As evoluções históricas e a “historiografia” dos juristas: Reflexões sobre o surgimento do judicial review

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As evoluções históricas e a “historiografia” dos juristas Reflexões sobre o surgimento do judicial review

FRANCYSCO PABLO FEITOSA GONÇALVES JOÃO PAULO FERNANDES ALLAIN TEIXEIRA

Sumário 1. Considerações iniciais. 2. Notas para uma perspectiva reflexiva sobre o (sub)campo jurídico-acadêmico. 3. A historiografia equivocada e o problema da “evolução histórica”. 4. As supostas origens. 5. Sobre os antecedentes estadunidenses do judicial review: as controvérsias em torno do caso Marbury. 6. Considerações finais.

Francysco Pablo Feitosa Gonçalves é bacharel e especialista pela Universidade Regional do Cariri, mestre pela Universidade Católica de Pernambuco, doutorando pela Universidade Federal de Pernambuco e professor. João Paulo Fernandes Allain Teixeira é bacharel, mestre e doutor pela Universidade Federal de Pernambuco, mestre pela Universidad Internacional de Andalucía, Espanha, e professor.

1. Considerações iniciais Um aspecto incômodo do Direito é o seu dogmatismo, que talvez já fique evidente na popularidade da questionável expressão dogmática jurídica1 para descrever o que seria uma Ciência do Direito. No campo jurídico, algumas concepções acabam ganhando aceitação tão ampla que assumem um forte status de verdade, ficam quase imunes ao questionamento e à refutação. Se, por exemplo, um neófito se propõe a questioná-las, a censura – que pode ser mais ou menos severa – é

1  Remetemos ao ensaio de Machado Segundo (2008), intitulado É apropriado falar-se de uma “Dogmática Jurídica”?, interessante e provocativo, embora desconsidere a questão de linguística de que as palavras tenham outro significado além daquele que lhes é dado (CARRIÓ, 1986), e talvez ainda seja uma crítica à dogmática um tanto apegado a um racionalismo científico tradicional.

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quase certa, uma violência simbólica2 cuja função é conformá-lo ao modus do Direito3. Embora reconheçamos que esse aspecto dogmático talvez se relacione a uma pretensa função de estruturação e estabilização da sociedade que o Direito supostamente deve apresentar, consideramos que determinados dogmatismos são incômodos, principalmente no (sub)campo jurídico-acadêmico, porquanto – às vezes a pretexto de criar uma aparência de cientificidade – acabam afastando a crítica e o questionamento, que aliás já tendem a ser precários na dogmática jurídica. No presente trabalho, a propósito, partimos de uma premissa bem simples: a de que, em Direito, nenhuma matéria deveria ficar livre de questionamentos ou discussão. Nessa perspectiva, o mote do presente trabalho é fazer uma revisão crítica do surgimento do judicial review a partir dos lugares-comuns que encontramos no discurso jurídico. Essa revisão, entretanto, pressupõe uma crítica da própria doxa do (sub)campo jurídico-acadêmico, uma crítica que permeia todo o presente trabalho e talvez a melhor forma de contextualizá-la seja explicar como foi desenvolvido. Ele nasceu no que poderia ser pensado como a interseção das nossas atividades relacionadas ao direito constitucional e das nossas pesquisas e reflexões relacionadas ao ensino jurídico e ao (sub)campo jurídico-acadêmico recifense. Nesse sentido, realizamos uma revisão do desenvolvimento do judicial review, com ênfase no controle de constitucionalidade que teria sido inaugurado a partir do célebre caso Marbury v. Madison. Já sabíamos que o caso em questão não havia sido o primeiro em que a constitucionalidade de uma lei fora apreciada pelo Judiciário, nem era isento de críticas, como muitos juristas pensam. Durante as primeiras leituras e debates relacionados ao tema, percebemos que a pesquisa era inspirada em grande parte pela perspectiva epistemológica da sociologia reflexiva de Bourdieu e, a

2  Emprestamos o conceito de violência simbólica de Bourdieu e Passeron: “Todo poder de violência simbólica, isto é, todo poder que chega a impor significações e a impô-las como legítimas, dissimulando as relações de força que estão na base de sua força, acrescenta sua própria força, isto é, propriamente simbólica, a essa relações de força” (BORDIEU; PASSERON, 2011, p. 25). “Toda ação pedagógica (AP) é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbítrio cultural” (BORDIEU; PASSERON, 2011, p. 26). 3  Existem outras formas de conformar o sujeito ao Direito; por exemplo, as expectativas de que o acadêmico se expresse e se comporte de uma determinada forma, adote uma determinada indumentária etc. Mas queremos chamar especial atenção para a censura ao questionamento, que acaba por reforçar determinados dogmas. Diretamente relacionadas a esses dogmas estão as doutrinas, que também acabam reforçando o dogmatismo e a consolidação dos dogmas. Fazemos referência à doutrina, também, como argumento de autoridade, já que, embora nem sempre tenha o mesmo prestígio de outros argumentos de autoridade – como a jurisprudência e as leis – é evidente a função do discurso jurídico doutrinário na (re)produção de contextos sociais, inculcando determinadas concepções nos sujeitos que lidam com o Direito.

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partir daí, racionalizamos o problema e realizamos a pesquisa propriamente dita. Como resultado dessa pesquisa, o presente trabalho começa com uma breve apresentação dos pressupostos teóricos e epistemológicos; a sociologia reflexiva de Bourdieu, que forneceu a fundamentação teórica e o ponto de vista teórico a partir do qual realizamos a investigação bibliográfica; e autores que realizaram críticas incisivas à doxa jurídica, em especial no que concerne à questão das evoluções históricas. Terminada essa etapa inicial adentraremos a questão do surgimento do judicial review e será dada ênfase ao caso Marbury. Inicialmente ele será retratado como ele costuma ser pensado pelos juristas no Brasil, avaliando o contexto do seu surgimento e apresentando alguns aspectos de sua recepção no Direito e na política estadunidense. Quanto à pesquisa bibliográfica, temos consciência das insuficiências da nossa investigação, que aliás não pretende ser exaustiva; ainda assim, acreditamos que ela traz alguns pontos importantes para a reflexão e crítica do senso comum teórico dos juristas. Antes de passar ao conteúdo do trabalho, entendemos ser necessário deixar algumas advertências. A primeira é que, embora nosso trabalho consista numa crítica à historiografia que se produz no Direito, e nossa escrita não seja marcada pelo reverencialismo característico do Direito – o que talvez pudesse acentuar o teor da crítica – este trabalho não deve ser visto como um ataque aos autores que citamos. De fato, procuramos, na medida do possível, pesquisar – e citar – fontes que fossem mais criteriosas do que o senso comum jurídico padrão. É importante registrar, a propósito, que não nos colocamos fora da crítica que fazemos, não pretendemos assumir um ponto de vista externo extremo ou um ar de mera censura. Nossa crítica dirige-se ao (sub)campo jurídico-acadêmico, do qual somos agentes, e,

como tais, não poderíamos estar num ponto de Arquimedes, nem se ele pudesse existir. Assim, nossa crítica deve ser tomada, reflexivamente, como uma autocrítica de forma que, apesar dos nossos esforços, o presente trabalho, que tenta sair do senso comum que domina o que podemos chamar de historiografia feita por juristas, pode estar marcado por resquícios do referido senso comum. Uma última advertência é que empregamos as expressões judicial review e controle de constitucionalidade sem excessivas preocupações com o rigor conceitual, mas sabemos que são conceitos amplos e complexos. O judicial review refere-se à revisão e eventual invalidação de atos do Legislativo e do Executivo, e o controle de constitucionalidade – no Brasil – pode ser preventivo ou repressivo, exercido pelo Legislativo, Executivo e Judiciário. Neste trabalho, entretanto, como o título sugere, nós estamos especialmente interessados na revisão judicial das leis. Empregamos o termo judicial review, portanto, sem maiores pretensões, não queremos teorizar a respeito, nosso objetivo é apenas remeter à doutrina segundo a qual os atos do Legislativo e do Executivo estão sujeitos à revisão e eventual invalidação pelo Judiciário. Usamos a expressão, portanto, como um conceito operacional, sem maiores pretensões em relação ao seu conteúdo e significado. Por fim, e a título de justificativa – para o campo jurídico – sobre o mote do presente trabalho, vale lembrar que vivemos em tempos de tensão entre o Judiciário e os demais poderes, o tema, portanto, está na ordem do discurso, e está entre os mais relevantes, já que um dos focos dessa tensão é justamente os limites – ou sua ausência de limites – do Judiciário no que concerne à sua interferência nas políticas públicas, outro é a chamada abstrativização do controle difuso. Sendo assim, para o jurista interessado

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nessas questões, nada mais necessário do que rever as origens do judicial review, sobretudo nas tensões e controvérsias do caso Marbury v. Madison, até porque, como veremos, os debates da época podem fornecer uma perspectiva interessante sobre o debate atual.

2. Notas para uma perspectiva reflexiva sobre o (sub)campo jurídicoacadêmico Como já dissemos, o presente trabalho baseia-se, em grande medida, na sociologia reflexiva de Pierre Bourdieu. Como sabemos, Bourdieu foi, muito provavelmente, o pensador social mais citado no mundo na primeira década do corrente século4 – embora permaneça praticamente desconhecido pelos juristas5. Sua sociologia, reflexiva e relacional, parece-nos um referencial interessante para compreender, de forma crítica, o fenômeno jurídico, e é nessa perspectiva que apresentaremos, nas linhas que seguem, um breve panorama – e como tal, em alguma medida redutor e mutilador – da sociologia de Bourdieu no que ela nos ajuda a pensar o Direito. Uma primeira observação diz respeito ao fato de a teoria, em Bourdieu, se voltar sempre para a prática. Todos os conceitos, em Bourdieu, emergem na prática da realização da pesquisa, e toda a teoria é uma construção temporária 4  Esse é um fato quase incontrovertido nas ciências sociais, para mais informações sobre as pesquisas que apontam Bourdieu como o pensador social mais citado da segunda metade do séc. XX. Ver Santoro (2008). 5  Com isso, não queremos dizer que ele não aparece na bibliografia de trabalhos jurídicos ou que os juristas nunca citaram Bourdieu em seus trabalhos, mas que, salvo poucas situações, os operadores do Direito desconhecem a sociologia reflexiva de Bourdieu e não usam suas obras como fundamentação teórica, muito embora, dependendo do objeto de pesquisa, a sociologia reflexiva talvez tivesse muito mais a oferecer do que as teorias de outros pensadores sociais que ganharam uma aceitação maior no Direito, como Luhmann e Habermas.

