As fontes de mergulho no concelho de mogAdouro

June 8, 2017 | Autor: Antero Neto | Categoria: Art History, Water resources
Share Embed


Descrição do Produto

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro Antero Neto*

Resumo – com este artigo pretende-se dar a conhecer, historicamente, as fontes de mergulho do concelho de Mogadouro, bem como realçar a sua importância enquanto peças monumentais de singular beleza na respectiva paisagem. Palavras-chave – Água; Fontes de mergulho; Mogadouro; Monumentos. Abstract – With this article we intend to publicize, historically, the diving points of the municipality of Mogadouro, as well as to emphasize its relevance while monumental marks of singular beauty in its respective scenery. Keywords – Water; Fountains dive; Mogadouro; Monuments.

_______________ * Advogado; investigador. Revista CEPIHS (Centro de Estudos e Promoção da Investigação Histórica e Social), 5, 2015, PP-PP

Antero Neto

1. A água A água acompanha a vida do homem nas sociedades pré-industriais e tradicionais, do nascimento até à morte, do baptismo aos ritos funerários1. Fonte – lugar onde brota água continuamente; nascente, água que nasce do solo; bica por onde corre água, construção provida de uma ou mais bicas ou torneiras por onde corre água potável2. Fontes e nascentes – distinção: na terminologia comum, fontes e nascentes confundem-se frequentemente no seu significado. Na linguagem jurídica, porém, só aparentemente são palavras sinónimas. Têm, na verdade significado próprio e distinto, inclusive, do ponto de vista etimológico. Nascente é o local onde a água nasce; onde a água brota naturalmente, sem intervenção humana. A nascente é alimentada, portanto, por água subterrânea que, espontaneamente, acorre à superfície. Fonte é o local adaptado pelo trabalho humano para recolha e captação da água, a qual pode, até, brotar em lugar afastado, num prédio alheio3. A água teve sempre uma importância capital na vida do ser humano. Seja na sua utilização directa, para consumo doméstico, seja no uso indirecto, nomeadamente na agricultura e pecuária, ou até nos transportes e ainda como fonte de produção de energia. O seu domínio e controlo têm constituído algumas das principais preocupações do Homem. Ele constrói represas, edifica estruturas hidráulicas, cria engenhos e labora no sentido de a aproveitar e rendibilizar, em períodos de escassez ou de abundância. Se necessário, vai procurá-la no subsolo e eleva-a até à superfície. A água constituiu-se inclusivamente como constante fonte de litígios, como ainda hoje sucede em certas zonas do país mais sensíveis, nomeadamente no Minho onde está enraizada forte regulamentação de origem consuetudinária na sua utilização pelos vizinhos. O legislador, movido pela força da tradição e pela referida importância nas relações comunitárias, regulou o seu uso, conferindo-lhe particular importância Daniel Roche, História das Coisas Banais, Círculo de Leitores, Lisboa, 1999, p. 150. Dicionário da Língua Portuguesa 2003, Porto Editora, Porto, 2003, p. 773 3 José Cândido de Pinho, As Águas no Código Civil, Livraria Almedina, Coimbra, 1985, p. 60. 1 2

