As \"estruturas circulares\" em Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa). Exercícios descritivos e interpretativos da forma e da organização do espaço.

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Economia, Ciência e Cultura

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ISSN 2183-234X

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Edição da Câmara Municipal de Vila Nova de Foz Côa ISSN 2183-234X

As “estruturas circulares” em Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa). Exercícios descritivos e interpretativos da forma e da organização do espaço.1 Ana Vale* Resumo No contexto dos recintos murados da Pré-História Recente Peninsular, a nomenclatura “estrutura circular” é normalmente associada à esfera doméstica. Refere-se, geralmente, à ideia de casa, albergando todos os pressupostos inerentes a este conceito. No entanto, a neutralidade do nome “estruturas circulares” parece contrastar com a multiplicidade de abordagens possíveis. No sítio de Castanheiro do Vento (Horta do Douro, Vila Nova de Foz Côa) foi identificado um conjunto de estruturas circulares2 datado genericamente do IIIº /inícios do IIº milénio AC. Procura-se neste exercício apresentar estas unidades e sublinhar a sua diversidade contextual, realçando, ao mesmo tempo, a partilha de formas de fazer.

Palavras-chave Castanheiro do Vento; estruturas circulares; Tradição de formas de fazer.

Estruturas circulares e o conceito de “casa” em PréHistória Recente: breve incursão. “A casa está entre os elementos pressupostos na caracterização das primeiras comunidades agrícolas. A sua presença implica sedentarismo, enquanto a sua ausência sugere um padrão de ocupação móvel. Esta ideia levanta muitos problemas .” (Bradley, 2007: 347 tradução nossa). “Muitos arqueológos falam de casas (e procuram-nas) tão 3 avidamente e facilmente como se fossem realidades objetivas universais correspondendo a “necessidades” universais .” (Jorge, V. O. [et al.], 2006: 222-223, tradução nossa). 4 na literatura arqueológica relativa aos É recorrente, recintos murados, a interpretação das estruturas circulares como unidades habitacionais, como casas ou como “abrigos permanentes”, e em relação com o espaço privado e familiar. A construção de unidades habitacionais encontra-se ligado a comunidades sedentárias e a

caracterização da casa pode revelar, segundo a arqueologia tradicional, a estrutura económica dessa mesma comunidade, assim como deixar transparecer as relações sociais entre membros do grupo e a sua organização política. Que critérios são utilizados em Arqueologia para definir uma “casa” conectada com sociedades sedentárias? Seguindo uma linha funcionalista tradicional poderíamos propor ? : A existência de uma lareira (pode localizar-se na área central ou não); ? A forma circular ou alongada das estruturas, sobretudo durante a Pré-História Recente (as construções retangulares são mais tardias na Península Ibérica, ao contrário do que acontece, por exemplo, no Reino Unido) e o tamanho: normalmente entre os 2 e os 6 m de diâmetro são descritas como unidades habitacionais, as construções com áreas superiores são descritas como lugares comunitários ou templos, e aquelas com áreas inferiores como locais de armazenagem, lixeiras, áreas de combustão, etc.; ? A identificação de vestígios como peças de mobiliário (ou o local de implantação destes mesmos elementos): como bancos, por exemplo no Fortín 1 de Los Millares, Almeria, Espanha (Molina & Câmara, 2008:69/70), camas e armários, por exemplo em Skara Brae, Ilhas Órcades (Parker Pearson & Richards, 1997b:41) e Durrington Walls, Wiltshire (Parker Pearson, s/d), Reino Unido; ? A presença de materiais conectados com atividades domésticas: moinhos, pesos de tear e recipientes cerâmicos ou

* Bolseira de PósDoutoramento FCT, Investigadora do CEAACP.

1 A investigação que se encontra na base deste texto foi realizada no âmbito de um trabalho académico (Vale, 2011), no qual é possível encontrar uma versão mais extensa deste tópico (p. 179-215).

2 As escavações do sítio de Castanheiro do Vento decorrem desde 1998, sob a coordenação (atualmente constituída por Vítor Oliveira Jorge, João Muralha, Bárbara Carvalho, Sérgio Gomes e pela signatária deste texto). Aqui não procedemos à descrição do sítio por esta já ter sido publicado em números anteriores desta revista (veja-se, por exemplo, Cardoso et al. 2013)

3 “The house is among the features that are supposed to characterize early farming. Its presence implies sedentism, while its absence suggests a mobile pattern of settlement. That idea raises many problems.” (Bradley, 2007: 347)

4 “Many archaeologists speak of houses (and search for them) so eagerly and so easily as if they were obvious universal objective realities corresponding to universal “needs”.” (Jorge, V. O. [et al.], 2006: 222-223)

