As faces de Odisseu no caminho ascensional do belo em Plotino.pdf

May 26, 2017 | Autor: Mayã Fernandes | Categoria: Plotino, Ninfas, Beleza, A Odisseia De Homero
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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UNB GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

Mayã Gonçalves Fernandes

As faces de Odisseu no caminho ascensional do belo em Plotino

BRASÍLIA 2016

Mayã Gonçalves Fernandes

As faces de Odisseu no caminho ascensional do belo em Plotino

Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia da Universidade de Brasília como requisito parcial para a obtenção do título de licenciada em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

BRASÍLIA 2016

Mayã Gonçalves Fernandes

As faces de Odisseu no caminho ascensional do belo em Plotino

Monografia apresentada ao curso de graduação em Filosofia da Universidade de Brasília como requisito parcial para a obtenção do título de licenciada em Filosofia. Orientador: Prof. Dr. Gabriele Cornelli

Banca examinadora:

Dr. Gabriele Cornelli (orientador)

Dr. Rodolfo Pais Nunes Lopes

Agradecimentos

Essa monografia é o resultado de muita insistência. Há quatro anos, não imaginava os caminhos que a vida me reservava. Para chegar até este momento, várias pessoas passaram pelo meu caminho e cada uma marcou a minha jornada de alguma forma. Gostaria de agradecer ao professor Gabriele Cornelli por todos os ensinamentos, compreensão e confiança em meu trabalho nos últimos anos. Não me esqueço da professora Ágatha Bacelar que, nesse percurso, foi fundamental para meu crescimento acadêmico. Do professor Pedro Gontijo que me ensinou a “dobrar o mundo”, do professor Rodolfo Lopes que gentilmente aceitou o convite para participar dessa etapa de minha formação e da Leici Landherr Moreira que com muita paciência me auxiliou na edição de meus textos. Agradeço também todas as minhas amigas e aos amigos que estiveram ao meu lado nesses anos de graduação, sobretudo, as pessoas que passaram pela Cátedra UNESCO Archai, que, com toda certeza, posso dizer que alguns de vocês são minha família. Com a filosofia, ao longo desses anos, aprendi que filosofar é aprender a morrer. E para que eu terminasse esse curso, uma parte de mim teve que ir com as pessoas que não mais suportaram a vida. Dedico essa humilde monografia à Rosa, Antônio, Gabriel e meu querido irmão Bibi, que resolveram partir em busca de algo inteligível que ainda não compreendo. Gostaria de agradecer especialmente à professora Loraine Oliveira que percebeu e apostou em meu potencial. Ela me apresentou Plotino e me ensinou que nem todo texto precisa ser preto e branco. Além disso, guardarei para sempre que: sábio é aquele que sabe brincar a brincadeira do mundo, mas, depois de brincar, guarda os brinquedos. E, principalmente, que nunca devo desistir, pois a insistência é minha maior qualidade. Ademais, não poderia deixar de agradecer à minha parceira e esposa Ana Karoline que me ensinou o significado do que é companheirismo. Ela que diante de todas as coisas ruins que passamos, se manteve firme. A nossa luta é contra o esquecimento. E nunca esquecerei o que passamos juntas. Com você, aprendi que não preciso ser família de um só. Sem pestanejar, sempre estarei ao seu lado.

A Plotino.

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"Sabemos que a maior aventura de nossa vida é a ausência de aventuras. Odisseu, que lutou em Tróia, voltou singrando os mares, comandou ele mesmo seu navio, tinha uma amante em cada ilha, não, não é isso nossa vida. A Odisseia de Homero transportou-se para dentro. Ela se interiorizou. As ilhas, os mares, as sereias que nos seduzem, a Ítaca que nos chama não são hoje senão vozes de nosso ser interior." O livro do Riso e do Esquecimento. Kundera, M

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RESUMO

Esta monografia tem por objetivo analisar as belezas sensíveis no tratado I. 6 [1] Sobre o belo de Plotino. Nessa investigação, o herói Odisseu aparece como fio condutor, ao compreender que ele apresenta-se como personagem de várias faces: Odisseu como face da alma; a figura do enamorado, e Odisseu representando a alma do amante. Assim, todas as perspectivas apontam para a ascensão pela via da beleza, já que a finalidade dos humanos e das almas é retornar à pátria querida.

Palavras-chaves: Neoplatonismo; Plotino; Belo; Ascensão.

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RÉSUMÉ

Cette monographie a pour but analyser les beautés sensibles dans le Traité I. 6 [1] Sur le beau de Plotin. Cette recherche, héros Odyssée apparaît comme fil conducteur, pour connaître que il présent comme le personage de plus face: Odyssée comme la face de l’âme; la figura de l’amant, et Odyssée l’âme de l’amant. Ainsi, toutes les perspectives indiquent l’ascension par la beauté, puisque le but des humains et des âmes doit réintégrer la cher patrie.

Mots-clés: Néoplatonisme; Plotin; Beau; Ascension.

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Sumário

Introdução _________________________________________________________________ 4

As belezas sensíveis e o caminho de ascensão _____________________________________ 6

Faces de Odisseu __________________________________________________________ 14 Odisseu como face da alma_________________________________________________ 15 Odisseu, o amante do belo. _________________________________________________ 20

A dupla face de Odisseu _____________________________________________________ 27 A alma do amante ________________________________________________________ 28 A figura de Calipso como exemplo para compreender Odisseu como alma do amante___ 30

Considerações finais ________________________________________________________ 37

Referências Bibliográficas ___________________________________________________ 39

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Introdução Essa pesquisa se apresenta como continuação do trabalho desenvolvido no Projeto de Iniciação Científica, de título: Representações da Ninfa Calipso na Odisseia e sua interpretação em Plotino. Essa investigação consistia em averiguar a recepção do mito de Calipso na filosofia plotiniana. Assim, ao considerar o mito como um meio racional de alcançar o inteligível, a figura de Odisseu no tratado I. 6 [1] Sobre o belo será fio condutor para compreender as belezas sensíveis na filosofia plotiniana. Ao desnudar o belo, é possível perceber a linha tênue entre as belezas sensíveis e as belezas inteligíveis. As ninfas Circe e Calipso, ao serem descritas por Homero1, são cantadas como deusas de belezas sublimes, ao passo que, em Plotino, são definidas como imagens fascinantes, que carregam o destino de serem cópias opacas da beleza2. Nas Enéadas, enquanto imagens, as ninfas parecem ser perigosas para as almas desatentas, que confundem simulacros com a verdadeira beleza como, o caso do anônimo. Entretanto, será que essa mesma imagem pode guiar o amante em busca do inteligível? Tornar-se-á uma imagem opaca um caminho para quem consegue ver através dela? No mundo sensível, o amante ao encontrar um corpo belo, experimenta a sensação da beleza e se apaixona. Através do autoconhecimento e das virtudes, o amante reconhece dentro de si o arquétipo do belo. A conversão do olhar, proposta por Plotino, de fora para dentro, em busca do inteligível e da perfeição, é um novo começo para esse humano que deseja seu semelhante. “Fixa o olhar e vê: pois esse é o único olho que vê a súpera beleza” 3. Todavia, qual o real caminho que essas belezas sensíveis podem oferecer à alma e ao humano memorioso de sua origem? Plotino questiona sobre o papel das belezas sensíveis no caminho ascensional para o Intelecto e o Um. Para ele, essas belezas presentes nos corpos são aquelas que vislumbram o espectador, e este já não quer permanecer de fora do espetáculo4. Entretanto, ao contemplá-las é preciso compreender que não passam de imagens e sombras. O primeiro capítulo dessa monografia apresenta a compreensão de Plotino acerca das belezas sensíveis e como essas belezas podem auxiliar no percurso de retorno à pátria querida. Por meio da participação, a alma pode tornar o composto belo, pois ela possui em si 1

As ninfas Circe e Calipso se envolvem com Odisseu, na Odisseia de Homero. A ninfa Calipso, no Canto V, é definida como uma deusa de beleza sublime, que seduz o herói Odisseu durante o período de sete anos, e só após a intervenção dos deuses, decide ajudar o rei de Ítaca no seu retorno para a pátria querida. 2 Cf. I, 6, 8 15-24. 3 Cf. (I. 6, 9 19) 4 Cf. I. 6 [1] 1, 19

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resquícios da beleza verdadeira. Mas o que são essas belezas sensíveis? Como é possível aos humanos retornar a sua origem? Plotino incita: “Fujamos para a pátria querida”5, e a alma, reagindo ao chamado, busca por meio das virtudes se ordenar para depois distanciar-se do corpo. No segundo capítulo desse estudo, serão analisadas duas interpretações para Odisseu. O herói apresenta-se como um exemplo a ser seguido. No jogo de aparências, por vezes, Odisseu é interpretado como a figura da alma. Porém, são possíveis outras interpretações sobre esse personagem no Sobre o belo? Entre as leituras possíveis, Odisseu se apresenta como a figura do amante e como a alma do amante. Em contraponto com a figura do anônimo, poderá Odisseu ser caracterizado como o amante do belo? O terceiro capítulo parte do pressuposto de que não existem apenas duas leituras para a figura de Odisseu. Mesmo essas interpretações seguindo uma bifurcação, elas mostram-se conciliatórias. Assim, Odisseu como personagem duplo simboliza faces da mesma moeda. Para isso, neste estudo, a bela ninfa Calipso torna-se exemplo de beleza sensível, a qual poderá auxiliar Odisseu em seu caminho. Para todas as figuras, seja a humana ou a figura da alma, é mister compreender que no processo de ascensão, a prioridade é afastar-se de tudo que lhe é impuro para conseguir ver o que é congênere à alma. Encontrar um meio para garantir a ordem e pureza é tarefa árdua, já que, segundo Plotino: a alma não verá o belo sem ter-se tornado bela. Destarte, devemos navegar com Odisseu, que nessa viagem cheia de enigmas, segue em busca do inteligível.

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I.6[1] 8, 14

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As belezas sensíveis e o caminho de ascensão

Em I. 6 [1]6, um dos convites realizados por Plotino7 ocorre na chamada ao leitor para participar de uma busca pelo belo. Assim, questões que envolvem as belezas sensíveis, a purificação por meio das virtudes, a contemplação do belo e a imagem das ninfas serão elencadas nas próximas páginas. As imagens das belezas sensíveis aparecem distintas ao logo do tratado: em alguns momentos o belo está presente no composto8 e em outros no imaterial. Com quais belezas sensíveis o amante se relaciona? Qual a natureza dessas belezas? Nesse sentido, será investigado primeiramente como as belezas sensíveis se apresentam ao longo do tratado. O capítulo primeiro do tratado Sobre o belo aborda a caracterização das belezas sensíveis e, sobretudo, explica a diferenciação entre elas. Além disso, há uma discussão com o conceito de beleza estoica9 a qual, dados os limites deste estudo, não será analisada. Laurent (2002, p. 12) salienta que o primeiro capítulo do tratado é configurado como a explicação da natureza das coisas belas. Quais são essas belezas sensíveis? Plotino destaca que o belo está presente não apenas nas coisas materiais10, mas constitui uma parte das melodias, ritmos e das sensações ao que é superior como as belas ocupações e as virtudes (I. 6, [1] 1. 2 - 5). As belezas sensíveis se dividem em belezas dos corpos e belezas das virtudes: “Pois, enquanto certas coisas não são belas por seu substrato, como os corpos, mas por participação, outras são elas mesmas belezas, tal como a natureza das virtudes” (I. 6 [1] 1. 10-13).

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As traduções utilizadas nesse estudo das Enéadas são as de José Baracat Júnior (2006) e Jesus Igal (1982). As citações das Enéadas constam da seguinte forma: primeiro, a ordem sistemática de Porfírio; segundo, a ordem cronológica do tratado entre colchetes; terceiro, o número do capítulo e linhas. 7 Para compreender a estrutura dos tratados e aspectos gerais sobre Plotino, Cf. BARACAT Jr., J. C. (2006). Plotino, Enéadas I, II e III; Porfírio, Vida de Plotino. Introdução, tradução e notas. 700 f. Tese (Doutorado em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 8 Bréhier (1953) acredita que o corpo é formado, em última instância, dos quatro elementos (fogo, ar, água e terra), e que estão constituídas de forma e matéria. Como composto, o corpo tende, por natureza, para a desintegração. Caracteriza-se ainda pela posse de tamanho, massa, e está ligada a colocar de tal modo que ele não pode estar em locais diferentes, sem ser disperso, diferentes partes ocupando lugares diferentes. 9 Na concepção de Lombardo (2011, p. 116), os estoicos definem a simetria como o tamanho absoluto de uma manifestação do belo na natureza e no cosmos. Com efeito, o equilíbrio e a proporção das partes se colocam como manifestações divinas. Ora, Plotino questiona se essa teoria tem validade dentro de um pensamento sobre a beleza presente nos corpos, sobretudo, das belezas imateriais. Longe de discutir demoradamente as críticas de Plotino ao estoicismo, até o momento, a abordagem foi oportuna para a compreensão da definição das belezas sensíveis. 10 Para ver sobre a questão da mistura em Plotino, Cf. Groisard, J. (2010). Plotino e o problema da mistura, Revista Archai.

