As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina

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Gabriel Banaggia

As forças do jarê Movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social. Orientador: Marcio Goldman

Rio de Janeiro 2013

Gabriel Banaggia

As forças do jarê Movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito parcial à obtenção do título de Doutor em Antropologia Social.

________________________________________ Marcio Goldman

________________________________________ Eduardo Viveiros de Castro

________________________________________ Miriam Rabelo

________________________________________ Carmen Opipari

________________________________________ Jérôme Souty

Rio de Janeiro, 25 de fevereiro de 2013.

BANAGGIA, Gabriel As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina / Gabriel Banaggia. – Rio de Janeiro: UFRJ/MN, 2013. 460 p. Orientador: Marcio Goldman Tese (Doutorado em Antropologia Social) – UFRJ, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2013. 1. Religiões afro-brasileiras. 2. Antropologia. 3. Jarê. 4. Chapada Diamantina. I. Goldman, Marcio. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional. III. Título.

Para Helder, Lúcia e Priscilla.

AGRADECIMENTOS

A Marcio Goldman, muito mais do que somente meu orientador, por uma convivência tão plena de ensinamentos que me deixa constantemente incapaz de eleger qual entre tantos seria afinal o principal motivo de minha admiração por ele. Aos demais professores que compõem minha banca, Eduardo Viveiros de Castro, Miriam Rabelo, Carmen Opipari e Jérôme Souty, por não só aceitarem gentilmente o convite para participar da defesa como terem sido, cada qual a seu modo, absolutamente inspiradores. Aos outros docentes e aos funcionários do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional e dependências, na secretaria, administração, copiadora, restaurante e, acima de tudo, biblioteca. À Capes e à Faperj, por proporcionarem minimamente as condições materiais necessárias à execução de um doutorado. A Paula Siqueira, pela revisão meticulosa e pelas sugestões valiosas. A Priscilla Banaggia e Geórgia Nunes, pela paciência para fazer o gráfico. A Calil Neto pela autorização para uso das fotos e a Roberto Sapucaia e Branco Pires, dos mapas. A Antonia Walford pela revisão do resumo em inglês. ––– A meus amigos ligados ao jarê de Lençóis, bem como àqueles que conheci predominantemente por meio deles: Ademário, Alessandro, Alice, Almerindo, Áurea, Betão, Bilico, Bina, Buda, Ceci, Conceição, Coquinho, Corró, Cosminho, Da Maré, Daiane, Daniel, Daso, Delza, Delzuíta, Dezinha, Didi, Dilza, Dina, Dinha, Eva, Gelinho, Guilé, Jerônimo, Julinda, Krisna, Leninha, Lourdes, Lúcia, Maria, Marileide, Milton, Mussum, Nalvinha, Nêga, Nena, Neto, Norma, Téinha, Raimunda, Ró, Samara, Sandoval, Sílvio, Tuta, Valdelice, Valdelice, Vanvan, Vâny, Wilson, Zefinha, Zuzinha. Espero que essa tese possa fazer jus ao tanto que me ensinaram. Aos demais amigos que fiz, e conhecidos com quem tive contato mais significativo, em Lençóis, não necessariamente ligados ao jarê: Alcino, Alexandre, Amy, André, Aninha, Beá, Betukka, Calil, Carminha, Célia, Clésia, Dan, Dani, Daniela, Danilo, Delmar, Dodó, Domingas, Edson, Eládio, Evandro, Gilson, Gilvano, Gina, Hugo, Hury, Izete, Jacy, Jair, Joana, Joana, Joana, Joaquim, Juanita, Kelly, Keu, Kim, Léo, Lisso, Luanda, Maísa, Mano, Mara, Mariana, Natalie, Neide, Ninha, Nivalda, Olivia, Roberto, Saci, Saskia, Salvador, Sarah, Suzy, Tabita, Tiãozinho, Túlio, Val, Vera, Vinny. Obrigado por tantos momentos. A todas as crianças de Lençóis, essa legião de vida a quem tive o grande prazer de ensinar e o maior ainda de com elas aprender.

––– A Carlão, Gino, Iara, José Carlos, Marta, Samuel e Tânia, pelas acolhidas generosas e pelas trocas intelectuais sempre estimulantes. A Ana, André, Bia, Bruno, Cecilia, Clara, Consolação, Edgar, Julia, Lu, Marina, Paula, Thiago, Virna, meus outros professores. A Aline, Amanda, Bia, Bruno, Camila, Clarisse, Edgar, Eric, Felipe, Felipe, Felipe, Guilherme, Indira, João, Karen, Kleyton, Laura, Luan, Malu, Manu, Marcelo, Marcos, Maria Elvira, Mariana, Orly, Pedro, Raphael, Rogério, Suzane, Tainah, Wal: minha experiência no Museu não teria sido a mesma sem vocês. A Ana, Antonia, Chubby, Fred, Gustavo, Gustavo, Ligia, Pedro, Renato, Romulo, Sal, Tiago, Uirá, Vitor, o pessoal que nem sempre está perto mas que está sempre por perto. ––– A Cabeça, Carol, Débora, Henrique, Mayra, Tamara, Tati, Vargas, as amizades novas que já nasceram antigas. A todas as pessoas de minha família, em especial meus pais, por terem me dado apoio incondicional, ainda que nem sempre tenha sido fácil. Se pude chegar até aqui, em grande parte foi por causa de vocês. A Ai, Baeta, Bob, Buiu, Clara, Cyro, Dudu, Fê, Flavia, Flavio, Galo, Gama, Guta, Luisa, Marcello, Marília, Marins, Marta, Pric, Sassá, Serginho, Sylvia, Tarsila, Timaum: desse ano não passa, pessoal. Obrigado por caminharem comigo. ––– A Leonardo, por fazer da minha vida, outra.

Resumo BANAGGIA, Gabriel 2013. As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina. Tese de Doutorado em Antropologia Social. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Essa tese é um estudo do jarê, religião de matriz africana existente somente na Chapada Diamantina, no centro do estado da Bahia, e que foi objeto de pouquíssimos trabalhos antropológicos até hoje. A tese foi composta com base em doze meses contínuos de trabalho de campo, a partir da cidade de Lençóis, considerada pelos adeptos o berço da religião e um de seus principais polos de difusão para o restante da região. Ainda de acordo com os adeptos, o jarê foi elaborado pelas “nagôs”, senhoras negras que, no século XIX, vieram para a região no surto de povoamento desencadeado pela descoberta de diamantes nas serras da Chapada. Para compreender o jarê contemporâneo, a tese recorre não só às muitas versões da história local como às recentes transformações pelas quais a região tem passado, com o surgimento do Parque Nacional da Chapada Diamantina desembocando no fim do garimpo e gerando uma economia voltada para o ecoturismo. A etnografia se concentrou em três casas de culto aparentadas, cujos líderes tiveram de se reorganizar após o falecimento do curador que iniciara a maior parte de seus adeptos e fora um dos maiores mestres do jarê de Lençóis. A tese apresenta os modos como os filhos-de-santo manejam um sistema de energias de modo a obter efeitos diversos, mobilizando criativamente as forças do jarê.

Palavras-chave Religiões afro-brasileiras; antropologia; jarê; Chapada Diamantina.

Abstract BANAGGIA, Gabriel 2013. As forças do jarê: movimento e criatividade na religião de matriz africana da Chapada Diamantina. Thesis for Doctor of Philosophy in Social Anthropology. Rio de Janeiro: Universidade Federal do Rio de Janeiro.

This thesis is a study of jarê, an African matrix religion that only exists in the Chapada Diamantina, located in the centre of the state of Bahia (Northeast Brazil). To this day jarê has been the object of very few anthropological studies. The thesis was based on twelve continuous months of fieldwork, focusing on the city of Lençóis, considered by the adepts to be the cradle of the religion and one of its main hubs of diffusion to the rest of the region. Also according to these adepts, jarê was developed by the nagôs, old black ladies who came to the region in the nineteenth century during the population surge triggered by the discovery of diamonds in the mountain ranges of the Chapada. To understand contemporary jarê, the thesis draws on not only the many versions of local history but also on the recent transformations that the region has been undergoing, with the establishment of the Chapada Diamantina National Park. This has resulted in the end of diamond prospecting and has given rise to an economy based on ecotourism. The ethnography focused on three related cult houses, whose leaders had to reorganize themselves after the death of the healer, one of the greatest masters of the jarê, who had initiated most of their adepts,. The thesis presents the ways in which the sons in sainthood manage a system of energies in order to obtain various effects, creatively mobilizing the forces of jarê.

Keywords Afro-brazilian religions; anthropology; jarê; Chapada Diamantina.

“Mas se me viesse de noite uma mulher. Se ela segurasse no colo o filho. E dissesse: cure meu filho. Eu diria: como é que se faz? Ela responderia: cure meu filho. Eu diria: também não sei. Ela responderia: cure meu filho. Então – então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é de noite – então estendo a mão e salvo uma criança. Porque é de noite, porque estou sozinha na noite de outra pessoa, porque este silêncio é muito grande para mim, porque tenho duas mãos para sacrificar a melhor delas e porque não tenho escolha.” – Clarice Lispector A legião estrangeira (1964: 98)

SUMÁRIO

Introdução Chegar

1

Capítulo 1 Pisar 1.1 Lençóis

22

1.2 Excursos

48

1.3 Caminhos

65

1.4 Criatividades

78

1.5 Profusões

86

Capítulo 2 Dançar 2.1 Negritudes

94

2.2 Pesquisas

121

2.3 Subversões

137

2.4 Jarês

151

2.5 Telurismos

177

Capítulo 3 Tombar 3.1 Associações

202

3.2 Resiliências

209

3.3 Registros

222

3.4 Sonhos

236

3.5 Propagações

255

Capítulo 4 Levantar 4.1 Tramas

275

4.2 Confidências

289

4.3 Caboclos

297

4.4 Forças

324

4.5 Vidas

340

Conclusão Voltar

348

Bibliografia

362

Índice

381

Anexos I Perfis

383

II Mapas

385

III Fotografias

388

IV Cantigas

426

Introdução – Chegar

“A academia não valoriza o tipo de conhecimento que eu tenho”. Esse diagnóstico me foi oferecido algumas vezes por um dos maiores amigos que fiz durante a pesquisa, especialmente quando falava a respeito dos motivos que o levaram a não ser aprovado em nenhum dos exames de ingresso em universidades públicas que havia prestado. Com tom de apenas ligeira indignação, ele acrescentava: “O vestibular quer medir o conhecimento escolar, mas não o que uma pessoa sabe”. Mesmo quando afirmam valorizar o saber oral tradicional, ele concluía, as universidades se interessam antes de tudo em transformá-lo em conhecimento escrito: codificá-lo, registrá-lo e removê-lo do local onde havia sido constituído, privando-lhe, no processo, de parte de sua potência. Um dos objetivos dessa tese envolve encarar essas críticas e contribuir para a alteração desse quadro, tanto se fundamentando numa apreciação do conhecimento tradicional naquilo que ele possui de interessante quanto mobilizando seu potencial transformativo para a antropologia e para além dela. Dito de outro modo, e motivado igualmente por eventos transcorridos no trabalho de campo, esse trabalho acadêmico visa lidar com questões levantadas por desenvolvimentos contemporâneos da antropologia. Assim, a partir da ideia de reversibilidade, procura operar uma inversão que possibilite que os mecanismos do pensamento antropológico sejam afetados por aquilo que as pessoas com quem se estuda dizem e demonstram a respeito da empreitada e de seus pressupostos. Para tanto, faz-se necessário investir em operações de simetrização que tornem as experiências vivenciadas no campo – aí incluídos os pontos de vista daqueles com quem a pesquisa é realizada – compreensíveis para leitores que não dispuseram do mesmo acesso aos ensinamentos em questão (Goldman 2008: 6-8). Trata-se, dessa forma, de diminuir

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assimetrias que em princípio dificultariam a comunicação dos saberes envolvidos, tornando ativo um potencial desestabilizante que não somente incide, de maneira mais direta, sobre os modos dominantes de pensar e definir a realidade como estabelece conexões com as forças minoritárias incontornavelmente aí existentes, fazendo-as ressoar (Goldman 2009: 117, 132; 2011: 424). Essa tese é também fruto de algumas das conclusões a que cheguei em minha dissertação de mestrado (Banaggia 2008: 193-207), essencialmente bibliográfica. Junto de – e com base em – outros autores (Goldman 1984: 123; Brown 1986: 227; Cavalcanti 1986: 9899; Serra 1995: 58-59; Goldman 2005: 105-106), ali defendi que os estudos contemporâneos a respeito das religiões de matriz africana no Brasil poderiam ser renovados por meio de uma série de opções que incluíam, em primeiro lugar, considerar as dimensões não conspícuas da vida mística dos membros dos terreiros e do cotidiano de uma comunidade de culto nos momentos não necessariamente ligados aos rituais religiosos. Em segundo lugar, para abdicar de uma proxêmica do distanciamento que supostamente seria condição da objetividade científica, apostar na configuração de uma antropologia que derivasse ao menos parcialmente do reconhecimento das reflexividades nativas específicas e das transformações que elas podem acarretar para a prática da pesquisa. Por último, numa escolha inextrincavelmente tanto política quanto metodológica – e conectada à anterior –, recusar assimetrias que fariam sobressair os códigos de comunicação do etnógrafo em detrimento dos nativos. Colocá-las em prática, como sugerido, estimularia a retomada de estudos que também levassem em conta aspectos rituais e simbólicos dessas religiões, a serem descritos de forma detalhada a partir da experiência etnográfica.

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Leituras realizadas num curso do doutorado abriram a possibilidade de estudar o jarê, a religião de matriz africana da Chapada Diamantina, área serrana de clima semiárido localizada no centro do estado da Bahia, descrita de modo mais detido adiante 1. Até aquele momento só haviam sido realizadas duas pesquisas sobre o jarê, que serão apresentadas de forma resumida abaixo, bem como se contava um espaço de tempo de mais de 20 anos da realização do trabalho de campo que embasou a mais recente delas. Estudar o jarê na contemporaneidade configurava também uma aposta de aprofundar a descrição de uma religião de matriz africana que não se localiza no litoral, domínio etnográfico no qual historicamente se concentra a maior parte das pesquisas da área no Brasil (Maxado 1998: 27). A realização do trabalho de campo numa cidade pequena acabou facilitando uma aproximação mais íntima com o cotidiano dos adeptos da religião mesmo nos momentos em que não estavam lidando com afazeres diretamente ligados aos cultos. Simultaneamente, essa tese existe enquanto parte de um projeto elaborado por um conjunto de pesquisadores interessado em voltar a considerar a iniciativa de Roger Bastide (1960) de construir um quadro comparativo das religiões de matriz africana no Brasil, proposta cuja retomada havia sido recentemente sugerida (Serra 1995: 10, 129; Goldman 2009: 107-108 nota 3), elaborando um estudo sinóptico das religiões surgidas na diáspora negra, possibilitado pela existência, nos dias de hoje, de uma base etnográfica e conceitual em moldes contemporâneos mais ampla do que a que se costumava dispor há alguns anos2. Para tanto, a proposta é encarar essas religiões sob uma perspectiva transformacional, considerando que as diferenças existentes entre elas podem ser pensadas enquanto transformações umas das

1 2

Ver mapa do entorno da região estudada no anexo II.

Como os trabalhos de Anjos (2006), Cardoso (2004), Corrêa (1992), Halloy (2005), Iriart (1998), Johnson (2002), Opipari (2004), Sansi (2003), Segato (1995) e Wafer (1991), além de outras menos recentes como os de Cossard (1970; 2006), Leacock & Leacock (1972), Lima (1977) e Serra (1978). Entre as teses dos alunos que fazem parte desse grupo de pesquisa já se encontram concluídas as de Edgar Rodrigues Barbosa Neto (2012), Maria da Consolação Lucinda (2012) e Paula Siqueira (2012), às quais deverão se somar, além desta, as de Clara Mariani Flaksman e Bianca Arruda.

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outras, sugerindo que todas podem fazer parte de um contínuo heterogêneo. A opção pela utilização do termo matriz na designação desse conjunto de religiões se reporta a uma dupla significação: ele pode ser entendido ao mesmo tempo em seu sentido generativo – respeitando a utilização nativa que as relaciona a uma África não necessariamente real, imaginária ou simbólica, mas sobretudo existencial – como em seu sentido matemático – que evidencia arranjos e transformações entre elas (Goldman 2011: 427 nota 2). De todo modo, essa tese propõe ser antes de tudo uma etnografia, seu objetivo principal sendo o de produzir um sistema de referência fundado na experiência etnográfica e dotado de uma relativa independência tanto do pesquisador como do objeto estudado. Para tanto, ela busca apresentar o ponto de vista dos adeptos do jarê e, quando possível, estendê-lo de modo a incluir na descrição as formas como suas perspectivas também se dirigem – ou podem ser dirigidas – para nossos próprios conceitos, transformando-os criativamente. Nessa acepção, a produção de uma etnografia depende da capacidade de ouvir o que os nativos têm a dizer e de levar a sério suas hipóteses e proposições o máximo possível, de modo a ser continuamente posto em movimento por elas (Goldman 2009: 118 nota 11, 130). O resultado final desse processo é um registro textual que não é mera descrição, mas que se constitui numa disposição (“deployment”) entremeada que procura evitar ter de acrescentar explicações àquilo que se descreve: trata-se de uma narrativa plena de atores cujas reflexões encontram-se nela integralmente apresentadas (Latour 2005: 128, 136-137, 144). Segundo a perspectiva transformacional proposta, todavia, uma etnografia tampouco prescinde de conexões com outras práticas, por mais que recuse a necessidade de recorrer a teorias de ordem superior para a disposição da inteligibilidade presente no próprio plano etnográfico. Ao contrário, ela propõe que o aprofundamento da perspectiva etnográfica permite a multiplicação das versões que podem ser postas em contato e se iluminar mutuamente, cada atualização sendo encarada como uma transformação de outras,

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transportando – não sem alterações – para o ritual o método da análise mitológica proposto por Lévi-Strauss (Goldman 2009: 110-111; Banaggia 2011: 358-359; Goldman 2011: 418). Assim, por um lado, procuro apresentar ou estabelecer conexões entre o jarê da contemporaneidade e sua história, com isso querendo, mais do que comprovar continuidades ou sobrevivências, destacar as formas pelas quais os próprios adeptos as produzem contínua e criativamente3. Por outro lado, o jarê é ocasionalmente aposto tanto a suas diferentes modalidades como a outras religiões de matriz africana no Brasil, seus pontos de convergência e de divergência sendo mobilizados para a compreensão recíproca das práticas envolvidas.

O jarê foi observado pioneiramente por Ronaldo de Salles Senna, pesquisador nascido na Chapada Diamantina e que inaugurou na academia a investigação desse culto, especialmente com sua dissertação de mestrado, defendida na Universidade Federal da Bahia, e subsequente tese de doutorado, retomando o trabalho anterior, apresentada na Universidade de São Paulo. Os textos de Senna (1973; 1984; 1998; 2004), baseados em pesquisas empíricas feitas nas décadas de 1970 e 1980, falam a respeito dessa religião, caracterizada como uma variante de “candomblé de caboclos”, e suas ligações com a geografia física e humana da Chapada Diamantina. As referências a seguir, até nova indicação bibliográfica, reportam-se ao livro de Senna (1998), sua obra mais completa e que é também a versão publicada, com pequenos acréscimos, de sua tese de doutorado, na qual se encontram as principais

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Trata-se, como já se falou a respeito de outras diversidades socioambientais, não de “uma questão de preservação, mas de perseverança”, fazendo então não constatações analíticas, mas reconhecendo os efeitos concretos de uma luta travada permanentemente (Viveiros de Castro 2011: 9).

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contribuições do autor ao estudo do jarê, tendo visitado mais de uma centena de casas de culto (: 38, 76). Senna distingue na Chapada Diamantina a existência de duas áreas conforme a dependência da economia garimpeira, chamando-as de “Região das Lavras”, originada da corrida para obtenção de pedras preciosas, e “Zona Agrícola”, de povoamento posterior – especialmente no que diz respeito à formação de suas cidades –, surgida da necessidade de abastecer a primeira com gêneros alimentícios em função de seu adensamento populacional. Segundo o autor, o jarê seguiu o mesmo movimento, tendo surgido e se consolidado nas cidades diamantíferas de Lençóis e Andaraí – ou ao menos, de forma mais comprovada, se difundido a partir delas. Daí, se espalhou para os municípios que não possuíam diamantes, passando, no processo, por alterações que geraram desdobramentos no estilo do culto. Os jarês dessas áreas, prossegue ele, mais ligados ao catolicismo popular rural, enfatizaram os rituais de cura, enquanto os realizados pela população garimpeira, de origem mais marcada pela escravidão, priorizaram as práticas de adoração a entidades e de preservação de uma memória étnica, mais ligadas ao “vetor afro-brasileiro” da religião (: 36, 41, 49, 75, 79, 8687). O jarê, defende Senna, deve ter surgido da sobreposição de elementos nagô a um substrato religioso de fundamento banto, no século XIX, conforme indicam determinados componentes linguísticos e relatos dos mais antigos habitantes da região, tendo ocorrido na Chapada Diamantina um processo muito similar ao que gerou os candomblés no restante do país (: 65, 68). A grande variabilidade das expressões religiosas da região não impede que sejam referidas pelo mesmo nome, já que o jarê é “um rótulo sob o qual se abriga uma quantidade indefinida, porque desdobrável, de crenças, cultos e rituais que se expandem e se retraem ao sabor das necessidades e conveniências” (: 66). O autor estima a existência, à época, de duas a três centenas de casas de jarê na Chapada Diamantina, distribuídas em pouco

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mais de uma dezena de municípios (: 83). Em sua obra, Senna chama atenção para as possíveis divisões que formam os conjuntos de espíritos mobilizados no jarê, bem como para as maneiras como, por meio de cantigas, essas entidades são chamadas a comparecer nos terreiros tomando os corpos dos filhos-de-santo, sendo cultuadas e por fim deixando o espaço ritual (: 115-124). Falando a respeito dos rituais de curas, o autor indica como eles ocorrem com base em um embate de forças que devem ser postas em contato e movimentadas umas pelas outras, como já ocorre de modo incipiente durante a consulta divinatória (: 118, 160-161). Os maiores líderes do jarê, prossegue, funcionam como espécie de “para-raios”, atraindo para si determinadas influências que em seguida serão capazes de canalizar (: 164). Senna também trata das configurações comuns do campo religioso nas cidades da Chapada, do ponto do vista dos adeptos do jarê, mostrando as intercessões e afastamentos que ali se processam (: 170174). O autor fala igualmente da “visão de mundo do jarê”, discorrendo sobre o papel dos líderes do culto e suas ações terapêuticas e rituais, bem como a respeito da constituição das entidades às quais os adeptos têm acesso (: 175-228). Boa parte do livro de Senna é dedicada à transcrição de cantigas do jarê e interpretação das possíveis origens e significados das mesmas, bem como a um apanhado bastante amplo do andamento de uma cerimônia abstrata para exemplificar o que costuma transcorrer durante uma ocasião ritual qualquer (: 115-158). Como ele próprio afirma de saída, trata-se de uma pesquisa “socioantropológica” realizada com “apoio etnográfico” (: 1), oferecendo assim um sobrevoo bastante abrangente e inédito do jarê. O único outro trabalho acadêmico de porte sobre o jarê é a excelente tese de doutorado de Miriam Rabelo (1990)4 – à qual as próximas indicações de página farão referência –, baseada em pesquisa de campo realizada no final da década de 1980. Trata-se, como será 4

A tese não foi publicada como livro, sua autora tendo escrito artigos a respeito do jarê (Rabelo 1993; Rabelo & Alves 1997; 2009) e tendo se dirigindo a outros campos etnográficos.

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visto, de uma investigação anterior a importantes transformações na região, em grande parte derivadas do término efetivo do garimpo na segunda metade dos anos 1990, ainda que a dependência da economia garimpeira do local estudado pela autora não seja do mesmo grau daquela existente na região das Lavras Diamantinas (: 97). O trabalho de campo de Rabelo foi realizado em Nova Redenção, à época um distrito do município de Andaraí e hoje emancipado deste. Ainda que trate também das Comunidades Eclesiais de Base, já então em declínio no local, o principal tema da tese de Rabelo é o jarê de uma localidade voltada para a produção agrícola e não para o garimpo. Tanto o jarê como aqueles agrupamentos de inspiração católica, de todo modo, são apresentados não só comparativamente como conectados à realidade local, numa perspectiva etnográfica que aprofunda inúmeras das intuições inicialmente apontadas por Senna – além de apresentar diversas outras originais – e explicitamente pondo em xeque, em favor da ênfase na práxis religiosa em contextos de interação, tanto a necessidade de congruência direta entre religião e comportamento como a ideia de um mercado de bens simbólicos postuladas por determinadas análises (: 3-7, 12, 1519). O objetivo da tese de Rabelo é o de entender de que modo os coletivos em questão vivenciam suas imagens religiosas, isto é, como elas são criadas, usadas, interpretadas e reformadas em seu cotidiano (: 15). O texto fornece de saída uma história da formação religiosa do Nordeste brasileiro, apresentando a constituição do sincretismo e da religiosidade popular presentes na região, bem como indicando de que forma o jarê apresenta um contraponto à visão da historiografia tradicional (: 25-26). Entre outras características do catolicismo popular, que ali influencia o jarê de forma mais pronunciada do que nas regiões diamantíferas, a autora destaca as trocas que permeiam a relação entre santos e devotos, marcada pela proximidade daqueles que no passado viveram como estes agora vivem (: 52-58, 147). Rabelo registra a história local também do modo como é contada pelos habitantes de Nova Redenção, distrito voltado para a

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produção de mamona substituindo a anterior cana-de-açúcar, e cujos líderes religiosos, em grau ainda menor do que ocorre nas áreas com extração do diamante, não são vistos como guardiões da memória africana como costuma ser o caso no candomblé (: 82-86, 111). A tese conta com detalhadas narrativas e descrições a respeito da vida de alguns pais-de-santo, do espaço ritual de uma casa de culto e dos frequentadores dos terreiros (: 111-180). As experiências de cura no jarê investigadas por Rabelo lhe mostraram as formas pelas quais na vivência do doente figuram proeminentemente as sensações de incerteza e complexidade na busca de um tratamento, suscitando dúvida e perplexidade em relação ao mundo cotidiano (: 189-191). Com base no processo divinatório – que em geral consiste num jogo de búzios –, a trajetória recente do enfermo é passada em revista, o líder religioso conduzindo a geração de uma narrativa compartilhada que escapa a conexões causais monocórdicas, contrariando os modelos universais e despersonalizados da medicina científica (: 195). No jarê, a autora prossegue, a cura se dá por meio da aceitação dos termos de uma relação duradoura entre o doente e um ou mais entes externos e intrusivos com quem haverá um processo de negociação, deixando de lado a ideia de que determinadas alterações são fruto da perturbação de estados mentais interiores (: 202-203, 222 nota 6). A cura, como explica sua tese, se processa enfim por meio de um ingresso na narrativa do paciente, com o chefe do terreiro ganhando acesso a – e reconduzindo – uma cadeia de eventos e sentimentos que configuram a experiência subjetiva do sofredor, processando o redirecionamento do argumento principal da história que ambos (re)construíram juntos (: 209-215). No texto, o final da descrição a respeito do jarê focaliza seu ritual (: 224-261), oferecendo um relato sobre as incorporações nos terreiros e indicando também de que modo os eventos observados em Nova Redenção (: 229-230) se aproximam ou se diferenciam do modelo proposto pela tese de Senna para o culto como um todo na Chapada Diamantina. Nas passagens que elucidam alguns dos muitos sentidos que pode receber o primeiro dos dois

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termos que dão título à tese de Rabelo, a autora mostra como também é fundamental o caráter de entretenimento das ocasiões cerimoniais, lembrando que no jarê não são apenas os adeptos que se divertem: as próprias entidades têm como motivo expresso virem às casas de culto para brincar e vadiar, tornando os eventos celebrações duplas (: 268-270). Surgem como objeto de culto no jarê, a tese prossegue, tanto a alegria em si como a beleza, características centrais para a apreciação das cerimônias, ambas conectando fortemente no ritual observação e participação ativas (: 271, 274-275). Antes de se voltar para a descrição das Comunidades Eclesiais de Base e uma comparação entre estas e o jarê (: 303-389), a autora indica a importância, para a compreensão do ritual no jarê, de não se limitar nem às análises de cosmologias subjacentes à ação, nem às correspondências simbólicas entre sistemas de significação e sistemas sociológicos, dando ênfase ao desempenho ritual e ao caráter dialógico que os próprios participantes lhe concedem (: 289-291, 300). Essa tese busca se inserir na continuidade do processo de investigação do jarê representado pela de Rabelo, dando prosseguimento à proposta inicial contida no panorama de Senna de realizar estudos etnográficos detalhados do jarê nas duas grandes áreas da Chapada Diamantina que ele propõe distinguir. Enquanto o estudo de Rabelo teve por base a investigação do culto num distrito agrícola, minha etnografia se dedica aos jarês da cidade de Lençóis5, considerada pelos adeptos e pela literatura o berço da religião e tendo sido historicamente o principal foco de exploração e comércio do diamante na região (Rabelo 1990: 384; Senna 1998: 36, 78-79, 86). De modo similar, enquanto o estudo de Rabelo foi realizado com base numa maior proximidade com as mulheres (Rabelo 1990: 168-173), meu próprio trabalho de campo muitas vezes foi realizado junto aos homens que frequentam os jarês, terminando numa aposta de que ambos os trabalhos possam suprir os intervalos um do outro de maneira frutífera, ponto que será retomado ao longo dos capítulos da tese. De

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O anexo II conta com um mapa da cidade.

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qualquer forma, o presente trabalho apresenta o jarê encontrado contemporaneamente na cidade de Lençóis, sem pretender que seus dados possam ser estendidos para jarês mais rurais como era o de Nova Redenção, a respeito dos quais ainda não há novos estudos6.

No dizer de seus adeptos, a palavra jarê pode designar tanto a religião de maneira geral como qualquer uma de suas ocasiões rituais: diz-se tanto “gosto muito de jarê” como “o jarê do último sábado foi ótimo”. Seu primeiro pesquisador faz recurso a algumas possíveis etimologias registradas para a palavra “jaré”, de origem provavelmente iorubá, significando ou “quase cair ao solo” ou “cortar através” (Cacciatore 1977: 158 apud Senna 1998: 69), ambas bastante relevantes por enfatizarem aspectos do culto que serão detalhados posteriormente. Outra alternativa aventada pelo mesmo autor é que jarê seja uma corruptela de “njale”, nome de uma cerimônia de caçadores que habitavam regiões que hoje são Nigéria e Benim (Yeda Pessoa de Castro, comunicação pessoal apud Senna 1998: 69 nota 36). Como ficará claro, o recurso a essas fontes bibliográficas segue o mesmo motivo pelo qual a maior parte das citações que surgirão ao longo do corpo da tese será feita: tanto documentos históricos como a literatura acadêmica disponível são mobilizados antes de tudo com o objetivo de desencadear efeitos etnográficos (Strathern 1999: 241) específicos ao acompanharem o argumento, sem que exista o intuito de exaurir as contribuições bibliográficas existentes. Dados técnicos iniciais sobre a religião e o local de estudo são reservados a essa introdução.

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De todo modo, há ao menos uma outra antropóloga se dedicando ao estudo do jarê contemporâneo, a doutoranda da Universidade de Brasília Carolina Pedreira, sob orientação da professora Rita Laura Segato, com trabalho de campo realizado no município de Andaraí.

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Meu trabalho de campo foi realizado durante 12 meses ininterruptos, entre maio de 2009 e maio de 2010, residindo na cidade de Lençóis, ao longo dos quais conheci uma quinzena de casas de culto distintas, a maior parte situada na área desse município e algumas poucas localizadas na cidade vizinha de Andaraí. A soma de todas as celebrações rituais a que compareci encontra-se por volta de três dezenas, a maioria concentrando-se em três casas de jarê de Lençóis nas quais a pesquisa terminou por se centrar, como será detalhado adiante. Cada cerimônia pode transcorrer por uma quantidade variável de horas e se repartir também ao longo de mais de um dia, sendo incomum que durem menos de 5 ou mais de 10 horas seguidas em cada dia, bem como dificilmente acontecendo por mais de três dias consecutivos na contemporaneidade, em geral circunscritos a um ou dois efetivamente. Ao longo de cada celebração os frequentadores sensíveis à ação das entidades costumam chegar a receber até uma dezena delas por noite, resultando em eventos nos quais é possível que aconteça até perto de uma centena de incorporações distintas nas casas com maior número de adeptos. De todo modo, e em muitos aspectos até de forma mais importante, foi igualmente fundamental acompanhar os adeptos em seu cotidiano fora das ocasiões rituais, tanto nos momentos próximos como nos mais distantes dos jarês. Muito do que pude aprender a respeito da vida tanto no culto como fora dele se deveu a compartilhar com os lençoenses seu dia a dia tipicamente sossegado.

A formação geológica que recebeu o nome de Chapada Diamantina apresenta-se como um planalto extenso de altitudes médias variando entre 800 e 1.000 metros, pontuada por picos que ultrapassam os 2.000 metros. É parte da Cadeia do Espinhaço, constituindo igualmente um divisor de águas entre a bacia do São Francisco e os rios que se dirigem

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diretamente para o Atlântico, estendendo-se ela própria pelas bacias dos rios Paraguaçu e Jacuípe. Como unidade geomórfica, abrange aproximadamente 38 mil quilômetros quadrados, no centro do estado da Bahia, representando 7% de sua área total. De modo geral, quando mencionam a Chapada Diamantina, muitos de seus habitantes e visitantes referem-se mais diretamente a sua porção centro-leste, área que efetivamente é somente a da chamada Serra do Sincorá, igualmente onde se encontram as Lavras Diamantinas que emprestam nome ao conjunto da formação. Na Serra do Sincorá existe um encontro de transição ecológica entre três tipos de vegetação distintos, reunindo florestas de planície a leste, caatinga a oeste e vegetação de altitude nas serras. A área das Lavras Diamantinas especificamente pode ser marcada pelo território que se espalha por um quadrângulo cujos vértices seriam as cidades de Lençóis, Andaraí, Palmeiras e Mucugê. É praticamente essa mesma área que marca os limites do Parque Nacional da Chapada Diamantina, que por sua vez representa menos de 4% da área total das serras da Chapada, e cujo processo de surgimento será descrito posteriormente (Funch 2007: 11-13, 176). Diferentemente das demais áreas da Chapada, em geral bem mais secas, a Serra do Sincorá recebe chuvas abundantes em determinados períodos do ano, a estação das águas tendo início frequentemente em novembro e podendo se estender até fevereiro ou março. Em junho ou julho costuma haver uma breve seca, e o índice pluviométrico anual varia entre 1.000 e 2.200 milímetros por ano. Há considerável variação diurna de temperatura, com baixas à noite proporcionando aumento da umidade do ar, e as chuvas fortes de regime considerado tropical geram vegetação abundante e com variado número de espécies endêmicas, apesar da baixa capacidade do solo de reter água. Superpõem-se na região dois sistemas de circulação de ar que dominam o regime de chuvas, um continental, responsável pelas precipitações no verão, e um litorâneo, fortalecido pela altitude, provocando chuvas orográficas. As temperaturas médias são influenciadas pelo efeito atenuador da altitude, com

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médias maiores no sopé da serra, a 400 metros acima do nível do mar, em torno de 23ºC, e mais baixas, de 19ºC, acima dos 1.000 metros de altitude. As temperaturas mínimas anuais ficam em média em torno dos 15ºC, e as máximas por volta de 32ºC. Os rios da Serra do Sincorá mostram regime torrencial em função dos solos rochosos, arenosos e rasos, características em grande parte também ampliadas pela atividade garimpeira (Moraes 1963: 26; Gonçalves 1984: 20-21; Funch 2007: 13, 170-171). A cidade de Lençóis, especificamente, que serviu de base para a realização do trabalho de campo a respeito do jarê, situa-se no nordeste da Serra do Sincorá, num vale 400 metros acima do nível do mar. Os dados disponíveis a respeito do número de habitantes do município, apresentados aqui de forma abreviada, passam de estimados 30 mil quando de seu surgimento a computados 23 mil em 1872 (incluídos 1.858 escravos), passando por períodos de oscilação e decréscimo ainda mais acentuado, com 13 mil em 1900, 8 mil em 1920, 11 mil em 1940, 10 mil em 1950, 8 mil em 1960, 5 mil em 1970, 6 mil em 1980, 7 mil em 1990, 9 mil em 2000 até os atuais 10.368 computados em 2010. Ao longo do século XXI, pela primeira vez desde que o dado encontra-se disponível, registra-se maioria acentuada habitando a área urbana de Lençóis, estimando-se em torno de 6 mil os moradores da sede do município atualmente. Como será visto à frente, a marcada variação na população de Lençóis deveu-se menos às alterações de seus limites, que foram transformados ao longo do tempo em função de alguns desmembramentos, do que aos bastante intensos ciclos de evasão incentivados pelo declínio da produção diamantífera. A atual configuração racial da população de Lençóis confirma a nítida maioria de negros, que compõem quase 85% dos habitantes7 (Acauã 1847: 229; Pereira 1910: 53, 87; Moraes 1963: 26, 35, 182; Gonçalves 1984: 27-28; Funch 2007: 75; Ganem 2001: 18; Araújo, Neves & Senna 2002: 137 nota 29, IBGE 2010; IBGE 2011: 194). 7

Somando-se as classificações de cor preta (2.123 habitantes) e parda (6.630) utilizadas pelo censo. A mesma pesquisa indica a existência de 1.417 recenseados de cor branca, 148 amarela e 50 indígena (IBGE 2010).

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Lençóis terá sua história descrita no corpo da tese, tanto a mais tradicionalmente recolhida pela historiografia como aquela contada por seus habitantes até os dias de hoje. A respeito de sua história recente, especificamente, uma pesquisadora ex-aluna da Escola de Folclore, de São Paulo, realizou um estudo amplo e bastante detalhado, com dados recolhidos em repetidas viagens feitas entre os anos de 1976 e 1979 (Gonçalves 1984: 7). Existem também diversos romances feitos sobre cidades da Chapada Diamantina, especialmente envolvendo sua população garimpeira, escritos por importantes autores da literatura regional e nacional, entre eles Lindolfo Rocha, Herberto Sales, Urbano Duarte e Afrânio Peixoto, os dois últimos tendo sido membros da Academia Brasileira de Letras. Parte da literatura acadêmica disponível sugere sua utilização como fonte de acesso às realidades passadas com as quais o presente da Chapada Diamantina pode ser igualmente comparado, algo que já foi inclusive feito por outros pesquisadores (Pina 1997; Araújo, Neves & Senna 2002: 149 nota 69; Neves 2002: 36-37). Sua apreciação, contudo, ficou para além dos limites propostos pela presente tese.

Na realização do trabalho de campo, optei por não conceder qualquer primazia aos discursos dos líderes religiosos, procurando levar em consideração a maior gama possível de posições a respeito do culto. Dessa forma, a tese busca apresentar as interlocuções estabelecidas com os mais variados adeptos do jarê, definidos como quaisquer pessoas que gravitam em torno de uma casa de culto, desde os filhos-de-santo mais fervorosos aos frequentadores menos habituais mas que ainda assim podem ser considerados como parte desse coletivo – até porque são poucas as ocasiões nas quais os adeptos realizam distinções de pertencimento entre si. Nenhum nome próprio foi alterado, o que não impediu que por vezes,

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quando necessário, a identificação de pessoas específicas fosse dificultada, tema que de todo modo receberá tratamento detalhado no corpo da tese. Os honoríficos foram grafados em maiúsculas pois na região são praticamente parte dos nomes próprios de algumas pessoas. Ao longo dos capítulos, preferi manter todas as referências bibliográficas em notas de rodapé, como comentários apostos ao texto principal, tendo igualmente realizado todas as traduções para o português de citações em língua estrangeira. Muitas vezes, em toda a extensão da tese, preferi aglutinar ao final de um parágrafo todas as referências à literatura mobilizadas no decurso do mesmo, excetuando-se as ocasiões nas quais seria difícil proceder ao seu desmembramento. Os anos de publicação das referências citadas ao longo do texto sempre indicam o ano do surgimento da edição original, quando conhecida, estando entre colchetes na bibliografia a data da edição efetivamente consultada, quando diferente da primeira. Sempre que um texto puder ser encontrado gratuitamente na internet, seu endereço é indicado. Aspas duplas foram sempre utilizadas para transcrições bibliográficas e para elocuções nativas, ficando as aspas simples reservadas para relativização de alguma ideia ou para citações feitas no interior de outras. Apesar de não haver dúvidas sobre a possibilidade de definir o jarê como uma religião, como inclusive indica o subtítulo do trabalho, optei por denominá-lo, no corpo dos capítulos, preferencialmente por “culto”. A decisão foi feita por dois motivos principais, em certa medida compartilhados com os outros grandes estudos já realizados a respeito do jarê 8. Em primeiro lugar, porque o termo culto remete imediatamente a uma das características centrais do jarê que é sua ênfase na veneração das entidades que chegam ao espaço ritual. Em segundo lugar, porque o termo religião é dedicado pelos adeptos do jarê especificamente a tradições cristãs – em Lençóis, tanto à católica como às evangélicas –, fato ligado também, como

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De um lado, Senna (1998: 35 e nota 1) indica a preferência pelo uso da definição “seita” em oposição à de “Igreja”, enquanto Rabelo (1990: 383), apesar de usar o termo religião também com alguma frequência, lembra que os adeptos reservam-no exclusivamente ao catolicismo.

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afirmam, à rigidez dos preceitos destas e, sobretudo, de sua atitude exclusivista em relação a outros pertencimentos religiosos. Não ignoro de modo algum a importância dos usos – especialmente os políticos – que a caracterização do jarê enquanto religião pode possuir, inclusive para sua agregação no rol de religiões de matriz africana que se desenvolveram no Brasil, conjunto ao qual ele, como todas as demais, tem bastante a acrescentar. De toda forma, essa utilização ficará em suspenso no corpo dos capítulos da tese, que é eminentemente etnográfica, para ser retomada em desenvolvimentos futuros. Tratando de sua estilística, essa tese foi escrita como um dispositivo que proporciona uma jornada – ou mesmo uma peregrinação –9, comportando distintas polifonias orientadas, a cada capítulo, por guias específicos. A narrativa de cada capítulo é guiada por um interlocutor distinto, cuja escolha se deu menos em função de sua história pessoal ou de qualquer suposta representatividade do que como um meio de amalgamar seus próprios estilos pessoais aos argumentos mobilizados pela tese. O recurso a esses guias busca igualmente produzir um efeito específico de evadir qualquer grande divisão entre individual, de um lado, e social ou cultural, de outro, fazendo com que as falas, histórias, hipóteses e análises oferecidas correspondam mais a agenciamentos coletivos de enunciação. Esse segmento horizontal dos agenciamentos refere-se à mobilização de um conjunto de transformações incorpóreas de atos e de enunciados, proposto para escapar às ideias de enunciação individual e de sujeito da enunciação que assim não seriam senão casos particulares por vezes exigidos pelo agenciamento coletivo (Deleuze & Guattari 1980: 17-18, 29). Os interlocutores mobilizados agem aqui mais como relés, dispositivos de retransmissão que amplificam ou comutam um circuito não só de informações como de forças. Dessa forma, são apresentados como mediadores contínuos e não como

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De modo a que o leitor possa, por meio dela, tornar-se ele também um viajante, e não um turista, distinção feita em função do grau de exaustão imaginativa do turista, interessado antes de tudo em consumir diferença: “O turismo é a apoteose e a quintessência do ‘fetichismo da mercadoria’” (Bey 1994: 8).

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intermediários, ou seja, são mecanismos que transformam os sentidos e forças que carregam consigo em vez de transportá-los sem que sofram qualquer alteração, daí sendo preciso considerar sua especificidade a cada vez que são mobilizados (Latour 2005: 38-40). Um dos corolários dessa utilização envolve admitir que o mesmo se processa com o próprio etnógrafo, que atua enquanto um mediador transformando determinada experiência ao transmiti-la (Goldman 2011: 425). Similarmente, o privilégio do discurso indireto deveu-se tanto pela opção de evitar o uso de gravadores e entrevistas estruturadas, como será visto, quanto como um meio de transmitir um conjunto de impressões e sensações recebidas e experimentadas no trabalho de campo de forma a suscitar no leitor outras equivalentes, favorecendo os agenciamentos coletivos (Deleuze & Guattari 1980: 18).

O capítulo 1 fala a respeito da história e das histórias de Lençóis, passando pelo coronelismo muito tempo reinante de modo explícito na cidade e pelo garimpo de diamantes por meio do qual a região se constituiu e chegou a ser o que é hoje. Trata, em seguida, da atual configuração econômica da cidade, voltada para o ecoturismo, apresentando as transformações pelas quais tem passado em função do novo quadro. O capítulo aponta ainda algumas das alternativas encontradas pelos lençoenses para os problemas contemporâneos com os quais se defrontam, indicando também o humor e a criatividade como armas em suas lutas cotidianas – sem que com isso ambos deixem de constituir formas de arte próprias. Igualmente, fala de forma breve sobre as participações políticas em Lençóis, tanto nos períodos eleitorais como fora deles. O capítulo conclui com considerações sobre alguns dos festejos locais não necessariamente ligados ao jarê, além de uma interpretação a respeito de

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disposições específicas dos lençoenses diante de situações de falta e de abundância. Ao longo de todo o capítulo são oferecidos detalhes sobre o período inicial do trabalho de campo. O capítulo 2 tem início com a descrição dos muitos significados e consequências ligados a ser – e a se dizer – negro em Lençóis, chamando atenção para o surgimento de uma historiografia distinta quando se evoca o protagonismo da população escrava nos eventos passados, incluindo, por exemplo, quilombolas, seus remanescentes e outros líderes comunitários e religiosos. O capítulo prossegue tratando das formas como pesquisadores são encarados na região, bem como registrando alguns dos aprendizados que culminaram tanto na forma de se conduzir a pesquisa como na de escrever a tese. Prossegue com a apresentação das conexões que se estabelecem entre o jarê e outras religiões na cidade, incluindo uma exposição dos rituais tradicionais realizados em domínios associados ao catolicismo, enfatizando tanto sua inventividade quanto, em certos casos, o caráter burlesco que compartilham com outras práticas. Surge aqui mais diretamente o jarê, sendo detalhados os espaços nos quais o culto se desenrola, a estrutura de suas cerimônias, bem como suas aproximações e diferenças em relação ao modelo litorâneo de candomblé. O capítulo chega ao fim com a descrição dos principais rituais realizados no jarê, salientando a importância das formas de parentesco que – tanto o culto como outras práticas – encetam, passando por considerações a respeito do papel que possuem a terra e o solo para o bom andamento das cerimônias. O capítulo 3 principia com uma exposição a respeito do histórico associativismo local e como ele e o jarê se ligam na contemporaneidade, passando pelas formas de organização material e logística envolvidas na realização das celebrações e chegando a recentes tentativas de patrimonialização. Na sequência, traça os contornos da participação masculina no culto, em geral conectada à percussão dos instrumentos musicais mas não limitada a ela, culminando na apresentação de um etos de vigor e resistência que, se por vezes beira o

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exibicionismo, é continuamente matizado pelo valor da circunspecção e da austeridade. O capítulo prossegue com considerações a respeito de diferentes práticas de registro empregadas em torno do jarê, de entrevistas e filmagens aos registros escritos e fotográficos, tanto os que sempre foram feitos pelos adeptos como os realizados no trabalho de campo, frequentemente a seu pedido. A partir daí, trata da história específica de um dos maiores mestres do jarê de que a memória de Lençóis guarda lembrança, transcrevendo sua trajetória do modo como foi contada por aqueles que lhe eram próximos, em sua maioria filhos-de-santo da principal casa de culto da região, por eles mantida viva de maneira orgulhosa. O capítulo termina apresentando trajetórias de iniciação comuns pelas quais passam os líderes do jarê, contendo um apreço das formas de transmissão de conhecimento e de manutenção dos segredos do culto – indicando igualmente o início de um enredo que culminaria nas configurações de liderança que encontrei ao chegar em Lençóis. O capítulo 4 começa a partir dos desfechos da trama com a qual o anterior finaliza, apresentando uma nova história ligada aos rumos contemporâneos das casas de culto de Lençóis, plena de intrigas e reconciliações, especulações e alianças, que pude acompanhar pessoalmente e nas quais fui sendo também inevitavelmente enredado. Continua, em seguida, descrevendo as disposições dos adeptos do jarê em relação às ideias de crença e memória, bem como fala a respeito das distintas eficácias que possuem fala e escrita nessa religião. A seguir, aborda as diferentes entidades que se manifestam durante os cultos, além dos processos pelos quais os frequentadores são tomados por elas e os meios pelos quais ambos passam a existir como composições específicas, tanto nas cerimônias como fora das mesmas. O capítulo se encerra com um exame das diversas forças em ação no jarê, sua configuração e os modos pelos quais são habilmente manejadas pelos líderes das casas de culto para promover curas e iniciações, numa terapêutica complexa da qual sempre podem fazer parte efeitos inesperados.