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matéria orgânica resultado de atividades de preparação e consumo de alimentos; ? A proximidade de estruturas de “cariz doméstico” (que podem também estar incluídas na própria “casa”): silos, áreas lajeadas, etc. A utilização do termo “casa” nem sempre é explícita nos textos sobre os recintos murados podendo ser “substituído” pela palavra “cabana”. Este termo, ainda que não estabeleça laços tão diretos nem tão apertados com os (pre)conceitos conectados com a “casa”, alberga em si, a mesma função. Parece-nos que o termo “cabana” em Pré-História Recente define-se sobretudo pelas dimensões da estrutura e pela interpretação destas como unidades arquitetónicas simples, ou seja, desprovidas de técnicas construtivas complexas, no entanto, as funções e implicações da “cabana” são semelhantes à de “casa”. O perigo da aplicação do conceito de “casa” em PréHistória, tal como alertou R. Bradley, estende-se ao conceito de povoado (2007:347), o qual se poderia definir como a reunião de um conjunto de estruturas domésticas, sejam casas, cabanas ou sítios de armazenagem, e como local de permanência diária. Mas, poderá haver algo como uma “arquitetura de todos os dias”, semelhante à noção de “vida de todos os dias”? J.Thomas (2010) propôs recentemente uma abordagem mais ampla do conceito de “casa” (house ou household) que extravasa os limites das estruturas circulares para ser entendida enquanto “uma nova e abrangente metáfora da 5 sociabilidade”(J. Thomas, 2010:12) . O autor interpreta os grandes círculos elaborados com postes de madeira (woodhenges) da área de Stonehenge (Reino Unido) como construções que monumentalizam a “casa”. Cada monumento simbolizaria, provavelmente, um grupo, uma história, uma identidade partilhada. Através do estudo de um tipo de cerâmica particular – a Grooved Ware (c. 3500 a 2900 a.C.) – o autor estabelece um conjunto de conexões entre sítios. Encontrada associada a diferentes contextos, sobretudo a unidades habitacionais no norte do Reino Unido (Ilhas Órcades) e a construções monumentais/rituais no sul, a cerâmica Grooved Ware associada aos woodhenges localizados na área de Stonehenge, segundo J. Thomas, dramatizaria a ideia de doméstico. Ritual e vida mundana encontram-se neste discurso, formado no continuum entre as duas esferas. O desejo de fundir o templo e a casa primitiva preocupou não só arqueólogos, mas também arquitetos, como Le Corbusier (2009). A origem do espaço projetado é encontrada por estes autores no momento em que a planta do templo se confunde com a planta da casa,

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5 momento em que o ritual e o “a new and overarching mundano se unem pelo metaphor for sociability” desenho de um mesmo (Thomas, 2010:12) espaço. Ainda no contexto da arqueologia anglo-saxónica, J. Brück (2001) propõe o estudo da casa (durante a Idade do Bronze Médio e Final no Reino Unido) como uma biografia, escrita em estreita ligação com a “vida dos indivíduos”.Os momentos de construção, reconstrução e abandono das unidades domésticas seriam, segundo a autora, celebrados através de práticas rituais e estariam associados a momentos da vida dos indivíduos, como o nascimento, o casamento e a morte. V. O. Jorge (2007) criticou esta abordagem, denunciando a crença da autora na existência de uma “realidade arqueológica” passível de ser estudada como “espelho” de um passado que realmente aconteceu. V.O. Jorge assinala também o perigo de tratar como um bloco um período temporal extenso (c. 700 anos) e um vasto território (Inglaterra), que se reduzem pela narrativa a uma pretensa unidade. Também alerta para o uso acrítico em Arqueologia das “ideias” de “vida” e de “morte” como universais que atravessam a História. J. Brück tenta, no entanto, discutir, em 2008, a utilização anacrónica do conceito de casa, como uma “ideia” universal. Denuncia sobretudo os preconceitos modernos ocidentais associados ao espaço doméstico, como a ligação da mulher ao espaço da casa, a desvalorização do trabalho doméstico na sociedade ocidental e a interpretação de áreas com acumulação de resíduos como áreas de estatuto inferior, relacionado com o tratamento do lixo pelas comunidades modernas ocidentais. A ideia de “casa”, aplicada especialmente à PréHistória Recente, parece encontrar a sua definição no ideal da casa burguesa do século XIX. Concentra a vida familiar no seu interior. O espaço privado é delimitado, protegido, escondido do espaço público. A ordem da casa burguesa procura a articulação dos objetos com os espaços, a organização das coisas, envolvidas por outros materiais, resguardadas, tal como a família burguesa no interior da sua casa (Teyssot, 2010: 124125). Parker Pearson & Richards (1997a) sublinharam já as particularidades das “construções” e das “experiências do espaço” ocidentais modernas que, por vezes, são assumidas como princípios

universais: “[Rapoport] explicou como as noções modernas de conforto, luminosidade, aquecimento, “cheiros” agradáveis, ausência de fumo, privacidade, higiene sanitária, orientação em direção ao sol ou à praia, podem não ser partilhadas por outras culturas.” (Parker Pearson & Richards 1997a: 7) 6. Os autores apresentam variadíssimos exemplos a fim de abrir o leque interpretativo para as construções pré-históricas. No entanto, raramente em Arqueologia a multiplicação de práticas num mesmo local ou dispositivo arquitetónico é equacionada. Os espaços assinalados no registo arqueológico encerram a mesma função durante o seu 7 período de ocupação e a enunciação da sua função implica também a explicação da sua construção. Seguindo esta linha de investigação, a função que se determina para uma unidade construída é passível de se estender a todas as outras morfologicamente semelhantes. Segundo J. Thomas (2004a: 175) esta tradição de pensamento é uma influência “forte e maligna” do histórico-culturalismo. O problema reside em considerar as estruturas arquitetónicas como formas acabadas, como produtos finais. Esta premissa possibilita a comparação com outras estruturas semelhantes ao nível da planta. Ora, esta corresponde a um desenho que omite o processo construtivo da estrutura em causa. A casa ocidental atual, burguesa, repousa no tempo longo da sua ocupação. À sua construção, mais ou menos rápida, segue-se a permanência do uso repetido dos espaços que, mais ou menos alterados, não desvirtuam a sua 8 permanência enquanto casa de família . E é também no tempo longo que repousa o reconhecimento de casas na Pré-História, no tempo das tarefas domésticas que se repetem, sem alteração, sem espaço para que outras práticas possam ocorrer. A desmistificação da narrativa contada acerca do espaço doméstico e a generalização explicativa da “casa/povoado”, inerente ao discurso tradicional está já patente em algumas publicações em contexto português, como A.C. Valera (2006) 9 . M.J. Sanches (2000) sublinhou também a espessura temporal de sítios entendidos tradicionalmente como lugares domésticos, devendo estes ser encarados sobretudo como sítios de memória geracional – de mudanças e de permanências – de diversas comunidades, podendo carregar a lembrança da ocupação dos antepassados.

