AS ESCRAVAS DE BELO MONTE: APONTAMENTOS SOBRE A COBERTURA DA IMPRENSA ACERCA DO TRÁFICO DE PESSOAS NA REGIÃO DE ALTAMIRA-PA

May 30, 2017 | Autor: Débora Gallas | Categoria: Jornalismo, Mulher, Belo Monte Dam, Estudos Sobre Jornalismo Ambiental
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AS ESCRAVAS DE BELO MONTE: APONTAMENTOS SOBRE A COBERTURA DA IMPRENSA ACERCA DO TRÁFICO DE PESSOAS NA REGIÃO DE ALTAMIRA-PA Ângela Camana1 Débora Gallas Steigleder2 Resumo: O trabalho propõe uma reflexão a partir da cobertura da imprensa sobre o tráfico de pessoas e escravização destas na região da construção da Usina de Belo Monte, em Altamira-Pará. Objetiva avaliar se a cobertura jornalística compreende a complexidade da opressão e da objetificação a que mulheres e meio ambiente são submetidos enquanto parte da sociedade androcêntrica e patriarcal. O objeto se constitui de notas e reportagens veiculadas sobre a situação nos três principais portais de notícias do país, o G1, o UOL e o Terra, durante um mês, a partir de 14 de fevereiro de 2013. Partindo da concepção de que a exploração da natureza e das mulheres tem como origem o androcentrismo, propõe uma análise qualitativa dos textos coletados. Aborda, a partir de Traquina (2005), Girardi (2006) e Bueno (2009), a concepção de jornalismo e as suas características e funções. O estudo justifica-se pela carência de análises acadêmicas sobre o nível crítico da abordagem midiática referente ao modelo de exploração referido. Palavras-chave: Jornalismo. Internet. Tráfico. Mulher. Belo Monte.

Introdução Podemos dizer hoje que participamos de uma sociedade marcada por profundas rupturas e constantes transformações: nunca antes o nosso planeta foi habitado por 7 bilhões de pessoas, as quais vivem sob o paradigma da velocidade e simultaneidade, valores os quais são vistos como necessários para a continuidade da produção de bens e do consumo destes – sejam necessários para a subsistência humana ou sirvam apenas para seu lazer e comodidade. Para manter toda essa atividade e consagrar o nosso modo de vida, hoje temos que o consumo de energia na Terra é, em média, dez vezes superior ao que era o consumo do homem primitivo (GOLDEMBERG, 2008, p. 172). Apesar do apelo por desenvolvimento sustentável, o Brasil ainda tem como prática a utilização de fontes de energia cuja produção impacta o meio ambiente, sendo aquela proveniente de usinas hidrelétricas a mais recorrente. Embora definida pelo governo brasileiro como limpa e renovável, a geração de energia nas 929 hidrelétricas do País – que correspondem a quase 71% da capacidade nacional3 – impacta as

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Jornalista pela UFRGS e mestranda em Comunicação e Informação pela mesma instituição. Bolsista Capes. Estudante de Ciências Sociais no IFCH/UFRGS. E-mail: [email protected] 2 Jornalista pela UFRGS e mestranda em Comunicação e Informação pela mesma instituição. E-mail: [email protected] 3 Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2013.