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As belezas presentes nos corpos são aquelas que vislumbram o espectador. O belo pode, para quem é capaz de ver, se tornar perceptível logo no primeiro olhar. Para Hadot, (1997, p. 47-49) saber ver o mundo sensível é prolongar a visão do olho para a visão do espírito. Ao reconhecer o belo inteligível, seu semelhante, a alma acolhe o belo e a ele se ajusta. Ao deparar-se com o feio, a alma se afasta, pois é distante e alheia a ele (I.6 [1] 5, 2229). É preciso lembrar que a alma pode ser dividida em duas: sua parte superior está voltada para o Intelecto, sempre próxima à plenitude e iluminação eterna. Permanece lá, participando do inteligível; a outra parte da alma participa e atua eternamente com a alma superior, contemplando o inteligível que existe nela (BRÉHIER, 1953, p. 80-81). Mas o que é essa participação da alma inferior? Como corpos conseguem ser belos? Plotino assume a doutrina central do pensamento de Platão ao considerar a forma (eîdos)11. Nesse sentido, as belezas sensíveis só existem graças a uma forma inteligível do belo12. Plotino sustenta que as coisas sensíveis só são belas de fato, pela participação em uma forma (I. 6 [1] 2, 11). Nessa perspectiva, Plotino se destaca dos estoicos ao compreender que todas as coisas que possuem forma, independente da sua parcela material, retêm em si uma ideia de beleza. Plotino, ainda contra os estoicos, compreende que a beleza não é atributo apenas de coisas “simétricas e mensuradas” (I. 6 [1] 1.25). Ele está consciente que a proporção não é suficiente para explicar a beleza. Brisson (2013, p. 65), salienta que na discussão contra os estoicos, Plotino se manteve fiel ao platonismo ao articular seu pensamento em torno de três “hipóstases” (Um, Intelecto/Inteligível, Alma hipóstase), as quais, nada possuindo de corporal, representam, no entanto, níveis mais altos de realidade13 e perfeição. Ora, os corpos compartilham de uma forma de beleza contida nos níveis superiores, neste caso, por meio da alma individual. Ou seja, sempre que é questionado acerca de algo belo, esta beleza não pode ser explicada pela proporção das partes de um corpo. Mas de uma expressão da realidade que não é diretamente sensível. Pois a verdadeira beleza é a inteligível (LAURENT, 2002, p. 59). Em Plotino, afirmar que as belezas se encontram apenas em algumas partes dos corpos é errôneo: 11

Para ver mais sobre a aproximação da teoria da forma platônica com a plotiniana, ver Yount, David J, Plotinus the platonist. A comparative Account of Plato and Plotinus Metaphysic. Bloomsbury, 2014. 12 Laurent (2011, p. 35) argumenta que essa correspondência entre coisas sensíveis e formas inteligíveis acontece por essência e não por acidente. Ou seja, quando Plotino fala sobre uma forma de homem, ele fala acerca de um humano sem características acidentais como gênero, idade. 13 Marinho (1998, p. 380) descreve os níveis de realidade. Como hipóstases inteligíveis, temos: Um, Intelecto, Alma Universal. Como entes que participam do inteligível através da Ama Universal, temos: A Alma do Universo e as almas particulares. Como é possível perceber, a alma particular é a última processão, e por esse motivo mantém ligação com o sensível ou mais que isso, ela é a causa que o produz.

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Assim como, em certas ocasiões, a arte dá beleza a toda uma casa com suas partes e, noutras, uma natureza o faz a uma única pedra. Assim, pois, o corpo 2q31belo surge da comunhão com uma razão provinda dos seres divinos (I. 6. [1] 2. 22-25).

Plotino afirma que as belezas simples, como as incorpóreas, estão acima das outras belezas sensíveis, pois possuem forma e posição elevada em relação aos elementos. Um exemplo disso é o fogo. Para o filósofo, dos quatro elementos, o fogo é o único capaz de não aceitar os outros, mas isso não impede que os outros não o aceitem (I. 6 [1] 3, 16-20). Ainda nesse tema, a beleza é uma forma distinta das demais. E as coisas são belas por participação nessa forma. Ou seja, o corpo só é belo por participar, receber em si algo belo do arquétipo. No capítulo segundo do tratado, Plotino explica como o belo é conhecido. Para ele, a beleza nos corpos é reconhecida pela alma, que ao deparar-se com o seu semelhante, se rememora do inteligível do qual participa (I. 6 [1] 2, 2-4). O contato da alma com o reflexo da forma inteligível não necessita de um intermediário. A forma mostra imediatamente a sua identidade, que não lhe é alheia. Esse contato é explicado pelo parentesco que existe naturalmente entre a alma e o mundo inteligível: Pois bem, afirmamos que a alma, como é por natureza o que é e provém da essência que é superior entre os entes, quando vê algo congênere a ela ou um traço do congênere, se alegra e se deleita, e o reporta para si e rememora de si e dos seus (I. 6 [1] 2, 5-8).

Plotino explica que todos os corpos belos participam do arquétipo de beleza. O seu contrário, a inexistência de uma participação, o que é inapto para receber um formato, é feio e externo ao inteligível (I. 6 [1] 2 13-15). Em conformidade com Platão, Plotino acredita que diante o belo14, a reação da alma, em particular a do amante, é de euforia e excitação. Considera-se esta reação como uma reminiscência da forma bela que a alma do amante conhecia anteriormente (O’MEARA, 1995, p. 120). A participação desses corpos sensíveis na beleza inteligível possibilita que o amante e o artista15 utilizem esse caminho do belo como rota de ascensão ao Intelecto e ao Um. Através das sensações, o humano consegue apreender o que existe de inteligível nos corpos. E a alma, ao deparar-se com seu congênere, deleita-se e quer a esse arquétipo assemelhar-se (I. 6 [1] 4, 8- 12). 14

Cf. Fédon 249 D- 252 C; Banquete 210 A -211 C. Sobre o artista, em Plotino a arte aparece em uma posição privilegiada, pois se mostra como um possível meio pelo qual o humano pode elevar-se. Assim, para a teoria do belo e a metafísica estariam estreitamente ligados, visto que a finalidade da alma é contemplar o Um, e a beleza se mostra como possibilidade de ascensão. Cf. MARINHO, (1998, p. 385). 15

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Plotino define as belezas no domínio da sensação como “imagens e como que sombras fugidias que, advindas à matéria, a adornam e nos comovem ao aparecerem-nos” (I. 6 [1] 3, 30-31). No começo do tratado, Plotino nos explica que o belo está nas melodias e ritmos belos, e no terceiro capítulo ele retoma essa noção. Para ele, as “harmonias que estão nos sons” (I. 6 [1] 3, 25) auxiliam no florescimento da alma para que essa reconheça na música um caminho para encontrar o seu congênere. Comentando essa passagem, De Keyser (1955, p. 72) acredita que as harmonias transcendentes imperceptíveis aos sentidos, em contato com esse elemento estranho dos sons, a alma imediatamente reconhece o reflexo de si e com isso consegue ascender à beleza verdadeira. Assim, a música como manifestação no mundo sensível carrega em si a harmonia presente na beleza inteligível e mesmo não possuindo dimensão e simetria, mostra-se como um recurso à ascensão. Adiante, Plotino retoma a questão das sensações e alerta que o humano, caso ele interprete as belezas nos corpos e nos sons como belezas verdadeiras, não verá as belezas ulteriores. A sensação nesse tratado exerce papel fundamental ao possibilitar o acesso da alma dos que partem de baixo ao seu semelhante. Ao captar as belezas sensíveis, cabe então a alma a reconhecer: Nenhuma outra é mais poderosa do que ela para julgar as coisas que lhe são próprias quando o restante da alma contribui no juízo, e talvez ela se pronuncie ajustando-o à forma que está com ela e usando-a para o juízo como um cânon de correção (I. 6 [1] 3. 1-4).

Ao desviar parte das potências16 da alma para o sensível, faz com que o pensamento discursivo (dianóia) tenha que compreender as impressões recolhidas pela sensação. Em V 3 [49] 1, 30 - 40, Plotino explica que a alma, ao receber as imagens provenientes da sensação, realiza o procedimento de composição e divisão, para então analisar se elas lhe são semelhantes. Em outras palavras, a sensação nos oferece a visão de um homem e apresenta sua imagem ao pensamento discursivo. Como a forma do homem já é conhecida anteriormente, o pensamento discursivo reconhece essa imagem por meio da memória. Às belezas ulteriores como mostra Plotino, não cabe a sensação ver e julgar, pois a sensação não reconhece o inteligível por inteiro e, acostumada com o sensível, se deixa facilmente enganar. Quando a alma ocupa o lugar das sensações, sabendo de sua importância, ele as observa e proclama: “Devemos contempla-las elevando-nos, após deixar que a sensação permaneça aqui em baixo” (I. 6 [1] 4, 1-2). Ao realizar esse movimento, as ocupações se tornam belas, por causa da manifestação da beleza da alma, que 16

Cf. Narbonne (2014, p. 61).

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se torna consciente de sua verdade natural. Portanto, se afasta das ocupações do corpo. Mas como a alma torna belas as ocupações? No capítulo quatro, Plotino passa a tratar da importância das belezas não corporais. As virtudes da justiça e da temperança aparecem mais elevadas na escala de beleza que as belezas corporais. Neste ponto, as virtudes são essenciais para a caracterização da figura do amante. No tratado Sobre as virtudes, a temperança e justiça aparecem primeiramente como virtudes cívicas, e elas “nos ordenam e nos tornam melhores, eliminam as falsas opiniões através do que é melhor” (I. 2 [19] 2, 12-15 No I. 6 [1], Plotino explica que através dessas virtudes, o humano consegue se ordenar e distinguir o que é verdadeiro de simulacros. Plotino descreve a temperança, a coragem e a magnanimidade como superação ao que é corpóreo. A temperança é a não associação aos prazeres corporais; a coragem é não temer a separação do corpo e da alma; magnanimidade é o desdém pelas coisas do mundo sensível (I.6 [1] 6, 5-10). Essas virtudes elevam a alma até as coisas superiores. Assim sendo, é preciso compreender que as virtudes que aparecem em I. 6 [1] são purificativas e sua tendência não é de ordenação como pressupõe as cívicas, e sim de afastamento e desligamento do que é corporal. Ao realizar essa separação, os humanos conseguirão ver com a perspectiva da alma: Devemos ver com o que a alma olha as belezas desse tipo e, vendo-as, nos regozijamos, sermos tomados por tremor e nos excitamos muito mais do que com as belezas de antes, já que agora tangemos as belezas verdadeiras (I. 6 [1] 4, 10 – 12). ,

O humano, através das virtudes purificativas, aprende a não temer a separação da alma com o composto. No Sobre o belo, a proposta é de primeiramente recusar as afecções, para então converter-se ao inteligível (BRANDÃO, 2015, p.5). Em se tratando de participação, as belezas corporais são menos perfeitas que as incorporais. Destarte, as belezas das virtudes, das boas ações aparecem mais próximas do inteligível que as belezas dos corpos (I. 6 [1] 4, 6). Plotino não especifica se as afecções 17 que as almas sentem ao encontrar as belezas se restringem às belezas incorporais. Por mais que na continuidade do capítulo quatro ele explique que diante dessas afecções, a alma do amante se excita, sobretudo, com as belezas invisíveis, as belezas dos corpos não deixam de ser um atrativo que experimentam todas as almas (I. 6 [1] 4 12-16). Deste modo, considerando que a alma do amante é a que maior reage às belezas invisíveis, como compreender a reação dessa figura diante essas belezas? 17

Assombro, doce tremor, desejo, amor e excitação com prazer (I. 6 [1] 4, 13)

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Vós, vendo-vos belos em vossos interiores, que experimentais? Como vos dionisais, e vos excitais, e desejais congregar-vos convoco, colhendo-vos de vossos corpos? (I. 6 [1] 5. 4-6).