2

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

no domínio do chamado Direito Civil4. E os Estados soberanos viram-se na contingência de regulamentar o aproveitamento dos cursos hídricos, que são comuns aos países confinantes, como é, entre outros, o caso do rio Douro no percurso internacional que divide Portugal e Espanha. E se atentarmos bem na localização dos mais antigos habitats humanos conhecidos na nossa região, eles situam-se, sistematicamente, em locais muito próximos de cursos de água corrente ou de nascentes, levando, inclusivamente, os arqueólogos a mencionarem as diferentes tipologias de núcleos castrejos, tendo como referência os rios Sabor e Douro. E os núcleos urbanos que perduraram até hoje, foram invariavelmente crescendo em torno de fontanários ou tanques de recolha e abastecimento de água, tal como as quintas isoladas, que tinham sempre um ponto de água muito próximo. As cisternas eram elemento fundamental em qualquer centro fortificado, como se pode ainda hoje verificar no castelo de Mogadouro, onde o algibe local se conservou, situado bem no núcleo da estrutura amuralhada. Veja-se, também nesse sentido, o caso de Bemposta, no concelho de Mogadouro, onde D. Dinis, quando lhe concedeu foral em 1315, fez questão de advertir os seus futuros moradores de que, quando fosse construída a muralha, deveriam ter o cuidado de deixar o poço de abastecimento de água no seu interior5. A água encontra-se associada a locais sagrados desde a pré-história. Alguns dos principais painéis de gravuras rupestres do concelho de Mogadouro e limítrofes (“Fragas do Diabo”, em Vila dos Sinos, Mogadouro, ou “Abrigo do Passadeiro”, em Palaçoulo, Miranda do Douro, por exemplo), estão normalmente agregados, ou muito perto, de pontos aquíferos. Na freguesia de Meirinhos, concelho de Mogadouro, existe um painel de gravuras filiformes, num sítio denominado “Fonte de Prado Rodela”, Vide, a título de exemplo, os seguintes artigos do Código Civil em vigor: 1386.º e 1387.º, que regulam o uso das águas particulares; 1393.º, que diz respeito às águas pluviais, de lagos e lagoas; 1398.º a 1402.º, que regem o condomínio das águas; 1352.º, que se preocupa com obras defensivas das mesmas, etc. 5 “Que façam em na dicta Pobra da Bemposta hüa çerca de muro de cento e sasseenta braças en derredor e que colham dentro huum poço que hy esta e que faça de guisa que aja agua dentro en a cerca”. Cf. Maria Alegria Fernandes Marques, Espaços e Poderes Mogadouro: Forais, Concelhos e Senhores, Câmara Municipal de Mogadouro, Mogadouro, 2010, p. 118. 4

CEPIHS | 5

3

Antero Neto

que se situa mesmo em cima de uma nascente de água que nunca seca6. O investigador e epigrafista australiano Barry Fell, professor da Universidade de Harvard, que ali foi conduzido por Santos Júnior, interpretou as gravuras como sendo um texto contendo uma oração dedicada às divindades Mabo e Byanu, declarando essas águas como sagradas7. A sacralização da água foi, igualmente, uma característica da civilização romana e das que se lhe seguiram. Os romanos construíram muitas fontes de mergulho, em aproveitamento de locais de emergência superficial de água, fazendo delas um ponto importante de abastecimento da comunidade urbana. E depois deles, com o advento e generalização do culto cristão, a maior parte das fontes de mergulho, de diversos períodos cronológicos, foram sacralizadas através da aposição de uma cruz no topo da respectiva estrutura, como se pode observar na generalidade dos exemplares existentes. 2. As fontes do concelho de Mogadouro nas Memórias Paroquiais de 1758 Por determinação do Marquês de Pombal, e sob a égide do rei D. José i, o padre Luís Cardoso levou a efeito um inquérito dirigido a todos os párocos do país para aquilatar do estado da nação, após o terramoto de Lisboa, ocorrido em 1755. Tal devassa ficou conhecida para a posteridade como As Memórias Paroquiais de 1758. O questionário dividia-se em três partes distintas, sendo cada uma composta por várias perguntas. A primeira parte, sob a epígrafe “o que se procura saber dessa terra é o seguinte”, continha um item, com o número vinte e três, que indagava “se há na terra ou perto dela, alguma fonte, ou lagoa célebre e se as suas águas têm alguma especial qualidade”. Das respostas fornecidas pelos párocos do actual concelho de Mogadouro, destacam-se algumas no sentido positivo, com indicação das fontes que lhes pareceram ser dignas Segundo informação fornecida ao autor pelo actual proprietário do terreno, sr. Laurindo, a fonte nunca seca, mesmo em anos de carestia extrema do precioso líquido. 7 “The Fountain is sacred to Mabo, the crags above are sacred to his mother Byanu the fruitful (…)”. Cf. Barry Fell, The Galician Ogam Consaine Inscription At Prado da Rodela, Northeast Portugal, in “The Epigraphic Society”, vol. 12, N.º 281, USA, Junho de 1984, p. 16. 6

