As Experiências Mutualistas de Minas Gerais: Um Ensaio Interpretativo

July 15, 2017 | Autor: Cláudia Viscardi | Categoria: Work and Labour, Friendly Societies, História de Minas Gerais, Associativismo, Mutualismo
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Publicado originalmente em: ALMEIDA, Carla M. de. e OLIVEIRA, Mônica R. de. (orgs) Nomes e números: alternativas metodológicas para a história econômica e social. Juiz de Fora: EdUFJF, 2006, p. 305-322

As Experiências Mutualistas de Minas Gerais: Um Ensaio Interpretativo1 Cláudia Maria Ribeiro Viscardi 2

Recentemente, o tema do mutualismo tem sido objeto de um maior número de pesquisadores voltados para o estudo do mundo do trabalho no Brasil.3 Focados sobre o período de cerca de cem anos, contados a partir de 1840, tais estudos têm apresentado ao público leitor resultados que apontam para uma efetiva revisão historiográfica acerca dos níveis de mobilização existentes na sociedade civil brasileira na ocasião. A premissa de que a instituição do Estado Português no Brasil teria resultado na implantação de uma “Estadania” em prejuízo de uma cidadania 4, reforçou, durante muitos anos, a idéia da existência de uma sociedade civil frágil, desmobilizada e que se relacionava exclusivamente com o Estado pela via da submissão clientelística. Segundo tais análises, bestializados de vários matizes sucumbiam ao arbítrio de um Estado autoritário, travestido de roupagens liberais, como se fosse possível estarem surdos aos brados de liberdade, igualdade e fraternidade - retórica de nossas elites dirigentes - e imunes à sensação de que destes ideais estavam excluídos. Ao contrário do que se afirma, os novos trabalhos têm apontado para a existência de uma sociedade civil que se associava, buscando convergir interesses, criando estratégias 1

Neste texto serão apresentados resultados parciais de uma pesquisa em andamento, a qual conta com financiamentos da FAPEMIG, do CNPq e da própria UFJF. 2 Professora do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutora em História Social pela UFRJ. 3 Entre as análises recentes destacamos, entre outras: VISCARDI, Cláudia M. R. Mutualismo e filantropia. Locus, Revista de História. Juiz de Fora: EDUFJF, volume 18, 2004. SILVA JR. Adhemar L.da S. As sociedades de socorros mútuos: estratégias privadas e públicas. Estudo centrado no Rio Grande do Sul – Brasil, 1854-1940. Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da PUC, Porto Alegre: 2005. BATALHA, Cláudio H.M. et alii (orgs.) Culturas de Classe. Campinas: Unicamp, 2004. FORTES, Alexandre. Da solidariedade à assistência: estratégias organizativas e mutualidade no movimento operário de Porto Alegre na primeira metade do século XX In:. CADERNOS AEL. Sociedades operárias e mutualismo. Campinas: UNICAMP/IFCH, vol.6, números 10 e 11, 1999. JESUS, Ronaldo P. de. O Povo e a monarquia: a apropriação da imagem do imperador e do regime monárquico entre a gente comum da corte (1870-1889). Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da USP. São Paulo: 2001. 4 CARVALHO, José M. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil, São Paulo: Cia das Letras, 1990, p. 29 e CARVALHO, José Murilo. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi, São Paulo: Cia das Letras, 1989, p. 150-155.

2 de sobrevivência coletiva, resistindo às mudanças que as ameaçavam e propondo avanços que ultrapassavam os limites previstos pela formalidade de nosso modesto liberalismo. O alto número e a precocidade de tais organizações no tempo nos surpreendem. A experiência associativa, hoje estudada em vários pólos urbanos do país, apesar de ter sido bastante específica em cada região, reunia características comuns. Este vigor associativista aponta para a formação de uma cultura cívica brasileira, pelo menos nos centros urbanos mais dinâmicos, a se contrapor às relações de dependência, em pleno contexto da escravidão e da construção de uma república oligárquica e excludente. Este acúmulo de capital social por parte da sociedade civil brasileira se contrapunha à cultura política dominante, ao propor atalhos nas rotas previamente traçadas por aqueles que se consideravam os reais construtores da Nação. A partir dos estudos já produzidos, podemos afirmar, com certa margem de segurança, que a mobilização popular era bem maior do que se imaginava. No entanto, tais associações, apesar de muitas e diversificadas, possuíam fragilidades intrínsecas que as impediam de continuar. Como se sabe, muitas tiveram pouco tempo de vida, muitas foram levadas à bancarrota, muitas se esvaziaram, a maior parte abria mão de interferir sobre os rumos da política e outras tantas se limitaram a ser somente espaços de sociabilidade e lazer para seus membros. Diante de um quadro nacional de predomínio do campo sobre a cidade e de uma concentração regional do desenvolvimento econômico, os números de associações e sócios a serem apresentados podem soar como inexpressivos. Mas são bem maiores do que se pressupunha. É sobre esta ambigüidade, própria de um período de transição para o capitalismo é que pretendemos prestar algumas contribuições, a partir das pesquisas desenvolvidas sobre as associações mutuais que reuniam os trabalhadores de Minas Gerais. Escolhemos como marcos temporais o ano de 1872, ano de fundação da primeira associação de socorro mútuo conhecida no estado – Sociedade Alemã Beneficente - até o ano de 1934, ano que amplia consideravelmente a cobertura da Lei de Acidentes de Trabalho (iniciada em 1919), principal objeto de proteção das mutuais.5 E como marco espacial, o estudo de dois pólos urbanos importantes para Minas no período, que eram Juiz de Fora, a maior cidade e Belo Horizonte, a capital.