O amante, ao ver o amado, se rememora, pois outrora já havia visto e compartilhado do belo. O estado de excitação ao contemplar o seu semelhante não significa descontrole e desordem. A felicidade e toda a efusão que a alma do amante sente ao encontrar o belo é a percepção da parte inteligível que lhe é igual. Os sentimentos ocasionados por essa segunda vinda repentina da beleza é a alegria de sentir a vida mais forte. Assim, essa constatação antecede o momento da conversão, e a alma já não quer uma atividade menor, e sim partir em busca de sua origem (LAURENT, 2011, p. 92). Plotino acredita que é preciso inquirir os amantes a respeito do que não está nas sensações, já que eles amam o inteligível. Os amantes experimentam algo na alma e, através dela, reconhecem o que é invisível, incolor, e a face bela das virtudes (I. 6 [1] 5, 10-11), porque apenas a parcela partícipe da beleza pode reconhecer o inteligível. Laurent (2002, p. 59) acredita que esse processo de rememoração da forma bela dentro de si só acontece através das purificações e, nesse ponto, onde as virtudes se mostram essenciais para a purificação do humano, a teoria de Plotino mistura a estética com a ética (2002, p. 59). Com isso, ao buscar compreender as belezas, o procedimento de purificação é necessário para que a alma envolvida com o corpo se desloque e consiga enxergar o que existe de real nas coisas belas. Plotino parece apontar que a negação da boa utilização das virtudes é uma das causas da perda da beleza. Assim, a alma estando há muito entrelaçada ao corpo, adicionada ao alheio, permanece impura (I.6 [1] 5, 37): Levada a qualquer parte por sua atração por aquilo que incide na sensação, tendo muito corpo misturado a si, entretida em demasia com o material e o abrigando em si, ela trocou sua forma por uma diferente através de sua fusão com o inferior: é como se alguém, imergido em lama ou sujeira, não mais revelasse a beleza que possuía e dele só se visse o que foi deslustrado pela lama ou sujeira (I. 6 [1] 5, 32-36).

O caminho que Plotino percorreu até o momento no tratado mostra que a purificação é problema central para compreender a diferença entre o belo e o feio. Para ele, a tarefa de todo humano é ser belo novamente e purificar-se para retornar à sua forma original. Com a purificação, Plotino não busca separar literalmente o corpo da alma, mas sim realizar um distanciamento do sensível e das falsas opiniões. Então, pode-se questionar: não se deve utilizar os sentidos? Os sentidos são essenciais para compreender o mundo e perceber 11

as imagens sensíveis. Porém, ele não deve julgar essas imagens sensíveis como verdadeiras. Plotino responderia que a alma deve evitar opiniões que pertencem a outrem. No contexto de I. 6 [1], essas opiniões só podem derivar do composto. As opiniões são carregadas de imagens da sensação, do juízo sobre elas, afecções sensíveis destinadas a servir o corpo (BRANDÃO, 2016, p. 15). Assim, através das virtudes purificativas, a alma distante do que é corporal é capaz de organizar o mundo sensível sem ser afetada por ele. Nesse sentido, para analisar a figura de Odisseu na passagem I. 6 [1] 8, é necessário compreender o papel purificativo que as virtudes exercem no herói. Livrando-se de tudo o que é impuro e alheio à alma, ela torna-se boa e bela. A relação entre a beleza e a bondade nesse ponto é “assemelhar-se a deus” 18 (I. 6 [1] 6, 17), pois este, como última instância, emana todo o bem e a beleza de si. Plotino no capítulo seis retorna à questão da participação: a alma só é bela pelo Intelecto, e as outras belezas sensíveis das ocupações e das ações, assim como as dos corpos, são consideradas belas, porque a alma as fez assim. A alma sendo divina e possuindo em si uma fração do belo, transforma todas as coisas em amáveis na proporção em que são capazes de participar da forma de beleza. Todavia, considerando que o feio é a distorção da forma, a purificação dessa alma se faz necessária. Sendo assim, a purificação se mostra como processo semelhante ao que o escultor realiza, de limpeza do que é alheio, supérfluo e exterior à alma. Recordando a questão da feiura em I. 6 [1] 5, a purificação tem o papel de retirar todo o acréscimo que a alma carregou consigo na relação com o material. Ademais, compreende-se que a beleza da alma é a manifestação de sua essência material e intelectiva, superior ao corpo e a todo material em que está interagindo. Consequentemente, é possível perceber que a alma não se torna bela por acréscimo, mas por supressão: é separando-a do que a torna feia que sua beleza pode aparecer: Como um escultor de uma estátua que deve tornar-se bela apara isso e corrige aquilo, pule aqui e limpa ali, até que exiba um belo semblante na estátua, assim apara também tu todo o supérfluo, alinha todo o tortuoso, limpa e faz reluzente todo o opaco e não cesses de moldar a estátua de ti mesmo (I, 6 [9] 6- 10).

Nos últimos três capítulos do tratado é exposta a metáfora da visão. Para Plotino, através das práticas de ascese, os humanos conseguem se atentar para o bem, o qual naturalmente toda alma deseja (I. 6 [1] 7, 2). Antes misturado com o corpóreo, o humano 18

Fórmula proferida no Teeteto, (homoíosis theôi) (176b)

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tinha as vistas embaçadas e não via com discernimento. Após a conversão, tudo o que é alheio ao Um será ignorado, pois o amante do belo sabe o quanto é bonita a sua origem. Ao vislumbrar a parcela inteligível que existe em si, o humano ama novamente e sente sua alma em euforia. Ela sabe que encontrou o que há de mais verdadeiro e passa a desprezar o que antes tratava como belo. É próprio de quem ainda não o viu almejar a ele como bem; mas próprio de quem o viu é maravilhar-se com sua beleza [...] É o mesmo que experimentam os que presenciam manifestações de deuses e daimones e não mais aprovam as belezas dos demais corpos (I. 6 [1] 7, 11-17)

A mudança do olhar que Plotino propõe é essencial para compreender a sensação das belezas nos corpos. O olhar deverá atentar-se ao que é simples e puro (I. 6 [1] 7, 7), pois na simplicidade é que a alma se aproxima do Intelecto. Assim, em meio ao composto, pelas virtudes, a alma se reencontra bela. Para Plotino, a busca pela simplicidade e pureza é o desejo de toda alma, é o “combate maior e mais extremo para as almas” (I. 6 [1] 7, 25). Já que através dela e nela, o caminho a ser percorrido é do exterior para o interior, e com isso a alma poderá se reencontrar no inteligível. “Como alguém contemplará uma beleza inconceptível?” (I. 6 [1] 8. 2). Como perceber o inteligível se ele está recluso e não se apresenta para que todos o vejam? É consabido que a alma precisa desprender-se do corpo, realizar métodos de purificação e converter-se, olhar para dentro de si e ver que lá reside a verdadeira beleza. Porém, Plotino nos diz que todo o trabalho da alma é para alcançar essas belezas (I. 6 [1] 7, 25) para termos uma verdadeira participação no que há de mais belo. Plotino acredita que após ter contato com as belezas sensíveis, deve-se abandoná-las para alçar o que há de mais belo. Durante o capítulo nono, Plotino apresenta a feiticeira Circe e a ninfa Calipso como belezas que Odisseu deixou para retornar à sua pátria querida. O que Circe e Calipso significam no contexto da obra? Seriam elas representantes das belezas as quais Odisseu deve afastar? Para responder essas questões, é preciso verificar rapidamente o significado dessas deusas, e depois de realizar essa investigação, poder-se-á verificar a real importância que Plotino confere às belezas sensíveis, já que para ele, Odisseu “não contente em permanecer, embora tivesse prazeres para os olhos e se unisse a muita beleza sensível” (I. 6 [1] 8, 17-18) parte em uma fuga. Distanciando das belezas de Circe e Calipso, a figura do herói foi interpretada de vários modos. No tratado I. 6 [1], as belezas sensíveis encontram importância em sua estreita

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relação com os humanos capazes de percorrer a via do belo. Nesse sentido, os próximos capítulos buscam analisar a figura de Odisseu em seu percurso de retorno à Ítaca.

Faces de Odisseu

No capitulo oitavo do tratado I. 6 [1] Sobre o belo, Plotino apresenta o mito de Odisseu. Como proposta de análise para essa passagem, o presente capítulo desta monografia tem por objetivo investigar duas possibilidades de interpretação: a primeira consiste em compreender Odisseu como figura da alma, que busca o retorno para sua origem, o Intelecto e o Um; a segunda perspectiva pretende analisar Odisseu como uma possível representação de um dos três tipos de humanos: o artista, o amante e o filósofo. Nesta concepção, Odisseu é a figura do amante em busca de seu amado. De todo modo, ao longo do tratado é possível conceber aspectos que embasam essas duas interpretações. Ao acolher as duas opções de leituras para o mito do herói marinheiro, pretende-se mostrar que nesse percurso, eventualmente, ambas as interpretações são possíveis e complementares. Para compreender a figura de Odisseu é preciso considerar que ele é um personagem que consegue fugir do conjunto de belezas sensíveis da feiticeira Circe ou da ninfa Calipso, para retornar a sua pátria querida (I. 6 [1] 8, 15-17). Mas afinal, no que consiste essa fuga? Por que o herói decide fugir das belezas sensíveis e não permanecer mesclado a elas, como a figura do anônimo? Para responder essas questões, é mister perceber que a fuga a qual o herói realiza não está caracterizada no sentido literal. Plotino salienta que essa passagem é um enigma e faz um convite para a descoberta. Então indaga: “Fujamos para a pátria querida”, alguém exortaria com maior verdade. Então, que fuga é essa? Como? Navegaremos como Odisseu, diz ele enigmando, penso eu-, que fugiu da feiticeira Circe ou de Calipso, não contente em permanecer, embora tivesse prazeres para os olhos e se unisse a muita beleza sensível (I. 6 [1] 8. 14-18)

Ao considerar essa passagem, em qual fuga se pode falar? Como interpretar a figura de Odisseu no contexto do tratado? Ao examinar o I. 6 [1], é evidente que o movimento ascensional é tema central nessa análise. Brandão (2015, p. 30) acredita que o movimento 14

ascensional é dividido em dois: o primeiro do sensível ao Intelecto; o segundo do Intelecto ao Um. A primeira parte da subida é descrita, sobretudo, no Sobre o belo e Sobre a dialética. Nesse sentido, a análise das figuras de Odisseu irá considerar a ascensão da alma e do amante pelo caminho do belo. Ao compreender que Plotino, com a expressão “Fujamos para a pátria querida”19, está de algum modo enigmando, como podemos investigar o personagem de Odisseu? Primeiramente, será examinada a figura de Odisseu como face da alma.

Odisseu como face da alma

Durante o tratado Sobre o belo, Plotino dispõe de lugar primordial para a alma e a sua relação com as belezas sensíveis. Ao indagar “e todas as coisas que derivam da alma, como são todas elas belas? São belas por uma e mesma beleza, ou a beleza no corpo é diferente da que há em outra coisa?” (I. 6 [1] 1, 8-10), Plotino indica que as belezas que existem nos corpos e a alma possuem uma ligação, e que, de algum modo, essas belezas não derivam do composto. A alma é caracterizada como uma e múltipla (ou seja, consistindo na hipóstase Alma, mas também na Alma do mundo e nas almas individuais). Deste modo, a Alma é dividida em dois níveis: o intelectivo, que constitui a alma superior, voltada para a contemplação do intelecto e transcendente; e o nível sensitivo-vegetativo, nomeada como a alma inferior, que é imanente, ligada e mesclada ao corpo (BARACAT, 2006, p. 102). É importante salientar que mesmo a Alma sendo múltipla, ela é também um ser inteligível que, no entanto, está na fronteira do imaterial e é causa do mundo sensível, que dela procede. Deste modo, a alma inferior procede da superior, não para criar uma nova hipóstase, mas para formar um nível inferior dentro da mesma hipóstase. A alma superior e a inferior quando estão juntas são como as duas faces da mesma moeda. Só que nessa relação, a alma superior está em contato com o Intelecto, e a inferior com o mundo sensível. A alma inferior, por mais que esteja mesclada ao composto, quer voltar à sua origem e, como participa do inteligível, quer contemplar o que existe de mais belo, então se volta para a 19

Essa expressão é proclamada na Ilíada de Homero (2.140) por Agamêmnon quando ele incita os outros homens em meio a assembleia para abandonarem a guerra e partir rumo a suas casas, para encontrar suas mulheres e filhos. Curiosamente, Odisseu está presente nessa assembleia e recebe o papel dos deuses de repreender Agamêmnon para que ele e os companheiros continuem a guerra.