4

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

de menção. Assim, começando pela Quinta do Marmoniz, nos arrabaldes da vila de Mogadouro, o pároco Luís de Carvalho referiu que, “além das mais fontes e tanques que na mesma Quinta se acha a incigne fonte vulgo de Sam Luis com especial e exprimentavel virtude pera os achacados de dores neufriticas”8. Por sua vez, o pároco de Paradela, João Martins, menciona uma fonte, sita no Vale do Manco “cujas agoas (…) tem virtude para curar sarna e outros achaques, dia de S. João Baptista (…) e dia de S. Pedro (…) e alguns dizem que a todos os terceiros domingos dos meses”9. Em Penas Róias, o cura Francisco Martins fala-nos de uma fonte que é “feita de cantaria lavrada, com sua capella segura, que não consta haver outra como ella”10. O prelado referia-se, seguramente, à fonte que haveremos de descrever infra, a qual, segundo as suas palavras, tem águas muito frescas no Verão e com características singulares. Em Peredo da Bemposta volta a falar-se nas propriedades milagrosas da água, quando o padre Thomé Luís, a propósito da “fonte de Sam Joam”, diz que “quem se meter nella na manhã de Sam Joam tira a sarna”11. Em Sanhoane, é-nos dada a conhecer uma fonte “bem feita de cantaria que também corre sempre algumas vezes”12. O padre António Correa, de Vale de Porco, descreve-nos um tanque que lança “três olhos de agoa no fundo delle que hé fraga, hum de agoa muito branca e outro de agoa ferrada e outro de agoa muito negra”13. Finalmente, Manuel de Sequeira, cura de Ventozelo, alude à existência de quatro fontes, mas com águas fracas, ou com pouco caudal. A excepção vai para a fonte de “Val de Rudellos, a qual tem boa e salutífera agoa”14. De forma geral, a descrição das fontes referidas é bastante genérica e sem pormenores arquitectónicos, com excepção da já assinalada de Penas Róias. Os restantes sacerdotes que responderam ao inquérito dão a entender que havia fontes em todos os lugares, mas as suas águas não eram dignas José Viriato Capela et al., As Freguesias do Distrito de Bragança nas Memórias Paroquiais de 1758, Memórias, História e Património, Braga, 2007, p. 550. 9 Idem, p. 552. 10 Idem, p. 554. 11 Idem, p 556. 12 Idem, p. 562. 13 Idem, p. 567. 14 Idem, p. 570. 8