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comunidades situadas no entorno. Além de afetar o curso de rios e interferir nos ecossistemas, provoca mudanças sociais que exigem adaptação imediata, como a desapropriação de terrenos. Por este motivo, a construção da usina de Belo Monte na região de Altamira (Pará), ao longo do Rio Xingu, é criticada desde seu início, após ser arrematada pelo Consórcio Norte Energia S/A em leilão ocorrido em abril de 20104. A obra foi interrompida diversas vezes, sobretudo por populações indígenas locais, que alegam o prejuízo de suas atividades de subsistência e a ausência de consulta aos povos sobre a realização de empreendimentos hidrelétricos na Amazônia, e por trabalhadores grevistas, que reclamam das condições de alojamento e reivindicam reajustes dos valores recebidos. Mais recentemente, em meio às afirmações do Governo Federal de que as paralisações dos trabalhos em Altamira já totalizam 92 dias e atrasam o cronograma5 – a perspectiva era que Belo Monte entrasse em operação em 2015 –, outra polêmica envolveu a usina: a exploração sexual de 15 mulheres e uma garota menor de idade no canteiro de obras. Em 18 de fevereiro de 2013, cinco dias após a descoberta, o Ministério Público Federal iniciou investigação, que acusou seis pessoas. A denúncia foi acatada pela Justiça Federal mais de um mês depois 6. Os réus são Claci de Fátima Morais da Silva, Adão Rodrigues, Solide Fátima Triques, Moacir Chaves, Carlos Fabrício Pinheiro e Adriano Cansan. As vítimas eram naturais dos estados do Sul (Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) e partiam ao Norte por influência dos aliciadores, que afirmavam haver bons empregos na região. Ao chegarem a Belo Monte, eram aprisionadas na Boate Xingu. Apesar da comprovada existência de violação aos direitos humanos em área de empreendimento administrado pelo Governo Federal, este não foi um dos motivos para interrupção das obras. Diante da continuidade da tramitação do processo na Justiça Federal de Altamira e do número cada vez menor de informações sobre o andamento do caso nos tribunais, nosso objetivo é analisar se a imprensa acompanha os dois fenômenos de exploração identificados neste caso: a construção da terceira maior usina hidrelétrica do mundo na fragilizada Floresta Amazônica e a escravidão a que mulheres e jovens são submetidas nessa mesma região.

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As obras são executadas pelo Consórcio Construtor Belo Monte, contratado pela Norte Energia e composto pelas construtoras Andrade Gutierrez, Camargo Corrêa, Odebrechet, Queiroz Galvão, OAS, Contern, Galvão, Serveng, J. Malucelli e Cetenco. Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2013. 5 Disponível em: . Acesso em: 24 jun. 2013. 6 Disponível em: . Acesso em: 18 jun. 2013.

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Diante deste cenário, consideramos a dominação masculina da sociedade, vigente há milênios (GARCIA, 2012), e a valorização do desenvolvimento econômico sob uma perspectiva tecnicista. Refletimos, assim, sobre o papel do jornalismo para o fomento da cidadania (GIRARDI, 2008) e para a conscientização do público sobre os problemas socioambientais vigentes.

Ótica jornalística sobre a exploração: desafios ecofeministas De um lado, o desejo de progresso e qualidade de vida e os desenvolvimentos técnicos e tecnológicos que propiciam tais confortos à Humanidade. De outro, o comprometimento da biodiversidade e dos recursos naturais como ônus pelo ideal moderno de crescimento econômico. Nesse processo excludente, que gratifica quem tiver o controle da produção e mais condições para consumir, os grupos minoritários da sociedade são dizimados lado a lado com a natureza. Para Bueno (2009, p. 117), meio ambiente pode ser definido como [...] o complexo de relações, condições e influências que permitem a criação e a sustentação da vida em todas as suas formas. Ele não se limita apenas ao chamado meio físico ou biológico (solo, clima, ar, flora, fauna, recursos hídricos, energia, nutrientes etc.), mas inclui as interações sociais, a cultura e expressões/manifestações que garantem a sobrevivência da natureza humana (política, economia etc.).

A partir desse conceito, o Jornalismo Ambiental surge como perspectiva alternativa frente à realidade de destruição da natureza. A prática jornalística, segundo Traquina (2005), é marcada por um ethos, ou conjunto de orientações profissionais que definem o campo, que estabelece duas liberdades: a positiva, em que o jornalista deve “equipar os cidadãos com as ferramentas vitais ao exercício dos seus direitos e voz na expressão de suas preocupações” (p.129), e a negativa, segundo a qual o jornalista deve ser o guardião dos cidadãos e defendê-los dos interesses daqueles que detêm o poder. O Jornalismo Ambiental segue essa determinação por acreditar em uma prática, além de informativa, também educativa e política, capaz de mobilizar o público e trabalhar a consciência de sua cidadania. Neste sentido, Bueno (2009) atenta para o conceito de desenvolvimento sustentável divulgado de forma genérica pela imprensa, que normalmente o aborda como um problema de gestão empresarial, e não uma questão complexa que depende da participação de toda a sociedade e da adoção de um novo paradigma para ser concretizada. Entendemos que fazer jornalismo ambiental hoje é adotar outra visão de mundo, pelo viés do pensamento complexo e da sustentabilidade, que são correntes até de inspiração biológica, mas comprovadamente ampliadoras da visão humana sobre o planeta e os fenômenos. Tais paradigmas também podem hibridizar o fazer jornalístico, abrindo horizontes para a forma de abordagem do que acontece à nossa volta. (GIRARDI; SCHWAAB; MASSIERER, 2006, p.10).