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que toma forma pelo e para o trabalho empírico (BOURDIEU, 1992, p. 161). Bourdieu leva a pesquisa empírica tão a sério que chega a criticar expressamente os teóricos que estão muito preocupados em não sujar suas mãos nas cozinhas da pesquisa empírica6 (BOURDIEU, 1992, p. 193). Essa preocupação com a prática não significa, entretanto, que Bourdieu pratique uma sociologia espontânea que descreve fatos, interações, instituições discursos etc., como algo autoevidente, dado em si mesmo, ignorando que essas descrições traduzem a visão – interessada – do sujeito que descreve. Com isso, queremos dizer que, embora a sociologia bourdieusiana pressuponha que toda a teoria se volte para a pesquisa empírica, a realidade empírica é apreendida a partir de pressupostos e referenciais teóricos. Nas palavras de Bachelard (1979, p. 92): “o sentido do vetor epistemológico parece-nos bem nítido. Vai seguramente do racional ao real e não, ao contrário, da realidade ao geral, como o professavam todos os filósofos de Aristóteles a Bacon. Em outras palavras, a aplicação do pensamento científico parece-nos essencialmente realizante”7. Ou seja, observamos a partir de uma perspectiva teórica – vale lembrar, aliás, que o sentido grego de teoria estava relacionado justamente a uma visão de mundo – e sem um ponto de vista não temos como observar nada. Diretamente relacionado a isso está o fato de que a sociologia deve ser reflexiva, deve estar sempre voltada para si mesma, não apenas a objetos externos, mas também ao trabalho de sua própria experiência, o que pressupõe a reflexão e o questionamento constantes sobre 6  Uma crítica, aliás, muito apropriada aos juristas teóricos e à falta de pesquisa empírica séria no Direito. 7  A citação de Bachelard não aparece por acaso, chegamos a ela a partir do próprio Bourdieu (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2007, p. 48, 190).

temas, procedimentos e sobre o próprio pesquisador, seu posicionamento no campo e relação com o objeto: “Para ser verdadeiramente autônoma e cumulativa, e plenamente conforme a sua vocação científica, a sociologia deve ser também e sobretudo reflexiva. Ela deve tomar-se a si própria por objecto, usar de todos os instrumentos de conhecimento de que dispõe para analisar e dominar os efeitos sociais que se exercem sobre ela e que podem perturbar a lógica propriamente científica do seu funcionamento” (BOURDIEU, 2007, p. 243).

Essa reflexividade, que não deve ser confundida em hipótese alguma com uma postura egocêntrica, pressupõe não apenas a objetivação do agente, mas também a do próprio inconsciente científico coletivo, em sua fixação a teorias, problemas e categorias, ou seja, a reflexividade deve voltar-se, em última análise, ao campo científico como um todo. “O que deve ser objetivado não é (apenas) o indivíduo que faz a investigação em sua idiossincrasia biográfica mas a posição que ele ocupa no espaço acadêmico e as tendências implicadas pelo ponto de vista que adota em virtude de estar ‘off-side’ ou ‘fora do jogo’ (hors jeu)” (BOURDIEU, 1992, p. 86-87, tradução nossa, grifo do autor)8.

Além disso, o trabalho de objetivação do sujeito objetivante deve ser feito não apenas pelo autor, mas pelos ocupantes das posições antagônicas e complementares no campo científico (WACQUANT, 1992, p. 40-41). O presente trabalho, aliás, consiste em uma tentativa de objetivar aspectos do habitus jurídico – inclusive o nosso. De fato, a partir do que registramos anteriormente sobre a forma como a presente pesquisa foi conduzida, fica evidente que ela não é uma pesquisa sociológica – ao menos não em sentido estrito – e não está vinculada a uma pesquisa empírica rigorosa, com observação, questionários e/ou entrevistas e análise de conteúdo etc. Ainda assim, consideramos que a presente pesquisa se baseia na sociologia reflexiva porquanto, como dissemos, o que estamos avaliando é a forma como a historiografia é feita no (sub)campo jurídico-acadêmico, e sobretudo porque nossos pressupostos epistemológicos são os da sociologia reflexiva. Vistos esses pressupostos, podemos explorar alguns conceitos chave da sociologia bourdieusiana – campo, habitus, capital e illusio –, os quais não podem ser instrumentalizados fora desses pressupostos teórico-

8  No original: “What must be objectivized is not (only) the individual who does the research in her biographical idiosyncracy but the position she occupies in academic space and the biases implicated in the view she takes by virtue of being ‘off-sides’ or ‘out of the game’ (hors jeu).”

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-epistemológicos que mencionamos brevemente. Temos falado, nas linhas anteriores, em campo, campo jurídico, (sub)campo jurídico-acadêmico etc., numa clara alusão à ideia de campo conforme teorizada por Bourdieu, que articula esse conceito para referir-se a um “[...] espaço de relações objetivas entre as posições definidas pela sua posição na distribuição de competências concorrentes ou espécies de capital [...]” (BOURDIEU, 1992, p. 114, tradução nossa)9. Desse modo, o campo é possuidor de uma lógica própria, relativamente autônomo – irredutível à lógica que rege outros campos – e em seu interior ocorrem disputas pela apropriação de diferentes bens, e pela própria definição do valor desses bens10. Com base nisso, podemos pensar o espaço acadêmico jurídico, como constituído por relações objetivas e possuidor de uma lógica própria, levemente diferente de outros espaços universitários; e esse espaço jurídico acadêmico – cujo fetiche historiográfico criticaremos – é relativamente autônomo. Assim, ainda que – em algumas instituições mais que em outras – conserve certa subalternidade em relação a outros campos, como o campo universitário (pensemos nas regras referentes aos títulos acadêmicos) e o campo jurídico (aqui os efeitos do Exame da ordem nas faculdades talvez sejam um bom exemplo), parece razoável dizer que esse espaço universitário jurídico apresenta uma autonomia relativa que talvez nos autorize a pensar nele como um campo ou como um subcampo. Como (sub)campo, esse espaço universitário jurídico é tipicamente escolástico11, ou seja, um campo no qual predomina uma visão distanciada da realidade social. Essa visão, na mesma medida em que permite atuar sobre a referida realidade social, também representa um certo distanciamento e alienação. Esse distanciamento, que aliás está na origem e é uma das condições de autonomia dos campos escolásticos, é o que propicia que sejam feitas, no (sub)campo jurídico-acadêmico, apropriações e narrativas de fatos históricos que os demais cientistas sociais – em especial os historiadores – considerariam ingênuas.

9  No original: “[...] space of objective relations between positions defined by their rank in the distribution of competing powers or species of capital [...]” 10  “A noção de campo está aí para designar esse espaço relativamente autônomo, esse microcosmo dotado de suas leis próprias. Se, como o macrocosmo, ele é submetido a leis sociais, essas não são as mesmas. Se jamais escapa às imposições do macrocosmo, ele dispõe, com relação a este, de uma autonomia parcial mais ou menos acentuada” (BOURDIEU, 2004a, p. 20-21). 11  A disposição escolástica – relacionada à liberdade e desprendimento em relação às urgências e vicissitudes da vida comum – é típica dos campos eruditos, como o campo acadêmico, o campo jurídico e, claro, o (sub)campo acadêmico-jurídico. Ela permite compreender, em grande parte, a propensão ao teórico e à abstração em detrimento da vida cotidiana e seus problemas. Sobre os campos escolásticos, ver Meditações Pascalianas (BOURDIEU, 2007).

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Dissemos anteriormente que, no interior dos campos, os agentes disputam tanto a apropriação de diferentes bens, como a definição do valor desses bens. Aqui temos o momento adequado para pensar outros conceitos bourdieusianos, tais como capital, habitus e illusio. Como sabemos, Bourdieu amplia o conceito de capital, que tradicionalmente é pensado apenas em sua forma econômica, para se referir à sua forma cultural, social, simbólica etc. Em poucas palavras, quando consideramos que os agentes disputam o capital – e a própria (re)definição do capital – dentro dos campos, podemos considerar que o habitus é o que os torna aptos à disputa e a illusio é o que os faz disputar apaixonadamente. Melhor dizendo, quando consideramos o habitus como “sistema de esquemas adquiridos que funciona no nível prático como categorias de percepção e apreciação, ou como princípios de classificação e simultaneamente como princípios organizadores da ação” (BOURDIEU, 2004b, p. 26); podemos ilustrar o funcionamento do habitus recorrendo a Wacquant, que exemplifica com o jogador de futebol dotado de grande visão de campo, que, mesmo quando é surpreendido no calor da ação, é capaz de intuir os movimentos de seus companheiros de time e dos adversários e atuar de maneira inspirada, em detrimento da reflexão consciente e sistemática sobre seus atos (WACQUANT, 1992, p. 21). Aproveitando a referência ao jogo, e parafraseando o próprio Bourdieu (2011), podemos dizer que a illusio pode ser compreendida como estar no jogo, envolvido, levando-o a sério e acreditando que vale a pena jogar. Ambos, habitus e illusio, operam mais numa dimensão subconsciente do que consciente, de forma que não temos como objetivar totalmente o nosso interesse de jogar em determinados campos em detrimento de outros assim como não racionalizamos totalmente nossas jogadas. A apresentação desses conceitos, ainda que

nessa forma sucinta e rudimentar, é necessária para que compreendamos o funcionamento do (sub)campo jurídico-acadêmico nessa sua prática, que são as evoluções históricas.

3. A historiografia equivocada e o problema da “evolução histórica” Historiografia é um termo raramente usado pelos juristas, que desconhecem o rico debate que existe em torno do seu significado, um debate que se relaciona, em última análise, à própria História, enquanto campo científico. A palavra historiografia parece surgir para se referir à história escrita, às obras que registram a história. Nesse sentido, a história seria processo e a historiografia a descrição do processo. Com o passar do tempo, entretanto, a historiografia vai ganhando novos sentidos. O fértil debate em torno da historiografia – e as questões epistemológicas e metodológicas envolvidas – se relacionam, aliás, ao fato de que a História é um campo que tem uma autonomia científica considerável, o que lhe permite ser uma área do conhecimento muito auto-reflexiva. Os historiadores estão sempre interessados nos limites de sua compreensão e no seu papel enquanto sujeitos e atores sociais12. Dito isso, embora não sejamos historiadores, queremos registrar que conhecemos os significados mais atuais da historiografia – e.g. história da história, análise crítica do conhecimento histórico etc. – mas, no presente trabalho, utilizamos o termo para nos referir à escrita da história13, tanto porque precisamos de uma palavra diferente de história como porque empregar a historiografia nesse sentido remete ao 12  Uma consciência e uma reflexão que parecem faltar a muitos juristas. 13  Para um aprofundamento no interessante debate sobre os conceitos de historiografia e história, recomendamos os trabalhos de Malerba (2006) e Torres (1996).