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alma superior20. Para Bréhier (1953, p.18), o mundo inteligível é justamente essa face interna das coisas, o conhecimento parece ser, ao invés de uma abstração, uma espécie de aprofundamento em si. Isto posto, a alma em contato com as belezas sensíveis, busca compreendê-las e seguir adiante. Ou seja, ao captar que essas belezas não lhe satisfazem, por não se assemelharem por completo, a alma deve abandoná-las. Mas como a alma faz essa distinção do que é sensível e do que é superior? A concepção do que é o mundo sensível se apresenta para a alma de tal modo que permite esse aprofundamento no material, buscando perceber o imaterial e congênere. O reconhecimento que a alma faz é o passo direto ao inteligível, já que o sensível não é desprovido de beleza. A potência da alma disposta a acolher esta beleza a reconhece, pois a nenhuma além desta é dado julgar o que lhe concerne propriamente, ainda que o resto da alma participe deste julgamento. Aliás, talvez o resto da alma se pronuncie também se ajustando à coisa bela e à forma que a acompanha, utilizando-a para seu julgamento como um cânone serve para o que é direito (I. 6 [1], 3, 1-5).

Plotino acredita que o pensamento discursivo (dianóia) é um nível próprio da alma, intermediário entre o Intelecto e o mundo sensível. Segundo Bréhier (1953, p. 107) o pensamento discursivo possui três funções principais: em primeiro lugar, compõe e divide, partindo de imagens geradas pela sensação; em segundo, ajusta os dados da sensação e recebe as ideias inteligíveis; em terceiro, busca a correspondência entre as imagens atuais e recentes com as passadas e decide reconhecer. Em outras palavras, para Plotino, as belezas nos corpos sensíveis mostram-se no primeiro vislumbre, são perceptíveis, e a alma, como se compreendesse o que existe através desses corpos, o resquício de inteligível, a ele se ajusta (I. 6 [1] 2. 2-4). Entretanto, será que as belezas sensíveis são realmente necessárias e oferecem um possível caminho para a alma? Considerando que os corpos belos são sedutores e enganadores, Quiles (1981, p.54) descreve as belezas sensíveis como desprezíveis. Para ele, essas belezas são apenas um brilho perto da beleza inteligível e, justamente por elas serem sombras, precisam ser ignoradas. Porém, como é possível para a alma rememorar sem encontrar mesmo que seja uma parcela de seu semelhante? Para isso, o mais viável parece ser continuar com a compreensão de que as belezas sensíveis são um possível caminho para a 20

Marinho (1998), no artigo Considerações sobre o belo em Plotino, descreve que, para alcançar as realidades inteligíveis, é preciso partir rumo ao caminho de interiorização. Em explicação, ela indica que Plotino propõe dois tipos de ações: as ações necessárias e as ações livres. A primeira dirige a atenção para as coisas exteriores e, quando isso acontece, alcançamos uma imitação da imagem da realidade. Já as ações livres dirigem a atenção para o interior, não tendo outro objeto se não o da contemplação.

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recordação: “no caso das belezas sensíveis, não era possível àqueles que não as tivessem visto nem percebido como belas pronunciarem-se a seu respeito” (I. 6 [1] 4, 3-5). Sobre essa questão, Cochez (1914, p. 165) argumenta que a alma participa da natureza inteligível e ela tem a aptidão para reconhecer a beleza nos corpos. A razão funciona como norteador dessa alma para que não se incline diante essas belezas, pois a alma necessita não da matéria, mas da compreensão de que a beleza existe nela mesma. Armstrong (1962) comenta que o tratado I. 6 [1] torna-se essencial no sentido em que através da figura de Odisseu é mostrado o drama do herói ao encontrar as belezas corporais presentes nas ninfas Circe e Calipso, e percebe que elas não passam de sombras da verdadeira beleza. Em seu íntimo, Odisseu sabe que deve retornar à pátria. Nesse contexto, Odisseu aparece simbolizando a figura da alma, que decide ir além do mundo sensível e procurar a sua origem. O herói, mesmo unido a muito prazer sensível, de algum modo, não se satisfaz mais com as belezas das ninfas e deseja retornar a seu lar (I. 6 [1] 8, 17-18). Admitindo que ao humano é possível conhecer algo inteligível através da alma, podese compreender que a alma faz a analogia entre as impressões sensíveis do belo e o belo que possui em si. Oliveira (2015) examina como o mito de Odisseu aparece simbolizando a ascensão da alma rumo ao Intelecto e o Um21. Laurent (2011, p. 63), não nomeia Odisseu como a figura da alma, todavia, ele acredita que a passagem I. 6 [1] 8, 14 descreve a viagem da alma para o divino e nos convida a praticar a filosofia de ter o uso da plenitude da beleza. Para ele, somente o filósofo pode, agora, conhecer a alegria de contemplar a beleza em si. Essa concepção de Laurent pode levar a caminhos diferentes ao pretendido nessa investigação, pois adiante será visto como a figura de Odisseu se assemelha ao amante capaz de contemplar o belo. Ao compreender Odisseu como figura da alma, não obstante, é preciso descobrir qual o caminho que a alma percorre até o inteligível. Odisseu foge das ninfas Circe e Calipso (I. 6 [1] 8, 16). Entretanto, no que consiste essa fuga? Ela aparece como o processo de introversão, dividida em duas partes: a primeira do sensível, representada pela figura das ninfas Circe e Calipso; a segunda do inteligível, figurada como a pátria querida, simbolizando o pai. Para Oliveira, o pai representa o Intelecto ao aludir a uma posição hierárquica estabelecida por Plotino em relação ao filho (OLIVEIRA, s/d, p.11). Além disso, essa fuga é do exterior para o interior, a alma não deve buscar em outros corpos a verdadeira beleza. Os corpos sensíveis servem para que o processo de rememoração aconteça, e a partir disso, a alma volte para si 21

Cf. Baracat (2007); O’Meara (1995); Igal (2006).

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mesma e perceba que não precisa procurar a beleza em outros corpos, se ela mesma já a possui. Sabiamente, Plotino indica “recolhe-te em ti mesmo e vê” (I. 6 [1] 9, 5), pois o caminho a ser percorrido não é físico, não se trata de “preparar uma carruagem de cavalos ou uma embarcação, porém deves te afastar de tudo isso e não olhar” (I. 6 [1] 8, 25), não contemplar as belezas sensíveis, o composto, mas sim o que existe de mais belo em sua própria alma, pois certamente é o inteligível. Admitindo que o caminho é feito através da introversão e interiorização e que Odisseu como símbolo da alma realiza esse procedimento, nessa trajetória, Odisseu, ao simbolizar a alma, abandona as ninfas para buscar a sua verdadeira identidade, pois percebe que seu congênere está além. “É uma busca de si, e a fuga é uma metáfora do percurso interior da alma, que se distancia do sensível, para viver a vida do inteligível” (OLIVEIRA, s/d, p.11). Esse caminho do herói até Ítaca, seu oikos22, aparece como o primeiro passo para o processo de introversão, a mudança do olhar. Ao purificar-se, a alma consegue perceber que as belezas dos corpos e do mundo não passam de imagens e sombras da verdadeira beleza. Além disso, ao fugir das belezas sensíveis, a alma não contempla mais a beleza nos corpos, e sim o belo inteligível. Deste modo, a fuga a qual Plotino se refere no tratado é do mundo sensível. Não que este mundo não tenha também a sua beleza, o seu valor, pelo contrário, como manifestação do mundo inteligível, ele conduz a verdadeira compreensão e dimensão das coisas belas (REEGEN, 2007, p. 25)23. Plotino, ao falar das belezas sensíveis, também salienta que devemos fugir do mundo ao passo que este significa lugar de sedução, que tem o poder de retirar o humano de seu verdadeiro caminho e é capaz de dominá-lo de tal forma que este se esquece de sua pátria querida. O destino da alma humana é ela mesma representada pelas errâncias de Odisseu em busca do retorno para sua pátria. Assim, evitamos a sorte de Narciso, cuja contemplação do próprio reflexo o arrastou para o fundo das águas assimiladas ao Hades (BRISSON, 2014, p. 101).

Quando se trata de esquecimento, a figura de Odisseu relembra o seu caminho através das belezas sensíveis por compreender que essas não são as mesmas que outrora a alma 22

O termo pátria (patrís) se mostra central na análise da passagem. Ao partir da concepção de que a pátria está conectada ao campo da afetividade e da coletividade, é perceptível que as atividades do oikos e da pólis eram o que caracterizava o herói grego. Ora, a identidade de Odisseu está intimamente ligada a suas ações durante o período da guerra de Tróia, e a consagração desse feito aconteceria em seu retorno ao lar. Ainda durante o período em que conviveu com as ninfas, Odisseu permaneceu sem identidade, perdido entre as belezas sensíveis. 23A interpretação de Reegen é contra a ideia de Quiles, a qual foi aludida anteriormente. Essa interpretação de que as belezas sensíveis possuem importância na filosofia plotiniana pode ser conferida em outros tratados, como V, 8 [31].

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observou no Intelecto. Plotino salienta que nem todo mundo conseguirá compreender a beleza inteligível nos corpos, pois o reconhecimento do inteligível acontece através da alma. O que ocorre quando essa alma é impura? Algumas são apegadas aos prazeres do corpo e não conseguem perceber o inteligível diante de si. Nesse contexto, Odisseu aparece em oposição à figura do anônimo24, que deseja as belezas corpóreas e as persegue. Pois se alguém as persegue, desejando apanhá-las como algo verdadeiro, acontecerá com ele o mesmo que com aquele que quis apanhar sua bela imagem corrente sobre a água – como me parece enigmar um certo mito por aí – e sumiu abismando-se nas profundezas do rio (I. 6 [1] 8. 7-10).

Ao realizar a comparação de Odisseu com a figura do anônimo, é possível analisar dois aspectos: o primeiro, a incompreensão das formas; o segundo, a perda da identidade. Aparentemente, o personagem anônimo não consegue perceber a diferença entre sua imagem refletida e a forma da verdadeira beleza. Para Oliveira (2013, p. 317), o personagem do anônimo não busca voltar para si mesmo e entender que o caminho para o inteligível é de interiorização. Ele está preso em sua própria imagem e acredita que esse é o belo inteligível. Ao permanecer com as belezas sensíveis, o anônimo não consegue voltar à sua origem e permanece perdido no Hades. Como Brisson (2002, p.113) salienta, é mister abdicar das coisas mundanas para assumir o estado inicial da alma. Todavia, a conversão ocorre ainda em vida, e é preciso aprender a suportar a vida cotidiana e a purificá-la para buscar o que é semelhante a si. Mas será que a ignorância do personagem ocorre por ter a visão comprometida? O anônimo parece não se desvencilhar da visão do mundo sensível e não compreende que precisa modificar esse modo de ver. Pois, para Plotino, desgraçado não é aquele que alcançou as belezas sensíveis, mas o que as viu e não percebeu que delas deveria abdicar (I. 6 [1] 7, 27-32). O olhar interior não acontece com o corpo, mas com a alma, pois é inerente desta reconhecer o seu semelhante. Como alguém contemplará uma “beleza inconceptível” que, por assim dizer, guarda-se no íntimo dos sacros áditos e não se adianta afora para que mesmo um profano a veja? Avance e adentre quem é capaz, deixando do lado de fora a visão dos olhos e sem mais voltar-se para as antigas fulgências dos corpos (I. 6 [1] 8, 1-5).

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A figura do anônimo é por vezes identificada como a figura de Narciso. Para saber mais sobre essa abordagem, Cf. Hadot (n. 13, 1976), Le mythe de Narcise et son interpretation par Plotin, Nouvelle Revue de Psychanalyse. Oliveira (2013), em Plotino escultor de mitos, dedica um capítulo para expor a questão da figura sem nome. Para ela, a figura sem nome a qual Plotino se refere será mantida em anonimato, por compreender que ao nomeá-lo, ignoram-se aspectos filosóficos importantes para essa análise. Desta forma, esse estudo compartilha da visão de Oliveira.