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Já em 1982, Fritjof Capra apontava para o emergir de um novo paradigma, no qual a humanidade ciente de sua condição no planeta e das inter-relações indivíduo-natureza. Neste novo modo de pensar e agir, o próprio fazer-se do jornalismo deveria se reposicionar, rompendo com a visão fragmentada dos fatos e adotando novos valores, que proporcionem uma concepção holística e complexificada. Chamaremos aqui, assim como Capra (2012), este novo paradigma de ecologia profunda, pois – ao contrário da ecologia rasa – esta visão de mundo não separa a humanidade e a natureza, mas percebe a teia de relações entre elas, sem hierarquias. Um debate que ganha força ao tratarmos das premissas da ecologia profunda diz respeito aos valores que se inserem nesta perspectiva, agregando dimensões a este paradigma. É pensando sob a ótica das relações de poder que surge o ecofeminismo. Os ecofeministas veem a dominação patriarcal de mulheres por homens como o protótipo de todas as formas de dominação e exploração: hierárquica, militarista, capitalista e industrialista. Eles mostram que a exploração da natureza, em particular, tem marchado de mãos dadas com a das mulheres, que têm sido identificadas com a natureza através dos séculos. (CAPRA, 2012, p.27).

Garcia (2012) coloca que é difícil saber se há uma relação histórica no surgimento da exploração da natureza e da mulher. Porém, a autora aponta que a divisão social do trabalho após o período neolítico, que colocou a mulher no âmbito privado, a deixa tão passiva quanto a natureza, explorada à medida que o homem passa a ocupar os espaços públicos. Neste sentido, ela destaca a importância de uma atitude de empoderamento feminino e de atenção ao meio ambiente para reverter os prejuízos da dominação milenar masculina. “Sem imprimir uma nova sensibilidade ecofeminista aos projetos de desenvolvimento, teremos as críticas economicistas que entendem a Natureza como um mero ‘recurso’ à disposição dos humanos” (GARCIA, 2012, p.118). A ideia central do ecofeminismo é que classismo, racismo, sexismo, heterossexismo e especismo estão interconectados e se originam da mesma matriz: a lógica que entende a relação como dominação, portanto, é a matriz geradora dos ovos da serpente que precisa ser exterminada através da ruptura com a lógica dualista. (GARCIA, 2012, p.75).

É necessário que os jornalistas tenham consciência dessa realidade e não despolitizem sua cobertura a respeito dos temas ambientais, levando em conta que a exploração também é realizada pela Humanidade em relação a seus semelhantes. Para Girardi, Schwaab e Massierer (2006), o Jornalismo Ambiental é aquele capaz de enxergar a teia da vida, dotado de uma visão global e de uma linguagem capaz de ser compreendida por todo o público heterogêneo que consome a notícia. Nesse contexto problemático, o ecofeminismo é, portanto, a ferramenta que permitirá a superação

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das dominações e a emergência de um paradigma que visualize de forma crítica as relações ambientais e sociais. A polaridade masculino-feminino corresponde a uma polarização ainda maior da mente e natureza, razão e sentimento, objetivo e subjetivo no desenvolvimento da ciência moderna. [...]. A ciência conjuga-se com a masculinidade. A afinidade mulher e natureza revela o papel da mulher no aparato conceitual identificado com o homem e o monopólio masculino do sistema simbólico. (GARCIA, 2012, p.94).