CEPIHS | 5

5

Antero Neto

de registo, por não possuírem qualquer qualidade especial. Das respostas positivas, infere-se outro pormenor curioso que se prende com a crença popular nas propriedades curativas da água de determinadas fontes, ligada, nalguns casos, a uma lenda muito comum relacionada com as noites de S. João, cuja origem nos remete para raízes pagãs associadas à fertilidade, à saúde e à felicidade, interligadas com o culto do sol, mas também da água dos rios, das nascentes e das fontes15. 3. As fontes de mergulho As apelidadas “fontes de mergulho”, que também são conhecidas nalgumas zonas do país por “fontes de chafurdo”,16 têm este nome devido ao facto de ser necessário imergir nelas o recipiente para recolher a água. Estas estruturas permitem a decantação de impurezas, facilitam a recolha da água pela população e caracterizam-se por terem uma cota de drenagem colocada num patamar superior ao do reservatório. Algumas delas possuem acesso ao receptáculo através de alguns degraus e outras têm, ainda, descansos laterais para repouso de quem aguardava a sua vez, como ainda se pode observar em Vilarinho dos Galegos (fig. 1), ou em Castro Vicente (fig. 2). Normalmente, como vasilha de recolha e transporte, era usado o cântaro, ou a cantarinha de barro, que as mulheres carregavam à cabeça sobre uma rodilha de pano ou de palha. No passado, estas fontes eram os únicos pontos de abastecimento de água das localidades. Contudo, o seu uso generalizado e, por vezes, promíscuo fez com que correntemente se transformassem em pólos de contágio e disseminação “As Quinquárias, levadas a efeito no dia 13 do mesmo mês pelos tocadores de flauta, e as festas dos pastores em honra de Pales, celebradas a xi das calendas de Maio (21 de Abril), que, embora não caíssem em Junho, se relacionam com o costume de banhar os gados nos rios durante as manhãs de São João e São Pedro, por estar a água benta, pois também naquele dia os pastores romanos pecura sua lustrabant”. Cf. Francisco Manuel Alves, Abade de Baçal, Memórias Arqueológico-Históricas do Distrito de Bragança, Câmara Municipal de Bragança/Instituto Português dos Museus – Museu do Abade de Baçal, Bragança, 2000, vol. ix, pág. 309. 16 “CHAFURDO top. ant. (fonte do…, Amadora) e s. m. ant. (não regs.), de chafurdar* - lg. onde se chafurda; fonte de mergulho (imersão de vasilhas); cp. chafurdais”. Cf. Adalberto Alves, Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, INCM, Lisboa, 2013, p. 383. 15

6

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

de doenças, conduzindo facilmente ao aparecimento e alastramento de epidemias (febre amarela, nos séculos xviii e xix, e cólera, no século xx, vg, que dizimaram uma fatia significativa da população). Ainda no séc. xix, a propósito das medidas de combate aos surtos epidémicos mencionados, era proposto pelos técnicos incumbidos de elaborar estudos de diagnóstico do estado de saúde da nação, que se desse “agoa de boa qualidade ás povoações sequiosas, e onde não houver filtre-se cuidadosamente. Encanem-se os rios: sangrem-se os charcos e paúes (…)”17. A propagação das pandemias e a sua associação à má qualidade da água dessas fontes originou a sua perda de protagonismo, sendo paulatinamente substituídas pelas fontes de água corrente – as chamadas “bicas”, ou “fontanários” – e, recentemente, pelo abastecimento de água aos domicílios.18 A desactivação das fontes de mergulho constituiu uma preocupação das autoridades, perante os sucessivos relatórios oficiais que as apontavam como sinónimo de atraso e pobreza e, não menos importante, como ameaça sanitária. Veja-se, a título exemplificativo, uma carta escrita pelo governador civil do distrito de Aveiro, Francisco Vale Guimarães, a Marcelo Caetano, em 07 de Maio de 1969, onde manifestava extrema preocupação com as “fontes de chafurdo, onde bebem os animais e os homens”, pedindo ajuda ao chefe de governo para que fossem feitas obras que ajudassem a combater tal miséria 19. Ou, ainda, o que, em 1938, escreveu o inspector da área da saúde, Fernando da Silva Correia, a propósito do sistema de abastecimento de água às populações de Portugal: “abundam ainda no país os poços e outras fontes de mergulho, que nenhuma defesa têm contra enxurradas e toda a espécie de imundícies, poeiras, animais mortos, etc.”20. De acordo com o investigador Luís Conceição

José Félix Henriques Nogueira, Estudos Sobre a Reforma em Portugal,Vol. ii,Typographia do Progresso, Lisboa, 1851, p. 152. 18 Terá sido essa a origem do velho ditado popular: “Água corrente não mata gente”? 19 José Freire Antunes (prefácio e organização de), Cartas Particulares a Marcello Caetano, 1.º Volume, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1985, p. 322. 20 Fernando da Silva Correia, Portugal Sanitário (Subsídios Para o Seu Estudo), Ministério do Interior, Direcção Geral de Saúde Pública, Lisboa, 1938, p. 295. 17

CEPIHS | 5

7

Antero Neto

(...) a distribuição da águas ao domicílio através de uma rede pública só adquire expressão, nas grandes cidades europeias, a partir definais do século xix (...). Em Portugal, o abastecimento domiciliário só toma expressão fora dos escassos grandes centros urbanos e nas comunidades rurais, após, Abril de 197421.