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A conclusão da tese conta com indicações para a realização de pesquisas futuras inspiradas pelo que foi aprendido junto ao jarê, tanto no mesmo campo de investigação como em outros próximos. Sintetiza então as principais contribuições oferecidas pela tese para o estudo das religiões de matriz africana no Brasil, bem como explicita algumas das influências que a vivência no campo transmitiu para as formas de organização que esse texto terminou por assumir. A título de arremate, finaliza com um último dado etnográfico que simultaneamente resume e ultrapassa ligeiramente o argumento apresentado ao longo da tese, motivo pelo qual foi igualmente deixado para depois do corpo dos capítulos. A conclusão é seguida por um índice remissivo e quatro anexos, contendo o primeiro deles uma lista de perfis que descreve brevemente alguns dos principais interlocutores que surgem por mais de uma vez no corpo do texto – para ser consultada de modo a facilitar a rememoração das histórias que apresentam –, o segundo mapas da região onde foi feito o estudo, o terceiro fotografias às quais o texto fará referência e o quarto, por fim, uma coletânea de letras de cantigas – da qual foram escolhidas aquelas usadas como epígrafes aos capítulos – acompanhada por um disco contendo a gravação sonora de algumas delas.

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Capítulo 1 – Pisar

Ô, abre as estradas, Ogum A porta, Baluaê Oxalá é quem manda Santa Bárbara vem trazer

1.1 Lençóis

“Moço, se eu lhe disser, você não acredita...” Muitas das minhas conversas com Seu Gilson começaram com ele dizendo essa frase, com um sorriso estampado no rosto, para logo em seguida me falar demoradamente sobre alguma peculiaridade da cidade de Lençóis, de sua história ou de seus habitantes. Com ele pude aprender muito, especialmente nos primeiros meses do trabalho de campo, disposto que estava a compartilhar comigo a perspicácia costumeira de alguém que havia nascido, como ele gostava sempre de frisar, 53 anos atrás, bem como se criado naquela que era informalmente considerada a capital da região conhecida como Chapada Diamantina. Seu Gilson trabalhava havia já muitos anos como servente no único banco da cidade, tendo deixado de lado a atividade de garimpeiro à qual tanto seu pai quanto seu avô haviam dedicado suas vidas inteiras. Gostava de comentar orgulhoso sobre a estabilidade que encontrara em sua posição, sendo ele um dos funcionários mais antigos do estabelecimento, ao contrário dos escriturários e principalmente gerentes que costumavam não ficar por mais que alguns anos no exercício de suas funções. Em nossas caminhadas pela cidade, era frequente algum conhecido se referir ao local onde ele trabalhava como o “Banco do Gilson”, arrancando risos do antigo garimpeiro.

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Fui apresentado a Seu Gilson logo em meu primeiro dia na cidade, por meio de um dos contatos feitos por telefone e correio eletrônico com pessoas que poderiam me ajudar a me estabelecer por um tempo em Lençóis. A pessoa que nos apresentou me informou que eu conheceria um senhor que, se fosse com a minha cara, seria como um pai para mim. Pouco tempo depois me encontrava caminhando com Seu Gilson pelas ruas da cidade, tendo um primeiro contato com sua geografia e com seus habitantes, bem como me acostumando à rotina pacata dos lençoenses. Seu Gilson me ajudou a localizar algumas das outras pessoas com quem havia me correspondido antes de chegar à cidade, auxiliando-me em seguida a encontrar um local para ficar. Depois de visitar várias das pousadas da cidade, acabei optando por ficar na única cujos donos eram naturais da Chapada, e por sinal amigos de Seu Gilson. Ali residi durante os três primeiros meses do trabalho de campo, conhecendo pouco a pouco a cidade de Lençóis, seus habitantes e sua história, contada mais adiante. A primeira e mais frequente impressão que os lençoenses transmitem a respeito de sua cidade é o grande amor que sentem por ela, bem como a saudade que lhes assoma caso por um motivo qualquer precisem ausentar-se dela. “Quem bebe da água do Rio Lençóis sempre volta”, me diziam. O rio em questão, que corta a cidade bem como a abastece de água ao longo de todo ano (hoje em dia encanada e tratada pela companhia estadual de saneamento), e também chamado de Rio Serrano, é visitado diariamente por grande parte da população, que ali lava suas roupas e se refresca. Em sua margem norte localizam-se os bairros atualmente conhecidos como do Cajueiro, do Tomba e, um pouco afastada do centro do município, a Vila São José, mais conhecida por seus próprios habitantes como o Sem-Teto, local de assentamento em condições precárias de uma parcela da população. Ao sul do Rio Lençóis concentra-se a maior parte da cidade, composta pelo Centro Histórico e os bairros do Lavrado, Alto da Estrela e Caminho do Ribeirão10. Dona Juanita, proprietária da pousada

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Além do mapa da cidade contido no anexo II, ver fotos 1, 2 e 3 no anexo III.

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onde me hospedei, localizada no bairro do Cajueiro, gostava de dizer que Lençóis era um nome muito apropriado para uma cidade sossegada, como ela parecia ser na maior parte do tempo. A tranquilidade que Dona Juanita atribuía à cidade, contudo, parecia ser tanto uma primeira impressão da qual muitos visitantes inicialmente também compartilhavam quanto um desejo de que fosse mais profunda, como eu viria a descobrir. Depois de conhecer um pouco melhor alguns de seus moradores, não eram poucos a me dizer que, apesar de adorarem sua cidade, resumiam Lençóis com a abreviação “PGC”: pequenina, gostosa e complicada. Uma das principais atividades a que se dedicam muitos lençoenses, conforme dizia Seu Gilson, é inteirar-se da vida alheia, algo favorecido pela própria arquitetura das casas mais antigas, com grandes portas ou janelas quase atingindo os tetos das fachadas, que costumam ficar abertos a maior parte do dia11, excetuando-se o horário das refeições principais. Ao andar pelas ruas da cidade, em geral bastante íngremes, já que Lençóis situa-se num vale, é hábito dirigir o olhar para o interior das residências para cumprimentar seus moradores bem como ficar a par de eventuais visitas e encontros que estejam acontecendo. A sala é via de regra o primeiro cômodo, normalmente voltado para a rua, e a casa costuma crescer em profundidade, com um corredor comprido ao longo do qual se distribuem quartos e banheiro, terminando na cozinha em geral aberta para um quintal nos fundos. Se por vezes expressam algum ressentimento por terem suas vidas em revista contínua, reclamando da falta de privacidade que igualmente experimentam por serem obrigados a ficar sabendo de acontecimentos que por vezes preferiam ignorar, muitos dos habitantes de Lençóis igualmente afirmam que preferem ter suas vidas em constante escrutínio a viver no anonimato das grandes cidades. Na Chapada, dizem, mesmo que você viva sozinho jamais ficará desamparado se por acaso vier a enfrentar uma situação difícil.

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Ver foto 4 no anexo III.

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As notícias de fato correm em grande velocidade pela cidade, da mesma forma como os sons se espalham pelas serras, sua propagação facilitada pela ausência de carros e do barulho dos grandes centros urbanos. Comentar a respeito de suas intenções na cidade, sejam as de um visitante à procura de uma casa, sejam as de um antropólogo interessado em estudar mais sobre a vida e história locais – uma das primeiras traduções que arrisquei para justificar minha intenção de realizar uma pesquisa em Lençóis –, significa multiplicar ao menos por dez o número de pessoas a quem se confia uma informação. Não era incomum me encontrar com Seu Gilson à tarde e este fazer referência a uma conversa que eu tivera com outra pessoa pela manhã do mesmo dia, mesmo que eu não houvesse feito qualquer menção ao acontecido. Demorei um pouco a me acostumar com a abordagem bastante calorosa de pessoas que eu não conhecia mas que já tinham ouvido falar a meu respeito por meio dos amigos que começava a fazer. Somente mais tarde eu perceberia estar sendo habilmente testado pelos lençoenses a fim de determinar como eu participaria de uma das mais importantes divisões da cidade: os naturais de Lençóis e os “de fora”. Ainda que, contemporaneamente, Lençóis tenha nas atividades ligadas ao turismo a base de sua economia, o trato com pessoas de fora, sejam da cidade, da região, do estado ou mesmo do país, não é algo novo no cotidiano de sua população, pois há muito lida com a chegada de distintos contingentes populacionais envolvidos no garimpo de diamantes12. Por ora basta mencionar que, com o passar dos anos, os nativos da cidade se acostumaram a não esperar ver retornada a amabilidade e simpatia com que tratam aqueles que acolheram. Ao contrário, os forasteiros que passam a morar em Lençóis são vistos como pessoas eternamente insatisfeitas e exigentes, prontas a oferecer críticas ao passo que nem sempre dispostas a ouvilas. Enquadrar alguém como forasteiro leva em conta mais do que somente seu lugar de origem ou nascimento, mas igualmente a cor de sua pele, seu modo de falar, a condição

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Pontos aos quais retornarei posteriormente, nas seções 1.2 e ainda 1.1, mais abaixo, respectivamente.

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econômica que aparenta, o tempo há que reside na cidade e a atividade econômica que nela exerce. Algo que costumava irritar particularmente os muitos “gringos” que haviam se mudado há algum tempo (ou consideravam a possibilidade de se mudar) para Lençóis era o fato de continuarem a ser, em muitas ocasiões, considerados entre os “de fora”. Acredito que um dos motivos para tanto reside também no fato de que entre aqueles continuamente considerados forasteiros encontram-se as pessoas que menos sabem ou procuram saber a respeito da história e das histórias de Lençóis. Como procurei desde o início deixar claro não figurarem entre os motivos de ter vindo morar em Lençóis nem as belezas puramente naturais da Chapada Diamantina, nem oportunidades de negócios na cidade – como é de se esperar dos visitantes que optam por passar a morar na cidade – fui sendo associado a outro conjunto de forasteiros, o de pesquisadores13. Antes de retornar às histórias que aprendi com os lençoenses, exponho a seguir um resumo da historiografia existente sobre a região, de modo a disponibilizar as interpretações que de saída me informavam e que foram sendo transformadas ao longo do trabalho de campo em decorrência do contato com as primeiras. Os muitos pesquisadores, tanto acadêmicos quanto diletantes, que já transitaram pela região legaram uma quantidade considerável de registros históricos a respeito do moderno povoamento da região da Chapada Diamantina e da cidade de Lençóis em particular14. Após as primeiras passagens de bandeirantes e sertanistas, no século XVII15, há notícias de aglomerações de pioneiros ligados à pecuária formando pequenos núcleos populacionais ao longo do século XVIII16. Nesse mesmo século, a descoberta de pedras preciosas na região do Tejuco (atual Diamantina, em Minas Gerais) estimulou a exploração rumo ao norte e ao

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Tema que terá maior desenvolvimento no capítulo 2, na seção 2.2.

14

A possível presença de indígenas na região será considerada no capítulo 4, na seção 4.3.

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São citados “Fernão Dias Pais, Belchior Dias Moreira, Gabriel Soares, entre outros” (Moraes 1963: 30).

16

Incluindo o povoado de Santa Isabel do Paraguaçu, ocupando área onde à época em que escreve o cronista distribuem-se os municípios de Lençóis, Andaraí, Palmeiras e Seabra (Moraes 1963: 32).

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nordeste através do vale do Jequitinhonha até a região de Grão-Mogol, e daí pela Serra do Espinhaço e vale do São Francisco, penetrando então a parte meridional da Chapada Diamantina17. Ao que tudo indica, a descoberta de diamantes na região ocorre, contudo, somente no início do século XIX, na área conhecida como Chapada Velha, onde contemporaneamente localizam-se municípios como Gentio do Ouro e Brotas de Macaúbas. Os naturalistas bávaros Spix e Martius estiveram na Chapada em 1818 e relataram notícia de achados vestigiais de diamantes, informação possivelmente repassada às autoridades bem antes da publicação do monumental Viagem pelo Brasil18. Na região que viria a ser caracterizada como Lavras Diamantinas, na Serra do Sincorá, em cujo território distribuem-se hoje principalmente os municípios de Lençóis, Andaraí, Mucugê e Palmeiras, as descobertas significativas e que dariam início ao primeiro ciclo intensivo de exploração do diamante datam somente da metade do século XIX19. O povoado de Lençóis, provavelmente ainda sem esse nome, começou a tomar forma no final do século XVIII, com população esparsa advinda de locais próximos nos quais existiam lavoura e pecuária de subsistência20. É só na década de 1840, entretanto, que acontecerá ali um maior adensamento populacional21, após a descoberta de quantidades muito significativas de diamantes nos rios da região, fato que atrairá para lá em muito pouco tempo grandes contingentes populacionais, majoritariamente de duas procedências. Do noroeste,

17

Desdobramentos acompanhados com interesse e celebrados à distância pela corte de Dom João V, em Portugal, que em pouco tempo tomaria as medidas necessárias à cobrança do quinto sobre as pedras encontradas (Moraes 1963: 30). 18

É o que se infere das muitas fontes (Pereira 1910: 71; Moraes 1963: 33, 65; Gonçalves 1984: 18; Araújo, Neves & Senna 2002: 134 nota 12, 142-143 notas 43 e 44) que fazem referência a estes episódios. 19

Entre os anos de 1839 e 1844, pelo que se consta, fato que teve repercussões imediatas nos centros de poder do Brasil e de diversos países da Europa (Leal 1846: 430-431; Acauã 1847: 249-250; Moraes 1963: 31). 20

É o que indicam documentos de posse de terras, inventários de arquivos públicos e depoimentos locais (Senna 1996: 18; Pina 2001: 182; R. Senna 2002: 230). 21

No caso de Lençóis esta concentração populacional inicial parece ter se dado no ano de 1844 (Senna 1996: 50) ou 1845 (Pereira 1910: 46; Pereira 1937: 56-57).

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seguindo pela Serra do Espinhaço, assomam os garimpeiros anteriormente vindos de Minas Gerais pelo São Francisco, já acostumados ao trabalho com ouro e mesmo com pedras preciosas, bem como grandes comerciantes proprietários de escravos. Do litoral, acompanhando o Paraguaçu, vieram pioneiros, aventureiros e senhores de terras baianos com hostes de escravos que exerceriam ocupações inúmeras22 na Chapada, somando-se aos que ali já se encontravam23. Há duas possíveis origens para o nome dado à cidade, ambas registradas na literatura e contadas pelos moradores até os dias de hoje. De um lado, menciona-se o espetáculo formado pelo conjunto de centenas de lençóis brancos que serviam como cobertura para as tendas feitas nos acampamentos à margem do rio, quando dessa primeira corrida garimpeira. De outro, especula-se que o nome se refira ao aspecto leitoso de determinados trechos do mesmo curso de águas graças a seus muitos acidentes naturais ou ainda a uma de suas cachoeiras 24. Lençóis cresceu em ambas as margens do rio com que divide seu nome, em forma de concha aos pés de um dos contrafortes da Serra do Sincorá, e se consolida pela persistência da mineração. Torna-se distrito policial de Santa Isabel do Paraguaçu em 185225 e é em pouco tempo elevada à categoria de vila com o nome de “Commercial Villa dos Lençoes”, no ano de 185626. Lençóis passou então a ser palco de diversos ciclos de grande produção e declínio da cata de diamantes, bem como atravessou períodos de secas consideráveis que trouxeram fome 22

Entre elas as de vaqueiro, garimpeiro, armeiro, pedreiro, doméstico, lavoura, ferreiro (Pina 2001: 182-184).

23

O abastecimento de escravos continuou a ser feito a partir dos mesmos estados dos quais provinha o restante dos contingentes populacionais que exploraram a Chapada Diamantina, Minas Gerais e Bahia (Pereira 1910: 69; Pereira 1937: 46-47; Senna 1996: 18, 24, 51; Pina 2001: 197; Araújo 2002: 169). 24

Ambas as versões registradas desde bastante cedo e reafirmadas desde então (Pereira 1910: 83; Moraes 1963: 40 nota 4; Gonçalves 1984: 22; Senna 1996: 56; Araújo, Neves & Senna 2002: 134 nota 11). 25 26

Já com o topônimo “Lençóis” (Senna 1996: 50).

Após tornar-se vila (Pereira 1910: 47; Araújo, Neves & Senna 2002: 136 notas 17 e 18) o tipo de crescimento não planejado rapidamente experimentado por Lençóis continua ao longo de sua história (Araújo, Neves & Senna 2002: 134 nota 11; Gonçalves 1984: 23).

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e doenças à região, ou enchentes catastróficas que destruíram parte considerável de seu patrimônio, fazendo com que sua população variasse significativamente na segunda metade do século XIX e ao longo de quase todo século XX27. Não obstante estes reveses, a cidade passou a ser informalmente considerada desde cedo a “capital das Lavras Diamantinas” 28, e cresceu em importância econômica e política no cenário nacional. Organizou-se uma aristocracia do diamante, liderada pelos coronéis proprietários de escravos e arrendatários das serras, conjunto que se dividia conforme sua procedência entre os chamados “serranos”, oriundos de Minas Gerais, e “baianos”, vindos do litoral da Bahia e arredores. Os grupos se aliaram politicamente com os partidos do Império a partir de 1860: os serranos, oriundos do planalto central brasileiro, do sertão alto, de Caetité, Riacho de Santana, Monte Alto e outras zonas da chapada ou do rio São Francisco, aos liberais; os baianos, provenientes de Cachoeira, São Félix, Feira de Santana, Santo Amaro, Nazaré das Farinhas, Salvador, aos conservadores29. Os liberais foram jocosamente apelidados de pinguelas, mosquitos ou mocozeiros, enquanto os conservadores eram chamados de mandiocas, função da cultura da mandioca do Recôncavo. A aristocracia do diamante disputava influência política para obtenção de posições públicas que desembocavam no domínio da terra, garantia de seu poder econômico na região30.

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A lavoura existente nas cidades da Chapada Diamantina jamais foi suficiente para abastecer adequadamente sua população, que variou em número significativamente (Pereira 1910: 93, 122; Toledo 2008: 58-59). As alterações no solo provocadas pela ação do homem também geravam enchentes que acabavam por destruir plantações feitas próximas às margens dos rios, em solo em princípio mais fértil (Funch 2007: 27-28). 28

O título deriva da centralidade que adquire Lençóis tanto pela abundância de sua produção diamantífera como por sua localização geográfica estratégica na Chapada, vindo a substituir Rio de Contas como principal entreposto comercial da região (Pereira 1910: 44, 57, 75; Moraes 1963: 34; Senna 1996: 55). 29

Os primeiros eram chefiados pelo coronel Felisberto Augusto de Sá, natural de Tejuco (atual Diamantina), enquanto os segundos pelo coronel Antônio Gomes Calmon, natural do Recôncavo (Moraes 1963: 43). 30

As duas agremiações refestelavam-se em se distinguir uma da outra, portando cores e distintivos específicos e financiando filarmônicas próprias – a Oito de Dezembro, sob invocação de Nossa Senhora da Conceição, dos liberais, que trajavam verde, e a Dois de Fevereiro, sob os auspícios de Nosso Senhor Bom Jesus dos Passos, dos conservadores, que vestiam vermelho (Pereira 1910: 97; Moraes 1963: 43-45, 46 nota 6; Gonçalves 1984: 26; Senna 1996: 55).

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As gemas encontradas nas serras e leitos dos rios pelos garimpeiros, fossem eles escravos ou trabalhadores livres, enriqueciam antes de tudo, direta ou indiretamente, os donos das serras. Bem próximo a eles estabeleceu-se um conjunto de compradores de diamantes, chamados de capangueiros, capaz de atravessá-los para mercados externos ou revendê-los para lapidadores que nem sempre negociavam com os garimpeiros sem o agenciamento de um intermediário, e os mais bem-sucedidos entre estes capangueiros, com o tempo, tornaram-se negociantes de gabinete, os chamados pedristas, categoria que, somada à dos grandes proprietários de escravos, compunha a aristocracia do diamante31. Datam já dessa época as construções das duas igrejas da cidade, nos anos 1850, bem como o lançamento das bases para construção da igreja matriz dedicada a Nossa Senhora da Conceição, padroeira de Lençóis, substituindo sua capela32, além da ponte que, mais tarde reformada com arcos romanos, faria a ligação até os dias de hoje das duas margens do rio que corta a cidade33. Os primeiros e mais importantes ciclos de exploração do diamante fizeram com que Lençóis entrasse no século XX como uma cidade marcada por um tipo de opulência dificilmente encontrado no sertão. O casario colonial completava-se com grandes sobrados nos quais havia pianos de cauda importados, nas lojas da cidade eram vendidas mercadorias vindas da Europa e não era raro ouvir-se o francês nas ruas, idioma ensinado nas escolas primárias municipais – bem como retórica, filosofia e caligrafia gótica. A França chega

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O passar dos anos faz com que seja cada vez mais difícil mesmo para os capangueiros bem-sucedidos tornarem-se verdadeiros pedristas, grupo fechado que domina um mercado específico e bem estabelecido ao qual só passa a ser possível ingressar por herança, casamento ou, em menor grau, certas relações de parentesco e compadrio (Senna 1996: 20, 23, 55) 32

A igreja de Senhor dos Passos recebeu uma gigantesca imagem vinda de Portugal, encomendada pelos irmãos portugueses José e Joaquim Tojal, encaixotada de Salvador para Cachoeira, e de Cachoeira pelos rios Paraguaçu e Santo Antônio, de balsa para o Porto, a 12km de Lençóis, e de lá para a cidade, em procissão. A igreja do Rosário, que funciona hoje como matriz, é a maior do sertão baiano (Ganem 2001: 21-22). A dedicada a Conceição nunca subiu além de seus ambiciosos alicerces, a construção da catedral abandonada com a queda da produção de diamantes no fim do século XIX. Funciona hoje como teatro de arena, tendo sua base estrutural sido elevada para o propósito (Araújo, Neves & Senna 2002: 136-137 nota 25). 33

Registra-se que seu nome seja Ponte dos Suspiros (Senna 1996: 66; Araújo, Neves & Senna 2002: 135 nota 14).

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mesmo a instalar um subconsulado na cidade, facilitando as negociações diretamente com Paris34. Instalam-se jornais semanais editados na própria cidade, que se somam aos já costumeiramente trazidos de Salvador, além do serviço de telégrafo e de cinemas, a princípio itinerantes e, posteriormente, permanentes35. É neste cenário que se desenvolveu, durante a República Velha, o coronelismo nas Lavras Diamantinas, local onde as figuras do senhor rural e do coronel do sertão se confundem. Apesar de terem sido desvendadas novas minas de diamantes no Brasil e no mundo, notícia que poderia representar um baque para a economia garimpeira de Lençóis, a descoberta dos usos industriais do carbonado, variante negra do diamante encontrada em poucos lugares no mundo, conferiu sobrevida significativa para a prospecção na Chapada 36. O maior expoente desse momento histórico, posteriormente conhecido como um dos principais nomes do coronelismo no país, foi Horácio de Mattos. O coronel Horácio de Mattos, figura praticamente lendária na Chapada Diamantina, e especialmente na cidade de Lençóis, de onde governou boa parte do sertão baiano, foi o responsável por unificar politicamente as famílias em guerra constante nas Lavras, subjugando-as ao longo de diversas batalhas, liderando tropas de jagunços até mesmo no combate corpo-a-corpo. Horácio e seus homens tomaram a cidade de Lençóis ao avançar rumo à capital baiana para impedir que seus adversários políticos se perpetuassem no governo

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Fatos indicados por depoimentos pessoais e documentos históricos (Moraes 1963: 38; Gonçalves 1984: 26; Ganem 2001: 18, 80) 35

Entre os jornais editados na cidade figuraram O diamantino, O lavrista, O correio das lavras e o humorístico O peixe, além de O sertão, mais importante e duradouro, publicado toda semana aos domingos entre 1920 e 1951 (Pereira 1910: 113, 122-123; Moraes 1963: 166-167; Ganem 2001: 90-91; Araújo, Neves & Senna 2002: 147 nota 59). As projeções itinerantes do início do século XX deram lugar à sucessão de dois cinemas permanentes no prédio do mercado municipal, até o estabelecimento do Cine Teatro Rex em 1938, com filmes falados e em seguida a cores, desativado apenas quando a televisão começou a predominar na segunda metade do século XX (Ganem 2001: 73-74). 36

No mercado mundial, passam a competir com o diamante que antes só era encontrado na Chapada Diamantina e na Índia o encontrado na região do Salobro, no sul da Bahia – área hoje localizada no município de Santa Luzia, à época parte de Canavieiras – e o escavado nas minas da África do Sul, extraído em imensas quantidades (Pereira 1937: 59; Moraes 1963: 37, 48-49).

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do estado, que por sua vez ofereceria ao coronel regalias políticas para dissuadi-lo de sua campanha paramilitar, incluindo a possibilidade de nomear deputados e um senador estaduais, tendo se tornando ele mesmo senador e delegado da região centro-oeste da Bahia37. Contudo, essa negociação, que recebeu o nome de Convênio dos Lençóis, não garantiu a paz duradoura, já que Horácio resistia às inevitáveis tentativas de seus desafetos políticos retornarem ao poder, com novos episódios de luta armada e mesmo cerco à capital das Lavras38. O apoio decisivo do governo estadual, contudo, se deu quando da passagem da Coluna Prestes pelo interior da Bahia. As lideranças instituídas, temerosas dos efeitos que o movimento tenentista poderia ter no sertão, negociaram com Horácio a criação de um pelotão de jagunços, o Batalhão Patriótico das Lavras Diamantinas, com fardamento e material bélico enviados pelo Ministério da Guerra. Horácio liderou a campanha sertaneja durante parte de sua perseguição à Coluna Prestes até a fronteira com a Bolívia, retornando a Lençóis no ano de 1927, quando obteve do governo o cargo de intendente da cidade. A Revolução de 1930, contudo, obrigou Horácio de Mattos, e com ele os demais coronéis do sertão, a se desarmar. Horácio foi preso e levado para Salvador, tendo obtido em seguida liberdade condicional para aguardar um julgamento que não chegou a acontecer: ele é assassinado nas ruas da capital a mando de seus adversários políticos39. O meado do século XX configura-se fase crítica para a economia de Lençóis, já combalida pelas campanhas militares de que acabara de sair. O garimpo passa por novo ciclo de declínio, a população volta-se na medida do possível para a agricultura sempre debilitada pelo solo impróprio, o êxodo para as grandes cidades do país aumenta, estimulado pela 37

Já tendo conseguido indicar diversos deputados federais ligados a si (Moraes 1963: 132).

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Os episódios nos quais Horácio sobreviveu a combates corporais e tiros praticamente à queima-roupa consagraram-no como possuindo proteção mística, “corpo fechado”, algo que se dizia igualmente de muitos de seus jagunços, acostumados a serem vistos levando ao peito patuás e correntes (Moraes 1963: 138, 178, 180 nota 13). 39

Sua morte é vista pelos revolucionários como decisiva na luta contra o coronelismo na Bahia (Moraes 1963: 103, 133, 166, 173-174, 176; Pang 1978: 216; Gonçalves 1984: 26).

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crescente industrialização do Brasil após a II Guerra Mundial. O medo de que Lençóis se torne uma cidade-fantasma, destino de que muitas outras localidades da Chapada Diamantina davam doloroso testemunho, leva seus moradores a se organizarem com objetivo de encontrar uma alternativa para a cidade não mergulhar na pobreza40. Almejando recuperar e conservar o legado material construído em seus dias de glória, e vendo nessa ação o germe de um ramo de atividade econômica ligada ao turismo, o Movimento de Criatividade Comunitária formado por diversos lençoenses – capitaneados por um voluntário do Peace Corps norte-americano baseado na cidade nos primeiros anos da década de 197041 – obtém junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional o tombamento do conjunto arquitetônico e paisagístico da cidade, registrado no final do ano de 1973. As fachadas das casas e sobrados da época formam um agrupamento heterogêneo que desde então deve obrigatoriamente ter suas características inalteradas, ainda que seus interiores possam ser, nos dias de hoje, por vezes extensamente remodelados para usos diversos. No período posterior ao tombamento, ainda havia diversas casas com paredes de pau-a-pique, adobe ou barro, enquanto as construções de maior porte haviam sido erguidas com pedra e barro. Enquanto as residências dos garimpeiros eram construídas sem alicerces muito fundos, contando com paredes de adobe ou enchimento, autoportantes, os edifícios maiores de dois ou três andares eram mantidos com estruturas independentes de madeira, vedadas com taipa42. Sobrados importantes para a história local já haviam sido demolidos à

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As impressões iniciais de quem chegou nessa época pela primeira vez a Lençóis são marcantes (Funch 2007: 16-17, 22; Gonçalves 1984: 20-21). 41

O fotógrafo e designer gráfico Steve Horman (Brito 2005: 121-122; Araújo 2002: 183). Ainda no início dos anos 1960, o prefeito Olímpio Barbosa havia inscrito Lençóis como destino para voluntários do programa norteamericano (Brito 2005: 117-118). 42

Todos esses tipos de construção podem ser encontrados hoje em dia na cidade, e as moradias continuam obedecendo o mesmo estilo interno de disposição do espaço, conforme se constata comparando-as com plantas baixas feitas à época (Gonçalves 1984: 23, 41, 48; Senna 1996: 51)

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época do tombamento43, com edificações de características mais modernas erigidas em seu lugar. Outras construções haviam passado por reformas ainda no final do século XIX e início do XX, passando a incluir elementos como a platibanda ou decorações em estilo art nouveau, dividindo espaço com os mais caracteristicamente neoclássicos44. O governo da Bahia, a partir dos anos 1970, passou a participar mais ativamente na promoção do turismo no interior do estado, enviando uma equipe técnica para municípios da Chapada Diamantina para levantar seu potencial de atração de visitantes. O relatório então produzido tornou-se uma peça fundamental na aquisição pelo poder público de um casarão no qual, em 1979, é estabelecida a Pousada de Lençóis, que se tornaria futuramente o Hotel de Lençóis, equipando a cidade para receber mais turistas e estimulando o aumento de seu tempo de permanência na cidade, especialmente depois da abertura da BR-242, ligando o oeste da Bahia a Brasília e à região Centro-Oeste45. O início da atividade turística mais regular não foi encarado com bons olhos por parte da elite local, que viu na chegada de uma atividade econômica alternativa à tradicional garimpagem uma possível ameaça ao seu predomínio político46. A oposição à implantação e ao estímulo do turismo na região não foram fortes o bastante para impedir que outro atrativo da Chapada Diamantina fosse então mobilizado para

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Como a casa do Conselho Municipal, o prédio que sediava o jornal O sertão e aquele no qual funcionava a Loja Magnólia (Senna 1996: 51). 44

Os anos em que estas reformas ocorreram ficaram inscritos em muitas das fachadas, com grande incidência para os anos de 1920, também havendo registros anteriores (até 1880) e posteriores (Gonçalves 1984: 23; Senna 1996: 51). 45

A equipe técnica pertencia à Coordenação de Fomento ao Turismo, ligada à Empresa de Turismo da Bahia (Bahiatursa), entidade de economia mista (Brito 2005: 124, 126-127). 46

O Movimento de Criatividade Comunitária foi perseguido e caracterizado como esquerdista, e Steve Horman foi acusado de ser um subversivo comunista – algo um pouco paradoxal para um membro do Peace Corps –, por estimular o tombamento da cidade e atrair o turismo para Lençóis. A mesma elite descontente tentou sabotar a compra do imóvel que se transformaria na Pousada de Lençóis, seus membros queixando-se ainda, depois ddo fracasso de sua tentativa, que ela jamais se justificaria numa cidade com tão pouco movimento como aquela (Brito 2005: 122-123, 126). É possível que essas ações fossem motivadas não só por determinado reacionarismo mas, igualmente, por uma disputa, entre os grupos que se alternavam politicamente no poder, pelos louros do crescimento que a inovação do turismo traria.

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essa atividade: seu estoque de belezas naturais. As inúmeras cachoeiras, grutas, lagos subterrâneos, rios e serras, bem como sua vegetação característica e sua fauna indômita, sempre chamavam a atenção dos visitantes que passavam pela Chapada. Porém, estava longe de ser óbvio para a população da região, acostumada a lutar contra esse ambiente e a transformá-lo continuamente, que esses acidentes geográficos pudessem interessar a turistas. Foram as ações de outro voluntário do Peace Corps recém-chegado a Lençóis, o bioquímico especialista em fitofisiologia Roy Funch, conectado aos movimentos ambientalistas da década de 1980, que culminaram na criação do Parque Nacional da Chapada Diamantina, por decreto federal, no ano de 198547. Essa espécie de tombamento do seu patrimônio natural foi o último acontecimento necessário à explosão do turismo na região, com grande exposição midiática de seus encantos naturais nos anos seguintes. A cidade de Lençóis configurou-se como portal de entrada para os visitantes da Chapada, tanto por sua localização geográfica quanto por sua trajetória histórica, e passou a desfrutar indiretamente também dos rendimentos gerados por atrações localizadas nos territórios dos municípios próximos48. Por inegáveis que sejam as transformações recentes e contemporâneas pelas quais a região, e a cidade de Lençóis em particular, têm passado, não é o caso de imaginar nenhum tipo de ruptura brusca trazida por um suposto advento de uma globalização cosmopolizante e moderna a um local anteriormente dominado por provincianismo49. Como visto, desde bastante cedo em sua formação Lençóis contava com a presença de inúmeros estrangeiros entre seus visitantes e habitantes, incluindo, a título de exemplo, árabes, judeus, franceses e 47

Conhecido pelos lençoenses como Rui Americano, Roy Funch foi o terceiro voluntário do Peace Corps a ficar baseado na cidade de Lençóis, tendo chegado em 1978 e lá morando até hoje. Antes do já mencionado Steve Horman, tido por Estevão na região, cuja estadia deu-se entre 1970 e 1973, por ali passara também David Blackburn, o Davi, entre 1965 e 1968. Todos conheciam o modelo dos parques nacionais dos Estados Unidos, de preservação ambiental sem habitação humana (Brito 2005: 16, 120-123, 129-130). 48

A Chapada Diamantina foi divulgada em inúmeras reportagens de jornais, revistas especializadas e programas televisivos, servindo mais tarde de cenário à novela televisiva Pedra sobre pedra (Brito 2005: 130). 49

Percepção que é explicitamente elaborada pelos residentes da Chapada e trabalhada na literatura (Brito 2005: 10; Banaggia 2010: 10).

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sobretudo, africanos, trazidos como escravos, conectando-se a diversos outros países do mundo em função principalmente do comércio internacional de diamantes 50. Similarmente, é também constante na história da cidade ao menos um ligeiro grau de desconfiança com forasteiros, em especial aqueles que eventualmente decidem se fixar na cidade e ali exercer algum tipo de atividade econômica, em oposição aos nativos da Chapada Diamantina51. O passado de Lençóis mantém-se vivo e em constante atualização no cotidiano de seus habitantes, por mais que surjam novidades oriundas do reordenamento da população em função da economia agora alavancada pelo turismo. Em suas caminhadas pelas serras, os lençoenses cruzam com ruínas deixadas pelos grandes garimpos de outrora, bem como observam outras sendo restauradas em sua cidade, transformando-se internamente ao passo que suas fachadas mantêm viva a memória de outros tempos. Suas ruas e praças passam a receber novos nomes, em geral muito pouco assimilados pela população local, numa atitude possivelmente proposital. Em vez de referirem-se, por exemplo, à Avenida General Viveiros, continuam dizendo Rua do Tomba Surrão. No lugar de prestar homenagem a um coronel falando da Praça Aureliano Sá, preferem lembrar lutas passadas mantendo seu nome de Praça das Nagôs (termo cuja importância será retomada adiante). Poucos saberão informar onde fica a Rua Miguel Calmon, mas não há quem deixe de recomendar um restaurante na mesma Rua da Baderna. Não deixam de continuar existindo as ruas Sete de Setembro, Voluntários da Pátria e Almirante Barroso, no Centro Histórico, mas a vida local fervilha mesmo é nas vielas

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Numa convergência que contribui para a experiência dos lençoenses em lidar com estrangeiros sem muito embaraço, quando necessário (Pereira 1910: 55, 59 nota **; Senna 1996: 18; Araújo 2002: 169; O. Senna 2002: 12; Brito 2005: 15). 51

Sejam brasileiros ou estrangeiros (Moraes 1963: 43-44; Gonçalves 1984: 233; Senna 1996: 58), incluindo em menor grau moradores mais temporários da região, como estudantes, pesquisadores, técnicos governamentais e pessoas em busca de estilos de vida alternativos, que privilegiam tanto Lençóis como o Vale do Capão, no município de Palmeiras (Brito 2005: 128). “Nativos da Chapada” é, literalmente, o modo como aqueles que nasceram na região costumam se referir a si próprios, em geral quando desejam marcar alguma distinção em relação aos “de fora”.

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da Rua do Curral, da Rua dos Papagaios e da Rua dos Negros – que se recusam a chamar de Rua São Benedito52. Se os lençoenses por vezes gostam de lembrar sua história, inscrita que se encontra no próprio espaço arquitetônico de Lençóis, falam com mais gosto ainda a respeito de suas histórias. Os contos e causos passados na cidade são lembrados com alegria, repetidos para as crianças e curiosos, e por mais de uma vez pediram-me que registrasse uma história, tirasse uma fotografia de uma ruína ou fizesse uma gravação de uma música, bem como me mostraram certas vezes cadernos antigos, álbuns de fotos e registros em fitas cassete guardadas sem que tivessem nem mesmo rádios que as reproduzissem. Pouco deve haver que exerça tanto fascínio nos habitantes da cidade quanto uma história bem contada53, e se reunir para ouvir e relatar causos é um dos passatempos prediletos dos lençoenses, como Seu Gilson, o ex-garimpeiro apresentado no início do capítulo54. Seu Gilson contou-me certa vez como, quando tinha ido ajudar sua mulher a limpar a imagem de Nosso Senhor dos Passos, tivera uma estranha sensação ao passar um pano na face da estátua, uma pesada escultura em tamanho natural mostrando a segunda estação da Via Crúcis, com Jesus carregando a cruz onde iria ser crucificado. O grau de realidade da imagem, Seu Gilson dizia, era ainda mais ampliado pelas longas madeixas que a adornavam – “cabelo de gente mesmo”, havia quem afirmasse –, e a importância de Senhor dos Passos para os garimpeiros de Lençóis, de quem era o padroeiro, era indiscutível 55, a ponto de muitos considerarem-no efetivamente padroeiro da cidade como um todo, a despeito das autoridades 52

Tudo indica que essas sejam práticas antigas (Pereira 1910: 113 nota **; Gonçalves 1984: 32; Ganem 2001: 125-126). 53

Há esforços que se empenharam no sentido de registrá-las de forma mais abrangente, seja do ponto de vista em geral das poderosas famílias da cidade (Ganem 1984; 2001), seja daquelas mais ligadas ao trabalho no garimpo propriamente dito (Brasil 2009: 16-33). 54 55

Ver fotos 5 e 6 no anexo III.

Para grande parte da população de Lençóis, não há aí nenhum grau de representação: Senhor dos Passos é literalmente a estátua que reside em sua capela, capaz de grandes feitos por uma potência que lhe é própria (Gonçalves 1984: 136-137). Ver foto 7 no anexo III.

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locais que se compraziam de lembrá-los que a padroeira oficial de Lençóis era Nossa Senhora da Conceição. A admiração de Seu Gilson pela escultura se deve ao fato de ele também ter sido garimpeiro durante grande parte de sua vida, enquanto seu pai e seu avô haviam-no sido praticamente até o fim de seus dias. Seu Gilson costumava lembrar com um misto de orgulho e pesar dos tempos do garimpo que ele ainda alcançara, bem como das histórias das pessoas de sua família que haviam trabalhado com essa lida. Como muitos outros garimpeiros, seu avô falecera num acidente no garimpo, atingido em cheio por uma pedra que rolou do alto da serra, logo após ter encontrado um diamante de 30 quilates (consideráveis seis gramas), sem ter podido usufruir de seu achado. Acidentes como estes, bem como soterramentos em estreitas cavidades subterrâneas perfuradas sob os leitos dos rios, as chamadas grunas, e afogamentos por enchentes repentinas, as trombas-d’água, eram sabidamente comuns na rotina garimpeira, e ainda hoje muitos dos senhores mais velhos que sobreviveram a eventos como esses mostravam sequelas duradouras, em especial no caminhar. As agruras do trabalho no garimpo exigiam privilegiada constituição física dos homens que se aventuravam nas serras, aliadas às técnicas de extração passadas de geração em geração. Os primeiros trabalhadores da região já se dividiam entre livres e escravos, mãode-obra esta que foi predominante no primeiro e mais importante ciclo do diamante na região56. Havia uma diferença entre os chamados “mineradores”, ligados ao Império e realizando a atividade com autorização real nas serras arrendadas aos senhores pela Coroa, e os “garimpeiros” – entre os quais se podiam contar ex-escravos – que trabalhavam muitas vezes de forma clandestina57. A passagem gradativa de todo o contingente populacional ao 56 57

Segundo indicam as escrituras de compras de escravos pelas companhias de mineração (Pina 2001: 182).

Os conflitos por vezes sangrentos entre todos os envolvidos no início do processo extrativo do diamante, fossem mineradores, fossem garimpeiros, levaram, por exemplo, à alteração do nome do Poço Rico, local de Lençóis onde inúmeras pedras foram descobertas em pouco tempo, para Poço das Mortes (Pereira 1910: 86; Gonçalves 1984: 19). Até hoje se menciona como os garimpeiros conheciam formas especiais de agitar suas bateias (recipientes nos quais o cascalho é revolvido em busca dos minérios) de modo a esconder diamantes ali

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trabalho livre, mas não assalariado, marcou o apagamento dessa distinção, unindo todos os trabalhadores sob a mesma alcunha de “garimpeiros”, sendo um dos motivos pelo qual o tema da escravidão de uma quantidade considerável de seus ascendentes seja tratado pelos lençoenses contemporâneos com algum receio e sem grande aprofundamento58. Os garimpeiros trabalhavam em sua luta diária à procura do bambúrrio, o achado de um diamante de valor excepcional que lhes permitiria gozar de alguns dias de esbanjamento59. Seu Gilson me falou que ele, como praticamente todos os garimpeiros, já tivera essa sorte algumas vezes em sua juventude, podendo ficar por uma ou outra semana sem trabalhar, pagando bebidas aos amigos, dando presentes caros às mulheres-damas e promovendo festas com comida da melhor qualidade. Já se sugeriu que tal atitude caracterizaria uma crença no enriquecimento fácil derivado do achado de uma grande pedra, busca eterna que não faria senão alimentar sonhos impossíveis de escapar de sua condição de garimpeiros fadados ao trabalho duro nas serras ao longo dos anos60. Contudo, se é verdade que a busca pelas pedras de grande valor por vezes se encontra no horizonte do trabalho dos garimpeiros, e que quando achados desse porte acontecem em geral acabam por financiar momentos intensificados de consumo – raramente sem algum componente coletivo, frise-se –, essa parece estar longe de existentes dos olhos de quem quer que fosse. O contrabando de pedras, em geral para evitar os tributos devidos, fossem eles ao governo ou aos donos das serras, era possivelmente também uma forma dos escravos tentarem juntar a quantia necessária à compra da alforria por meio de terceiros de sua confiança. 58

O “tempo dos antigos” é marcado como aquele do qual não se sabe muito a respeito, ainda que se trate de um passado relativamente recente (Toledo 2001: 82-83). 59

Contemporaneamente, a agência da loteria federal na cidade adotou o nome de “Bambúrrio”. A palavra pode igualmente ser usada como verbo – como em “um garimpeiro bamburrou recentemente”. 60

Segundo esse ponto de vista, os garimpeiros formariam uma “imensa massa humana trabalhadora e imprevidente, ambiciosa, inquieta, nômade e aventureira, mas quase sem ideal nenhum. É a gente garimpeira, ignorante e inculta – conquanto mais honesta, mais ousada e mais her[o]ica do que qualquer outra espécie de trabalhador – que se embrenha pelas grupiaras, que desbrava as serras alcantiladas, que penetra nas noites eternas das grunas profundas e perigosas, que mergulha nos poços dos rios traiçoeiros e violentos do planalto, arriscando, a todo instante, a vida, em holocausto à sorte e que, se bamburra, desce loucamente à cidade para a vendagem das gemas e, de possa da dinheirama que, talvez, nunca vira antes, se entrega imediatamente a todos os tipos de ostentação e de prazeres, nas casas de jogo, nos botequins, nos cabarés; adquire nas lojas toda espécie de mercadorias que se lhe apresentem – necessárias ou supérfluas – e, nesse diapasão, depois do esbanjamento, dentro de poucos dias retorna ao garimpo reduzido à mesma condição de pária, entre resignado e esperançoso de uma nova topada com a fortuna” (Moraes 1963: 42-43).

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se configurar como a motivação diária desses trabalhadores. Investir nessa caracterização não faz senão apresentar uma imagem literal e figurativamente empobrecedora dos garimpeiros, considerando-os apenas e essencialmente como ‘inaptos à acumulação capitalista’61. Essa forma de ver e de falar a respeito dos garimpeiros acaba traindo mais um anseio próprio aos grandes exploradores e àqueles desejosos em alavancar o ‘desenvolvimento’ do país a qualquer custo62. Atendo-nos, contudo, a uma determinada visão garimpeira de seu trabalho, vê-se como ao longo do tempo esses homens esforçaram-se em dirimir a imagem de clandestinidade e aventureirismo, à qual, se de fato chegaram a fazer jus no passado, definitivamente não guiava sua labuta diária. Como Seu Gilson e outros antigos garimpeiros afirmavam, os trabalhadores das serras estimavam sobretudo sua independência, fazendo todo possível para não terem de trabalhar como “meia-praça”, o que significava ter um patrão ou fornecedor que lhe provia meios de subsistência em troca do direito de receber metade do valor pelo qual fosse vendido qualquer diamante que o garimpeiro viesse a encontrar, depois de subtraídos os tributos devidos (ao governo e ao dono da serra). Não precisar trabalhar como meia-praça conferia ao garimpeiro autonomia para ditar seu próprio ritmo e local de trabalho, bem como lhe garantia rendimento consideravelmente mais significativo para o sustento de si e sua família – liberdade que muitos não só aspiravam como obtinham, comprovando a capacidade administrativa que priorizavam. Por mais que o trabalho se mostrasse uma constante em suas vidas, já que muitos dos garimpeiros tinham a certeza de que praticamente nenhum achado seria grande o bastante para não mais trabalhar pelo resto de suas vidas, tratava-se de um

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Retornarei a este ponto no fim do capítulo, na seção 1.5.

Há quem tenha sugerido que a questão da exploração dessa riqueza mineral devesse efetivamente ser uma das maiores prioridades do Estado, alavancando o país como potência industrial não importando qual seja o custo ambiental desse processo, num marco de assumido ufanismo (Peixoto 1946: 3).

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trabalho que lhes garantia o exercício do arbítrio de uma forma que seus ascendentes provavelmente nunca desfrutaram: tornaram-se senhores de si mesmos63. Os garimpeiros respeitavam igualmente tempo e condições próprios ao garimpar, segundo critérios tradicionais que incluíam todo um conhecimento ligado às grandes variações volumétricas dos rios – em geral provocadas por mudanças climáticas pequenas –, à separação dos inúmeros tipos de rochas e cascalhos, ao manejo dos instrumentos de trabalho, além de um saber conectado ao reconhecimento dos sinais da sorte. Um dos principais eventos que podia levar um garimpeiro a interromper seu dia imediatamente era a descoberta de uma pedra de raio, também chamada na região de “pedra de corisco” ou de “machadinha de índio”. Encontrar uma dessas pedras – normalmente muito achatadas e arredondas, cuja origem era atribuída ou ao impacto de um raio, ou à queda de um meteorito – significava que sua frente de trabalho estava “fechada”, nenhum diamante seria encontrado naquele dia, então nada lhe restava senão voltar para casa64. Deparar-se com uma dessas pedras parecia levar uma pessoa a um estado menos intenso da condição que os garimpeiros mais temiam lhes acometer: a de “infusado” ou “bojado”65. Infusar ou bojar é algo que podia acontecer a um garimpeiro por motivos diversos e de formas misteriosas, cuja principal consequência era ficar longo período de tempo sem encontrar um único diamante sequer, mesmo trabalhando arduamente ao lado de colegas que

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Essa outra imagem dos garimpeiros é compartilhada em especial pelas pesquisas que se basearam em trabalho de campo de longa duração junto a estes próprios trabalhadores (Gonçalves 1984: 43, 216-219; Guanaes 2001: 59-103; Toledo 2001: 49-53, 111-112). 64

A pedra era geralmente apanhada com grande reverência pelo garimpeiro, que a guardava em casa para que com isto sua morada ficasse protegida (“fechada”, igualmente) contra raios durante as pesadas chuvas e tempestades que acometiam as cidades das Lavras Diamantinas (Gonçalves 1984: 133, 141, 221). Afirma-se também que pedras como essas podem ser guardadas por sete anos e posteriormente colocadas em cozimento, tornando-se então aptas a serem penetradas pelas entidades nas quais serão transmutadas (Senna 1998: 103). 65

Tanto infusar como bojar são verbos cujos sentidos compreendem ações ligadas a espraiamento, seja o derramar ou espalhar do primeiro, seja o aumentar o volume de um corpo (de modo a fazer bojo) do segundo. É possível conectá-los, por um lado, à ideia que mencionam os garimpeiros dos diamantes que se esvaem pelas bateias cheias de água durante a lavagem do cascalho, quando não são devidamente reconhecidos; por outro, a um efeito da aversão ao excesso que será discutida na seção 1.5.

