As Faces Obscuras de Hamlet

June 15, 2017 | Autor: E. Gonçalves | Categoria: Shakespeare, Hamlet, Kubler-Ross, Luto, 5 estágios do Luto
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As Faces Obscuras de Hamlet
Eliane Gabriela Gonçalves ([email protected])
Universidade de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil.
"Como somos todos imortais em nosso inconsciente, é quase
inconcebível reconhecermos que também temos de enfrentar a morte."
(Elizabeth Kübler-Ross)
Associa-se recorrentemente a Hamlet, o príncipe da Dinamarca, da peça homônima de Shakespeare, a dúvida sobre sua sanidade. O fio pelo qual percorre as ações de Hamlet é tênue e delimita a fronteira entre a razão e a insanidade. A cada página lida da obra de Shakespeare, mais eu achava que o luto do jovem rapaz estava evidente, perdia-me em discussões mentais com os personagens que o chamavam de louco e foi partindo disso que surgiu a ideia deste artigo. Foi através de uma perda que o jovem príncipe chegou a essa encruzilhada, mas não de qualquer perda, foi a perda de um rei, a morte de um pai, de seu pai. Esse é momento da vida em que a morte deixa de ser um mito e impõe sua presença, uma sombra que assola o coração de quem perdeu um ente querido. A morte é um evento que, apesar de ser natural ao ser humano, nunca é esperada. E quando ela chega assim de repente, sem avisar, traz consigo um sentimento de devastação. Pois, segundo Kovacs, é com a perda do outro que se tem o mais próximo do que seria a vivência da morte em vida (KOVACS, 1992, p.149). Como enfrentar a morte e sair ileso? Esse confronto deixa sequelas que acarretam dor e sofrimento, esse período de transição entre o processo de cura e a superação é conhecido como luto.
Numa história no qual os fins justificam os meios, o luto como consequência à perda não é bem recebido. Isso é um costume que vem há tempos, pois de acordo com Kovacs a morte é vista como vergonha, "o grande fracasso da humanidade"(KOVACS, 1992, p.151) por uma sociedade que condena o luto, sua manifestação e expressão, uma sociedade dominadora que "não suporta ver os sinais do luto"(p.151). A causa disso, o pobre Hamlet era muitas vezes julgado, incompreendido e sua dor era assimilada a pura insânia. Não que o luto não possa progredir para uma situação patológica e, consequentemente, desencadear a perda da razão, mas se tem algo que eu senti em Hamlet foi que, do começo ao fim, ele sempre manteve o domínio sobre a sua racionalidade.
É a partir do contexto que se obtém a notícia da morte do rei, pois a história só começa depois do ato sucedido, quando a aparição do fantasma do rei surge causando dúvidas e desconforto às sentinelas do reino da Dinamarca. Chega aos ouvidos do príncipe Hamlet a aparição e é no confronto entre o vivo e o morto que a verdade vem à tona: o rei foi assassinado. Recapitulando, em ordem cronológica, os eventos: logo após a morte do rei, a rainha, mãe de Hamlet, casa com seu cunhado, irmão do rei; não obstante, o Tio, agora seu padrasto, assume o trono que por direito seria do príncipe, para então o rapaz descobrir que seu Tio não apenas o traiu como também assassinou seu pai. É possível dizer que Hamlet sofreu por motivos variados, quase uma avalanche de pequenas perdas e traumas, o caos foi instaurado em seu interior, seu mundo foi claramente destruído, e o que já era difícil de lidar, se torna quase impossível. Hamlet traja suas vestes negras e não tem vergonha de expor seu sofrimento, seu luto. Mas como o luto pode ser caracterizado?
O luto é uma reação natural ao ser humano, quando este enfrenta algum tipo de perda, não necessariamente a morte. A perda pode ser real ou simbólica, e causa um sentimento de devastação e destruição no mundo interior do indivíduo. Portanto, o luto seria aqui a fase de transição, no qual o mundo interno é reconstruído, mas, para isso, cada pessoa acaba passando por etapas nesse processo de reconstrução. Elisabeth Kübler-Ross, psiquiatra suíça, criou no final da década de 60 um modelo próprio a respeito do que ela considera como fases do luto: o modelo Kübler-Ross, mais conhecido como os 5 estágios do luto. Por primeiro vem a negação e o isolamento iniciando os estágios, em segundo vem a raiva, em terceiro lugar a barganha, no quarto a depressão e em último lugar a aceitação. Esse modelo foi criado a partir de um seminário que visava a reação de pacientes em fases terminais, mas o que eu procuro fazer aqui é aplicar esses estágios não em quem está para morrer e sim naquele que ficou. É importante ressaltar que nem todos esses estágios seguem necessariamente esta ordem e nem todos são experienciados no processo do luto. No entanto, pelo menos dois devem aparecer.