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Para dados referentes às datas de fundação das mutuais mineiras ver: DUTRA, Eliana de F. Caminhos operários nas Minas Gerais. São Paulo: Hucitec, 1988, p. 212 a 215. Para a lei de 1934 ver: CARONE, Edgar. A República Nova: 1930-1937. São Paulo: Difel, 1974, p. 149.

3 1) O Cotidiano das Associações de Socorro Mútuo

Através da pesquisa que desenvolvemos acerca dos mais diferentes tipos de associações mutuais que agregavam trabalhadores, pudemos observar alguns padrões de regularidade em seu funcionamento. A grande maioria delas se auto-definia como organizações cooperativas de amparo aos trabalhadores quando estivessem doentes. Assim se expressou pela imprensa uma associação de Minas Gerais, ao anunciar a todos a sua reunião de fundação: À medida que a circulação caminha, desenvolve-se com ela o espírito de associação; compreendendo afinal que pertencemos todos a uma mesma família, reconhecemos que a ninguém é permitido isolar-se; argumenta o sentimento de solidariedade que nos une e sentimos a necessidade de nos ampararmos mutuamente a fim de caminharmos mais firmes pela vida (...).Os pobres são os que melhor entendem as necessidades de auxílio nas desgraças alheias e para darem expansão aos seus gestos generosos reúnem-se em associações para serem úteis uns aos outros. É para os que muito têm e podem ajudar os que nada têm é que pedem auxílio para a associação que será fundada. Quem sabe se o rico de hoje não será o pobre de amanhã?6

Retratados na citação estão os valores de um grupo que aspira construir uma associação que se agrega como uma só família, a compartilhar a solidariedade mútua, própria dos pobres, que são naturalmente úteis e generosos. Entre os pobres não estão incluídos os escravos, impedidos de comporem esta associação específica. A citação reforça a necessidade de fortalecer valores como o da cooperação, igualdade, generosidade, solidariedade, parentesco e agregação, e, ao excluir os escravos do grupo, mantinha intactos os valores da dependência e da segregação. Em geral, as mutuais utilizavam seus recursos no pagamento de remunerações prépactuadas de seus sócios em momentos de doença, invalidez, funerais e no auxílio aos familiares do sócio após sua morte. O volume da cobertura e suas modalidades variavam de acordo com os recursos disponíveis pelas várias associações. Algumas costumavam financiar viagens para sócios e familiares, sobretudo as de estrangeiros, promovendo seu retorno ao país de origem ou a vinda para o Brasil de seus familiares. Outras cobriam gastos com remédios, com aluguéis de casa e com advogados. A inadimplência por período superior a três meses levava à perda de direitos por coberturas, para a maioria das associações.

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Associação Beneficente de Juiz de Fora. Jornal O Pharol. Juiz de Fora, 01/03/1885, p.1, colunas 2 e 3. Centro de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes.

4 Com raras exceções, faziam alusão à política. Normalmente, se manifestavam como a-políticas ou a-partidárias. Em algumas mutuais encontramos como um de seus objetivos a luta em favor dos trabalhadores.7 Esta pretensão foi encontrada em algumas que se organizavam por categoria profissional específica. Uma das maiores e mais importantes mutuais de Juiz de Fora – a dos “Irmãos Artistas” - colocava-se de forma ambígua em relação à política. Participou de congressos operários nacionais, freqüentemente reunia-se com uma associação de resistência de cidade vizinha em caráter festivo, mas reafirmava sempre seu caráter exclusivamente beneficente.8 Poderiam ser sócios jovens e adultos, em geral, até os 55 anos de idade. Mulheres, com raras exceções, puderam associar-se. Viúvas só receberiam auxílio se mantivessem-se “honestas” e solteiras. Existiam variados tipos de sócios, discriminados segundo o volume de suas contribuições. Em geral, os beneméritos eram aqueles que faziam doações expressivas, fartamente anunciadas pela imprensa local. Pertenciam à elite política de ambos os municípios. As formas de organização interna eram muito assemelhadas. Existia uma hierarquia prevalecente entre os diretores e as variadas modalidades de sócios. As regras sobre a Assembléia Geral costumavam ser muito rígidas para poupar excessos verbais e brigas. Era comum acompanhar pela imprensa os problemas vividos pelos sócios que publicamente manifestavam seu descontentamento com as mutuais ou com a direção das mesmas. A imprensa servirá de palco para a expressão dessas disputas internas.9 As atividades de lazer e a preocupação em auxiliar a educação de sócios e familiares eram muito comuns. Algumas mantinham bibliotecas, outras sonhavam com a construção de escolas. Todas festejavam. As festas eram para comemorar o aniversário da associação, o dia do trabalhador, para enaltecer algum líder conhecido ou, no caso das étnicas, para comemorar alguma data relevante do país de origem.10 As lideranças raramente eram pobres ou analfabetas. Muitas se mantinham indefinidamente no poder. Não porque quisessem, mas, na maioria das vezes, por não