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continuavam encontrando pedras com a frequência costumeira. O azar que acompanhava o garimpeiro infusado podia diminuir sua vontade de trabalhar, e eram seus amigos que deveriam lhe ajudar e lhe fornecer meios de sobreviver e de retornar ao trabalho para que o tempo se encarregasse de lhe mostrar uma alteração em sua sorte. Havia, entretanto, um meio mais rápido e mais garantido de lidar com o infuso, ao qual muitos garimpeiros afirmaram já ter recorrido: rogar pela ação mística das forças ligadas ao jarê, o culto de matriz africana característico da região. Tanto os líderes religiosos como os próprios espíritos mobilizados em sua prática podiam ser diretamente acionados pelos garimpeiros. Os pedidos para uns e outros eram feitos tanto por aqueles que procuravam deixar de estar infusados quanto por garimpeiros que desejavam encontrar diamantes com auxílio das entidades, sabendo com isso que poderiam ficar, ao menos em parte, em dívida com as mesmas. Os procedimentos rituais realizados pelos curadores de jarê, como também são chamados seus líderes, raramente eram descritos pelos garimpeiros de forma detalhada, mas envolviam o recurso a um espírito e alguma adscrição do trabalhador da serra à entidade que havia lhe favorecido – bem como ao pai-desanto que a havia mobilizado em seu favor, caso houvesse seu intermédio. Conta-se que as entidades podiam prever os locais onde diamantes seriam encontrados, o espaço de tempo que seria preciso esperar pela descoberta seguinte ou ainda as técnicas de garimpagem necessárias ao achado das pedras preciosas. Ignorar os conselhos vindos dos espíritos, ou deixar de honrar os compromissos de retorno assumidos quando da obtenção de suas indicações – que variavam desde ajuda financeira às casas de culto ao simples reconhecimento de que a interferência mística fora crucial para a descoberta do diamante – significava correr o risco de atrair para si o revés do infuso. A partir desse ponto de vista, o garimpo configura-se menos numa coleta do que numa espécie de caça, pois o que se afirma é que os diamantes possuem uma vida própria, são

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capazes de se movimentar de acordo com uma vontade particular, bem como de fornecer indícios de sua localização por meio de fenômenos luminosos nos rios e nas serras, sons e vozes ou mesmo aparições visuais chamadas de “livusias”66. Seu Gilson me falava a respeito de como o diamante podia ficar um bom tempo “fervendo”, rolando no interior de poços naturais escavados no leito dos rios, e de como também podia crescer e ficar mais velho com o passar do tempo, ambas situações que poderiam alterar seu temperamento e comportamento, tornando-se mais arredio ou mais incauto. Todo velho garimpeiro já ouviu e fala a respeito dos três “D” que regem a descoberta bem-sucedida de uma pedra, indicando as primeiras letras da confluência do diamante com seu dono num certo dia67. Os garimpeiros tinham o domínio da pedra encontrada em seu estado natural, chamada de diamante bruto, que era então vendida aos capangueiros e pedristas para ser em seguida lapidada, seja em Lençóis, na época em que ali funcionavam casas de lapidação, seja em grandes centros urbanos onde seria revendida, tornando-se assim um brilhante68. Até hoje não é incomum que visitantes caminhando pela cidade sejam abordados por algum de seus moradores que teria guardado uma ou outra pedra bruta na esperança de encontrar um bom revendedor para ela – afinal de contas, dizem, talvez um dos muitos gringos que por lá passam seja como os estrangeiros de antigamente, que poderiam disputar a compra dos diamantes mais valiosos para levá-los para seus países. Não só da extração dos diamantes que seriam transformados em brilhantes e adornariam joias por todo o mundo vivia o garimpo de Lençóis. Desde cedo foi encontrado ali 66

Corruptela de “aleivosia”, mais um dos sinais da volição das pedras (Gonçalves 1984: 132, 220).

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A conjunção desses três fatores (Gonçalves 1984: 132; Ganem 2001: 138) pode acontecer mesmo bem depois do trabalho do garimpeiro ter sido realizado, como exemplifica a atitude dos moradores mais velhos da região que ainda abrem rotineiramente a moela da galinha caipira antes de cozinhá-la, ou olham bem o chão depois de uma chuva forte, à procura de algum diamante perdido, hábito atribuído à abundância das pedras no início da exploração (Funch 2007: 151). 68

Segundo capangueiros e lapidários de Lençóis, o valor dos brilhantes resultantes dos diamantes encontrados nos últimos tempos da exploração costumava variar entre US$ 500,00 (para uma pedra de meio quilate) e US$ 10.000,00 (para uma pedra de dois quilates) (Funch 2007: 167).

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o carbonado, comumente conhecido como “diamante negro”, chamado na região de “carbonato”. Inicialmente desprestigiado por não poder ser usado como ornamento, já que não é translúcido como o diamante – o que fazia com que os primeiros garimpeiros se livrassem dele em grandes quantidades –, a descoberta dos usos industriais do carbonado fez com que seu preço em pouco tempo se equiparasse ao da variante clara do diamante, salvando a economia das Lavras Diamantinas quando a mercadoria costumeira diminuiu de valor internacionalmente69. Quando Seu Gilson me falou a respeito do carbonado, a única outra substância capaz de cortar um diamante tradicional que não ele próprio, foi com algum deleite na voz que me disse como era o diamante negro e impuro que era capaz de quebrar o diamante branco e imáculo. O carbonado encontrado na Chapada Diamantina teve seus usos industriais descobertos ainda no século XIX, e em função de sua dureza demonstrou-se especialmente adequado para a perfuração de rochas e abertura de túneis, chegando a ser usado posteriormente para prospecção petrolífera em áreas rochosas. Os lençoenses ouviam como o diamante negro que era dali exportado foi utilizado em grandes empreendimentos ao longo do século XX ao redor do mundo, das escavações para linhas do metrô de Londres à abertura do Canal do Panamá, passando pelo Túnel de São Gotardo na Suíça e pela principal fábrica de automóveis da Ford nos Estados Unidos. Até hoje há garimpeiros e moradores da cidade que recordam a importância que a produção de Lençóis teve para essas atividades industriais, ainda que nem sempre sejam tão específicos quanto aos detalhes de seus acontecimentos70. Os garimpeiros também costumavam dizer que para cada estrela no céu há um diamante na terra, e vice-versa. A aproximação entre esses brilhantes celestes e as pedras 69

Em função, como mencionado, da descoberta de outras fontes de fornecimento (Praguer 1899: 58, 66; Moraes 1963: 37). 70

As referências na literatura são muitas, ainda que as fontes primárias para embasá-las sejam mais escassas (Pereira 1910: 108; Peixoto 1946: 3; Moraes 1963: 38; Gonçalves 1984: 26; Mattos Jr. 1997: 16; Ganem 2001: 61, 67; Araújo, Neves & Senna 2002: 135 nota 15; Funch 2007: 16, 163).

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encontradas nas serras se dava não só pela luminosidade que ambos podiam produzir ou refletir, mas igualmente em função de uma das possíveis origens de certo tipo de diamantes, similar a uma das pensadas pelos garimpeiros para as pedras de raio, tendo surgido do impacto de objetos extraterrestres. O carbonado, como mencionado, só é encontrado em poucos lugares no mundo, com as reservas mais significativas localizando-se na Chapada Diamantina e na República Centro-Africana (antiga colônia de Ubangui-Chari), possivelmente oriundas do impacto de um asteroide há pelo menos duzentos milhões de anos, antes da separação dos continentes que compunham a Pangeia71. Os diamantes continuam a fazer parte do cotidiano dos lençoenses de formas diversas, ainda que muitas vezes somente em lembranças ou metáforas. Uma amiga, de sobrenome justamente Diamantino, gostava em especial de fazer troça lembrando-nos dele constantemente e se comparando a um rico brilhante em meio a um mar de carbonados: brincadeira que não passava pela cor das pessoas, já que ela era tão ou mais negra que aqueles de quem gostava de dizer “não terem quilate”72. Ao longo da história de Lençóis, seguindo os ciclos do diamante, era muito comum haver garimpeiros exercendo outras profissões simultaneamente ao trabalho nas serras. Chamados de faiscadores, esses garimpeiros contentavam-se em trabalhar somente no pé da serra e próximo aos leitos dos rios, especialmente durante os fins de semana, como tinha sido o caso de Seu Gilson. Ele me dizia como ter sua profissão garantida durante a semana o ajudava a pagar as contas ao fim do mês sem precisar depender da sorte do garimpo, que entretanto lhe servira de renda suplementar quando fazia algum achado73. Com a idade,

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Outros locais onde foram encontrados carbonados são Minas Gerais e Mato Grosso, no Brasil, bem como na Venezuela, além de uma variante menos similar na Sibéria. A origem exclusivamente interestelar dos carbonados é uma possibilidade sobre a qual não há consenso científico (Garai et al. 2006: L156; McCall 2009: 90), contudo é interessante notar essa aproximação mineralógica entre o que viriam a se tornar Brasil e África, num outro tipo de reencontro tardio. 72

Essas ocasiões me faziam recordar constantemente a etimologia da palavra, que significa tanto “inquebrável” e “inflexível”, como, mais simbolicamente, “selvagem”, “resistente”, “aquele que não pode ser domado”. 73

Há ligeira discordância quanto ao significado do termo “faiscadores”, que podia também ser usado para designar membros de uma classe média incipiente que teve início na compra da “fazenda fina”, os diamantes de

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igualmente, ele ponderava que realizar sua busca lavando cascalho já devidamente trabalhado era menos penoso, posto que, diferentemente de muitos de seus amigos garimpeiros, não fazia planos de investir numa roça nas cercanias de cidade, preferindo a vida na sede de Lençóis. As Lavras Diamantinas eram abastecidas por gêneros alimentícios vindos de fora da região, já que sua produção interna, principalmente de outras cidades da Chapada, sempre foi bastante limitada, concentrando-se em povoados de acesso mais difícil mas com melhores condições para a agricultura, como os vales do Capão Grande, em Palmeiras, e do Paty, em Andaraí, produzindo arroz, feijão, café, farinha, bananas, laranjas e outras frutas. As roças no entorno de Lençóis costumam ser voltadas somente à produção de subsistência dos antigos garimpeiros, muitos dos quais decidiam passar cada vez mais tempo afastados da sede do município devido às fases de declínio e escassez do diamante74. A dieta dos habitantes da Chapada Diamantina sofreu alterações significativas nas últimas décadas, especialmente em sua composição proteica, em função não só do crescente número de produtos industrializados então disponíveis como das restrições à caça e à pesca estabelecidas com a criação do Parque Nacional, bem como com o esgotamento das próprias espécies após a intensificação da exploração decorrente dos últimos surtos do garimpo e do avanço do turismo75. Enquanto a base da alimentação diária continua similar (composta de arroz e feijão – tanto o comum como o andu –, batata-da-serra, abóbora, aipim, chuchu, mamão verde, fruta-pão, carne-de-

menor peso, o que não exclui certa convergência com a ideia de garimpeiro ocasional (Moraes 1963: 42; Gonçalves 1984: 28, 217; Funch 2007: 14). 74

As avaliações da importância da lavoura de subsistência para o garimpo afirmam que enquanto a roça oferece segurança, o garimpo oferece esperança. Na área do município de Lençóis propriamente, o solo costuma ser muito ácido e pobre em nutrientes, além de pouco profundo, apropriado para pouco mais que mandioca, abacaxi e andu (Pereira 1937: 59; Funch 2007: 15, 78). 75

Todos estão bastante cientes da atuação do Ibama e da configuração de crime ambiental que agora constituem determinadas atividades extrativistas no interior da área do Parque Nacional (Senna 1996: 59). Entre os animais caçados na região no início do século XX encontravam-se “anta, veado mateiro, catingueiro, porco queixada, caititu, onça preta e su[ç]uarana, gatos do mato, pacas, cotias, raposas, guarás” (Pereira 1937: 17) e, mais recentemente “paca, teiú, jacaré, capivara, cotia, tatu, raposa, rato do mato [o chamado mocó]” (Gonçalves 1984: 86-89). Entre os peixes, obtidos principalmente pelos moradores da vila do Remanso, havia “traíra, piranha, curimutá, umbá, tuiuiú, jundiá, tucunaré, apari e corro” (Gonçalves 1984: 89).

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sol), a criação de animais domésticos tornou-se mais comum nas roças do entorno da cidade – em especial galinhas e em menor escala porcos, substituindo as carnes de caça e o pescado outrora abundantes – complementando plantações de mandioca, feijões, milho e abóbora, além de frutas, menos frequentes, como banana, maracujá, e em especial abacaxi, que não encontram tanta dificuldade quanto as demais de vicejar no solo ácido da região. O surgimento do Parque Nacional em 1985 marcou o início do fim do último ciclo de exploração da pedra, intensivo e baseado em maquinário pesado. O chamado garimpo de draga teve início em 1980 quando a região é praticamente invadida por um novo tipo de minerador empregando possantes bombas d’água para explorar as jazidas restantes nos aluviões no pé da serra. Em seu auge, cinco anos depois, havia entre 100 e 150 dessas dragas em funcionamento, retirando quantidades significativas de diamante da Serra do Sincorá, empregando e sendo comandadas majoritariamente por pessoas de fora da Chapada. O trabalho nas dragas atrai principalmente os homens mais jovens, por prescindir do domínio da técnica dos garimpeiros tradicionais e possibilitar retorno mais imediato, o que no decorrer de alguns anos deixou efeitos devastadores na paisagem local. A despeito da proibição formal da atividade desde o decretamento do Parque Nacional, é somente em 1996 que, pressionados pelo crescimento constante da indústria do turismo, agentes dos órgãos ambientais do estado e da União efetuam batidas sistemáticas levando ao fechamento das operações com draga76. Apesar de não ter se envolvido com os mineradores de draga, Seu Gilson continuava seu trabalho esporádico nas serras, assim como o faziam muitos dos garimpeiros mais velhos, utilizando as técnicas artesanais de garimpagem. Porém, até mesmo esse garimpo teve sua proibição igualmente forçada no final do ano de 1998, consolidando o turismo como principal atividade econômica em Lençóis. No que pesem os danos consideravelmente marcantes

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Os dados disponíveis apontam que em 1994 ainda havia 52 dragas em operação, e que o fechamento ocorreu em março de 1996. Apesar do nome incorreto para os motores-bomba a óleo diesel, a época do garimpo de dragas ficou marcada dessa forma vividamente pelos lençoenses (Senna 1996: 107; Funch 2007: 14, 158).

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causados ao ambiente pelo garimpo, em especial o mecanizado, reside em muitos dos lençoenses mais velhos a ideia de que, além da preservação ambiental, influenciaram também na decisão governamental a ameaça contínua de contrabando e a dificuldade de se cobrar os impostos devidos sobre as muitas etapas produtivas da extração e do comércio das pedras preciosas. Os garimpeiros mais antigos da região, que se viram definitivamente privados de suas formas de trabalho e que agora em geral sobrevivem graças a aposentadorias ligadas ao trabalho no campo, defendem a liberação do garimpo tradicional de pequena escala, sustentando seu menor impacto sobre o meio ambiente77. Agora, contudo, precisam disputar esse entendimento não só com o governo como com os empresários da mais recente indústria da Chapada Diamantina.

1.2 Excursos

O tipo de turismo que começou a se estabelecer na Chapada Diamantina, tendo Lençóis como base de operações por contar com os principais hotéis, pousadas e agências de passeios, foi primariamente o chamado ecoturismo de aventura. Aqueles que trabalham nesse ramo afirmam que os atrativos naturais da região podem ser aproveitados de forma ambientalmente consciente e não predatória, diferentemente do que acontecia com o garimpo mais intensivo. Essa espécie de turismo atrai principalmente jovens, tanto do Brasil como do exterior, e mochileiros, muitos dos quais ainda compõem o principal contingente de visitantes da cidade, interessados em realizar trilhas pelas serras, tomar banhos nas cachoeiras isoladas e conhecer as grutas e a vegetação típica da Chapada. Surge assim a necessidade de guias para 77

Mesmo após terminada a tolerância legal com todo tipo de garimpo (Araújo 2002: 178), o diagnóstico feito acerca de uma das cidades-fantasma produzida pelos ciclos do diamante é igualmente válido para a Lençóis dos garimpeiros, e em seu duplo sentido: “O garimpo praticamente acabou na região, mas jamais se achará o último diamante” (Funch 2007: 103).

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levar os visitantes por longas caminhadas nas quais é normal pernoitar por alguns dias na serra, seja na casa de moradores mais isolados, seja nas grutas que acomodavam os garimpeiros, seja acampando ao ar livre. Em pouco tempo ficou claro para a população que para a função não havia ninguém melhor que os próprios garimpeiros, que já conheciam as trilhas e segredos dos platôs diamantinos, assim como em seguida os filhos destes. Esse era o caso de um dos filhos de Seu Gilson, que se tornou guia esporádico e me levou em alguns dos passeios mais simples no entorno de Lençóis. Se virtualmente todo homem em Lençóis com idade para trabalhar era um garimpeiro antigamente, hoje em dia não há quem não possa atuar como guia turístico nos passeios mais próximos à cidade, como subir o Rio Serrano até os Salões de Areia e a Cachoeira da Primavera, ou caminhar até o Ribeirão do Meio e a Cachoeira do Sossego. Enquanto os passeios mais distantes e que exigem pernoites nas serras continuam a favorecer guias mais experientes e qualificados, que arriscam o uso de um inglês utilitário e estabelecem vínculos com agências de passeio para obtenção de transporte pelas estradas acidentadas da região, o influxo de turistas com perfil distinto daquele dos aventureiros mais diligentes garante trabalho para muitos dos guias ocasionais. Nos últimos anos, Lençóis viu ser ampliada sua rede de hotéis luxuosos e restaurantes sofisticados, e chegou a ter por algum tempo três linhas aéreas diferentes operando a rota direta Salvador-Lençóis simultaneamente, contando hoje em dia apenas com uma companhia realizando voos semanais da capital até o aeroporto de Tanquinho, um dos distritos da cidade. Na prática, Lençóis era a única cidade baiana fora do litoral que, no início do século XXI, possuía infraestrutura turística significativa. Mesmo com as dificuldades de locomoção impostas a pedestres pelo desenho acidentado de seu terreno, suas ladeiras e calçamentos irregulares, a cidade passou a ser também destino que atraía visitantes de idade mais avançada em busca de alternativas mais tranquilas para férias e feriados, incluindo aí os chamados

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turistas “empacotados”, aqueles que viajam comprando um pacote completo com roteiros preestabelecidos78. O desenvolvimento da indústria do turismo em Lençóis fez com que muitos dos forasteiros que tinham se mudado para lá no passado investissem nessa atividade, bem como continuou a atrair pessoas interessadas nas oportunidades que o ramo inaugurava. Em geral tendo maior conhecimento de línguas estrangeiras e habilidades de administração e organização empresarial, bem como aportando um capital inicial considerável ou conseguindo incentivos governamentais para o estabelecimento de negócios próprios, esses forasteiros dominaram boa parte do mercado turístico e das posições estratégicas dentro dele, como as de donos de agências de passeios, pousadas e restaurantes. Ainda que também haja nativos no comando de alguns desses negócios (e, entre esses, há mesmo alguns poucos não ligados às famílias tradicionais da região), em números tanto proporcionais como absolutos o desemprego é muito maior entre os lençoenses, que costumam igualmente ocupar as posições mais mal remuneradas do setor, como garçons, faxineiras e guias de passeios próximos79. A maior parte da população aufere assim muito pouco dos rendimentos gerados pelo turismo, que de todo modo ainda se insinua como o único caminho a ser trilhado para o desenvolvimento da economia da cidade80: “Melhor pingando, que seco”, me diziam. Os lençoenses constatam que a estruturação da atividade turística na Lençóis de hoje guarda muitas semelhanças com as formas de organização do garimpo de outrora. De certa forma, os donos das serras que cobravam para que nelas se garimpasse e os atravessadores 78

Esses fatores tornaram Lençóis uma cidade propícia também ao turismo familiar (Senna 1996: 62; R. Senna 2002: 248; Brito 2005: 17 nota 1; Funch 2007: 9). 79

Essa constatação é consensual na literatura (Senna 1996: 55; Lima & Nolasco 1997: 19; O. Senna 2002: 13). A frase de um dos moradores a respeito dos novos patrões da cidade é plena de ironia, e tão forte quanto exata: “[E]les hoje são empresários, querem lucro e silêncio” (Brito 2005: 129). 80

Um dos dirigentes de uma das escolas locais me disse que havia recusado a implementação de cursos profissionalizantes na instituição em que lecionava já que o único que lhes seria oferecido era o voltado diretamente para turismo, enquanto os outros solicitados, voltados para formação de carpinteiros, eletricistas e técnicos de informática, fariam muito mais diferença na vida dos alunos e os colocariam em condições de exercer uma profissão que lhes daria maior autonomia no mercado local.

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dos diamantes equivalem hoje aos donos das agências de turismo e meios de transporte que fazem a mediação dos visitantes. Os garimpeiros que no passado procuravam a sorte do bambúrrio foram substituídos pelos guias que disputam os turistas que melhor pagam pelos passeios, “caçando-os”, como dizem, do mesmo modo como faziam com as pedras preciosas. Os surtos de crescimento e declínio dos ciclos do diamante ao longo dos anos foram substituídos pela sazonalidade anual dos meses de férias e feriados importantes, e a cidade continua em boa medida à mercê das flutuações econômicas do resto do mundo81. Da mesma forma que o governo local se queixava das dificuldades de controlar a tributação devida pelo comércio das pedras preciosas82, a prefeitura hoje faz todo o possível para regulamentar a arrecadação devida pelo rendimento dos guias e das agências de turismo, que muitas vezes trabalham informalmente e sem registros escritos83. Outra conexão entre o garimpo e o turismo, não tão óbvia e em especial mobilizada pelos garimpeiros mais velhos, é o fato de aquelas serras terem sido, sob determinados aspectos, desbravadas e mantidas por eles ao longo de mais de um século. Por mais que os impactos ambientais da atividade garimpeira estejam longe de ser desconsideráveis – especialmente os do período das dragas –, esses idosos senhores lembram-se como sempre custodiaram a Chapada contra incêndios – naturais ou não84 – e como foram somente sua tenacidade e sua vontade de permanecer habitando a região do Sincorá que possibilitaram que

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A crise econômica mundial que aconteceu durante o período em que realizei trabalho de campo era frequentemente citada pelos lençoenses que trabalhavam mais ligados ao turismo como motivo para a diminuição do fluxo de estrangeiros naqueles anos. 82

Problema registrado desde bastante cedo (Pereira 1910: 116).

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Essa atitude pode ser compartilhada tanto pelas elites econômicas e políticas como, consequentemente, pelo poder público, relacionando-se como o turismo da mesma forma extrativista e predatória como se relacionavam com o garimpo (O. Senna 2002: 13). 84

Embora as características de Lençóis especificamente, com seu solo fraco e relevo montanhoso, não a tornassem propícia à agricultura ou pecuária, muitos dos territórios nos quais hoje se encontram atrações turísticas da Chapada Diamantina foram ocupados por gado e agricultura que promoviam grandes queimadas nas matas da região, até a proibição definitiva desse recurso pelo Ibama em 2003 (R. Senna 2002: 249; Funch 2007: 14, 24).

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suas maravilhas naturais fossem descobertas e posteriormente tornadas disponíveis para visitação por pessoas do mundo todo: algo que talvez nunca viesse a acontecer caso Lençóis tivesse sido abandonada em definitivo durante alguma das piores fases de escassez do diamante, como de fato veio a ocorrer com outras povoações cujas ruínas hoje oferecem testemunho85. Descartar o argumento dos garimpeiros mais antigos como simples fruto de saudosismo significaria ignorar tanto sua reatualização construtiva do passado como uma de suas formas de continuar a expressar seu sentimento de conexão profunda com a cidade. Não só os habitantes mais antigos como praticamente todo lençoense faz questão de exibir o orgulho de ser um nativo da Chapada. Seria exagero dizer que esse entusiasmo é somente fruto de uma valorização recente de suas belezas naturais em função da expansão do turismo na região, posto que a vaidade demonstrada ao marcarem o fato de serem lençoenses – mesmo em contraposição a outras cidades da Chapada Diamantina – existia mesmo antes do advento dessa indústria e beira mesmo a soberba, ainda que matizada por bom humor, quando afirmam que nenhuma outra cidade brilha tanto quanto Lençóis86. De todo modo, especialmente entre os habitantes mais jovens de Lençóis, existem aqueles que demonstram um fascínio especial pelos turistas naquilo que representam de distinto de sua realidade. Por um lado, há o caso dos que buscam, na medida de suas possibilidades, emular a vida dos turistas que passam alguns dias na cidade, juntando dinheiro seja para almoçar em algum dos melhores restaurantes – que costumam lhes oferecer

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Ver fotos 7 e 8 no anexo III.

Há hoje, contudo, muitos incêndios provocados propositalmente por moradores da zona rural tanto a serviço de pecuaristas como de forma a marcar sua insatisfação com a perda de seus meios de existência tradicionais, impedidos que ficam de garimpar ou ter suas roças na área do Parque Nacional. Um membro de um órgão ambientalista que atua na cidade me disse ter ouvido de um desses habitantes, dando-lhe a entender que não via grande problema nas queimadas: “Essa beleza toda que dizem que tem aí, moço? Não vejo, não”. Críticos locais consideram que ter o passado como referência constante e ver o presente como profunda lamentação impregnada do sentido de perda, bem como viver com a ausência de perspectivas para o futuro, não são necessariamente marcas novas na região (Senna 1996: 16-17; O. Senna 2002: 12).

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descontos –, seja para se tornarem eles também turistas viajando para outros destinos por alguns dias – o mais comum deles sendo Salvador durante as férias –, seja ainda demitindo-se de seus empregos para aproveitar alguns dias de festa na própria Lençóis. Por outro, existem as histórias daqueles que realmente não desejam mais morar na cidade e querem conhecer uma realidade completamente distinta da sua, desejo alimentado pelas histórias que ouvem a respeito de outros lugares, em especial do exterior, em função do contato mais intenso que agora passam a ter com estrangeiros87. O exemplo prototípico dessa situação é provavelmente o do forasteiro, branco, que se apaixona por uma nativa e se casa com ela, levando-a para seu lugar de origem e com ela criando uma família – história que realmente chega a acontecer com uma ou outra pessoa. Esse sonho de arrebatamento também não é novidade entre os lençoenses, sendo mote do romance que serviu de inspiração ao roteiro do filme mais importante já produzido na região88. De certo modo, essa ocorrência se repete em uma versão menor nos breves romances que se multiplicam especialmente entre gringos e nativos de ambos os sexos. Apesar de raramente terem consequências mais duradouras, esses casos permitem que ambos os lados vivenciem por alguns dias o desejo de se aproximarem das realidades um do outro. Ainda que não se deva descartar a possibilidade de que haja relações de compra e venda de favores sexuais propriamente, dificilmente havendo explicitação do que alhures se consideraria meretrício – do mesmo modo como acontecia na época do garimpo. O mais comum é que jovens, de ambos os sexos, disputem a atenção de gringos que passarão a lhes fazer companhia enquanto os levam para passeios e restaurantes, sem compensação monetária por, e sem garantia de que haverá, qualquer envolvimento mais íntimo – ainda que alguns se 87

Daí o receio de que, na visão de um crítico local, agora que um novo horizonte para o futuro de Lençóis se descortina, os habitantes da cidade troquem sua atração pelo passado por uma igualmente danosa obstinação pelo futuro (O. Senna 2002: 12-14), algo que não se entrevia na época em que na cidade também não havia grande penetração de meios de comunicação de massa, por exemplo (Gonçalves 1984: 53). 88

Como será visto no capítulo 3, seção 3.3.

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refiram a essa procura, sempre de maneira jocosa e somente entre amigos bastante próximos, como “fazer a prostituição”89. Apesar de existir alguma agricultura no município, sendo inclusive atividade primária nos distritos e povoados da zona rural localizados fora da área do Parque Nacional, ela não se configura numa verdadeira alternativa ao turismo90. Os auxílios governamentais dirigidos à região sempre se concentraram no estímulo à indústria turística, mesmo quando tangenciando outras atrações que não as visitas aos pontos de interesse natural, tais como incentivos ao turismo de base comunitária ou cultural. A ação do governo municipal também faz pouco para alterar essa situação, e a quantidade de recursos básicos recebidos que depende do número de habitantes do município não leva em conta o número flutuante porém significativo de turistas que por ali passam e permanecem minimamente por alguns dias. Ainda que por vezes esse pareça ser um destino distinto daquele que prefeririam ter para si mesmos, muitos lençoenses se consideram fadados a trabalhar conectados ao turismo, ainda que ao menos indiretamente. As oportunidades de trabalho para a maior parte dos lençoenses, mesmo ligadas à nova economia da cidade, não são, todavia, abundantes. Ser contratado com carteira assinada recebendo “um salário” (como se referem ao salário mínimo) é destino reservado a uma minoria de certa forma mais bem qualificada, estando entre os empregos mais bem pagos de Lençóis, dúbio título que disputam com as ocupações derivadas de cargos de confiança apontados pela prefeitura. Enquanto também há aqueles contratados por um salário mensal combinado informalmente, a relação de trabalho à qual a maior parte da população está mais acostumada é a de “dar diárias” em determinados estabelecimentos, pelo que uma pessoa

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Trata-se, efetivamente, muito mais de uma forma de turismo romântico do que de turismo sexual (Pruitt & LaFont 1995: 422), ainda que em Lençóis, diferentemente do contexto com base no qual o termo foi concebido, a ideia de romance se aplique tanto aos encontros com homens quanto aos com mulheres na cidade. 90

Há quem defenda que seria possível retomar a atividade do garimpo manual em consonância com o turismo e a manutenção sustentável das serras e rios da Chapada, aliando a essas atividades mais investimentos na agricultura que sempre acompanhou à distância o resto da vida econômica do município (Gonçalves 1984: 22; Senna 1996: 41, 56, 80; Seabra 1998: 215-219; O. Senna 2002: 13; R. Senna 2002: 246; Funch 2007: 13-15).

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pode receber normalmente entre R$ 20,00 e R$ 50,00 por dia de trabalho, em geral não mais que três dias por semana. As diárias também permitem aos donos de hotéis, pousadas, restaurantes e agências de passeios aumentarem seus efetivos durante os momentos de alta temporada e diminuí-los na baixa, quando há estabelecimentos que permanecem fechados durante meses seguidos caso seus proprietários possuam outras fontes de renda (em geral em Salvador ou no exterior). O alto grau de variabilidade de seus vencimentos ao longo do ano faz com que seja preciso poupar em certos meses para que não se passe outros desprovido, algo que nem todos os lençoenses sabem – ou estão dispostos a – fazer. Seu Gilson sempre me dizia como seu salário de servente do banco, assim como seu ganho ocasional realizando dedetizações na cidade, era dinheiro do trabalho suado e cotidiano, que não era feito para se esvair em festas e bebidas como seriam os proventos do garimpo. Dona Juanita, hoje proprietária de uma pousada – onde eu me hospedei –, comentava como foi o dinheiro ganhado lavando roupas para um dos maiores hotéis da cidade que nunca tinha lhe faltado em épocas de dificuldade. O dinheiro que vinha já do berço, muitos diziam, não conferia a seu possuidor a mesma percepção de sua importância quanto as reservas obtidas pouco a pouco, a partir de praticamente nada. Os líderes religiosos do jarê, ciosos da importância do trabalho tanto em suas casas de culto como fora delas, afirmavam como precisavam ser mais lenientes quanto ao comparecimento de seus filhos-de-santo nas cerimônias durante as épocas em que havia mais trabalho disponível na cidade. Os nativos da Chapada, de todo modo, estão longe de ser – e de quererem ser – grandes acumuladores. A medida do trabalho e do investimento de tempo e energia pessoal, especialmente em se tratando de empregos prestando serviços, ou seja, quase a totalidade das ocupações disponíveis na cidade, raramente vai além do necessário para o sustento familiar. Enquanto conversávamos a esse respeito, um amigo disse, sem grande preocupação, entender

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os motivos que levavam à caracterização de preguiçosos conferida aos baianos. Sem colocar o grau de premeditação dessas atividades em jogo, investe-se, de certa forma, nesse estilo de (‘falta de’) receptividade e profissionalismo com os turistas, gerando uma espécie de relação de trabalho que não se dobra ao capitalismo a qualquer preço: as pessoas preferem não abrir seus estabelecimentos durante o horário do almoço, não fazem questão de aparentar devotamento absoluto aos fregueses – o que leva certos turistas e forasteiros com empreendimentos na cidade ao inevitável comentário de que aquele “tipo de gente parece até que não quer ganhar dinheiro”. Mais que outra coisa, impera muitas vezes uma ética do trabalho pautada por um ideal de suficiência91. Tão ou mais importante que o tempo dedicado ao trabalho, então, é o tempo que se destina ao lazer. Como dissera um de meus amigos que trabalhara algum tempo em São Paulo, ele jamais desejaria levar o tipo de vida que seus colegas de lá tinham, saindo muito cedo e chegando muito tarde em casa, sem tempo para nada, perdendo horas no trânsito ou com burocracia. Em nítida contraposição à “vida de paulistano”, ele me dizia, nada poderia se igualar aos banhos de rio no fim da tarde que ele podia tomar em Lençóis, mesmo estando empregado num dos grandes hotéis da cidade. Quando não vão tirar o dia para pescar ou caçar, outras formas de lazer rotineiro incluem reunir-se para conversar, beber ou jogar dominó, três dos passatempos favoritos dos lençoenses e que muitas vezes eram desfrutados simultaneamente92.

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Como já se escreveu sobre o tema, falando da uma Lençóis de outra época: “Nenhum trabalho, nenhuma obrigação, nem o trabalho das mulheres em casa, exigem tudo ou quase tudo das pessoas. O trabalho não enriquece ninguém, nem mesmo o garimpo; dá o necessário, mas também não exige demais, nem em esforço, nem em tempo consumido. O tempo não tem pressa, passa bem devagar” (Gonçalves 1984: 57, itálico no original). 92

Caça e pesca ali se configuram muito mais como opções de lazer do que atividades econômicas, empreendidas hoje normalmente aos finais de semana e somente fora das áreas protegidas do Parque Nacional. Mesmo podendo voltar por vezes de mãos abanando, a alegria desses eventos era recontada diversas vezes: “De fato, brincar e vadiar são sinônimos, indicando a ação que se pratica pelo prazer da ação em si, pela alegria que ela pode dar ao corpo e ao espírito do homem. [...] O tempo que podem dedicar a isto é tão ou mais importante que aquele dedicado ao trabalho” (Gonçalves 1984: 169, itálico removido).

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Os amigos que fiz em Lençóis, em especial os que tinham empregos ligados ao turismo, costumavam usar uma expressão específica quando falavam acerca da necessidade de trabalhar durante quase todos os dias e por vezes por longos períodos de tempo. Tinham de se contentar com esse destino porque, afinal de contas, “não tinham estudo”. Se é verdade que por vezes se referiam, com essa forma de falar, a seu sentido literal, aludindo com isso à possibilidade de obter alguns dos empregos menos mal pagos disponíveis na cidade – e em geral eram todos bastante conscientes da quantidade de anos que cada um havia dedicado à escola –, limitar-se a ele deixa escapar um significado mais sutil que conferem à frase. Quando passei a ouvir a mesma expressão sendo utilizada em situações um pouco mais inusitadas, contudo, ela foi se revelando mais rica do que à primeira vista parecia. Mesmo as pessoas que durante mais tempo haviam estudado, chegando a terminar seus cursos de graduação – à distância ou presenciais, comumente no campus da Universidade Estadual da Bahia localizado em Itaberaba, cidade à beira da BR-242, a mais de 130 quilômetros de Lençóis –, podiam dizer em determinadas ocasiões que “não tinham estudo”. Quando uma professora que havia cursado pedagogia comentou que dois jovens franceses podiam aproveitar a vida viajando pelo Brasil pelo fato de “terem estudo”, eu lhe disse que a julgar pela idade deles, era bem provável que ela tivesse mais estudo que qualquer um dos dois, ao que ela respondeu com ligeiro escárnio: “ter estudo não significa ter estudado”. Falar sobre ter ou não ter estudo era um meio de se referir indiretamente e de modo mais amplo à condição econômica de uma pessoa e de como ela adviria, ou justamente como não adviria, dos anos escolares acumulados. Com o uso dessa expressão, meus amigos faziam também certa crítica à ideia de que bastava estudar muito para ter sucesso e uma boa remuneração, algo que a história de sua cidade tanto no passado como no presente mostrava não corresponder necessariamente à verdade93. Talvez em função dessa constatação, eram muitos 93

Também não descartei de antemão a possibilidade de que a expressão surgisse ao menos em parte em função da interlocução comigo, já que em pouco tempo pediam-me para falar mais do meu próprio trabalho como um

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os que não concluíam os estudos, passando a trabalhar desde cedo e raramente voltando à escola, ainda que recentemente parecesse estar crescendo o número de adultos que estudavam à noite para terminar o ensino fundamental94. O considerável fluxo de dinheiro circulando pela cidade, de todo modo, faz com que as disparidades econômicas entre os lençoenses, por um lado, e os visitantes da região e os forasteiros que para lá se mudam, por outro, tornem-se mais óbvias. Ainda que virtualmente não exista população de rua em Lençóis, e a mendicância seja um fenômeno bastante raro e limitado, não são incomuns os pedidos de pequenos empréstimos a pessoas cujas fontes de renda não estão diretamente ligadas à economia da cidade, sejam moradores recentes ou turistas que ali fiquem algum tempo e com quem o estabelecimento de uma breve amizade permite essa liberdade. Esses empréstimos, normalmente entre R$ 10,00 e R$ 50,00, dificilmente serão pagos, fato que em pouco tempo torna-se conhecido por ambas as partes, ainda que o devedor certifique-se de mencionar sua dívida de tempos em tempos antes que a passagem de alguns meses faça com que ela caia num esquecimento premeditado, inaugurando a possibilidade de um novo pedido95. De modo similar, espera-se de todos aqueles que frequentam as festas nas casas de culto de jarê que auxiliem de alguma forma, as contribuições monetárias figurando como uma dessas possibilidades, jamais explicitamente solicitadas mas sempre bem-vindas e recebidas com agradecimentos e invocações de bênçãos. Faz-se necessário obter fundos com as pessoas

estudante de doutorado já tendo concluído a faculdade há um tempo considerável. Não conferi grande peso a essa hipótese, de toda forma, já que presenciei o uso da expressão diversas vezes para falarem sobre muitas outras pessoas e também em situações nas quais eu não estava diretamente ligado à conversa. 94

Vez ou outra, entretanto, alguém falava sobre um aluno que estudara sua vida toda nas escolas públicas de Lençóis e com muita luta tinha passado no vestibular da Universidade Federal da Bahia para o curso de Direito, o que me motivou a realizar uma palestra para os alunos cursando o último ano do Ensino Médio para lhes dar detalhes a respeito de ações afirmativas existentes nas universidades da Bahia. 95

Esses empréstimos foram bastante comuns ao longo do meu trabalho de campo, especialmente pedidos por, e feitos a, meus principais interlocutores na pesquisa. A prática, contudo, é bem mais ampla, não se restringindo aos pesquisadores, e possivelmente possibilitada e consolidada dessa forma depois do advento do turismo em Lençóis (Senna 1996: 38).

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ligadas aos terreiros – aí incluídos os pesquisadores que por lá andassem – para financiar diversos aspectos das cerimônias, fosse o pagamento de parte do transporte para os volumes mais pesados até casas distantes, a compra de algum animal a ser utilizado numa cerimônia, a aquisição de ornamentos ou gêneros alimentícios. Nenhum tipo de cobrança surge caso um auxílio não possa ser disponibilizado numa ocasião qualquer, mas se uma promessa é feita é possível que perguntem, à boca pequena, se o “faz-me rir” havia sido conseguido. Se é verdade que o dinheiro pode ser um importante componente nas relações estabelecidas entre os membros da religião e as demais pessoas que vão às casas de culto com menor frequência – sejam pesquisadores, turistas, curiosos ou pessoas que desejam solicitar a realização de algum procedimento místico –, tornando-se responsável pela aquisição de uma informação, uma graça, um serviço ritual, não é o dinheiro de qualquer pessoa, e tampouco o mobilizado de qualquer forma, que entrará nesse circuito. Estabelece-se uma relação específica que conecta o dispêndio e seu realizador à comunidade da casa de culto, por mais momentaneamente que seja, dificilmente funcionando como substituto às relações interpessoais ali encetadas. Por mais que saibam precisamente o custo monetário envolvido na realização de uma operação ritual, os membros do jarê resumem esse quadro ao não deixarem de afirmar: “Dinheiro não conversa”. Ao mesmo tempo, por mais de uma vez contaram-me histórias nas quais o pagamento relativo a um ritual foi integralmente devolvido a quem o solicitara, a mando, por exemplo, de uma das entidades envolvidas no ato místico – para descontentamento dos adeptos, como eles mesmos acrescentavam –, bem como casos nos quais os espíritos diziam que guardariam para um momento posterior a indicação da localização de mais diamantes para um garimpeiro, logo depois de lhes ter proporcionado um achado confirmado. O fato de que se comenta bem menos a respeito daqueles que fizeram fortuna com o garimpo se deve a algumas razões distintas. Apesar de serem relativamente escassas, as

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referências na literatura dão nota de vários garimpeiros e capangueiros que conseguiram juntar grande quantidade de dinheiro ao encontrar diamantes de tamanho significativo e que não gastaram de maneira extravagante tudo que ganharam. Como mencionado, a insistência em caracterizá-los como esbanjadores tolos parece redobrar um sentimento compartilhado muito mais pelos grandes pedristas, donos de serra, coronéis do diamante e seus descendentes do que um lamento a respeito do passado, posto que alguns garimpeiros que vivenciaram momentos de fortuna ontem e hoje ao longo de suas vidas afirmam: dada a chance, muitos deles fariam de novo exatamente tudo aquilo que fizeram, proporcionando momentos, por fugidios que fossem, de grande conforto e festejo para si e para os seus96. Ao longo da história de Lençóis, se foi gasta maior quantidade de dinheiro com algo que não tenha sido a companhia das mulheres-dama da cidade, é bem provável que tenha sido com bebidas alcoólicas. O consumo de diversos tipos de bebidas é um dos passatempos prediletos dos lençoenses, que cultivam certa predileção pela aguardente de cana97. É bastante comum que todos tenham em suas casas ao menos uma “meiota”, correspondente a meio litro de pinga – comumente aromatizada por revendedores locais e guardada em garrafas plásticas originalmente usadas para água mineral –, e que a degustem diariamente. O hábito bastante disseminado não se confunde, entretanto, com o problema do alcoolismo, que os lençoenses reconhecem abater-se sobre algumas pessoas. Assim como nas épocas de declínio da produção diamantífera, há alguns homens e umas poucas mulheres – incluindo alguns de idade já mais avançada – que passam seus dias praticamente inteiros a beber, esvanecendo-se

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Vários dos garimpeiros conhecidos que de fato fizeram fortuna mantiveram-na por terem deixado tudo para trás e se mudado para bem longe (Ganem 2001: 71, 137). Constata-se que a atitude perdulária imputada aos garimpeiros das serras afina-se mais com a disposição propalada pelos donos de garimpo (e seus biógrafos), ou ao menos dificilmente parece ter sido exclusiva dos primeiros (Pereira 1910: 66; Moraes 1963: 36; Gonçalves 1984: 23; Ganem 2001: 85-87, 139). 97

Ocorrência atribuída ao caráter fronteiriço de comunidades como a garimpeira (Gonçalves 1984: 23), sendo que em Lençóis é bem provável que aquilo que se escreveu sobre o uso de bebidas num estudo feito numa comunidade rural de outro município da Chapada seja igualmente válido, a saber, que “quem não bebe[,] já bebeu” (Brantes 2007: 35).

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quaisquer economias e saúde que ainda cultivem, normalmente aglomerando-se nos, e diante dos, armazéns nos quais podem encontrar um passante, conhecido ou não, que lhes pague mais uma dose98. Essa costuma ser uma situação que incomoda tanto os visitantes da cidade como seus moradores, visto que se corre o risco de não se distinguir as pessoas que de fato apresentam um problema com a bebida daquelas que a apreciam de maneira mais comedida – até porque é frequente todas beberem juntas sem grandes problemas. O fato de que uma pessoa possa verdadeiramente transitar entre os dois grupos também preocupa particularmente àqueles interessados em lidar com o problema do alcoolismo na cidade, ao tentar evitar que ele acometa especialmente os mais jovens – ainda que seja praticamente consensual o diagnóstico de todos os envolvidos de que sua incidência se relaciona com uma determinada falta de perspectiva de futuro que se agravou com o crescimento da economia do turismo, mas que pode ser igualmente resolvida tanto com a participação adequada de toda a população em seus frutos como por meio da influência familiar. Certa vez, enquanto caminhávamos de manhã bem cedo pela cidade, Seu Gilson e eu fomos surpreendidos por uma algazarra feita por dois jovens bastante novos que haviam bebido consideravelmente na madrugada anterior e ainda não tinham voltado para suas casas. Quando o avistaram, os jovens recobraram a compostura que foi possível e o cumprimentaram polidamente, ao que foram gentilmente aconselhados a irem para suas casas. Seu Gilson logo em seguida me disse que já tivera de conversar com a polícia em outra ocasião para que eles não fossem presos, prometendo às autoridades que os meninos ficariam sob seus cuidados, passando-lhes em seguida um bom sermão para que tomassem mais jeito – e terminou o relato fazendo questão de se certificar se eu havia notado a maneira respeitosa como o haviam tratado.

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Uma forma comum de se dizer, em geral de modo espirituoso, que sua situação financeira não anda muito bem é afirmar que não se possui dinheiro nem para comprar cachaça.

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Muitas pessoas bebem por gosto, mas aquelas que rotineiramente cometem excessos podem fazê-lo por diferentes motivos, aí incluídos tanto a “falta de vergonha na cara” como problemas de ordem mística, caso daqueles que “bebem forçado”. Se alguém, mesmo depois de diversas medidas levadas a cabo por seus amigos e familiares, e mesmo depois de empreender esforço pessoal genuíno para tanto, não consegue livrar-se do álcool, é grande a possibilidade de que a presença de algum tipo de espírito seja responsável pelo vício. Configura-se dessa forma um problema a ser apresentado a, e talvez resolvido por, líderes religiosos do jarê, que podem prescrever diversas formas de tratamento para os aflitos, desde remédios naturais, banhos e garrafadas, até rituais mais complexos a serem realizados ao longo de diversos dias nas casas de culto – e que podem chegar a custar bastante caro –, conforme cada caso. Todas estas medidas, que por ora não serão descritas em detalhes, irão conectar em graus distintos os novos adeptos a seus curadores e casas de culto, consistindo numa das principais formas de agregação aos membros do jarê99. Nunca ouvi ninguém, contudo, acionar razões de ordem espiritual para justificar o uso excessivo de drogas, problema considerado bastante grave pela maioria das pessoas da cidade. Ao contrário, meus amigos ligados ao jarê diziam que um curador tomava especial cuidado quando era procurado por alguém que buscasse atrelar a dependência química dessas substâncias a qualquer razão mística, orientando-o em vez disso a procurar tratamento clínico ou acompanhamento psicológico – mesmo porque arriscar-se a prometer a cura para algo que poderia ser um vício pessoal ou uma “doença de médico” provavelmente não traria senão maus resultados para o líder de uma casa de culto. Não foi o turismo que trouxe por completo as drogas para a cidade, mas é bem possível que tenha sido um dos responsáveis por ampliar a presença de algumas dessas substâncias entre os lençoenses, alguns dos quais teriam contato pela primeira vez com a 99

O tema da bebida alcoólica, em especial a cachaça, igualmente retornará sob diferentes ângulos em todos os demais capítulos da tese, nas seções 2.1, 3.2 e 4.4.