Na história do príncipe da Dinamarca, de todos os 5, consegui ver claramente 4 estágios: a negação, a raiva, a depressão e a aceitação. Foi a partir de diálogos de Hamlet e outros personagens que cheguei a essa conclusão. Partindo do primeiro estágio, o que seria essa negação? Conforme a teoria de Kübler-Ross a negação assume o papel de proteção à eventos "inesperados e chocantes"(KÜBLER-ROSS, 1996, p.52). Dois eventos foram essenciais para revelar a fase da negação: tanto a morte do rei, como o casamento da rainha. Talvez seja por isso que a negação é uma das fases mais evidentes. Hamlet tinha dificuldades em aceitar que perdeu uma figura tão importante e o casamento da sua mãe com seu tio só tornou as coisas piores. Alguns trechos destacam essa negação, como quando o jovem diz, "Aquele que perdi devo esquecer; Meu traje é só o adorno do sofrer."(SHAKESPEARE, 2013, p.58). Acho que nesse estrato é possível ver não somente que o menino está enfrentando dificuldades para lidar com a perda de seu pai, como também que a ideia da morte é reprimida de tal forma que quem morreu deve ser esquecido. Hamlet luta com esse dilema do ideal para a sociedade e seus próprios sentimentos, como esquecer quem já se amou?!
Mais a frente tem outro trecho que retorna a essa ideia de esquecimento: " Dois meses! Então, que o diabo se vista de preto, pois eu usarei peles. Jesus! Morto há dois meses ainda não esquecido? Ora! Existe a esperança de que a morte de um cavalheiro possa sobreviver à memória. (SHAKESPEARE, 2013, p.129) Nesse momento o príncipe não busca mais o lado social e se volta totalmente aos seus ideais. Seu pai não merece ser esquecido, ainda mais depois dos fatores que o levaram a morte, sua lembrança deve se manter presente até que a vingança a sepulte.
"O traço mais permanente no luto é um sentimento de solidão."(KOVACS, 1992, p.154). Luto é um termo muito abrangente, engloba qualquer reação que possa ser desencadeada pela dor. Cada indivíduo possui uma reação única, diversa dos demais. Nada fica muito explícito em Hamlet, mas é possível ver que apenas o príncipe se mantém preso à memória do rei, à sua perda, os outros que estão ao seu redor não seguem o mesmo rumo, devido a isso suas atitudes são vistas sob uma lente de pura incompreensão. Sem contar que, após a descoberta da traição de seu tio e das suspeitas que se estendem até sua mãe, cria um ambiente de pura desconfiança e insegurança. Tudo isso somado leva à isolação, à necessidade de viver num mundo só seu.
Com a negação esclarecida, o próximo estágio identificado foi o da raiva. Analisando uma frase de Kübler-Ross, "Quando não é mais possível manter firme o primeiro estágio de negação, ele é substituído por sentimentos de raiva, de revolta, de inveja e de ressentimento."(KÜBLER-ROSS, 1996, p.63), cheguei a conclusão que a raiva pode ser vista como o lado negro da negação, quando esta sufoca, a outra toma as rédias da situação. Hamlet desenvolve um grande ressentimento pela mãe, e uma revolta intensa pelo tio. Enquanto a história não é esclarecida, o jovem príncipe, inconformado com os "lençóis incestuosos"(p.60), volta-se contra sua mãe, não obstante reflete sua ira à todas as mulheres. Em um certo ponto, Hamlet, em um monólogo, diz:
"Ó Deus! Dois meses! Não, menos de dois!
Casada com meu tio. Nem vou pensar! [...]
Antes que o sal das lágrimas hipócritas
Lhe avermelhasse os olhos irritados,
Ela casou. Ó Deus! Fera insensata
Não teria com tanta pressa agido.
Frivolidade, teu nome é mulher." (SHAKESPEARE, 2013, pp.59-60)
Neste trecho fica claro sua revolta e seu ressentimento pela mãe, além de apresentar os primeiros traços do reflexo que se dá ao gênero feminino. A pobre Ofélia é a personagem que sofre os maiores ataques, aquela menina doce, que antes era seu objeto de desejo, torna-se um alvo para a sua repulsa e a sua maldade. Em vários diálogos entre os dois, Hamlet faz pouco caso de Ofélia, renuncia às juras feitas a ela, faz piadas infames, despreza-a. Em um dos primeiros diálogos depois da revolta criada, Ofélia tenta devolver lembranças dadas por Hamlet, que, cego, diz: "é mais fácil a beleza transformar a honestidade em prostituta do que a honestidade transformar a beleza. Já houve época em que era um paradoxo, mas os tempos atuais o comprovam. Nunca te dei nada. [...] Nunca te amei."(SHAKESPEARE, 2013, p.100) Obviamente mentiras faladas no auge de sua indignação, pois, posteriormente, ele volta a confessar "Amei Ofélia igual a vinte irmãos."(p.169) A raiva é um dos estágios mais complicados, possui verdadeiramente o poder de transformar o indivíduo, é o estágio que mais se assemelha a insanidade, pois seus acessos são os poucos minutos no qual a razão sai de cena.