As estruturas circulares de Castanheiro do Vento No sítio de Castanheiro do Vento foram identificadas 28 estruturas circulares (Ec), com um diâmetro médio de cerca de 2m. Foram também detetadas 5 estruturas

6 “[Rapoport] explained how western notions of comfort, adequate lighting, heating, pleasant smells, absence of smoke, privacy, bathroom hygiene and orientation to the view, beach or Sun might not be shared by other cultures.” (Parker Pearson & Richards 1997: 7).

7 Por vezes é apresentado mais do que uma fase de ocupação da estrutura. Nestes casos, cada função encontra-se, segundo a perspetiva tradicional, cristalizada num nível arqueológico. 8 Claro que recorremos à imagem estereotipada da casa burguesa, também esta uma ilusão, pois uma análise contextual iria com certeza revelar nuances na forma como os espaços são ocupados. A alusão à casa-tipo pensada durante o século XIX é evocada neste texto, pois pensamos que a interpretação de diversas unidades arquitetónicas préhistóricas são elaboradas tendo como referência este modelo de vivência familiar: um espaço permanente e reservado, onde cada compartimento tem a sua função específica desempenhada por personagens específicas. 9 Tradicionalmente, a perspectiva funcionalista gerou uma concepção de povoado que poderemos considerar redutora, no sentido em que se apenas lhe associa, de forma quase que inconsciente, aspectos funcionais do quotidiano (como o processamento de alimentos, a produção de instrumentos, etc.). Mas o povoado é um sítio onde se vive a plenitude da vida. É um local onde se morre e se desenvolvem todos os primeiros actos de ritualização da morte; é um sítio onde se nasce, onde se desenvolvem as ritualizações do nascimento; é um sítio onde se cresce e onde também se realizam ritos de passagem; é o local onde as pessoas se unem e consagram ritualmente essas uniões; é um sítio onde se observa o firmamento, onde se contam histórias e se transmite o saber e as normas de vivência; onde as pessoas se sentem em segurança, dominando totalmente o espaço interior face ao exterior mais “indisciplinado”; é local de festas, cerimónias, consagrações; e, naturalmente, é um sítio onde se dorme, se come, se processam alimentos, se produzem utensílios, se descartam objectos, se constroem estruturas, etc, sendo que muitas destas práticas mais “funcionais” podem estar imbuídas de ritualidade, situação comum em sociedades em que a separação entre sagrado e profano não é clara.” (Valera, 2006: 497).

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circulares de grande dimensão (GEC), apenas uma perfazendo uma forma subcircular com cerca de 8 m de diâmetro e as restantes desenhando segmentos de tendência circular. As “estruturas circulares” são elaboradas com lajes de xisto colocadas de forma vertical ou oblíqua em relação ao seu eixo maior, ou ainda na horizontal em alguns casos. A forma e o tamanho possibilitam a inserção destas 28 unidades na designação de “estruturas circulares”. Contudo, a sua localização no sítio, a rede de relações que estabelecem entre si e com outras estruturas e as particularidades construtivas, implicam um olhar mais atento a estes dispositivos arquitetónicos. Atendendo às datas de radiocarbono disponíveis (quadro 1) podemos posicionar a construção e manutenção destas estruturas na segunda metade do IIIº milénio a.C10. Neste grupo aparecem três datas consideradas problemáticas: a Ua-33982, referente à Ec15, provem de uma área junto ao Recinto Anexo que terá sido alvo de diversas transformações e alterações materializadas em dois troços de murete difíceis de enquadrar na planta geral do sítio; a Ua-32082, relativa às estruturas geminadas 11 e 13, também corresponde a uma área bastante complexa, junto da Torre Principal, estrutura que terá sido alvo de remodelações constantes, algumas em períodos mais recentes11 . Fica apenas por explicar a data Ua-33980, referente à Ecg2 distinta daquela obtida para a periferia da 12 estrutura e para a estrutura que lhe é contígua, a Ecg6 . J. M. Cardoso (2007) ensaiou uma tipologia de estruturas circulares que sintetizamos no quadro 2. Os tipos criados por J. M. Cardoso obedecem essencialmente à organização e disposição destas unidades – isoladas ou geminadas. As estruturas geminadas, cujas lajes que definem a sua forma são partilhadas em determinado espaço, (Tipo II e Tipo III), apresentam genericamente dimensões menores e preferencialmente assumem uma forma circular (J.M. Cardoso, 2007: 213). Em relação à distribuição destas estruturas no sítio de Castanheiro do Vento, o autor sublinha dois pontos: a) A aparente distribuição aleatória deste tipo de estruturas. Segundo o autor, não parece existir qualquer padrão na sua localização. O facto de estarem associadas a outras estruturas, como troços de muretes, “bastiões” ou muros, apenas reflete o facto de a escavação ter privilegiado, até ao momento, as grandes linhas estruturais do sítio; b) A não existência de qualquer estrutura deste tipo associada ao murete 1, no entanto, esta área, entre o 83