Dado o exposto, partimos agora para a averiguação das notícias publicadas sobre o tráfico de mulheres e a dominação do ambiente em Altamira (Pará). A partir da leitura dos textos, verificaremos se o jornalismo praticado cumpre com suas funções, promovendo uma compreensão global do contexto da exploração em Belo Monte.

Enunciados do jornalismo: alguns apontamentos Para analisarmos a cobertura da imprensa sobre o caso, optamos por avaliar os textos publicados nos principais portais de notícias do país , G1, UOL e Terra, de 14 de fevereiro de 2013, data em que a denúncia sobre a exploração foi publicada, a 14 de março de 2013. O objetivo é avaliar como o assunto desdobrou-se ao longo de um mês. A escolha dos veículos é baseada no grande número de acessos que possuem: segundo dados de pesquisa do Ibope de 2009, divulgada pelo Portal Imprensa7, a página noticiosa brasileira mais acessada é o UOL (com 26,8 milhões de unique visitors/mês); o Terra figura em terceiro lugar (com 22,1 mi); e a Globo, cujo portal de jornalístico é o G1, fica na quarta posição (com 21,7 mi). Assim como UOL, vinculado ao Grupo Folha, o G1 representa a porção da imprensa tradicional (grandes grupos que detêm emissoras de rádio, televisão ou publicações como jornais ou revistas) que transpõe o conteúdo off-line para suportes virtuais. Já o Terra foi pioneiro da prática do jornalismo na rede no Brasil, posteriormente expandindo a marca para outros empreendimentos. Os textos que compõem o corpus deste trabalho foram obtidos através da pesquisa pelas palavras-chave “Belo Monte”, diretamente nos buscadores dos portais, pelo período de tempo definido. Os resultados foram refinados após uma leitura flutuante de cada texto, sendo eliminados os que não abordavam – direta ou tangencialmente – o caso que aqui abordamos. No G1, a busca por palavras-chave gerou 62 resultados. Destes, 15 referiam-se ao assunto de nosso interesse. No UOL, de 22 resultados totais, 10 faziam parte do caso estudado. Já no Terra,

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Disponível em . Acesso em: 20 jun. 2013.

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o número de resultados é mais limitado: de um universo de oito reportagens, sete são relacionadas à exploração sexual na imediações de Belo Monte. Das 15 notícias encontradas no portal G1, 13 delas possuem uma abordagem exclusivamente factual, informando a situação e a atualizando, por exemplo, com novas informações sobre os suspeitos e o retorno ao Sul das mulheres e da travesti mantidas em cárcere privado. As fontes ouvidas são de caráter oficial, como o delegado responsável pelo caso, procuradores do Ministério Público e integrantes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Tráfico de Pessoas. Já notícia Governo anuncia metas para combater tráfico de pessoas 8, publicada em 26 de fevereiro, não aborda diretamente a situação ocorrida em Altamira, mas a utiliza como ‘gancho’ para tratar das políticas públicas lançadas pelo governo federal. Neste texto, o qual possui caráter informativo, fica clara a relação com o caso na afirmação: “O governo também quer elaborar e aprovar proposta para punir empresas e instituições financiadas ou apoiadas com recursos públicos, inclusive as que executam grandes obras governamentais no Brasil, que tenham sido condenadas em processos de tráfico de pessoas.”. Entretanto, não são apresentadas reflexões ou questionamentos sobre o fato acontecido em Belo Monte, relacionando a exploração do ambiente (que se dá a partir de uma “grande obra governamental”) com o tráfico de pessoas. Ainda no G1, Obras de Belo Monte podem parar se for comprovada conivência com o tráfico9, publicada em 4 de março, é a única notícia que parece fugir do mero factual, explorando as possíveis repercussões do caso. A única fonte ouvida é o deputado Arnaldo Jordy, presidente da CPI do Tráfico de Pessoas (o Consórcio Construtor de Belo Monte não quis se manifestar), que defende uma rígida investigação. Jordy acredita que o requerimento [que convoca a empresa responsável a depor na CPI] será aprovado pelos membros da comissão. “Não tem como admitir um bordel dentro da área da empresa, que foi uma concessão pública, de utilidade pública, funcionando dentro do local”, afirma o deputado. “É impossível a empresa não ter nenhum tipo de culpa. Tem que passar por duas guaritas da empresa para chegar no local. É uma situação inadmissível”, relata Arnaldo Jordy. “Dependendo das explicações, vamos avaliar que procedimentos tomar, dentre eles, inclusive, a paralisação da obra até que as condicionantes possam ser observadas”, afirma.