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heroína, por exemplo. A maior parte dos turistas que vieram morar na região em busca de estilos de vida alternativos, contudo, preferia o uso da maconha, costume que passou a ser compartilhado por alguns dos nativos, em especial os mais jovens. Sua utilização em si não gera maiores inquietações para muitos dos habitantes Lençóis, e a grande demanda por guias que acompanhem o ritmo dos usuários – desejosos de fumar a erva envoltos pelas paisagens naturais deslumbrantes da Chapada – fez com que muitos dos nativos também passassem a cultivar o hábito. Os lençoenses que se envolvem com esse lado do turismo preocupam-se mais com o fato de a produção e o comércio da erva serem ilegais e ocasionalmente reprimidos pela polícia, o que faz com que ampliem o cuidado ao plantá-la e vendê-la, não sendo, contudo, incomum ouvir falar de amigos e parentes que se encontram na cadeia, em Salvador, por posse de quantidades significativas da droga. O mesmo não pode ser dito, todavia, sobre a percepção que impera a respeito das drogas que acabaram acompanhando o comércio da maconha, em especial o crack, completando um mercado minimamente lucrativo e no qual em especial os moradores das áreas mais empobrecidas e periféricas da cidade encontraram possibilidade de inserção. O uso dessas pedras derivadas da cocaína é amplamente reconhecido pelos moradores da cidade como representando um grave problema, e muitas são as histórias de pessoas que já tiveram suas vidas arruinadas pela droga – ou de jovens que há pouco tempo ingressaram no mesmo caminho. Os pontos de tráfico se distribuem nos bairros menos próximos do centro da cidade, de acesso ainda relativamente fácil, e onde mora a maior quantidade dos seus usuários. É comum que as pessoas na rua comentem, ao ouvirem rojões disparados fora de épocas festivas, que aquele é um sinal de que um carregamento de drogas acaba de ser entregue nesses bairros. Ainda que eu não tenha sido capaz de descobrir a exatidão dessa assertiva, em geral feita acompanhada de um riso ligeiramente nervoso, é certo que a distribuição local do

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tráfico cria também disputas territoriais entre os chefes das bocas de fumo, que podem culminar em disputas letais. Todavia, episódios públicos de violência não são muito comuns no cotidiano da cidade, mostrando-se bastante chocantes quando acontecem. É possível caminhar pelas ruas de Lençóis a qualquer hora do dia e da noite, valendo contudo alguma precaução especial por parte de mulheres desacompanhadas que habitem a uma distância mais considerável da sede e que precisem se distanciar das vias iluminadas para chegarem a suas casas. Pessoas que venham de fora da cidade, em especial se forem brancas e aparentarem possuir dinheiro, dificilmente serão alvo de qualquer tipo de violência, já que há certo receio de que eventos do tipo possam prejudicar a reputação turística da cidade, o que colocaria em jogo sua fonte quase exclusiva de renda. O único caso de que fiquei sabendo enquanto eu morava em Lençóis havia sido protagonizado por um homem armado à faca que havia interceptado grupos de turistas que percorriam uma trilha próxima. Conforme relataram, o assaltante abordava todas as suas vítimas com um pedido de desculpas e justificava seu ato dizendo que precisava de dinheiro para manter sua casa e sustentar seu vício em drogas, apertando-lhes as mãos depois que os frutos do roubo lhe eram entregues. Cria-se dessa forma um quadro no qual os principais alvos dos episódios de violência que acontecem na cidade são seus próprios habitantes. Exemplifica-o o caso de um assassinato que acontecera, certa noite, momentos antes de eu chegar a um dos bairros periféricos de Lençóis, a caminho de um jarê numa casa mais afastada da cidade. Percebendo que eu notara a comoção que se organizara no entorno, amigos que encontrei no local me informaram que um senhor bastante idoso acabara de ser morto a tiros por alguns jovens que haviam assaltado seu domicílio, sabendo que ali estavam guardadas suas economias – estimadas em R$ 4.000,00, posto que ele recebera por muitos anos uma aposentadoria do governo e gastava muito pouco em vida.

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Houve uma espécie de onda de medo que se espalhou pela cidade quando a esses eventos somaram-se o sequestro de uma menina de nove anos – filha de uma dona de pousada na cidade, devolvida em troca de resgate –, bem como o estupro de um senhor também mais velho residente de um povoado distante alguns quilômetros da sede do município. Por mais que o surto tenha sido contido com ação policial, por vezes resultando em mortes dos envolvidos, sua repercussão deixou a população temerosa tanto por sua segurança como pelos efeitos que podia ter em sua economia, e é significativo o comentário que partiu de alguns guias turísticos numa conversa da qual eu participava. Segundo eles, caso encontrassem com algum desses criminosos sozinhos em meio a alguma trilha pela Chapada – posto que são usadas por aqueles que as conhecem bem tanto para se chegar a esconderijos quanto como rotas de fuga longe da observação– não hesitariam em lhes “passar o facão na garganta ali mesmo”, dizendo que em seguida alegariam terem agido em legítima defesa para não irem para a cadeia. Os guias avocam a si, de certa forma, o mesmo papel que tinham no passado os garimpeiros que precisavam fazer justiça com as próprias mãos, considerando inclusive o recurso a procedimentos místicos para não serem encontrados após o feito, caso isso fosse necessário, remontando a episódios violentos da época do início do povoamento da região bem como à atividade dos jagunços quando reinava o coronelismo.

1.3 Caminhos

A despeito dessas dificuldades, os habitantes de Lençóis normalmente levam vidas bastante felizes e tranquilas, sem ignorar os obstáculos que lhes são apresentados, mas fazendo todo possível para encontrar alternativas para lidar com eles. Possuem diversas opções de lazer que cultivam com grande empenho e interesse, das mais rotineiras como

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pequenos encontros para se jogar conversa fora às mais eventuais como festas e outros eventos comemorativos. As crianças e os mais jovens mostram especial predileção por brincar nas ruas e praticar esportes, especialmente o futebol, que mais costuma fazer sucesso, não sendo incomum que torçam por times tanto de seu estado como para os de outros, como os do Rio de Janeiro ou por vezes os de São Paulo. O campeonato anual entre os times locais dos diferentes bairros e povoados da cidade é um evento de grande importância, durante o qual os nativos se reúnem para torcer por seus favoritos. Nessa chave, entretanto, a atividade mais praticada pelos jovens lençoenses, e uma de suas mais importantes formas de socialização, é a capoeira. A academia de capoeira local oferece aulas gratuitas para as crianças e jovens pertencentes à comunidade, e cobra mensalidades dos demais alunos que porventura queiram se matricular, como turistas ou forasteiros morando há pouco tempo na cidade. O mestre e os professores procuram atrelar o ensino da arte e da luta ao incentivo de uma conduta moral que desestimule o consumo de bebida alcoólica e que não oferece nenhuma tolerância ao uso de drogas por parte dos alunos. Os professores de capoeira configuram para seus alunos a imagem de profissionais bemsucedidos, que participam de eventos importantes no país e fora dele, cuja postura exemplar de disciplina e perseverança deve ser seguida tanto no mundo do esporte como fora dele. A academia de capoeira funciona contando também com doações e auxílios governamentais, obtidos com a ajuda de eventos promovidos regularmente na cidade e fora dela. Os capoeiristas em geral realizam uma roda pública toda semana no prédio do Mercado Cultural, localizado no Centro Histórico da cidade, aberta à participação da audiência e contando com apresentação de lutas e encenação de números artísticos como o maculelê, exibido ou com clavas de madeira ou com facões, quando estão envolvidos somente os atletas mais experientes. Pouco antes do término desses eventos um dos representantes da academia costuma tomar a palavra para falar um pouco do trabalho realizado pelos professores, indicar

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aos presentes que ali se encontram todos os alunos que quiseram participar, não tendo sido separados apenas os melhores para a garantia de um espetáculo público qualquer, e indicar uma caixinha para recebimento de doações para a manutenção da academia e compra de uniformes novos para seus alunos – enfatizando que os capoeiristas são pessoas pobres e descendentes dos garimpeiros da região –, que em geral nunca deixa de receber contribuições dos turistas presentes no local. As rodas de capoeira constituem uma cena muito atraente tanto para os visitantes como para os moradores da cidade, em especial em eventos maiores como encontros de capoeiristas vindos de outras regiões ou batizados, nos quais os alunos receberão cordas indicando sua passagem a um grau mais elevado, lotando o prédio do Mercado Cultural com pais orgulhosos e espectadores entusiasmados. A academia Corda Bamba, ligada ao Grupo Esquiva de capoeira, não se centra em um estilo regional ou angola de jogo, ensinando que os capoeiristas devem dominar ambas as formas e suas técnicas. As rodas apresentam um crescente de velocidade nos golpes, começando sempre com toques lentos e movimentos bastante próximos do chão e terminando com lutas bastante velozes e acrobacias aéreas executadas de modo desafiador, para deleite da plateia. Somente dois lutadores ocupam o centro da roda durante cada embate, os demais ficando posicionados sentados num círculo em torno deles e acompanhando os instrumentos com canto e palmas, respondendo às músicas puxadas por um solista localizado junto aos atabaques, pandeiros e berimbaus. Cada dupla luta por alguns instantes e deve se despedir amigavelmente antes que se suceda a seguinte, que deve lhes indicar com um gesto seu desejo de substituí-la – podendo ou não ser atendida de imediato. É possível que um lutador intercepte a entrada da dupla seguinte caso deseje travar um embate com um dos capoeiristas que já se encontra na roda, fazendo com que determinados atletas tenham muito mais tempo de exposição que outros – que podem, por sua vez, mostrar-se frustrados ou resignados com o

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fato de passar ainda mais tempo sentados na roda. Os organizadores do evento, em geral os mestres de cada academia, fazem o possível para controlar esses excessos, ainda que haja mais leniência com os capoeiristas mais hábeis, que oferecem apresentações mais ostentosas. Existe igualmente a possibilidade de que um dos membros da dupla em destaque indique, oferecendo sua mão para ser cumprimentado, que almeja encerrar o confronto e ceder espaço aos próximos capoeiristas. Somente os atletas menos graduados e experientes ignoram o fato de que essa é em geral uma manobra que pode se voltar contra ele, já que o primeiro capoeirista pode estar apenas blefando com sua oferta de trégua e pode aproveitar a oportunidade de ter seu adversário com a guarda baixa para lhe aplicar um golpe certeiro. Ainda que em geral nas rodas de capoeira todos os golpes sejam desferidos sem objetivo de que ocorra contato físico entre os lutadores – as pequenas vitórias lembrando muito mais os ligeiros toques da esgrima ou mesmo só o reconhecimento mútuo de que uma pancada poderia ter acontecido, atestando o desempenho superior de um dos atletas –, é possível que choques sejam efetivamente desfechados, acidental ou propositalmente. Esse segundo caso é mais comum entre capoeiristas de grande intimidade e habilidade similar, entre rivais que encenam seus desentendimentos na roda ou, por fim e excepcionalmente, durante os batizados, entre atletas com cordas de diferentes gradações que costumam aplicar quedas controladas mas raramente executadas nos treinos, marcando a diminuição da ingenuidade que se espera haver na passagem do aluno ao próximo grau. As rodas de capoeira são também e sobretudo momentos de diversão para todos os envolvidos, e após o último cumprimento coletivo ela cede lugar a uma roda de samba com os praticantes. Inicialmente o mesmo esquema circular permanece, agora com todos levantados e convidando os membros da audiência que desejarem participar a se unirem a eles. Ocupam o centro, ainda se revezando, sempre um homem e uma mulher, encenando os passos de um galantear. Enquanto ambos dançam e a moça costuma ignorar solenemente os cortejos do que

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faz papel de pretendente, outro rapaz deve se intrometer e se colocar no lugar do primeiro para dar continuidade à tentativa. O mesmo pode ser feito por outra mulher que substitua a primeira, e as crianças são encorajadas a participar tomando o lugar de seus professores: nesse momento ambos podem estar em pé de igualdade, até que um homem mais velho rompa o meio do círculo e carregue o pequeno de modo cômico de volta para a beira da roda. A importância concedida na capoeira – cuja escola na cidade leva o nome justamente de Corda Bamba – à execução precisa de golpes e passos cadenciados ganha na região um sentido adicional se conectada à estima que os lençoenses, acostumados a trilhar as serras tanto no passado como nos dias de hoje, nutrem para com a atividade de caminhar, em suas mais distintas faces. Enquanto os homens andam por longos trechos em seu trabalho diário, as mulheres também se locomovem consideravelmente em seu cotidiano, seja para pescar, lavar roupas ou buscar lenha. O mesmo pode ser pensado a respeito dos ditados, expressões e considerações existenciais relacionados à ação de caminhar frequentemente escutadas entre os lençoenses. É comum dizer de alguém confiável que se trata de uma pessoa que “pisa seguro” ou possui “pé firme”, e para falar sobre a exemplaridade da conduta de uma pessoa basta dizer que se “pisaria onde ela pisar”. Reproduzir as ações de alguém é querer “trilhar seu caminho”, aproximar-se de alguém é “andar junto”, e obter vantagem às custas de uma pessoa é “derrubá-lo”. Elogiar um comportamento comedido ou reprovar um afobado envolve lembrar que “quem corre cansa e quem anda alcança”, e são muitas as referências que fazem para falar de problemas na vida como obstáculos a serem transpostos num trajeto. Ao se deparar com alguma dificuldade que poderia desanimá-lo, um amigo adorava dizer: “isso não é muro alto que não dê para pular, nem rio fundo que não dê para atravessar”100.

100

A literatura registra de modo similar, entre outras expressões, por exemplo a que diz que “pé que não anda, não leva topada” (Gonçalves 1984: 115), que é entendida na região como um incentivo a caminhar apesar das adversidades.

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A própria topografia da cidade tem nos inúmeros acidentes naturais uma marca distintiva, acompanhando a geografia da Chapada. Localizada num vale no contraforte de uma serra, Lençóis se formou e tem crescido espraiando-se por ladeiras rochosas que fazem com que a locomoção diária por ela e seus arredores envolva quase verdadeiras escaladas. O calçamento das ruas é no melhor dos casos feito com paralelepípedos – nos trechos em que veículos mais pesados podem trafegar, como no que vai da entrada da cidade até a rodoviária –, com um arranjo de pedras dos mais variados tamanhos101 – na maior parte da cidade, incluindo o centro histórico, e dessa forma parte do conjunto tombado como patrimônio –, ou ainda de terra batida ou mesmo do próprio afloramento da rocha – caso mais frequente na periferia da cidade. Essas configurações tornam o chão das ruas consideravelmente manipulável, não sendo incomum que moradores arranquem pedras do calçamento seja para fincar algo na terra, por exemplo um mastro da bandeira durante épocas festivas, seja para lhes conferir outro propósito temporário, como servir de calço ou degrau. Além desse hábito, o próprio desgaste natural do calçamento e o estouro frequente de canos próximos à superfície fazem com que se deparar com um funcionário da prefeitura encarregado de consertá-lo seja evento corriqueiro. O cuidado ao se caminhar por Lençóis e suas cercanias envolve prestar atenção não só ao relevo como à presença de animais perigosos que ali vicejam, fortalecendo uma sensação de instabilidade inerente ao percorrer suas vias e trilhas. Histórias de onças na região não são tão comuns, ainda que longe de inexistentes, avistadas em geral depois de grandes incêndios na Chapada. Encontros com ameaças peçonhentas, contudo, constituíam relatos habituais dos nativos, que faziam todo possível para se livrarem de escorpiões muitas vezes encontrados em suas casas. Há também insetos cuja ação nociva é muito temida, como o potó, que aparentam ser pequenas formigas aladas que secretam uma substância cáustica que causa dolorosas 101

Cujo nome registra-se ser “espinha de peixe” (Ganem 2001: 99) ou ainda “cabeça de nego”, como me disseram.

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queimaduras, ou o cavalo-do-cão, grande vespa que se alimenta de aranhas maiores que ela paralisando-as com um veneno que causa dor muito intensa em seres humanos102. Nenhum animal é responsável por maior número de desventuras, todavia, do que as cobras que se movimentam pelo território. Ainda que haja muitas espécies que não possuam veneno, ali habitam, entre outras, exemplares das temíveis coral-verdadeira e cabeça-de-capanga103, responsáveis por diversos acidentes e óbitos. Sempre que possível, quando se deparam com uma dessas serpentes, os habitantes da região preferem matá-la para evitar a incidência de mais ofensas, já que elas podem ser encontradas tanto nas trilhas turísticas como nas próprias casas dos moradores, em especial as menos próximas do centro da cidade. Sua presença é um motivo adicional para que a atenção que dão ao chão seja redobrada cotidianamente. Tanto o padroeiro dos garimpeiros – cujo nome Senhor dos Passos ganha aqui um sentido adicional –, como um ofídio figuram como protagonistas de uma das muitas histórias contadas em Lençóis. Segundo uma de suas versões, conta-se que, ainda no início do povoamento da cidade, um senhor português muito rico, de sobrenome Carvalho, proprietário de grande parte das terras da região, doou para a Igreja o terreno no qual foi erguida a capela de Senhor dos Passos, solicitando, contudo, que esta fosse construída com a frente voltada para seu casarão. Como atender a seu desejo faria com que a capela ficasse de costas para todo o restante da cidade, acharam por bem construí-la da forma como se mantém até hoje, voltada para o Rio Lençóis e para a maior parte da cidade. Carvalho, enfurecido, evitou até o fim de seus dias passar diante da capela, e morreu desgostoso, deixando sua única filha, Ricardina, como herdeira. Quando, anos mais tarde, por motivos sobre os quais há divergências, a sepultura do falecido foi aberta, em vez de encontraram ali seus restos mortais,

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No primeiro caso, o Paederus irritans. No segundo, diversas vespas do gênero Pepsis.

Provavelmente Micrurus corallinus e Bothrops leucurus, respectivamente. A distinção correta da coralverdadeira para suas congêneres não venenosas só é possível de distâncias bem próximas, o que faz com que as demais sejam igualmente evitadas.

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os responsáveis se depararam com uma grande cobra – gerando um alvoroço posteriormente acobertado por membros da Igreja. Essa cobra, prossegue a história, passou então a habitar sob a Ponte dos Suspiros, ali se ocultando e ameaçando destruir toda a cidade num rompante de fúria, algo que é impedida de fazer somente graças às duas passagens anuais do Senhor dos Passos em procissão pela cidade – sendo fundamental que ele pise em sua cabeça ao cruzar o rio. Ricardina viria a falecer bastante velha e sem muita lucidez, tendo se embrenhado por uma trilha sem seu corpo nunca ter sido encontrado104. Certo dia, Seu Gilson me disse que não estava andando com sua agilidade costumeira, pois havia ferido o pé numa trilha no final de semana. Ainda que eu mal tivesse percebido a diminuição no ritmo de seu passo, já que ele continuava a se locomover com muito mais velocidade que eu pelas ruas da cidade, esse foi mais um momento em que constatei a grande preocupação dos lençoenses com o chão e o caminhar, e que se traduz também numa atenção aos pés e aos calçados, em particular. A maior parte das pessoas da cidade anda sempre descalça ou com sandálias de borracha105, hábitos que adquiri depois que uma criança que já tinha alguma intimidade comigo me perguntou se afinal de contas eu havia “nascido de tênis”. As sandálias costumam ser retiradas quando se entra na casa de alguém e deixadas junto à porta para que não se leve terra para os cômodos no seu interior, e repousadas com sua frente apontando para o lado de fora. Não se deve, tampouco, deixá-las em nenhuma ocasião com as solas voltadas para cima, como eu aprendi depois de ter tentado proteger do sol o calçado de um amigo, sob risco de fazer mal à mãe de seu proprietário. Do mesmo modo, como me disseram algumas pessoas, não é saudável dormir com os pés voltados para a porta de saída de

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Essa é uma síntese baseada nas versões que ouvi e nas que estão disponíveis na literatura (Ganem 2001: 2124, 75-78; Brasil 2009: 27-32). Do solar que pertencera à família restavam hoje apenas ruínas, que fotografei a pedido de um dos meus amigos que muito se interessava pela história, visto que em breve seriam demolidas de vez para dar lugar a uma nova construção. Ver foto 10 no anexo III. 105

Ainda que a maioria possua também tênis e sapatos, estes guardados para os dias de festa na cidade e aqueles sendo usados pelos guias em seu trabalho, diferentemente dos garimpeiros que preferiam sandálias de couro (Gonçalves 1984: 55).

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casa, assim como é ainda pior se as mãos forem deixadas cruzadas sob o peito, já que essa é a posição que devem ficar os mortos. Os nativos da Chapada costumavam fazer graça de figuras que trabalhavam em certos órgãos públicos por costumarem andar somente de carro numa cidade tão pequena como Lençóis. O próprio hábito de caminhar é por eles valorizado como algo que ajuda a lhes dar saúde e lhes conferir grande longevidade, da qual se orgulham particularmente106. Ultimamente professores de educação física têm investido no grande talento que demonstram as crianças da cidade para a corrida, aproveitando a única parte relativamente plana e com boa pavimentação da cidade – o calçadão da balaustrada na margem do rio que corta a cidade, de piso recentemente reformado – para treinar ao longo do dia, em geral sob um sol escaldante, resultando em sua participação em disputas até mesmo fora da região. Muitos são os moradores que contam em torno de um século de vida, e há vários idosos que procuram manter o hábito de caminhar pelas serras. Contaram-me certa vez a respeito de uma senhora que, de idade já bastante avançada e sem nenhuma condição de caminhar, pôs-se um dia de pé e insistiu em caminhar sem ajuda até o rio para lavar roupas – algo que ninguém acreditou que seria capaz de fazer. Finda a atividade, que provavelmente exigiu todas as suas forças, deitouse ali e não mais levantou, enfim descansando, plácida107. A caminhada provavelmente mais esperada pelos habitantes da cidade é a que acontece rumo à feira da cidade todas as segundas, ainda que mais recentemente aconteça uma versão menor às sextas108. Antigamente hospedada no grande galpão vazado que hoje

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Ainda que as idades que apresentam (Ganem 2001: 33, 58, 61, 64, 76, 93) possam nem sempre corresponder a uma contagem de anos precisa, já que é comum oferecerem datas aproximadas para seus anos de nascimento, a valorização da longevidade é uma constante na percepção dos próprios lençoenses, atribuída também a uma alimentação saudável e à participação contínua na vida da comunidade (Gonçalves 1984: 98, 222). 107 108

As considerações aqui tecidas a respeito do caminhar reaparecerão em conexão com o jarê na seção 4.4.

Desde que se tem registro, a feira em Lençóis acontece às segundas (Pereira 1910: 47; Moraes 1963: 156). Disseram-me que esse dia foi escolhido para se adequar às feiras que já aconteciam em outros dias da semana nas cidades próximas, Lençóis tendo se integrado ao circuito preexistente.

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abriga o chamado Mercado Cultural, a feira de Lençóis foi movida para uma área consideravelmente mais distante do centro histórico, no qual a infraestrutura turística da cidade se concentra cada vez mais. Se essa modificação foi vista com maus olhos por grande parte da população, a ida à feira não deixou de ser o principal evento semanal no qual todos se encontram, fazem compras, conversam e bebem por longas horas, quando o tempo e os compromissos da semana assim o permitem. A feira se distribui pelo novo prédio construído para ser o Mercado Municipal – no interior do qual há também pequenos bares explorados por moradores – e principalmente por uma área ao ar livre ao redor dele. Ali são vendidos não só diversos gêneros alimentícios como utensílios domésticos, calçados, vestimentas, discos compactos e digitais, com filmes e músicas. Todos se dirigem à feira carregando sacolas de palha chamadas de mocós ou bocapios, usadas por homens e mulheres nas mais diversas ocasiões e para carregar todo tipo de objeto. Não é comum haver preços dispostos nos produtos à venda, o que faz com que possam flutuar de acordo com a disponibilidade, a época, o horário em que a compra é feita e a relação pessoal estabelecida entre vendedores e compradores, que em geral se conhecem há muitos anos. Tanto os preços como as pesagens das quantidades compradas podem ser barganhadas, e eu comecei a entender melhor esse funcionamento quando passei a acompanhar a proprietária da pousada onde inicialmente me hospedei em suas idas semanais à feira. Dona Juanita circulava por um bom tempo pelas diversas barracas, comprava os mesmos produtos com diferentes feirantes no mesmo dia, ia e voltava de vendedor em vendedor. Aí estão envolvidos não só a procura por melhores preço e qualidade dos alimentos, mas também um investimento nas relações mantidas com as pessoas. Comprar com os amigos pode importar tanto quanto – ou até mais que – o valor da compra em si, já que não é qualquer um que faz por merecer o dinheiro de uma pessoa.

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A única atividade provavelmente tão importante na feira quanto fazer as compras semanais é se atualizar a respeito das novidades. A fofoca é uma arte bastante estimada em Lençóis, continuamente exercitada e envolta numa série de diretrizes de adequação, sendo a primeira e mais comum delas afirmar que qualquer comentário feito sobre alguém não tem por objetivo denegrir a pessoa. “Eu não estou falando mal de ninguém, mas dizem que...”109, é a fórmula que antecede todo comentário que poderia soar como uma injúria. Nem toda conversa gira em torno de fofocas, mas a predileção por repassar histórias menos usuais ouvidas de terceiros caracteriza a atividade de “dar sotaque” ou “fazer fuxico” que, de todo modo, é sempre ouvida com uma dose de cuidado110. Estando a própria acuidade dos fatos em suspensão contínua – sempre se comentava como era difícil ter certeza de até que ponto um causo esbarrava no exagero –, é também raro que os fuxicos gerem grandes desentendimentos entre os envolvidos – até porque cortar relações com alguém bloqueia ainda mais o acesso à opinião da pessoa em questão, o que a deixaria ainda mais livre para falar todo tipo de inverdade111. A fofoca também funciona como uma forma de se transmitir informações de maneira indireta a alguém, já que não é sempre que uma pessoa deseja assumir o ônus de ser taxada de “sotaqueira” ou “prosa ruim”. Um amigo certa vez veio me contar uma fofoca que havia sido feita a meu respeito, que chegara a seus ouvidos contada por outro amigo em comum. O primeiro justificou a necessidade de me transmitir o que se passara dizendo que, sabendo de nossa proximidade, o outro amigo jamais teria lhe contado a fofoca se não quisesse que ela chegasse aos meus ouvidos. Com o tempo muitas pessoas se acostumam a ser alvo de fuxicos 109

A construção efetivamente enunciada possui a forma “diz-se que” ou “diz’que”, identificada em – e seguindo a grafia proposta pela – pesquisa realizada no município de Chapada Gaúcha, interior de Minas Gerais, que faz limite com o estado da Bahia (Carneiro 2010: 23-24). 110

As ligações entre essa atividade e sua correspondente mística no jarê serão exploradas no capítulo 4, na seção 4.1. 111

Como já se disse uma vez em outro contexto, no candomblé “as pessoas não cortam relações. Continuam se visitando e difamando umas às outras” (Fichte 1987: 56).

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e comentários dos mais variados tipos – e até também a fazê-los na mesma medida –, o que levou uma brilhante senhora, de quem falarei mais detidamente no próximo capítulo, a cunhar um bordão repetido por muitos na cidade. Sempre que perguntavam como ela estava passando, respondia sem titubear: “Vou bem, meu filho. Estou na paz de Deus e na língua do povo”. Fazer fofoca de maneira compulsiva e indiscriminada, contudo, arrisca ir além do aceitável entre os lençoenses. Quando se referem à discrição que se fazia por vezes necessária para o bom convívio, costumam usar o ditado sintético: “Olho viu, boca: pio”, cuja sonoridade é também uma brincadeira com o nome das sacolas anteriormente mencionadas. O fato de morarem numa cidade bastante pequena também leva algumas pessoas, especialmente os mais jovens, a recorrerem a códigos e linguagens cifradas para falar a respeito de pessoas que podem estar próximas o suficiente – caminhando numa praça, no banco ao lado ou ainda numa mesa adjacente no mesmo bar – para que ouçam o que está sendo dito sem que se deem conta de que é delas que se está falando. Essa parece uma versão da prática bastante difundida entre os mais velhos de falar acerca de pessoas e situações caracterizando os envolvidos sempre de maneira bastante indireta: “aí ela chegou lá – aquela, você sabe, né?”; “quando ele apareceu aqui – aquele do irmão que esteve aqui esses dias, entendeu, né?”; “disseram que ela foi sozinha até lá – lá onde a gente passou aquela vez, lembra?”. Ao fazê-lo, entretanto, via de regra o falante procura se certificar de que seu interlocutor está seguindo as referências indiretas que faz, ainda que a confirmação nem sempre seja assegurada e possa gerar novas versões do que se ouviu. De todo modo, essa é uma maneira que encontram para limitar a capacidade de proliferação das histórias por outras pessoas, já que somente de posse das referências que permitem o preenchimento das lacunas propositais é que se é capaz de identificar com precisão os envolvidos112. 112

Os efeitos dessa forma descritiva para a escrita etnográfica serão abordados no próximo capítulo, na seção 2.2.

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Há também, é claro e de qualquer forma, pessoas que, a depender da situação, não têm receio de dizer o que pensam, o que não significa que estejam com isso falando qualquer coisa que dê na telha. Um grande amigo, famoso por gostar de fofoca – não coincidentemente um dos meus mais importantes interlocutores no trabalho de campo –, costumava dizer a respeito do assunto: “Minha missa é de corpo presente”. Com isso, queria dizer que não hesitava em fazer um comentário a respeito de alguém na frente da própria pessoa. Para ser mais preciso, isso não significava tanto que ele não falasse de ninguém a não ser que a pessoa em questão estivesse presente, mas que, fosse o caso de falar abertamente com alguém sobre algo que essa pessoa pode não gostar (como uma crítica feita a ela), ele não teria receios de fazê-lo – algo que de fato eu pude constatar algumas vezes. Conversar, de maneira geral, é uma prática à qual os nativos dedicam boa parte de seu tempo livre e sua atenção. Em qualquer reunião, se permanecerem todos em silêncio por mais que alguns segundos, gera-se visível apreensão, a quietude em último caso pode ser quebrada com uma exortação dirigida a alguém ou ao grupo de modo geral: “Conversa, gente!”. Ao caminhar pelas ruas da cidade espera-se que os amigos parem para conversar sempre que possível, no mínimo oferecendo seus cumprimentos de passagem – mesmo que isso signifique somente dar um grito rumo ao interior da casa de um conhecido quando se passa diante dela, sem precisar esperar resposta. Quando há tempo para uma conversa mais detida, nas quais podem contar seus causos com mais calma, os lençoenses demonstram não gostar de sofreguidão, algo que fica patente em seu estilo de falar bastante cadenciado. Se um ouvinte busca apressá-los, arriscando palpites sobre o desenrolar de uma história que está sendo contada, riem e acrescentam sempre: “Assunta”. Costumam dar preferência a histórias inusitadas e com desfechos engraçados, felizes em arrancar gargalhadas de sua plateia, por sua vez motivada a contar novos causos enquanto houver tempo e disposição para que sejam ouvidos.

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1.4 Criatividades

Os lençoenses possuem um senso de humor bastante aguçado, que gostam de empregar especialmente em jogos de palavras, brincadeiras com a sonoridade – seja por aproximações fonéticas entre palavras distintas, seja pela entonação que dão ao falar e ao empregar interjeições – e especialmente com expressões de duplo sentido que possuam cunho sexual. Até um simples “vai na frente, que eu vou atrás” durante uma caminhada pode ser interpretado como provocação amistosa, tanto mais engraçada quanto o alvo da brincadeira ou não se dê conta dela ou, ao contrário, lhe dê importância demasiada e passe a resmungar ao longo do trajeto. O desenlace mais almejado, entretanto, se dá quando o alvo reconhece a pilhéria e retruca com uma própria, dando continuidade à graça. O Iphan e o Ibama, para dar outro exemplo, são apelidados de modo jocoso de Infame e Imbroma (ou Ibrahma)113. Especialmente entre as pessoas mais jovens e com maior contato com os turistas, é comum brincar trocando os nomes de determinados locais e ocupações para lhes conferir, de modo propositalmente irônico, um ar de sofisticação. Em vez de fazerem feira, dizem que “vão ao shopping”; no lugar de passarem o fim de semana na roça, se divertem dizendo que irão “se retirar para o sítio”; em vez de dizerem que moram na periferia da cidade, falam sobre seus “condomínios fechados” afastados do centro; no lugar de comerciantes, apresentam-se como “empresários”. Se essas são gozações feitas mais frequentemente entre amigos, há aquelas encenadas sobretudo diante de turistas, diante dos quais há entre os nativos um pacto informal de não delação. Quando se aproximam de turistas que se mostram amistosos, os jovens nativos gostam de criar outras histórias de vida para si, e testar quão consistentes podem fazê-las

113

Piada atribuída à antipatia da população diante da ação fiscalizadora dessas entidades (Brito 2005: 225), outra amostra do humor que é há muito atribuído aos habitantes da região (Moraes 1963: 68 nota **; Senna 1998: 202).

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parecer sob o escrutínio de estranhos. Assim é que podem mudar seus nomes e sobrenomes, dizer que nasceram em outros estados ou países tendo depois se mudado para Lençóis, afirmarem que são artistas locais ou donos de estabelecimentos comerciais, fazerem aniversários em datas coincidentemente próximas ao dia presente. As alterações dificilmente são monumentais, fornecendo nomes próximos dos seus, dizendo-se originários de países nos quais sua cor de pele não causaria estranhamento (uma moça dizia ter nascido no México mas vindo muito nova para o Brasil e tendo sido aqui adotada, daí não ter um bom espanhol; um rapaz costumava dizer que era descendente de italianos – mas da Calábria, o que justificava sua pele morena). Só depois de algum tempo fui descobrir, por exemplo, quando ele me contou, que um desses jovens ainda cursava sua graduação em pedagogia, e não a pósgraduação a que tinha feito referência assim que fomos apresentados, depois de ter descoberto minha escolaridade. Uma dimensão importante desse tipo de ação realizada por jovens lençoenses seria perdida caso eu as apresentasse aqui como uma mera forma fantasiosa e compensatória de invenção, que seria colocada em marcha para que eles tentassem atingir um mundo fora de seu alcance efetivo, trazido cotidianamente para suas memórias e imaginações não só pelos meios de comunicação como pelo próprio contato com turistas de diversas partes de globo. Em lugar disso, prefiro conferir aqui ênfase à potencialidade criativa que demonstram ao fazêlo, vendo nas ações de elaborar, contar e testar os limites dessas histórias a possibilidade de vivenciar uma realidade distinta da sua, por mais que o façam de maneira parcial, artificial e temporária, sem falsear a alegria e a diversão que elas efetivamente lhes proporcionam. Nada garante que essa predisposição autofarsesca, além disso, não faça parte de um conjunto de medidas de criação de uma história pessoal da qual podem passar a se orgulhar, e que ela não seja igualmente reversível, como bem exemplifica o que se passou com um desses meus amigos. Desde bastante novo ele havia optado por mudar informalmente seu sobrenome, já

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que ele é negro e o compartilhava com a família tradicional de maior reputação escravocrata na região. Essa medida foi, contudo, repensada quando outro jovem, capoeirista, com o mesmo sobrenome que ele tinha anteriormente, tornou-se protagonista de um filme lançado em todo o país e que chegou a receber prêmios internacionais114. Quase todas as pessoas na cidade têm ou já tiveram algum apelido, e muitas delas passam a ser conhecidas quase que exclusivamente por eles. Eles costumam derivar ou de algum evento ocorrido quando se era mais novo, ou de alguma peculiaridade em sua aparência, ou ainda de algum traço de sua personalidade. Os forasteiros que passam a habitar na cidade também costumam recebê-los, bem como os visitantes que passam mais tempo em Lençóis. Um dos meus preferidos foi o que conferiram à promotora pública, uma moça de aparência asiática vinda de São Paulo e conhecida por seu temperamento invocado apesar da baixa estatura: em pouco tempo ficou conhecida como “Tsunami”. Não demorou para que também me dessem alguns, o principal deles e que facilitava meu reconhecimento e atribuição a um lugar de origem distinto da Chapada foi o de “Carioca”, mas as pessoas com quem passei a ter mais intimidade preferiam chamar-me mesmo pelo nome ou por alguma variação afetuosa dele. Qualquer pessoa, seja homem ou mulher, e qualquer seja sua idade, pode ser chamada de forma indistinta de “moço”, da mesma forma como em outras partes do país se usa “cara”. A alcunha pejorativa mais ouvida cotidianamente é a de “xibungo”, que em princípio designa o homossexual do sexo masculino mas na prática é muito mais usado de forma jocosa entre amigos próximos ou mesmo provocativa de pais para filhos – mas dificilmente no sentido inverso. Pais e mães costumam chamar seus filhos pelos termos de parentesco pelos quais eles próprios devem ser chamados, independentemente do sexo da criança. Assim, um pai pode chamar seu filho ou filha de “pai” e uma mãe pode chamar seu filho ou filha de “mãe”, o 114

O longa-metragem Besouro, superprodução dirigida pelo publicitário João Daniel Tikhomiroff, sobre o qual falarei um pouco mais no capítulo 3, seção 3.3.

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mesmo se estendendo aos tios e avós, mas todo esse procedimento só costuma acontecer quando estão se dirigindo a crianças, o que evidencia nele certo caráter pedagógico. O mesmo acontece entre os membros de um casal assim que passam a ter filhos, o marido podendo chamar a esposa por “pai” e esta o chamando por “mãe”, especialmente diante dos próprios rebentos. O falar local é colorido por uma série de interjeições usadas com grande frequência para indicar espanto, surpresa, ironia, aborrecimento, repulsão ou menosprezo. Entre essas se encontram muitas que remetem ao catolicismo popular, muitas vezes ditas em tom de deboche, como “Ave, Maria...”, “Maria, valei-me...”, “Deus é mais...”, “vixe...”. Outras usadas com os mesmos sentidos mas que não derivam do universo religioso são “qual...”, “lá, ele...” e “ôxe”, por vezes empregadas sozinhas como resposta seca a uma pergunta considerada tola ou a uma provocação qualquer. Nenhuma dessas é tão corriqueira e importante no processo comunicacional, contudo, quanto as interjeições praticamente não vocabulares que servem de comentário a qualquer enunciado – são espécies de ‘sintomas atitudinais’115 –, podendo ser grafadas como “hum-hum-hum”, emitidas em glissandos crescentes para demonstrar inquietação e decrescentes no caso de reprovação. O uso correto e frequente dessas interjeições caracteriza o início da aquisição da capacidade linguística local pelos forasteiros, mesmo porque elas parecem sintetizar um estilo mais circunspecto e conciso preferido pelos nativos ao lidar com gente de fora. Há outras expressões utilizadas regionalmente que evidenciam o fato de Lençóis ser uma cidade povoada por contingentes populacionais oriundos tanto do litoral da Bahia como do interior de Minas Gerais. Levar a cabo uma ação apesar do cansaço, ou sendo obrigado a tanto, é fazê-lo “a pulso”, enquanto empreender uma atividade com gosto e de maneira

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Evidenciam um “estrato puramente emotivo da linguagem” e “diferem dos procedimentos da linguagem referencial” por “sua configuração sonora” específica, contendo sons que podem não ser encontrados alhures na mesma língua (Jakobson 1960: 122-124).

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copiosa é fazê-lo “lerdo”. Esperar por muito tempo é mencionar que já se está num local “da hora”, enquanto dar uma resposta negativa é feito em geral partindo da hipótese contrária sem precisar completar o raciocínio. Justifica-se o não comparecimento a uma festa, por exemplo, dizendo-se: “Se eu não fui convidado...”. De alguém que se mostra obstinado com um assunto qualquer diz-se que está “incutido”, enquanto uma pessoa que bebeu demais fica “travada” – forma especialmente interessante de se referir ao ébrio, enfatizando sua dificuldade de locomoção. O substantivo vicário por excelência é o “trem”, e fazer algo a mando de outrem é agir de modo “teleguiado”. O comportamento dos teleguiados salta aos olhos durante os períodos eleitorais, que são chamados, literalmente, de o “tempo da política”. É esperado que nessa época as rivalidades aflorem e as pessoas tenham discussões acaloradas, do mesmo modo como se pressupõe que estas – ou ao menos sua face pública – sejam menos enfatizadas após o término das eleições, para a manutenção do bom convívio. Seria um engano pensar a partir dessa constatação que a maior parte dos lençoenses não se interessa pelos rumos políticos que seus representantes eleitos buscam conferir à cidade, sendo costume citarem com orgulho o fato de já terem feito uma denúncia de impedimento que resultou na destituição do prefeito Otaviano Alves Filho, em 1996, no último ano de seu mandato. Uma amiga disse, por exemplo, ficar colérica – ainda que jamais o demonstrasse no momento em questão – quando supunham que o povo da cidade poderia ser facilmente manipulável no tempo da política, e que essa atitude era certeira para se perder uma eleição. Se nem sempre têm estômago para discutir posições políticas e candidatos de sua preferência, ainda mais fora de anos eleitorais e com pessoas com quem não possuam intimidade116 –, todos podem recitar os candidatos em quem votaram

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Por vezes é só depois de muitos anos de convivência que se descobrem preferências eleitorais, já que elas podem permanecer propositalmente fora das conversas de modo a não se tornarem motivo de conflito – especialmente quando as posições políticas do interlocutor são desconhecidas (Goldman 2006: 127).

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para cada um dos cargos de cada pleito, e não é incomum o hábito de, ao se lembrarem de eventos passados, contarem o tempo de frente para trás listando seus governantes. Mesmo fora do tempo da política, não é incomum que as pessoas façam referência a seus representantes e os interpelem cotidianamente, afinal de contas geralmente todos se conhecem em pessoa, ainda que por vezes só minimamente. Da mesma forma, se interessam a respeito dos rumos das decisões estaduais e nacionais que sobre eles podem por vezes possuir impactos bastante diretos, em especial as que envolvem programas de redistribuição de renda, fomento à cultura e preservação do patrimônio, motivos pelos quais o governo Lula da época era constantemente elogiado e o municipal colocado em dúvida, já que o prefeito Marcos Airton, conhecido como Marcão, sempre citava a demora do repasse das verbas devidas pela União e pelo estado quando questionado sobre problemas na infraestrutura da cidade – especialmente no tocante à saúde. Como mencionado, a prefeitura é uma das principais geradoras de empregos, comparativamente bastante estáveis, na cidade, dispondo de cargos de confiança e posições nomeadas disputados pelos possíveis apoiadores da campanha, bem como verba a ser empregada para eventos de lazer e fomento de atividades culturais. Os representantes de diversas manifestações artísticas e folclóricas da cidade estão acostumados a solicitar financiamento para realização de encontros e apresentações, dinheiro que de todo modo afirmam dever ser destinado a eles – seja em função das políticas governamentais, seja como retorno pelo voto e pelo apoio concedido nas eleições. O problema da arrecadação de impostos agrava-se graças ao sentimento bastante difundido entre a população de que o seu dinheiro passa pelas mãos do poder público apenas para que este retenha dele uma porcentagem. O marido de Dona Juanita, Seu Joaquim, igualmente proprietário da pousada na qual eu me hospedara e dono de uma pequena venda no centro da cidade, me dizia ser muito danoso o fato de o resultado das eleições ser divulgado três meses antes da posse do novo

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prefeito, já que caso fosse eleito um partido da oposição, a administração atual ainda disporia de muito tempo para esvaziar os cofres públicos antes de chegar a termo: “E noventa dias roubando da manhã até a noite dá o mesmo que cento e oitenta dias normais, praticamente meio ano roubando”, me dizia ele com seu gosto por sempre quantificar as avaliações que fornecia. Muitos dos habitantes de Lençóis estavam já um pouco acostumados, o que não significa dizer resignados, com a relativa escassez de investimentos públicos nos anos em que não havia eleições. Como comentavam, a deterioração de ruas e estradas tornava-se mais visível, aconteciam menos contratações, os salários podiam atrasar. Ao perguntar a um amigo por que a nova estação rodoviária ainda não havia sido inaugurada, já que eu acompanhara o final das obras ao longo de alguns meses e ela finalmente parecia estar completamente pronta, ele me respondeu – depois de ter zombado da minha ingenuidade – que ainda não tínhamos chegado no tempo da política, mas que a inauguração não passaria do ano seguinte, quando haveria eleições. Em função desses hiatos, a ênfase reinante não recai sobre a obrigação de o prefeito eleito governar para toda a população e ao longo de todo mandato: considera-se que aqueles que o elegeram é que são tanto os maiores beneficiados pelas benesses da administração como os maiores responsáveis por suas falhas. A realização de festas e eventos de boa qualidade era, para muitos lençoenses, um dos mais importantes quesitos na avaliação do desempenho da administração pública. Esses eventos eram igualmente ocasiões nas quais o prefeito e seus correligionários aproveitavam para fazerem discursos e se promoverem, bem como prestarem contas diante da população a respeito de eventuais deficiências que saltassem aos olhos. Havia uma verdadeira carreira a ser seguida na função de apresentador de festas e eventos, ocupada sempre por homens que tivessem uma pronúncia clara e cuja voz amplificada pela incontornável aparelhagem de som não fosse desagradável aos ouvidos. Sua habilidade em listar patrocinadores de modo quase

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infindável e bajular os membros do poder público antes de lhes passar a palavra só não era superada pela irrelevância à qual grande parte da população parecia já os ter confinado, exercendo uma audição seletiva para ficarem atentos a qualquer novidade. Ao longo de meu trabalho de campo pude acompanhar as reações de alguns de meus amigos sobre os primeiros dois anos da administração do prefeito Marcão, que um deles me disse poder ser resumida pela sigla FFF: “Faixa, festa e foguete”. Segundo eles, a ação da prefeitura se resumia a realizar festas esporádicas para tentar, sem sucesso, distrair a atenção da população para longe das situações críticas da saúde e da educação no município; a alardear com comemorações a realização de inaugurações e eventos que não eram senão parte de sua obrigação; a propagandear de modo enganoso os feitos do governo. Duas faixas, por exemplo, foram alvo de inúmeras piadas. A primeira, erguida próximo a um dos postos de saúde da cidade, dizia “A população de Lençóis agradece à Prefeitura pelos avanços na Saúde”, enquanto se comentava que era sabido que os investimentos na área de saúde tinham diminuído, médicos e profissionais da área demitidos, e que havia sido o próprio poder público que se tinha arrogado a missão de se elogiar. A segunda, erguida logo no início de uma obra que só viria a ser concluída anos mais tarde e com outra função, rezava: “O sonho dos lençoenses tornou-se realidade: banheiros públicos em Lençóis”, o que os levou a ridicularizar a tentativa de dar por pronta uma obra que mal tinha saído do papel. Os dizeres nessa faixa forneceram por bastante tempo munição para ridicularizar a prefeitura, mencionando ironicamente que a população não sonhava com mais saúde e educação, e que se sua aspiração era ter banheiros públicos, o prefeito devia achar que “o sonho dos lençoenses era mesmo uma merda”. Em novembro de 2010, Marcos Airton Alves de Araújo, o prefeito Marcão, foi preso pela Polícia Federal na chamada Operação Carcará, deflagrada na Bahia contra o desvio de verbas federais e fraudes em licitações. Sem saber se teria sua candidatura impugnada ou não, Marcão concorreu à reeleição em 2012, perdendo o pleito

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para sua adversária Moema, cuja vitória significou, de todo modo, um retorno das famílias tradicionais ao poder, já que ela é esposa de um ex-prefeito de Lençóis.

1.5 Profusões

O cenário da vida em Lençóis foi-se descortinando ao meu redor de forma lenta, e não foi senão depois de alguns meses morando na cidade que pude ter certeza que seria capaz de ali desenvolver o trabalho de campo necessário. Como forma de começar a estabelecer laços e entabular alguma rotina diária pela cidade, assim que cheguei entrei em contato com Olivia Taylor. Conheci essa inglesa – já há 15 anos habitando em Lençóis, e uma das muitas forasteiras que tinha decidido se mudar para a cidade – por meio de uma indicação de uma amiga do doutorado, que tinha ouvido falar do trabalho social voltado às crianças da região que Olivia incentivava. Dona de uma pousada localizada num bairro periférico da cidade, Olivia começara a dar reforço escolar a algumas crianças do bairro Alto da Estrela, numa ação que se ampliou com a compra de uma casa aos fundos de sua pousada onde passara a hospedar e oferecer refeições gratuitamente a voluntários – muitos deles estrangeiros com algum conhecimento de português – que se ocupassem em fornecer reforço escolar e noções de sociabilidade às crianças nos períodos em que estas não estivessem na escola. Assim tiveram início as atividades da Casa Grande, nome escolhido por Olivia para o local, e cuja inadequação, por fazer referência às antigas moradas senhoriais, ao menos de início lhe escapava – como depois viriam a me dizer alguns amigos. Enquanto a maior parte dos voluntários morava na casa e preparava atividades para os turnos da manhã e da tarde – desde listas de exercícios a jogos e recreação –, optei por me vincular só parcialmente ao funcionamento da Casa Grande de modo a ter tempo para realização da pesquisa, dando aulas

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somente no período da tarde e ao longo dos seis primeiros meses da minha estadia em Lençóis. Fazê-lo me ajudou não só a manter uma rotina ao longo das primeiras semanas117 como, percebi posteriormente, contribuiu para diminuir nos moradores do local o estranhamento inicial com a minha presença, permitindo que eu circulasse por uma região da cidade à qual eu dificilmente teria acesso sem suscitar indagações – mais tarde me diriam que à primeira vista imaginavam que eu era um médico, em função não apenas dos óculos como da cor da minha pele, comentário feito sem que se alongassem no assunto. As caminhadas que fazia pelo Alto da Estrela logo passaram a ser interceptadas pelas crianças que sempre cumprimentavam o “professor”, ou “prô”, diante de outros membros de suas famílias, muitos dos quais eu passaria a conhecer com o tempo. O fato de finalmente haver outro brasileiro dando aulas na Casa Grande era visto por eles com certa satisfação, ainda que alguns também se ressentissem ao ver que muitas das lições aprendidas por seus filhos, sobrinhos e netos acabavam por afastá-los da experiência comum na qual vinham sendo criados – já que Olivia fazia questão de incentivar o uso correto da língua e estimular determinadas noções de higiene pessoal e cortesia que muitas vezes conflitavam com a realidade que vivenciavam em seus próprios lares. Alguns episódios que vivi com as crianças da Casa Grande vieram a adquirir um outro sentido depois de uma maior convivência com seus pais e os demais habitantes da cidade. Chamava atenção o modo como por vezes se comportavam diante de situações nas quais experimentavam certos quadros de abundância, como podia acontecer, por exemplo, quando era possível proporcionar merendas em dias excepcionais – já que o orçamento flutuante das doações das quais o local dependia não permitia sua oferta cotidiana – ou mesmo brindes ou outros objetos em quantidade significativa. No gosto com que as crianças vivenciavam um momento de fartura havia mais do que o prazer de o fazerem longe do olhar controlador dos 117

Esse constitui um dos primeiros passos no trabalho de campo, parte necessária dos processos etnográficos de invenção e contrainvenção (Wagner 1975: 17-20).