Outro ponto de revolta é o tio. Na verdade, ele é o principal foco transmissor de aversão e fúria. Assim que descobre que seu tio envenenou seu pai, Hamlet o descreve como "Vilão pernicioso! Homicida, devasso, sorridente, Maldito vilão!"(SHAKESPEARE, 2013, p.81) para então declarar suas intenções para o futuro, "É possível sorrir, sorrir e trair;" (p.81). Quando o questionam sobre seu atual estado de insatisfação, alega também que isso se deve ao fato de ter sido preterido, em outro de seus monólogos novamente faz essa referência em relação ao trono, "Que faria ele diante da mi'a perda O pai morto e a coroa usurpada?"(SHAKESPEARE, 2013, p.115). Sua indignação é evidente e traz consequências, Hamlet vai em busca de vingança, pois precisa honrar a memória de seu pai. Ou seja, novamente ele se prende às suas lembranças, como prova da distância em que se encontra de aceitar essa privação de seu pai.
De acordo com Kübler-Ross, o próximo estágio seria o da negociação, da barganha, que pode ser vista como o último resquício de esperança. Porém, diante de tamanho choque de realidade pelo qual o príncipe passou, ele acaba não buscando uma negociação com a natureza, e apesar da barganha ser mais uma das fases enfrentadas pelo luto é a que menos se faz presente.A única busca que se faz presente é por respostas para seus conflitos internos, ser ou não ser aquele que esperam que seja, ou que fosse. De um lado ele luta contra o desejo de vingança, do outro anseia por honrar sua palavra, dada ao espectro do rei. " Podemos, portanto, ter esperanças de nos libertarmos de uma parte de nossos sofrimentos, agindo sobre os impulsos instintivos. " (FREUD, p.10), Freud consegue fazer essa conexão entre última esperança, liberdade e impulsividade, e no caso de Hamlet, isso é o que mais se aproxima da barganha, é justamente essa vingança, a busca pelo reequilíbrio da natureza, ou, no caso, do seu mundo interior - a cada homem bom que morre, um homem mau deve seguir o mesmo destino - que prevalece.
Após essa resvalada na barganha, chego ao estágio que julgo ser o principal quando se fala em luto: a depressão. Este é um estágio que normalmente é relacionado à melancolia, até porque no século XVII esse conceito definido de depressão ainda não era muito comum. É interessante ressaltar que a depressão possui fases próprias, ela não se restringe só a uma tristeza profunda, ela perpassa por momentos de apatia, indiferença, desprezo à própria vida, auto-depreciação, entre outros. Ao longo de todo o enredo é possível ver essas características em Hamlet, por isso considero a depressão como um estágio fixo e muito presente no rapaz. Já em seu primeiro diálogo Hamlet demonstra seu estado depressivo,
"Meu senhor, nem este meu traje negro,
Nem as lágrimas que 'inda tenho aos olhos,
Nem o aspecto abatido do semblante
Nem tudo isso somado à imagem externa,
Iguala-se à tristeza do meu peito" (SHAKESPEARE, 2013, p.58)
A depressão é uma fase perigosa, a tristeza pode se tornar tão profunda que é como se a vida fosse sugada aos poucos, a cada lágrima caída, um pouco da vida se vai junto. É essa a fase em que se encara a dura realidade da perda. Hamlet, no trecho acima, descreve bem o aspecto da depressão em que ele se encontra, as vestes negras além de representar o luto, ainda podem ser assemelhadas a escuridão que assola o jovem príncipe, as lágrimas que nunca cessam, o semblante sempre desconsolado e a tristeza que oprime o peito. Freud afirma que "nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes como quando perdemos o nosso objeto amado"(FREUD, p.12), ainda mais quando o objeto amado é um pai. Os pais são as bases de sustentação de cada filho, Hamlet perdeu uma delas, e a outra esta bamba. É compreensível esperar que ao enfrentar sua dura realidade, ele reaja de alguma forma. A depressão é isso, o momento que vêm depois do confronto.