Apesar das falas do deputado, que abrem margem para uma gama de reflexões, a notícia não as faz, limitando-se a retomar o caso e oferecer os links para textos antigos. Assim, no G1,

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Disponível em http://revistaepoca.globo.com/Brasil/noticia/2013/02/governo-anuncia-metas-para-combater-trafico-depessoas.html. Acesso em 1 jul 2013. 9 Disponível em http://g1.globo.com/pa/para/noticia/2013/03/obras-de-belo-monte-podem-parar-se-comprovadaconivencia-com-o-trafico.html. Acesso em 1 jul 2013.

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percebemos uma pratica jornalística descomprometida com a sociedade e com a natureza, que peca por proporcionar uma visão fragmentada da situação. No portal Uol, dos 10 textos selecionados, 4 abordam a situação do tráfico de mulheres apenas tangencialmente ao tratar de outros temas, como, por exemplo, o aumento do consumo de crack na região de construção de Belo Monte, e denúncias do Ministério Público Federal sobre a proteção de índios afetados pela obra oferecida pela Funai. Já 5 do textos possuem abordagem meramente factual, sem promover nenhum tipo de reflexão sobre o caso. Um dos textos factuais, mas que se diferencia por não ouvir apenas fontes oficiais e tratar do caso de maneira distanciada, é Polícia encontra “escravas sexuais” que atendiam trabalhadores em Belo Monte10, reproduzido pelo Blog do Sakamoto, no Uol11, em14 de fevereiro. Esta notícia rompe com o discurso uníssono verificado em todos os veículos, narrando as condições de vida das mulheres e da travesti encontradas, bem como dando a elas espaço para falar sobre o que passaram. Apesar de não aprofundar o debate, o texto relaciona a escravidão à obra em Belo Monte: Sobre os clientes, ela conta que eram exclusivamente trabalhadores de Belo Monte. “Eram operários, eram gerentes, tinha de tudo. Todo mundo que trabalha na obra vinha na boate”, explicou. O delegado Rodrigo Spessato diz não saber se o prostíbulo está dentro ou fora dos limites do canteiro de obras. A conselheira Lucenilda Lima relata, no entanto, que para chegar à boate foi preciso atravessar o canteiro de Pimental, um dos principais da usina. “Foi uma burocracia na entrada para a gente conseguir passar. E lá mesmo toda hora passavam os carros e tratores de Belo Monte, eu considero que a boate está na área da usina”.

No portal Terra, embora 6 dos 7 textos selecionados falem especificamente sobre o caso do tráfico de pessoas, a recorrência do mero factual se repete. Apenas 2 matérias são assinadas pela redação do Terra, enquanto as 5 demais são replicadas da Agência Brasil. Apenas a primeira notícia, PA: adolescente foge de boate e denuncia rede de tráfico humano12, trata o caso com certa profundidade, trazendo o depoimento do conselheiro tutelar de Altamira, Josivan Batista, sobre a denúncia realizada pela jovem de 16 anos que era obrigada a se prostituir no local. Após receber a denúncia da jovem na tarde de ontem, o Conselho Tutelar foi averiguar o local, acompanhado de policiais civis e militares. Chegando lá, foram encontradas outras 14 mulheres. "Elas viviam em cárcere privado e não podiam sair. Segundo a adolescente, além do dono da boate, o filho dele e um gerente, que servia como capanga, viviam no local", falou Josivan.