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A exemplo da Associação Beneficente Operária de Belo Horizonte (1913), Associação Beneficente Tipográfica de BH (1904), entre outras. Estatutos sob a guarda do Arquivo Público Mineiro. 8 Documentos sob a guarda do Arquivo Histórico da UFJF. 9 Como exemplo, podemos destacar reportagens do Jornal O Pharol de março de 1893, quando problemas financeiros da Sociedade Beneficente de Juiz de Fora tornaram-se públicos e alvo de intensos debates. Os jornais encontram-se arquivados no Centro de Memória da Biblioteca Municipal Murilo Mendes. 10 Ver a este respeito:BATALHA, Cláudio H.M. Cultura Associativa no Rio de Janeiro da Primeira República In: BATALHA, Cláudio H.M. et alii (orgs.) Culturas de Classe, op. cit..

5 disporem de concorrentes. Permanecer na direção soava como um ônus, um preço alto que deveria ser pago pelo bem coletivo. Das várias associações pesquisadas, a maioria de seus participantes era formada de assalariados regulares e sadios, condição de sua associação. Delas estavam excluídos os trabalhadores informais e aqueles que estavam fora do mercado de trabalho. Porém, algumas mutuais destinavam parte de seus recursos para socorrer aqueles que não tinham condições financeiras de se associar. Talvez por esta razão algumas delas fizessem jus a subvenções públicas, tais como as filantrópicas. A maior parte vivia sérias dificuldades financeiras que acabavam por provocar o seu fechamento. As contribuições eram pequenas e a inadimplência muito grande. As que conseguiram inserir quadros técnicos responsáveis por sua gestão financeira e, que ao mesmo tempo, conseguiram agregar setores mais aquinhoados da população, sobreviveram por longa data. Abram de Swaan, em suas análises sobre o mutualismo europeu, nos informa que o fator que levava à extinção precoce de tais sociedades relacionava-se diretamente à incapacidade técnica de calcular os riscos. Em geral, agregavam setores sociais muito homogêneos. Eram os mesmos profissionais, das mesmas idades e que residiam nas mesmas cidades. Caso fossem vitimados pelo desemprego ou por epidemias, comuns em ambientes compartilhados, quase todos os sócios demandariam socorro a um só tempo, inviabilizando a associação. Esta falta de planejamento decorria da ausência de uma direção técnica capacitada.11 Não encontramos nenhuma associação que limitasse o número de sócios. Este número foi muito significativo para algumas associações mineiras. As maiores possuíam de 500 a 1800 sócios. Muito embora fossem contemporâneas de muitos sindicatos, não identificamos muitas relações entre elas e as sociedades de resistência. Acreditamos que pelo volume de sócios de ambas as modalidades de agregação, as suas bases eram múltiplas. A relação com o poder público era cordial. Requeriam isenção de impostos, serviços urbanos em suas propriedades e permissões para realizar suas festividades. Em geral, eram atendidas. Algumas recebiam subvenções públicas. Muitas lideranças políticas locais assumiram a direção das mutuais ou foram seus sócios beneméritos. O interesse por parte das autoridades locais em associar-se se explica pela necessidade de reforço de sua liderança política e status social. As maiores contribuições às associações eram recompensadas pelo agradecimento público através da imprensa, pela colocação de seus 11

SWAAN, Abram de. In care of the state: health care, education and welfare in Europe and the USA in the modern era. Cambridge: Polity Press, 1988, p. 146.

6 nomes em prédios e pavilhões das associações ou da encomenda de quadros a serem expostos em suas sedes. Assim, suas relações com as elites pareciam ser muito próximas, em tom intrinsecamente colaboracionista. Muitas atividades eram feitas com o fim de reforçar o caixa das associações. Espetáculos teatrais, circenses e musicais, quermesses e missas, eram fartamente promovidos para o deleite do povo e de sua elite. Nessas ocasiões, a imprensa servia como o principal mecanismo de divulgação do evento, com o fim de prestigia-lo. As associações acabavam por oferecer as maiores oportunidades de lazer para a sociedade como um todo, através de suas promoções, que não eram poucas.