murete 1 e o murete 2, não se encontra completamente escavada. (Cardoso, 2007: 216). A análise das 28 estruturas circulares identificadas em Castanheiro do Vento põe efetivamente em relevo a existência de uma grande diversidade, quando se atende à sua localização, à sua articulação com outras unidades arquitetónicas, e ao nível das possibilidades uma construtivas (isto atendendo por exemplo à identificação ou não de buracos de poste e ao reconhecimento ou não de entradas elaboradas ao nível da base da estrutura). Registamos a localização das “estruturas circulares”: encostadas a muretes: Ecg6, 2 e 1; Ec12; terminus de murete: Ec5; associadas a passagens: Ecg23 e 24; associadas a “bastiões”: Ecg22 e 25; Ecg18, 17 e 19; Ec10; entre muretes: Ecg7, 8 e 9; Ec3; Ec4; Ec26; no interior do Recinto Principal: Ecg11 e 13; Ec27; Ec28; e em relação com o Recinto Anexo: Ec14; Ec15; Ec16. Concentremo-nos nas estruturas associadas a “bastiões”. Estas unidades encontram-se no espaço interno dos bastiões ocupando quase toda a área ou condicionando de forma evidente os movimentos dentro destas estruturas, o que acontece nos “bastiões” S, Q e K (em articulação com estruturas circulares 20, 18 e 10 respetivamente). Por exemplo, no espaço interno do “bastião” S (localizado na segunda linha de murete) foi construída a estrutura circular 20. Esta estrutura parece ter uma

10 Importa referir que a distribuição de probabilidades da data Ua-33632, após calibração a 2 sigma, nos diz que existe 94% de hipóteses da amostra ser datada de 2210-2020, 0,03% de o ser de 2278-2251, 0,7% de o intervalo corresponder a 22292221 e 1% para o período de 1994-1982.

11 A campanha arqueológica de 2010 revelou a existência de reformulações profundas desta estrutura materializadas de forma evidente em dois troços de murete construídos no que se poderia chamar de espaço interno de um “bastião” na sua fase inicial. A presença de materiais tradicionalmente conectados com o IIº milénio a.C. e os diferentes aparelhos construtivos identificados pressupõem reformulações constantes e que ocorreram até períodos tardios.

12 No entanto, é importante sublinhar novamente que as datas de 14C datam apenas a amostra (neste caso carvões de origem vegetal) e não a estrutura. Contudo os pontos no tempo cronológico que estes dados nos fornecem ajudam a investigação a colocar balizas temporais, na medida em que ainda nos é impossível escapar a um modo de fazer ciência de tradição cartesiana.

entrada direcionada a NNE, ou seja, à parede do bastião. Provavelmente, para se aceder ao interior da estrutura circular era necessário percorrer um pequeno e estreito “corredor” (A. Vale, 2008-2009). Claro que esta observação levanta um conjunto de problemas, pois os constrangimentos ao andar não são apenas dados por estruturas pétreas evidentes ao olhar do arqueólogo, mas podem encontrar-se sob a forma de outros materiais ou em interditos não materializados. É também particularmente complexo o estabelecimento de relações entre estruturas na medida em que estas se encontram construídas de forma contígua sendo raros os casos onde é possível verificar sobreposições ou cortes. As estruturas em Castanheiro do Vento integram-se num emaranhado construtivo, denunciando práticas contínuas de fazer, e criando, um labirinto (a partir de Jorge, V.O. et al 2006), um espaço de imersão. Em relação aos materiais construtivos, a matéria-prima utilizada para estruturar estas unidades é o xisto grauváquico. Trata-se de lajes de xisto extraídas muito provavelmente do local onde se implanta o complexo arquitetónico identificado ou de áreas próximas do mesmo. Em vários casos regista-se ainda a presença de xisto azul, granito, quartzo e quartzito. Os dois últimos elementos registam-se com fraca frequência (o quartzo em 3 e o quartzito em apenas uma unidade) (J.M. Cardoso, 2007). As lajes de xisto azul – matéria-prima não proveniente do local – foram identificadas em algumas estruturas circulares e o granito está presente em praticamente metade das unidades registadas até ao momento (Cardoso, op.cit.:120). Os elementos em granito são na sua totalidade peças de moinhos manuais (dormentes); ou seja, todas as peças em granito utilizadas na delineação da estrutura tinham sido já manipuladas em outros contextos. Algumas apresentam-se fragmentadas, mas a maioria encontra-se inteira. Encontram-se também no “enchimento” das estruturas, como é o caso da Ec5, onde fragmentos de dormentes e moventes, juntamente com pequenas lajes de xistos (algumas rubefactas) e nódulos de quartzo ocupam o espaço interno da estrutura. Apenas a componente artefactual resultante da escavação da estrutura circular 3 (Ec3) (Fig. 2) foi estudada (A. Queirós, 2007). Localiza-se na área sul do sítio de Castanheiro do Vento, entre o murete 2 e o murete 3, e foi intervencionada durante a campanha de 2005. A escavação desta unidade circular apenas revelou 160 fragmentos cerâmicos, na sua maioria de pequeno tamanho e erosionados, 17% dos quais decorados maioritariamente com impressão penteada; o estudo do