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contraste entre as formas como historiadores e juristas veem – e escrevem – a história, o que nos parece bastante oportuno. Com o perdão do trocadilho, queremos fazer uma análise crítica da forma acrítica como os juristas em geral tratam o conhecimento histórico. Sobre essa forma, que nos remete ao habitus dos juristas, parece interessante lembrar as palavras de Luís Alberto Warat, para quem o problema da cientificidade no Direito – assim como em outras áreas – ocasionou a rejeição das representações ideológicas e/ou metafísicas, como se o campo jurídico pudesse ser neutro, como se pudesse ser puro. Na realidade, quando esse racionalismo científico é apropriado pela práxis jurídica, todas as representações aparentemente rejeitadas continuam a manifestar-se. Mesmo tentando diferenciar o senso comum (a doxa), do conhecimento científico (a episteme): “o conhecimento científico do direito termina sendo um acúmulo de opiniões valorativas e teóricas, que se manifestam de modo latente no discurso, aparentemente controlado pela episteme. Estamos diante do senso comum teórico dos juristas, que é um conhecimento constituído, também, por todas as regiões do saber, embora aparentemente, suprimidas pelo processo epistêmico” (WARAT, 1982, p. 50-51).

O senso comum teórico dos juristas consiste, para Warat, num conhecimento e num discurso acríticos, supostamente desinteressados, mas que na realidade legitimam uma série de práticas sociais. Na verdade, nenhum discurso é neutro, nenhum discurso provém do vácuo social, nem é nele proferido (COLARES, et al., 2008): mesmo que o nosso texto pudesse ser neutro, ele seria interpretado e valorado a partir das pré-compreensões do leitor/interlocutor. Mas, para nós juristas, isso nem sempre parece ficar claro e nosso senso comum teórico parece prevalecer.

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“Metaforicamente, caracterizamos o senso comum teórico como a voz “off ” do direito, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, a partir das quais, podemos dispensar o aprofundamento das condições e das relações que tais crenças mitificam. A grosso modo, podemos dizer que os hábitos semiológicos de referência encontram-se constituídos: por uma série móvel de conceitos, separados, estes últimos, das teorias que os produziram; por um arsenal de hipóteses vagas e, às vezes, contraditórias; por opiniões costumeiras; por premissas não explicitadas e vinculadas a valores; assim como, por metáforas e representações do mundo. Todos estes elementos, apesar de sua falta de consistência, levam a uma uniformidade última de pontos de vista sobre o direito e suas atividades institucionais” (WARAT, 1982, p. 54, grifo nosso).

O que Warat está criticando, na verdade, é em grande parte a doxa do campo jurídico que se projeta no (sub)campo jurídico-acadêmico – que não é totalmente autônomo. As crenças a que ele se refere permeiam o habitus dos juristas – não são, portanto, ações inteiramente racionais – e, como tal, contribuem significativamente para a reprodução do campo jurídico ao mesmo tempo em que são produzidas nesse campo. É a partir dessa matriz de percepção, apreciação e ação que os juristas compreendem e agem no mundo social, e se os cientistas do direito ainda hoje tentam justificar a cientificidade do que fazem, isso se deve, em grande parte, à pouca autonomia que o (sub)campo jurídico-acadêmico apresenta em relação a outros campos14. 14  Sobre as possibilidades de uma ciência do Direito, concordamos com Bourdieu quando ele diz que “Uma ciência rigorosa do direito distingue-se daquilo a que se chama geralmente ‘a ciência jurídica’ pela razão de tomar esta última como objecto. Ao fazê-lo, ela evita, desde logo, a alternativa que domina o debate científico a respeito do direito, a do formalismo, que afirma a autonomia absoluta da forma jurídica em relação ao mundo social, e do

Como caminho para avançar em relação ao senso comum teórico, Warat propõe que comecemos a buscar a compreensão do sistema de significações, e que abordemos a questão do poder social das significações proclamadas científicas. A sua proposta se vincula à defesa de um pensamento crítico, que não perceba as coisas como reificadas, naturalizadas, mas como algo que foi construído. Noutras palavras, deveríamos ser capazes de compreender o sentido político por trás das verdades que nos são apresentadas15. Em muitos aspectos, a proposta de Warat lembra a da Teoria Crítica, em seu primeiro momento. A dualidade entre senso comum teórico e pensamento crítico, por exemplo, guarda certa analogia com os escritos seminais de Horkheimer (1975a; 1975b), quando ainda havia a crença nas possibilidades reais de emancipação – antes, portanto, da Dialética do esclarecimento (ADORNO; HORKHEIMER, 1985) –, na qual Adorno e Horkheimer reconhecem que, dentro do capitalismo administrado, as condições para a razão crítica e emancipadora se tornaram precárias. Como, no texto em questão, Warat não faz referência aos frankfurtianos – ele praticamente não faz referências, aliás. Embora percebamos a proximidade das ideias, não temos como precisar se houve ou não influência direta, nem se ele teria reconhecido a aporia assumida conscientemente por Adorno e Horkheimer – a precariedade da crítica no capitalismo administrado, onde a razão instrumental é a única forma de racionalidade no capitalismo administrado – e como, a partir daí, ele proporia as possibilidades de desenvolvimento de um senso crítico no Direito. Neste artigo, não nos estenderemos mais nas considerações epistemológicas ou na perspectiva do pensamento crítico – em oposição ao tradicional – e suas consequências, como discurso que não pretende apenas descrever de forma neutra, mas se propõe abertamente a reconstruir. Queremos apenas abordar um aspecto um tanto incômodo que permeia o discurso jurídico, que entendemos estar diretamente relacionado ao que Warat chama de senso comum teórico e que poderíamos chamar de senso comum historiográfico dos juristas ou até mesmo de distorção historiográfica, na medida em que é um discurso evolucionista seletivo, que exclui diversos fatos não condizentes com o que se quer defender. Muitas doutrinas e manuais – e também teses, dissertações e artigos – jurídicos tentam legitimar seus argumentos por meio de uma pseudo-historiografia que se resume na conveniente apresentação, geralmente instrumentalismo, que concebe o direito como um reflexo ou um utensílio ao serviço dos dominantes” (BOURDIEU, 2012, p. 209, grifo do autor).  Ver Warat (1982, p. 50).

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descontextualizada, de fatos supostamente históricos, como se eles fossem verdadeiros evidentes em si mesmos. Abordando especificamente as teses e dissertações jurídicas, Luciano Oliveira lembra que é frequente a presença de capítulos pretensamente historiográficos – e também filosóficos e sociológicos – sobre o tema do trabalho:

dentemente, que não se possa recorrer a fatos históricos. E, da mesma forma que ele, não nos opomos ao recurso à história, à sociologia, à filosofia etc. O problema está no recurso acrítico, descontextualizado e, muitas vezes, feito de forma equivocada, como uma caravana de ecos legitimadores de um conjunto de crenças, como diria Warat.

“Normalmente isso é apresentado como se se tratasse de uma perspectiva interdisciplinar. Mas termina sendo nada mais nada menos do que uma confusão. Aliás, talvez mais propriamente falando, freqüentemente sequer chega a se tratar de uma autêntica con-fusão, ou seja, a justaposição, num mesmo trabalho, de capítulos que pertenceriam a mais de uma ciência, pois o que muitas vezes aparece como tal resume-se a alguns lugares comuns extraídos daqui e dali – muitas vezes, repetindo o vezo já conhecido, de simples manuais – sem maior consistência. O que acontece com as habituais incursões históricas que via de regra antecedem a abordagem do tema no presente é, a esse respeito, exemplar. Seguramente a maioria dos trabalhos que tenho examinado não dispensa uma incursão desse tipo, muitas vezes apresentada sob a fórmula ‘Evolução Histórica do(a)...’, seguindo-se a menção ao objeto que está sendo examinado. É com freqüência que, nesse momento, surge a referência a uma antiga e, literalmente falando, mitológica legislação: o famoso Código de Hamurábi!” (OLIVEIRA, 2003, p. 31-311, grifo do autor).

“Num trabalho sobre justiça tributária, seu autor, em não mais do que meia página, faz um percurso de milhares de anos que começa com os egípcios – ‘entre os quais já se falava em contribuição dos habitantes para com as despesas públicas de acordo com as possibilidades de cada um’ –, passa naturalmente pelo império romano e, no parágrafo seguinte, já está no Brasil da Constituição de 1988, a qual, obviamente, proclama todas os princípios de justiça tributária que os egípcios já intuíam... No trabalho sobre a lesão nos contratos, já referido, o seu autor, discorrendo sobre a teoria da imprevisão, diz que ela já está bem delineada no Código de Hamurábi: ‘Se alguém tem um débito a juros, e uma tempestade devasta o campo ou destrói a colheita...’ etc., etc.” (OLIVEIRA, 2003, p. 312).