2) O Contexto de Emergência das Mutuais

As

organizações

de

socorro

mútuo,

segundo

levantamentos

existentes,

organizaram-se no Brasil a partir da segunda metade da década de 1830. 12 Seu crescimento mais vigoroso se deu na última década do século XIX, segundo dados levantados para o Rio de Janeiro. No caso mineiro, temos notícias de que as primeiras associações surgiram na década de 1870 e a maior proliferação delas ocorreu entre 1909 e 1919. Em Juiz de Fora, como dito anteriormente, a primeira associação data de 1872. Em Belo Horizonte, a primeira conhecida foi a Beneficente Tipográfica, de 1891, e sua maior mobilização ocorreria ao longo da década de 1920.13 O Censo de 1920 aponta para a existência em Minas Gerais de 2600 associações, sendo pouco mais da metade delas de caráter beneficente e religioso laico. As profissionais somavam 106.14 Interessante observar que o crescimento das sociedades de resistência ocorreu no mesmo período em que houve uma maior proliferação das mutuais, em ambas as cidades.15 Esta constatação fragiliza o argumento de que o advento das associações propriamente sindicais veio a substituir ou mesmo continuar – sob nova face – as associações de mútuo

12

BATALHA, Cláudio H.M. Sociedades de Trabalhadores do Rio de Janeiro do Século XIX: Algumas reflexões em Torno da Formação da Classe Operária In: CADERNOS AEL...op. cit.p. 49. 13 DUTRA, Eliana de F. Caminhos operários, op. cit. p. 115 e 216. A partir do levantamento que estamos fazendo, o quadro apresentado pela autora para o caso de Belo Horizonte sofrerá algumas alterações, sobretudo no que diz respeito ao número de associações, o qual foi bem maior que o número por ela apontado. 14 Minas – Anuário Estatístico, 1921. Ano I, p. 421-425. 15 Para o caso de Juiz de Fora, ver: ANDRADE, Sílvia M.B.V. Classe operária em Juiz de Fora: uma história de lutas (1912-1924). Juiz de Fora: EDUFJF, 1987. Para Belo Horizonte ver: FARIA, Maria Auxiliadora e GROSSI, Yonne de S. A classe operária em Belo Horizonte: 1897-1920 In: V Seminário de Estudos Mineiros: A República Velha em Minas. Belo Horizonte:UFMG, 1982. Para ambas as cidades ver: DUTRA, Eliana F. de. Caminhos operários, op. cit.

7 socorro. De fato, ambos os tipos de associações que, de diferentes formas reunia trabalhadores, foram contemporâneas umas das outras, em que pese o fato de não termos encontrado muitos indícios de inter-relação entre elas. As análises recentes têm apontado para a trajetória específica deste tipo de associação de trabalhadores, vistas anteriormente como um modelo associativo “amarelo” ou “reformista”, a ser superado pelas ações mais combativas de associações de resistência que lhes teriam sucedido cronologicamente. A emergência das mutuais esteve diretamente relacionada ao período de transição para o capitalismo no Brasil. O processo de transformação das relações escravistas de produção para as formas assalariadas e semi-assalariadas de exploração da força de trabalho ocorreu inicialmente nas cidades. O abandono do campo em busca de formas alternativas de subsistência na nova ordem que se inaugurava levou para as cidades grupos de libertos e de trabalhadores livres, a disputar o mesmo espaço social. O crescimento populacional dos pólos urbanos do centro-sul do país foi reforçado pelas contínuas levas de imigrantes, muitos deles também concentrados nas cidades, em detrimento do campo. As cidades transformam-se rapidamente em locais de forte ebulição social, numa conjuntura nem sempre favorável para o emprego e muito menos para a renda. No campo, as experiências vividas pelos trabalhadores eram fundamentadas no parentesco e na verticalidade das relações sociais. No que tange ao parentesco, o trabalhador residia com sua família e com ela trabalhava a terra. A cultura compartilhada era a da solidariedade horizontal e da cooperação. O poder político oligárquico fundamentava-se também na parentela, um dos mais fortes requisitos de recrutamento no período. No que tange à verticalidade das relações, este mesmo trabalhador, enquanto se mantivesse no campo, assumia o papel de cliente em relação aos donos de terras. No entanto, o impacto da abolição e da implantação da República sobre o imaginário nacional causaria transformações neste quadro. A modernidade passou a ser o símbolo de liberdade e de novas oportunidades para todos. O discurso otimista de nossas elites urbanas - associado à decadência de algumas regiões cafeeiras – funcionará como poderoso fomentador do êxodo rural. O crescimento industrial anunciava novos postos de trabalho. Tanto imigrantes quanto trabalhadores nacionais tendiam a migrar para a cidade. E ao fazerem, abandonavam seus laços familiares. A ruptura das relações de parentesco que serviam de base ao convívio social no campo provocaria mudanças significativas na formação dos novos grupos e no padrão de relacionamento entre eles. A prática da cooperação, comum no campo, dará lugar a relações de competição na cidade. O contexto de disputa pelo emprego, moradia, salário, alimentação e pelos espaços