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Com a visão embaraçada pelas afecções do corpo, Plotino nos diz que nem todas as pessoas conseguem perceber que as belezas sensíveis são sombras fugidias. O caminho ascensional da beleza reserva para aquele que não permanece satisfeito com o sensível, a capacidade de desvencilhar-se dos prazeres corpóreos e chegar até ao pai. Brisson (2002, p. 49) comenta que é preciso olhar e admirar as coisas belas do mundo sensível, pois através dessa admiração, pode-se questionar de onde elas vieram, voltando o olhar para o transcendente, o belo inteligível. Para isso é preciso trocar a visão do olhar por uma visão do espírito, e realizar um grande esforço mental para perfurar o invólucro das coisas e encontrar a forma invisível aos olhos do corpo, mas significativo para a alma. Pépin (1955, p. 16) comenta a passagem do anônimo e Odisseu, explicando que um corre para as belezas corporais, esquecendo que estas não passam de reflexos ilusórios de uma beleza superior, o outro foge dessas belezas por lembrar que a beleza superior está em sua pátria, longe das belezas sensíveis. Plotino continua sua explicação acerca da figura que não reconhece o inteligível e salienta que o anônimo persegue as imagens e se aprisiona nas profundezas do rio: do mesmo modo, aquele que se apega à beleza dos corpos e não a abandona se abisma, não com o corpo, mas com a alma, nas profundezas tenebrosas e funestas para o intelecto, onde permanecendo cego no Hades, conviverá com sobras por toda parte (I. 6 [1] 8, 10-14).

A figura do Hades em Plotino, como salienta Oliveira (2013, p.317), parece remeter a passagens que acentuam o destino das almas impuras, como a do anônimo. Nesse raciocínio, em oposição ao anônimo, Odisseu aparece como a alma já acostumada a ver as belas coisas do mundo sensível, e que encontra para além delas, a beleza inteligível. Ao fugir das belezas externas, Odisseu modifica seu modo de olhar e deseja seu lar, do mesmo modo que a alma anseia pela sua origem.

Odisseu, o amante do belo.

Como segunda proposta de interpretação para o personagem de Odisseu em I. 6 [1] 8, o herói será apresentado como o amante do belo. Para isso, como fruto dessa relação entre

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beleza e amor, compreende-se que no tratado Sobre o belo o papel do amante seja de suma importância para a sequência da pesquisa. Plotino compreende que as belezas nos corpos são fugidias, “Corpos com efeito, se mostram ora belos, ora não belos, pois uma coisa é serem corpos, outra serem belos” (I. 6 [1] 1. 13-14). Alguns humanos conseguem perceber, nos corpos, um caminho possível para a ascensão. Mas quem são esses humanos capazes de buscar o Intelecto e Um? Como isso ocorre na filosofia de Plotino? Plotino afirma sobre três homens no tratado I. 1 [53], porém, ao falar sobre a busca pela elevação, no tratado I. 3 [20], ele descreve sobre os humanos capazes de realizar o caminho de ascensão: Mas quem deve ser aquele que será elevado? Será aquele que viu todas as coisas ou, como diz ele, “a maioria delas”, e que “no primeiro nascimento entrou no gérmen do homem que iria ser filósofo, músico ou amante? (I. 3 [20] 1, 4-7).

Plotino continua distinguindo esses homens capazes de elevarem-se, dizendo quem eles são por natureza. Primeiramente, ao definir a figura do filósofo, Plotino diz que por natureza o filósofo não necessita desprender-se de todo o corporal que existe nele, pois este já está a um passo adiante. Esse tipo de humano ao contrário dos demais conhece e exercita a dialética e, por isso, há muito participa do inteligível. Permanecendo a um degrau acima dos demais humanos, o filósofo só precisa de um percurso estabelecido para “guiá-lo e libertá-lo, ele que por natureza já é de grande data liberto” (I. 3 [20] 3, 3-4). Aprofundando-se nos estudos da matemática, o aperfeiçoamento das virtudes e logo após, nos ensinamentos da dialética, esse humano conseguirá compreender por completo o inteligível. O segundo tipo de humano é o músico ou o artista. Para Plotino, esse humano se move e deseja o belo, que ao se deparar com as belezas dos sons, esse humano prontamente responde a eles, buscando sempre a harmonia dos ritmos. Este deve fugir sempre do dissonante e, como salienta Plotino, deixar as belezas nesses ruídos, ritmos e formatos sensíveis, para compreender que se excitava com a harmonia inteligível e a beleza universal. Em I. 6 [1] 1. 1- 6, Plotino entrelaça a música com a beleza, exaltando que o belo está presente em tudo, sobretudo, na audição e nas músicas de todos os tipos, já que, para serem belas, partilham de uma harmonia em comum. O terceiro tipo de humano que Plotino cita em I. 3 [1] 1, é o amante. Esse humano é memorioso do arquétipo da beleza. Porém, por estar a muito afastado, ele necessita entrar em contato com as belezas sensíveis, principalmente dos corpos para com elas vislumbrar o belo 21

novamente. É preciso então lembrar a esse humano que existem outras belezas distintas das corporais e que o belo é intenso em atividades “como as belas ocupações e as belas leis” (I. 3 [20] 2, 8). Plotino argumenta que as belezas das ocupações são um passo para que o amante se veja habituado às belezas invisíveis. Essas belezas invisíveis estão, sobretudo, nas virtudes, pois elas garantem que o amante percorra o caminho de ascensão. Ele, através das sensações, eleva-se ao que é superior por meio das “belas ocupações, ações, hábitos, conhecimentos e ainda a beleza das virtudes” (I. 6 [1] 1, 3-5). O movimento de ascensão busca suprir a vontade de toda alma, que é retornar ao Um. Para percorrer esse caminho, Plotino relembra que existem dois percursos para todos os humanos: Há dois caminhos para todos, seja para os que se elevam, seja para os que já estão lá em cima: o primeiro parte das coisas de baixo; o segundo é para aqueles que, tendo já alcançado o inteligível e lá colocado como que sua marca, devem peregrinar até chegar à extremidade desse domínio, que é “o fim da jornada”, quando se atinge o cimo do inteligível (I. 3, 1, 13-15).

Para Brandão (2015, p. 38), os tratados I. 3 [20] e I. 6 [1] relatam basicamente a primeira etapa da jornada, que parte do mundo sensível. Nesse sentido, ao compreender que o tratado I. 6 [1] exprime, especialmente, as belezas sensíveis dos corpos e dos sons (I. 6 [1] 1, 3-8), os humanos capazes de entender o inteligível através dessas belezas são: o músico e o amante. Sobre o papel das belezas em Plotino, Reis (2007, p. 15) argumenta que a beleza está no centro de suas especulações éticas, dado que as belezas naturalmente possibilitam ao humano galgar os degraus da ascese. Na medida em que há supremacia do belo, que se manifesta nas artes e no rosto do amado, o músico e o amante têm facilidade em percorrer essa via. De Keyser (1955, p.71) comenta sobre a relação do tratado I. 6 [1] com a figura do artista, salientando a importância da música e das obras de arte para o caminho ascensional de quem parte das belezas sensíveis. Entretanto, sobre o caminho a ser percorrido pelos três humanos, Krakowski (1929, p. 125) acredita que a via percorrida por eles não seja definida. Para ele, estamos diante de três caminhos diferentes: o músico tendo por objeto a harmonia, o enamorado buscando a beleza e o filósofo, a verdade. Por sua vez, Oliveira (2005, p. 265), percebe que: Seria possível ler o tratado I, 3 entendendo que o músico converte-se em amante e esse em filósofo; por extensão, é possível que um homem inicialmente emocionado pelas harmonias sensíveis torne-se amante do belo, e, por fim, amante da própria sabedoria. 22

Essa interpretação encontra confirmação em I, 3 [20] 2, 1-2, onde Plotino fala que o músico pode se transformar em amante, e tanto o músico quanto o amante podem se transformar em filósofos para empreender o restante da jornada25. Para os que partem do sensível, principalmente o amante, é preciso buscar atingir o belo inteligível através dos corpos sensíveis. Para isso, nesse percurso se inclui o processo de reminiscência (anámnesis) e da percepção (aísthesis) (FERREIRA, 2010, p.62). Assim, é preciso analisar a figura do amante separadamente dos outros tipos de humanos. Portanto, como o amante consegue realizar a ascensão no tratado I. 6 [1]? O amante consegue se orientar pelo caminho da beleza? Fixando o olhar sobre I. 6 [1] é concebível compreender nuances acerca da ascensão desse humano, principalmente, a sua relação com as belezas sensíveis. No primeiro capítulo, Plotino indica que aqueles que se elevam das sensações, devem buscar práticas que ordenam sua alma (I. 6 [1] 1. 4 - 5). Essas ações estão classificadas como virtudes, que servem como escada para alcançar a verdadeira beleza. Em I. 6 [1] 4, Plotino salienta a importância de perceber as coisas sensíveis, apreender a beleza nos corpos e as belas ocupações para então abandoná-las e seguir em busca de seus arquétipos. Para Plotino, todos são estimulados frente às virtudes, sentindo afecções ao ver as belezas e “quando se trata das corpóreas, todos veem, embora não sejam igualmente aguilhoados: mas os que mais o são, são os chamados amantes” (I. 6 [1] 4, 16-18). Deste modo, como os amantes são os mais atingidos por essas belezas, é preciso questionar sobre o que está além das sensações: Que sentis, ante às chamadas belas ocupações, aos belos modos, aos comportamentos temperantes e, de modo geral, às ações da virtude, às disposições e à beleza das almas? Vós, vendo-vos belos em vossos interiores, que experimentais? Como vos dionisais, e vos excitais, e desejais congregar-vos convosco, colhendo-vos de vossos corpos? Pois é isso que sentem os verdadeiros amantes! (I. 6 [1] 5. 1 – 7).

Essas afecções que os amantes sentem se comparam ao momento do reencontro com o congênere. A reminiscência é um elemento fundamental, pois, conforme Plotino, aqueles que não recorrem a esse processo tomam as belezas sensíveis como a verdadeira beleza (FERREIRA, 2010, p. 62).

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A discussão acerca dos papéis fixos dos três tipos de humanos não será detalhado ao longo desse trabalho, por necessitar de análise específica sobre o tema.

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Plotino parece continuar insistindo na questão da reminiscência, já que ao encontrar o seu amado, o amante passa a “rir-se dos outros amores e o desprezar o que outrora estimava belo” (I. 6 [1] 7. 15). Ao passar por realezas e grandes conquistas, o sábio compreende que nada disso tem valor, que a verdadeira beleza está dentro de si. No tratado I. 6 [1] são citadas duas figuras humanas ligadas às belezas sensíveis. Uma, a figura do anônimo (I. 6 [1] 8. 6-8) e a outra, de Odisseu (I. 6 [1] 8. 15). Ferreira (2010, p. 63) salienta que em Plotino é possível encontrar dois amores. Um na esfera do corpo e do sensível, ou seja, a beleza corpórea, e por isso, separado do inteligível, e outro voltado para o alto e que percebe a beleza sensível como imagem da beleza inteligível. Seriam as figuras de Odisseu e anônimo ambas expressões de amantes? O anônimo, como já foi analisado em páginas anteriores, permanece preso nas belezas sensíveis, amando e admirando seu próprio reflexo, não consegue questionar se eles são ou não verdadeiros (I. 6 [1] 8. 10). Para essa figura, o que é corpóreo é verdadeiro e seu corpo acostumado com a mescla não consegue se livrar do que é impuro. Para Plotino, a alma, quando é levada pela sensação, possuindo muito “corpo misturada a si, entretida em demasia com o material e o abrigando em si, ela trocou a forma por uma diferente através de uma fusão com o inferior” (I. 6 [1] 5, 32-34). Com a alma impura, o anônimo não consegue, ao perceber o mundo, diferenciar o que é sensível e inteligível, contemplando o que lhe é semelhante, nesse caso, o sensível. Em Plotino é possível caracterizar essa figura como frágil, pois não possui vida, nem percepções puras, ele é arrastado ao que é inferior e exterior (I. 6 [1] 5. 28-29). O anônimo seria a figura que “imergindo em lama ou sujeira, não mais revelasse a beleza que possuía e dele só se visse o que foi deslustrado pela lama ou sujeira” (I. 6 [1] 5, 36-37). Narbonne (2015. p. 2) salienta que a alma diante do feio não consegue utilizar as faculdades da visão como que se o que foi colocado à sua frente refletisse o nada, o vazio, um abismo desprovido de qualquer traço do inteligível. A tarefa para o amante é ser belo novamente, pois, para Plotino, para alcançar a beleza suprema é preciso distanciar-se do que é alheio, livrar-se da mescla e não olhar mais para os outros corpos, mas para dentro de si e perceber que só a beleza inteligível é a que “lavra belo seus amantes e os tornam amáveis” (I. 6 [1] 7, 24). Diferentemente do anônimo, Odisseu aparece como alguém que supera as belezas sensíveis. Será o herói de Homero, a figura do amante que se lança ao inteligível? Odisseu foge da figura das ninfas, “não contente em permanecer, embora tivesse prazeres para os 24

