da Associação Ibero-Americana de Estudos do Sudeste Asiático (AIA – SEAS). Espero que parcerias como a publicação da série que este livro inaugura, sejam mais um passo em uma frutífera trajetória conjunta. Foram ainda importantes os apoios do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília, do Darwin College e da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, da OIKOS e da Oxfam, em Timor-Leste, da Universidade Católica de Brasília (UCB) e da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Sou grato à CAPES e ao CNPq pelo apoio com recursos de bolsas de pesquisa. Mais recentemente, muitos dos desdobramentos temáticos originados desta pesquisa puderam ser levados adiante graças ao apoio do Instituto de Estudos Comparados em Administração 32

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 32

13/01/2016 16:43:19

Institucional de Conflitos, INCT/InEAC. A importância do InEAC para minha trajetória de pesquisa se dá ainda pelo fundamental espaço de interlocução aberto com colegas de várias regiões do Brasil e do exterior, que vêm trabalhando sobre o tema da resolução de conflitos. No nome do incansável Roberto Kant de Lima, agradeço a todos os colegas do Instituto pela oportunidade de partilhar essa rica e efervescente experiência de produção intelectual. Registro ainda outros importantes espaços de aprendizagem conjunta que me permitiram compartilhar e discutir aspectos importantes das questões inicialmente levantadas neste trabalho. Meus agradecimentos aos colegas do Núcleo de Estudos de Populações Tradicionais e Quilombolas (NuQ – UFMG), do Núcleo de Estudos da Mulher (NEPEM – UFMG), do Laboratório de Estudos da Cidadania, Administração de Conflitos e Justiça (CAJU – UnB) e, mais recentemente, do IRIS – Laboratório de Imagem e Registro de Interações Sociais (DAN/ UnB), com quem tenho aprendido outra linguagem possível para a produção e comunicação do saber antropológico. Interlocuções importantes também se deram em outros espaços, em especial com colegas como Theophilos Rifiotis, Ana Lúcia Schritzemeyer, Alcida Ramos, Roque Laraia, Mariza Peirano, Adriana Piscitelli, Leo Howe, Marylin Strathern, Heloísa Pontes, Bibia Gregori, Marília Gomes de Carvalho, Patrice Schuch, Juliana Melo, Marlise Matos, entre outros. A todas e todos, meu muito obrigado. Outros interlocutores timorenses e brasileiros têm sido importantes para entender os dilemas de justiça no país. Nos nomes de Ana Pessoa, Dionísio Babo, Afonso Prado e André Girotto registro meu agradecimento a todos. Registro ainda o apoio e a abertura dados pelo pessoal do Gabinete para a Promoção da Igualdade, em 2003, para a realização dessa pesquisa. No nome de Micató, agradeço a todos. Aos amigos que fui descobrindo em Timor-Leste, ao longo de uma década de pesquisa na região, mais do que gratidão, registro a alegria de compartilhar a amizade, em especial com Maria Amado, Rui Pinto e Paula Sequeira, João Dias, Lúcia Serralheiro,

APRESENTAÇÃO

AS Donas das palavras Eduardo.indd 33

33

13/01/2016 16:43:19

José Levi e Simone de Assis, Flaviano Carion e família, Estevão dos Santos e família, Alessandro Bicca e Joana Saraiva, dentre tantos outros que dificilmente poderia nominar por completo. Meus pais, Cristina e Paulo, e meus sogros, Sandra e Caetano, foram fundamentais para a segurança afetiva necessária a um empreendimento destes. A meus pais devo ainda a inquietação pela compreensão do mundo social e o desejo de contribuir para sua transformação. Espero poder fazê-lo, de alguma forma, com a serenidade de meu pai e a perseverança de minha mãe. A minha mãe, Cristina, todo meu reconhecimento. Um agradecimento especial cabe a uma pessoa sem a qual Timor-Leste não teria entrado em meu universo de interlocução. Kelly Silva, companheira de duas décadas, cumpriu um importante papel de abrir uma nova trilha para nossa aventura antropológica, pondo-nos o desafio de pesquisar uma realidade com a qual, há pouco mais de uma década, não tínhamos a menor familiaridade. Estar ao seu lado ao longo dessa trajetória tem sido um privilégio e um prazer. À Kelly todo meu reconhecimento.

34

AS DONAS DA PALAVRA Gênero, justiça e a invenção da violência doméstica em Timor-Leste

AS Donas das palavras Eduardo.indd 34

13/01/2016 16:43:19

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.