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Disponível em http://blogdosakamoto.blogosfera.uol.com.br/2013/02/14/policia-encontra-escravas-sexuais-queatendiam-trabalhadores-de-belo-monte/. Acesso em: 1 jul 2013. 11 O texto é de autoria de Verena Glass, da Repórter Brasil. Leonardo Sakamoto, jornalista e doutor em Ciência Política, mantém um blog de informação e opinião no domínio Uol. 12 Disponível em http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/pa-adolescente-foge-de-boate-e-denuncia-rede-de-traficohumano,550cb54de89dc310VgnVCM4000009bcceb0aRCRD.html. Acesso em 2 jul. 2013.

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O texto PA: apreensão de crack aumenta 900% em cidade perto de Belo Monte13, além de abordar tangencialmente a questão da exploração sexual, relacionando-a a uma narrativa sobre o aumento do consumo de drogas na região, utiliza a expressão “um travesti” para se referir a uma das vítimas do tráfico de pessoas. Isto representa a consciência ainda rasa sobre questões de gênero no jornalismo, uma vez que a publicação ignora a identidade da vítima e a estigmatiza com o uso do artigo masculino. Na segunda reportagem de autoria do Terra, PA: polícia desarticula esquema de exploração sexual em Vitória do Xingu, de 20 de fevereiro, há uma recapitulação sobre a descoberta do caso na semana anterior. Para caracterização das vítimas, verifica-se a frase “18 pessoas, entre mulheres e um homossexual, foram resgatadas na região”14. A denominação “homossexual” é preocupante, pois é provável que o texto faça referência à mesma pessoa definida como “um travesti” na notícia mencionada anteriormente. Isso mais uma vez demonstraria o despreparo de jornalistas em identificar diferenças entre identidade de gênero e orientação sexual. Portanto, além de não verificarmos a prática de um jornalismo preocupado com a visão sistêmica e abrangente dos fatos e orientado para o interesse público, percebemos em Terra o desconhecimento sobre a sexualidade humana, o que prejudica as pessoas já rotuladas erroneamente durante a convivência social. Considerando a prática atual do jornalismo, compreendemos que é característica da notícia ser factual, aspecto que é reforçado pelas duras condições das rotinas produtivas impostas pela imprensa diária (neste caso, imprensa quase que simultânea). Entretanto, alertamos para o caráter pouco denso dos textos encontrados. Não há sequer reflexão profunda sobre a situação de extrema vulnerabilidade das mulheres e crianças resgatadas, nem sobre as condições de trabalho dos operários desta imponente obra. Essas pessoas também não têm voz nas coberturas, o que as coloca em situação de passividade, pois seus movimentos são narrados pelo poder público ou membros da CPI sobre o Tráfico de Pessoas, por exemplo. Nesse contexto em que abordagens sociais e ambientais são deixadas de lado em detrimento de enfoques políticos, não é razoável imaginarmos que existam ponderações a respeito da complexa teia de exploração em que este caso se dá. Outro apontamento a ser feito é o alto número de comentários dos leitores verificado nos textos avaliados. Embora não seja o foco, nem o intuito, deste trabalho, a interação dos internautas

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Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/pa-apreensao-de-crack-aumenta-900-em-cidade-perto-debelo-monte,690321bd679dc310VgnCLD2000000dc6eb0aRCRD.html. Acesso em: 2 jul. 2013. 14 Disponível em: http://noticias.terra.com.br/brasil/policia/pa-policia-desarticula-esquema-de-exploracao-sexual-emvitoria-do-xingu,5df86e24a89fc310VgnVCM3000009acceb0aRCRD.html. Acesso em: 2 jul. 2013.

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pode ser considerada alta em comparação a outros assuntos. Grande parte dos comentários menospreza a situação, afirmando não se tratar de exploração, mas da própria escolha das mulheres traficadas, o que nos permite inferir que predomina uma visão androcêntrica e hierárquica. Durante o período pesquisado, também uma onda de protestos acontecia em Belo Monte, situação que pode ter contribuído para o baixo índice de notícias sobre o tráfico de mulheres denunciado na região. Os funcionários da obra atearam fogo em dois alojamentos e a Norte Energia alegou que a atitude partiu de operários alcoolizados, que o fizeram por vandalismo. Entretanto, discute-se a possibilidade desta ser uma manifestação legitima de descontentamento com as condições trabalhistas.