Concordamos com Oliveira que, muitas vezes falta aos juristas o traquejo para abordar fatos históricos e concepções de outras ciências e, até mesmo, para utilizar adequadamente determinados referenciais teóricos. “Não se pode impunemente, por exemplo, num mesmo trabalho utilizar ao mesmo tempo Platão e Nietzsche, citando frases descontextualizadas, sem se estar consciente de que eles, como água e óleo, não se misturam” (OLIVEIRA, 2003, p. 317). A crítica de Oliveira não significa, evi-

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Colocadas dessa forma, as evoluções históricas acabam prestando-se a naturalizar um determinado estado de coisas, como se ele fosse a única condição possível e não uma entre tantas, e como se esse estado de coisas não comportasse múltiplas interpretações, o que é ainda mais problemático se pensarmos que tais evoluções se referem a diferentes momentos e instituições, às vezes passando por milhares de anos, como bem observa Oliveira no fragmento transcrito. Quando nos questionamos por que nós, juristas, tendemos a agir dessa forma, uma explicação é que não sabemos fazer pesquisa histórica, não sabemos agir de outra forma, mas não é apenas isso, os habitus dos juristas são moldados de tal forma que tendemos a nos tornar estatalistas. Quando pensamos no papel

que o Estado tem na unificação do mercado cultural – desnecessário discorrer sobre a unificação da língua, do ensino etc. – e em como ele fornece não apenas conteúdos em si, mas também molda a forma das estruturas mentais que os recebem (BOURDIEU, 2011, p. 105-106), fica fácil perceber que nós, juristas, especialmente treinados no direito estatal, temos a tendência de adotar o ponto de vista do Estado. Não se trata, portanto, de uma questão puramente consciente, mas das nossas estruturas de percepção, apreciação e ação, nossos habitus e nossa illusio, nossa forma estatalizada de pensar e agir e o gosto que sentimos ao agir de tal forma. No plano consciente, se há algo que nos impele a agir dessa forma, provavelmente é o desejo de defender uma determinada tese e/ou de dar resposta a um determinado problema. Voltemos ao fragmento de Oliveira que citamos anteriormente. Se os egípcios já intuíam os princípios da justiça tributária, então as teses do autor do trabalho – provavelmente favoráveis à justiça tributária – só podem estar certas. Como demonstra Oliveira, a construção de uma evolução histórica é um artifício comum nos trabalhos jurídicos. O curioso é que nem os autores nem aqueles que avaliam os referidos trabalhos costumam perceber que isso pode muito bem pesar contra o trabalho. Ora, se os princípios de justiça tributária estão sedimentados desde os egípcios, qual a relevância de um trabalho sobre eles hoje em dia? A mesma abordagem inadequada das evoluções históricas ocorre, evidentemente, quando se trata do tema que é o mote do presente trabalho, o judicial review, e questões conexas, como a supremacia da Constituição, o controle de constitucionalidade etc. É comum se partir da Grécia antiga, passar pela Magna Carta, pela Constituição dos EUA, chegar ao caso Marbury v. Madison, à Constituição austríaca de 1920 e à Constituição de 1988. Pronto. Eis a evolução histórica16 do controle de constitucionalidade. Alguns milhares de anos resumidos em poucas páginas ou parágrafos. As fontes? Qualquer autor que tenha dito o que se queira citar. O argumento de autoridade basta17. Com algumas poucas modificações – alguns fatos a mais ou a menos, talvez um linguajar mais verborrágico – esse é o modus operandi presente no discurso da maioria das obras jurídicas, sobre os mais variados

16  “Evolução histórica”, aliás, é uma expressão largamente empregada no Direito, mas pouco presente nas demais ciências sociais e humanas, sobretudo na forma como é empregada no Direito, em que evolução significa algo como um processo de desenvolvimento ou crescimento. 17  Esse recurso acrítico ao argumento de autoridade é o que Stamford (2007, p. 337) chama de “‘fofocas’ jurídicas” ou “reprodutividade irreflexiva do argumento de autoridade no âmbito do Direito”.

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temas. Quando pensamos no judicial review e sua dita evolução, somos estimulados a pensar que ele é uma realidade inevitável; é como se, desde a pré-história, estivéssemos destinados a ele e a evolução histórica apenas esclarece isso. “Perguntar-se-ia: qual é o problema? A resposta é plural. Em primeiro lugar, é preciso observar que esse tipo de história – que, muito grosso modo, poderíamos classificar como pertencendo à linha do ‘evolucionismo’, onde as normas e valores do presente já existem em embrião no passado mais longínquo –, está, de um modo geral, em desuso entre os historiadores há bastante tempo. Vejam bem: não se trata de descartar inteiramente uma história desse tipo, mas advertir contra o seu uso inocente. O seu desuso atual, por exemplo, não significa necessariamente que esse tipo de história não possa ter lugar. O problema é que o jurista-autor – semelhantemente ao personagem de Molière que fazia prosa sem o saber – adota um viés evolucionista sem consciência do que está fazendo. Um evolucionismo, aliás, que em tudo se assemelha ao cumprimento de um simples ritual, pelo fato de essas incursões históricas não serem o fruto de uma pesquisa original, mas, via de regra, uma compilação de informações e autores os mais diversos e variados – muitas vezes colocados lado a lado sem um fio que os costure –, hauridos mais uma vez em manuais ou livros de divulgação, e não em literatura especializada e específica” (OLIVEIRA, 2003, p. 312, grifo do autor).

A verdade é que – com raras exceções – os juristas não sabem fazer historiografia; essas evoluções históricas que apresentamos são arremedos de uma história positivista, pré-Escola dos Annales18. Ignoramos como a história é presentista, ou seja, como o passado é apreendido através das lentes do presente, como os fatos históricos são percebidos a partir de ideias e interesses atuais19. E, ainda assim, essas evoluções históricas estão por toda a parte, nos artigos, dissertações, teses, manuais etc. Mas a que fim elas se prestam além de legitimar práticas atuais? Como já dissemos,

18  Referimo-nos ao movimento historiográfico iniciado a partir dos anos 20/30 do séc XX, constituído a partir – e em torno – da Revue des Annales, marcado pela interdisciplinaridade e pela incorporação dos métodos e fontes das demais ciências humanas e sociais à História. 19  Falamos no presentismo em alusão a autores como Conyers Read e Charles Beard, que se opuseram à concepção positivista de que o passado seria algo objetivo e imutável (SCHAFF, 1995). Nessa perspectiva, a questão do presentismo pode ser colocada em termos hermenêuticos, no sentido de que, conforme lembra Adam Schaff, na perspectiva do presentismo, no conhecimento e no discurso histórico o sujeito e o objeto agem um sobre o outro. Nessa perspectiva, se o conhecimento e o comprometimento do historiador são socialmente condicionados, se ele, o historiador, sempre tem um espírito de partido (SCHAFF, 1995, p. 105), o que poderíamos dizer do jurista que pretende fazer historiografia? No discurso jurídico, poucos apresentam a lucidez de um Nelson Saldanha, quando percebe que “o que se chama passado é um esquema que se ‘tem’ no presente, que se utiliza na vida espiritual presente. Mais, porque a relação de tal passado com o passante chamado presente é situada pelos interêsses historiográficos e historiológicos. Interêsses cujo tom e cuja direção são dados pela consciência do presente, que condiciona esquemas, conceitos, métodos, tudo com que se ‘faz’ história” (SALDANHA, 1967, p. 95-96).

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na prática, quando fazemos essas evoluções históricas, estamos nos propondo a construir/ legitimar uma determinada verdade – um dogma? – mas será que pelo menos refletimos sobre o que nosso discurso está legitimando20? Poderíamos continuar discorrendo numa perspectiva epistemológica sobre a forma como se tenta fazer historiografia no campo jurídico e o que se legitima com essa forma de articular o discurso jurídico, embora essa reflexão seja sempre válida, não vamos nos estender ainda mais nessas questões; em vez disso, apresentaremos algumas questões e reflexões sobre os lugares-comuns da evolução do judicial review e questões conexas, como o controle de constitucionalidade e uma breve revisão das origens do que hoje conhecemos por Constituição.

4. As supostas origens Comecemos com os supostos antecedentes na antiguidade grega. É relativamente frequente a menção à politeia grega, como “ordem fundamental da comunidade, que regrava as relações entre governantes e governados, bem como as relações entre os órgãos políticos,” (CRUZ, 2004, p. 33) e daí a analogia com uma Constituição. Ainda na Grécia, há notícias de que em algumas polis existia diferença sensível entre no20  Ainda a propósito de história e verdade, e sobre o que nós juristas legitimamos em nosso discurso, vale lembrar uma provocativa passagem de Foucault (2012, p. 51-52), na qual que ele diz que “a verdade não existe fora do poder ou sem poder (não é – não obstante um mito, de que seria necessário esclarecer a história e as funções – a recompensa dos espíritos livres, o filho das longas solidões, o privilégio daqueles que souberam se libertar). A verdade é deste mundo; ela é produzida nele graças a múltiplas coerções e nele produz efeitos regulamentados de poder. Cada sociedade tem seu regime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciados verdadeiros dos falsos, a maneira como se sanciona uns e outros; as técnicas e os procedimentos que são valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o que funciona como verdadeiro.”

moi e psefisma, sendo que os primeiros seriam dotados de maior rigidez, e em caso de conflito, prevaleciam sobre o segundo (POLETTI, 2000, p. 12; SEGADO, 2003). Outros exemplos posteriores podem ser acrescentados, e essa perspectiva da existência de uma ordem normativa superior seria, aliás, quase uma constante histórica. Nesse sentido, Segado acrescenta a existência de instituições romanas, tais como a dupla magistratura, e, na Idade Média – para usar uma denominação eurocêntrica um tanto questionável – a superioridade da lei divina e do direito natural sobre o direito positivo21. Ronaldo Poletti lembra que na Inglaterra, “as categorias do Direito Natural foram aplicadas para anular leis contrárias ao common law.” (POLETTI, 2000, p. 18, grifo do autor). A esse respeito, Vera Medeiros refere-se ao “paradoxo de ter dito controle nascido num sistema de Constituição não-escrita,” reconhecendo em seguida que “em um segundo momento de sua concreção e experiência, ele tenha se tornado a nota típica das Constituições escritas” (MEDEIROS, 2006, p. 40)22. 21  “(...) es lo cierto que la idea de la defensa de un determinado orden supremo es casi consustancial a la historia de la humanidad, y en ella podemos encontrar, lejanamente, algunos intentos de institucionalización en esta misma dirección. Tal podría ser el caso de los Eforos espartanos o del Aerópago y los Nomofilacos en la antigua Atenas, en donde también surgió la diferenciación entre las normas superiores (Nomoi) y los decretos ordinarios (Psefísmata). Roma no sería ajena a esta preocupación, de lo que constituye buena prueba la existencia de instituciones tales como la doble magistratura, el Senado o el Tribunado en la época republicana. En la Edad Media nos encontramos con la superioridad de la ley divina y del Derecho natural sobre el Derecho positivo. Y la gran Escuela iusnaturalista de los siglos XVII y XVIII, que va de Hugo Grocio a Jean Jacques Rousseau, sustentaría la existencia de derechos innatos, inmanentes al ser humano, intangibles e irrenunciables, o lo que es igual, la existencia de límites frente al ius cogens proveniente del mismo legislador” (SEGADO, 2003, p. 55-56, grifo do autor). 22  Tal paradoxo refere-se a um aspecto controvertido que queremos mencionar, ainda que brevemente, que é a corriqueira associação entre Constituição escrita e Constituição rígida. Poletti (2000, p. 1), por exemplo, menciona que “as Constituições escritas são presumidamente rígidas