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pais – que constantemente nos lembravam que, apesar de pobres, ali não havia miseráveis. Se as ideias de fome e carência não devem ser de todo descartadas, tampouco pareciam responsáveis pela atitude exibida pelas crianças nessas ocasiões, quando o mais comum era se abarrotarem rapidamente dos itens disponíveis para em seguida se deleitarem com a sensação de estarem fartos. Nas raríssimas vezes em que algum aluno dizia estar com fome, fazia-o muito mais como quem pede um agrado, além da atenção dos voluntários, logo abandonando o assunto, ao ser lembrado que mais tarde lancharia em sua casa, e voltando a brincar. Não custa recordar a já mencionada ética da suficiência por meio da qual os garimpeiros são aqui caracterizados como alternativa à interpretação dos donos das serras, para quem os trabalhadores não teriam a competência necessária para poupar e enriquecer. Não é que os nativos não sejam capazes de poupar: ao contrário, muitos de meus amigos trabalhavam e juntavam dinheiro de forma lenta, durante meses ou anos a fio – ainda que seu objetivo possa ser o de gastar em muito pouco tempo tudo que juntaram, com festas, viagens ou períodos maiores sem trabalhar. Muitos lençoenses afirmam que serem capazes de experimentar de modo temporário situações de fartura, seja por surtos de enriquecimento repentino, seja por acumulação vagarosa, faz com que possam se empenhar em suas atividades cotidianas com a perseverança que lhes é característica118. Penso que não seria ir longe demais dizer que, ao agirem dessa forma, os descendentes dos garimpeiros continuam a exercitar uma aversão específica aos efeitos danosos que possuem as diversas formas de excessos tão prezadas pelos pedristas e coronéis do passado e pelos empresários ambiciosos do presente. Recordam-se de modo bastante vivo os conflitos e mortes geradas pela exploração desmedida do diamante, e comentam constantemente a respeito das falhas de

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Parece-me emblemático o que disse um garimpeiro que havia enriquecido e depois perdido praticamente tudo, ao ser entrevistado por um dos cronistas da cidade que lhe perguntou o que faria caso encontrasse um novo tesouro: “Respondeu sobranceiro que faria o mesmo, sem tirar nem pôr, e que não tinha arrependimento, pois, embora passageiramente, havia proporcionado todo conforto e felicidade à família” (Ganem 2001: 139, ênfases adicionadas).

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caráter impressas nas pessoas criadas “tendo tudo do melhor (e mais caro) quando o bom já bastaria”, e jamais sendo contrariadas: tornam-se egoístas, mesquinhas, caprichosas, presunçosas. As festas são ocasiões privilegiadas para que se perceba o modo como o equilíbrio entre a abundância e a parcimônia deve ser experimentado, especialmente pelas crianças em momentos específicos – por exemplo, diante de mesas cuidadosamente arrumadas com comidas e bebidas. Trata-se, assim, de momentos igualmente pedagógicos, nos quais não só têm contato com a possibilidade de se portarem com voracidade como, justamente por isso, devem praticar comedimento e temperança, ao menos transitoriamente. Um dos principais temores dos pais é que seus filhos sejam propensos a “dar calundu” – quando, em função de vontades incontidas, fazem pirraça, gritam e se recusam a obedecer e a se comportar –, ao que costumam ser rigorosa e exemplarmente castigados. Uma das festividades mais importantes do ano em Lençóis é o São João, celebrado no dia 24 de junho – ainda que comemorado desde bem antes, cujos preparativos estavam em pleno vapor assim que cheguei à cidade, no final de maio. Para a maior parte da população, ainda que o valor religioso da festa seja grande, ele em parte empalidece diante das comemorações seculares, com dias dedicados a espetáculos musicais, barracas de comidas e bebidas típicas (especialmente o quentão, feito tanto com vinho como com cachaça), fogueiras acesas nas ruas diante das casas – que funcionam como ponto de encontro para enfrentar o frio que nesses meses relembra a altitude da cidade –, brincadeiras tradicionais – como o pau-de-fita, o pau-de-sebo, o casamento na roça e a quebra do pote –, além da incontável miríade de foguetes, bombinhas e estalinhos estourados em grandes quantidades a qualquer hora do dia ao longo das semanas que antecedem a comemoração. Nenhuma dessas atividades, contudo, é tão esperada quanto as apresentações das quadrilhas, que acontecem à noite nos dias que antecedem o Dia de São João. Lençóis abriga

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diversas quadrilhas, em geral organizadas de acordo com os bairros de residência de seus moradores – ainda que haja exceções, como a quadrilha composta somente por mulheres casadas ou a reservada apenas para homens que se vestem como mulheres para dançar, cujos membros em geral pertencem também às quadrilhas dos bairros. Os ensaios das quadrilhas aconteciam semanas antes de suas apresentações, coordenados pelos puxadores de cada uma, e em geral em lugares fechados ou remotos, longe dos olhos dos conjuntos rivais, já que a maior parte se inscreve numa competição organizada pela prefeitura para premiar a melhor apresentação, fazendo com que os passos ensaiados e sua sequência sejam segredo ciosamente guardado. Além de um prêmio monetário, em geral revertido pela quadrilha vencedora na realização de uma festa em seu bairro-sede, uma quadrilha costumava ser convidada para repetir sua apresentação em distritos ou mesmo em outras cidades próximas, e todos se lembravam da ocasião na qual uma quadrilha havia sido agraciada com uma viagem para Salvador para lá reproduzir seu espetáculo. O estardalhaço noturno causado pelos ensaios das quadrilhas chamou minha atenção, levando-me a perguntar a Seu Gilson e a Seu Joaquim se haveria alguma possibilidade de participar de uma delas – sem saber muito, à época, sobre sua relevância considerável para os nativos. No sábado seguinte Seu Joaquim me levou à casa de Carminha, organizadora daquela que provavelmente era – eu descobriria mais tarde – a mais importante quadrilha da cidade, que havia passado a se apresentar sem participar da competição de conjuntos por tê-la vencido já por vezes demais. Seu Joaquim me apresentou e perguntou se havia alguma vaga em seu grupo, frisando que se ela pudesse me aceitar isso consistiria um favor pessoal a ele – algo que um lençoense não diz de forma frívola. Carminha, mais conhecida nessa época do ano como Xuxa Preta, deixou claro, ainda que de forma gentil, que a quadrilha era uma dança muito difícil e importante, e que não sabia se meu desempenho estaria à altura do de seu pessoal. Ela não pareceu muito tranquilizada quando eu lhe disse que já havia participado de

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quadrilhas em minha época de escola, mas permitiu que eu comparecesse aos primeiros ensaios depois que sugeri que ela poderia me retirar do grupo se eu não conseguisse acompanhar os movimentos. Foi durante os ensaios diários dessa quadrilha que conheci muitas das pessoas que viriam a estar entre meus melhores amigos em Lençóis. A quadrilha de Carminha, chamada Bicho-do-Mato, ensaiava quase todas as noites ao longo de algumas semanas antes do São João, e seus membros eram em geral moradores do Alto da Estrela, coincidentemente o mesmo bairro no qual se localizava a Casa Grande. Minhas tentativas de aproximação com os integrantes da quadrilha, sempre bastante tímidas no início, surtiam pouco efeito, e vários eram os indícios de que muitas das pessoas ali reunidas não tinham por mim qualquer simpatia, para dizer o mínimo. O fato de eu ser um branco e forasteiro – em ambos os casos, o único no grupo –, que conseguiu obter um lugar na mais disputada quadrilha local, pesava contra mim quase tanto quanto a possibilidade de que meu desempenho em público fosse pífio e desgraçasse a ilibada reputação da Bicho-do-Mato – e à noite eu era assombrado pela dificuldade dos passos que me eram apresentados, em especial o complexo “transmichê”. Os ensaios eram conduzidos de modo bastante rigoroso pela puxadora, e frequentados de modo inconstante por diversos de seus participantes, até porque muitos trabalhavam ou estudavam à noite. O clima de expectativa diante da apresentação que se aproximava aumentava a cada dia, especialmente depois que Carminha anunciou que gostaria de fazer desta uma execução particularmente memorável já que na ocasião ela completaria 25 anos à frente da quadrilha, tendo começado como sua puxadora quando tinha apenas 17. Os membros do conjunto acompanharam também as dificuldades enfrentadas na confecção das roupas uniformizadas, que só ficaram prontas minutos antes da concentração final, bem como as constantes alterações na seleção e ordem dos passos a serem efetivamente realizados durante a apresentação – escritos e reescritos por Carminha muitas vezes ao longo dos dias –,

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já que ela não tinha certeza se deveria arriscar a execução de algumas das transposições mais complexas e demoradas, simultaneamente frisando a importância de não deixar de lado os passos que simulam o trabalho no garimpo – já que sem ele nada daquilo existiria hoje em dia119. Só mesmo no dia de nossa apresentação fui capaz de acertar todos os passos que haviam sido ensaiados, mas igualmente fundamental foi o fato de não haver esmorecido durante a exaustiva rotina de movimentos, que começava com uma longa caminhada por toda a cidade, desde a academia de capoeira localizada no Alto da Estrela até o Teatro de Arena, onde dançaram as quadrilhas. Ao final do espetáculo, que teve grande sucesso, o conjunto foi convidado para comer e beber na casa do prefeito, e durante essa confraternização é que pela primeira vez meus colegas perguntaram meu nome, já que até então eu era conhecido somente por “Carioca”, assegurando-me, sem fazer questão de esconder sua surpresa, que eu havia “jogado duro”. Os membros da Bicho-do-Mato mostravam-se intrigados para saber não só a história de como eu ingressara na quadrilha, mas um pouco mais a respeito do motivo que tinha me levado até Lençóis, o que me deixou mais confortável para mencionar pela primeira vez de modo mais direto meu interesse em conhecer o jarê. Os contatos que estabeleci a partir de então, somados à convivência com outros moradores do Alto da Estrela em função do trabalho na Casa Grande, levaram-me a procurar morar num local mais próximo dos amigos que começava a fazer. Seu Gilson me certificou que o mais natural seria alugar uma casa naquele bairro, dizendo-me que lá moravam também muitos de seus parentes e que se tratava de uma vizinhança bastante amistosa. Após três meses despedi-me da pousada na qual estivera hospedado até então e me mudei para a casa na 119

O “caminho do garimpo” consistia num passo em que os homens simulavam a subida às serras – carregando consigo apetrechos de garimpeiros, em especial a peneira –, a lavagem do cascalho, a descoberta do diamante e o retorno para a casa. O passo equivalente realizado em seguida pelas mulheres consistia em sua ida ao rio para lavar roupa, repetido diversas vezes já que esqueciam o sabão, peças de roupa ou o lixo a ser recolhido. Movimentos como esse, que faziam graça das atividades cotidianas empreendidas pela população da Chapada, aconteceram nas apresentações de quase todas as demais quadrilhas.

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qual permaneci pelos nove seguintes, depois de ter sido tranquilizado a respeito de Seu Gilson sobre sua localização – já que ela ficava praticamente ao lado do principal ponto de tráfico de drogas da cidade, o que, como era esperado, de fato não resultou em nenhum grande incidente. O Alto da Estrela localiza-se na encosta de uma serra, ao longo de uma das extremidades da sede do município de Lençóis, configurando-se numa região dificilmente visitada pelos turistas, de parca infraestrutura – só algumas de suas ruas são calçadas, raramente são limpas por varredores da prefeitura e a coleta de lixo só atende um ponto do bairro –, ainda que possua saneamento básico, por mais que precário, e iluminação pública e abastecimento de água adequados. É eminentemente residencial, contando com pequenos comércios locais e uma quadra normalmente usada pelos jovens para jogar futebol. Ao longo do dia crianças dominam as ruas, brincando e soltando pipas, aproveitando ser aquele um dos pontos mais altos da cidade120. Alguns de seus moradores também se referiam ao bairro como “Alto das Estrelas”, por vezes emendando um comentário a respeito do brilho pessoal dos que lá haviam nascido e se criado – seu estrelismo redobrando aquele característico dos orgulhosos nativos de Lençóis. É também ali que se localiza a academia de capoeira Corda Bamba, que foi selecionada como Ponto de Cultura e funciona como centro de reuniões comunitárias. O Alto da Estrela é, por fim, local de moradia e ponto de encontro de diversas das pessoas envolvidas com o jarê, cujas histórias serão apresentadas ao longo dos próximos capítulos.

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O nome do bairro parece derivar da serra na qual ele cresceu, chamada, de acordo com a literatura, de “Alto da Estrela do Céu” (Pereira 1910: 55), em função de, nas primeiras horas da noite, ser ali que o sol se põe e surge Vênus, lembrando um “brilhante engastado no topo escuro das rochas” (Moraes 1963: 122, 126 nota 2). Como outros bairros periféricos da cidade, sofreu movimento pendular de crescimento e quase desaparição ao longo das décadas, acompanhando a demografia de Lençóis (Senna 1996: 55). Ver fotos 11 e 12 no anexo III.

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Capítulo 2 – Dançar

Não tenho pai, não tenho mãe Lá na mata eu me criei Com a idade de doze anos Meu pai era africano Que sina trouxe eu

2.1 Negritudes

“Elias? Esse aí, quando morrer, o corpo vai numa caixinha de fósforos, porque na carreta vai a língua de mais de metro...” A fama de conversador que o precedia foi só um dos muitos motivos que levaram a minha proximidade com Elias, esse jovem lençoense que em pouco tempo se tornou um de meus melhores amigos na cidade. Nos conhecemos, coincidentemente, em meu primeiro dia em Lençóis, uma sexta-feira na qual ele trajava branco e portava dois colares de contas dessa mesma cor – algo que devia ser feito no dia da semana dedicado a Oxalá, ele me informou. Meses depois, quando estávamos mais chegados, ele me diria que só tinha se dignado a me responder naquele dia por ter ficado intrigado com o rapaz tímido que parecia a toda hora “pedir desculpas só por abrir a boca”. Elias jamais se envergonhou de ter atitudes que muitas vezes escandalizavam os estratos mais conservadores da cidade: sempre foi um sujeito debochado, de humor por vezes sardônico, sem medo de dizer o que pensa a quem quer que seja. Simultaneamente, Elias guarda um respeito que beira a devoção pelas pessoas mais velhas da cidade, demonstrando pelos seus conterrâneos interesse e paciência exemplares. Elias é um dos filhos mais novos de João da Jia, conhecido garimpeiro, falecido vítima de um câncer, cujo apelido deriva dos filhotes de rã que costumava caçar para vender. João da

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Jia e sua esposa Niraci tiveram ao todo quinze filhos, sendo apenas onze os que sobreviveram à primeira infância. Seu pai desejava que os três filhos homens não se tornassem garimpeiros como ele, tendo feito todo possível para estimular sua permanência e aplicação na escola, para que chegassem um dia a cursar a faculdade e se tornassem professores. Enquanto um seguiu a mesma carreira que tinham seu pai e seu avô, os outros dois conseguiram se formar no Ensino Médio, um feito considerável e comemorado na realidade da cidade. Entre estes estava Elias, que como muitos de seus irmãos e irmãs foi batizado com um nome bíblico – sua família praticamente toda com o tempo tendo se tornado evangélica. Elias sempre foi muito próximo de uma de suas tias, chamada Alba, que considerava como sua segunda mãe, entre outros motivos pelo fato de ela ser a única pessoa fora seu pai que não havia se convertido e que continuava, como ele, a se interessar pelas práticas tradicionais e histórias da cidade, principalmente as que envolviam a herança mística do jarê. Quando cheguei a Lençóis, Elias contava 28 anos, e residia junto de sua companheira no bairro do Lavrado, apesar de ter morado por quase toda vida no Alto da Estrela, onde podia ser comumente encontrado ao longo do dia por ali continuarem a viver muitos dos membros de sua família, bem como muitas de suas amigas e comadres. Passamos muitas tardes conversando sentados à sombra de um pé de mulungu diante da casa de sua mãe, e fui me acostumando com seu jeito característico. Sempre falador, inteirado das novidades e conhecedor das histórias e ligações entre as pessoas que eu mal começava a conhecer, Elias ironicamente gostava de comentar como “quem conversa muito dá bom dia a cavalo”. Por vezes mencionava, algo resignado, sobre como sofria certa discriminação na cidade – que, segundo ele, já havia deliberado e decidido a respeito de sua orientação sexual, pois, ele dizia, desde muito novo sempre possuíra um tom de voz mais agudo e nasalado, uma risada alta e contagiante, e jamais fizera questão de se comportar como se supõe deva ser o exemplo da masculinidade. Apesar de morar já há alguns anos com uma amiga de longa data e a quem se

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referia – em tom sempre mais sério do que a ocasião requeria – como sua namorada ou esposa, justificava o fato de ainda não terem filhos exemplificando a mudança repentina – e para pior – na vida de muitos dos seus amigos e amigas depois que tiveram filhos ainda muito jovens e sem qualquer segurança financeira, e lembrava, fazendo sempre enrubescerem alguns dos presentes, que a Secretaria de Saúde distribuía camisinhas gratuitamente a quem quisesse. Quando era mais novo, Elias havia participado do Movimento Avante Lençóis, um coletivo formado em 1995 para acompanhar e dar publicidade à denúncia popular que culminou no impedimento do prefeito da cidade, Otaviano Alves, no ano seguinte. O Avante (“que significa ‘para frente’”, Elias sempre emendava) nasceu com objetivo de reivindicar melhorias nas condições de vida dos habitantes de Lençóis, promovendo reuniões comunitárias e publicando com alguma periodicidade um jornal homônimo com ampla circulação pelo município, incluindo a zona rural. As edições do jornal Avante geravam grande repercussão e participação popular, suas reportagens e entrevistas sendo feitas pelos, com e para os próprios moradores da cidade, e no dia em que eram lançadas corriam por várias casas nas quais eram lidas avidamente pelos lençoenses. Assim como o movimento, o periódico não era visto com a mesma simpatia pelo poder constituído, já que com o tempo tinha se tornado foco privilegiado para manifestação das insatisfações dos moradores com as deficiências da administração pública por eles percebidas – e se imaginava que os representantes eleitos levavam em conta que o que havia acontecido com o prefeito anterior poderia em último caso se repetir. Elias era um dos jovens que assinava artigos no jornal Avante, revisados pela jornalista responsável que supervisionava sua edição. Recebia, pelo trabalho mensal, uma ajuda de custo no valor de R$ 60,00, gastos quase todos com material de cuidado pessoal com seu pai, a essa altura já bastante debilitado e acamado pela progressão de sua doença. Mesmo assim, João da Jia não se mostrava contente com a participação do filho no movimento, já que

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tinha ligações com pessoas por vezes criticadas pelo Avante. De qualquer modo, Elias não foi dissuadido de continuar a escrever textos que apontavam os muitos problemas pelos quais a cidade sem dúvida passava, mesmo sabendo que em função disso poderia vir a sofrer sérias represálias das figuras importantes da política local. Temendo por sua segurança, a jornalista então responsável pelo Avante decidiu, para enorme contragosto de Elias, afastá-lo do jornal, fazendo com que o movimento se enfraquecesse ao perder um de seus mais corajosos e notórios articulistas. Algum tempo depois, contudo, os textos que havia assinado para o jornal chamariam a atenção de alguém próximo de seu pai mas de quem Elias ainda não era tão íntimo. Carlos de Almeida Toledo, chamado por Elias e sua família invariavelmente de Carlão, visitava Lençóis por longos períodos desde o início do ano de 1998, sua vivência na cidade servindo igualmente de base para a realização de um detalhado trabalho acadêmico na área de Geografia Humana pela Universidade de São Paulo121. Carlão se tornara um amigo próximo de João da Jia, o importante garimpeiro vindo a ser um de seus principais interlocutores na pesquisa a respeito do trabalho nas assim caracterizadas Lavras Baianas. Quando seu pai veio a falecer, Elias encontrou forças após um período de luto para finalmente vir a aceitar o convite que vinham lhe fazendo Carlão e a companheira deste, Tati, para ir morar com os dois em São Paulo e investir nos estudos, para tentar passar num vestibular e ingressar numa faculdade – o curso de História sempre tendo exercido sobre ele algum fascínio –, de modo a concretizar assim o sonho que seu pai nutrira em relação a ele, de que um dia se tornasse professor. Elias morou em São Paulo na casa de Carlão e Tati junto com três outros jovens de Lençóis que também eram próximos do casal e haviam igualmente aceitado a mesma oferta, ainda que em pouco tempo um deles acabasse por preferir começar a trabalhar em vez de se 121

Resultando em especial em suas excelentes dissertação de mestrado (Toledo 2001) e tese de doutorado (Toledo 2008).

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dedicar aos estudos. Enquanto as duas moças foram aprovadas em faculdades particulares e realizaram seus cursos com ajuda de empréstimos e financiamentos, Elias estava decidido a ingressar numa universidade pública – principalmente por não desejar onerar ainda mais seus anfitriões, que já lhe proporcionavam aulas particulares para suplementar o preparo do curso pré-vestibular que frequentava. Depois de diversas tentativas, contudo, Elias não teve êxito em nenhum dos vestibulares em que se inscreveu ao longo de dois anos, mas pretendia continuar tentando apesar das dificuldades do cotidiano – como a separação de Carlão e Tati – que se impunham. A notícia da morte repentina de sua tia Alba, contudo, fez com que ele decidisse retornar para Lençóis para estar junto de sua família. De sua experiência morando numa metrópole Elias guarda muitas histórias, tendo frequentado alguns candomblés paulistas e cursos sobre religiões afro-brasileiras e história do continente africano na Casa das Áfricas e como ouvinte na Universidade de São Paulo. Repetia assim uma experiência similar que tivera em Salvador, quando lá morou por alguns meses acompanhando um tratamento de saúde de sua companheira, tendo conhecido algumas das casas de culto da capital. Ao retornar para Lençóis, Elias se mostrou inconsolável com o falecimento da tia que também havia lhe criado e que era a última pessoa de sua família que ainda compartilhava de interesses similares aos seus. Lamentando o fato de não ter podido estar com ela há bastante tempo, bem como sua desaparição tão súbita, vítima de um ataque cardíaco fulminante quando parecia gozar de boa saúde, Elias mergulhou em sua mágoa e passou por um período de muitas atribulações, do qual prefere não lembrar. Quando enfim procurou retornar ao cotidiano e seguir em frente com sua vida, encontrou nos amigos e na família o apoio necessário para tornar a se habituar ao cotidiano da cidade e buscar trilhar um caminho diferente daquele que levava tantos jovens lençoenses a desperdiçar seu potencial em meio às dificuldades às quais estavam todos sujeitos.

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Apesar de trabalhar ocasionalmente em funções ligadas à economia do turismo na cidade, dando diárias como garçom, ajudante de cozinha (sendo ele mesmo um ótimo cozinheiro) ou jardineiro, Elias é mais conhecido pelos habitantes da cidade como um jovem contador de histórias e pesquisador informal do passado não escrito de Lençóis, autodidata e diletante – no sentido, principalmente, de apaixonado por aquilo que faz. Desde bem novo ele se dedica a (e se fascina em) conhecer a fundo e conversar demoradamente com os moradores mais antigos da cidade, tendo ao longo dos anos reunido inúmeros relatos que ocasionalmente anota de forma pouco sistemática mas que conserva na memória de maneira tão afetiva quanto prodigiosa. Por vezes é chamado por algum professor da rede local para proferir falas em suas aulas, especialmente após a aprovação da lei de ensino de história da África. As atividades desenvolvidas pelo Movimento Avante, do qual Elias fez parte, não se limitaram à mobilização pela moralização da vida política da cidade. Além do jornal que durante muito tempo foi seu carro-chefe, de início mimeografado e depois passou com edições diagramadas com relativa regularidade122, em 1997 foi criada a rádio comunitária Laúza – remetendo-se em especial ao sentido de “barulho” que a palavra carrega, ainda que seu significado de “algazarra” e “desordem” usado cotidianamente esteja presente –, possibilitada pela transformação do Avante numa associação civil estruturada. A Laúza teve seu funcionamento interrompido inúmeras vezes por órgãos governamentais que alegavam falta de concessão adequada, obtida em definitivo no ano de 2000. Até os dias de hoje, a rádio comunitária continua sendo o único meio de comunicação de massa regular da região de Lençóis e adjacências completamente produzido localmente. No interior do Avante – que em geral continua a ser referido como um substantivo masculino por ter surgido e continuar a defender sua caracterização como um “movimento” – estruturaram-se também diversos outros projetos de dimensões variadas, e houve alguma 122

O jornal Avante foi publicado a partir de 1995 ao longo de quase dez anos, com periodicidade próxima a bimestral, totalizando 51 edições, algumas delas com tiragens de até 1.500 exemplares.

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profissionalização das atividades que deixaram de ser feitas inteiramente por voluntários quando foi possível remunerar de alguma forma as pessoas que a ele se dedicavam diariamente e em muitos casos de forma exclusiva. A obtenção de mais recursos, possibilitada pela transformação em associação, permitiu também a compra de um terreno no qual foi erguida uma sede própria chamada Canto do Povo, no bairro do Tomba, construída em mutirão por seus habitantes e garantindo a concentração das atividades, antes espalhadas pela cidade em imóveis alugados ou emprestados. Apesar de a publicação do jornal ter sido suspensa em 2005 por falta de maneiras de custeá-lo, além da rádio funcionam hoje no espaço do Avante diversos cursos e oficinas de capacitação, bem como uma biblioteca comunitária e um laboratório de computadores com acesso à internet disponível à população. O Canto do Povo funciona igualmente como centro de estímulo à organização comunitária, tendo impulsionado a mobilização dos habitantes do bairro que resultou em melhorias na urbanização do entorno, sua iluminação, distribuição de água, saneamento e calçamento. Entre os anos de 1999 e 2001, contudo, foi tomando forma uma divergência entre pessoas que formavam o núcleo deliberativo do Avante, relacionada tanto às formas de financiamento disponíveis para a instituição quanto aos rumos de sua atuação política. Alguns deles desejavam expandir as possibilidades de obtenção de recursos para a associação, ansiando, por exemplo, pleitear para ela o título de Organização da Sociedade Civil de Interesse Público, fornecido pelo Ministério da Justiça, que auxiliaria a participação do Avante em editais públicos e lhe abriria novas oportunidades de conexão junto ao governo – algo que se coadunava com as propostas igualmente defendidas pelo mesmo conjunto de pessoas de deixar de ter uma posição marcadamente crítica diante da atuação do poder público na cidade e de trocar o nome da associação, considerado desgastado. Os outros membros ligados à coordenação do Avante, ao contrário, não desejavam ter de submeter seus projetos à deliberação daqueles que justamente estavam empenhados em combater,

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defendendo que se manterem independentes em relação ao governo era fundamental para desempenharem os objetivos basais do movimento – continuando a alinhar a intervenção comunitária representada pelos projetos à reivindicação política da qual ele tinha se originado. Sem a existência de um consenso que permitisse atender às expectativas do primeiro conjunto de pessoas, do qual a companheira de Elias fazia parte – ainda que não numa função de liderança –, estas resolveram se separar da associação Avante Lençóis e constituir uma pessoa jurídica distinta com base em dois projetos que, somados, deram o nome que a nova organização possui até hoje: Grãos de Luz e Griô. De um lado, a iniciativa Grãos de Luz surgiu com a distribuição de uma sopa comunitária no bairro do Alto da Estrela, posteriormente acrescentando a seu rol de atividades o reforço escolar e oficinas de artesanato, como um todo precedendo e vindo a ser encampada pela nova organização. Já o Projeto Griô surgiu desde o começo no interior do Avante, vindo a ser capitaneado por um casal de forasteiros que se estabelecera na cidade, Lílian Pacheco e Márcio Caires, inspirados no nome francês “griot” dado à figura do sábio africano, que lhes foi apresentada pelo etnólogo austríaco Christian Ardaga Widor, participante do projeto123. A imagem do griô foi fruto de elaboração contínua pelos participantes do projeto, passando a ser definido como um mediador do diálogo entre o ensino formal e o informal recebido em comunidades tradicionais, reverberando com um ar de familiaridade em ambientes nos quais mães e pais-de-santo, mestres de capoeira ou rezadeiras, por exemplo, recebiam destaque enquanto guardiões e transmissores de um saber oral mantido ao longo de muitas gerações. O Grãos de Luz e Griô, mais conhecido na cidade simplesmente por “Grãos”, passou a contar com diversas fontes de financiamento, muitas oriundas de editais governamentais, vindo a se tornar primeiro Ponto de Cultura (um espaço de articulação das ações do Programa Cultura Viva, do Ministério da Cultura) e posteriormente Pontão 123

Como informa a tese de doutorado dedicada ao estudo da associação daí surgida, que de outro modo silencia a respeito de praticamente toda a história de sua constituição (Barzano 2008: 52).

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(articulando Pontos de Cultura em âmbito nacional). No início de minha pesquisa era comum que mencionassem ou me dirigissem à sede do Grãos no Centro Histórico de Lençóis, onde alguns dos mães e pais da cidade deixavam seus filhos alguns dias por semana para participarem de suas atividades regulares, e cheguei a visitá-la algumas vezes, antes de vir a saber que o sucesso do Grãos está longe de ser uma unanimidade – por mais que o trabalho lá realizado seja bastante sério124. Tanto Elias quanto sua companheira, bem como outros amigos que vim a fazer, haviam se dedicado a trabalhar na nova associação quando os projetos foram desmembrados do Avante, mas com o passar do tempo e seu crescimento progressivo foram vendo concretizados alguns dos receios que seus antigos colegas haviam esboçado para justificar sua discordância quanto às mudanças de rumo da associação. O Grãos foi se burocratizando e se tornando centralizador na mesma medida em que via serem aprovadas suas participações em editais e crescer seu orçamento, resultado direto da habilidade de Lílian, a quem muitas pessoas se referiam como uma “projetista”. Do núcleo que a havia acompanhado na saída do Avante, metade das pessoas abandonou a nova associação depois de algum tempo, sentindose cada vez mais alijados dos processos decisórios e desgostosos com as direções que o Grãos tomava, capitulando cada vez mais diante da lógica que domina os editais públicos de financiamento, regida pela apresentação de produtos e quantificação de resultados, algo cada vez mais distante, segundo a visão dessas pessoas, do ideal de transformação local com o qual os projetos tinham sido inicialmente desenvolvidos. De acordo com uma dessas pessoas, apesar de não ter sido afastado do Grãos por decisão da coordenação, esse conjunto foi se sentindo “moralmente coagido” a abandoná-lo. Apesar de seus líderes enfatizarem a importância que essa associação adquiriu em âmbito nacional, segundo os habitantes da cidade em Lençóis o Grãos continua a ser apenas 124

As ações realizadas por pessoas ligadas ao jarê em conjunto com o Grãos serão alvo de menção mais detida no início do capítulo 3, na seção 3.1.

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mais uma entre muitas iniciativas que procuram causar algum tipo de diferença na vida dos lençoenses, em especial daqueles que foram mais impactados pelas recentes mudanças pelas quais a cidade continua a passar, com destaque para ações feitas com crianças. Entre essas iniciativas encontra-se a configuração atual da “marujada”, uma representação teatralizada com homens vestidos de marinheiros e oficiais que costuma se apresentar durante as festas e eventos populares na cidade, trazida do distrito de Igatu, na cidade de Andaraí, para Lençóis no início do século XX pelo avô paterno de Elias, o renomado Mestre Ceciliano. Antes formada quase que inteiramente por adultos, a versão atual da marujada de Lençóis recruta em sua maior parte crianças e jovens para o conjunto, mantendo da formação inicial as vestimentas características, uso de armas decorativas e execução de canções acompanhadas de instrumentos e marcha em procissão pelas ruas da cidade125. A organização e o comando da marujada costumavam ser passados de pais para filhos, algo que não se procedeu, contudo, após o falecimento de João da Jia, já que por motivos diversos nem Elias nem seus irmãos demonstravam ter o perfil ou o interesse em exercer a função que antes fora do pai e do avô. Por ser de todo modo o mais próximo da tradição, Elias orgulhava-se de por vezes ser lembrado como o guardião de direito da marujada pelo seu atual líder, um capoeirista da cidade, que buscava fazer dela uma forma de trabalho social transmitindo às crianças que agora a compunham noções de música, disciplina, assiduidade e boa convivência. Enquanto antigamente um festeiro era responsável por comprar as roupas e instrumentos utilizados pela marujada quando se fizesse necessário, nos dias atuais os envolvidos com ela buscavam cada vez mais o apoio da prefeitura do município para a aquisição desses itens, guardando-os e os renovando quando não se fazia possível adquirir novos.

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A forma de fandango conhecida como marujada é bastante disseminada no Brasil e recebe muitos nomes, como barca, fragata, barquinha, Nau-Caterineta, chegança de marujos. Registra-se que tenha sido trazida para a cidade de Lençóis no ano de 1914 (Gonçalves 1984: 176-177; Senna 2002: 219). Ver fotos 13 e 14 no anexo III.

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Seria um engano pensar que Elias não se dedicava à marujada por falta de comprometimento ou responsabilidade, ainda que essas características por vezes lhe fossem imputadas – em geral de forma séria por quem não o conhecia intimamente e de modo jocoso por seus amigos próximos –, muito em função de seu gosto pela bebida. Ele se mostrava genuinamente entristecido, em ambos os casos, quando alguém mencionava, por exemplo, que um esquecimento qualquer de sua parte se devia à cachaça – mesmo porque sua memória via de regra é excelente –, fazendo notar que lapsos até mais frequentes de outras pessoas não eram repreendidos da mesma forma. Enquanto amigos em comum comentavam com o próprio Elias que ele parecia já estar perenemente acompanhado pelo cheiro do álcool, sua opinião permanecia firme a respeito da importância do consumo da bebida, que para ser devidamente compreendida deve ser acompanhada da descrição que dela fazem os nativos que a apreciam. O hábito de consumir bebidas alcoólicas pode ser adquirido desde bastante cedo em pequenas quantidades, normalmente misturadas a outros líquidos mais leves, dadas a crianças e jovens, que não as consomem, contudo, durante o cotidiano. A cachaça, bebida por excelência na região, pode também ser administrada como remédio, e muitos são os senhores e senhoras de idade mais avançada que a bebem ao longo de toda vida sem efeitos adversos – ainda que também seja comum que comecem a substituí-la, quando mais velhos, por bebidas mais leves chamadas de “vinhos”, feitos com catuaba, jurubeba, gengibre ou ainda por batidas de coco. A respeito da aguardente de cana, comenta-se: “Cachaça não faz mal, não. Se cachaça matasse, não sobrava um vivo na Chapada”. Beber, dizem, não é problema em si, a não ser que uma pessoa por outros motivos já esteja sem rumo na vida, quando então pode vir a tomar atitudes reprováveis quando bêbado. O gosto pela cachaça é transmitido entre gerações, estando ela presente nas mais diversas ocasiões, como festas, batizados, velórios, encontros informais. A expressão mais utilizada para a ação de ingerir bebidas alcoólicas é “comer água”, enunciada sempre de modo

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entusiasmado e tendo se tornado o bordão de um dos habitantes da cidade, bradado em alto e bom som, incitando os demais a lhe acompanharem. A predileção pela atividade de beber compartilha espaço com um sentimento conexo, tão ou mais prazeroso, que é o de ver os outros beberem, o valor de ambas as predisposições só podendo ser devidamente percebido ao se acompanhar os nativos no empreendimento – o que faz com que na maior parte das casas seja considerada indispensável ao menos uma meiota (meio litro) de cachaça para oferecer um gole às visitas. Comer água também pode ser considerada uma forma de se alimentar tanto fisicamente como espiritualmente, conferindo ânimo renovado quando se está cansado e auxiliando as funções motoras quando há um trabalho a ser feito126. Uma senhora certa vez me contou como, para conseguir obter o ponto perfeito da massa e da cobertura de um bolo sem o qual uma festa de jarê não teria início – depois de suas colegas terem falhado em múltiplas tentativas – solicitou uma dose de cachaça, bebida que de outro modo ela especificamente não apreciava, antes de dar início ao trabalho, no qual teve êxito. A companheira de Elias não gostava que ele bebesse, este sendo um de seus incômodos com a presença do mesmo nos jarês, considerando que se afastar da bebida e ter uma postura de sobriedade e reserva seriam também modos de evitar ser alvo de mais formas de preconceito, posto que já tinham de lidar com o já sofrido pela população negra da cidade em geral. A ligação entre sua cor de pele e a ascendência africana que possuíam muitos dos cidadãos de Lençóis não era um assunto por eles rotineiramente abordado, o mesmo não podendo ser dito a respeito da conexão bastante direta que atualizavam ao falar a respeito da escravidão a que foram submetidos seus antepassados em território nacional, bem como as inúmeras sequelas desse processo, tema que costumam evitar ao lidarem diretamente com turistas, mas que trazem à baila quando se encontram cercados de pessoas mais próximas.

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Como já informava o excelente artigo a respeito do reisado da comunidade do Mulungu, num estudo realizado no município de Boninal, na parte oeste da Chapada Diamantina (Brantes 2007: 34-35).

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A presença significativa da população escrava trazida para trabalhar na cata do diamante deixou diversas histórias marcadas na memória dos nativos da Chapada, que costumam ser contadas pelos mais velhos a quem decide se debruçar sobre o assunto, como sempre foi o caso de Elias. Assim é que ele me narrou casos como o da escrava que teve seus dentes, muito alvos e apreciados por seu senhor, todos arrancados a mando da esposa deste, que os transformou num colar para seu uso e enviou a escrava para ser seviciada no tronco para que deixasse de ser enxerida quando lhes servisse à mesa. Em outro caso, conta-se que escravos que haviam conseguido tudo que lhes era necessário para obter a alforria diante de seus proprietários, alguns anos antes da abolição, viam seus esforços serem anulados por medidas protelatórias postas em marcha pelo juiz municipal para que continuassem por mais tempo no cativeiro. O fato de o garimpo também ser trabalhado por mão-de-obra escrava conferia a essa última um caráter distinto daquele que tinha em outras partes do país, posto que o grande valor e a alta transportabilidade dos diamantes poderiam render ao escravo meios de obter a liberdade, desde que se utilizasse de uma rede informal de comércio que os donos dos garimpos faziam de tudo para inibir. Essa possibilidade relativamente concreta atraiu para a Chapada um grande número de escravos alforriados interessados na possibilidade de conseguir recursos para comprar a liberdade de parentes e amigos, que poderiam ser obtidos tanto na procura de diamantes como com a prestação de serviços urbanos. Os alforriados se somaram à população negra que era levada à força para a região pelo comércio interno de escravos, que passa a ser uma atividade econômica quase tão rentável quanto o próprio garimpo e que é intensificada na segunda metade do século XIX após o fim do tráfico negreiro. Com a abolição houve mesmo a possibilidade de antigos escravos utilizarem suas economias para promover ascensão econômica a seus filhos, registrando-se o caso de um filho de escravo que pode estudar Direito em Salvador e se tornou desembargador do Tribunal de

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Justiça da Bahia. É igualmente certo, de todo modo, que a maior parte dos recém-libertos continuou a trabalhar em condições precárias para os donos das serras, ainda que as senzalas propriamente ditas tenham desaparecido com o passar do tempo, restando ainda hoje algumas de suas ruínas no município de Lençóis127. A escravidão, nos dias de hoje, aparece como uma referência constante e só parcialmente jocosa no falar dos lençoenses, usada em especial para falar sobre suas condições de trabalho, independentemente de suas ocupações. “Sou preto, mas não sou escravo, não”, era uma réplica comum quando se julgava que uma solicitação de trabalho adicional era excessiva (fosse ela muito laboriosa ou mal remunerada). Num tom de brincadeira, que não empalidecia mesmo quando também transmitia ligeira melancolia, meus amigos em funções mais ligadas à indústria do turismo na cidade costumavam dar ao verbo “escravizar” o sentido de “trabalhar”, podendo dizer, por exemplo: “já vou embora que hoje ainda preciso escravizar”, ou “não pude ir porque fiquei escravizando até tarde”. Com o tempo disseram-me também que não só pela cor reconheciam as pessoas cujas famílias haviam sido escravas no passado, mas igualmente seus sobrenomes podiam denotar essa marca, chegando mesmo em alguns casos a ser possível saber quais eram as famílias específicas que haviam possuído seus antepassados como escravos128. Como uma amiga costumava dizer: “A Princesa Isabel não assinou a Lei Áurea a caneta, e sim a grafite, que em pouco tempo se apaga”. A cor da pele é também fruto de considerações estéticas das mais variadas. Elias, por exemplo, me dizia como tinha ficado muito contente por ter escurecido depois de ter nascido

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Por muito tempo ignorados pela historiografia local, se não mencionados apenas de passagem, relatos como esses e outros similares só vieram a ser registrados há pouco tempo na literatura a respeito da região, que passaria a dar conta da presença marcante dos escravos (Moraes 1963: 38, 46 nota 7; Toledo 2001: 22-24, 82-83; Ganem 2001: 33-37, 141; Pina 2000: 78-97; Pina 2001: 179-182, 190-192; O. Senna 2002: 11-12; Funch 2007: 49, 56-57, 65-67, 143; Toledo 2008: 94-106). 128

Como no episódio relatado no capítulo 1, seção 1.4. Já a ligação feita no jarê entre a escravidão e os exus será abordada no capítulo 4, seção 4.3.

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com uma cor mais clara, já que se orgulhava de sua origem e não se imaginava namorando com uma pessoa de pele mais clara que a dele129. Pessoas de pele mais clara que a de Elias costumam ser chamados por seus amigos de pele mais escura de “desbotados”, em especial quando estas tentam dar a entender numa situação qualquer que não seriam negras. Nos casos mais extremos nos quais se continua a dar a entender que uma pessoa é não branca, é costume chamarem-na de “galega”, que seria uma pessoa bastante clara mas cujas tonalidade da pele e demais características físicas marcam como negra. Diversas vezes presenciei pessoas, especialmente homens jovens, em situações nas quais faziam questão de dizer e demonstrar o quanto se orgulhavam não só de sua cor como de suas origens, exaltando características derivadas de sua constituição física, fosse sua potência sexual ou, em outros exemplos, sua capacidade de resistir à dor ou ao frio130. Muitas das pessoas negras de Lençóis já foram, de toda forma, alvo de racismo, assunto sobre o qual só falam em circunstâncias bastante específicas e com aqueles de quem são mais próximos. Apesar de a população negra ser expressiva maioria na cidade 131, existem também diversos brancos pobres com os quais por vezes alguma discussão pode degringolar em injúrias raciais, especialmente entre crianças. Também não é incomum que brincadeiras entre pessoas de pele parda e as de pele mais escura possam envolver distinções de raça às quais as pessoas mais negras dificilmente dão muito crédito. Em sua visão, entretanto, nenhuma dessas situações é equiparável tanto ao preconceito que se origina da população branca que constitui a elite da cidade – sejam eles os membros das reduzidas famílias tradicionais antes ligadas ao diamante, sejam os forasteiros que hoje controlam grande parte

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Ao afirmá-lo, Elias mencionou se achar por isso preconceituoso, e eu lhe disse que acreditava que havia formas piores de preconceito. 130

Essas formas de autovalorização do homem negro também se relacionam à ética masculina do exibicionismo que será apresentada no capítulo 3, seção 3.2. 131

Autoconstatação que, além de cotidiana, é igualmente registrada nos dados do Censo, como visto na Introdução.

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dos negócios turísticos de Lençóis –, como àquele vindo dos próprios turistas – sendo os brancos oriundos do nordeste do país e em especial de Salvador considerados por eles os mais virulentos. Há lençoenses que procuram ocasionalmente fazer parte do novo circuito econômico da cidade como clientes, seja frequentando bares e restaurantes de maior apelo turístico, seja realizando passeios em grupo – posto que especialmente as mulheres conhecem muito pouco ou mesmo nada dos atrativos naturais das quais passaram indiretamente a depender (via de regra aqueles que, para serem alcançados, dependem do aluguel de veículos para deslocamentos mais distantes). Ressentiam-se de serem rotineiramente confundidos pelos demais clientes com empregados dos estabelecimentos que tentavam frequentar, respondendo nessas ocasiões de forma resignada ou altiva, fazendo questão que as desculpas que acabavam lhes oferecendo não se alongassem. Por vezes encontram, todavia, resistência por parte de seus próprios conterrâneos, que não lhes prestam serviço da mesma forma que o fazem para os visitantes, demorando a atender, por exemplo, uma “mesa afro”, como já ouvi sendo dito, e dando prioridade a turistas, mesmo quando valor idêntico será pago. A propensão de alguns nativos a se dedicarem exclusivamente a obter a atenção dos turistas, e dos estrangeiros em particular, me foi exemplificada de outra forma por um professor da rede pública da cidade. Ele comentou como passara a notar que jovens moças negras acostumadas a alisar os cabelos só deixavam de querer fazê-lo na idade em que se davam conta de que penteados afro costumavam ser muito mais atraentes para gringos em busca de um padrão de beleza característico. Essas jovens iam assim, de certa forma, ao encontro do discurso também presente na cidade entre os raros ativistas diretos pela valorização de uma beleza propriamente negra, ainda que, na avaliação deste professor, por péssimos motivos. Uma de minhas amigas, orgulhosa professora da rede pública e dona de comentários tão sutis quanto ferinos, dizia que havia ações muito mais significativas na luta cotidiana

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contra o racismo do que deixar ou não de alisar os cabelos, chamando minha atenção para as muitas formas por meio das quais o preconceito que a população negra sofria era combatido. Ela trabalhou por um tempo junto ao poder público buscando divulgar pelas escolas da região iniciativas espontâneas de valorização cultural da população negra de Lençóis e sua história, tendo contado certa vez que nutria especial admiração, no jarê – que, de outro modo, só frequentara com alguma regularidade quando criança –, pelo brio das entidades que conseguiam suscitar respeito e obediência por parte dos presentes132. Na mesma chave encontra-se o enredo escolhido pela quadrilha vencedora da parte competitiva do São João que presenciei, e que narrava a história de um escravo que tinha obtido sua alforria, cuja importância educativa havia sido frisada no discurso de agradecimento de sua puxadora. Na academia de capoeira, por sua vez, os professores do esporte explicavam aos seus alunos os motivos pelos quais tinham escolhido ordenar as cordas de progressão de modo a conectá-las com a trajetória da escravidão dos negros no Brasil133. Um de seus professores, que havia se tornado ainda mais famoso depois de ser escolhido para protagonizar o filme Besouro, contou-me como uma de suas maiores motivações para fazer parte do elenco era seu desejo de mostrar a sua mãe na televisão um negro fazendo papel de capoeirista, posto que tinha ficado

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Algo presente também numa companhia que funcionou por alguns anos na cidade chamada Grupo Teatral Praça das Nagôs, empenhada em combater o racismo e defender o jarê contra a discriminação (Araújo 2002: 183). 133

Possibilidade aberta em função de cada academia ser livre para determinar a sequência das cores de suas cordas. No caso da academia Corda Bamba, como me explicaram, a primeira corda era azul pois os escravos tinham sido trazidos do mar. A segunda era marrom, representando a nova terra na qual foram obrigados a aportar. A terceira era verde, ligada à natureza que desbravavam e na qual exerciam seu trabalho. A quarta era amarela, indicativa da riqueza que produziram e do ouro que mineraram. A quinta era roxa, representativa da raiva e indignação que os negros sentiam por serem escravizados. A sexta era vermelha, cor do sangue derramado nas lutas contra a escravidão. A sétima e última era a branca, cor da liberdade por eles conquistada e que é direito, acrescentavam, de todo ser humano. Uma aluna portuguesa, que já tinha alguma intimidade com o professor de capoeira que me fazia essa preleção, perguntou-lhe com ar de brincadeira se eles não viam problema em ter escolhido justamente a cor branca para a melhor corda, já que esta era a cor dos senhores de escravos – provavelmente como réplica ao comentário igualmente jovial que ele havia feito sobre como iria derrubá-la uma vez na roda por terem sido os portugueses os responsáveis pela escravidão no Brasil. A resposta magnânima do professor deu a entender que se recusavam a conferir aos brancos o monopólio da cor que, ele disse, era antes de tudo a cor da paz, acrescentando: “Além disso, eu não tenho nenhum preconceito contra gente branca...”