8 de lazer, propiciará campo fértil para a mudança de valores, rompendo com o passado deixado para trás. A ausência de perspectiva de futuro para o trabalhador comum resultou na proliferação de reações violentas, expressas no crescimento da criminalidade, o qual foi fartamente documentado pelo aumento significativo do número de ocorrências policiais e de processos judiciais a inundaram nossos arquivos. No entanto, isto não significou uma ruptura com as relações de dependência. A escravidão que a havia produzido teve como corolário a República, que a reforçou através das práticas coronelistas.16 Além de ter introduzido valores mais competitivos e individualistas na sociedade brasileira, o discurso liberal-oligárquico inaugurou um período de crescente laicização do Estado, manifesta, sobretudo, na separação entre Estado e Igreja na Constituição de 1891. A aparente fragilização da Igreja poderia ter resultado no esvaziamento das irmandades leigas, neste período de transição. Existem hipóteses, ainda não totalmente comprovadas, de que as mutuais poderiam ter resultado dessas irmandades, como mecanismos substitutivos de agregação. Cláudio Batalha levanta a hipótese de que a proibição das corporações de ofício em 1824 teria propiciado o advento de irmandades e, posteriormente, de mutuais como um mecanismo alternativo de associação de trabalhadores com o fim de conferir alguma proteção à transmissão de seu saber técnico.17 O fato comprovado, porém, pelo menos para o caso mineiro, é de que o processo de laicização não correspondeu, pelo menos de imediato, no refluxo das irmandades religiosas, e muito menos da religiosidade de seus trabalhadores. Pelo contrário, a proliferação de irmandades se deu exatamente neste período, sob o incentivo e o controle da própria Igreja, que viu uma possibilidade de sua expansão compensatória em relação a uma possível perda de adeptos.18 John Wirth afirma que os católicos mineiros foram muito ativos na luta contra a secularização. A instrução religiosa no estado foi proibida só depois do ano de 1906, por iniciativa do governador de Minas – simpatizante das causas positivistas – João Pinheiro. Wirth destaca que a geração nascida após a República foi muito mais católica que a

A este respeito ver boa síntese encontrada no verbete “Coronelismo” In: ABREU, Alzira et alii (coord.) Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro. Rio de Janeiro:FGV, 2001, volume 2. 17 BATALHA, Cláudio H.M. Sociedades de Trabalhadores... op.cit. p. 49 e 50. 18 As irmandades religiosas de Juiz de Fora proliferaram entre 1854 (a mais antiga) até a década de 1920. O período de romanização foi tardio, mas efetivo na realização de seus objetivos. Acerca da História religiosa de Juiz de Fora, sugerimos: MIRANDA, Beatriz V. D. e PEREIRA, Mabel S. (orgs.). Memórias eclesiásticas. Juiz de Fora: EDUFJF, 2000. AZZI, Riolando. Sob o báculo episcopal: a Igreja Católica de Juiz de Fora (1850-1950). Centro de Memória da Igreja em Juiz de Fora, 2000. CHRISTO, Maraliz de C. V. Europa dos pobres: a belle époque mineira. Juiz de Fora, EDUFJF, 1994. 16

9 geração anterior.19 Portanto, é difícil imaginar que exista uma linha de continuidade entre irmandades e mutuais, pois ambas, pelo menos em Minas, também foram cronologicamente contemporâneas. Ante o quadro acima exposto, acreditamos que a proliferação de associações de socorro mútuo neste contexto esteve visceralmente relacionada à necessidade de reforçar as relações de solidariedade horizontais, perdidas em decorrência da ruptura ocorrida sobre as relações de parentela e pela introdução de valores relacionados à competição e ao individualismo. Seu advento relaciona-se também à construção de uma nova estratégia de sobrevivência alternativa, em um panorama bastante adverso para os setores socialmente excluídos da população. A necessidade de resgatar valores antigos partilhados, que estavam sendo rompidos pela implantação da nova ordem capitalista, levaria alguns setores da população urbana a se associar em organismos onde as relações fossem predominantemente

semelhantes

aquelas

antes

compartilhadas.

Valores

como

solidariedade, igualdade, cooperação e proteção mútua. Ao mesmo tempo, valores ligados à dependência e ao reforço de status dos setores dominantes, experiências também compartilhadas no campo. Ousamos relacionar este comportamento ao conceito de “economia moral” de E. P. Thompson, em que pese à resistência do historiador inglês em utilizar conceitos fora dos contextos de sua construção.20 O forte caráter associativista do período pode ser lido como uma expressão de resistência à nova ordem que se impunha. Na busca de manter valores tradicionalmente compartilhados, as associações de auxílio mútuo poderiam também ser explicadas pela resistência a nova ordem imposta pelo Capitalismo, além da necessidade de subsistência, decorrente da ausência de políticas de proteção social. Ambas as cidades, sobre as quais nos debruçamos na presente pesquisa, viveram este contexto. Juiz de Fora foi, até a década de 1940, o mais importante pólo industrial de Minas e um dos mais importantes do país. Belo Horizonte, a partir da década de 1920, foi a segunda maior cidade do estado em desenvolvimento industrial. Ambas as cidades receberam imigrantes, sendo que para Juiz de Fora veio o maior número deles. Ambas as cidades receberam libertos que abandonaram o campo, muito em razão da crise das cafeiculturas fluminense e da mata mineira. Ambas as cidades nasceram sob a guarda da república, com seus valores de modernidade, progresso, civilização e laicização, valores 19

WIRTH, John. D. O fiel da balança: Minas Gerais na Federação Brasileira (1889-1937). Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 142-143. 20 THOMPSON, E. P. Costumes em comum: Estudos sobre a cultura popular tradicional. São Paulo: Cia das Letras, caps. 4 e 5.