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Mas esses antecedentes são capazes de atestar que a defesa de uma ordem suprema é mesmo uma constante, e, principalmente, que em todos esses fatos estaria presente um antecedente histórico – algo como um antepassado – do que hoje compreendemos como Constituição? A resposta vai ser um sonoro “Depende”. Depende do que compreendemos como Constituição e qual o objetivo da nossa argumentação, se é apenas legitimar ou refletir criticamente sobre a ideia de Constituição. Se adotamos o entendimento de que a constituição política de um Estado apresenta pelo menos duas dimensões (ou conceitos), a formal e a material, e que esta última se refere “ao conteúdo, mas tão somente ao conteúdo das determinações mais importantes, únicas merecedoras, segundo efeito dominante, de serem designadas rigorosamente como matéria constitucional” (BONAVIDES, 2004, p. 81, grifo do autor); fica realmente difícil precisar em que momento uma determinação dotada de um enquanto as de fundamento consuetudinário refletem a maior flexibilidade possível”; essa associação não é inteiramente adequada. “A flexibilidade constitucional se faz possível tanto nas constituições costumeiras como nas constituições escritas. Erro, portanto, é cuidar que toda Constituição costumeira é flexível e toda Constituição escrita é rígida. A velha Constituição francesa anterior a 1789, assentada basicamente em normas consuetudinárias, continha costumes rígidos, como assinalam vários constitucionalistas (Burdeau, Vedel etc.). Citam especialmente o caso da anulação do testamento de Luís XIV, que alterava a lei de sucessão do trono e, fora feito pelo rei, sem audiência dos Estados Gerais, no exercício de uma função legislativa ordinária. Veio depois o testamento a ser cassado pelo Parlamento de Paris. Com esse ato comprovou ele a rigidez e superioridade do costume constitucional. A identificação descabida da Constituição flexível com a Constituição costumeira decorre sem dúvida do exemplo inglês, exemplo típico de uma Constituição flexível, na qual tanto a regra constitucional costumeira como a regra escrita são feitas e reformadas no Parlamento por idêntico processo aplicável à feitura e revogação de lei ordinária, ou seja, um processo de expressão da vontade parlamentar por maioria simples.” (Bonavides, 2004, p. 83-84). Sobre a Constituição costumeira inglesa, aliás, Polleti (2000) acaba pondo em xeque a associação entre as cartas escritas e a rigidez constitucional ao reconhecer que ela muda pouco, ao passo que a Constituição brasileira, traduzida em um texto pretensamente rígido, é emendada constantemente.

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grau de fundamentalidade serviu de embasamento para a invalidação de uma lei formal. Ainda nessa perspectiva material de Constituição, se concordarmos, com Lassalle, que inexiste Estado que não seja constitucional, ainda que sua Constituição não passe de uma estrutura mínima e rudimentar, então teremos de aceitar a possibilidade que sempre pode ter existido alguma forma de controle dessa constitucionalidade material, ou mesmo de julgamentos amparados em tal estrutura. Não há absolutamente nada de errado na perspectiva lassalleana. Mas essas estruturas rudimentares são realmente análogas à nossa ideia atual de Constituição? Quando pensamos nas Constituições atuais, prolixas e simbólicas, essa analogia não é de todo sustentável. Os textos constitucionais atuais são muito mais complexos e, consequentemente, diferentes da politeia e dos nomoi, quanto os Estados atuais são diferentes das pólis gregas – que só com uma flexibilização considerável do conceito poderíamos chamar de Estados soberanos. A distinção tende a se acentuar ainda mais quando pensamos nos Tribunais que guardam as Constituições e nos complexos procedimentos de edição e alteração das normas constitucionais ou do judicial review atual. O curioso é que parcela considerável dos juristas que adotam esse tipo de discurso e veem nomoi e psefisma como legítimos antepassados do controle de constitucionalidade provavelmente não desconhecem as imensas diferenças entre as polis gregas e os Estados atuais. É provável até que muitos recusassem o status de Estado às referidas pólis. Ainda assim, eles (re)produzem evoluções históricas, seus habitus os levam a integrar a “caravana de ecos legitimadores” a que se referia Warat. Voltando ao judicial review e questões conexas, percebemos que ficam, ainda, outras ques-

tões difíceis de serem respondidas: qual teria sido a primeira Constituição material e formalmente falando? a Magna Charta de 1215? algum outro documento mais recente? Esmein menciona o Instrument of government de Cromwell, que, em 1653, continha dispositivos que invalidavam as leis que fossem contrárias às suas disposições23. Entretanto, embora considere Cromwell um pioneiro e chegue a dizer que o Instrument of Government é o protótipo da Constituição dos Estados Unidos, Esmein reconhece que sua iniciativa foi uma tentativa que não teve efeito algum24. Ora, se apenas em 1653 se esboçou efetivamente um protótipo de Constituição – formal e material – declaradamente superior às demais leis, e esse protótipo não surtiu efeito, será mesmo sustentável uma perspectiva evolucionista e presentista que vê na politeia grega um antepassado das Constituições atuais? A questão de ser ou não um antecedente histórico vai estar, mais uma vez, relacionada à interpretação e aos interesses do historiador. Isso não significa, evidentemente, que, sempre que faz uma evolução histórica, um jurista esteja consciente e deliberadamente construindo uma versão parcial e enviesada da história. Esse, aliás, é um dos aspectos interessantes da noção de habitus: ela nos lembra que nossas ações não são totalmente conscientes e premeditadas. Retomando o exemplo de Wacquant sobre o jogador de futebol, que não calcula conscientemente todas as suas jogadas, e o que faz um bom jogador muitas vezes é a capacidade de (re)agir de forma praticamente automática; talvez um bom jurista seja feito, em grande parte, pela capacidade de, automaticamente, aceitar e reproduzir a doxa do campo. A capacidade de tomar partido sem saber ou declarar abertamente que está tomando partido. Divergindo um pouco desse senso comum, achamos interessante a abordagem de Horst Dippel25, em sua história do constitucionalismo moderno. Ele seleciona dez princípios que caracterizam o referido consti23  Em termos de controle das leis por uma Corte, porém sem referência a uma Constituição formal, há também o Consistorio espanhol de que falaremos adiante. 24  “Ce sont eux, en effet, qui ont eu la première Constitution écrite, nationale et limitative, qui ait fait son apparition dans le monde. Tel était certainement l’Instrument of government en quarante-deux articles que promulgua Cromwell le 16 décembre 1653; il contenait même des clauses (art. 24, 38) déclarant nulles les lois qui seraient contraires à ses dispositions. Mais ce fut une tentative vaine qui resta sans effet, et qui ne put interrompre même la tradition opposée. En cela, comme on l’a dit avec justesse, Cromwell était un précurseur: il traçait la voie constitutionnelle où devaient entrer les Anglo-Saxons d’Amérique, lorsqu’ils formèrent une grande nation indépendante: l’Instrument of government de Cromwell est le prototype de la Constitution des Etats-Unis” (ESMEIN, 1909, p. 515, grifo do autor). Ver, também, Bonavides (2004, p. 85-86). 25  Para Dippel, os princípios que caracterizam o constitucionalismo moderno são: 1) soberania popular; 2) fundamentação da Constituição em princípios universais, 3) uma declaração de direitos; 4) governo representativo, ampliando a legitimidade e prevenindo a corrupção e o governo aristocrático; 5) supremacia da Constituição; 6) separação de poderes; 7) governo limitado; 8) a exigência de responsabilidade política e de um governo (dever

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tucionalismo e identifica o documento em que todos eles se manifestaram: a Declaração de Direitos da Virgínia de 1787. Isso não significa, evidentemente, que a abordagem de Dippel seja imune a críticas ou discordâncias, apenas queremos dizer que essa abordagem nos parece mais lúcida e adequada do que – por exemplo – forçar uma interpretação no sentido de que os nomoi gregos seriam antecedentes de nossa atual Constituição. De fato, temos alguma divergência em relação ao entendimento de Dippel, pois, mesmo que possamos considerar a Declaração da Virgínia como o antecedente do constitucionalismo moderno, ainda percebemos um diferencial no constitucionalismo posterior à Segunda Guerra mundial em relação ao constitucionalismo imediatamente posterior à independência estadunidense. Quando pensamos no surgimento do controle de constitucionalidade nos EUA e na Áustria, percebemos uma forte preocupação com a forma federativa de Estado e o equilíbrio entre Estados-membros e União26. A Constituição justificava-se, em grande parte, como estruturadora do Estado, disciplinadora das competências estatais, e, no pós-guerra, a justificativa – e o próprio controle de constitucionalidade – desloca-se, em grande parte para os direitos humanos. Ainda assim, é interessante que Dippel tenha objetivado o que ele entende por constitucionalismo moderno – o que facilita, aliás, as condições da nossa crítica à sua posição. Nesse sentido, talvez se pudesse imaginar que a não objetivação pudesse funcionar como uma estratégia de imunização dos trabalhos às críticas; isso, entretanto, seria um duplo engano. Primeiro, porque a objetivação é uma condição do conhecimento científico; segundo, porque as críticas ou mesmo os eventuais erros não são exatamente prejudiciais ao trabalho e muito menos à ciência como um todo. As críticas – e o debate que delas decorre – contribuem para colocar o trabalho na ordem do discurso, e o erro, por sua vez, é o motor do desenvolvimento científico, não há verdade sem erro retificado (BACHELARD, 2004).

5. Sobre os antecedentes estadunidenses do judicial review: as controvérsias em torno do caso Marbury Sobre o constitucionalismo estadunidense, temos, claro, o célebre caso Marbury v. Madison, referido em praticamente todos os manuais e trabalhos que abordam o judicial review, e que realmente é um marco

de prestar contas); 9) independência e imparcialidade judicial; 10) o direito das pessoas de reformar a Constituição e o governo (DIPPEL, 2005). 26  Sobre as origens federalistas do controle de constitucionalidade, ver Santos (2011, p. 52-62).