conjunto lítico permitiu a identificação de: 1 lasca em quartzo leitoso, 1 pequena lâmina de quartzo, 1 núcleo sobre seixo rolado de quartzito, um fragmento de dormente, 1 peça em granito e 8 percutores em quartzo. A escavação da estrutura Ec3 revelou um nível caracterizado por pequenas lajes de xisto associadas a um sedimento muito compacto, argiloso, de cor amarela. Várias estruturas semelhantes à Ec3 revelaram também a existência de um nível caracterizado por lajes de xisto de pequeno tamanho (formando uma espécie de lajeado) como é o caso das estruturas Ec7 e Ecg 22 e 25. Em algumas unidades registou-se um depósito semelhante; contudo, com a presença de lajes de xisto de dimensão média colocadas na horizontal, como são exemplos os casos de Ec4, Ec15, Ec20 e Ec21. Esta reunião de diferentes materiais (xisto, quartzo, peças em granito, fragmentos cerâmicos, entre outros) na delimitação e enchimento das estruturas circulares, parece denunciar a ideia de “transplantes” desenvolvida por V. O. Jorge (2009a), ou seja, da transferência de matériasprimas e outros objetos de um local para o outro como citações, como transplantes de matéria, e consequentemente de significados (não necessariamente estáticos) de um sítio para outro. Estas estruturas como locais de reunião de distintas “coisas” que provêm de diferentes sítios, acarretam consigo diferentes tempos e memórias – a laje extraída da base do sítio, a laje que é trazida para o sítio, o bloco em granito que é “reutilizado”, incorporado num outro espaço e tempo. Algumas destas estruturas encontram-se também conectadas com buracos de poste. Estes elementos, que seriam bases de sustentação de postes em madeira não se dispõem no entanto de uma forma regular nem ocupam uma posição central. Por exemplo, nas estruturas geminadas 17, 18 e 19 verificou-se a existência de buracos de poste no interior das estruturas assim como na área exterior imediata. No entanto, em algumas estruturas não foi identificado nenhum buraco de poste no seu espaço interno ou em associação com estes dispositivos. Ainda que a ausência de buracos de poste em relação com algumas estruturas se poderá dever a processos de ruína, poderá este aspeto remeter para diferentes formas construtivas da cobertura da estrutura? 84

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Outro dado a registar é a existência em algumas estruturas circulares de uma passagem. Nestes casos, o alinhamento parece intencionalmente interrompido, como se verifica na Ec 20. Contudo, em alguns casos não é possível verificar a existência de uma entrada como é o caso das Ec 3, 4 e 5. Poderia, nestes casos, a entrada nas estruturas efetuar-se por uma espécie de degrau? Parece que em algumas unidades a existência de uma abertura de acesso é pensada ao nível basal da estrutura, materializando-se por uma interrupção no alinhamento que define a estrutura enquanto em outras unidades a abertura é efetuada no processo de moldagem. Até ao momento descrevemos apenas unidades que têm como máximo de área interna 9,9 m2, nunca excedem em diâmetro 3,3 m e registam como diâmetro mínimo 1,6 m. Contudo, em Castanheiro do Vento foram detetadas outras unidades de grande dimensão às quais se resolveu chamar convencionalmente “grandes estruturas circulares” (GEC). Estas estruturas, intervencionadas em 2008, 2009 e 2010, localizam-se na área do chamado Recinto Principal e num espaço compreendido entre a linha de Murete 2 e a linha de Murete 3 (ainda que esta última se encontre ausente/”destruída” num troço). Definem-se por uma forma subcircular, apesar de em apenas uma destas unidades ser possível marcar os limites da extensão completa do círculo. As restantes unidades são apenas caracterizadas pela presença de uma estrutura em arco. A forma é desenhada por lajes de xisto fincadas na vertical ou dispostas de forma oblíqua podendo ainda ocorrer a presença de lajes de xisto colocadas na horizontal. A Grande Estrutura Circular 1 (Fig. 3) foi identificada em 2008 e integralmente escavada em 2010. É delineada por lajes de xisto fincadas definindo um diâmetro de 8m. Foi possível registar a existência de fragmentos cerâmicos (sobretudo com dimensões superiores a 7 cm) que se encontram conectados com a própria construção dos limites da grande estrutura circular. No lado noroeste da estrutura identificou-se uma concentração de fragmentos de barro de revestimento (num total de 4038 unidades, o que se traduz em 37,064 g) distribuídos de forma tendencialmente circular (A. Vale, 2011). A Grande Estrutura Circular 2, identificada também em 2008, é definida por um conjunto de lajes de xisto fincadas dispostas em arco (com uma abertura de boca de 5m). A área interna delimitada pelo arco pétreo caracteriza-se pela existência de três buracos de poste e por um conjunto de pequenas estruturas de tendência curvilínea. O limite a oeste situa-se muito próximo do Murete 2, o que 85