Com o decorrer da depressão, ela evolui para um estado de apatia, aquele momento no qual as lágrimas secam e tamanha é a sua dor que ela entorpece, sua presença é visível em um dos seus monólogos, no qual diz assim "Meu pai assassinado por um biltre, Fico inerte e deixo estar. Sou covarde!"(p.116). Hamlet não era um covarde, ele apenas se encontrava desolado, tomar uma atitude demanda muito esforço em circunstâncias assim como as que o rapaz passava.
Para chegar até a aceitação, Hamlet percorre um longo percurso, que durou ao todo quatro atos. É finalmente no quinto e último, que o príncipe se desvencilha de todos os outros estágios, para chegar ao principal, a aceitação. Depois de passar um tempo afastado, Hamlet retorna ao reino da Dinamarca e se depara com o velório de Ofélia. Aqui sua raiva é passado e seu coração se recorda dos sentimentos há muito guardados, só a partir da aceitação que é possível esse reaflorar. Hamlet já não se vê mais como covarde, dos seus olhos não vertem mais lágrimas, seu mundo interior está refeito, o que ele busca agora é o desfecho final. O príncipe dinamarquês é convidado para um duelo com Laertes, irmão de Ofélia e filho de Corambis, assessor da corte no qual Hamlet tirou-lhe a vida, sendo esta a causa da disputa, uma disputa de honra, uma na qual Hamlet conhece muito bem.
Sua primeira aceitação indubitável vem a partir do momento em que diz sim ao duelo. Em uma conversa com Horácio, quando este buscava desencorajá-lo, diz: "Não, Horácio, eu não; se o perigo for agora, não virá depois."(p.173) É esse o ponto em que ele aceita o destino, seja qual for, aceita que a vida tem um rumo e não cabe a ele evitar. Em seguida, durante o duelo, uma nova traição, uma conspiração, um novo atentado contra a sua própria vida. A rainha bebe do vinho que a Hamlet era destinado, em seu último suspiro avisa ao filho o ocorrido, depois tomba, inerte. Enquanto isso, Laertes e o príncipe ferem um ao outro, ambos estão condenados, pois os floretes foram envenenados. É esse o instante crucial da história, é quando a aceitação vem de todos os lados, não se restringe a perda do Rei, mas a da Rainha e a do seu destino, matar e morrer. Com o pouco tempo que lhe resta, Hamlet vinga a morte do pai, olho por olho, veneno por veneno. A vingança que há muito foi programada, finalmente foi arranjada. E a morte assim tão perto, perde todo o seu mistério, deixa de ser um assunto sério, é aceita de braços abertos. E nesse novo confronto com a morte, tudo que lhe resta é a aceitação: "Meus olhos já não veem, mi'a língua cala. Horácio, adeus. Que o céu receba mi'a alma!"(p.178)
Hamlet era um jovem sagaz, porém, não estava protegido das crueldades do mundo, não só foi atingido, como também foi gravemente ferido pelas tragédias da vida. Suas atitudes foram todas em consequência desses eventos, portanto, se em algum momento pareceu ter perdido a sanidade, foi pura incompreensão daqueles que julgam o que não se pode ver, nem medir. Uma sociedade na qual a morte ainda era um tabu, e a expressão do pesar era vista como fraqueza e loucura. E é numa situação assim que encaixo este trecho de Foucault: " a loucura aparece aqui como a punição cômica do saber e de sua presunção ignorante."(FOUCAULT, 1978 ,p.29), Hamlet sabia demais, seu pensamento estava sempre um passo a frente, mesmo quando estava perdido em suas dores, sua razão se manteve firme. Enquanto os outros, alheios ao seu conhecimento, presumiam-no como ignorante, sem poder ver sua própria ignorância. Concluindo, a ideia do estranho, do incompatível em relação à sociedade, originou a referência à insanidade, de modo que a realidade, que seria o luto, foi ofuscada. E é a partir dos estágios do luto que as supostas evidências aqui foram refutadas, Hamlet nunca perdeu sua razão.

Bibliografia:
KOVACS, Maria Julia (ORG). Morte e desenvolvimento humano. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1992.
KÜBLER-ROSS, Elisabeth. Sobre a morte e o morrer. Trad: Paulo Menezes. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
SHAKESPEARE, William. O Primeiro Hamlet In-Quarto de 1603. Trad: José Roberto O'Shea. São Paulo: Hedra, 2013.
FOUCAULT, Michel. A História da Loucura na Idade Clássica. Trad: José T. Coelho Netto. São Paulo: Perspectiva, 1978.
FREUD, Sigmund. O mal estar na civilização. Disponível em:
Acesso em: 29, nov, 2015.

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