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significativo do controle de constitucionalidade, mas mesmo esse caso, mencionado em tantos trabalhos, apresenta alguns aspectos interessantes que nem sempre são lembrados, seja no que concerne ao seu contexto sociopolítico, a casos anteriores em que o judicial review foi exercido, ou, ainda, a críticas que ele recebeu. Como sabemos, John Adams, o segundo presidente estadunidense, foi derrotado por Thomas Jefferson em 1800 e viu serem frustradas as suas pretensões à reeleição. Sabemos também que Adams, antes de deixar o cargo, legou um testamento político para Jefferson; nomeou vários correligionários para os cargos do Judiciário, e, dentre esses nomeados, estavam John Marshall para a Suprema Corte e Willian Marbury para o cargo de juiz de paz em Columbia. O documento que autorizava Marbury a assumir o cargo de juiz foi preparado e selado, mas não pôde ser entregue antes de Adams deixar o cargo. Ocorrida a sucessão presidencial, Jefferson ordenou ao então Secretário de Estado, James Madison, que não nomeasse Marbury. Marbury, então, interpôs o writ of mandamus perante a Suprema Corte, exigindo a sua nomeação. E aqui surge um primeiro aspecto do caso que nem sempre é lembrado: o caso permaneceu dois anos sem ser julgado, o que alimentou a expectativa pública e a imprensa passou a questionar a omissão da Suprema Corte, especulando, inclusive, que caso a ordem fosse concedida, ela não seria cumprida pelo Executivo. Coube a Marshall – que, como vimos, havia sido nomeado por Adams – julgar o caso, e, dentre as questões que ele enfrentou para decidir, três merecem destaque: 1) Marbury tinha o direito à nomeação? 2) as leis fundamentavam a pretensão de Marbury? 3) interpor o writ of mandamus perante a Suprema Corte era o remédio legal correto? Marshall respondeu afirmativamente às duas primeiras questões; para

resolver a terceira, entretanto, Marshall avaliou a própria lei do mandammus e a Constituição dos EUA, e concluiu que a lei em questão era inconstitucional: “Assim, se uma lei está em oposição à Constituição, se ambas, a lei e a Constituição se aplicam a um caso concreto, então ou o Tribunal decide o caso de acordo com a lei, desconsiderando a Constituição, ou de acordo com a Constituição, desconsiderando a lei; o Tribunal deve determinar qual destas regras em conflito governa o caso. Esta é a própria essência do dever de julgar. Se, então, os tribunais estão a considerar a Constituição, e a Constituição é superior a qualquer ato ordinário do Legislativo, a Constituição, e não tal ato ordinário, deve reger o caso concreto ao qual ambos se aplicam. [...] O poder judicial dos Estados Unidos se estende a todos os casos que surgem sob a Constituição” (U.S., 1803, tradução nossa)27.

Como vemos, Marshall proferiu a decisão, reconhecendo o direito de Marbury e a ilegalidade da omissão de Madison, mas deixou de conceder a ordem em virtude da questão da inconstitucionalidade. Com isso, ele acabou não correndo o risco de ver a decisão ser desrespeitada pelo Executivo28, Até aqui, excetuando a questão da demora para decidir, o resumo que 27  No original: “So, if a law be in opposition to the Constitution, if both the law and the Constitution apply to a particular case, so that the Court must either decide that case conformably to the law, disregarding the Constitution, or conformably to the Constitution, disregarding the law, the Court must determine which of these conflicting rules governs the case. This is of the very essence of judicial duty.If, then, the Courts are to regard the Constitution, and the Constitution is superior to any ordinary act of the Legislature, the Constitution, and not such ordinary act, must govern the case to which they both apply. [...] The judicial power of the United States is extended to all cases arising under the Constitution.” 28  Sobre o caso, ver também Poletti (2000, p. 31-33); Grossman (2003). Para um didático resumo ilustrado (e em inglês), ver: .

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vimos é o que as obras jurídicas geralmente mostram, algumas trazem alguns detalhes a mais29, mas a maioria apresenta apenas os fatos que trouxemos até agora – e algumas nem isso – o que, ao nosso ver, acaba negligenciando ao menos duas questões importantes: como repercutiu a decisão do caso Marbury v. Madison? Esse caso realmente foi o primeiro a realizar o judicial review de uma lei nos Estados Unidos? Comecemos pela segunda pergunta. Em termos teóricos, no Federalista no 78, Hamilton já havia estabelecido as bases para a competência do judiciário de declarar nulas as leis que contrariassem a Constituição, e mesmo na prática judicial, o caso Marbury não inaugura o judicial review nos Estados Unidos. Poletti menciona que, em 1780, o Judiciário de New Jersey declarou nula uma lei que contrariava a Constituição do Estado. Desde 1782, os juízes da Virgínia declaravam-se competentes para apreciar a constitucionalidade das leis; e em 1787 a Suprema Corte da Carolina do Norte “invalidou lei pelo fato de ela colidir com os artigos da confederação” (POLETTI, 2000, p. 25). Maciel vai mais longe e lembra que “no Reino de Aragão (Espanha), no século 13, já existia um arremedo de jurisdição constitucional: uma corte, denominada Consistorio, presidida por um justicia mayor (veja a coincidência do título), encarregava-se de controlar as leis do reino” (MACIEL, 2006, p. 38-39, grifo do autor)30. 29  Alguns autores acrescentam curiosidades interessantes, como o fato de que Thomas Jefferson e John Adams morreram no mesmo dia, em 4 de julho de 1826, dia em que coincidentemente se comemoravam os 50 anos da independência estadunidense, que ambos, Adams e Jefferson ajudaram a construir, e que as últimas palavras de Adams teriam sido: “Independência para sempre” e “Thomas Jefferson sobrevive”, sem saber que o seu amigo e outrora adversário na corrida presidencial havia falecido horas antes. Curioso, aliás, que alguns autores se prendam a esses detalhes, mas omitam as críticas que o caso recebeu na época.

 Esse Consistorio é anterior, portanto, ao Instrument of government de Cromwell, mencionado por Esmein, a que nos referimos anteriormente. Em nossa pesquisa, en30

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Maciel, menciona ainda que “Entre a Independência (1776) e a promulgação da Constituição (1787), vale dizer, antes de Marbury (1803), registra-se uma vintena de julgados judiciais declarando nulas leis contrárias às constituições dos Estados da então Confederação dos Estados Unidos da América.” E traz um fato no mínimo curioso ao mencionar que “Foi o que se deu com Ware v. Hylton (Virgínia), no qual John Marshall, como advogado, defendera tese contrária ao controle de leis pelo judiciário” (MACIEL, 2006, p. 39, grifo do autor). Como vemos, há notícias de realização da revisão judicial das leis nas instâncias inferiores. Mas, se não foi o primeiro processo em que foi empregado o judicial review, o caso Marbury teria sido, ao menos, o primeiro apreciado pela Suprema Corte? A resposta também é negativa. No caso Hylton v. United States, a Suprema Corte apreciou a constitucionalidade de uma lei do Congresso, e com isso exerceu o judicial review, ainda que nesse caso a Corte não tenha não tenha derrubado a lei: “A Suprema Corte, no entanto, manteve por unanimidade a lei, com juízes Iredell, Chase, e Patterson, cada um emitindo pareceres separados. A atitude que os juízes tomaram reflete-se no parágrafo final do parecer do juiz Chase, que ele reservou explicitamente para a questão de saber se a Suprema Corte pode invalidar estatutos do Congresso e registrou que, se uma lei do Congresso deve ser invalidada, isso só pode ser feito ‘em um caso verdadeiramente claro’” (TREANOR, 2005, p. 542-543, tradução nossa)31. tretanto, não encontramos referência segura ao parâmetro – seria algo ao menos próximo de uma Constituição formal? – empregado para controlar as leis, nem sobre a efetividade do referido Consistório. 31  No original: “The Supreme Court, however, unanimously upheld the statute, with Justices Iredell, Chase, and Paterson each issuing separate opinions. The attitude that the Justices took is reflected in the final paragraph of Chase’s

O caso Marbury, portanto, não foi o primeiro caso em que a Suprema Corte exerceu a judicial review. E o caso Hylton ainda tem o mérito de reconhecer a doutrina do “caso verdadeiramente claro”. A ela podemos relacionar a ideia de que a inconstitucionalidade só deve ser declarada quando for flagrante, o que revela a preocupação em proteger a autoridade do Legislativo – democraticamente eleito – e a presunção de constitucionalidade das leis. Ou seja, embora tenha sido o primeiro em que uma lei foi declarada inconstitucional nos EUA, o caso Marbury não é o primeiro em que a constitucionalidade de uma lei foi apreciada. O que, então, justifica a popularidade do caso Marbury? Ela se deve, além da declaração de inconstitucionalidade, em grande parte à própria polêmica que o caso gerou; a expectativa causada pela demora da Suprema Corte em decidir, as especulações sobre o cumprimento da decisão pelo Executivo e, claro, após a decisão, a inegável sagacidade de Marshall, que reconheceu o direito mas declarou a inconstitucionalidade da lei e ajudou – de forma polêmica – a consolidar os argumentos favoráveis ao judicial review. Além disso, houve – e ainda há – toda uma rede de discursos reproduzidos, nem sempre com objetivos claramente declarados, mas cujo efeito foi a consagração da referida decisão – que entrou, por assim dizer, na ordem do discurso – e, claro, a legitimação do Judiciário para declarar as leis inconstitucionais. Parafraseando muito livremente Bourdieu32 (1998), podemos dizer que esses discursos legitimadores do judicial review assumiram a capacidade de agir como teoria, e sua força parece residir na ampla aceitação que ela recebeu e, claro, na forma acrítica como os juristas lidam com os referidos discursos, integrantes da doxa do campo jurídico. Isso se relaciona, aliás, à outra pergunta que formulamos acima, sobre a repercussão da decisão do caso Marbury v. Madison. Como os doutrinadores geralmente silenciam, acabamos tendo a impressão de que, após o caso Marbury, o controle de constitucionalidade se tornou uma prática comum nos Estados Unidos; mas na verdade as coisas não aconteceram dessa forma: a decisão foi considerada autoritária e criticada por muitos. Entre os críticos da época, merece destaque o próprio Thomas Jefferson, em sua carta ao juiz William Johnson, em junho de 1823: “[...] este caso de Marbury e Madison é constantemente citado pela magistratura e pela ordem [dos advogados], como se fosse lei estabelecida; sem qualquer

opinion, where he explicitly reserved the question whether the Supreme Court can invalidate congressional statutes, and he announced that, if a congressional statute is to be invalidated, it can only be ‘in a very clear case’.” 32  Enquanto escrevíamos essa passagem, recordamos análise que Bourdieu faz da produção e reprodução dos discursos tendentes a legitimar o neoliberalismo e a globalização. Em menor escala, mas de uma forma muito parecida, diversos discursos são legitimados no Direito e pelo Direito.