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indignado ao assistir, quando criança, a um filme de ficção que tinha a capoeira como elemento fundamental mas com um branco no papel principal134. Meu amigo Elias gostava de comparar as atitudes das pessoas que lutavam contra o preconceito racial com as de figuras emblemáticas desse movimento, dizendo que enquanto alguns de seus antigos companheiros do Avante se aproximavam mais de Malcolm X, ele próprio buscava se inspirar mais em Gandhi e Martin Luther King. Ainda que concordasse que havia lugar para o embate mais direto do primeiro, tinha receios quanto aos perigos da supremacia negra, preferindo formas de enfrentamento mais pacíficas esposadas pelos últimos135. Elias também se orgulhava de ter feito, ainda na escola, um trabalho a respeito do abolicionista Luís Gama, e tinha profunda admiração pela história da escrava Anastácia, alvo de sua devoção e na qual reconhecia a capacidade de conferir forças para lutar permanentemente contra a escravidão. Sempre que em nossas conversas falava a respeito do idioma iorubá, Elias lembrava que se tratava de uma língua, e não um dialeto, pois chamá-lo dessa forma era também uma forma de preconceito. Quando ele me apresentou a um senhor, pai de um dos professores da academia de capoeira, e lhe explicou o motivo de minha estada em Lençóis, esse senhor nos disse que ficava muito feliz em ver pesquisadores interessados na realidade das cidades do interior: isso era bom não só para nossos currículos, continuou, como para a própria cidade, já que meu trabalho também poderia oferecer uma contribuição contra o racismo local, que ainda era bastante forte. De qualquer forma, combater o preconceito contra negros também dependia bastante, diziam alguns de meus amigos, de mudanças de atitude por parte deles próprios. Pouco adiantaria, por exemplo, se contentar apenas com mudanças derivadas do policiamento do 134

Trata-se, provavelmente, do filme de 1993 chamado Only the strong (traduzido no Brasil com o duvidoso título Esporte sangrento), estrelado por Mark Dacascos no papel de um ex-boina-verde que serviu no Brasil onde se tornou mestre de capoeira. Esse é o único filme produzido em Hollywood no qual a capoeira é parte integrante do roteiro do início ao fim. 135

Quando usava a internet, Elias gostava de deixar marcada uma frase, atribuída a um buda: “Seja como o sândalo, que perfuma o machado que o fere”.

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politicamente correto (como, por exemplo, evitar o uso de certas formas de tratamento) se as mesmas formas de discriminação continuassem operando – tomar algum tipo de atitude era uma posição defendida diante da postura mais passiva e de evitação de confrontos com a qual muitos dos nativos haviam se acostumado. Nessa chave encontravam-se algumas das ações feitas durante a Semana da Consciência Negra realizada em novembro na cidade, especialmente nas apresentações escolares feitas no Mercado Cultural no próprio dia 20. Depois de uma introdução com leitura de poemas – atividade bastante comum em qualquer evento público em Lençóis, nos quais via de regra há declamação de composições sobre negritude na Chapada, sempre recebidas com muitos aplausos e entusiasmo –, conjuntos de alunos de cada escola do município fizeram atuações diversas. Teve destaque a feita pelos alunos da escola do povoado do Remanso, uma comunidade de remanescentes de quilombolas localizada no interior do município a aproximados 25 quilômetros de carro a partir de Lençóis. Cada aluno recitava um breve texto a respeito de uma personalidade histórica negra e concluía dizendo bem alto seu nome seguido da frase por todos repetida: “Sou negro e brasileiro”. A vila do Remanso é referência constante quando se fala em Lençóis a respeito de pessoas negras, já que sempre se marcava o fato de que era lá que as pessoas eram “pretas de verdade”, em referência antes de tudo à tonalidade de pele marcadamente mais escura dos seus moradores, muitos dos quais haviam com o tempo se mudado para a sede do município. A companheira de Elias e sua família eram nativos do Remanso, comunidade que este me contou ter surgido a partir de descendentes de quilombolas que estabeleceram seu enclave anterior numa região próxima, por sua vez surgido, conta-se até hoje, a partir da união de uma escrava fugida com um “índio”, ou “homem do mato”, que por lá habitava 136. Dos habitantes

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Houve diversos quilombos, durando períodos variados, espalhados pela Chapada Diamantina, tendo ficado mais conhecidos os que se fixaram na área que hoje é o município de Andaraí, com especial menção à ocupação da chamada Mata dos Orobós. Os habitantes desses enclaves trabalhavam a terra, caçavam e pescavam, fazendo parte da economia local por meio de trocas e chegando mesmo a acompanhar parte da exploração diamantífera

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do Remanso diz-se que cultivam o hábito de casar somente entre si mesmos, sendo invariável ouvir, quando em Lençóis se comenta a respeito da vila, o fato de que lá “são todos parentes”137. Elias, por sua vez, e mesmo não sendo oriundo do Remanso, por vezes referia-se a si mesmo como “afro-indígena”, fazendo menção a um tipo específico de miscigenação implicada tanto pela cor de sua pele que, para seu desgosto, não era tão escura quanto a de sua companheira, como pelo seu cabelo que, apesar de encaracolado, possui textura mais lisa e lembra “cabelo de índio”138. Entre outros motivos, o fato de usá-lo com comprimento considerável levava um importante pai-de-santo da região a lhe chamar pelo apelido de “Odé”, entidade que no jarê é uma versão infantil de Oxóssi, orixá ligado às matas. Esse pai-de-santo, cuja história será detalhada no próximo capítulo, havia sido aprendiz do avô materno da companheira de Elias, e importante figura religiosa do Remanso, mais conhecido pelo nome de Manezinho Bumba, há muito falecido, e que não deve ser confundido com seu xará, mais novo, que atendia por Manezinho do Remanso, líder comunitário que também tinha conexões com o jarê. O falecimento desse último há alguns anos e a posterior conversão de muitos dos habitantes da vila, que passaram a ser evangélicos, diminuiu a presença do jarê no Remanso, que procura ser de todo modo estimulado por um dos muitos filhos carnais deixados por esse último Manezinho. O Remanso também se insere no circuito turístico no qual Lençóis agora investe, havendo ali incursões de turismo comunitário incentivadas pelo Grãos de Luz e Griô, que também atua com o conhecimento tradicional de seus habitantes, bem como, em maior escala, passeios de canoa pelos

(Rabelo 1990: 54; Toledo 2001: 102-103; Senna 2002: 235; Funch 2007: 83, 114; Toledo 2008: 69-70, 72-73, 76). A presença especificamente indígena na região será discutida no capítulo 4, seção 4.3. 137

Algo bastante similar ao que se diz na já mencionada comunidade do Mulungu, em Boninal, oeste da Chapada Diamantina, afirmando-se lá que “é tudo uma família sozinha” e “todo mundo é primo” (Brantes 2007: 31). 138

O jarê já foi chamado de uma religião resultante de “sincretismo afro-ameríndio” (Senna 1998: 73), e os habitantes da Chapada como de origem “afro-indígena” (Rabelo 1990: 372).

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marimbus, áreas alagadiças conhecidas por representarem um “pequeno Pantanal” na Chapada139. A referência aos antepassados africanos, se não é sempre tão explicitada em momentos nos quais os lençoenses falam a respeito de sua negritude, pode surgir nos mais diferentes momentos, como quando alguns amigos compararam sua cor de pele à de turistas angolanos que conheceram na cidade, ou quando, por eu ter mencionado a monarquia numa conversa a respeito da proximidade entre o sotaque carioca e o português, me lembraram de modo contundente que suas famílias também tinham chegado no Brasil junto ou até antes da família real: só que na condição de seus servidores braçais. Lençóis é também o berço de Cândido da Fonseca Galvão, mais conhecido como Dom Obá II d’África140. A figura de Dom Obá tornouse, por um breve período, emblemática no restante do país ao protagonizar o enredo de uma importante escola de samba carioca141. Elias mencionava como a própria população de Lençóis dava pouca atenção à história de Dom Obá antes dela ter sido popularizada com o

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Ver fotos 15 e 16 no anexo III.

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Nascido, na Lençóis do século XIX, de um escravo iorubano alforriado, Dom Obá era neto do poderoso Alafin Abiodun, último soberano a manter unido o império de Oyó, na segunda metade do século XVIII. Ele deixa a Chapada para lutar na Guerra do Paraguai e retorna de lá com o posto de alferes, estabelecendo residência na cidade do Rio de Janeiro, onde se torna um expoente na defesa da igualdade de direitos entre negros e brancos – apesar de monarquista, frequentador assíduo da corte de Pedro II –, publicando artigos abolicionistas em jornais e sendo reverenciado como um príncipe por muitos negros no país, tanto escravos como libertos, vindo a falecer pouco depois da queda do Império. Há somente pequenas divergências na história de Dom Obá entre a versão contada pelo livro que a tornou amplamente conhecida, baseada em pesquisa arquivística (Silva 1997: 37-38, 120, 219-220) e aquelas oriundas da memória lençoense registrada alhures (Ganem 2001: 39-43), a respeito da época e local de seu nascimento e o fato de ter ou não sido escravo quando mais novo. 141

No desfile do ano de 2000 da Estação Primeira de Mangueira, cujo carnavalesco foi Alexandre Louzada. Apesar de a escola ter ficado em 7o lugar na disputa do Grupo Especial, prejudicada por problemas técnicos com um dos carros alegóricos, seu enredo obteve notas altas, e o samba-enredo, composto por Marcelo D’Aguiã, Bizuca, Gilson Bermini e Valter Veneno, e interpretado por Jamelão, recebeu, por sua vez, nota máxima de todos jurados. A homenagem da Mangueira parece ainda mais significativa por ter sido Dom Obá importante intercessor junto ao Imperador para que fornecesse auxílio à população empobrecida que havia sido instalada nas proximidades da Quinta da Boa Vista e do Morro dos Telégrafos, que viria a ser o Morro da Mangueira (Silva 1997: 118).

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desfile da Mangueira que o homenageou, e como os esforços pífios surgidos a partir daí pouco fizeram para mudar esse quadro142. Nenhuma ligação com suas origens africanas, contudo, era mais significativa para os lençoenses do que aquela explicitada pela presença das “nagôs”, senhoras africanas vindas para a cidade ainda na época da escravidão. Mesmo tudo indicando que se tratasse de uma minoria quantitativa, já que a maior parte dos negros que foram levados e que afluíram espontaneamente para a Chapada possivelmente era oriunda da Costa do Ouro, essas senhoras falantes de iorubá e vindas da região do Golfo do Benim tiveram papel de destaque enquanto líderes de comunidades negras em Lençóis, de modo similar ao que se processou em Salvador143. Quando se menciona seu conjunto, às nagôs do passado refere-se sempre no feminino, comentando-se também como eram as mulheres que chefiavam as casas, sendo invariavelmente seus nomes precedidos do honorífico “Sá”, da mesma forma que algumas de suas mais notórias descendentes que Elias conheceu ainda em vida, como Sá Iria ou Sá Miliana144. Muitas dessas senhoras haviam anteriormente se estabelecido ou ao menos tido passagem pela cidade de Cachoeira, no Recôncavo baiano, na cabeceira do Rio Paraguaçu, à época navegável deste ponto até bem próximo de Lençóis, cujas proximidades podiam ser também atingidas durante determinada época por uma importante ferrovia, além das trilhas e estradas pelas quais animais de carga cortavam as serras145. A cidade de Cachoeira continua a

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De um lado, o Grãos de Luz e Griô fez um carimbo com o qual marcava parte de sua produção e não muito mais que isso; de outro, a prefeitura batizou um arquivo público municipal de “Arquivo Dom Obá”, que esteve ao longo de toda a duração do meu trabalho de campo interditado por ter sido alvo de uma infestação de pombos. 143

A maior parte da população escrava da Chapada Diamantina era composta por negros já nascidos em território nacional. A documentação disponível, por exígua que seja, permite de todo modo à literatura identificar ao menos minimamente as origens tanto dos africanos trazidos para a região como dos antepassados dos escravos brasileiros (Neves 1998: 262-271 apud Pina 2001: 198; Pina 2001: 185, 187; Senna 2002: 229). 144

A preferência pelo uso do etnônimo coletivizado no feminino se conecta, entre outros motivos, à matrifocalidade das famílias (Senna 1998: 70). Em outras partes do Brasil, existem até os dias de hoje em desfiles de blocos carnavalescos os “blocos de nagô” (Mello 1994: 34 apud Barbosa Neto 2012: 5 nota 7; Mello 2010: 79, 265). 145

As diversas formas de se chegar até a Chapada sofreram desgastes contínuos ao longo dos anos, sendo renovadas ou abandonadas ao declínio conforme os ciclos de produção do diamante, o Paraguaçu perdendo

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ser até hoje um referencial para os habitantes da Chapada Diamantina no que se refere à religiosidade de matriz africana, e muitos objetos rituais considerados insubstituíveis por seus utilizadores no jarê são ditos proceder daquela região, trazidos de lá no passado pelas nagôs146. Como em outras partes do país, os africanos trazidos à força para a Chapada aportaram trazendo também suas divindades e práticas tradicionais, posteriormente adaptadas à nova realidade à qual foram submetidos tanto eles como seus descendentes. Na região das Lavras, tudo indica que tenha acontecido inicialmente processo similar àquele que teve início na capital baiana, onde o candomblé de modelo jeje-nagô surgiu e se consolidou após ter plasmado os cultos domésticos e cabulas ou calundus de fundamento congo-angola já existentes, dando origem às casas de culto organizadas, que possibilitavam que diversas divindades africanas distintas fossem reverenciadas num mesmo espaço ritual147. Quer tenha se desenvolvido de modo parecido diretamente na Chapada, quer tenha sido trazido pelas africanas e suas descendentes vindas de Cachoeira e alhures148, o “candomblé de nagô” que imperou principalmente nas cidades de Lençóis e Andaraí em algum tempo se transformaria novamente, diante de outros encontros com a realidade local, vindo a originar o jarê como é

navegabilidade e a Ferrovia Central da Bahia tendo seu trajeto inicialmente planejado alterado rumo ao sul. A conexão com Cachoeira, importante centro comercial do Recôncavo, sempre esteve no horizonte (Acauã 1847: 244; Pereira 1910: 56; Moraes 1963: 37, 195; Ganem 2001: 123; Araújo, Neves & Senna 2002: 138 nota 33; Zorzo 2002: 64-67). 146

Já se estudou a fundo o papel da cidade de Cachoeira enquanto exportadora não só de saberes como de objetos rituais para as cidades do sertão baiano – com menção explícita, entre outra, a Lençóis –, num movimento contíguo ao da empreitada dos tropeiros que circulavam pelas estradas e ferrovias reais (Brazeal 2007: 21, 40, 176). 147

Não resta dúvida a respeito da importância da consideração histórica adequada desse processo, deixada de lado na produção do final do século XX quando foi feita a crítica da suposta superioridade jeje-nagô (Bastide 1960: 67-71; Serra 1995: 32-33, 45-46; Castro 1998: 25; Senna 1998: 65, 68; Silveira 2005: 20-23; Senna 2002: 224, 234-235; Souty 2007: 234-235). O primeiro registro documental encontrado na literatura a respeito de encontros de negros na Serra do Sincorá para a realização de batuques e danças com possível cunho religioso data de 1856: trata-se de uma proibição nas posturas municipais do município de Santa Isabel do Paraguaçu para impedir encontros do tipo por perturbarem a ordem pública (Pina 2001: 188). 148

Num movimento contínuo e também reverso, com a ida de habitantes nascidos no sertão para Cachoeira e além (Brazeal 2007: 41).

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conhecido hoje, sendo as nagôs da Chapada Diamantina consideradas portadoras do primeiro e inventoras propriamente do segundo, como me afirmaram. Segundo relatos orais transmitidos por alguns dos mais antigos habitantes da cidade, que os ouviram de seus ascendentes, as nagôs e suas primeiras descendentes realizavam suas festas e cerimônias no interior de suas casas, “falando cortado”, ou seja, em iorubá, não sendo entendidas por aqueles que não falavam sua língua ou, como me foi dito, de modo a que “só entendesse quem tinha que entender”. Além dos salões nos quais aconteciam os toques e danças, suas casas possuíam dois compartimentos distintos para o acondicionamento de seus objetos rituais e estatuetas, sendo uma dedicada aos mais diretamente africanos e a outra aos demais149. Ao mesmo tempo, contudo, as nagôs se viram na responsabilidade de prestar culto a entidades que deviam ser reverenciadas na parte de fora de suas casas, ainda que não a céu aberto: os caboclos, espíritos ligados aos indígenas150. Para tanto, mandavam erguer estruturas temporárias cobertas com folhas de árvores e palha seca, sob as quais conduziam uma parte distinta de suas celebrações, destinada aos caboclos, e cuja liturgia era praticada em idioma vernáculo. Diferentemente das cerimônias realizadas no interior das casas, cuja participação era em princípio reservada somente às próprias nagôs, seus familiares diretos e convidados especiais, o culto aos caboclos feito em português do lado de fora era aberto a qualquer pessoa que dele quisesse participar. A hipótese aqui esboçada é a de que com o passar do tempo as duas cerimônias distintas amalgamaram-se e deram origem ao jarê como é conhecido nos dias

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Esses aposentos me foram descritos, por exemplo, por Elias, que visitou a casa de uma dessas senhoras, descendente das nagôs, que há muito não mais realizava cerimônias. Ele foi chamado para auxiliá-la, junto de diversas outras pessoas, a despachar seus objetos rituais antes de sua morte, que ela sabia ser iminente. Elias ficou responsável, numa missão que o encheu de orgulho, pelos itens ligados a Xangô, entidade da qual é especialmente próximo. 150

Por vezes afirma-se que a adoração dos caboclos nos terreiros das nagôs, possivelmente ocorrida no início do século XX, se deveu à ação de um único líder religioso, chamado Alfredo Araçás, filho de escravos alforriados provenientes de Minas Gerais. Cada comunidade de culto costuma ser capaz de indicar uma pessoa específica responsável por essa inovação na história de sua casa (Senna 1998: 72, 77).

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de hoje, no qual todas as entidades passaram a ser reverenciadas no mesmo espaço interno – que por sua vez deixa de ser etnicamente exclusivo151. É comum que os habitantes de Lençóis se lembrem das nagôs durante as noites em que há tempestades com raios, bastante temidas na Chapada, cujas serras fazem ressoar trovoadas tão magníficas quanto assustadoras. Em ocasiões como essas, as nagôs costumavam sair de suas casas em meio à tormenta tocando seus agogôs, instrumentos compostos por duas campânulas de ferro percutidas por varetas metálicas, com objetivo de aplacar a insatisfação dos orixás responsáveis por esses fenômenos climáticos, Iansã e Xangô. Conta-se que, certa vez, uma mulher resolveu zombar da prática das nagôs, dizendo que iria tocar agogô para afastar a tempestade que crescia. Algum tempo depois, e mesmo estando dentro de casa, a escarnecedora foi atingida por um raio que a matou na hora, deixando contudo só metade do seu corpo carbonizado, enquanto a outra metade permaneceu intacta. No local atingido encontraram posteriormente uma pedra de raio, materialização da vontade das entidades e indício suplementar de que o evento não foi nenhuma coincidência152. Até hoje, em especial as pessoas ligadas ao jarê mostram grande temor e reverência diante das chuvas acompanhadas de relâmpagos e trovões, e em noites nas quais estas persistem, a realização das cerimônias precisa aguardar a proximidade da estiagem, sob pena de se haverem com a fúria das entidades. As nagôs foram em determinada época alvo de perseguição religiosa, e do período recordam-se histórias envolvendo Horácio de Mattos, o coronel-mor de Lençóis. Diz-se que, certa feita, Horácio enviou jagunços para acabar com o bater de tambores que rompia a noite e incomodava alguns moradores. Chegando às cerimônias em questão, a essa época já conhecidas como jarês, seus jagunços foram tratados de forma tão carinhosa e afável que não 151

Daí também fazer sentido considerar o jarê, que será detalhado mais adiante nesse capítulo, na seção 2.4, uma espécie de candomblé de caboclos. 152

Essas pedras foram apresentadas no capítulo anterior, na seção 1.1, e reaparecerão nos próximos.

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conseguiram executar a missão para a qual tinham sido enviados. Depois de três pares de seus homens terem retornado sem obter sucesso, o próprio coronel vai até o jarê das nagôs e, sendo tratado da mesma forma, desiste por fim da empreitada153. Outro episódio, também contado com bastante gosto, que ilustra a relação das nagôs com Horácio de Mattos, ocorreu num local que até hoje continua a ser chamado pelo nome que o conecta a essas senhoras. Na Praça das Nagôs, durante um evento público que reunia grande parte dos habitantes de Lençóis, um rapaz negro teve a ousadia, na visão do coronel, de flertar com uma moça branca “da sociedade”, sendo por isso chicoteado por Horácio. Em revanche, uma das nagôs ali presentes usou um instrumento ritual para fazer com que o coronel começasse a sambar e chicoteasse a si próprio involuntariamente154. Consta que o coronel e as nagôs chegaram por fim a uma trégua (ou talvez aliança), segundo a qual o primeiro concordava em abandonar a perseguição aos cultos das últimas desde que estas procurassem diminuir a visibilidade das oferendas que deixavam em locais públicos155. As nagôs eram reconhecidas de longe por suas vestes, quase sempre de notável alvura, em geral compridas saias e blusas com golas ornadas. Andavam, como muitas das mulheres da cidade, com as cabeças cobertas, mas variando entre os lenços dobrados em triângulo 153

Uma história similar me foi contada por uma senhora bastante idosa, que a testemunhou quando ainda era criança. Ela disse que os policiais que costumavam frequentar os jarês (para manutenção da ordem evitando brigas, explicava) eram muito bem recebidos, a ponto de ter visto um deles participando diretamente da cerimônia, ao ser tomado por uma entidade e adornado com vestimentas brancas pelas nagôs que o permitiram dançar, exigindo dos presentes o devido respeito ao visitante, agora duplo. 154

Elias, um dos que me transmitiu essa história, me disse que ouvira o objeto, que podia ser também uma espécie de chicote ou espanta-moscas, ser chamado de “orobô”, nome em outros lugares reservado à noz-de-cola ou à coleira, árvore de onde provém (e na mesma região da Chapada registra-se a existência da Mata dos Orobós, na qual no passado parece ter havido um quilombo). No candomblé, esse mesmo instrumento, feito com cauda de bois, é a ferramenta usada por Iansã para afastar os mortos, normalmente recebendo o nome de “iruquerê”. Ainda na chave do episódio do coronel que se açoitou, há menção a uma construção teatral realizada por garimpeiros da região chamada “brincadeira do coronel”, na qual o ator que protagonizava o caudilho era chicoteado de forma simulada (Senna 1998: 71; Senna 2002: 218-219). 155

Esses eventos parecem ser inversões locais, mas que mantêm o efeito esperado, do que se conta com bastante frequência ter acontecido em casas de candomblé litorâneas, quando agentes repressivos, em geral do Estado, veem frustrada sua intervenção ao serem tomados por entidades do culto e acabam eles próprios sofrendo a violência que iriam exercer, sendo levados, por exemplo, a rolar no chão incontrolavelmente. A resistência pela ternura, exemplificada pelas práticas das nagôs de Lençóis, pode ser também conectada com a disposição subversiva de que se falará adiante nesse capítulo, na seção 2.3.

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usados na região e os turbantes típicos de Salvador. Distinguiam-se por não ter cabelos na cabeça, os relatos divergindo sobre a prática de serem raspados ou, como muitos afirmavam, não chegarem nem mais a crescer. A menção aos pés permanentemente voltados para fora só não é mais constante que a referência aos narizes achatados e lábios protuberantes, sinais físicos que as distinguiriam dos demais negros da cidade e que legaram a seus descendentes, homens e mulheres até hoje abertamente reconhecidos enquanto tais em Lençóis. Ainda que seja possível que seus primeiros filhos e filhas fossem também chamados de nagôs, o etnônimo não é senão raramente utilizado para caracterizar alguém na contemporaneidade, sendo mais comum se referir a “descendentes de nagô” – ou simplesmente “descendência” como dizem os que afirmam que nagôs propriamente já não há mais na Chapada156. Quando contam histórias a respeito das nagôs, os habitantes mais velhos da cidade invariavelmente comparam as celebrações por elas organizadas ao jarê que existe nos dias de hoje, fazendo questão de marcar como este empalidece diante daquelas. No que pese a saudade de um tempo passado e idealizado que, afirmam, não terá retorno, seus comentários me fizeram pensar em como as nagôs deviam conceber em seus cultos seu próprio passado, extraídas que foram de sua terra natal. Se hoje se diz que “jarê bom mesmo era jarê de nagô”, talvez outrora as nagôs não deixassem de considerar que aquilo que faziam no novo território para o qual tinham sido trazidas não passava de uma improvisação possível e enfraquecida diante das práticas realizadas em África. Se não há motivo lógico para que esse raciocínio seja interrompido nesse ponto – pois é possível que seus antepassados sentissem saudades ainda outras –, a frase a princípio irônica segundo a qual “a nostalgia já não é mais o que era antes”157 pode chamar atenção para uma diferença marcante entre esses sentimentos, quando 156

A expressão “jornal de nagô”, de uso raro presentemente, refere-se a boatos e informações passados oralmente, registrando-se seu uso também em Salvador (Moraes 1963: 106 e nota *), onde sua versão mais comum é conhecida pelo termo “correio nagô” (Risério 1981: 107; Johnson 2002: 185). 157

A frase dá título às memórias da atriz francesa Simone Signoret (1976), e parece ter sido popularizada pelo escritor americano Peter de Vries.

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nutridos por distintos conjuntos de pessoas em situações específicas. A nostalgia estrutural158 que parece permear e conferir sabor característico às tradições de matriz africana no Brasil tem marcos constitutivos nas experiências de desterritorialização brutal e posterior sujeição às quais os negros foram submetidos, exemplificando-o uma cantiga que no jarê serve a entidades que se despedem após uma manifestação. A primeira vez que a ouvi foi interpretada por Elias e sua companheira, numa apresentação que fizeram para alunos da cidade sobre uma importante senhora negra que gostava de contar histórias, e que guardara atrás de sua porta um chicote, para se lembrar dos relatos que sua mãe lhe fizera a respeito das surras que já tinha levado do feitor. Sua letra diz:

Ó, mãe, quando for, a senhora me leva Me leva pro lado da tua aldeia Ó, mãe, sou seu filho e estou cansado Cansado de viver na terra alheia

2.2 Pesquisas

É difícil dizer se a atividade preferida de Elias era a de ouvir ou a de contar histórias, tamanha sua dedicação a se inteirar a respeito dos causos de Lençóis e a disseminá-los entre os que estivessem dispostos a escutá-lo. Suas amigas mais ligadas aos sistemas formais de educação buscavam incentivá-lo nessa empreitada, fazendo notar que tanto ele como sua companheira diferiam de professores que apareciam na cidade e que se diziam contadores de histórias por terem feito cursos nesse sentido, enquanto eles tinham adquirido seu saber de maneira orgânica, vivenciando as situações sobre as quais discorriam ou tendo escutado seus

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O termo “nostalgia estrutural” (Herzfeld 1997: 147), parece ser perfeitamente adequado ao estilo de reativação constante do passado como referência fundamentadora no jarê e alhures.

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relatos cercados de circunstâncias específicas, sendo nativos da região. Elias contava, por exemplo, como tinha durante muitos anos “recebido ensinamento” da saudosa Senhorinha, que por sua vez o recebera de Sá Miliana, descendente de nagôs que fora filha-de-santo de Zé Rodrigues, o líder religioso de jarê mais importante do passado de Lençóis de que ainda se guarda memória. Elias enfatizava a importância de receber o ensinamento estando bem próximo das senhoras que o transmitiam, num processo demorado que podia levar horas a fio a cada dia da semana, tempo que passava auxiliando-as em alguma tarefa doméstica, como cortar chuchu ou mamão verde, enquanto as escutava. Ele também se lembra que, ao longo do processo, suas interlocutoras lhe perguntavam continuamente se havia entendido o que acabavam de dizer, certificando-se de que compreendera os detalhes corretamente, algo que não podia ser feito por livros, mudos que eram. Com o tempo Elias se deu a missão de ouvir e registrar da melhor forma possível as histórias que lhe contavam as pessoas mais idosas de Lençóis, que visitava com gosto e com as quais forjou fortes laços de amizade. Passou a ter o hábito de andar com um pequeno caderno de notas em seu mocó, no qual fazia registros pontuais se algo lhe viesse à mente durante uma caminhada pela cidade, bem como escrevia resumos das conversas e entrevistas que realizava com esses senhores e senhoras, porventura depois digitados e armazenados em seu correio eletrônico. Elias não costumava recorrer ao material que acumulara ao longo dos anos, tanto por este se encontrar bastante desorganizado como por nunca ser tão completo quanto o registro que mantinha em sua memória. Ele tinha também suas próprias interpretações a respeito de algumas das histórias fantásticas que escutava, elaboradas junto de seus amigos mais próximos em encontros sempre alegres e que davam testemunho de seu raciocínio vertiginoso, mobilizando sem interrupção, por exemplo, elucubrações mitológicas, estratégias eclesiásticas, consequências políticas, geologia pré-histórica159. 159

Como quando debatia com um amigo sobre os eventos em torno da história da serpente que habitava sob a Ponte dos Suspiros, relatada no capítulo 1, seção 1.3.

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De certa forma, como ele mesmo afirmava, Elias se contrapunha aos muitos pesquisadores que, como eu, visitavam a Chapada por algum tempo com um objetivo institucionalmente orientado e que mais cedo ou mais tarde deixariam Lençóis para dar continuidade a seus trabalhos. Os habitantes da cidade de modo geral já estavam inclusive acostumados aos muitos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento que passavam períodos de tempo variáveis na região – cientistas da saúde, biólogos, geólogos, geógrafos, arqueólogos ou antropólogos, por exemplo. Alguns lençoenses mostravam interesse pelos resultados concretos que teriam as pesquisas, mais ainda se pudessem vir a ser por eles usados para algum papel transformador da realidade local, algo mais esperado no caso das ciências humanas. Muitos dos pesquisadores que por lá passavam não davam nenhum tipo de retorno para seus interlocutores depois de deixarem a cidade, fato que costumava entristecer grandemente os envolvidos e deixá-los receosos de participar de empreitadas similares no futuro. No tocante às pessoas que mais se envolveram com minha pesquisa, Elias me fazia notar constantemente a importância de “dar notícia” após o término do trabalho de campo. Essa necessidade tinha pouco a ver com qualquer vontade, que poderia ser inicialmente suposta, de auferir frutos diretos resultantes do trabalho em questão (fosse prestígio, fosse qualquer retorno financeiro), já que os envolvidos deixavam clara a convicção de que todo tipo de trabalho – por mais estranho que ele seja – deve ser remunerado da forma que lhe seja adequada. As notícias às quais sim desejavam ter acesso eram, de um lado, a respeito do bemestar do pesquisador agora distante e da data de sua próxima vinda a Lençóis, em função da amizade cultivada e, de outro lado, confirmações sobre a utilidade e correção das informações que lhe haviam transmitido – queriam saber se os encontros que ocorreram foram mutuamente proveitosos160.

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Mais de uma senhora me disse, de forma bastante explícita, que se de um lado havia o trabalho que eu estava fazendo e que levaria de lá, de outro eu deixava lembranças e agradecimentos que ficariam com eles em Lençóis, em operações de troca equivalentes.

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A companheira de Elias costumava lhe dizer que ele deveria tentar ser ao menos um pouco mais seletivo quanto às iniciativas que decidia ajudar, fossem de pesquisadores de fora da cidade, fossem de nativos que esperavam que ele não recebesse nada em troca por seu trabalho, às vezes nem mesmo o reconhecimento de tê-lo feito. Ambos haviam sido marcados pelas já mencionadas experiências bastante negativas junto à associação Grãos de Luz e Griô, que se somaram a uma decepção já nutrida por Elias em relação ao sistema educacional institucionalizado, exemplificada por um episódio que certa vez me narrou. Um professor vindo de Minas Gerais que ofereceu aulas de informática para Elias e alguns amigos, depois que todos já haviam concluído o Ensino Médio, fez menção a um episódio da ditadura militar, somente para descobrir que nenhum dos jovens jamais tinha ouvido falar a respeito da imposição desse regime no país ao longo de toda sua trajetória estudantil 161. Elias passou a ter grande interesse em saber mais sobre um período que havia sido suprimido de seu currículo escolar, vendo aí, acredito, simultaneamente renovado seu gosto por mergulhar justamente nos acontecimentos que não tinham feito parte das aulas de História que tivera – aqueles que para ele constituíam um espécie de história menor, como os que acompanhara com entusiasmo desde mais novo. Com o tempo, e depois de suas tentativas em ser aprovado num vestibular para uma universidade pública, Elias se desiludiu com a academia e desistiu, talvez ao menos por enquanto, de continuar seus estudos formalmente. Ele afirmava, categórico, que o sistema universitário (e em especial suas formas de ingresso) de maneira geral não demonstrava interesse no tipo de saber que ele possuía, exigindo – e dando ênfase demasiada para – correção linguística normativa e uma capacidade de expressão escrita que ele não possuía e não mais desejava gastar tempo tentando adquirir. Contudo, não é nenhum exagero dizer que Elias tornou-se um intelectual não acadêmico, e por vezes anti-acadêmico, e que continua a se 161

Tampouco estudaram textos de Machado de Assis ou Castro Alves, Elias acrescentou significativamente, o ensino da cidade dando preferência a autores locais como Afrânio Peixoto e Urbano Duarte.

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aprimorar enquanto tal, fatos que me saltaram aos olhos de maneira crescente conforme nosso tempo de convívio foi-se acumulando, e possivelmente em função da afinidade entre o conhecimento que ele já possuía e aquele que eu começava a delinear e que viria a resultar nessa tese162. As disposições de Elias diante do conhecimento acadêmico de certo modo refratavam as formas que ele considerava adequadas para lidar com o saber tradicional que acumulara, ficando dividido entre as alternativas de transmitir ou não as histórias que ouvira. Diferentemente de pessoas que consideravam que seu registro e futura publicação eram suficientes para justificar a realização de uma pesquisa a respeito dos eventos transcorridos em Lençóis, Elias levava sempre em conta os destinos que seu relato poderia ter, bem como perguntava e imaginava as motivações dos senhores e senhoras que lhes haviam transmitido causos e ensinamento, que variavam entre tê-lo feito para que ele as preservasse ou só para passar o tempo, devendo depois cair no esquecimento. Muitas das histórias que lhe haviam sido contadas poderiam se perder para sempre caso ele não lhes conferisse algum destino público; ao mesmo tempo, com inúmeras delas isso já havia acontecido, e muitas vezes de modo absolutamente premeditado: havia histórias que lhe eram contadas sob condição de não serem repetidas, outras às quais se fazia alusão mas nunca eram inteiramente enunciadas, outras que ele tinha certeza serem segredo absoluto. Elias lembrava-se bastante nesses momentos também das nagôs, e de como seus cultos de certo modo se extinguiram, muito de seu saber perecendo com elas. Não havia resposta simples nem única para esse exercício de pensar e exercitar os limites da finitude, que por vezes chegava a ser paralisante, ainda que só momentaneamente. Escrever e transmitir o que havia recebido poderia significar que no 162

Certa vez, enquanto conversávamos pela internet, e numa época em que eu ainda tentava, como outros de seus amigos acadêmicos, estimulá-lo a voltar a investir em sua educação formal, Elias me interrompeu para perguntar como se escreviam os nomes “Sorbonne” e “Pierre Verger”. Em seguida, retrucou indiretamente – de modo lacônico como costumava fazer quando sabia que teria a última palavra – que aquela prestigiosa universidade havia concedido, em caráter extraordinário, a esse pesquisador francês (que ele muito admirava) o título de doutor por sua contribuição acadêmica, mesmo tendo Verger abandonado a escola ainda jovem. Não pude senão deixar de tentar dissuadi-lo.

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futuro outras pessoas experimentariam o mesmo tipo de alegria que ele viveu ao tomar ciência desses eventos; ao mesmo tempo, Lençóis agora era outra e é possível que deva – ou mereça – também lidar com certos esquecimentos163. Elias me diria, meses após termos nos conhecido, que o motivo pelo qual não recusara se aproximar de um acadêmico interessado no jarê fora a cautela que eu demonstrara ao tentar começar contatos com as pessoas de Lençóis, enfatizando a importância de pretender se estabelecer por um período de tempo considerável na cidade e de se mostrar digno da confiança conquistada ao longo do tempo mantendo-se sempre humilde164. A meu favor também muito pesou a intimidade que ele havia estabelecido com outra antropóloga, Marta – que se tornara companheira de Carlão após a separação deste –, que havia feito trabalho de campo na África e passara a visitar Lençóis com alguma frequência, lá cultivando amizades sem ligação com qualquer pesquisa165. Elias dizia que, como ela, eu aos poucos conseguira “fazer a cama” e firmar laços de confiança com as pessoas ligadas ao jarê, o que me permitiria “deitar nela” e conduzir minha pesquisa de forma tranquila. Não há dúvida de que muito desse resultado foi devido ao próprio Elias, que em algum tempo tornou-se não só meu assistente de pesquisa – seria mais exato dizer um copesquisador no campo – como um de meus melhores amigos em Lençóis166.

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O fato de que ele tenha compartilhado algumas dessas histórias comigo, ciente de que elas poderiam vir a fazer parte desse texto, parece indicativo de uma concessão ao primeiro desses ânimos – sendo preciso notar que essa tese não se confunde com e nem jamais poderá substituir o destino que o próprio Elias dará ao material que recolheu. Acredito, de qualquer maneira, que há histórias a respeito de nós mesmos que nos são tão caras que, algo paradoxalmente, só podem ser contadas por outrem. 164

Em larga medida, a riqueza dos resultados obtidos pelo pesquisador é função da qualidade das relações humanas estabelecidas no campo (Souty 2007: 85). 165

Marta realizou trabalho de campo em Moçambique para sua tese de doutorado em Ciências Sociais, defendida na Universidade Estadual de Campinas (Jardim 2006). Segundo Elias, além da disposição para “fazer amigos e cativar pessoas” que ambos demonstrávamos, e que ele disse que agora passava a considerar um traço típico dos antropólogos, nos unia também certa fixação por genealogias, equivalente à que os historiadores demonstravam por documentos. 166

Ver fotos 17 e 18 no anexo III.

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Minha rotina diária passou a envolver acompanhar Elias por suas andanças e conversas com os habitantes mais antigos da cidade, aos quais ele aos poucos me apresentava. Havia certa afinidade eletiva entre o tipo de pesquisa que envolvia escutar por longas horas as histórias que os mais velhos tinham para contar e seu desejo de compartilhá-las, muitas vezes explicitada por eles ao comentarem que hoje em dia as pessoas mais novas raramente se dispunham a ouvi-los com a necessária calma. Faziam referência com alguma saudade às histórias de um período que muitas vezes eles tampouco tinham alcançado, causos que tinham ouvido de seus pais e avós a respeito do “tempo dos antigos” e de uma época na qual a oralidade tinha importância muito maior, um tempo “quando as coisas não eram escritas”. Após esses encontros, depois de nos despedirmos dos senhores e senhoras que visitávamos, Elias costumava repassar comigo o que havia sido dito para se certificar que eu havia entendido tudo corretamente, comentando que eu devia também preparar a casa que alugara para receber visitas, bem como conhecer importantes marcos na cidade aos quais as histórias faziam referência (como o cemitério, determinados rios e lagoas, montes e cruzeiros nos quais se fazia devoção etc.). A presença constante de Elias abria também possibilidades de interlocução às quais eu dificilmente teria acesso – ou pelo menos não em tão pouco tempo – já que os senhores e senhoras com quem conversávamos se sentiam muito mais confortáveis ao falar com ele do que em responder qualquer curiosidade que tivesse o rapaz branco vindo de fora que conheciam há pouco tempo – o que fazia com que eu participasse bem mais como um ouvinte interessado, porém tímido, que de início não oferecia senão poucas perguntas e comentários. O próprio Elias viria a elogiar essa conduta, comentando em separado comigo como eu fazia bem em permanecer humilde e circunspecto, decidindo concomitantemente passar a fazer troça, de modo proposital, da afeição que começava a surgir entre os senhores e senhoras que ele conhecia há tanto tempo e o antropólogo que lentamente ia começando a fazer parte de

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suas vidas, de modo a estreitar nossos vínculos. Para tanto, Elias assumiu comigo uma postura jocosa – possibilitada por nossa proximidade e bastante comum em Lençóis entre amigos do sexo masculino e idade aproximada – segundo a qual ele rotineiramente me tratava de modo desdenhoso diante de pessoas de quem eu já começava a ser próximo. Eram três as principais formas de caçoar que Elias usava nesse sentido: dizer que eu não era uma pessoa “de confiança”, algo que quando afirmado de forma séria constitui grave ofensa na região167; chamar-me pelo apelido que ele havia me conferido – “Amarelo”, enfatizando minha compleição que denotava eu não ser negro168; dizer que ninguém deveria se apegar a mim porque eu não estava morando de forma permanente na Chapada e mais cedo ou mais tarde iria deixá-los. A zombaria de Elias acabava tendo efeito oposto quando, por vezes diante da minha ausência de réplica, inevitavelmente nossos amigos lhe admoestavam e indicavam – ou, ainda, a partir daí justamente passavam a cultivar – certa simpatia pelo alvo da troça169. Seria então possível dizer que a atitude galhofeira de Elias teve exatamente o efeito que ele esperava, nutrindo – e simultaneamente me fazendo perceber quando já existia – determinada intimidade entre todos os presentes. Durante os últimos meses de minha estadia em Lençóis, quando já havíamos nos tornado próximos o bastante, eu procurava responder às provocações de Elias na mesma moeda, provocando risos de aprovação da parte de nossos amigos em comum e uma resposta tão jocosa quanto buliçosa do próprio, como por exemplo: “Se você faz isso com vara verde, imagina com a seca...”

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A questão fundamental de se ser ou não alguém “de confiança”, bem como suas repercussões no âmbito da vida mística do jarê, receberão desenvolvimento detalhado no capítulo 4, na seção 4.2. 168

Elias achou o apelido ainda mais engraçado quando descobri e lhe mostrei que essa era a mesma forma pela qual os inimigos do coronel Horácio de Mattos se dirigiam a ele, função de seu tom de pele “hepático” (Moraes 1963: 104, 110 nota 1). 169

Certa vez cansada pelo uso repetido que Elias fazia do epíteto que me reservara, já decorridos alguns meses de trabalho de campo, uma senhora por quem ele tinha grande admiração, e de pele mais clara que a dele, certa vez lhe disse: “Não chama ele mais disso, não, Elias. Ele é negro igual eu e você somos”.

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Permanecer por tempo suficiente na Chapada era uma demanda premente das pessoas com quem realizava minha pesquisa, bem como se fazia necessária ao menos a indicação de quando meu trabalho acadêmico seria concluído para que pudesse retornar a Lençóis – e quem sabe me estabelecer por lá definitivamente, muitos sugeriam. A decisão de realizar o trabalho de campo continuamente ao longo de doze meses também decorreu das distintas, porém interconectadas, sazonalidades às quais as vidas dos habitantes da cidade encontram-se submetidas. A primeira delas refere-se às variações em torno do fluxo turístico de visitantes, que movimenta consideravelmente a economia local e depende não só do clima como dos meses em que era mais comum se tirar férias, com altas principalmente no início e final de ano. A segunda sazonalidade está ligada ao calendário de festas públicas locais, religiosas ou não. De forma mais diretamente ligada à pesquisa, acompanhar ao longo de um ano a rotina dos lençoenses permitiu imiscuir-me de forma mais abonada nos eventos comuns, já que meus amigos comentavam como no passado outros pesquisadores haviam lhes pedido, para citar um caso, que encenassem rituais fora de suas épocas corretas, o que não podia ser feito em função das consequências místicas possíveis com as quais teriam de se haver. “Labutar com gente”, dizia-se às vezes por lá, “é uma arte”. Essa arte, do ponto de vista de minha pesquisa, me foi sendo apresentada e transmitida, entre outros, por Elias, que dominava de forma invejável a habilidade de conversar. Tudo se passava como se Elias já tivesse desenvolvido um método próprio para que os senhores e senhoras com quem gostava de prosear acabassem falando a respeito dos assuntos que o antropólogo no campo procura entender. Fazia-o de formas inclusive muito sutis, evitando perguntas diretas, falando só o mínimo necessário, por vezes apenas esbarrando nos tópicos, deixando escorregar ideias, temas, histórias, lembranças. O próprio Elias percebia como eu, especialmente nos primeiros meses em Lençóis, frequentemente cometia algum deslize, algo que por vezes o frustrava um pouco: “Afinal de contas, estuda-se tanto para isso?”, alfinetava rindo. Apesar disso, ele

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costumava ser bastante tolerante e tentava me ensinar da melhor forma possível a falar e a ouvir a respeito da vida dessas pessoas – até porque era também a reputação dele que estava em jogo quando me apresentava a esses senhores e senhoras, posto que não o fazia indiscriminadamente. Via de regra, jamais realizei anotações diante de meus interlocutores, recorrendo por vezes a um gravador portátil após nos despedirmos para deixar notas pessoais que posteriormente resultariam em entradas escritas no caderno de campo170. Elias, depois de alguns meses, constituiu-se entretanto numa exceção, já que passei a ter o hábito de confirmar com ele informações que escrevia no dia anterior – sempre confiando em sua memória prodigiosa para os detalhes que eu acabava esquecendo –, bem como de por vezes ler para ele trechos que eu havia escrito para obter suas impressões a respeito do andamento de minha pesquisa, trabalhar conjuntamente alguma ideia ou percepção, testar argumentos e proposições e ouvir suas sugestões a respeito de lacunas que precisavam ser supridas. Elias mencionava também a importância de escutar as pessoas em ocasiões nas quais ele não estivesse presente, tanto para que eu mantivesse o hábito como para registrar versões distintas que poderiam ser contadas em sua ausência – ou até mesmo em função dela. Nos dias que antecediam as saídas para os muitos jarês que frequentei sem ele, Elias sempre me aconselhava a acompanhar este ou aquele grupo de pessoas com quem imaginava me daria melhor a cada vez. Uma das preocupações que Elias costumava externar a respeito da escrita da minha tese tinha a ver com as possíveis repercussões que haveria ao registrar e tornar públicos

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Foi da mesma forma mínima a realização de entrevistas, feitas somente pouco antes do término do trabalho de campo e a pedido dos próprios interlocutores, num processo descrito no capítulo 3, seção 3.3. O pouco rendimento de entrevistas estruturadas já fora notado antes do início do trabalho, com exemplos de pesquisas na Chapada e alhures que igualmente as desaconselhavam de forma expressa (Rabelo 1990: 103; Goldman 2006: 24; Brantes 2007: 30, 34). A genuína receptividade pela qual os habitantes do interior da Bahia são conhecidos não significa que determinados tipos de informação serão necessariamente disponibilizados de forma rápida ou ingênua, podendo gerar situações das quais tanto o pesquisador como seus interlocutores posteriormente farão graça (Rabelo 1990: 153).

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determinados acontecimentos e histórias, bem como fazê-lo identificando seus participantes. A esse respeito, costumava tecer sempre dois comentários, em primeiro lugar lembrando-me que, por mais que eu por vezes buscasse ter uma postura conciliadora e evitar conflitos, era impossível agradar a todos o tempo todo (“Nem Jesus conseguiu isso”, ele disse mais de uma vez); em segundo lugar, enfatizava como eu, por ser um pesquisador com determinada formação e de fora da cidade, estava comparativamente mais livre – do que ele, por exemplo – para obter e transmitir certas informações. Desse modo, a maneira como essa etnografia foi escrita leva em consideração essas ponderações, optando por transitar entre uma forma narrativa mais direta e um discurso mais oblíquo, como o que era muitas vezes empregado por meus amigos de Lençóis171. Especialmente utilizada para se falar de assuntos mais delicados, boatos não confirmados ou comentários potencialmente ofensivos, essa narrativa mais tortuosa ou enviesada refere-se de modo indireto a pessoas e eventos, prefere os pronomes aos nomes próprios, e deixa que o contexto da enunciação e o conhecimento pregresso que se supõe ter o ouvinte preencham as lacunas. Perdi a conta do número das vezes em que longas conversas entre meus amigos transcorriam diante de mim sem que eu pudesse ter certeza (ou às vezes sequer fazer ideia) a respeito de quem falavam, de quando e onde os episódios tinham se passado, ou mesmo do que precisamente havia acontecido. Em parte essa dificuldade advinha, como era de se esperar, do desconhecimento das histórias conexas transcorridas no passado, dos sujeitos aos quais os apelidos se referiam, dos elementos para comparação aos quais faziam menção. Contudo, tanto não fazia sentido interromper as narrativas para inquirir a respeito dos detalhes de que eu não dispunha como, percebi progressivamente, acompanhar o fluxo das histórias mesmo sem ter plena segurança sobre seu conteúdo podia ser prática usual dos próprios ouvintes, que posteriormente viriam a confirmá-lo em momentos mais

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Apresentado no capítulo 1, seção 1.3 e expandido a seguir.