10 compartilhados por todos, mesmo os que deles estavam excluídos. Portanto, ambas as cidades iriam viver intenso movimento associativo – proporcional ao seu tamanho e importância no quadro estadual – retratado no vasto número de associações criadas. De forma mais intensa, Juiz de Fora formou-se como um pólo urbano para o qual se direcionaram libertos, imigrantes e trabalhadores nacionais empobrecidos. Apesar de possuir um dinâmico parque industrial e um comércio bastante ativo, sua economia não pôde absorver a grande massa de trabalhadores que para lá se dirigiram. O resultado foi a proliferação do desemprego, do desvalimento social e do emprego informal. Do ponto de vista social, proliferaram largamente os embates entre povo e polícia, entre homens e mulheres, entre imigrantes e nacionais.21 Por outro lado, na condição de mecanismos amenizadores desta ebulição conflituosa, a cidade iria conviver com a criação de um vasto número de associações filantrópricas (católicas, espíritas e protestantes) e com um vasto número de associações mutualistas de diversos tipos. Em levantamento já concluído, mas nunca definitivo, do número de associações, encontramos cento e oitenta três entre profissionais e étnicas e cinqüenta e três filantrópicas, num universo médio populacional de 42 mil habitantes.22 Trata-se de um número significativo de ambas as modalidades de associação, em um contexto muito típico de transição nacional para o capitalismo. Portanto, acreditamos que este grande impulso associativo se explica, sobretudo, pela necessidade dos setores populares de se sentirem protegidos em relação à nova conjuntura de mudança que os ameaçava, recorrendo a práticas tradicionalmente construídas em seu lugar de origem.

3) As Diferentes Motivações

É possível utilizar algumas categorias antropológicas que orientam as relações de economia e de poder em sociedades mais recuadas no tempo e no espaço, para entender um pouco melhor acerca das razões que levaram os indivíduos a se organizarem em corporações tais como as de socorro mútuo.

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Para o caso de Juiz de Fora ver: BORGES, Célia M. (org.) Solidariedades e conflitos: histórias de vida e trajetórias de grupo em Juiz de Fora. Juiz de Fora: EDUFJF, 2000 e CARNEIRO, Deivy F. Conflitos, crimes e resistência: uma análise dos alemães e teuto-descendentes através de processos criminais (Juiz de Fora, 1858-1921). Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da UFRJ. Rio de Janeiro: 2004. 22 Os dados populacionais (1890-1930) foram obtidos no Relatório da Prefeitura de Juiz de Fora de 1931, p. 257 e os demais em informações coletadas na pesquisa empírica realizada sobre o período de 1876 a 1934.

11 Karl Polanyi nos informa que em sociedades caracterizadas pela ausência de um mercado formal, as relações de troca expressam princípios alternativos ao comportamento econômico capitalista de tipo competitivo, pois a reciprocidade passa a reger as permutas. A reciprocidade - que pode ser entendida como atos isolados de dar e receber - requer aceitação de regras (não necessariamente escritas) e existência de confiança mútua, sentimentos que obliteram a bipolaridade das relações sociais de troca, amenizando a luta competitiva. 23 Como o período de emergência e proliferação das mutuais se deu previamente ao período de plena expansão das relações capitalistas de troca, principalmente no campo, a reciprocidade fundamentava as relações de doar, receber e contra-doar. Marshall Sahlins identifica dois modelos de reciprocidade: a balanceada e a generalizada.

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A balanceada

opera no ambiente onde as trocas são iguais. A generalizada prepondera nas relações onde alguém contribui com mais do que recebe, sabendo que em algum momento, receberá de volta o valor contribuído anteriormente. Mesmo que não o receba, manterá aquele que a recebeu sob seu controle (dependência). Ambos os modelos ocorrem nas mutuais. O indivíduo contribui o tempo todo sem saber quando e quanto receberá em troca. Para quem contribui e raramente usufrui o ganho é a manutenção da dependência dos outros em relação a ele e o conseqüente reforço de seu status, principalmente se tratar-se de um sócio benemérito (generalizada). Para quem usufrui o que contribui (balanceada), a relação de dependência está mantida. Desta forma, reproduz-se na cidade parte da cultura prevalecente no campo, recentemente abandonado. O risco de quem investe é racionalmente calculado, pois ele sabe, que em algum momento, pode receber o seu contra-dom. A reciprocidade concilia o interesse individual com a solidariedade coletiva. No longo prazo, todos os membros serão beneficiados, de variadas formas. Daí se explica o grande número de adesões a organismos estruturados sob o risco da fraude, da decadência financeira e da manipulação política. Tais regras de reciprocidade são reforçadas pela notabilização pública de tais instituições. Ao se firmarem no ambiente onde estão inseridas como entidades respeitáveis e fiéis cumpridoras de seus compromissos, assumem a árdua tarefa de manter intactas as suas reputações. Por sua vez, seus associados dependem da preservação desta imagem da associação para ter assegurado o retorno de seu investimento. Por um lado, a inadimplência

23

POLANYI, Karl. A grande transformação: as origens de nossa época. 2ed, Rio de Janeiro: Campus, 2000, p.68, 81 e 82. 24 SAHLINS, Marshall. Stone Age Economics. Chicago: Aldine-Atherton, 1972.