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criticismo por ela ser meramente uma dissertação incidental do Presidente da Suprema Corte” (JEFFERSON, 1854, p. 296, grifo do autor, tradução nossa)33. Adiante, na mesma carta, Jefferson deixa claro que o intérprete da Constituição deveria ser o povo, e que, diante da controvérsia sobre quem deveria ter a prerrogativa de dar a última palavra sobre o que diz a Constituição – uma questão que aliás pode ser trazida à contemporaneidade: o Judiciário em suas decisões, ou o Legislativo por meio das leis? – propõe que essa última palavra seja do povo, aludindo à possibilidade de reformar a Constituição: “Mas o Presidente da Suprema Corte diz: ‘deve haver um árbitro final em algum lugar.’ Verdade deve haver; mas isso prova algum poder? O árbitro final é o povo da União, congregado por seus deputados em convenção, mediante convocação do Congresso, ou de dois terços dos Estados34. Deixe o povo decidir para quem ele quer dar a autoridade que é reivindicada por dois de seus órgãos. E tem sido a sabedoria peculiar e felicidade de nossa Constituição, ter fornecido esse recurso pacífico [para a decisão], quando em outras isto é feito através da força” (JEFFERSON, 1854, p. 298, tradução nossa)35. 33  No original: “Yet this case of Marbury and Madison is continually cited by bench and bar, as if it were settled law, with out any animadversion on its being merely an obiter dissertation of the Chief Justice.” 34  Interpretamos essa passagem como uma alusão ao Artigo V da Constituição dos EUA: “Sempre que dois terços dos membros de ambas as Câmaras julgarem necessário, o Congresso proporá emendas a esta Constituição, ou, se as legislaturas de dois terços dos Estados o pedirem, convocará uma convenção para propor emendas, que, em um e outro caso, serão válidas para todos os efeitos como parte desta Constituição, se forem ratificadas pelas legislaturas de três quartos dos Estados ou por convenções reunidas para este fim em três quartos deles, propondo uma ou outra dessas maneiras de ratificação. Nenhuma emenda poderá, antes do ano 1808, afetar de qualquer forma as cláusulas primeira e quarta da Seção 9, do Artigo I, e nenhum Estado poderá ser privado, sem seu consentimento, de sua igualdade de sufrágio no Senado” (U.S., 1787). 35  No original: “But the Chief Justice says, ‘there must be an ultimate arbiter somewhere.’ True, there must; but does

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Acreditamos que as críticas de Jefferson se relacionam à sua própria concepção radical de democracia36. Jefferson deixou escritos em que revelava uma profunda preocupação com a questão da representação e dos compromissos assumidos por uma determinada geração e até que ponto eles poderiam atar as gerações seguintes. Isso fez com que ele fosse um constitucionalista um tanto contraditório, pois chegou até a defender um prazo de validade para as constituições, o que não deixa de ser uma decorrência lógica da proibição de caráter fundamental que consiste no princípio de que nenhum pai pode atar seus filhos. Equivale a dizer que, no entendimento de Jefferson, uma vez que a geração que editou a Constituição morresse, não haveria razões para que ela continuasse existindo37. Nessa perspectiva, nada seria mais razoável, portanto, do que o surgimento de uma nova geração trazer consigo a semente de uma nova Carta Constitucional, Jefferson deixou isso claro em sua carta a Samuel Kercheval de 1816, na qual consignou o seu ponto de vista sobre as gerações e suas leis:

that prove it is either party? The ultimate arbiter is the people of the Union, assembled by their deputies in convention, at the call of Congress, or of two-thirds of the States. Let them decide to which they mean to give an authority claimed by two of their organs. And it has been the peculiar wisdom and felicity of our constitution, to have provided this peaceable appeal, where that of other nations is at once to force”. 36  Não nos referimos à democracia radical de Laclau e Mouffe (1987) – em alguns aspectos antecipada vários anos na obra de Paulo Freire –, embora fosse interessante um estudo refletindo as concepções de democracia e representação nos escritos de um Jefferson e um Paine com ideias mais atuais, como as de Laclau e Mouffe. 37  “Jefferson, como Paine, fue un constitucionalista tornadizo. También lanzó un ataque implacable contra la idea misma de un precompromiso constitucional. En septiembre de 1789 (dos años antes de que Paine publicara The Rights of Man), Jefferson escribió a Madison, enfrentándose a ‘la pregunta de si una generación de hombres tiene el derecho de mediatizar a otra’. Y su respuesta fue un enfático no” (HOLMES, 1999).

“De acordo com as tabelas europeias de mortalidade, dos adultos que vivem em qualquer momento do tempo, uma maioria vai estar morta em cerca de dezenove anos. Ao término desse período, então, uma nova maioria assume seu lugar, ou, em outras palavras, uma nova geração. Cada geração é tão independente de sua precedente, como de todas as que existiram antes. Tem então, como as precedentes, o direito de escolher para si a forma de governo que considere mais capaz de promover sua própria felicidade, consequentemente, para atender às circunstâncias em que se encontra, as quais foram recebidas de seus predecessores, e isto é para a paz e o bem da humanidade, que uma solene oportunidade de escolher sua forma de governos ocorra a cada dezenove ou vinte anos, mediante uma Constituição; assim é que poderá ser repassada, com reparos periódicos, de geração em geração, até ao final dos tempos, se algum ser humano puder resistir tanto tempo. Faz agora quarenta anos desde que a constituição da Virgínia foi editada. As mesmas tabelas nos informam que, dentro desse período, dois terços dos adultos que então viviam, agora jazem mortos. Teria então o terço restante, mesmo se quisesse, o direito de manter em obediência à sua vontade e às leis feitas por eles até agora, os outros dois terços, que, com eles, compõem a massa atual dos adultos? Se eles não têm, quem tem? Os mortos? Mas os mortos não têm direitos. Eles são nada, e o nada não pode possuir qualquer coisa. Onde não há substância não pode haver nenhuma contingência. Este globo tangível, e tudo sobre ele, pertencem ao atual corpo de habitantes, durante a sua geração. Eles sozinhos têm o direito de escolher a quais são suas preocupações, e declarar as leis neste sentido; e tal declaração somente pode ser feita pela sua maioria. Essa maioria, então, tem o direito de nomear representantes para uma convenção, e para tornar a Constituição o que eles acham que será o melhor para eles mesmos. Mas como coletar a sua voz? Esta é a verdadeira dificuldade. Se convidada pela autoridade privada, pelo município ou reuniões distritais, estas divisões são tão grandes que poucos estarão presentes, e sua voz será imperfeita, ou falsamente pronunciada” (JEFFERSON, 1829, p. 299-300, tradução nossa)38.

38  No original: “By the European tables of mortality, of the adults living at any one moment of time, a majority will be dead in about nineteen years. At the end of that period, then, a new majority is come into place; or, in other words, a new generation. Each generation is as independent as the one preceding, as that was of all which had gone before. It has then, like them, a right to choose for itself the form of government it believes most promotive of its own happiness; consequently, to accommodate to the circumstances in which it finds itself, that received from its predecessors; and it is for the peace and good of mankind, that a solemn opportunity of doing this every nineteen or twenty years, should be provided by the constitution; so that it may be handed on, with periodical repairs, from generation to generation, to the end of time, if anything human can so long endure. It is now forty years since the constitution of Virginia was formed. The same tables inform us, that, within that period, two-thirds of the adults then living are now dead. Have then the remaining third, even if they had the wish, the right to hold in obedience to their will, and to laws heretofore made by them, the other two-thirds, who, with themselves, compose the present mass of adults? If they have not, who has? The dead? But the dead have no rights. They are nothing; and nothing cannot own something. Where there is no substance, there can be no accident. This corporeal globe, and everything upon it, belong to its present corporeal inhabitants, during their generation. They alone have a right to direct what is the concern of themselves alone, and to declare the law of that direction; and this declaration can only be made by their majority. That majority, then, has a right to depute representatives to a convention, and to make the constitution what they think will be the best for themselves. But how collect their voice? This is the real difficulty. If

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Como se vê, Jefferson era a favor da realização de plebiscitos periódicos, a fim de determinar a forma de governo e editar novas Constituições, como forma de libertar o presente do passado, assegurando assim a autonomia de cada geração; o que equivale a dizer que na opinião dele as leis, por mais fundamentais que fossem, teriam um prazo de validade, a ser determinado pela vida da geração que as editou39. Parece-nos que essa preocupação de Jefferson com a democracia e a representatividade, que acabam se relacionando à relativização da própria fundamentalidade e perenidade da Constituição, se refletia nas suas preocupações com o judicial review e marcavam os excelentes argumentos que ele apresentou contra a revisão dos atos do legislativo pelo judiciário e com o que o próprio judiciário poderia se tornar se possuísse o poder de controlar os demais poderes. Sobre isso, destacamos um fragmento da sua carta para William Charles Jarvis de 28 de setembro de 1820: “Eu lhe agradeço, Senhor, pela cópia de seu Republican40 que você foi tão amável em me enviar [...]. Você parece, nas páginas 84 e 148, considerar os juízes como os árbitros definitivos de todas as questões constitucionais; uma doutrina que é muito perigosa e que nos coloca sob o despotismo de uma oligarquia. Nossos juízes são tão honestos como os outros homens, e não mais. Eles têm, como todos os outros, as mesmas paixões por cerimônias, pelo poder, e o privilégio de sua corporação. Seu lema é ‘boni judicis est ampliare jurisdictionem’, e seu poder o mais perigoso pois eles estão no ofício por toda a vida, e não são responsabilizados, como os outros funcionários são, pelo controle eletivo. A Constituição não erigiu um tribunal único, sabendo que a quaisquer mãos que lhe confiasse, com as corrupções do tempo e das cerimônias, seus membros se tornariam déspotas. É mais sábio fazer todos os departamentos co-iguais e co-soberanos entre si” (JEFFERSON, 1854, p. 177-178, grifo do autor, tradução nossa)41. invited by private authority, or county or district meetings, these divisions are so large that few will attend; and their voice will be imperfectly, or falsely pronounced”. Essa passagem final, sobre a representação – how to collect their voice? – foi o que nos sugeriu um estudo comparando os escritos de Jefferson com ideias contemporâneas sobre a questão da representação.  Para outras reflexões sobre a questão do pré-compromisso e o paradoxo da democracia, ver Holmes (1999). 39

40  Jefferson se refere ao livro de Jarvis, intitulado “The Republican: or, a series of essays on the principles and policy of free states” (JARVIS, 1820). 41  No original: “I thank you, Sir, for the copy of your Republican which you have been so kind as to send me [...]. You seem, in pages 84 and 148, to consider the judges as the ultimate arbiters of all constitutional questions; a very dangerous doctrine indeed, and one which would place us under the despotism of an oligarchy. Our judges are as honest as other men, and not more so. They have, with others, the same passions for party, for power, and the privilege of their corps. Their maxim is ‘boni judicis est ampliare jurisdictionem,’ and their power the more dangerous as they are in office for life, and not responsible, as the other functionaries are, to the elective control. The Constitution has erected no such single tribunal, knowing that to whatever hands confided, with the corruptions of time and party, its members would become despots. It has more wisely made all the departments co-equal and co-sovereign within themselves”.