Considerações A partir do paradigma da ecologia profunda, propusemo-nos aqui a refletir sobre os discursos do jornalismo sobre as inter-relações entre gênero e meio ambiente, com base em notícias sobre o tráfico de mulheres na região de Altamira (Pará). Utilizando esta situação como pano de fundo para repensarmos os vínculos de dominação, podemos perceber um perverso ciclo: a natureza é explorada a partir de uma mão-de-obra igualmente explorada, que vive em condições precárias e financia, mesmo sem saber, o tráfico e a exploração de mulheres. O jornalismo praticado, no entanto, não propõe este tipo de reflexão: está centrado no factual e, através dos valores da objetividade, fia-se em fontes oficiais em uma abordagem rasa. Este modelo, no entanto, nos parece esgotado – no emergir de um novo paradigma, é necessário adotar uma visão mais engajada e profunda. Neste contexto, o jornalista deve assumir seu papel e suas responsabilidades e, com perspicácia e comprometimento, ampliar e qualificar o debate social e ambiental, promovendo a cidadania de todos os indivíduos. Nos textos analisados apontamos também para a presença de abordagens que privilegiam o caráter político em detrimento às questões sociais e ambientais relacionadas à situação. Verificamos, então, que determinados campos ainda ocupam lugar de destaque nos veículos, campos estes que tradicionalmente exercem mais forças no jogo de poder em que estão inseridos. O formato de jornalismo que aqui propomos deve também procurar romper com esta lógica, buscando coberturas transversais, que ultrapassem os limites engessados das editorias. É necessário, assim, haver um jornalismo que defenda o interesse público em sua totalidade: que critique os abusos de poder, que alerte a população para atitudes que prejudicam o

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bem comum e que seja vigilante dos direitos humanos, de forma a garantir a consolidação de uma sociedade mais harmônica e justa.

Referências BUENO, Wilson. O jornalismo ambiental circula na arena da ciência e da política. Anuário Unesco/Metodista de Comunicação Regional, São Paulo, n.13, ano 13, jan/dez. 2009. p. 113-126. CAPRA, Fritjof. A teia da vida – Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 2012 [1997]. CAPRA, Fritjof. O ponto de mutação. São Paulo: Cultrix, 1982. GARCIA, Lorelay. Meio ambiente e gênero. São Paulo: Senac São Paulo, 2012. GIRARDI, Ilza; SCHWAAB, Reges; MASSIERER, Carine. Pensando o Jornalismo Ambiental na ótica da Sustentabilidade. UNIrevista, São Leopoldo, RS, vol. 1, n. 3, jul. 2006. p. 1-12. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2013. GOLDEMBERG, José. O caminho até Joanesburgo. In: TRIGUEIRO, André. Meio Ambiente no Século 21: 21 especialistas falam da questão ambiental nas suas áreas de conhecimento. 5. ed. Campinas: Armazém do Ipê, 2008. p. 170-181. Capítulo sobre Energia. TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo: Porque as notícias são como são. 2. ed. Florianópolis: Insular, 2005.

Slaves of Belo Monte: considerations about the press coverage of human traffic in Altamira (Pará) area Abstract: This work proposes a reflection based on the press coverageabout human traffic and slavery by the Usina de Belo Monte construction area, in Altamira, Pará. Its purpose is evaluate if the journalistic coverage considers the complexity of the oppression and the objectification that women and environment are submit as they belong to an androcentric and patriarchal society. The research object is formed by small news and reports about this situation in the three major Brazilian news websites, G1, UOL e Terra, during one month, starting on February 14th, 2013. Based on the idea that the exploration of nature and women are originated by the androcentrism, it suggests a qualitative analysis of the selected texts. Through Traquina (2005), Girardi (2006) and Bueno (2009), it discusses the concepts of journalism, its qualities and its functions. The study is justified by theshortage of academic analysis about the critic level of the press’ approach that corresponds to the referred exploration system. Keywords: Journalism. Internet. Traffic. Women. Belo Monte.

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