12 torna-se um fato que a todos prejudica, inclusive aquele que dela lance mão. Por outro, o êxito garante a todos o cumprimento das regras de reciprocidade. A teoria dos jogos25 também nos ajuda a entender porque a reciprocidade é tão fundamental para a manutenção dessas associações. As regras de reciprocidade se apóiam no espírito de confiança mútua, que, ao prevalecer entre os jogadores, oferece bons resultados para ambos (resolução do dilema do prisioneiro). Nos jogos, o custo para o transgressor é muito alto. Nas mutuais também. Todos perdem. No âmbito dos jogos se sabe que as pessoas escolhem confiar nas outras não porque sejam naturalmente altruístas e cooperativas, mas porque aspiram por ganhos individuais só obtidos coletivamente. Trata-se mais de uma disposição imediatista para cooperar do que de uma aposta em soluções éticas compartilhadas, o que chamamos de reciprocidade pragmática. Em alguns jogos só se ganha se prevalece a cooperação. Isto não impede com que haja comportamentos irracionais ou necessidades individuais que levem à ruptura do pactuado, prejudicando a si e a todos. Os jogos contam também com desertores. Mas a aposta é que este tipo de prática não é estrategicamente racional para aqueles que se dispuseram a jogar, ou seja, os que se associaram com o fim de obter socorros mútuos, portanto, serão práticas minoritárias. Associar-se implica numa decisão estratégica que envolve o risco da perda e do ganho. Como sócio, você confia que no leque de opções disponíveis aos demais sócios, a escolha pelo bem da associação seja a mais natural, não porque ele seja honesto e trabalhador, mas porque no êxito do empreendimento, está o ganho individual de cada um.

4) Os Resultados Possíveis

Até agora procuramos analisar as mutuais preocupando-nos em entender como funcionavam, porque proliferaram e entender por que as pessoas a elas se associavam. Resta-nos refletir sobre seu progressivo esvaziamento e seus impactos sobre o futuro. É importante entender as razões que levaram ao esvaziamento das associações de socorro mútuo. Muito embora existam algumas que perduraram até os dias de hoje, observa-se um progressivo esvaziamento delas nas décadas de 1930 e 1940. A relação deste esvaziamento com a introdução de políticas públicas de proteção social parece óbvia.

25

Acerca da Teoria dos Jogos ver: RAPOPORT, Anatol. Lutas, jogos e debates. Brasília, UNB, 1980.

13 Mas sabe-se que na França o mutualismo sobreviveu à introdução do sistema previdenciário público, oferecendo benefícios complementares.26 Para Swaan, as mutuais foram substituídas primeiramente pelas seguradoras, que eram mais organizadas e profissionalmente estruturadas.27 Porém, as seguradoras não conseguiram atender à diversidade de interesses, pois muitos pobres não tinham como arcar com as contribuições, bem maiores que as das mutuais, porque visavam lucro. Assim, a burocracia reformista do Estado teria se convencido de que a única fórmula capaz de garantir a estabilidade social contra os perigos externos seria a instituição da contribuição compulsória, o que daria origem à formação do estado previdenciário.28 Portanto, as mutuais teriam sido experiências só possíveis na ausência deste mercado. Em

Minas,

a

proliferação

de

seguradoras

foi

muito

grande

após

a

institucionalização da lei de proteção contra acidentes de trabalho. Muitas se organizaram para o atendimento da lei. Não sabemos ao certo o que levou a sua rápida falência. Efeitos da I Guerra Mundial podem ter sido os maiores responsáveis. Portanto, as seguradoras surgiram e desapareceram ao longo de aproximadamente dez anos e não vieram substituir as mutuais, mas com elas conviveram. Com base na realidade brasileira, a implantação de políticas sociais por parte do Estado teria esvaziado progressivamente as razões de existência das mutuais. Ao mesmo tempo, várias sociedades de resistência assumiram o papel de conferir a seus associados a proteção social complementar a do Estado. Restava às mutuais se limitarem a se constituir em espaço de lazer e de sociabilidade. É importante refletir sobre o impacto deste modelo associativo sobre os rumos da cidadania brasileira. Putnam, ao analisar a origem da democracia na Itália, recorre ao período prévio em que se deu a construção de uma sociedade civil organizada, chamada por ele de comunidade cívica. Para a formação desta comunidade cívica, as associações corporativas, tais como as guildas, as irmandades e as mutuais foram fundamentais. Para o autor, as associações mutualistas garantiram a criação de uma cultura cívica entre os indivíduos, que pavimentou o caminho para o avanço futuro das práticas democráticas. Assim, quanto mais proliferavam tais modelos de agregação social, mais capital social foi sendo acumulado, aumentando o número de associações, a eficiência do governo e da própria sociedade. Assim se expressa o autor:

