As escuras mil e uma noites em Bagdá

June 29, 2017 | Autor: F. Chagas-Bastos | Categoria: Iraq, Iraq War
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QUINTA-FEIRA, 03.07.2014

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS* As escuras mil e uma noites em Bagdá

Q

uando as primeiras bombas caíram sobre Bagdá, ainda em 2003, os Estados Unidos empenhavam-se em destruir não só o regime do sanguinário ditador Saddam Hussein: era preciso botar abaixo todas as estruturas do Estado Iraquiano. A palavra de ordem era reduzir a pó toda e qualquer instituição daquele governo, não só como tática de guerra - da Guerra Contra o Terror -, mas também como forma de resgatar o orgulho norte-americano profundamente ferido após o 11/09. A principal delas, o Exército iraquiano, foi desmantelado numa luta cotidiana das forças de ocupação. Os militares fiéis ao ditador foram presos, mortos (em combate ou em julgamentos sumários), colocados na clandestinidade ou expulsos do país. Aqueles que se renderam foram relegados a um segundo nível na sociedade iraquiana um dos principais componentes do acúmulo do ódio sectário que explodiria mais tarde. É importante lembrar que as Forças Armadas no Oriente

Médio exercem mais do que seu papel como braço armado do Estado, forças de defesa interna e externa. Naquela região os militares são uma presente e sólida força política - o Egito de Hosni Mubarak é um bom exemplo, quando de sua queda, revelou-se que 40% da economia do país era controlada pelos militares (PIB de US$ 271 bilhões em 2013), sob a forma de fundos de investimento ou propriedade direta. Antes do ódio, o dinheiro do petróleo e das “oportunidades de guerra” falaram alto. A queda de Saddam trouxe não só diversas empresas internacionais - cujos contratos foram majoritariamente firmados pelos americanos - mas também toda uma comunidade de iraquianos que fugira do país durante os anos de terror. E isso não significa que voltaram para reconstruir o país com o auxílio dos americanos, pela democracia levada pelas poderosas armas dos EUA. O fim do embargo financeiro e comercial imposto ao país pela Organização das Nações Unidas, derrubado em maio de 2003, abriu as portas de vez para o que viria a ser a profunda divisão sectária dos dias de hoje entre sunitas, xiitas e, em menor medida, curdos. Com a formação do governo de ocupação provisório, sob a tutela dos Estados Unidos, foram iniciados movimentos para atrair investimentos visando milhares de obras necessárias à reconstrução do país. Então, com os principais grupos econômicos iraquianos destroçados pela atuação das tropas de ocupação e grupos locais em conflito - alguns comerciantes foram enforcados em praça pública -, os novos marchands do país passaram

QUINTA-FEIRA, 03.07.2014

a ser aqueles que foram deixados de fora dos círculos privilegiados de antes. Numa terra de ninguém, deu-se o cenário perfeito para favorecimentos, compras ilegais, desvio de verbas, tráfico de influência, suborno, dentre outras formas espúrias de ganhar dinheiro com a guerra. Liderados pela minoria xiita, com apoio curdo - os dois grupos antes massacrados pelos sunitas (base de sustentação dos anos Saddam) - passaram então a controlar a economia, a política e as pífias forças de defesa do país. A mão-de-ferro do primeiro-ministro Nouri Al-Maliki recaiu, primeiro, sobre o vice-presidente do país, Tareq al-Hashemi, que foi condenado à pena de morte em Bagdá. Depois, endurecendo suas atitudes quando da saída das últimas tropas de ocupação, fomentou o ódio entre as correntes religiosas, de maneira a ter margem de manobra para seu governo (leia-se manter o privilégio a determinados grupos, nacionais e estrangeiros). Os curdos se distanciaram e trataram de desenvolver a região Norte do país autonomamente. Não é com surpresa que os extremistas do Estado Islâmico no Iraque e no Levante (EIIL) tenham ganhado terreno tão rapidamente no Iraque. O ódio e a corrupção fizeram evaporar toda e qualquer presença do Estado no país, as fronteiras são praticamente nulas (a borda com a Turquia e Irã ainda recebe algum controle, feito pelos curdos) e a desordem é lei. Fundaram há poucos dias um califado (uma forma de governo cuja figura do líder político e religioso é o califa,

que seria sucessor direto da autoridade política do profeta Maomé) que se estende da vizinha Síria até o norte do Iraque, sem fronteiras, respeitando apenas os preceitos mais radicais da lei islâmica. Isso significa que o Iraque ruiu. Que os anos de ocupação americana foram inúteis para combater o terror. Que empresas como a Academi antes conhecida como Blackwater - continuarão a ganhar vultosas somas com segurança privadas, “consultorias militares” e outros tipos de serviços relacionados à guerra. Que os Estados Unidos e seus aliados iraquianos (dentro e fora do país) conseguiram, quando pulverizaram o resto do já falido Estado iraquiano em 2003, encontrar fontes de lucros no petróleo e no caos da guerra. É evidente que quanto mais se deteriora a situação no país, mais grave e delicada fica a segurança do Oriente Médio. Os curdos estão prestes a se autodeclararem independentes, e recebem apoio de Israel caso venham a fazê-lo, e isso pode causar turbulências pesadas envolvendo a Turquia e o Irã. Dia após dia, afunda na movediça areia do deserto a chance de as populações daquela região encontrarem um caminho que não seja um contínuo banho de sangue e escuras noites de terror.

FABRÍCIO H. CHAGAS BASTOS É PESQUISADOR DO NÚCLEO DE PESQUISA EM RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (NUPRI/USP) E DOUTORANDO EM INTEGRAÇÃO DA AMÉRICA LATINA PELA MESMA UNIVERSIDADE

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