olhos e se unisse a muita beleza sensível” (I. 6 [1] 8, 16-18). O amante precisa aprender a não se contentar com a beleza sensível dos corpos para chegar ao que é idêntico em todos eles e que é diferente dos mesmos; dado esse passo, ele pode lançar-se para o alto, isto é, para o Intelecto (FERREIRA, 2010, p. 63). Olhando a beleza dos corpos, como salienta Krakowski (1955, p. 115), com a visão do belo, a alma pode purificar-se na medida em que se separa do corpo. Dessa maneira, torna-se bela e se eleva para contemplar o que há de maior, o princípio da beleza. Odisseu parece ser o amante que está voltado para o alto, preocupado em seguir o caminho de retorno para sua pátria amada. Mas antes disso, para simbolizar esse amante memorioso de seu arquétipo, ele precisaria passar pela separação do que lhe é alheio, purificando-se para não cometer o mesmo erro que o anônimo cometeu. Pois, o amante consegue, através de impressões sensíveis, fazer com que a alma reconheça a forma inteligível mesmo quando essa forma está representada através de uma imagem sensível. Krakowski (1929, p. 116) diz que, pela reminiscência do que é belo, o amante consegue elevar-se ao descobrir o que lhe é congênere. Como figura do amante, Odisseu percebe que as belezas dos corpos de Circe e Calipso e todas as belezas sensíveis que estão impregnadas a elas não são suficientemente belas. Essas belezas o auxiliam, assim como as ninfas ajudam Odisseu no seu retorno para Ítaca. Porém, as belas ninfas nunca comoveram o coração do herói26, já que a beleza que realmente acalma o amante é a beleza inteligível. Ao representar a figura apaixonada pela beleza, Odisseu, em contato com as ninfas Circe e Calipso, foge. O herói compreende que essas personagens de beleza sublime têm em si resquícios da verdadeira forma do belo. Para o humano, não é preciso perseguir belezas sensíveis, mas apreendê-las como imagens, traços e sombras de algo ao qual se deseja alcançar (I. 6 [1] 8. 1-25), já que o desejo de união dos amantes daqui de baixo é uma imagem do desejo de união com o Um. Plotino, ao citar o distanciamento de Odisseu das ninfas, estaria negando as afecções que essas belezas sensíveis causam ao herói? Mesmo convivendo com belezas sensíveis e a elas unindo-se como amante (Od, 5. 135-138), o herói precisa passar por elas para que perceba que a verdadeira beleza não está no corporal. É preciso ensinar-lhe que não deve excitar-se caindo sobre um só corpo, mas dirigir-se a todos os corpos com a razão, pois eles mostram que a beleza é a mesma em todos eles, e se deve dizer-lhe que ela é diferente dos corpos, que têm origem distinta e que está com mais intensidade noutras coisas, como 26

Cf. Od. 7.255

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mostram as belas ocupações e as belas leis – pois isso já é uma habituação de seu amor às coisas incorporais -, e ainda que ela está nas artes, nas ciências e nas virtudes (I. 3 [20] 2. 5-11).

Aos amantes, como se vê em I. 3 [20] 2, 8, deve ser ensinado que diante às belezas dos corpos não se deve amá-las como se amam as belezas incorpóreas, mais próximas das inteligíveis. Desta maneira, estando eles atraídos pela beleza dos corpos, já que o amante tem uma memória da beleza ideal, é preciso torná-los cônscios de que o que atrai a si no amado é a beleza transcendente, e a beleza presente no corpo do amado é apenas um reflexo (HADOT, 2002, p. 84). Para que isso aconteça, ele deve aprender a purificar-se através das virtudes, a praticar boas ações. Entretanto, a decisão de ser virtuoso cabe ao amante, porque apenas ele pode decidir se quer elevar-se ou permanecer estagnado (I. 6 [1] 8, 22-23). Ou seja, depende dele, seguir rumo ao inteligível ou permanecer amando as belezas corpóreas. Estando puro, o amante poderia encontrar o seu amado. Se, pois, alguém o visse, que amores sentiria! E que desejos, querendo confundir-se com ele! E como tremeria prazerosamente! É próprio de quem ainda não o viu almejar a ele como bem; mas próprio de quem o viu é o maravilhar-se com sua beleza, o encher-se de um assombro prazeroso, o abalar-se inofensivamente, o ama o com verdadeiro amor e agudos desejos (I. 6 [1] 7.10-12)

Através da sensação, o amante compreende o mundo exterior como belo. Por meio dos objetos sensíveis, ele se rememora da forma da verdadeira beleza e olha para si. As sensações apreendidas pelos amantes não ficam mais no campo sensível, são analisadas pelo pensamento discursivo e comparadas com os arquétipos. Esses enamorados “não mais aprovam as belezas dos demais corpos” (I. 6 [1] 7, 17), pois percebem que essas belezas não são da carne, nem de coisas mundanas, mas estão dentro deles e permanecem puras. Buscando a união com o amado, Odisseu, figura do amante, resolve voltar para Ítaca, pois lá é possível contemplar a origem. Dessa forma, Odisseu, como figura do amante, consegue passar pelas belezas sensíveis sem apegar-se a elas. O que a figura de Odisseu, como alma, e Odisseu o humano enamorado têm em comum? Será que é possível pensar uma só figura partindo dessas duas concepções? No terceiro capítulo dessa pesquisa, será abordada uma possível conciliação dessas duas interpretações, e como a ninfa Calipso, com sua beleza sensível, auxilia a alma do amante no caminho para sua pátria.

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A dupla face de Odisseu

Até o momento, a pesquisa mostrou como Odisseu se apresenta como a figura da alma e como a figura do amante. Ambas as abordagens buscaram salientar a ascensão pela via do belo. No início do estudo, foi dito que essas duas leituras além de possíveis, dialogavam entre si. Deste modo, esse capítulo tem como objetivo mostrar como essas duas faces de Odisseu são complementares. Primeiramente, Odisseu enquanto figura da alma demonstra a estreita relação entre a beleza e a alma, já que todas as coisas que derivam dela são belas (I. 6 [1] 1, 9). Além disso, a alma, mesmo que esteja misturada ao composto, busca retornar para sua origem. Assim, a alma inferior busca contemplar a alma superior. Em busca do reconhecimento do que lhe é congênere, ela julga o que é alheio e se afasta. Já ao que lhe é semelhante, ela se ajusta através do julgamento do pensamento discursivo (I. 6 [1] 3, 1-4). O herói, ao se deparar com as ninfas, que simbolizam em Plotino as belezas sensíveis, deve permanecer unido a elas para então, através da beleza de seus corpos, conseguir perceber que a verdadeira beleza está dentro de si. Odisseu, como figura da alma, simboliza o percurso de ascensão, que, nesse sentido, remete ao processo de rememoração e introversão, pois a beleza verdadeira está dentro de si (I. 6 [1] 9, 5). A segunda interpretação da figura de Odisseu leva em consideração a sua situação enquanto humano que busca o retorno. Para isso, em I. 3 [20] 1, 13-15, Plotino coloca o amante como um dos humanos capazes de atingir o inteligível. Em I. 6 [1] 5, 1 Plotino diz que devemos inquirir aos amantes sobre as coisas belas, pois, dentre os humanos, eles são os que mais interagem com os corpos sensíveis. Ademais, essa figura está acostumada com as belezas das virtudes, das belas ocupações e das belas leis (I. 3 [20] 2, 8; I. 6 [1] 1, 5). Na busca por Ítaca, sua pátria querida, Odisseu, enquanto personagem que ama, precisa através das belezas sensíveis, recordar do arquétipo do belo. Todavia, para compreender que seu verdadeiro amado não está no mundo exterior, ele precisa não aprovar mais a beleza nos corpos (I. 6 [1] 7, 17). O papel do amante é purificar-se e se ver puro. É possível aos humanos compreender as sensações através da visão da beleza sensível? Não seria a alma quem atua como um cânon de correção e reconhece o que é semelhante? Assim, é possível falar em alma do amante?

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A alma do amante Em I. 3 [20] 2, 8-10, Plotino salienta que é preciso lembrar aos amantes que não devem atentar para um só corpo, pois ele estaria limitando a beleza em objetos corporais. Assim, ele precisa admirar as coisas corporais sem se apegar a elas: Dirigir-se a todos os corpos com a razão, pois eles mostram que a beleza é a mesma em todos eles, e se deve dirigir-lhe que ela é diferente dos corpos, que tem origem distinta e que está com mais intensidade noutras coisas, como mostram as belas ocupações e as belas leis. (I. 3 [20] 2, 8-10)

Como é sabido, o amante é o humano que de algum modo é memorioso da beleza (I. 3 [20] 2, 2). Através disso, é possível compreender como Odisseu foge das ninfas Circe e Calipso (I. 6 [1] 8, 16) ao perceber que essas eram apenas corpos que indicavam uma beleza superior. Odisseu, no período em que esteve com essas ninfas, as desejou, mas não desejava apenas seus corpos, e sim o que eles simbolizavam para ele. As ninfas, enquanto belezas sensíveis (I. 6 [1] 8, 18), indicam ao herói o caminho que ele deve percorrer: o de interiorização. Moraes (2007, p. 3) acredita que Odisseu simboliza todos os humanos que sabem por em prática a abstração das coisas do mundo sensível, e simboliza os que não se deixam fascinar pela beleza aparente das ninfas, mas querem retornar à própria casa, à origem, que é fonte de toda beleza e realidade. Contudo, como o amante percebe que esses corpos são imagens do belo? Não seria a alma desse amante a responsável por julgar e indicar o que lhe é semelhante? Em um primeiro momento, é possível indicar que as belezas sensíveis são apreendidas pelas sensações, sobretudo, pela visão e pela audição. “Elas fazem a alma tomar consciência do belo, mostrando o mesmo numa situação diferente” (I. 6 [1] 3, 26-27). Mas como o amante toma consciência do belo? Plotino infere que é preciso ver, com a alma, as belezas sensíveis, para que, com elas, o humano se excite (I. 6 [1] 4, 10-11) e, com isso, sinta prazer e busque as belezas verdadeiras. Plotino explica: É isso que podem experimentar, e experimentam, as almas perante as belezas invisíveis, todas as almas, por assim dizer, mas sobretudo as que são mais apaixonadas, assim como, quando se trata das corpóreas, todos vêem, embora sejam igualmente aguilhoados: mas os que mais o são, são os chamados amantes (I. 6 [1] 4, 14-18).

De todos os humanos, os que mais vislumbram a beleza sensível são os amantes. E para Plotino, a sua alma consegue rememorar de outros amores, aqueles que outrora a alma 28

contemplou em uma realidade superior. O amante tem uma disposição para compreender as belas ocupações, os belos modos, os comportamentos temperantes e a beleza das almas (I. 6 [1] 5, 2-4). Ou seja, o amante possui em si a reminiscência da beleza, sem a qual não é capaz, por ele mesmo perceber o que ela representa. Assim, ele necessita ver essa beleza sensível para se emocionar (BAL, 2007, p. 66), e a partir disso, a alma desse amante irá determinar se essa beleza está de acordo com as belezas inteligíveis. Por meio da alma, o humano mantém uma ligação com o inteligível. Para Laurent (2011, p. 60), Plotino utiliza a alma como intermediário, que contempla no interior do objeto ela mesma. Em concordância, Nogueira (2005, p. 31) explica que a transfiguração da beleza no sensível só pode ser apreendida pela alma. Esta ocupa uma posição intermediaria entre a beleza sensível e a beleza inteligível e serve como um canal ou uma ponte entre essas duas belezas. Para Plotino, quando os amantes se deparam com o amado, eles se excitam e desejam com eles permanecer (I. 6 [1] 5, 5-6). Todas as afecções que os amantes experimentam não ocorrem no corpo, e sim na alma. Pois é ela quem entende o que é incolor, por ser semelhante, e “incolor é a temperança que ela possui, bem como qualquer outro brilho das virtudes, sempre que vides em vós ou vislumbrais em outrem a grandeza da alma” (I. 6 [1] 5, 7-10). Laurent (2011, p. 59) acredita que o humano belo é o que manifesta a virtude e sua inteligência, que tem a capacidade para fazer o bem e pensar o inteligível. Em concordância, Vera (1978, p. 60) salienta que as virtudes são importantes para a purificação da alma, e para isso, é preciso compreender que o esplendor moral é uma das formas de manifestação da beleza. Ao ver a beleza das virtudes, a temperança, a coragem e a justiça, a alma permanece tranquila, venera, ama e as denomina bela, porque essas virtudes fizeram dessa alma bela o suficiente para ser contemplada. Elas existem e se manifestam, e quem as viu jamais diria que elas são algo outro senão o que realmente existe. Que são realmente? Belas! Mas a razão ainda deseja saber: que são elas para terem feito a alma ser amável? (I. 6 [1] 5, 14-17, grifo meu)