A água canalizada chegou à vila de Mogadouro na década de trinta do século xx, pela mão do então presidente do município, o capitão José Luís da Cruz, que governou os destinos concelhios entre 1930 e 1936. Tal facto ficou imortalizado pela voz popular que o aclamou dizendo: “Viva o capitão Cruz, que nos deu água e luz!” Contudo, na generalidade das freguesias rurais, o abastecimento de água às casas particulares só haveria de chegar já em plena década de oitenta do séc. xx. 4. As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro As fontes de mergulho foram sendo, felizmente, preservadas, não obstante a sua queda em desuso por parte do povo. Essa conservação não está isenta de críticas, pois em alguns casos o abuso, por exemplo, de cimento desvirtua visualmente esses verdadeiros monumentos, em regra, exemplares de rara beleza arquitectónica que ornamentam as nossas aldeias. Caracterizam-se, genericamente, pela planta rectangular, com cobertura de granito a duas águas, ultimada na frontaria com dois pináculos nos ângulos laterais rematados em forma de fogaréu, ou cilíndrica, e uma cruz no prospecto principal. Este pormenor confere-lhe um carácter monumental, a reforçar a sua importância, mais parecendo tratar-se de pequenos templos cristãos. A embocadura mais comum é em arco de volta inteira, ou de volta perfeita, semicircular, com a flecha igual ao raio. Este arco assenta em duas colunas. O tecto apresenta-se abobadado, sendo que, nalguns casos, como por exemplo em Vilarinho dos Galegos (cfr. fig. 1), Bemposta (fig. 3) e Figueirinha (fig. 4), o extradorso da Luís Filipe Pires da Conceição, A Consagração da água através da Arquitectura - Para uma Arquitectura da água, Dissertação para Doutoramento, apresentada à Universidade Técnica de Lisboa, Faculdade de Arquitectura - Departamento de Arquitectura, Lisboa, 1997, p. 339. 21

8

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

abóboda está visível, sem qualquer cobertura superior. Existem, ainda, algumas fontes de mergulho que fogem a esta configuração, apresentando uma aparência em forma de dólmen, sem qualquer pormenor arquitectónico relevante, limitando-se ao assentamento horizontal de uma laje granítica sobre três paredes ou lajes colocadas verticalmente, formando um rectângulo. Fontes deste género podem ser observadas em Sanhoane, Travanca ou Figueirinha (fig. 5), por exemplo. O seu aspecto é simples e de construção muito básica. No concelho de Mogadouro existem algumas fontes dignas de referência, nomeadamente, em Castro Vicente, Vilarinho dos Galegos, Valverde, Figueira, Azinhoso (fig. 6), Variz, Castelo Branco, Ventozelo, Bemposta, Figueirinha e Penas Róias. Em Castro Vicente, a construção da fonte de mergulho local aparenta remontar ao final do séc. xviii, pois além de ter uma inscrição no frontispício que indica a data de 1798, a sua decoração possui claras características arquitectónicas do estilo barroco, demarcando-se da aparência mais sóbria e rudimentar das restantes e afirmando-se pela sua rara beleza ornamental (cfr. fig. 2). A fonte de Castelo Branco destaca-se por possuir um colorido fresco com motivos religiosos, aparentando ser de inspiração votiva às almas do purgatório, pintado na parede do fundo, que é visível através da grade que protege o seu interior (fig. 7), muito embora não se possa afirmar que é único, uma vez que as restantes se encontram seladas. Por sua vez, em Ventozelo, a “fonte da vila” é um pequeno monumento de traça ligeiramente diferente das demais, pois possui embocadura em forma de arco quebrado ou ogival, ou seja, um arco pontiagudo constituído por dois arcos de círculo que se cortam no fecho, e não tem a habitual cobertura trabalhada em aparelho de granito (fig. 8). Esta, pode não ter sido construída, ou, como parece mais provável, foi destruída para reaproveitamento das pedras em edificações vizinhas. De acordo com a tradição oral recolhida in situ, os peregrinos dos caminhos de Santiago, que por ali passavam, mergulhavam nela os pés para curarem as chagas que os afligiam. Aí está um comportamento que seguramente contribuía para a mencionada propagação de doenças, a que atrás se aludiu. A designada “fonte da cruz”, de Penas Róias, foge igualmente à norma, pois ao contrário das restantes, CEPIHS | 5