denota os constrangimentos físicos ao andar que a profusa construção em Castanheiro do Vento parece estabelecer. A Grande Estrutura Circular 3 e a Grande Estrutura Circular 4 encontram-se em conexão. Localizadas no Recinto Principal (delineado pelo Murete 3), são definidas por lajes de xistos colocadas na vertical ou de forma oblíqua e perfazem grandes arcos de círculo (a GEC3 com 7 m de diâmetro e a GEC4 com 6,5 m). A abertura da GEC3 encontra-se virada a nascente enquanto o vão da GEC4 se volta a norte. Admitindo que se trata de embasamentos de estruturas de perímetro originalmente maior (e assumindo que, por razões diversas, apenas é possível hoje registar parte das mesmas) sugerimos que a GEC4 perfazia uma forma subcircular articulada com a GEC3. Esta última, amparada pela parede interna do Bastião W, “encaixava-se” na GEC4 sem fechar o círculo. Neste sentido, poderia ser equacionada uma passagem para a GEC3 delimitada pela extremidade do “bastião” e pela própria parede da GEC4. No entanto, as hipóteses de construção em altura podem ser distintas para as duas unidades, na medida em que a GEC4 registou 125 fragmentos de barro de revestimento (num total de 3546 gr) ao contrário da GEC3 na qual não foi registado nenhum fragmento de barro de revestimento (o que também se poderá dever a processos erosivos). A GEC3 apresenta também uma técnica construtiva da base diferente da GEC4. Num troço dos limites da GEC3 a linha é duplicada por um outro alinhamento definido por lajes de xisto de média dimensão e preenchido por pequenas lajes de xistos inseridas num sedimento argiloso compacto. As duas linhas que definem a estrutura distam entre si cerca de 60 cm. No espaço interno destas unidades, e como que conectando as duas estruturas, foi identificada uma depressão no afloramento rochoso preenchida por blocos de quartzo de filão, de configuração irregular. Após uma análise preliminar, verificou-se tratarem-se, na sua maioria, de termoclastos. Estes elementos em quartzo encontravam-se em relação com um sedimento cinzento-escuro. Em conexão com a concentração de elementos em quartzo foi registado um agrupamento de 20 unidades em granito (dormentes) e um grande seixo rolado de cor alaranjada. A Grande Estrutura Circular 5 e a Grande Estrutura

Circular 6, parcialmente escavadas na campanha de 2009, são definidas por um alinhamento em semicírculo constituídos por lajes de xisto fincadas. A GEC6, à semelhança da GEC3, apresenta uma dupla linha definidora dos seus limites. O espaço compreendido entre ambas as linhas dista 40 cm e é preenchido por um depósito caracterizado pela presença abundante de pequenas lajes de xisto inclusas num sedimento argiloso, compacto, de cor amarela. A GEC5, assim como GEC1 e a GEC3, encontra-se amparada pela linha do Murete 3, como que encostando-se a esta. Esta particularidade construtiva poderá ser justificada pela necessidade de proteger a estrutura e assegurar a sua estabilidade. Mas levanta também questões em relação à construção de espaços, à reconstrução de caminhos, à reconfiguração de movimentos. As Grandes Estruturas Circulares materializam-se em espaços que poderiam ter sido abertos, amplos e com poucos constrangimentos ao andar. Estas grandes estruturas circulares encontram paralelos em sítios localizados em território espanhol, como é o caso de Los Millares (Almeria, Espanha), onde foram identificadas estruturas circulares com um diâmetro superior a 7 m, sendo estas, no entanto, delineadas por uma estrutura tipo murete (Castro-Martinez [et al.], 2010: 148). Possíveis reconstruções A construção da “base” destas estruturas (limite elaborado sobretudo com recurso a lajes de xisto fincadas; limite elaborado por dupla linha de lajes fincadas e limite elaborado sobretudo com lajes e blocos irregulares de xisto na horizontal) remete para possíveis construções em altura. A primeira hipótese que colocamos, e que pensamos ser a mais provável na construção em altura destas estruturas circulares, pressupõe a existência de um entrançado de ramos revestido por terra argilosa que poderia sofrer um processo de cozedura intencional. Esta “argamassa” que revestiria o esqueleto em madeira teria de ser de matriz argilosa com inertes minerais e fibras vegetais no sentido de consolidar e dar maior resistência à terra (P. Bruno, 2006: 72). Muitos dos numerosos fragmentos de barro de revestimento detetados em Castanheiro do Vento apresentam negativos de ramagens com orientações paralelas e perpendiculares entre si, enquanto outros parecem apresentar uma superfície alisada (por vezes com marcas de dedos). Esta superfície alisada poderia corresponder à face interna ou externa da estrutura e os negativos ao “interior” das paredes. Até ao momento não