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reservados ou, ainda mais comumente, justaporiam diversas histórias que passariam a preencher os detalhes umas das outras simultaneamente. Assim é que procurei, ao longo da escrita da tese, reproduzir certas histórias, mesmo as que presenciei em primeira mão, de modo parecido com aquele por meio do qual elas poderiam ser relatadas para alguém que não as tenha vivenciado. Com isso, preferi evitar o uso de recursos narrativos tais como pseudônimos, que em geral são empregados mais para proteger a reputação – ou mesmo abreviar o trabalho – do próprio antropólogo do que daqueles com quem conviveu. Se o uso dos nomes próprios de meus interlocutores abre a possibilidade de que eles sejam prontamente identificados numa cidade pequena como Lençóis, o mesmo poderia acontecer caso decidisse caracterizá-los de outra forma mas mantivesse explicitadas suas participações e conexões em episódios mais controversos – dos quais de outro modo teria de abrir mão para salvaguardar sua privacidade, o que por vezes foi, de todo modo, feito. Contudo, o uso dessa narrativa oblíqua simultaneamente permite que, por um lado, mesmo leitores que desejem proceder a essas identificações só possam fazê-lo caso se dediquem a obter o conhecimento contextual que as completa – e que segundo essa retórica só se pode adquirir no convívio entabulado, enquanto, por outro lado, abre a possibilidade para que aqueles de quem falo reconheçam a si mesmos e aos seus nessas linhas. Ou, para dizê-lo de outro modo, e parafraseando as nagôs, para que só entenda quem tem que entender172. O trato pessoal com aqueles que vieram a ser meus amigos em Lençóis, especialmente no início de nossa interação, era marcado por um grau considerável de formalidade. Em pouco tempo aprendi que praticamente toda pessoa que já possui idade suficiente para que pudesse ser seu pai ou mãe pode – ou deve, a depender da situação – ser chamado por 172

Esse é também um dos motivos pelos quais esse texto assim se organiza, o jarê surgindo somente depois da metade desse capítulo para que o leitor não só tenha acesso às demais histórias com as quais ele se combina como saiba por quais meios elas foram adquiridas, a própria textura narrativa da tese apresentando transformações ao longo de seu desenvolvimento.

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“senhor” ou “senhora” e seu nome antecedido por “Seu” ou “Dona”. Essa medida de respeito é bastante apreciada pelos cidadãos mais velhos e explicitamente exigida, ainda que de forma branda, das crianças, às quais é ensinada desde cedo. A boa educação quase excessiva podia ser também uma medida de distanciamento que eu posteriormente perceberia ser quase imediatamente acionada nas primeiras interações dos nativos com pessoas brancas173, apesar de minha tentativa de oferecer sua recíproca costumasse, Elias me diria, gerar ligeira e positiva surpresa. Por um tempo considerável, inclusive, uma polidez provavelmente exagerada constituía muito do pouco de que eu dispunha para que minha presença fosse, pelas pessoas que eu começava a conhecer, ao menos tolerada – não raras vezes com um pouco de condescendência da parte deles. Era comum, especialmente nos primeiros meses do trabalho de campo, que os senhores e senhoras que eu visitava ocasionalmente me olhassem com um misto de simpatia e enternecimento em função das minhas concomitantes ignorância para e desejo de ver, ouvir e aprender a respeito do que tinham a contar. Um episódio significativo aconteceu quando Elias me levou na casa de uma senhora que também morava no Alto da Estrela para que eu fosse rezado, sem me explicitar seu motivo, ainda que eu o desconfiasse. A antiga rezadeira, que era bastante requisitada, me colocou sentado numa cadeira voltada para a porta, aberta, sem meus óculos, que fez questão de retirar, e com os pés descalços e bastante juntos. Ela pediu que Elias lhe pegasse três ramos de uma planta próxima – que ele depois me diria serem de arruda e terem murchado após absorverem as influências nocivas que me acompanhavam –, que passou diversas vezes em torno da minha cabeça e sobre os ombros e braços, varrendo-me sempre do centro para fora enquanto pronunciava rezas em voz bem baixa. Terminado o processo, eu lhe disse um “obrigado” que foi recebido com um riso complacente acompanhado do comentário para meu amigo: “Vê só, Elias, ele diz ‘obrigado’

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Como já escrito a respeito de outra parte da Chapada (Brantes 2007: 28).

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depois de ser rezado...” Fui então instruído a jamais dizer “obrigado” após receber uma reza, o correto sendo “Deus lhe pague”, que repeti a seguir, me desculpando. Como já me haviam dito, a reza constituía uma obrigação para aqueles que possuem a capacidade de fazê-la, que jamais devem receber nada em troca por elas. Assim, como eu passaria a entender posteriormente, dizer “obrigado” enfatizava uma posição de dívida do recebedor da graça que diminuía a importância do compromisso do rezador, cujo cumprimento da sina é complementado quando se sublinha seu caráter obrigatório e unilateral. Enfatizo aqui a importância de se considerar as formas de polidez e deferência em diversas situações não só por elas serem importantes para possibilitar a pesquisa como por se mostrarem igualmente substância dela. Muito do que aprendi e que era transmitido mais explicitamente teve a ver com as maneiras de se portar, as formas de se ouvir e falar, os modos de se demonstrar o respeito devido. A partir desse ponto de vista, essa tese poderia ser lida como fruto de um guia de etiqueta ou um manual de protocolo – para não dizer um tratado sobre ética – que me foi passado pelos lençoenses mais velhos, especialmente aqueles ligados ao jarê, já que há diversos procedimentos cerimoniais aos quais se deve prestar atenção, dos constantes pedidos de bênção às posturas corporais, passando pelos ritos de chegada, oferecimento de presentes e de ablução, por exemplo. Elias costumava ser extremamente cioso com os comportamentos formais de praxe – em geral até mais do que as pessoas mais velhas, de quem se poderia esperar tal diligência –, mas suponho que ao menos em parte seu zelo fosse também ampliado didaticamente em função da minha presença. De toda forma, ao acompanhá-lo eu acabava por aprender como me portar, com base não só em seu exemplo como nas reações que a ele eram dirigidas ao me ensinar. Certa vez entreguei a Elias um pacote de velas que trouxera de presente para o dono da casa na qual nos encontrávamos – hábito comum quando se visita uma casa na qual se bate jarê –, para que ele o repassasse por estar sentado mais próximo desse senhor. Quando Elias o entregou usando a

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mão esquerda, os presentes foram rápidos em corrigir seu lapso, rindo e lhe lembrando que toda oferenda devia ser apresentada com a mão direita, algo que talvez teriam deixado de fazer caso fosse o forasteiro a cometer o deslize. As visitas que fazíamos aos moradores de Lençóis costumavam se desenrolar na maior parte das vezes nas salas das casas, primeiro cômodo ao qual se chega ao entrar, podendo passar para a cozinha ou o quintal na parte posterior das construções no caso de pessoas com quem Elias possuía maior intimidade. Na sala costumam estar sempre presentes os altares domésticos que são alvo de constantes cuidados por seus mantenedores. São em geral estruturas de madeira – normalmente um móvel ou prateleira presa na parede –, cobertas por toalhas, nas quais ficam dispostos inúmeros objetos, sendo mais proeminentes os quadros e estatuetas com imagens de santos. A composição de cada altar varia enormemente de acordo com seus donos, que podem neles manter também copos com bebidas diversas, moedas, chaves, velas, figas, colares, anéis, instrumentos musicais, conchas, flores, perfumes, inúmeros berloques (de pinguins de geladeira a budas orientais), pratos, bacias e quartinhas, e pedras variadas, incluindo as de raio. Nos altares domésticos das pessoas mais ligadas ao jarê – que costumam ser mais similares aos altares cerimoniais das casas de culto, descritos posteriormente – é comum que haja também imagens de orixás, caboclos e pretos-velhos, bem como pedras que simultaneamente são e pertencem a essas entidades. A senhora que havia me rezado me mostrou certa vez em seu altar uma pedra comprida e ovalada, cor de telha, que me disse ser o Xangô de Elias. Ela se referia à pedra com a mesma afetuosidade que reservava para seus outros santos, indicando-me: “Olha ele ali”, “Bonito ele, não?” Passei então a observar a presença dessas pedras nos demais altares, em geral ocultas atrás ou mesmo debaixo de outros objetos, existências preciosas reveladas somente aos mais íntimos. Os altares domésticos, de toda forma, eram em si bastante acessíveis e causadores de grande orgulho aos donos da casa quando alguém lhes pedia para observá-los mais de

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perto174. Próximo às festas de fim de ano os altares recebiam a companhia dos presépios, chamados mais comumente de lapinhas, erguidos com grande esmero no mesmo cômodo dos primeiros e com alguns objetos em comum. Os presépios de Lençóis, contudo, eram armados com uma gama ainda mais variada de itens, em geral remetendo à infância, em conexão com a história do Deus Menino, que influencia alterações feitas nos presépios ao longo dos últimos e primeiros dias do ano. As lapinhas costumam também ser adornadas com flores e plantas, naturais ou artificiais, e dispostas sob um cenário imitando uma formação rochosa, feito com pano ou papelão, e por vezes lembrando mesmo uma cachoeira175. A coexistência de traços ligados a distintos referenciais religiosos era uma marca que não ficava, de todo modo, restrita a esses altares, como será visto a seguir.

2.3 Subversões

As pessoas com quem convivi em Lençóis não tinham grande ligação com a Igreja Católica em sua face mais institucionalizada, não frequentando os templos localizados na cidade senão em ocasiões bem específicas – em geral batizados. Raramente se identificavam 174

Algo que acontecia igualmente com os altares rituais das casas de jarê, e o pedido para vê-los mais demoradamente era sempre recebido com entusiasmo. Provavelmente eu teria demorado mais a fazer essa solicitação, imaginando que fossem, como nas casas de candomblé litorâneo, envoltos em segredo e não tão acessíveis de antemão, não fosse pelo conselho de que os altares pareciam constituir uma excelente porta de entrada no início da pesquisa (Rabelo 1990: 164 e comunicação pessoal). 175

A montagem das lapinhas em outro município da Chapada foi descrita de forma bastante precisa como uma “composição eternamente inacabada feita de partes independentes e recombináveis [na qual o]bjetos cotidianos deslocados do seu contexto utilitário são associados ao nascimento de Jesus”. A descrição, que poderia igualmente se referir a Lençóis, prossegue: “Loção cremosa, perfumes, sabonetes, esmalte de unhas, e tudo que exala algum cheiro é relacionado ao incenso oferecido pelos Reis Magos a Jesus. Lâmpadas, farol de carro, velas, e tudo que ilumina mostra a chegada da luz no mundo. Os bonecos e os brinquedos simbolizam tanto a criança nascida como os presentes que lhe são oferecidos. Os bichos de plástico, louça, barro, ou qualquer material, remetem ao lugar que Jesus nasceu e à criação de animais (porco, galinha, boi) no cotidiano da vida local. Os calendários e relógios são associados ao começo dos tempos, simbolizado na passagem cotidiana dos dias e das horas. Além destes elementos[,] que podem ser combinados com outros, como conchas, pedras, desenhos, objetos pessoais, fotografias de pessoas da família, do Papa, do padre Marcelo Rossi, cartazes de propaganda política etc., a presença das imagens de Santos é recorrente em todas as Lapinhas” (Brantes 2007: 38-39). Ver fotos 19 e 20 no anexo III.

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também como católicos, questão que de todo modo praticamente nunca lhes surgia no seu cotidiano. Quando o assunto surgia numa conversa qualquer, frequentemente, e com saudade, lembravam-se de um dos párocos que Lençóis tivera anos atrás e que mantinha com todos uma relação de amizade, deixando os membros do jarê à vontade para conversar em seus próprios termos sobre suas práticas e dilemas, apoiando e participando de manifestações populares tradicionais que não faziam parte da liturgia católica, por vezes bebendo com os habitantes da cidade e chegando mesmo a convidar um padre negro para celebrar uma missa conga, paramentado com vestimentas africanas, como me contou Elias176. Já o pároco atual, por sua vez, mais conservador, não era visto com grande apreço por aqueles que admiravam o estilo mais ecumênico do primeiro. Nos dias de hoje era comum que muitos dos lençoenses mantivessem, de toda forma, uma relação devocional bastante próxima com santos específicos, bem como participassem ativamente de eventos públicos como procissões e comemorações conectáveis a esse catolicismo popular, pouco romanizado. Há uma pequena procissão feita todo oito de dezembro, dia da padroeira oficial de Lençóis, Nossa Senhora da Conceição. Essa marcha, contudo, empalidece diante da realizada ao final da novena de Senhor dos Passos, no dia dois de fevereiro de todo ano, mobilizando virtualmente todos os habitantes da cidade. Seu Gilson me chamava atenção para o caráter revelador que tinha a ordenação dos diferentes setores na caminhada, organizada e liderada pelos membros ligados à Igreja Católica, acompanhados pelos devotos carregando os santos homenageados, bem como por alas nas quais se dispunham filarmônicas da região, garimpeiros ilustres, tocadores de reisado e baianas paramentadas, por fim seguidas pelo restante da população circundando o centro histórico da sede do município. A possibilidade

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Numa atitude bastante parecida com a que tinha o pároco do distrito de Nova Redenção, na cidade vizinha de Andaraí, provavelmente na mesma época, atribuída ao reformismo católico posterior ao Concílio Vaticano II (Rabelo 1990: 58-59, 119, 310-312).

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de participar no corpo de frente da procissão e, especialmente, a chance de carregar as imagens dos santos são consideradas grandes honras. Os tocadores de reisado saem em festa pela cidade no início de janeiro, próximo do Dia de Reis, trajando roupas coloridas e cantando músicas animadas de casa em casa, nas quais podem ser recebidos com comida e bebida em troca da alegria que proporcionam. A principal responsável pelo reisado em Lençóis, Dona Domingas, uma senhora de 68 anos e que o comemorava desde que tinha 27, herdou essa obrigação de sua mãe, que a herdara de sua avó. A mãe de Domingas havia feito uma promessa no nome da filha quando esta, grávida, fora atingida por uma bala perdida numa troca de disparos entre dois homens que discutiam por um motivo frívolo. Sua mãe pedira que ela ficasse viva para poder criar os dois filhos que já tinha, garantindo que em troca Domingas daria continuidade à tradição de visitar as lapinhas e organizar o reisado, o que foi feito após ela ter sobrevivido, ainda que perdendo o filho que carregava. Para ela, manter viva essa festa é ao mesmo tempo uma honra e uma obrigação, uma recompensa e um fardo que carrega com brio. Em uma de nossas visitas, Elias lhe perguntou se havia alguma ligação do reisado com o jarê, levando Dona Domingas a responder inicialmente de modo negativo, para depois mencionar o Rei de Congo como exceção. Elias me explicou que este era um dos três reis magos, o único negro e africano, que podia incorporar nos tocadores do reisado após as rezas que lhe precedem. Quem o recebia era normalmente o marido de Dona Domingas, podendo se comunicar numa língua incompreensível aos presentes, e que Elias suspeitava poder ser alguma forma de iorubá177. Ao final de janeiro, o início dos dez dias da festa dedicada a Senhor dos Passos é marcado por uma tradição trazida de Salvador e adaptada localmente, a lavagem da igreja. A 177

Ver fotos 21 e 22 no anexo III. As pessoas envolvidas com o reisado costumavam indicar as dificuldades financeiras que tinham para manter viva sua tradição (Senna 2002: 219), reclamando também da recusa de uma associação local em ajudá-los financeiramente, ignorando os dias de trabalho que muitos perdiam para organizar o reisado e realizar apresentações em outras épocas do ano, como por vezes lhes solicitavam. O fato de sua imagem também já ter sido veiculada em diversos produtos dessa associação sem que seu conjunto tivesse recebido o crédito e a remuneração equivalentes só aumentava sua desconfiança e insatisfação com a parceria estabelecida no passado com essa associação.

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prática inspira-se na Lavagem do Bonfim, realizada na capital baiana, transmitida aos lençoenses por um filho-de-santo já falecido, o saudoso Fernandinho, figura que Elias muito admirava apesar de não ter chegado a ser próximo em vida. Sua organização passou em seguida para as mulheres de uma família local que a mantinham agora ao longo de duas gerações, sob a liderança de Dona Vâny, buscando a cada ano que se fazia necessário a obtenção de adereços e roupas típicas de baianas, bem como os instrumentos para a lavagem da capela. A maior parte das baianas era composta por filhas-de-santo de jarê, acompanhadas por quaisquer outras pessoas que quisessem auxiliá-las no processo da lavagem. Diferentemente do que acontecia em Salvador, gostavam de lembrar, em Lençóis a lavagem não se limitava à escadaria e ao adro da igreja, sendo igualmente importante a limpeza do interior da construção178. Outro ritual tradicional, igualmente sensível por também envolver em sua conclusão a ocupação do espaço interno da igreja, é o da lamentação das almas. Feita ao longo de vários dias, ela tem seu término na noite da Sexta-Feira da Paixão, dia no qual não se deve comer carne vermelha e se aconselha cumprimentar os mais velhos com saudações específicas à data. A lamentação é, da mesma forma, organizada por um conjunto de pessoas ligadas ao jarê – distinto do responsável pela lavagem da igreja, ainda que com algumas sobreposições e composto na maioria por mulheres – que se cobrem com lençóis ou outros panos brancos e caminham durante algumas horas por trajetos previamente combinados entoando rezas acompanhadas pelo som de uma ou duas matracas de madeira. As matracas são guardadas com grande zelo ao longo de todo ano, com suas partes separadas, só sendo montadas na época da lamentação, as cordas que unem suas partes nunca podendo ser cortadas, somente desatadas.

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Ver fotos 23 e 24 no anexo III.

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A lamentação é feita em paradas sucessivas, chamadas “estações”, que devem ser sempre em número ímpar – em geral três, cinco ou sete –, fazendo com que ao final do processo todos os cantos da cidade tenham recebido as rezas. As almas dos mortos são simultaneamente apaziguadas e nutridas por essas rezas e pela luz das velas que são acesas e deixadas em cada estação179, sendo as mais importantes delas as que envolvem paradas diante e no interior do cemitério da cidade. Lá, as lamentadoras prestam especial atenção aos túmulos de seu pai-de-santo e da mãe deste. Fazem o possível, contudo, para não se comover no processo, tanto no cemitério como fora dele, já que os excessos emocionais atraem a atenção das almas de modo indevido e possivelmente com consequências nefastas – mesmo motivo pelo qual não se deve rir e se evita qualquer tipo de gracejo durante essas noites, momentos de rara sisudez se comparados aos outros nos quais as mesmas pessoas se reúnem. Da mesma forma, deve-se evitar ficar diante das matracas que conduzem o cortejo, espaço no qual se concentram energias potencialmente danosas e onde é mais comum que aparições – que devem ser prontamente ignoradas – sejam avistadas. Além das coberturas corporais que utilizam, evitar falar os nomes dos mortos é outra medida utilizada para não provocar seu interesse pelos vivos. Elias me disse que as almas encontravam-se especialmente inquietas na Quaresma, período no qual não eram devidamente cultuadas em função dos terreiros estarem fechados180. A última estação do dia derradeiro da lamentação acontece justamente no interior da igreja, com as lamentadoras sentando-se na nave principal e sendo observadas pela assistência, que permanece no local ao final da missa. Os ecos provocados pelas matracas na

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Motivos pelos quais o ritual também pode ser chamado de alimentação ou encomendação das almas, formas distintas sendo preferidas em diferentes cidades da Chapada (Bandeira 1995: 205 nota *). A prática, de forma quase idêntica, já foi descrita na literatura sobre a região, sua menção mais antiga em Lençóis remetendo à década de 1920 (Moraes 1963: 136 e nota *; Gonçalves 1984: 139-140). Ver fotos 25 e 26 no anexo III. 180

Elias também creditava à perseguição da Igreja Católica, que fora muito mais acentuada no passado, o fato de os terreiros encerrarem suas atividades durante a Quaresma, numa proibição que com o passar do tempo acostumou as almas dos mortos a ficarem especialmente arredias nessa época do ano.

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capela soavam quase tão lúgubres quanto as batidas secas que produziam no cemitério, desamparadas por suas paredes baixas, deixando-se perder noite adentro. Junto de outros acontecimentos, os rituais da lavagem da igreja e da lamentação das almas despertaram minha atenção para uma das relações específicas estabelecidas entre as religiões de matriz africana no Brasil e o catolicismo, se entendidos enquanto sistemas relativamente autônomos. Uma interpretação, suas variações em geral abrigadas sob o nome de “sincretismo”, costuma dar ênfase ao surgimento de uma síntese equilibrada, uma forma que reconhece interpenetrações e alterações pelas quais a religião em foco passa diante do contato181. O sincretismo pode surgir tanto como o reconhecimento de uma estratégia de resistência como uma de subordinação, quer se refira, por exemplo, à capacidade de uma religião de matriz africana de se mesclar com e aproveitar afinidades potenciais do catolicismo com objetivo de manter vivas suas práticas, quer se centre nas capitulações resultantes do jugo ao catolicismo. Doutrinas elaboradas com o propósito expresso de sintetizar diversas – senão mesmo todas as – religiões podem ser entendidas como animadas por um “ecletismo”, expressão máxima da primeira leitura. Outra interpretação, por fim, seria a do “pluralismo”, enfatizando a justaposição de estruturas distintas que podem conviver com certo grau de independência182. O pluralismo procura salvaguardar uma separação fundamental entre o catolicismo e as religiões de matriz africana, apontando para possibilidades de um princípio de coexistência. Se é verdade que tanto o jarê como os rituais anteriormente descritos podem ser proficuamente compreendidos segundo essas chaves de análise, há uma forma adicional de pensá-los que ilumina uma dimensão suplementar de seus fenômenos de amalgamação: poderia ser chamada de “subversividade”. Da perspectiva

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Leitura que por vezes corre o risco de apresentar um quadro extremamente simplificado dos fenômenos de contato, cujos exemplos (Prandi 2012: 90-96) esvaziam sua sofisticação. 182

O proponente dos dois últimos termos os exemplifica em especial fazendo recurso à umbanda e ao omolocô, para o primeiro, e o candomblé litorâneo, para o segundo (Serra 1995: 14-15).

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subversiva, o catolicismo serviria como fonte de abastecimento para as religiões de matriz africana que encontrariam, no processo possivelmente premeditado de perturbação contínua do primeiro, recursos não só para sua sobrevivência, mas para sua transformação183. Antes da lavagem da igreja pelas baianas que eu acompanhei, por exemplo, surgiu um boato que dizia que o padre considerava impedir a lavagem do interior da construção, querendo limitar sua ação às partes externas. As baianas reunidas achavam muita graça nesse rumor, não hesitando em dizer que se o padre esboçasse alguma reação nesse sentido lhe dariam um banho enquanto continuariam a lavar também a parte interna da capela, como faziam todo ano. As baianas saíram em cortejo da casa da associação dos garimpeiros e se dirigiram à capela de Senhor dos Passos, no interior da qual um dos pais-de-santo do jarê de Lençóis as aguardava, descalço, trajado com suas vestimentas cerimoniais e já tendo habilmente se apossado da única mangueira disponível, tornando-se central ao desenrolar do ritual para fornecer água às baianas. O padre guardou certa distância do grupo, e quando a lavagem finalmente teve início se retirou rapidamente, frustrando a possibilidade de lhe darem um banho, para a infelicidade das baianas que comentavam como adorariam protagonizar essa cena. Apesar de as baianas estarem munidas de vassouras, baldes e sabão, e serem acompanhadas na lavagem tanto por outros habitantes da cidade que queriam fazer parte do momento como das carolas que procuravam zelar pelo andamento do processo, a limpeza propriamente dita do local – ainda que tenha sido perfeitamente efetuada – parecia ser prioridade apenas dessas últimas. Para mim pareceu cada vez mais claro que a muitas das baianas interessava bem mais a irrupção conjunta na capela depois de terem subido, 183

A discussão aqui apresentada deriva de maneira integral da concepção de “iconoclastia” nas religiões da matriz africana como uma forma de “corrosão cosmológica” potencializante, como proposta por seu principal autor (Anjos 2009: 24). Conforme explicita, não se trata de afirmar que o regime de enunciação dessas religiões seja antes de tudo iconoclasta, mas de notar que sua iconoclastia é capaz de reverberar nos potenciais de outras – como a católica (Anjos 2009: 21; Oro & Anjos 2009: 112). A ideia do caráter subversivo do jarê aparece também em alguns trechos da principal etnografia existente sobre o culto (Rabelo 1990: 7, 10, 23, 296).

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imponentes, suas escadarias, a apropriação do espaço interno da construção, e a possibilidade de ali realizarem uma atividade alegre e descontraída, como acabou sendo a lavagem. O paide-santo concentrava-se tanto em fornecer água para a limpeza como em molhar os pés de todos os que os acompanhavam, parte igualmente importante do ritual de lavagem. Alguns dias depois, durante a festa para Senhor dos Passos, encontrava-me junto dele, de uma carola da igreja e de Carminha, a puxadora da quadrilha Bicho-do-Mato. A carola comentava como achava que o padre estava correto em não querer permitir a lavagem do interior da igreja, já que o chão molhado, por exemplo, poderia danificar os bancos quando fossem recolocados em seu interior, posto que as baianas cuidavam só de lavar e não de enxugar o espaço184. Ambos comentaram com ela que já realizavam a lavagem dessa forma há muitos anos, e que o enxugamento nunca fizera parte dessa tradição. Carminha se virou de lado e comentou comigo em voz baixa e de forma sucinta: “É uma guerra, viu...” Essa guerra veria outro combate ser travado ao final do ritual de lamentação das almas, na estação na qual as rezas são entoadas dentro da igreja. As senhoras responsáveis pela manutenção da tradição já haviam comentado como certa vez, anos antes, o padre reclamara de ter sido obrigado a esperar a execução de todas as etapas da lamentação, querendo determinar um horário específico para sua conclusão e finalmente chegando a fechar as portas da igreja por ter se cansado de esperá-las. As lamentadores ficaram bastante ofendidas de terem que rezar a última estação somente do lado de fora da construção, comentando que o padre achava que a igreja era dele, quando se sabia que a igreja era de todos. No ano em que estive em Lençóis e pude acompanhar a última e mais importante noite da lamentação das almas, o conjunto havia se reunido para decidir quais estações seriam

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A literatura escrita a partir do ponto de vista da elite local sugere que “as representações pagãs” eram toleradas pelo catolicismo por “se mostrarem imbuídas de espírito cristão” (Ganem 2001: 51). A disposição subversiva dos adeptos do jarê, ao contrário, pode ser entendida também como um modo de resistência contra a romanização do catolicismo que começou a ser estimulada justamente na metade do século XIX no país (Rabelo 1990: 69-70).

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mantidas no percurso, já que chovia consideravelmente. Um dos senhores que acompanhava o grupo disse que o padre havia comentara não ter nada a ver com as almas, dando a entender mais uma vez que não esperaria as lamentadoras por muito tempo. O senhor, levantando os ânimos do grupo, lembrou de modo arguto que o padre de fato não tinha nada a ver com as almas e sim com a igreja, e que eles, por sua vez, tinham tudo a ver com as almas, e nada a ver com o padre, num ligeiro e preciso deslocamento da primeira formulação. Nessa mesma ocasião, quando o conjunto das lamentadoras finalmente chegou à capela, indignou-se com a atitude do padre, já que ele havia deixado as lâmpadas apagadas e provavelmente não as acenderia quando elas entrassem, dificultando a leitura que fariam das rezas por não terem todas memorizadas. A líder do coletivo, possuidora de uma casa distante da cidade na qual se bate jarê, exclamou em tom desafiador: “Se não tiver luz acesa a gente lê na luz de velas!”, algo que foi dito e feito. Uma senhora posteriormente me explicou que a falta de iluminação da igreja representava não só um problema operacional ao dificultar a leitura das rezas como também uma desconsideração com as próprias almas, que do local receberiam escuridão em vez de luz, fazendo-me lembrar que sempre tinham em mente as entidades que as acompanhavam e que haviam trazido em grande concentração desde o cemitério, conglomerando-as no espaço da igreja. Em outra ocasião, a atual organizadora da lamentação me informou que no passado havia um passo suplementar no ritual que tivera de ser abandonado por não haver mais quem conhecesse as rezas “em língua”, que Elias me dizia ser iorubá. Em cada estação próxima dos limites da cidade, uma única mulher se separava das demais e se dirigia para pontos específicos no interior da mata fechada, realizando uma reza equivalente à feita pelas demais, porém em língua. Era fundamental, continuava, que suas ações fossem sincronizadas, para que retornasse da brenha no exato instante em que suas companheiras terminassem as rezas em português.

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Outros episódios podem ser arrolados para exemplificar a atitude de subversão que esposam os membros do jarê diante do catolicismo. Durante a procissão de Senhor dos Passos, correu o boato de que, em vez de ser tradicionalmente levada nos ombros dos habitantes da cidade, o padre solicitaria que a imagem fosse colocada sobre um carro do corpo de bombeiros regional. Fazendo graça, o pai-de-santo já mencionado, que havia trajado um terno impecável para ser um dos principais carregadores do santo, comentou que os bombeiros não seriam necessários, já que não haveria ali nenhum incêndio, e que ele continuaria na comissão de frente como já se acostumara a fazer desde muitos anos, o que de fato aconteceu. Falava-se também com bastante gosto sobre as ocasiões nas quais o jarê se imiscuía na própria liturgia católica, como podia acontecer no caso de batizados. Uma senhora, que apesar de ser ligada ao jarê jamais foi iniciada, me contou como havia se tornado ainda mais próxima do mais importante pai-de-santo de que se lembra a memória local recente quando o convidou a ser padrinho de uma de suas filhas. Ela disse que à ocasião outras pessoas lhe apresentaram objeções, dizendo-lhe que “esse povo não pode batizar”, ao que ela respondeu, algo indignada, que não via motivo para que não pudesse. Concluiu a história acrescentando, com um ligeiro sorriso de satisfação, que na hora exata do batizado quem estivera presente fora não o pai-de-santo, mas a principal entidade espiritual dele, não sendo poucos os afilhados que tinham como padrinhos guias místicos do jarê185. Os episódios de violência religiosamente motivada protagonizados pelos católicos da cidade com as pessoas mais próximas ao jarê em parte diferiam daqueles realizados pelos

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O batismo na igreja tendo como padrinho ou madrinha uma entidade de terreiro é o principal tema de O compadre de Ogum, história de Jorge Amado originalmente publicada como parte do livro Os pastores da noite, e cuja leitura Elias me recomendou enfaticamente. Os exageros narrativos em relação ao ineditismo dessa espécie de acontecimento (Amado 1964: 38-39, 67, 86) em nada diminuem a grandeza da prosa, obra-prima do autor no que se refere à apresentação literária do universo do candomblé de Salvador. Entre as muitas similaridades que o batuque de Belém guarda com o jarê, inclui-se o batismo de crianças tendo por padrinhos espíritos incorporados em adeptos, que nesse outro campo etnográfico ocorre tanto na igreja como nos terreiros (Leacock & Leacock 1972: 84, 298). Um grande cruzeiro fincado à entrada de um terreiro de jarê em Nova Redenção, em vez de apenas um símbolo cristão, significativamente revelou-se morada de uma entidade do jarê, assento de um dos principais caboclos dessa casa de culto (Rabelo 1990: 159).

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evangélicos de Lençóis, que são hoje em dia parte significativa de sua população, especialmente entre os mais jovens, distribuindo-se em cinco pequenas igrejas de algumas denominações – bem como um templo de Testemunhas de Jeová. Da mesma forma que ocorria com os católicos, de todo modo, esses acontecimentos dificilmente resultavam em altercações maiores, mesmo porque não era improvável que pessoas no interior de uma mesma família fossem ligadas a religiões distintas, bem como que uma mesma pessoa transitasse por diferentes igrejas e casas de culto. De fato, o mais comum era que a convivência das pessoas só fosse impactada de forma ocasional e muitas vezes despretensiosa, como quando lembravam, por exemplo, que o sino da igreja católica, que soava com badaladas características ao anunciar um falecimento na cidade, não era tocado no caso da partida de um evangélico. Similarmente, após a morte de um crente, seus familiares – mesmo se forem eles próprios ligados por exemplo ao jarê – irão solicitar que não lhe sejam ofertadas rezas católicas, pedindo a um pastor que conduza o funeral. Essa postura mais ecumênica era esposada, até onde sei, de forma unânime por meus amigos frequentadores dos jarês, que em princípio não viam problema em múltiplos pertencimentos que outras pessoas considerariam ‘religiosos’, sem deixar de notar, contudo, que na prática eles pareciam mais insustentáveis em função do ponto de vista dos evangélicos, que pregavam a necessidade da conversão e da apostasia. “Entrar para a lei de crente”, que era a forma como se referiam meus amigos do jarê a esse processo, era algo que muitos deles já haviam feito em algum momento de suas vidas, pelas mais diversas razões, alguns de forma mais definitiva e muitos outros de modo transitório. Bem mais do que o catolicismo institucionalizado, a lei de crente figurava como alternativa bastante direta à presença nos jarês, meio por vezes eficaz de se lidar com as entidades que os acompanhavam. Os que retornavam costumavam comentar as similaridades entre as práticas evangélicas e as do jarê, como a existência de muita fofoca e a necessidade de dispêndio – com as obrigações rituais,

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de um lado, e com o dízimo recolhido no “coador de café gigante”, no outro. Quando me surpreendi com a recente aproximação de uma jovem, que todos esperavam que em pouco tempo seria iniciada no jarê, a uma igreja evangélica, Elias ponderou que essa era uma forma dela obter mais algum tempo para pensar e simultaneamente deixar de ser aliciada pelos dois pais-de-santo que disputavam sua lealdade186. Meus amigos costumavam dizer, falando a respeito de casos como esses, que optar, na medida do possível, pela maior proximidade a uma casa jarê, a uma igreja evangélica, ou ainda a qualquer outra religião, era algo que dependia da “natureza” de cada pessoa. Segundo eles, não fazia muito sentido nenhum tipo de discurso que pregasse uma verdade absoluta necessariamente legada para toda e qualquer pessoa de modo indiferenciado, sem levar em conta sua natureza específica, que é o conjunto de sua história pessoal, seu temperamento, sua vontade e as demais vontades que podem habitar sua pessoa e fazer parte dessa composição – o exemplo mais comum sendo o das entidades místicas com as quais o jarê está acostumado a lidar. Ir contra sua própria natureza pode acarretar sérias consequências para uma pessoa, muitas vezes como forma de alerta para que retome o caminho que deveria seguir, em outras, mais raras, como forma de vingança pela desobediência à sabedoria dos demais entes que podem participar de sua composição. Uma senhora muito importante no jarê me contou como tentou uma vez abandoná-lo e frequentar uma igreja evangélica, ficando sem conseguir dormir durante a noite após voltar dos cultos, não sendo necessárias mais que algumas noites em claro para que mudasse de ideia e voltasse para o jarê. Um pai-de-santo da cidade se convertera em certa época a uma igreja evangélica, como forma de conter um de seus espíritos que andava particularmente violento – enquanto outros na cidade comentavam que ele pensava mesmo era em se tornar pastor para ter ganhos financeiros. Quaisquer tenham

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Num candomblé em São Paulo registra-se um episódio similar, no qual uma filha-de-santo passa a frequentar uma igreja evangélica e lá aprende fórmulas que a auxiliam na tentativa de não ser tomada por seu orixá quando assim o deseja, do mesmo modo aviltando-o para que não se manifeste nela (Opipari 2004: 214-216).

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sido seus motivos, é certo que não obteve êxito e teve de reiniciar seu trabalho no jarê praticamente do zero, erguendo uma nova casa após, supostamente, ter-se desfeito de todos os seus bens espirituais – punição que somente se somou a outras mais severas causadas por suas entidades, comentava-se. A referência mais comum que meus amigos faziam à participação em igrejas evangélicas tinha caráter jocoso, quando diziam de alguém – por vezes falando mesmo de si próprios – já bastante ligado ao jarê que largaria aquela vida para entrar para a lei de crente, comentário invariavelmente seguido de muitas risadas. As piadas e brincadeiras feitas rotineiramente pelos membros do jarê envolviam também muitos outros temas, mas nenhum era tão frequente quanto o próprio jarê, provavelmente sendo tão comuns os comentários dos membros de uma casa de culto em relação a outra quanto os que faziam graça dos eventos em seu próprio terreiro. Algumas das senhoras de quem fiquei mais próximo, donas de um senso de humor extremamente aguçado, não deixavam de arrancar gargalhadas com observações que podiam ser simultaneamente ferinas e despretensiosas, sempre ditas num tom calmo e muitas vezes ensimesmado, o que só aumentava sua graça. Uma delas comentou certa vez como, por grande parte de sua vida no jarê, sua relação com seu primeiro pai-de-santo, hoje falecido, parecia uma grande brincadeira entre duas crianças que jamais se cansavam de fazer troça uma da outra. Crianças, por sua vez, acostumavam-se a ir aos jarês desde bem novas, junto dos outros membros de sua família próxima, caso estes também os frequentassem, ou levados por outros amigos e parentes – preferencialmente com a aprovação de seus responsáveis – caso manifestassem o desejo de se aproximarem desse mundo. Para muitas dessas crianças e adolescentes, o jarê exercia um fascínio tão grande que um de seus passatempos favoritos era o de planejar “jarês de brincadeira”, empreitadas que, por vários motivos, raras vezes se concretizavam. Quando efetivamente conseguiam se organizar, preparavam comidas para o

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evento (como uma feijoada ou bolos confeitados), improvisavam tambores com baldes virados de ponta-cabeça, reuniam-se com um ou outro adulto sob a supervisão de quem prometiam ficar, e se punham a bater palmas e cantar cantigas de jarê, dançando e fingindo manifestarem as entidades que conheciam por observarem os mais velhos187. Elias foi por algum tempo um de seus principais cúmplices – adorado pelas crianças, que o chamavam pelo apelido de “Bilico” –, até ter tido sua atenção chamada, de forma bastante branda, por alguns dos líderes do culto, fazendo com que a frequência dessas brincadeiras diminuísse. Os adultos ocasionalmente comentavam que a realização de um jarê era algo sério e que não devia ser feito de modo displicente, posto que podia ter consequências bastante reais. Mencionavam em especial o perigo atrelado ao fato de que as crianças costumavam fazer os jarês de brincadeira “no tempo”, ou seja, a céu aberto, o que as deixava particularmente vulneráveis à ação das entidades. Caso uma incorporação real acabasse acontecendo, continuavam, as crianças não teriam por perto nenhum pai-de-santo para lidar com ela, o que poderia ter resultados imprevisíveis. Uma senhora, já com muito tempo no jarê, comentou certa vez, falando de uma adolescente que brincava inocentemente com as demais crianças, que quando ela finalmente recebesse um espírito – algo que ela dava por inevitável e que, julgava, aconteceria mais cedo do que a jovem imaginava, em função de sua idade –, desejaria jamais tê-lo recebido. Ambientes de jarê improvisados podem também irromper de forma inesperada quando surge um motivo repentino para comemoração, como na ocasião em que a filha de um senhor acabara de nascer e ele resolvera convidar todos os que se encontravam diante de sua casa para comer e beber. Os jovens ali reunidos puseram-se a batucar e cantar músicas de jarê, antes de serem repreendidos por uma das mais importantes líderes do culto

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Ver fotos 27 e 28 no anexo III. Essas ocasiões haviam sido igualmente recorrentes e elucidativas em Nova Redenção (Rabelo 1990: 107). Brincadeiras como essas são tema do filme Bárbara e seus amigos no país do candomblé, de Carmen Opipari e Sylvie Timbert, de 1997, igualmente relatadas na literatura (Opipari 2004: 205212).

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que chegou no local instantes depois – perguntaram-se mais tarde se coincidentemente ou não. A vontade das crianças e adolescentes de se envolverem ativamente com os jarês lhes rendia momentos de participação nas cerimônias organizadas pelos adultos, que se orgulhavam bastante em vê-los querendo se aproximar ainda mais da tradição. Os mais novos recebiam instruções específicas a respeito dos instantes em que lhes seria permitido dançar no salão – normalmente nos intervalos em que não havia seres místicos manifestados – ou fazer parte das cerimônias de outras maneiras, como oferecendo presentes às entidades do jarê, trocando saudações rituais com as mesmas ou recebendo suas bênçãos – transmitidas, por exemplo, quando os espíritos levantavam uma criança do chão, seguravam-na no colo, ou ainda levavam as cabeças de ambos a se encostarem188. As crianças menores dificilmente conseguiam ficar acordadas ao longo de toda a duração de um jarê, sendo igualmente levadas para outros aposentos, ou tendo seus olhares desviados, pelos adultos que as haviam trazido, durante a realização de sacrifícios rituais, ainda que não lhes ocultassem informações a respeito do que se passava, acrescentando que não se preocupassem com o ocorrido. Houve mesmo um evento a que fui, numa casa distante da cidade, na qual costumava haver cerimônias, que começou sendo organizado como um jarê de brincadeira pelas crianças e adolescentes, mas que acabou atraindo muitos adultos e se tornando um jarê de verdade, contando com a presença tanto de alguns dos mais importantes líderes da religião como de suas entidades. Essa ocasião inicialmente informal atestou a capacidade dos mais novos de efetivamente reproduzirem a organização e o princípio de um jarê, para sua grande felicidade e ligeiro assombro.

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Ver foto 29 no anexo III.

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2.4 Jarês

Os jarês são, antes de mais nada, festas. Podem ser celebrados em qualquer ocasião que peça uma comemoração, como um aniversário, antes de uma despedida de alguém que irá se mudar para longe, ou pode mesmo irromper sem maior planejamento a partir de outros festejos. Como tal, costumam ser abertos ao público em geral, alguns de seus frequentadores tomando parte da festividade sem maiores ligações com sua face ritual, de todo modo nem sempre atualizada. A realização de um jarê configura-se, especialmente para pessoas que moram a uma distância maior da sede do município, numa oportunidade para socializarem, encontrarem-se com parentes e amigos, flertarem. É comum que muitas pessoas passem a noite inteira na área externa das casas de culto – onde muitos dos frequentadores armam barracas de acampamento para pernoitar –, conversando, bebendo, fumando e realizando outras atividades recreativas. Nas manhãs e tardes que precedem ou nas que se seguem à festa, amigos passeiam pelos arredores, tomam banhos de rio e de cachoeira, brincam, jogam jogos e se preparam para o evento que acontecerá à noite ou para o retorno para suas casas no entardecer, aproveitando seu tempo juntos num espaço de maior permissividade. Como em qualquer festa, seus participantes procuram estar arrumados, as mulheres especialmente se aprontando com bastante esmero, trajando roupas adequadas à ocasião (vestidos ou saias e blusas no caso das mulheres, calças compridas e camisas preferencialmente no caso dos homens), por vezes feitas exclusivamente para a festividade189. Os jarês costumam ser planejados para acontecer sempre aos sábados, à noite, podendo sua duração se estender por mais dias, excetuando-se sextas-feiras, dia da semana perigoso pois propício à atuação de entidades perniciosas, aí só sendo possível fazer jarês

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Ver foto 30 no anexo III.

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mediante uma série de procedimentos rituais e permissões místicas190. A realização da maior parte dos jarês espalha-se ao longo do ano de acordo com um calendário tradicional seguido pelas casas de culto, ainda que possa haver festas em praticamente qualquer período, e por motivos diversos. Pode-se considerar que o calendário litúrgico tem início com as cerimônias de abertura dos terreiros, inativos por mais de um mês durante a Quaresma, e se encerra com as cerimônias de fechamento das casas, na Quarta-feira de Cinzas ou próximo dessa data. Ambas as ocasiões rituais costumam ser, de todo modo, consideradas conjuntamente, tanto por acontecerem em espaço de tempo relativamente curto, como por gerarem grande expectativa, a “fechada” sempre prefigurando a “aberta” que lhe sobrevirá. Uma espécie similar de intervalo acontece entre todos os demais ciclos rituais de festas do jarê, seus frequentadores sempre mencionando e aguardando ansiosos o próximo conjunto de festividades. Enquanto o primeiro ciclo de festas costuma acontecer entre fevereiro e abril, com algumas variações anuais, e algumas cerimônias menores possam ser feitas por ocasião do São João, o segundo principal ciclo de realização de jarês estende-se entre os meses de agosto e outubro, em torno das celebrações para Cosme e Damião. Nesses meses, em especial nos dois primeiros, ocorre o maior número de festas de jarê do ano, incluindo aquelas em homenagem a Oxalá, no final de agosto. O terceiro e último grande ciclo de festas tem lugar entre os meses de dezembro e janeiro, em geral começando com festas dedicadas a Iansã, no início de dezembro, e terminando com celebrações no início do ano, no mesmo período em que os reisados saem às ruas. No interior dos três ciclos, os jarês costumam acontecer perto de datas comemorativas do calendário católico, não sendo totalmente incomum haver semanas e

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Em ocasiões nas quais é preciso aproveitar um final de semana para realização de vários dias de festa, os líderes do jarê iniciam seus trabalhos na madrugada de sábado, lembrando-se que quando chega a meia-noite já não é mais sexta-feira. A meia-noite é, contudo, um horário especialmente propício para a convocação de entidades perigosas, o que faz com que, por via das dúvidas e sempre que possível, se evite dar início à festa logo nas primeiras horas da madrugada.

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mesmo dias nos quais mais de um jarê aconteça simultaneamente – fenômeno que, me explicaram, acontecia com mais frequência e com maior intensidade no passado recente, quando as casas de jarê em funcionamento em Lençóis contavam número bem superior às de hoje. Muitos se lembram com saudade de uma época, distante em torno de quarenta anos, na qual nos meses de agosto e setembro realizavam-se num mesmo final de semana jarês em uma meia dúzia de casas diferentes na sede da cidade, alguns de seus frequentadores circulando entre elas por toda noite. Contemporaneamente, alguma sobreposição continuava a ocorrer, por vezes estimulada por líderes rivais, que dela costumavam tirar proveito para testar a lealdade dos frequentadores de suas casas. De todo modo, comentavam os adeptos mais antigos, líderes de casas mais novas deviam esperar que os terreiros nos quais haviam sido iniciados realizassem os festejos equivalentes antes de marcar os seus próprios, em especial quando se tratava das cerimônias de aberta e fechada das casas de culto. De um ponto de vista acadêmico, o jarê possui muitas similaridades com o candomblé, podendo ser considerado uma espécie de candomblé de caboclo191. Ao mesmo tempo, guarda particularidades que o distinguem em especial do modelo dos candomblés litorâneos da Bahia, distinções por vezes trazidas à tona por seus frequentadores. Em Lençóis, há casas nas quais se comemoram jarês sem que haja rituais de iniciação, sua manutenção em geral decorrendo de alguma promessa feita pelo dono ou dona da casa às entidades, eles mesmos sendo filhos-de-santo ligados a outros templos. Da mesma forma, e também diferentemente do que costuma acontecer no candomblé, a maior parte dos frequentadores dos jarês dificilmente se limita a visitar uma única casa de culto, mesmo depois de iniciados. Nos primeiros meses de meu trabalho de campo deparei-me com uma dificuldade que

191

Construção que é igualmente um modelo, no sentido não de um protótipo ou arquétipo mas de “uma abstração que se reporta a correspondências inferidas comparativamente entre formas institucionais, procedimentos e esquemas simbólicos”, indicando não a invariância dos processos e formas dos diferentes cultos, mas a existência de “um padrão que [o]s correlaciona e que permite referi-l[o]s a uma matriz comum” (Serra 1995: 40).