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A crítica de Jefferson, incrivelmente atual, demonstra um dos pontos mais sensíveis do judicial review: os magistrados não necessariamente são melhores ou mais legítimos do que os representantes dos demais Poderes e sua atuação não pode, em hipótese alguma, sobrepujar o Legislativo e o Executivo, que, em termos de procedimento para a escolha dos seus membros, são democráticos, enquanto os membros do Judiciário não são escolhidos e responsabilizados pelos cidadãos por meio do voto. Quando dizemos que a crítica de Jefferson é atual, não queremos dar a entender que seu discurso é neutro, o que seria impossível, porque não existe discurso neutro e, no caso dele, especificamente, sua crítica não deixa de estar se referindo a uma decisão de um adversário político. Mas sempre é válido advertir: a decisão de Marshall também não é neutra. Vale lembrar que ele foi nomeado por Adams e, no passado, o mesmo Marshall havia advogado contra o judicial review. De qualquer forma, se o caso Marbury sempre é lembrado nos estudos sobre o judicial review, a crítica de Jefferson também deveria sê-lo, sobretudo no que ela possa permanecer aplicável às cortes constitucionais atuais. A reflexão sobre essa aplicabilidade, aliás, pressupõe uma crítica que não percebemos no senso comum historiográfico distorcido dos juristas. Esta parece ser uma forma mais adequada e interessante de abordar a história em trabalhos jurídicos do que simplesmente reproduzir evoluções históricas nem sempre coerentes em si mesmas. Não parece ser, entretanto, a forma mais compatível com a doxa do campo. Retomando o caso Marbury, vimos que ele recebeu diversas críticas de Jefferson, em sua defesa da democracia, mas isso nos deixa uma questão: como o Judiciário recebeu a decisão de Marshall? A omissão dos estudos jurídicos dá a entender – intencionalmente? – que a decisão

em questão foi bem recebida, mas a realidade não foi bem essa. É interessante notar que mesmo no Judiciário a decisão do caso Marbury foi questionada e criticada. Exemplo disso é o caso Eakin v. Raub: “Embora hoje o poder de revisão judicial seja aceito incontestavelmente, nem sempre foi dessa forma. De fato, após a decisão do Tribunal de Marbury eminentes líderes tais como Thomas Jefferson, Andrew Jackson, e Abraham Lincoln expressaram dúvidas sobre a validade da revisão judicial e da competência dos tribunais para anular atos legislativos. Em 1825 a Suprema Corte da Pensilvânia, em Eakin versus Raub, aceitou a posição do juiz Marshall no caso Marbury aplicando ao poder dos tribunais estaduais para declarar atos legislativos como transgressores da Constituição do Estado. Os fatos do caso Eakin e sua questão principal, são relativamente desinteressantes e pouco importam ao presente caso. Além disso, o parecer do Chefe de Justiça Tilghman, aceitando o ponto de vista do Chief Justice Marshall sobre a revisão judicial, pouco acrescenta ao suporte histórico para o poder de fiscalização judicial. Muito mais importante, no entanto, foi a opinião divergente do Justice John Gibson, que é amplamente considerada como o ataque mais efetivo sobre a opinião de Marshall no caso Marbury e sua teoria da revisão judicial. Num parecer muitas vezes citado pelos opositores da teoria da revisão judicial, Gibson tentou, e em muitos aspectos conseguiu, oferecer uma refutação ponto por ponto da decisão de Marshall” (EAKIN V. RAUB, s.d., tradução nossa)42.

42  No original: “While today the power of judicial review is accepted unquestioningly, such was not always the case. Indeed, after the Court’s decision in Marbury such eminent leaders as Thomas Jefferson, Andrew Jackson, and Abraham Lincoln all expressed doubt about the validity of judicial review and the power of the courts to declare legislative acts void. In 1825, the Pennsylvania Supreme Court, in Eakin v. Raub, accepted Justice Marshall’s position in Marbury as applied to the power of the state courts to declare legislative acts transgressing the state constitution void. The facts of Eakin, and the ultimate issue in that case from the parties’ perspectives, are relatively uninteresting

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Na ocasião, Gibson afirmou que, se o judicial review coubesse à magistratura, ele caberia também a todos os outros órgãos que igualmente juraram guardar a Constituição. Mesmo na Suprema Corte, o emprego do controle de constitucionalidade não se estabilizou imediatamente – e ainda hoje questões referentes à mutação/atualização do texto constitucional e limites dos magistrados são debatidas. Nesse sentido, é importante lembrar que a própria Suprema Corte levou meio século – isso mesmo, 50 anos – até declarar um ato do Congresso inconstitucional novamente, o que aconteceu no caso Dred Scott v. Sandford43. Vemos, portanto, que nem no âmbito do Judiciário a recepção do judicial review foi ampla e isenta de críticas. Há, por fim, pelo menos um último ponto, se não de equívoco ao menos de exagero sobre o caso Marbury, que é tentar atribuir-lhe a intenção de interpretar extensiva ou analogicamente a Constituição, o que implicaria a proposição de que os juízes exerceriam um papel próximo ao do Legislativo: reescrevendo as leis mediante sua interpretação. Vimos que Marshall foi sagaz e ousado em sua decisão, mas, verdade seja dita, não tanto a ponto de criar algo dessa natureza44. and of little import. Furthermore, the opinion of Chief Justice Tilghman, accepting Chief Justice Marshall’s view of judicial review, adds little to the historical support for the power of judicial review. Much more important, however, was the dissenting opinion of Justice John Gibson, which is widely regarded as the most effective attack on Chief Justice Marshall’s Marbury opinion and his theory of judicial review ever authored. In an opinion often cited by opponents of the theory of judicial review, Justice Gibson attempted, and in many respects succeeded, to offer a point-by-point refutation of Marshall’s decision”. 43  Ver Menez; Vile (2004, p. 125). Os autores registram que o caso Marbury estabeleceu o judicial review, tese com a qual não concordamos. 44  Mas isso é tema para outro estudo, que vise a analisar minuciosamente o conteúdo do caso Marbury, e não para o presente, que aborda apenas o seu tratamento historiográfico.

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6. Considerações finais Iniciamos o presente ensaio refletindo sobre a questão do dogmatismo no direito e apresentamos alguns pressupostos, teóricos e epistemológicos, da sociologia reflexiva e relacional de Bourdieu, os quais nos acompanharam ao longo de todo o trabalho. Em seguida, dialogamos com Warat e Luciano Oliveira, a fim de (re)construir a crítica à doxa jurídica, especialmente no que concerne à forma como os juristas veem a história e pretendem fazer historiografia – ainda que desconheçam o que esta significa – a nossa crítica incidiu, portanto, sobre as evoluções históricas. Terminada essa etapa preliminar, pudemos começar a abordagem do mote do presente trabalho, mencionando a suposta evolução histórica do judicial review, iniciamos apresentando os lugares-comuns, presente em grande parte das obras jurídicas e apresentamos alguns questionamentos aos supostos antecedentes do judicial review e de algumas questões conexas, com isso acreditamos ter contribuído para uma reflexão sobre a como a historiografia – positivista, evolucionista, pré-Escola dos Annales – do campo jurídico é desenvolvida. Vimos que essa forma de agir, que em parte pode ser uma decorrência do desconhecimento dos juristas de como fazer pesquisa histórica, pode não ser inteiramente consciente; ou seja, trata-se de um modo de ação relacionado aos habitus dos juristas e à própria estrutura do (sub) campo jurídico-acadêmico e o fato de que este baseia suas práticas e conteúdos pedagógicos quase que exclusivamente no direito estatal. Vale observar que a eventual brevidade dos nossos questionamentos e críticas, por um lado, mostra a forma superficial e inadequada como se faz historiografia no Direito, já que não precisamos de muitas páginas para demonstrar os problemas; e, por outro, mostra também que, como juristas, não estamos isentos da crítica que fazemos.

Em seguida, adentramos propriamente o mote do trabalho, o constitucionalismo estadunidense e o célebre caso Marbury v. Madison. Vimos o contexto do seu julgamento e procuramos trazer alguns aspectos interessantes que nem sempre são lembrados – desde o fato de que não foi o primeiro caso nos EUA em que uma lei foi declarada inconstitucional, já que as Cortes estaduais já o faziam, passando pelo fato de que não foi o primeiro caso na Suprema Corte em que o judicial review foi exercido (este foi o caso Hylton v. United States) e pelas críticas que o caso Marbury recebeu. Entre essas críticas, mencionamos o caso Eakin v. Raub, no qual John Gibson refuta a doutrina inaugurada por Marshall e as críticas de Thomas Jefferson ao Judiciário enquanto intérprete último da Constituição. Vimos, aliás, que as críticas de Jefferson podem ser atuais e aplicáveis às Cortes constitucionais contemporâneas. Nesse particular, reside a nossa concepção de como a historiografia jurídica poderia oferecer mais do que a mera evolução histórica acrítica, os fatos históricos devem ser vistos com criticidade e, com isso, a história pode fornecer um aporte crítico para o pensamento jurídico atual. Acreditamos que o presente trabalho mostra, portanto, como diversos fatos e perspectivas relacionadas ao judicial review são omitidos quando o surgimento do mesmo é abordado nas obras jurídicas. Essa omissão, além de negligenciar os referidos fatos, ao apresentar, de forma presentista, uma determinada versão e negar – ainda que implicitamente – outras versões, acaba naturalizando um determinado estado de coisas, como se ele fosse a única condição possível. O que, vale repetir, nem sempre é feito de forma consciente. Para encerrar, esperamos que o presente trabalho tenha abordado satisfatoriamente a objetivação e desvelamento desse modo de agir do (sub)campo jurídico-acadêmico e, quem sabe, possa dar alguma contribuição para uma verdadeira historiografia no Direito.

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