foram encontrados vestígios de negativos de troncos de grande dimensão, apenas de pequenas ramagens. As estruturas que se encontram delimitadas por lajes de xisto colocadas de forma fincada oblíqua ou verticalmente poderiam ter sido utilizadas como amparo da parede. Segundo o estudo de P. Bruno (2006) acerca de estruturas similares da Idade do Bronze Final do sítio Rocha do Vigio 2 (Reguengos de Monsaraz), as lajes de xisto em cutelo teriam sido aplicadas para “protecção das bases dos paramentos internos” (Ibid:72). No entanto, não é de excluir a hipótese de se tratar de delimitações sem um carácter estritamente funcional, ou seja, poderiam apenas indicar os limites da estrutura. Outra técnica construtiva que podemos aqui assinalar é a terra modelada. Como refere F. Gonzaléz (2006), esta técnica construtiva é atribuída a construções de carácter efémero e “no seu resultado final, pouco se destrinça da olaria” (F. Gonzaléz, 2006: 92). A elaboração das estruturas é conseguida pela moldagem de terra argilosa com as mãos que pela pressão exercida vai criando face interna e externa. No entanto, até ao momento não foram encontrados fragmentos de barro coincidentes com esta técnica construtiva. As Grandes Estruturas Circulares 3 e 5 de Castanheiro do Vento (que registam um duplo alinhamento) poderiam apresentar paredes de terra crua erguidas segundo a técnica de empilhamento – em que porções de terra são empilhadas por fiadas (sempre em associação a outros materiais – como poderia ser a palha – que tomam a função de desengordurantes). Podemos ainda colocar a hipótese de estruturas elaboradas preferencialmente com elementos vegetais. A construção da parede poderia ser efetuada com ramos entrelaçados e revestida por fibras vegetais. No entanto, a presença de numerosos fragmentos de barro de revestimento parece indicar que as construções destas estruturas circulares, ainda que podendo privilegiar a madeira em certos casos, usariam uma argamassa argilosa que seria colocada nos interstícios do entrelaçado em madeira e como revestimento. O entrelaçado de materiais não se resume, no entanto, à madeira e à terra (também referido em J.M. Cardoso, 2014). A atividade construtiva é um processo relacional, na medida em que incorpora diversos materiais (água, fragmentos cerâmicos, 86

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ossos de animais, lajes de xisto, percutores, elementos talhados em quartzo…) e se conecta com um conjunto mais vasto de diversas práticas. Esse processo relacional está patente na incorporação de materiais no aparelho construtivo como por exemplo, fragmentos cerâmicos e fragmentos osteológicos. Tomando como exemplo paradigmático a Grande Estrutura Circular 1 para ilustrar este processo, referimos novamente o conjunto de fragmentos cerâmicos de grandes dimensões (superiores a 7 cm) associados às lajes de xisto que definem os limites da estrutura interpretado como pertencente ao dispositivo arquitetónico. Os fragmentos cerâmicos estariam associados à construção da própria estrutura. Também a concentração de barro de revestimento identificada nesta estrutura revelou a inclusão de um “dente” num fragmento de barro de revestimento.

Construção, tradição e prática. A diversidade de estruturas circulares em Castanheiro do Vento, materializada na localização, tamanho, técnicas construtivas, obriga a um estudo atento a cada uma destas unidades. No entanto, a uma escala mais ampla de análise, parecem denunciar uma partilha de modos de fazer, uma tradição na elaboração das estruturas, sublinhando a vivência contínua do sítio. O reconhecimento de tradições nas práticas de fazer fala da partilha e transmissão de histórias e memórias, de experiências, de uns para outros, de uma geração para outra, reforçando o laço social e o sentimento de pertença. No entanto, as construções que denunciam tradições de práticas não são apenas o reflexo da repetição acrítica e sem impressão criativa. Porque o que se repete é sempre diferente, a tradição é (também) criação; a tradição é recriada e revisitada a cada momento pela prática, como na construção de unidades circulares em Castanheiro do Vento, em que a reunião atenta de lajes e fragmentos cerâmicos, de terra e de água, de madeira e de pequenos ossos de animais, insere a estrutura numa rede de relações, e nesse sentido ser necessário o estudo individual de cada estrutura, atendendo ao detalhe e à singularidade de cada unidade. Quando nos referimos à palavra “tradição” não estamos a pensar numa narrativa congelada, nem na(s) característica(s) que define(m) e se reconhece(m) como símbolo identitário de uma comunidade. Não entendemos aqui “tradição” como um conjunto de regras e normas que são impostas e repetidas pois, como Thomas referiu, “as tradições que as comunidades humanas passaram de geração em geração não são formas abstratas mas sim um conjunto de práticas” (J. Thomas, 2004: 176) 13. 87

A identificação do que podemos 13 “The traditions that designar como um grupo human communities hand down from partilhado de formas de fazer generation to assenta no reconhecimento de generation are sets of semelhanças; contudo, esta practices, rather than abstract forms.” linha não conduz à tradução de (Thomas, 2004: 176). uma estrutura original, posteriormente reproduzida. Cada estrutura tem em si a possibilidade de repetição; contudo, ao mesmo tempo, trás também consigo a impossibilidade de repetição na medida em que cada construção e cada estrutura são únicas. Cada estrutura é passível de ser repetida mas em cada repetição altera-se. A repetição não é apenas duplicação. Nesta linha, nenhuma das estruturas é a original e nenhuma é a cópia. As estruturas encontram-se entrelaçadas com o sítio e entre elas. Nenhuma das estruturas pode ser entendida como a primeira que origina e sustem a construção de estruturas circulares em Castanheiro do Vento. O processo de escavação também está embebido em tradições de práticas e de reconhecimento de “tradições de práticas”. A escavação e a análise de algumas estruturas colocam-nos mais claramente perante a dúvida e perante a dificuldade de interpretação. Será um encontro com a ausência de “tradições de práticas”? Quando a primeira grande estrutura circular (GEC1) de 8 metros de diâmetro começou a ser definida, não foi imediatamente reconhecida como uma estrutura circular. No início foi registada como um alinhamento de tendência curvilínea. E isto porque a tradição das formas de fazer estruturas circulares em Castanheiro do Vento não se aplicava a esta estrutura. O que queremos sublinhar é que o estudo de “tradições de práticas” num sítio particular não implica a elaboração de um manual de técnicas construtivas e de estruturas. É sempre um trabalho em aberto que deve suscitar constantemente o questionar da construção de espaços, neste caso, de Castanheiro do Vento. Questionar as “tradições de práticas” procura também falar das “histórias” de fragmentos cerâmicos, peças em granito, objetos trabalhados em quartzo, que por transformação, fragmentação, (re)uso, substituição, e reformulação, também carregam e criam histórias de outros tempos, ou seja – carregam tradição, memórias. Estas histórias de construção adquirem densidade temporal quando coisas antigas são rearranjadas, tornando-se novas, ou quando itens recém-criados são adicionados,