9

Antero Neto

sobressai pela forma cúbica, encimada por coruchéu granítico de quatro lados, rematado por uma estrutura indefinida no seu vértice, que talvez tenha sustentado uma cruz (como o nome indicia), entretanto destruída ou desaparecida (fig. 9). Aparenta ser de construção medieval e ostenta nas suas paredes alguns altos-relevos, representando figurações faciais antropomorfas que acabam por lhe conferir singular beleza e interesse histórico, devendo ser alvo de particular atenção por parte dos estudiosos da arquitectura medieva. Quanto à natureza dos materiais utilizados na sua construção, e como já foi sendo adiantado, as fontes de mergulho do concelho de Mogadouro são, geralmente, edificadas em granito. As únicas excepções a esta regra foram observadas nas localidades de Valverde (União de Freguesias de Mogadouro, Valverde, Vale de Porco e Vilar do Rei), São Pedro (freguesia de Meirinhos) e Macedo do Peso (freguesia de S. Martinho do Peso), onde existem fontes de mergulho erigidas com recurso ao xisto, material menos resistente, logo, susceptível de mais fácil destruição. É abundante e bastante vulgar nalgumas áreas do concelho de Mogadouro. A aldeia de Valverde possui dois exemplares: um em xisto e outro em granito (fig.s 10 e 11). Na já descrita fonte de Castro Vicente, foram utilizados os dois tipos de rocha. A estrutura interior e a ornamentação exterior e respectiva cobertura são compostas de granito e o enchimento entre o casco exterior e o extradorso foi feito com pequenas peças de xisto e acabamento externo em argamassa. Numa lamentável atitude, que pode situar-se, cronologicamente, no período de desactivação das fontes de mergulho, pelas razões já citadas, entaiparam-se e selaram-se algumas delas (Figueira, Valverde e Azinhoso, por exemplo) com uma porta metálica maciça, que impede a contemplação do seu interior. Seria mais recomendável que se seguisse o exemplo de Castelo Branco, Bemposta e Sanhoane e se colocasse uma grade22. Com o gradeamento do acesso garante-se a segurança, permitindo, simultaneamente, a fruição da sua beleza a quem as visite.

Em Sanhoane, foi instalada uma grade para proteger a entrada da fonte porque, segundo o testemunho de um habitante, teria falecido ali, por afogamento, uma idosa da aldeia. 22

10

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

Associadas a estes pequenos monumentos, existem alguns mitos e tradições muito interessantes. Em Valverde, por exemplo, reza a lenda que as progenitoras diziam aos seus infantes para não irem sozinhos às fontes, pois havia lá uma moura encantada que os apanhava. Este aspecto denota já a preocupação com os perigos e tentações de quem ali ia, através do recurso à mitologia como regulador social23. Ir à fonte era tradicionalmente um trabalho próprio das mulheres. Contudo, os homens, sobretudo os mais moços, também ali se deslocavam, aproveitando para falar e para piscar o olho a alguma cachopa namoradeira que por lá aparecesse. As raparigas iam buscar água para a lida de casa, os rapazes iam dar de beber aos seus rebanhos… insensivelmente, a água torna-se mais necessária, o gado tem sede mais vezes, chega-se com pressa, parte-se com pena… aí se fizeram as primeiras festas, pés irrequietos de alegria, o gesto cordial já não bastava, a voz enchia-se de acentuações apaixonadas… Enfim, foi aí o verdadeiro berço dos povos e do puro cristal das fontes saíram os primeiros fogos do Amor24. As fontes acabavam por ser pontos de encontro, onde se debatiam assuntos de interesse generalizado da localidade, contribuindo de alguma forma para o cimento social dos lugares. Extinta a sua utilidade, e substituídas pelas modernas redes sociais da internet, perdura a sua peculiar aparência, confundindo-se com pequenos templos e conferindo às aldeias pontos de atracção arquitectónica e patrimonial que é imperioso preservar e, se possível, corrigir e evitar alguns pormenores da sua conservação, conforme se referiu supra.