Plotino acredita que através da purificação os amantes conseguem tornar suas almas amáveis. Para isso, o humano precisa ser belo por si, e livrar-se da carne e das afecções do corpo, pois as belezas provenientes desses são adventícias, misturadas e não primárias, pois derivam de um arquétipo (I. 6 [1] 7, 18-20). 29

Reis (2007, p. 3) explica que a tarefa para o aprendiz da beleza é tornar-se o próprio objeto a ser vasculhado. Esquecendo a visão externa para olhar com a visão da alma, os amantes conseguem perceber as belezas ulteriores em seu interior. Lombardo (2011, p. 166) explica que a visão plotiniana sobre o belo é inspirada pela teoria platônica do amor e que, em Plotino, a alma do amante é fortemente atraída27 e movida para a beleza sensível, onde a alma reconhece a imagem da beleza eterna, que ela encontrou em uma existência anterior. Esse reconhecer, para Oliveira (2013, p. 88), ocorre porque a alma é aparentada com o belo, e se não o fosse, não teria este “sentimento instintivo” de afinidade; mais ainda, eliminando esta causa do amor, da alma pela beleza, não seria possível explicar sua origem. É necessário lembrar que para Plotino, o amor consiste do desejo de união absoluta com o amado (III, 5 [50] 5-29), e por isso o amante busca pelo inteligível. Ao ver a beleza suprema e primária, ele percebe que nada mais é preciso além de contemplá-las: Lavra belo seus amantes e os torna amáveis. E eis que se põe o combate maior e extremo para as almas, e todo nosso labor é para isso, para não ficarmos sem parte no mais sublime espetáculo. (I. 6 [1] 7, 24-26)

Para ter um amante belo e compreender a beleza que existe nas boas ações e nas virtudes, é necessário fazer com que a alma desse humano se acostume com “as belas ocupações; em seguida, as belas obras, não essas que as artes realizam, mas as dos chamados homens bons; depois, vê tu a alma dos que realizam as belas obras” (I. 6 [1] 9, 3-5). Assim, para Bal (2007, p.64), a alma deve ser convencida da existência da fonte de onde emana a luz que a ilumina, pois somente assim poderá reconhecer que procede do Intelecto e que ela deve retornar, abandonando todo elemento estranho à sua natureza. Ao se voltar para o princípio, a alma, atraída nessa direção, se distancia da realidade sensível, realizando aquilo que costuma chamar de conversão. Mas o que as belezas de Circe e Calipso representam para a alma do amante? Quando Odisseu percebe que, para encontrar a verdadeira beleza, é preciso olhar para si mesmo e ver? Como Odisseu se torna amável?

A figura de Calipso como exemplo para compreender Odisseu como alma do amante Considerando a confluência entre o pensamento mítico e o filosófico, como entender os mitos na Odisseia de Homero (séc VIII A.E.C), e em Plotino (séc. III E.C.), filósofo bem 27

Para ver mais sobre a atração entre o amante e o belo, Cf. Hadot (2002, p.24).

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posterior? Especialmente o mito da nymphê Calipso, narrado na Odisseia. Essa ninfa representou um papel decisivo no desenrolar da história e que com Plotino, tem sua beleza exaltada, graça que extasia que imita o belo em si. Sobre a importância dos mitos, Ullmann (2008, p.85) diz que Plotino refere-se ao mito como discurso com duplo sentido: a) aparente, na superfície da narrativa; b) enigmático, oculto. O mito28 deve ser captado como algo que alude à outra coisa, algo indicativo, uma metáfora. A alusão metafórica procura fazer compreender o que as palavras não conseguem exprimir, o inteligível. Oliveira29 (2013, p.30) expõe que “os mitos para Plotino, são imagens, figuras” e pertencem ao campo da linguagem figurativa, uma tentativa do filósofo em dissertar sobre o que a linguagem proposicional não consegue abranger. Além desse papel, Oliveira salienta que Plotino, através dos mitos, por vezes aponta para as realidades inteligíveis, e em outros momentos, mostra e interpreta a imagem (2013, p.30). Além disso, os mitos podem se apresentar como estrutura genealógica na ordem do discurso. Para a autora, os conceitos de figuras e discursos não se excluem: Um mesmo mito pode ser figura aqui, e entrar na estrutura discursiva ali. Por outro lado, uma figura mítica sempre está na ordem do discurso, E um discurso mítico compõe-se de figuras (OLIVEIRA, 2013, p.30).

Ao partir da compreensão de que um grupo de mitos podem simbolizar o mesmo nível inteligível, como no caso das figuras da Alma (Oliveira, 2013, p. 31), como perceber as figuras míticas das duas ninfas, Circe e Calipso, em relação com Odisseu na interpretação de Plotino? Nesse sentido, o que interessa aqui, mais especificamente, é a relação da nymphê Calipso e Odisseu, onde, em linhas gerais, a nymphê simboliza as belezas sensíveis. A opção de utilizar estritamente a figura mítica de Calipso e não de Circe é por compreender que entre as duas, Calipso foi a personagem que, na Odisseia, de algum modo reteve o herói por mais tempo. Essa apreensão pode, em análise, simbolizar com maior abundância a sedução das belezas sensíveis. Para entender a relação entre Odisseu e Calipso, é preciso conceber que em Plotino, os dois níveis de realidade, Intelecto e Alma são imagens do nível imediatamente superior. Isto é, a Alma é imagem do Intelecto e este último, do Um (ULLMANN, 2008, p. 29). Já o Um não é imagem, e sim realidade subsistente em si mesma, fonte de toda a determinação. Posto

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Cohen e Lacrosse (2010) explicam que o mito em Plotino aparece como sendo um modo particular de lógos, e afirmam que o próprio lógos é um caso particular de mûthos. 29Para ver mais sobre os modos como Plotino utiliza dos mitos, Cf. Oliveira, L. (2013). Plotino, escultor de mitos. São Paulo: Annablume Clássica.

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isso, como Odisseu reage ao olhar essa beleza? Será que ela é suficiente para seduzir a figura de Odisseu? Plotino garante a permanência das nymphai ao longo do período romano da filosofia antiga. Entretanto, a relação dialética entre mito e filosofia ocorre através das interpretações e remodelações do mito. Diferentemente dos estoicos e dos gramáticos leitores de Homero, Plotino não associa as figuras a elementos físicos, morais ou psicológicos, muito menos interpreta, de modo linear, um trecho preciso da Odisseia (OLIVEIRA, 2008, p.73). A ocorrência da nymphê Calipso no Tratado sobre o Belo, aparece ligada à fuga do herói: Navegaremos como Odisseu, diz ele – enigmando, penso eu- que fugiu da feiticeira Circe e de Calipso, não contente em permanecer, embora tivesse prazeres para os olhos e se unisse a muita beleza sensível (I, 6 [1] 8, 15-24).

Diante desta passagem e ao utilizar como exemplo a ninfa Calipso, é possível formular duas questões, cuja investigação será de cunho especulativo, haja vista a incerteza que se tem a respeito das fontes de Plotino. São elas: O que a figura de Calipso pode representar para o tratado I. 6 [1]? Quais os efeitos da recusa feita por Odisseu da imortalidade e juventude eterna, oferecidas por Calipso? Plotino sugere que todos devem fazer como Odisseu, que foge das belezas sensíveis das nymphai, já cansado de olhar reflexos. No caso de Calipso, Plotino teria indícios na própria Odisseia da postura arredia do herói perante a espera na ilha da nymphê. Mas por que Odisseu permaneceu tanto tempo? Que belezas seriam essas capazes de seduzir o herói? Na Odisseia, a descrição da ilha de Ogígia guardava em si surpresas tão belas quanto a figura da ninfa. Nesse espaço existiam: Bosque havia em torno da caverna, verdejante: Amieiro, choupo-preto e perfumado cipreste. Lá repousavam aves-comprida, Marinhos, que se ocupam de feitos marítimos. (Od, 5.63-67)

Em Ogígia, havia água em abundância e vida animal, todas as condições necessárias para que Odisseu sobrevivesse ao lado da ninfa. A beleza que a ilha de Ogígia retinha causaria arrebatamento até em deuses: “mesmo um imortal lá chegando, se admiraria ao olhar e se deleitaria no juízo” (Od. 5.73-74). Com exuberância e opulência, nem o imortal deixou de contemplar a beleza do canto de Calipso (Od, 5.60-61). 32

Calipso possui belezas corpóreas como poder de sedução. Nela é possível encontrar a beleza na música, nas melodias e ritmos (I. 6 [1] 1, 2-3) já que é natural ninfas realizarem atividades de cantar e tecer perfeitamente. Esses sons que aproxima até imortais como Hermes, causando fascínio em um deus, inebria o amante que, apaixonado, acredita estar em face de seu verdadeiro amor. Plotino salienta que as “harmonias que estão nos sons, as imperceptíveis que produzem as perceptíveis, também desse modo, fazem a alma tomar consciência do belo” (I. 6 [1] 3, 25-26). Krakowski (1929, p. 126) diz que devem ser considerados os ritmos puramente sensíveis para, através deles, separar a forma da matéria e passar a considerar o belo que está em sua proporção. Em consenso, Oliveira (2008, p. 223) relata que o inteligível não se manifesta apenas em produções humanas, mas sim em qualquer vestígio de ordem e de beleza no mundo sensível. Assim, Plotino considera que os sons sensíveis na música, por exemplo, são representações da harmonia inteligível. Como belezas corporais, Calipso retém a beleza das deusas e, em conjunto com sua morada, seduz as poucas pessoas que passam pela longínqua ilha. Porém, mesmo contendo beleza divina, ela se equipara à mortal Penélope: Com certeza não pior que ela proclamo ser, nem no porte, nem no físico, pois não é possível que as mortais disputem com imortais em porte e aparência (Od, 5. 211-213)

Por que Calipso se equipara à beleza da mortal Penélope? A ninfa possui beleza que causa admiração e assombro, então, porque mesmo consciente de sua superioridade, ela ainda coloca Odisseu à prova? A união dos elementos presentes em Calipso e sua ilha parecem corresponder ao aperfeiçoamento da matéria pela alma inferior, a physis. Erroneamente, poderiam classificar o conjunto das belezas presente em Ogígia como belezas verdadeiras, aquelas, como diz Plotino, que ao amante contemplar, “sentiria doce tremor, desejo, amor e excitação com o prazer” (I, 6 [4] 12-16). Entretanto, Calipso em Plotino, apresenta-se como uma entre as belezas sensíveis. Essas belezas são consideradas sombras e fantasmas, nada mais que cópias do belo, ao qual deve através delas tomar consciência da existência do belo em si por meio do processo de rememoração, para fugir da imagem em direção à forma da beleza. Jesús Igal (2008) indica que a distinção entre o bem e o belo que Plotino realiza é mais marcada do que a de Platão30. O bem é identificado com a beleza31 primária (I, 6 [9], 39-40), a

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Distinção realizada, sobretudo, na República e no Banquete.