num processo de transformação mediante a criação de diferentes relações. As “tradições de práticas” não envolvem a perpetuação de uma mesma história mas a convocação de diferentes tempos; como refere L. McFadyen (2007), pela construção, o passado é trazido para o presente, não porque reúne apenas coisas do passado, mas devido às possibilidades que abre, pela 14 transformação . Neste sentido, tradição não é apenas a comemoração de eventos passados mas a possibilidade de outras construções, de um futuro. E podemos acrescentar que o processo de construção requer também a interpretação contínua dos locais e dispositivos e memórias que foram vividos/passados por gerações anteriores (como J. Barrett (1999) já referiu). Pelo processo de construção de estruturas circulares assim como de outras unidades, as comunidades reconhecem um legado e reconhecem-se como grupo, reinterpretam o que as rodeia, e ao repetir/criar, transmitem o legado que lhes foi passado a gerações vindouras, permitindo aos arqueólogos, hoje, reconhecer traços que podem indicar “tradições de práticas”. Enunciámos neste texto os preconceitos e os riscos da interpretação de espaços como casas e tentamos descrever as estruturas circulares de Castanheiro do Vento, as quais, segundo o paradigma funcionalista tradicional as dotaria de funções específicas, conectadas com o espaço doméstico. Poderíamos referir que as estruturas circulares identificadas não possuem uma lareira central. Esta ausência poderia suscitar problemas no encaixe destas unidades nas tabelas tipológicas de elementos construídos desenhadas para sítios arqueológicos semelhantes. Também poderíamos salientar que os materiais que foram recolhidos não se parecem articular com espaços domésticos devido à reduzida presença de recipientes cerâmicos ou de vestígios osteológicos, apesar de esta ausência poder ser explicada, segundo a linha funcionalista, por limpezas sucessivas (ou devido a problemas pós-deposicionais). No entanto, não é pela presença/ausência de materiais que se valida ou refuta a interpretação destas estruturas como unidades habitacionais. Como começamos por referir neste texto, o conceito de casa, extremamente complexo, alberga um conjunto de preconceitos e pressupostos, enraizados no projeto (que também pode ser dito ilusão) da sociedade burguesa ocidental, e nesse sentido, impossível de aplicar no estudo da Pré-História Recente. Estes espaços foram sim locais de vivência, de habitação contínua. Foram espaços em construção, combinando e usando diferentes materiais, peças inteiras e fragmentos,

cumprindo um projeto sem planta, mas que pela partilha de práticas de fazer se estruturam segundo um programa, ao mesmo tempo memória e sonho.

14 “…the past is brought forward to the present, not for its past material, but for its possibilities. It was not just that old and new items of material culture were being accumulated together, but that in that process these things were transformed.” (L. McFadyen, 2007:352)

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Fig 1: Croquis de Castanheiro do Vento. Tratamento gráfico de André Santos sobre desenhos de Bárbara Carvalho e João Muralha Cardoso.

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Fig. 2: Estrutura circular 3. Fotografia de João Muralha, 2005

Fig. 3: Grande Estrutura Circular 1. Fotografia de João Muralha, 2010 90

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Contexto Contexto

Ref. Laboratório BP

BP

Cal BC 22 sigma sigma

Ec3

Ua-32080

3895+/-40

2475-2211

Intersecção Bastião Q e Ecg18

Ua-33631

3855+/-35

2462-2206

Periferia de Ecg1/2/6

Ua-32079

3820+/-40

2457-2141

Intersecção Bastião S e Ec21

Ua-33632

3725+/-40

2278-1982

Ecg6

Ua-32087

3630+/-80

2204-1758

Ecg2

Ua-33980

3395+/-35

1868-1564

Ec15

Ua-33982

3170+/-35

1511-1391

Intersecção de Ecg11 e 13

Ua-32082

2350+/-35

702-367

Quadro 1: Conjunto de datações disponíveis para as estruturas circulares de Castanheiro do Vento (calibração com o programa Calib Rev. 5.0).

Estrutura Estrutura

Tipo Tipo

Subtipo Subtipo

Ec3, Ec10, Ec12 & Ec25

I

Ia

Ec 4, Ec14 & Ec20

I

Ib

Ec 5, Ec15 & Ec21

I

Ic

Características Características Forma: circular - 40% subcircular - 60% Área: entre 1.92m² & 5,29m² Forma: circular - 66% subcircular - 33% Área: entre 4.83m² & 5,29m² Forma: circular - 66% subcircular - 33% Área: entre 6.37m² & 9,90m²

Eg 11 & 13

II

IIa

Eg 23 & 24

II

IIb

Eg 1, 2 & 6 / 17, 18 & 19

III

IIIa

Eg 7, 8 & 9

III

IIIb

Área não excede os 3m² Área entre os 4m² & 5,5m² Área não excede os 4m² (excepto o 17 - 8,64m²) Área entre 5m² & 7m²

Quadro 2: Tipologia das estruturas circulares de Castanheiro do Vento (a partir de Cardoso, 2007) 91

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