“Desta leitura ressalta o facto de alguma mitologia, bem como alguma religiosidade popular, encerrarem em si uma preocupação pedagógica que enforma o sentir colectivo da comunidade, moldando-lhe alguns valores e criando uma espécie de axiologia normativa de génese e natureza oral, marcadamente tradicional, que dispensa o recurso a códices escritos, tendo igual, ou até superior, eficácia na moldagem de comportamentos comunitários”. Cf. Antero Neto, As Festas de Inverno e os Mascarados de Valverde, Lema d’Origem, Mogadouro, 2014, p. 66. 24 Daniel Roche, citando Jean-Jacques Rousseau, História das Coisas Banais, Lisboa, Círculo de Leitores, 1999, p. 158. 23

CEPIHS | 5

11

Antero Neto

Conclusão – tipologia das fontes de mergulho no concelho de Mogadouro Em jeito de conclusão, poderemos arriscar uma caracterização deste tipo de fontes tendo em conta, apenas, três aspectos específicos: os materiais utilizados na construção, o estilo arquitectónico e a sua cronologia. Quanto aos materiais utilizados, encontrámos fontes construídas em granito e em xisto, havendo algumas em que coexistem estes dois tipos de rochas. Relativamente ao estilo arquitectónico, detectámos três tipos distintos: em forma de dólmen, em forma de templo e ovaladas. E, finalmente, no que respeita à cronologia, concluímos não ser fácil situá-las, pela falta de documentos que nos forneçam referências concretas (com a excepção já referida das Memórias Paroquiais). Poderá admitir-se que as fontes em forma de dólmen serão as mais antigas, pela ausência de sofisticação na sua construção e porque o seu estilo nos sugere alguma semelhança com as necrópoles primitivas. As fontes em forma ovalada seguir-se-ão às primeiras, pois apesar de apresentarem alguma arte construtiva, ainda não possuem elementos ornamentais muito elaborados. Por fim, inferem-se como mais recentes as fontes em forma de templo, cuja edificação revela cuidados arquitectónicos mais pormenorizados, sugerindo-se a Idade Média e a transição para a Idade Moderna como os períodos mais prováveis do seu aparecimento. Não se exclui a hipótese de terem sido construídas em substituição de outras ali existentes, pois os locais já seriam certamente usados desde tempos remotos para abastecimento de água aos primitivos habitantes.

12

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

Fig. 1 – Vilarinho dos Galegos.

Fig. 2 – Castro Vicente

CEPIHS | 5

13

Antero Neto

Fig. 3 – Bemposta

Fig. 4 – Figueirinha

14

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

Fig. 5 – Figueirinha

Fig. 6 – Azinhoso

CEPIHS | 5

15

Antero Neto

Fig. 7 – Fresco com motivos religiosos na fonte de Castelo Branco

Fig. 8 – Ventozelo

16

CEPIHS |5

As fontes de mergulho no concelho de Mogadouro

Fig. 9 – Penas Róias

Fig. 10 – Fonte em xisto em Valverde (recuperada recentemente)

CEPIHS | 5

17

Antero Neto

Fig. 11 – Valverde

18

CEPIHS |5

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.