SWAAN, Abram de. In care…op. cit. p. 283. Idem, p.150. 28 Ibidem, p. 9. 26 27

14

As sociedades de mútua assistência se edificaram sobre os escombros das antigas guildas, e as cooperativas e os partidos políticos de massa por sua vez valeram-se da experiência daquelas sociedades.(...) Os cidadãos das comunidades cívicas descobrem em sua história exemplos de relações horizontais bem sucedidas, enquanto os cidadãos das regiões menos cívicas encontram, quando muito, exemplos de suplicação vertical.29

Em sociedades onde a cultura associativa predomina, as possibilidades de estabelecerem-se relações menos verticais de poder são bem maiores. Pode-se aventar assim a hipótese de que o forte espírito associativo construído a partir do final do Império e ao longo da República Velha no Brasil apontou para a construção de uma sociedade mais horizontal, menos dependente, menos clientelista e, porque não dizer, menos desigual. Esta trajetória foi, porém, precocemente interrompida pela intervenção do Estado, que sob a égide varguista, interferiu sobre os rumos autônomos trilhados por uma comunidade cívica em organização. Em que pese nossa especificidade, estaria correto afirmar que as associações de mútuo socorro também colaboraram para a formação de uma comunidade cívica no Brasil? Acreditamos que sim. Muito embora a grande parte das associações mutualistas mineiras não tenha evoluído para associações de resistência dos trabalhadores, elas provavelmente contribuíram para a formação de uma cultura cívica de agregação e defesa de interesses coletivos, fundamentais à emergência de sindicatos e ao envolvimento dos trabalhadores na luta política e partidária. Mas esta transição é empiricamente difícil de ser comprovada, principalmente porque cronologicamente tais associações ocorreram de forma simultânea e seus associados tinham dupla militância. Ralle afirma que na Espanha também não houve uma relação de continuidade entre as mutuais e os sindicatos: Quando se desenvolve na maior parte da Espanha, quer dizer, quando ao lado das irmandades começa a ser significativo o número de sociedades de socorro, já existe, ao contrário daquilo que sucede em outros países de modo mais ou menos denso, porém efetivo, uma presença do movimento operário radical e de seus temas. É, portanto, mais difícil do que em outros lugares conceder-lhe o papel de primeira elaboração de uma consciência operária coletiva, com suas correspondentes teorias, instituições, disciplinas e valores comunitários que é, segundo Thompson, o que a distingue. Dadas as características próprias do mundo do trabalho na Espanha, não seria estranho que os fenômenos de radicalização e os de formação de um socorro mútuo fossem mais

29

PUTNAM, Robert D. Comunidade e democracia: a experiência da Itália Moderna. 3ed, Rio de Janeiro: FGV, 2002, p. 184.

15 contemporâneos, e que se estabelecesse um tipo distinto de influência, talvez mais recíproca.30

Thompson afirma que o mutualismo inglês constituiu-se em experiência fundamental no processo de formação da classe operária inglesa, mas suas fontes não comprovam diretamente esta afirmação.31 Não obstante, acreditamos que o caso brasileiro tenha sido muito mais próximo ao espanhol do que ao inglês. O que podemos afirmar com segurança é que elas mantiveram uma relação ambígua em relação às culturas políticas predominantes no período. Ao mesmo tempo em que significavam uma resistência à implantação de relações competitivas e individualistas próprias do capitalismo, a partir do reforço de relações fundadas na confiança mútua, na solidariedade e na reciprocidade, atuavam na preservação de valores também tradicionais, tais como a dependência, a hierarquização social e o reforço das lideranças oligárquicas. Tais contradições expressam a multiplicidade de valores e normas compartilhadas em uma sociedade que vivia um intenso processo de mudança. Soma-se a isso a sua diversidade cultural. Em pequenos pólos urbanos, compartilhando o mesmo espaço político, social e econômico, encontravam-se libertos, escravos, nacionais livres e imigrantes de diversas nações, todos a disputarem os escassos benefícios tão largamente anunciados pelos portavozes da República Liberal. Portanto, não acreditamos que o forte espírito associativo tenha tido potencial efetivamente transformador da realidade que estava lhes sendo imposta. Mas suas resistências cotidianas, sendo elas conscientes ou não, significaram obstáculos importantes à plena implantação de uma sociedade formalmente excludente. É difícil identificar empiricamente como os valores da cooperação e da solidariedade se chocaram com outros valores que se tornaram dominantes. Os diferentes grupos compartilhavam das mesmas regras, das mesmas normas e vivenciavam coletivamente este processo de transição. O fato é que a sociedade civil no Brasil trilhou um longo caminho que resultou na disseminação da cidadania. Pensávamos, até então, que este caminho fora mais tardio. Inúmeros trabalhos hoje apontam para a precocidade de mobilizações e conquistas por direitos. A identificação de um associativismo urbano intenso no período veio apenas se somar a este coro. 30

. RALLE. Michel. A Função da Proteção Mutualista na Construção de uma Identidade Operária na Espanha (1870-1910) In: CADERNOS AEL...op. cit. p. 26. 31 THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, volume 2, p. 32.

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