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beleza em si ou ainda se pode nomear como beleza imponente. Notadamente, o bem está além do belo, como força e princípio da beleza. Neste sentido, pode-se exprimir que essa beleza junto ao bem pode ser chamada de superbelo, já que ela é geradora das demais belezas. Na ascensão plotiniana, para chegar ao superbelo, é necessário realizar um percurso de ordem reversa, sem atalhos (ULLMANN, 2008, p. 135). Nesta escala, as belezas das nymphai seriam consideradas belas, por depender, em última análise, da luminosidade das belezas primárias. Na remodelação do mito, supostamente, a posição de deusa inteligível ocupada por Calipso ganha outro sentido. Na Odisseia, a ninfa dispõe de beleza sublime, o que facilmente se caracterizaria como belezas eternas. Já em Plotino, a ninfa ocupa um espaço reservado às belezas sensíveis, as quais, não passam de sombras de uma forma superior. Do mesmo modo, poder-se-ia compreender o significado de Penélope e Ítaca de maneira distinta? Curiosamente, tanto Ítaca na Odisseia quanto no Sobre o Belo permanecem como o refúgio do herói, seu lar (Od, 5.207; I. 6 [1] 8, 18). Já Penélope não aparece em nenhum momento na narrativa de Plotino. A luminosidade que a beleza da nymphê simboliza não é suficiente para extasiar o herói por muito tempo, já que ao considerar a participação na forma do belo, Plotino a coloca em conjunto com belezas sensíveis. Ao perceber que não conseguiria mais reter o herói através de prazeres para o corpo, Calipso utilizou de sua capacidade de conceder a imortalidade e juventude eterna (Od, 5.135). Esse presente pode ser interpretado como beleza sensível incorpórea? Odisseu percebe que aceitar esse presente é ter uma morte simbólica. É permanecer para sempre oculto com a ninfa longe de sua pátria, de sua mulher e filho. Além disso, Werner (2014, p. 68) comenta que Odisseu necessita cantar sua história, suas conquistas, para que ocorra o retorno à sua identidade, a uma situação inicial, que foi perdida pelos anos em que passou com a ninfa. Retornando à oferta da imortalidade, aparentemente, essa dádiva da ninfa apresenta-se como mais um atributo sensível, enganador, que não possibilitaria que um humano vivesse a vida de um imortal32. Mesmo Calipso sendo uma deusa e emanando o belo, como Odisseu percebe que ela não representa o belo em si? Para Plotino, a via da libertação das belezas sensíveis e o reconhecimento do que é inteligível está na purificação e na descoberta do estado originário da alma, que só pode ser observada olhando para si mesmo (I. 6 [1] 9, 6). 31

Utiliza-se Beleza primária, Beleza em si e Beleza imponente no sentido de entes perfeitos, transcendentais, iluminados. 32 A própria ninfa argumenta que a experiência de transformar um mortal em imortal já havia sido realizada e não foi aprovada pelos deuses. O exemplo citado pela ninfa é o de Aurora de róseos dedos e de Deméter, deusas que se uniram em amor com mortais e como castigo tiveram que conviver com a separação (Od, 5.121-125).

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Além disso, Calipso em Homero aparece ligada ao problema da identidade humana. A questão da perda de identidade, segundo Oliveira (s/d, p. 9), está ligado ao personagem do anônimo como já foi explorado no capítulo primeiro dessa monografia. Em oposição ao anônimo está Odisseu, que percebe a distinção entre os reflexos do belo e a forma da beleza. Em outras palavras, Odisseu utiliza da visão para perceber que a verdadeira beleza está em si mesmo e não no corpo da ninfa. Se aceitasse a oferta da imortalidade, ele estava certo de que sua identidade humana desapareceria definitivamente33. Plotino descreve o processo de introversão e retoma a metáfora do olhar. Ele explica que é preciso acostumar a própria alma para ver primeiro as belas ocupações, as belas obras, os homens bons, e, para avaliar qual o tipo de beleza que uma alma boa possui, deve-se recolher em si mesmo e ver. No I. 6 [1], pode-se especular que, para Odisseu compreender que a beleza da ninfa é fugidia, ele teria que passar pelas práticas das virtudes cívicas, aquelas já explicadas anteriormente, que ordenam e simplificam as coisas da alma. E logo após, percebendo que de nada adianta o bom governo, ele aprende a abdicar “das realezas e da autoridade sobre toda a terra e o mar e o céu” (I. 6 [1] 7. 31). Ele compreenderia as virtudes purificativas separando a alma de tudo que é corporal e passível de afeções do corpo. “tendo abandonado e desprezado essas coisas, volvendo-se para ele o visse” (I. 6 [1] 7, 31-32), perceberia que o maior desejo de toda alma é não contentar-se com belezas fugidias, mas retornar à sua origem. Plotino diz que essa viagem de retorno ao lar não deve ser feita a pé ou em grandes naus (I, 6 [1] 8, 20-21). Assim, parece que se trata de uma busca introspectiva de reencontro com o bem. Odisseu através de seus grandes feitos e sua sabedoria torna-se um humano virtuoso e purifica sua alma, conseguindo distinguir o belo e enxergar através do manto enganador de Calipso. Plotino expressa que nem todas as almas conseguem perceber o que há de belo nos corpos. Para ele é preciso treinar a alma para que ela veja coisas belas, e depois, quando estiver diante a beleza verdadeira, a reconheça. Basta fechar os olhos e voltar a atenção para dentro de si mesmo, ou seja, mudar essa maneira de ver sensível por outra; “despertar a visão que todos têm, mas que poucos usam” (I, 6 [1] 8, 25-30). Ao humano é necessário o conhecimento sensível para poder olhar e se libertar do mundo externo. A presença de Circe e de Calipso é de grande importância na trajetória de Odisseu para que ele compreenda que é preciso abandonar os prazeres, os sentimentos 33

Não se sabe se Plotino ignora essa questão da oferta da imortalidade de Calipso a Odisseu. Todavia, pode-se especular se o filósofo, quando relata que as ninfas simbolizam as belezas sensíveis, não estaria interpretando o dom de Calipso como mais um atributo da beleza sensível. O que de todo modo o herói deveria fugir.

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violentos e tudo o que é exterior, que o atrai e distrai, já que a verdadeira imagem do Um está em si. Liberto de tudo, o herói mostra-se pronto para unir-se ao Um, a qual a alma tem disposição. E ao contemplar o belo verdadeiro, do qual a beleza da ninfa é partícipe, a alma ao ver essa beleza irá se maravilhar, amar como verdadeiro amor e agudos desejos, rir-se dos outros amores e desprezar o que outrora estimava belo (I, 6 [7] 12- 15). Em se tratando de imagens dos corpos, em I. 6 [1] 3, 29-31, Plotino diz que as belezas dos corpos são do domínio da sensação, imagens (eídolon) que como que sombras fugidias, nos adornam e nos comovem ao aparecer. É preciso recordar que para Plotino, a sensação é receptiva, percebendo as formas externas dos objetos através do corpo, marcando uma continuidade entre esses objetos e a alma. Deste modo, ocorre uma assimilação, e a alma consegue compreender a forma. Todavia, Plotino assevera que o mundo sensível é mentiroso, um fantasma, um eídolon. O mundo é belo, mas não o deixa de ser através da participação, mera imagem que em um momento perderá seu brilho, quando olhado com olhos que contemplam o eterno (ULLMANN, 2008, p. 67). Plotino em I. 6 [1] 8, 9 diz que devemos fugir para as belezas ulteriores, as quais a alma deve contemplar, deixando as sensações aqui em baixo. Em outra passagem, o termo eídolon aparece em conjunto com a figura do anônimo que, ao tentar apreender sua bela imagem (eídolon) no reflexo da água, desapareceu nas profundezas do rio (I. 6 [1] 8, 9). Em um estudo sobre os termos eikón e eídolon, Saïd explica que eídolon concentra-se apenas no âmbito dos sentidos à medida que eikón pressupõe uma operação intelectual para ser percebido como tal (SAÏD, 1993, p.16 apud OLIVEIRA, sd, p.5). Assim, os dois termos formam faces da mesma moeda. Quando a imagem é captada pela sensação, apresenta-se como eídolon. Porém, quando a imagem é submetida ao raciocínio da alma, ela pode mostrarse como eikón e auxiliar quem as observa na elevação34. Assim, o humano, estando no mundo sensível, deve desligar-se dele e voltar-se para o inteligível. A imagem fugidia do mundo sensível (eídolon) marca a oposição com a beleza mais elevada (eikón) que se vista, orientaria Odisseu ao caminho do inteligível. Como é consabido, as belezas corpóreas são belas por participação no belo inteligível. A visão de tais belezas pode permitir o reconhecimento das belezas superiores. Ao ver as imagens sensíveis, Odisseu deve fugir delas e ir ao encontro da sua matriz. Mas por que Circe e Calipso se apresentariam como eikón? Todo o processo de compreensão da imagem varia de acordo com o interlocutor dessas belezas. No caso do 34

Restaria investigar se Plotino difere os sentidos dos termos eídolon e eikón nas Enéadas. Mas dada a extensão que tal pesquisa demandaria, não é possível empreendê-la agora.

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anônimo, que ao ver as belezas sensíveis se apaixona e resolve permanecer com elas (I. 6 [1] 8, 5-10), as imagens aparecem como eídolon. Já com Odisseu, que foge das belezas de Circe e Calipso, as imagens apresentam-se como eikón. Odisseu ao fugir das imagens das ninfas, estaria fazendo esse percurso de forma literal? Plotino explica sobre esse sentido em I. 6 [1] 8, 19-21, onde a jornada não deve ser percorrida por terra, e para fazê-la não é preciso carruagem ou embarcação35. É trocar a visão que todos têm pela dos que conseguem ver a forma. Depois de unir-se a muita beleza sensível, Odisseu sente saudade de sua terra e origem, o que o leva a fugir para Ítaca, sua pátria interior (GOMES, 2016, p. 32). Assim, ao perceber o que há de inteligível nas ninfas, o herói deve fugir, indicando um movimento de conversão, e retornar para seu interior, pois a verdadeira beleza não está em corpos belos, mas dentro de si mesmo.

Considerações finais

Essa monografia inicialmente buscou analisar as belezas sensíveis no tratado Sobre o belo. O belo pode estar presente em coisas materiais e imateriais, como as belezas dos corpos, dos sons e das virtudes. Analisando superficialmente as diferenças entre a compreensão sobre a beleza em Plotino e nos estoicos, é possível perceber que Plotino não acredita que as belezas estejam restritas à simetria dos corpos36, entretanto, uma análise aprofundada sobre o tema poderá ser central em outro estudo. Ao investigar acerca da importância das belezas sensíveis, Plotino, por meio de metáforas e mitos, enigma ao dizer que da visão das belezas sensíveis é possível contemplar as belezas ulteriores37. Mas aquele que utiliza a visão que todos têm, mas que poucos usam, percebe que as belezas são opacas, sombras de uma realidade superior. O convite para o caminho de ascensão foi feito, e Odisseu, personagem de várias faces, decide navegar. Interpretado como figura da alma, Odisseu busca o retorno para sua pátria que simboliza o retorno à origem. Através das virtudes purificativas, a alma deve afastar-se do alheio e impuro para conseguir diferenciar as belezas sensíveis da forma do belo. Nesse 35

Sobre a fuga, Bréhier (1999, p. 185) diz que a diferença do “daqui” e de “lá”, de superior e inferior, não significa mais que a diferença entre a dispersão no sensível e a concentração no interior. 36 Cf. I. 6 [1] 1, 22. 37 Cf. I. 6 [1] 4, 1-7

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sentido, o problema da diferenciação das formas com a matéria e a perda da identidade aparecem como questões decisivas na distinção entre Odisseu e a figura do anônimo. A figura sem nome em Plotino não consegue desprender-se de seu reflexo, enquanto que Odisseu não permanece satisfeito com as belezas sensíveis de Circe e Calipso e decide fugir. Com a segunda abordagem acerca das faces de Odisseu, foi possível compreender como o herói configura-se como um dos humanos capazes de ascender ao belo. Na explicação plotiniana38, os humanos que podem ascender ao inteligível são: o músico, o amante e o filósofo. Nessa pesquisa, Odisseu se assemelha à figura do amante que, de algum modo, rememora a forma da beleza. Todavia, ele precisa purificar-se para não se apegar às belezas corporais. Assim, ao encontrar essas belezas, o amante percebe seu congênere e deleita-se. Ao investigar as duas interpretações sobre a figura de Odisseu, foi possível compreender que ambas são complementares, como faces da mesma moeda. Por esse motivo, a análise deteve-se em explicar como o herói caracteriza a alma do amante. Odisseu pode simbolizar a figura da alma do amante, pois essa alma é a mais aguilhoada pelas belezas sensíveis, que, de algum modo, consegue apreendê-las como sombras. Neste caso, percebe-se que a alma e o amante desempenham papeis diferentes e fundamentais no processo de ascensão. Enquanto o amante preocupa-se em apreender as belezas sensíveis através das sensações, cabe à alma agir como um cânon de correção e se ajustar ao seu semelhante. Para Plotino, sobre as belezas ulteriores não cabe à sensação ver, e sim à alma sem órgãos39. O caminho se mostra o mesmo para a dupla face de Odisseu. Plotino diz: Recolhe-te em ti mesmo e vê40. A jornada rumo ao inteligível não deve ser feita por terra, mas do exterior para o interior, buscando sempre substituir essa visão e despertar uma outra. Portanto, todas as intepretações de Odisseu apontam para uma via semelhante. Através das virtudes, a alma, ao estar pura, consegue perceber as belezas sensíveis como o meio, e não o fim. Para onde a fuga de Odisseu o leva, se até o Intelecto, ou até o Um, continua sendo um enigma. Entretanto, a finalidade de toda alma é retornar ao seu lar.

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Cf. I. 3 [20] 1, 4-7 I. 6 [1] 4, 1-2. 40 I. 6 [1] 9, 6 39

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