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posteriormente perceberia ser falsa: a de eleger uma casa de jarê em particular como unidade de análise para a pesquisa. Com o tempo e a convivência, notando a grande circulação das mesmas pessoas entre muitas casas diferentes e sendo convidado para diversas festas, percebi que minha etnografia poderia seguir a mesma distribuição dos frequentadores do jarê, tomando por tema de investigação muito mais uma comunidade mística específica que se espraia por várias casas, ainda que concentrada em torno de três delas, como se verá adiante. Ainda que ocasionalmente também utilizassem a palavra candomblé para se referirem ao que faziam, seja falando do culto de forma geral (“no candomblé é assim que a gente faz”), seja no sentido de uma ocasião festiva em particular (“sábado vai ter um candomblé lá em casa”), o uso principal do termo feito por meus amigos de Lençóis acontecia quando diferenciavam o jarê do candomblé. De acordo com eles, as principais distinções entre as práticas tinham a ver com os toques dos atabaques, as cantigas, as danças e as manifestações das entidades. No jarê, informavam, os tambores são sempre percutidos diretamente com as mãos e nunca com varetas, além de seus toques terem ritmos específicos, em geral considerados mais velozes nos jarês. As cantigas são quase sempre em português, enquanto nos candomblés a maior parte é cantada em línguas de origem africana. Nos jarês, as danças são mais exaltadas e o samba tem preferência, enquanto nos candomblés as danças são mais contidas, os passos possuem coreografia ritual mais cadenciada e há mais ênfase em giros. Finalmente, consideram que nos jarês as incorporações têm início de forma mais intensa e acontecem em maior número ao longo da noite. As diferenças que os adeptos do jarê elencam quando falam do candomblé não impedem de modo algum o reconhecimento de inúmeras proximidades, bem como não excluem as relações que podem estabelecer com membros destes. Ao contrário, ficam bastante felizes quando porventura recebem em seus terreiros alguém ligado a um candomblé, fazendo todo possível para estender a seus visitantes tanto sua cortesia habitual como a

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possibilidade de participarem dos momentos rituais, tocarem os atabaques, puxarem cantigas – que fazem o possível para acompanhar ainda que seja difícil fazê-lo com as mais complexas, caso estejam sendo escutadas pela primeira vez – e receberem suas entidades, algo que deixa os membros dos jarês bastante felizes e satisfeitos. De certo modo, a própria arquitetura dos salões do jarê é propícia a essas interações, já que a audiência fica disposta no seu entorno, em bancos de concreto construídos junto às quatro paredes – diferentemente do que eu presenciara nos candomblés que conhecera, nos quais a audiência no interior do salão concentrava-se em assentos dispostos num único lado. Ainda que isso não impeça a participação no culto daqueles que assistem à cerimônia, no jarê audiência e congregação mística são ainda mais indistintos, todos se sentando juntos em qualquer momento da festa. O jarê é considerado por seus frequentadores um culto característico e exclusivo da Chapada Diamantina, sua criação e desenvolvimento estando intimamente ligados à história da região. Seu surgimento reputa-se ter acontecido nas cidades de Lençóis e de Andaraí, tendo em seguida se espalhado para as zonas rurais desses municípios e de outros circunvizinhos, aí adquirindo

algumas

particularidades.

As

casas

dedicadas

ao

jarê

que

existem

contemporaneamente na área de Lençóis localizam-se, majoritariamente, distantes alguns quilômetros da sede do município, em geral próximas a áreas nas quais no passado houve pequenos núcleos habitacionais voltados ao garimpo, tendo-se diminuído consideravelmente nos últimos anos o número de casas na cidade que realizam jarês 192. Contudo, praticamente toda a população nativa já teve algum contato com o jarê – assim como muitos dos forasteiros que se estabeleceram há alguns anos na região –, tendo assistido a diversas cerimônias, em especial quando ainda crianças, no caso de jovens adultos, ocasionalmente lembrando-se

192

Em diversos locais da Chapada, no passado, era bastante comum que líderes do jarê tivessem duas casas de culto, uma na sede do município em que residiam e outra afastada, por vezes mesmo em um distrito deste (Senna 1998: 85).

156

mesmo de letras de cantigas e acontecimentos marcantes que tiverem lugar durante os cultos, e comentando como nos dias de hoje não mais aconteciam tantos jarês nos limites da cidade. Jarês podem ser realizados tanto em casas de culto dedicadas exclusivamente a esse propósito, como era o caso daqueles feitos nos locais distantes da sede do município, como nas salas das casas nas quais seus moradores habitualmente residem, na cidade. Nem toda casa na qual se bate jarê configura um terreiro, termo normalmente reservado para sítios nos quais há presença de um líder que realiza rituais de iniciação. Tanto num caso como no outro, as festas costumam ser preparadas com antecedência de algumas semanas, ao longo das quais se reúne dinheiro para comprar, ou se obtêm na forma de doações, a comida que será servida e os objetos rituais que se farão necessários, bem como são chamados os convidados. Os preparativos do dia da festa, assim como o desenrolar da mesma, são um esforço conjunto da comunidade que se estrutura em torno da casa e seu chefe, seja ela composta por uma família biológica e seus amigos, seja por uma família-de-santo. Espera-se que todos, incluindo frequentadores eventuais que possuam alguma proximidade com os membros da casa, com provável exceção de forasteiros recentemente conhecendo o local, contribuam de alguma forma para a execução da festa, sendo criticados aqueles que vêm para jarês apenas para pedir comida e bebida, servidas ao longo da noite pelos anfitriões para aqueles que participam da festividade. Sobre essa troca de prestações, meus amigos comentavam explicitamente: “Se uma pessoa não vem para o jarê nem para cantar, nem para tocar, nem para dançar, nem para bater palmas, pelo menos, vem então para quê?” Os preparativos para uma festa começam cedo, é preciso fazer a comida que será distribuída, varrer e decorar a propriedade, depositar oferendas, cortar lenha, aprontar os animais, trazer baldes d’água de algum rio próximo para cozinhar e para beber, realizar procedimentos rituais que tentarão garantir o bom andamento da cerimônia. Auxiliar um paide-santo em todas essas atividades, bem como as que serão feitas durante o jarê, é atribuição

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de seus filhos-de-santo e de qualquer pessoa que deseje cair em suas graças: por vezes uma forma de obter o custeio de seu processo de iniciação para aqueles que desejam se ligar à casa sem possuir os meios monetários para tanto. Essas atividades costumam ser feitas com calma e ao longo de todo o dia, havendo sempre algum tempo para descansar, jogar conversa fora, disputar partidas de dominó, tomar banhos de rio ou cachoeira. Quando anoitece, homens e mulheres devem, em grupos separados, lavar-se em preparação para o início do jarê, que deverá durar durante toda a noite e se adentrar pela madrugada, constituindo sinal muito positivo caso termine somente após o nascer do sol do dia seguinte. Os chefes de casas nas quais se bate jarê que não são pais e mães-de-santo costumam realizar suas festividades em decorrência de uma promessa a alguma entidade como forma de pagamento por alguma graça obtida, mas também podem fazê-lo caso sejam adeptos de algum terreiro e desejem simplesmente realizar um jarê como forma de comemoração, como por um aniversário. Os chefes de terreiros, por sua vez, realizam jarês em homenagem aos espíritos mobilizados em suas casas e fazem rituais de iniciação que são potencial e simultaneamente procedimentos de cura. Os filhos-de-santo mais próximos e de maior confiança de um curador são chamados de “ogãs” – quer sejam homens, quer sejam mulheres –, e são habituados a auxiliá-lo de maneira mais direta em suas muitas atribuições rituais. Quando um destes passa a ser treinado de forma um pouco menos implícita pelo curador, pode passar a ser considerado um curador secundário ou “aprendiz de curador”. Um curador que tenha iniciado muitos filhos, alguns destes vindo a se tornar também curadores, é chamado de “mestre”. O termo curador, se indubitavelmente refere-se antes de tudo à ação terapêutica desses pais e mães-desanto, poderia ser, numa extrapolação linguística, parcialmente ligado a uma função de curadoria ou curatela por eles exercida, enquanto guardiões tanto de sua casa como das entidades, pessoas e energias que por ali circulam, aproximando-se o título daquele dos “zeladores-de-santo” do candomblé.

158

A realização ou não de iniciações numa casa de jarê também define a presença ou ausência de sacrifícios rituais no local, um dos traços que meu amigo Elias colocava em destaque para justificar o fato de evitar ir a terreiros – seu pavor em ver sangue, ele mesmo dizia, era compreensível em função de sua proximidade pessoal com Xangô, entidade que teme e evita o contato com a morte. Esse era o mesmo motivo pelo qual ele me dizia que jamais seria iniciado em jarê algum, a não ser que uma pessoa muito especial em quem confiava bastante decidisse se tornar uma mãe-de-santo e utilizasse alguma alternativa ritual ao derramamento de sangue para iniciá-lo, opção que algumas das senhoras de quem era amigo lhe disseram ter sido acionada em suas iniciações. A “matança”, que precisa ser empreendida nos rituais iniciáticos dos terreiros, é um assunto sobre o qual a maior parte dos adeptos do jarê lida com desembaraço, ainda que seja um tópico evitado com aqueles com quem não se possui intimidade: só depois de muitos meses, por exemplo, é que um senhor me disse que seu pai fora o “dono da faca” – o principal auxiliar durante os sacrifícios – de um dos curadores mais importantes de sua época em Lençóis193. O fenômeno considerado mais característico dos jarês é a manifestação, nos corpos dos presentes, das entidades místicas que permeiam o universo, chamadas – nem sempre de modo completamente intercambiável – de santos, orixás, guias, encantados ou, aquela que é sua designação mais comum, caboclos194. Seria possível mesmo pensar que, enquanto nos candomblés litorâneos os caboclos foram sendo agregados aos demais espíritos e de algum modo subordinados aos orixás – os candomblés de caboclo propriamente ditos, em função disso, atrofiando-se –, no jarê parece ter ocorrido o contrário: todas as entidades foram sendo, 193 194

Retornarei ao tema do sacrifício no jarê no capítulo 4, seção 4.5.

Creio nunca ter ouvido o termo “possessão” (ou “possuído”) utilizado pelos nativos da Chapada, que inclusive me olhavam com alguma desconfiança quando eu o deixava escapar: possivelmente seu uso traía as maneiras pelas quais membros de igrejas – sobretudo as evangélicas, mas também a católica – falavam a respeito do fenômeno que atribuíam à ação de forças infernais e que exige algum tipo de esconjuro. Ao longo da tese, preferi as formas “manifestação” e “incorporação”, utilizadas pelos adeptos do jarê com grande frequência, bem como outras construções que indicam algum grau de participação mais marcado entre pessoa e entidade, como quando se diz que alguém está “de caboclo”, “com caboclo” ou “dando caboclo”, por exemplo.

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com o passar do tempo e ao menos parcialmente, subsumidas enquanto caboclos, algo que, como será visto posteriormente, terá diversas consequências rituais para o jarê195. Produzir um espaço apropriado para esses espíritos incorporarem é possivelmente o objetivo principal das festividades, já que eles precisam estar presentes com alguma frequência no mundo terreno, em contato com o solo, para ser reverenciados e alimentados, dançar, cantar suas cantigas, transmitir suas mensagens, ouvir pedidos, realizar curas196. A vida de uma casa de jarê conecta-se intimamente à de seu líder, suas histórias entremeando-se e a robustez de ambos estando em estreita relação. Uma casa começar a definhar e vir a morrer conforme seu líder envelhece e enfraquece é a norma, da mesma forma que, reciprocamente, o estado de saúde e a disposição do curador derivam da manutenção de seu templo religioso e da realização contínua de festas em adoração às entidades. Certa vez, falando a respeito da morte de um importante curador e o destino reservado a sua casa, Seu Gilson me apontou o telhado de uma construção qualquer em ruína na cidade, dizendo: “Quando a cumeeira cai...” Continuamos andando enquanto ressoava o final da frase que ele deixara implícito: “...o resto da casa desaba”. Por mais que sejam raras as casas que sobrevivem, em geral por meio de sucessão, ao falecimento de seus líderes, a desaparição das que não terão continuidade não ocorre sem que seus membros compartilhem a perda e se solidarizem diante dela, realizando um luto que pode vir a durar anos, em geral terminando com a própria estrutura física da casa abandonada e em ruínas. Uma casa de jarê apresenta declínio quando suas festas não são mais celebradas como de costume: a sequência esperada de incorporações rituais se dá só de forma perfunctória, quando não é mesmo ignorada por completo; os presentes não demonstram a alegria que se espera diante da ocasião; a festa é encurtada e termina ainda cedo na madrugada, bem longe do nascer do sol. 195 196

Movimento para o qual foi sugerida a designação de “caboclarização” dos espíritos (Senna 1998: 116).

Tanto as entidades do jarê como o fenômeno de sua incorporação serão mais detalhados no capítulo 4, seção 4.3.

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Presenciei alguns jarês assim, o primeiro deles deixando para mim muito marcada a importância das bases material e humana necessárias à realização das festas. Ao término desse jarê, uma das entidades da dona da casa, uma senhora já de idade avançada, anunciou amargamente que jamais voltaria a pisar no local. Junto de algumas outras, essa ocasião foi também significativa como contraponto aos demais jarês que frequentei, fornecendo a medida sempre presente da incerteza quanto ao cumprimento das condições de felicidade do evento, no duplo sentido tanto de seu sucesso como da exultação que deve gerar. Por mais que haja medidas para garantir a integridade e bom andamento da festa, nada confere certeza plena de que uma cerimônia transcorrerá inteiramente a contento, e a possibilidade de que algo saia errado está sempre presente até nas casas mais bem estabelecidas: as incorporações podem não ocorrer, os caboclos podem deixar mensagens indicando maus agouros, um ritual pode não ter os efeitos desejados – tanto por razões místicas como por erros humanos. Ao longo da noite em que transcorreu esse jarê que malogrou, houve diversos sinais que simultaneamente pressagiaram e foram efeito dos reveses que se acumularam e resultaram no fiasco: o assassinato que ocorrera no bairro próximo mais cedo no mesmo dia, desavenças e discussões entre alguns dos frequentadores da casa, a danificação de um dos tambores durante a festa, a presença de duas mulheres sabidamente em seus períodos menstruais197, a queda, por fim, de um pedaço do revestimento do teto do salão que por pouco não atingiu um dos presentes. Alguns desses vestígios foram bastante comentados pelos amigos que acompanhei depois de nos despedirmos ao fim da festa, em especial o último, que mais diretamente ligava o estado de conservação físico da casa ao vigor de seus donos e seu jarê de modo geral. É indubitável que o número de casas de culto da cidade diminuiu consideravelmente nos últimos anos, e outras atuais ainda parecem estar lentamente caminhando para a desaparição, mas seria exagero afirmar que o jarê de Lençóis está em vias de extinção. Da

197

Tema que será retomado e melhor detalhado no capítulo 4, seção 4.5.

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mesma forma que muitas casas acabaram, diversas outras encontraram nos anos recentes seu início: se a maior parte das casas de jarê raramente tem sobrevida, muitas outras continuam a nascer, e se não existem diversas remanescentes, que dão testemunho direto da longevidade da religião, todas podem ser consideradas, de uma maneira ou de outra, ressurgentes – termo que se refere a um rio que em certa parte de seu curso desaparece sob a rocha para mais adiante voltar a brotar sobre o solo. A maior parte das casas de jarê de Lençóis de hoje em dia é liderada por filhos-de-santo iniciados num mesmo terreiro, cujo curador, falecido há alguns anos, é visto como o último grande mestre que a cidade teve nas décadas recentes – sua casa sendo a única que se manteve de pé até o presente, a despeito dos conflitos sucessórios que a envolveram. Entre outros, o fato de essas casas descenderem de uma raiz comum faz com que muitos de seus membros costumem expressar o desejo de que eles mesmos fossem – especialmente seus líderes – mais unidos entre si, indicando que dessa forma poderiam fortalecer o jarê de maneira geral. Os curadores e chefes das casas, por sua vez, quando compartilham dessa ideia, costumam acrescentar que, se não há muita união entre todos os adeptos das diferentes casas dos jarês, é também por incapacidade e impossibilidade de se confiar nos outros líderes, o que os leva a desaconselhar ou por vezes proibir expressamente o comparecimento dos membros de suas casas às festividades alheias. Observadores argutos comentam que as rivalidades e disputas, por vezes veladas, entre os pais-de-santo são em alguma medida inelutáveis, desejosos que são de se tornarem uns mais fortes que os outros. Todos costumam falar a respeito da sonhada união com um tom de voz que deixa claro que se trata de uma aspiração que permanecerá somente enquanto um ideal. Isso não significa, contudo, que muitos dos membros de uma casa não compareçam às demais, especialmente quando relações de amizade ou parentesco os levam a tanto. Mesmo os chefes das casas, se evitam comparecer aos festejos dos rivais, costumam se encontrar ocasionalmente nas casas

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que não possuem curadores mas celebram jarês, cujas cerimônias funcionam assim como espécie de terreno neutro. Forma-se desse modo uma comunidade mística específica, cuja circulação pelas casas procurei igualmente acompanhar. Ao longo da pesquisa, visitei perto de uma quinzena de casas de culto diferentes, algumas delas constituídas em terreiros liderados por curadores, outras somente chefiadas por filhos-de-santo que não realizam iniciações. A maior parte delas localiza-se no município de Lençóis; as demais, nas quais as visitas foram mais breves, situadas em Andaraí. O desenvolvimento da pesquisa, bem como o amadurecimento das amizades que efetuava, fez com que me dedicasse a três dessas casas em especial, nas quais se concentrou a maior parte das festas de que participei diretamente, no total somando por volta de três dezenas de ocasiões em que estive em festejos de jarê, celebrados ao longo de um ano. Igualmente, era junto dos membros e frequentadores dessas casas que passava meus dias na cidade, com o tempo vindo a saber da existência de algumas outras das quais eles preferiam – e me aconselhavam a – manter distância. A principal casa de jarê do município de Lençóis, de grande importância histórica por ter sido o local onde reinou o mais influente curador que a região teve nas últimas décadas, chamado Pedro de Laura, recebe o nome de Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, e está localizada numa propriedade distante pouco menos de dez quilômetros da sede do município, ao longo de um caminho que no passado era a via primária de acesso entre as cidades de Lençóis e Andaraí. Hoje o Palácio está sob a responsabilidade espiritual do penúltimo filhode-santo iniciado por Pedro de Laura, um curador conhecido por todos por seu apelido, Mussum – também morador do Alto da Estrela e irmão biológico de Carminha, puxadora da quadrilha Bicho do Mato, bem como membro da mesma. Ao longo de meu trabalho de campo, acompanhei também o início do estabelecimento do terreiro de Mussum, numa casa que começava a ser erguida em local próximo ao Palácio de Ogum e na qual ele poderia

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realizar rituais de iniciação, algo que não era possível na casa da qual tinha ficado responsável198. Os líderes do Palácio costumavam falar com orgulho a respeito do tamanho da construção (uma casa que no momento contabilizava em torno de 20 cômodos, de tamanhos diversos), da disponibilidade de água em suas próprias dependências (trazida do rio próximo por meio de canalização subterrânea feita com mangueiras, implementada pelos próprios filhos-de-santo), bem como de possuir o maior salão de jarê das redondezas. As casas de jarê costumam ser chamadas também por associação ao nome de seu chefe ou ao de marcos geográficos próximos199, motivos pelos quais o Palácio de Ogum é tão ou mais frequentemente chamado de “casa de Pedro de Laura” ou de “casa da Capivara” (ou ainda simplesmente “a Capivara”, para encurtar), em alusão ao Rio Capivara, que se localiza no entorno da propriedade. Da mesma forma, os membros do jarê que se consideram parte do legado místico do falecido curador que ergueu o Palácio dizem-se igualmente os “filhos de Pedro” ou “filhos da Capivara”, e são responsáveis pela maior parte das casas de jarê existentes em Lençóis nos dias de hoje200. A primeira festa de jarê que frequentei em meu trabalho de campo – bem como a derradeira, como gostavam sempre de lembrar – aconteceu numa dessas casas, a Águas de Iemanjá, liderada por uma das mais importantes filhas da Capivara, chamada Valdelice. Valdelice era apoiada por membros de sua família carnal, em especial seu marido, apelidado Corró, que atualmente trabalhava na guarda municipal de Lençóis, por sua vez chefiada por Mussum. Valdelice e Corró também moravam na sede da cidade, ocasionalmente deslocandose para essa “casa de temporada”, como uma amiga a caracterizou, em especial nos finais de semana em que ali celebravam jarês. Poucos conheciam a casa Águas de Iemanjá por esse

198

Os motivos para tanto, bem como o restante da história do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, serão apresentados em diversos momentos ao longo do restante da tese, em especial no capítulo 3, seção 3.4. 199

Diferentemente do que costuma acontecer nos candomblés (Senna 1998: 96).

200

Ver fotos 31, 32, 33 e 34 no anexo III.

164

nome, estando mais acostumados a chamá-la geralmente de “casa de jarê de Valdelice” ou de “casa do Baixio”, em referência à região próxima que havia sido, no passado, garimpada à exaustão e se tornado um grande banco de areia. A casa de Valdelice se localiza na mesma estrada que leva ao Palácio de Ogum (situando-se alguns poucos quilômetros antes desse, partindo de Lençóis), ao longo da qual muitos desses bancos de areia, os chamados “areiões”, podem ser encontrados. O riacho no qual os adeptos se banhavam antes da festividade e no qual se buscava água para usos diversos é o Córrego dos Cachorrinhos, já que ali um sistema de canalização similar ao da Capivara ainda estava em vias de implementação. A casa do Baixio não realiza iniciações de nenhum tipo, sua chefe tendo preferido não se tornar uma curadora, mesmo tendo tido oportunidade para tanto, preferindo fazer jarês centrados nas manifestações das entidades como forma de cumprir uma promessa feita a elas201. Por sua vez, a casa de Daso, último filho-de-santo feito por Pedro de Laura, era conhecida tanto pela espetacularidade de seus rituais como por seu grande número de iniciandos. Localizada no recém-criado Terreiro Pai Gil de Ogum (nomeado em referência ao próprio curador, cujo primeiro nome é Gildásio, conhecido por todos como Daso), essa casa de jarê também está situada a uma caminhada considerável da sede da cidade, mas dessa vez em direção à rodovia estadual que liga a cidade de Lençóis à estrada federal Bahia-Brasília. Mesmo partindo da estrada, chegar ao terreiro de Daso envolve uma caminhada considerável por uma trilha em meio à mata fechada, até atingir o Rio das Toalhas – que também nomeia ocasionalmente a construção, chamada de “casa das Toalhas” –, no qual acontecem algumas etapas dos rituais iniciáticos da casa e de onde se obtém a água usada para vários fins no terreiro202. Muitos dos iniciados e demais frequentadores de cada uma dessas três localidades (considerando a nova casa de Mussum como parte do complexo da Capivara) costumavam ir

201

Ver fotos 35, 36, 37 e 38 no anexo III.

202

Ver fotos 39, 40, 41 e 42 no anexo III.

165

aos jarês de ao menos uma das outras, bem como aos celebrados nas demais casas em que se tocava jarê na cidade de Lençóis, em seus distritos e zona rural, às quais eu também costumava ser convidado. Como mencionado, casas de jarê podem ter tamanhos muito diferentes, indo daquelas construídas em amplos terreiros às que só existem de maneira mais concreta durante alguns dias ao ano, quando da transformação da sala da casa que uma pessoa habita em um espaço dedicado à incorporação das entidades. Ao longo desse gradiente encontram-se casas que foram erguidas em espaços afastados da cidade mas que não constituem terreiros – por não serem chefiadas por curadores que realizem iniciações, e dessa forma não possuírem certos aposentos com funções rituais específicas –, bem como casas que no passado eram terreiros completos mas que hoje mantinham só algumas de suas obrigações místicas, como o caso do Palácio de Ogum. Na descrição geral da disposição espacial e constituição das construções de um terreiro e de uma casa de jarê feita a seguir serão indicados os elementos que não se fazem necessários conforme a casa de jarê assuma uma escala menor nesse gradiente, ressaltando-se que ele não configura (senão, suponho, muito raramente) uma sequência de desenvolvimento: uma pessoa dá início a uma casa de jarê com uma dessas formas específicas de acordo com os motivos que a levam a celebrar as festas. Um aspirante a curador comumente permanecerá na casa de seu pai-de-santo até que deseje – e possua os meios para – dar início ao seu próprio terreiro. Filhos-de-santo que promovam jarês em suas casas fazem-no ao mesmo tempo em que continuam a comparecer nas festas de seus pais-de-santo, que por sua vez ocasionalmente frequentam as festas nas casas de seus iniciados. Antes mesmo de se chegar a um terreiro há medidas que devem ser tomadas: não se deve falar de forma exaltada, e após a travessia do curso de água mais próximo é ideal que qualquer conversa cesse e se permaneça em silêncio até que se preste reverência às entidades

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da casa203. Costuma haver cordas amarradas em árvores para ajudar a atravessar os rios em época de cheia, se o nível da água se encontra em torno dos joelhos ou até mais acima. Ornamentos cabalísticos nas proximidades, tais como panos coloridos amarrados em torno dos troncos de determinadas árvores ou pentagramas pintados nelas ou em pedras indicam a chegada a um terreiro e protegem o local e seus frequentadores contra influências perniciosas. Ao se entrar no terreiro propriamente dito, normalmente delimitado por um cercado em meio à mata, o visitante deve se dirigir para perto da morada dos exus – um caramanchão (pronunciado “carramanchão”, na região) característico, erguido separado da construção principal, e com inscrições em sua parte externa –, cuja porta está sempre fechada, só sendo acessada pelo curador e alguns ajudantes, todos do sexo masculino, em momentos específicos. Todo visitante deve tomar o cuidado de passar por trás dessa construção, parando em seguida junto a sua entrada e ali bater um dos pés no chão por três vezes, em saudação a esse conjunto de entidades que também é chamado de “povo da porta”. Ato contínuo, segue até o interior do salão no qual acontecem os jarês, coloca-se diante da porta que dá para o quarto de santo e bate o pé da mesma forma, dessa vez preferencialmente descalço, cumprimentando as demais entidades da casa. A partir daí está livre para tornar a conversar e circular pelo terreiro. Essas medidas são repetidas, na ordem inversa, quando se vai embora do terreiro, nenhuma delas, contudo, precisando ser feita em casas de jarê que não iniciem filhos-de-santo, nas quais não existe caramanchão204, ou no período da Quaresma, depois do fechamento da casa. No interior e nas cercanias de um terreiro existem e são cultivadas árvores e plantas que possuem funções rituais nos jarês, bem como por vezes cria-se uma pequena horta para

203

Ver fotos 43, 44, 45 e 46 no anexo III. Além disso, no caso do Palácio de Ogum, os visitantes pegam um ramo, que esteja verde, de uma árvore qualquer no caminho, depositando-o num amontoado alguns metros antes de se cruzar o Rio Capivara, num local que marca ter havido no passado um cemitério indígena nas proximidades, conforme contam. 204

Pude ver o interior de um caramanchão e fotografá-lo a pedido de seu curador, sob condição de não descrevêlo e nem reproduzir sua imagem (a não ser para meu arquivo pessoal, ele especificou), motivo pelo qual esse espaço não será detalhado na tese.

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gêneros alimentícios. Certa feita, depois de um evento público em Lençóis, uma visitante que já conhecia a cidade conversava pela primeira vez com um curador sem saber da ligação dele com o jarê – a senhora que os apresentou tendo dito à jovem que ele possuía uma roça afastada da sede do município. Com genuíno interesse, a visitante perguntou ao homem que acabara de conhecer se em sua roça ele fazia farinha – algo comum em muitas das pequenas propriedades rurais situadas no entorno da cidade. O curador lhe respondeu, sem titubear e com algum gosto: “Não faço farinha, não. Eu faço filhos-de-santo”. Roça é de fato um outro nome para os terreiros nos quais os filhos-de-santo são iniciados, feitos, como disse o curador, e “plantar a roça” é outra forma de se referir ao ato ritual necessário à inauguração de um terreiro, descrito posteriormente. Entre as plantas cultivadas no espaço próximo a uma casa de jarê costuma haver uma variedade considerável de ervas medicinais, de uso doméstico e ritual, bem como ao menos uma árvore da qual se recolhe a seiva utilizada na defumação de todo salão de jarê, o almíscar (que na região se pronuncia “alméscar”) 205. O espaço externo de uma casa deve igualmente possuir um local adequado à instalação de uma fogueira, cujo papel é não só o de espantar o frio das madrugadas (especialmente acentuado no inverno de altitude da Chapada) como o de fornecer brasas para alimentar o defumador e para atender aos desejos de algumas das entidades do jarê, bem como archotes para iluminação e ignição de pólvora durante determinados rituais. Manter a fogueira sempre acesa costuma ser atribuição dos auxiliares do curador, conhecedores dos diversos tipos de madeira que devem ser usados em função da forma como cada uma queima. A área externa pode conter também, por fim, locais destinados à criação e guarda de animais, que podem porventura vir a ser parte dos sacrifícios feitos nos rituais da casa. Terreiros ativos possuem também uma bandeira branca erguida num poste próximo a sua entrada, e o caminho que leva até a casa de jarê – bem como o restante do

205

Provavelmente a Styrax glabratum.

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da parte ao ar livre da propriedade – costuma ser guarnecido com oferendas rituais às entidades que protegem suas fronteiras. As casas propriamente ditas são construídas de adobe ou, quando isso não é possível, taipa. Edifícios desse tipo sobreviverem intactos à época das chuvas é considerado um sinal de bom presságio para uma casa de jarê em seu início, e muitas delas precisam ser reconstruídas até por inteiro até chegarem a uma configuração segura o bastante para uso. Idealmente, uma casa de jarê possui ao menos dois cômodos separados destinados ao pernoite e guarda dos pertences dos homens e das mulheres. Quando há mais quartos disponíveis, costumam ser usados por núcleos familiares compostos por diversas gerações, preferencialmente dormindo juntos avós, suas filhas e netos. O chefe da casa costuma ter também um quarto no qual repousam ele e sua família carnal, normalmente mais próximo da cozinha, na qual são preparadas as refeições diárias, que por sua vez dá acesso aos fundos da casa, onde em geral há o quintal. Não é comum que em nenhum desses espaços aconteça qualquer momento ritual durante as festividades de jarê, e nas casas localizadas na sede da cidade nas quais cerimônias são realizadas anualmente são os cômodos de uso comum que têm seu uso temporariamente voltado para a celebração. Espectadores de uma festa, contudo, são impedidos de adentrar o espaço além do salão, constituindo um sinal marcante de intimidade ser convidado a permanecer na cozinha ou no quintal de uma casa. O maior cômodo de uma casa de jarê é, via de regra, o salão, local onde transcorre a maior parte da festa e que também recebe o nome de “pagodô”. As paredes opostas longitudinalmente dão acesso uma ao lado de fora da casa e a outra ao quarto de santo, com portas que permanecem sempre abertas durante uma cerimônia de jarê. Ao lado da passagem para o quarto de santo localiza-se a cadeira do chefe da casa, seja ele um curador ou não, enquanto ao lado da porta voltada para o exterior do salão costumam ficar dispostos os atabaques e seus tocadores. É comum que haja estreitos bancos de cimento, construídos junto

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a todas as paredes, nos quais se sentam os frequentadores da casa quando não estão por qualquer motivo em pé no restante do salão ou em trânsito por outros locais da casa. Homens e mulheres são orientados a se sentarem em lados opostos do pagodô, estas do lado direito e aqueles do lado esquerdo, do ponto de vista de quem adentra o salão pelo lado de fora da casa. Homens e mulheres dispõem-se também mais próximos ou do quarto de santo e do chefe da casa, ou dos tocadores de atabaque e da saída do pagodô, em geral conforme suas relações de amizade e proximidade com a liturgia da casa206. Essa ordenação de espectadores e participantes em torno do salão, cuja configuração lembra mais um teatro de arena do que um palco italiano, favorece a transmudação de uns em outros conforme o desenrolar da cerimônia, nunca se tendo certeza de quem será a próxima pessoa a se dirigir ao centro do pagodô, seu proscênio. O chão do salão, por sua vez, é feito preferencialmente de terra batida e não de concreto rígido, tanto para amenizar o impacto que sofrem as pessoas quando caem bruscamente (ao estarem incorporadas) como por motivos rituais mencionados mais adiante. O teto de toda a construção pode ser coberto com telhas de cerâmica ou, bem mais comumente, chapas de fibrocimento, que não contribuem muito para sua ventilação interna, raramente provida por janelas. As paredes internas do pagodô costumam ser decoradas com quadros de santos e outros retratos de entidades do jarê, como orixás e caboclos mais indígenas, bem como figuras representando Jesus ou o Espírito Santo. Em muitos salões há também fotografias, seja de pessoas importantes à casa e sua história, seja de momentos rituais de festividades passadas, privilegiadas por exemplo em um terreiro que criava grandes murais com elas. Outros objetos podem adornar as paredes do salão, de acordo com o gosto pessoal de seu chefe, tais como

206

Por vários motivos, habituei-me a permanecer junto dos tocadores, muitos dos quais estavam entre meus melhores amigos e que podiam circular consideravelmente entre casas de jarê distintas. Mulheres que procuravam não protagonizar incorporações das entidades buscavam se sentar perto da saída do pagodô, eventualmente correndo para o lado de fora da casa no intuito de evitar a manifestação, ainda que raras vezes com sucesso: comumente acabavam sendo trazidas de volta pela ação de seus próprios espíritos.

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estatuetas e enfeites diversos ou panos com mensagens listando e louvando as entidades da casa. O teto e as janelas costumam receber bandeirolas e picotes coloridos, enquanto o chão é coberto com pequenas folhas, como as de pitangueiras, antes do início de um jarê. Ali são também postas velas, no meio e por vezes nos cantos do salão, podendo ser circundadas por pipocas. Em casas nas quais não são feitos rituais de iniciação, costuma haver no interior do salão, em um de seus cantos, um altar que substitui o quarto de santo. O pagodô de um terreiro, por sua vez, possui enterrado em seu centro um conjunto de objetos cuja composição específica consiste no principal segredo da casa, zelosamente guardado pelos curadores. Esse cerne de todo terreiro recebe o nome de “otim”207, e o ritual de plantar a roça para dar início a uma dessas casas de culto culmina com a instalação dessa parafernália mística sob o centro do salão. A região do otim não deve ser perturbada com movimentação cotidiana – como afirmam os curadores: “casa de obrigação não pode ter muito piseiro” –, outro motivo que os leva a preferir abrir seus terreiros em locais afastados da sede do município e morarem ao longo da semana em residências na cidade de Lençóis. Os altares domésticos presentes na maior parte das casas da região são como versões em escala reduzida dos altares presentes nos quartos de santo, estes chamados de “pejis”, nome que também pode ser estendido para o cômodo que os abriga208. A arrumação dos pejis é feita de forma bastante ciosa pelos chefes das casas, que se orgulham em exibi-los aos visitantes, solicitando-lhes apenas que antes de ingressar no quarto de santo retirem seus calçados, algo que todos os frequentadores da casa se acostumam a fazer quando ali entram. O número de objetos dispostos num peji sinaliza o poder místico de um curador, já que se 207

Palavra que costuma ser de conhecimento apenas dos líderes das casas de culto, em geral pouco utilizada e para a qual não ouvi ser conferido nenhum outro sentido. O principal dicionário de termos ligados aos cultos afro-brasileiros existente registra dois termos de origem iorubá cujos sentidos é interessante marcar: oti ou otim = “aguardente, cachaça” e Otin = “um tipo de Oxóssi que veste azul, usa capanga e lança e vive no mato, a caçar, sendo muito amigo de Ogun” (Cacciatore 1977: 210). 208

Com base no principal dicionário de cultos afro-brasileiros, a literatura registra na etimologia do iorubá que dá origem à palavra peji os componentes pé = reunir ou pè = chamar, convidar e ji = dar presente (Cacciatore 1977: 220-221; Gonçalves 1984: 107).

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afirma que para aumentar sua quantidade não basta simplesmente querer: é preciso ter capacidade para tanto. Dispor objetos num peji é parte do duplo processo de reconhecer sua subjetividade e subjetivá-los: ao ser exibidos, cada um deles demonstra um – e vê ampliado seu – potencial de canalizar as vontades das entidades que povoam o mundo do jarê. Quanto maior seu número e mais fortes suas presenças, maior o risco para um curador de não ser capaz de lidar a contento com seus desejos e demandas; simultaneamente, maiores também são as recompensas que deles será capaz de obter. No centro do peji, junto ao chão, encontrase a pia batismal, utilizada num dos rituais de iniciação para lavagem da cabeça dos filhos-desanto. O fato de todos, em princípio, passarem por uma etapa ritual no próprio quarto de santo é mais um dos motivos que conecta os filhos-de-santo de um mesmo terreiro entre si, como dizem: “A pia que lavou a minha cabeça é a mesma que lavou a de todos os outros”. No peji encontram-se dispostos os mesmos objetos descritos anteriormente no caso dos altares domésticos de pessoas ligadas ao jarê, na época das festas acrescidos de alimentos em oferenda às entidades, tais como pipoca, arroz, feijão, amendoim, bolinhos de acarajé, vatapá, assim como partes dos animais abatidos sacrificialmente, em especial as vísceras, patas e cabeça. Os quartos de santo guardam também objetos que possuem uso ritual, como a campa, velas, perfumes, talco, pó de pemba, pólvora, mel, dendê, cachaça, água trazida do mar, facas, tesouras, colares, cruzes, vergueiros, cordões, linhas, fitas, panos, pregos, ferramentas metálicas. As diversas estatuetas e pedras que compõem o peji idealmente não devem nunca ser compradas pelo chefe de uma casa, devendo ser encontradas espontaneamente na natureza ou recebidas de presente, e devidamente preparadas antes de fazer parte do altar. Do mesmo modo, há medidas de precaução que se deve tomar para se desfazer delas – quando se quebram acidentalmente, por exemplo – que ao fim envolvem despachá-las em água corrente ou depositá-las aos pés de algum cruzeiro. Contíguo ao quarto de santo costuma existir uma alcova para armazenar as roupas das entidades,

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preferencialmente também recebidas como presentes ou em cumprimento de promessas (por vezes assumidas pelos próprios curadores a mando de seus espíritos), igualmente utilizada para troca de vestimentas ao longo das festas209. Os últimos dois aposentos de uma casa de jarê, existentes apenas nos terreiros, são o quarto dos búzios e o quarto de reclusão. No primeiro se encontra uma mesa larga na qual repousam muitos objetos similares aos encontrados no peji, porém emoldurando os apetrechos do jogo divinatório. O centro da mesa é coberto por panos coloridos e rendas, no centro dos quais há diagramas desenhados, cuja periferia é composta simultaneamente por grossos colares de contas e um cordão no qual há preso um crucifixo, envolvendo um número considerável de búzios (16 ou 17, a depender da casa) com cortes produzidos nos lados opostos aos de suas aberturas naturais. Por sua vez, o quarto de reclusão, também chamado de “roncó”, fica próximo ao pagodô, e é onde ficam retirados os iniciandos após a realização de determinadas etapas rituais, devendo permanecer junto ao solo a maior parte do tempo, deitados no chão nu ou em folhas de bananeira – ou ainda em esteiras de palha, se um curador encontra-se especialmente benevolente. Alguns amigos, cujos rituais de iniciação pude acompanhar, mencionavam o fato de ficarem primeiro evidenciados e depois relativamente confinados comparando-o de modo risonho ao que acontecia com participantes de programas televisivos de simulação de realidade – nessas ocasiões desviando-se temporariamente da diretriz aplicada pelo curador segundo a qual deviam evitar momentos de maior exaltação. Festas de jarê podem acontecer com um número bastante variável de pessoas, desde eventos mais reservados com suas duas dezenas de pessoas até as principais festas anuais de uma casa (um dos líderes do Palácio de Ogum estimou em torno de 200 o número de participantes de uma ocasião particularmente marcante, “contando as crianças”, ele acrescentou). A adequação entre o tamanho da casa e número de participantes num festejo é

209

Ver fotos 47 e 48 no anexo III.

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um dos fatores fundamentais quando se considera o sucesso de um festejo. Casas muito pequenas em que os frequentadores precisam se amontoar para assistir à celebração não garantem o espaço necessário à dança dos adeptos incorporados, objetivo perene de todo jarê, impedimento comum quando transcorrem nas salas das casas na sede de Lençóis em que regularmente habitam. Casas amplas ou abertas demais produzem separação excessiva dos presentes, caso por exemplo de uma casa de jarê que, por estar ainda germinando, não possuía um pagodô devidamente construído, tendo se passado sob uma estrutura improvisada (uma latada erguida com barrotes e revestida com chapas metálicas, lonas plásticas e cobertura vegetal). Nessa ocasião, muitos de meus amigos comentaram, os frequentadores não só estiveram ao menos parcialmente expostos aos elementos – perigo agravado no jarê, como já se mencionou – como o som dos atabaques ficou impossibilitado de reverberar corretamente, as batidas propagando-se e se perdendo mata e noite adentro. Contribuiu igualmente o fato de o altar principal do local ainda não ter sido devidamente estabelecido: “não tem assentado nem sequer uma única imagem”, me diziam. Os responsáveis por uma casa de jarê costumam levar consigo diversos gêneros alimentícios quando realizam festejos em locais distantes da sede do município. Os alimentos são preparados ao longo do dia para a festa que acontecerá à noite, quando em diversos momentos serão oferecidos aos presentes. Há uma vigilância constante para se saber quem está comendo e o quanto, sendo sempre ideal o jarê no qual a comida sobre de modo farto e possa complementar as refeições do dia seguinte. Tem-se o cuidado, simultaneamente, de se fornecer as maiores porções para as pessoas que efetivamente farão parte da festa, ainda que só como parte da assistência. Os responsáveis por uma casa preocupam-se constantemente em servir bem os convidados que não costumam frequentar jarês, olhando no mínimo com desconfiança para forasteiros que vêm observar o jarê mas não aceitam comer – uma recusa

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direta podendo mesmo consistir grave ofensa210. Ao longo do dia era comum que fossem feitas poucas e fartas refeições, que em geral contavam com arroz, feijão, macarrão, farinha, frango e pimenta, com a ocasional salada de vegetais. A mesma refeição era repetida no almoço, na janta, e por vezes durante a madrugada, em algum momento do jarê, feita em grupos pequenos, a depender do número de presentes. Constituía uma das atribuições e habilidades do chefe da casa escolher o melhor momento para as refeições noturnas, de modo a fortalecer os presentes para o prolongamento da festa. O café costuma acompanhar todas as refeições, e se escasseasse constituía um dos mais fortes indicadores da fragilidade econômica de uma casa, conforme comentavam. Sendo primariamente ocasiões festivas, praticamente todo jarê conta também com comidas adequadas a uma comemoração, como bolos, salgadinhos, docinhos, balas, pipocas, refrigerantes e bebidas alcoólicas (depois das cachaças, as mais comuns eram cervejas, vinhos e licores, todas consumidas preferencialmente ao longo dos jarês). A arrumação de mesas nas quais essas comidas ficam dispostas antes do início dos jarês propriamente é feita com bastante esmero pelas mulheres da casa, e todos comentam sobre a beleza de sua composição, seus enfeites, confeitos e decoração do bolo, e a fartura dos alimentos. Entre elas sempre existem cozinheiras de grande habilidade, a qualidade de seus pratos sendo defendida de maneira ciosa pelos demais membros da casa, amigos e parentes, enquanto as próprias dificilmente se gabam dela – pelo contrário211. Pelos motivos descritos, além de outros ligados às já mencionadas disposições dos lençoenses em relação à abundância, as posturas mais reprováveis na iminência de se servirem as refeições nos jarês são a impaciência e a

210

A intimidade conquistada numa casa corresponde diretamente ao quanto seus membros esperam que os visitantes comam e bebam, e se por vezes meus amigos diziam que eu não precisava ser tão tímido ao pedir para repetir um prato ou tomar mais café, isso constituía um sinal positivo que me deixava progressivamente mais à vontade durante as refeições. 211

Sobre os visitantes que constatam e enaltecem os dotes culinários dessas senhoras, não há descrição mais certeira: “O reconhecimento desses méritos provoca discreto orgulho. Quando o elogio é pessoal e direto, ocasiona uma negativa acanhada” (Gonçalves 1984: 105).

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glutonaria. Comenta-se com frequência a respeito de episódios protagonizados por um dos mais importantes curadores da região, nos quais imensas quantidades de comida eram jogadas fora, despachadas depois de prontas nas águas do rio próximo à casa, enquanto seus frequentadores a aguardavam com fome. Alguns dos membros da casa diziam que o curador agira por maldade, outros afirmavam que deveria estar bêbado, outros ainda vislumbravam a possibilidade de que ele tivesse ainda outros motivos, que desconheciam. Em caso inverso, para dar uma lição a uma filha-de-santo que dissera que a comida havia terminado – tendo ela própria ocultado certa quantidade sob a desculpa de que o guardara para outra pessoa –, o mesmo curador ao descobrir a refeição escondida mandou salgá-la até ficar intragável. Quando a filha-de-santo provou-a, veio furiosa consultar uma das entidades do curador para descobrir quem fora o responsável pela perversidade. Tudo que obteve foi uma áspera reprimenda... Muitos dos pratos preparados ou servidos num jarê possuem também ligação mais direta com sua liturgia, sua composição por vezes variando de acordo com as entidades a serem homenageadas em casa ocasião. Acarajés e vatapás (prato feito com farinha, peixes, camarões e temperos) – bem como abarás, no passado – costumam ser servidos nas festas da segunda metade do ano, sejam as de Cosme e Damião, sejam as de Iansã. Nas primeiras o prato principal é o caruru (sendo a pronúncia “cariru” mais frequente na região), iguaria a base de quiabos. As festas dedicadas a Oxalá contam com feijoada e uma canjica de milho branco, de nome mucunzá. Pratos de farofas de diversos tipos, chamados “fufus”, são preparados tanto como oferenda aos espíritos como para acompanhar as refeições, muitos deles sendo combinados com o restante da comida e, especialmente no caso das pessoas mais velhas, apreciados sem talheres, degustados em pequenos bolinhos feitos com as mãos no próprio prato, e oferecidos dessa forma às crianças. Comer, e dar de comer, diretamente com as mãos são atividades que renovam e transmitem a força pessoal de alguém, em função

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também do contato com a saliva dos comensais – substância corporal que, como será descrito adiante, possui também um uso ritual específico212. Alguns dos filhos-de-santo mais antigos do Palácio de Ogum se lembram com saudade de um ritual no qual uma das primeiras iniciadas da casa, vestida inteiramente de branco, dançava girando no centro do salão enquanto equilibrava sobre a cabeça uma gamela cheia de um mingau branco, dedicado a Oxalá ou a Abaluaê, chamado amalá. O mingau ia aos poucos se derramando no corpo da dançarina, devendo ser então diretamente lambido pelos adeptos da casa, instruídos em seguida a enxugarem seus rostos ritualmente no vestido da filha-de-santo. Comer pode ser, ao contrário, também um meio de se ser afetado prejudicialmente, contando como principal o receio de se ser enfeitiçado pela via alimentar, já que ingerir um objeto que porte um feitiço é considerada uma das formas mais inescapáveis de sofrer seus efeitos. Em menor grau, os alimentos servidos num terreiro são sempre em alguma medida portadores da força do curador de uma casa, seu consumo podendo trazer consigo consequências distintas. Quando sabem que algum de seus filhos-de-santo irá a uma cerimônia num terreiro alheio, curadores lhes aconselham a saírem de casa já alimentados, levarem sua própria comida – quando for possível e não insultuoso –, ou ainda se limitarem às refeições oferecidas antes do início do jarê. Avisos fornecidos pelos curadores – e tanto a respeito desse assunto como de muitos outros – são, via de regra, muito menos ditames do que recomendações, alertas, pareceres. Certa vez, um de meus amigos, em fase de iniciação no terreiro em que estávamos, disse ao curador da casa que queria comer uma uva de um belo cacho que era parte de uma grande oferenda disposta no centro do salão, numa cerimônia doméstica. O curador retorquiu de forma lacônica e com tom de voz irônico, perguntando-lhe somente: “Quer mesmo?” Ignorando a reprovação, meu amigo veio a se arrepender amargamente quando, mais tarde no mesmo dia, foi acometido por uma diarreia que, ele tinha

212

Tema a ser retomado no capítulo 4, seção 4.4.

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certeza, havia sido causada pela ingestão daquela única uva, contrariando a recomendação de seu pai-de-santo. Após tornar-se membro definitivo do terreiro em questão, meu amigo teve de se haver com as proscrições comportamentais às quais ficam sujeitos os recém-iniciados, todas elas possuindo o mesmo caráter de contraindicações para que se proceda a uma recuperação e um fortalecimento pessoal satisfatórios213. Muitas dessas interdições são alimentares, algumas delas emulando às da Semana Santa, como a de não comer carne, outras ligadas a itens como o coentro e outros vegetais similares que tornam o corpo do iniciado mais vulnerável à ação de forças nocivas. Um curador pode tanto transmitir essas proscrições oralmente como fornecê-las por escrito aos filhos-de-santo mais jovens que não possuem conhecimento dos meandros do culto, auxiliando-os e os monitorando quando sob sua guarda, mas os deixando de todo modo e em última medida responsáveis por observarem as próprias interdições, passo importante na vida de um adepto do jarê.

2.5 Telurismos

A família biológica, ou carnal, como preferem dizer as pessoas ligadas ao jarê, possui papel importante em muitos dos aspectos da vida mística de seus integrantes. Em função de sua hereditariedade, filhos e netos podem receber de seus pais e avós desde obrigações rituais e estilos de dança à capacidade de incorporar entidades específicas que permanecem ao longo dos anos ligadas aos membros de uma mesma família. Pode-se ter de realizar jarês em função de uma promessa assumida por um antepassado ou em benefício de um descendente, ou 213

O resguardo a ser mantido possui caráter perene, as proibições podendo ser continuamente abrandadas com o passar do tempo e o restabelecimento da força pessoal. Mantê-lo é igualmente um meio do iniciado se tornar responsável por sua própria saúde, bem como de se dar conta de sua fragilidade, já que é sempre possível que seja acometido por determinado mal (Rabelo 1990: 217-221).

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mesmo assumir uma sina reservada a um parente próximo (como um irmão), como a de se tornar um curador, de modo a livrá-lo da obrigação e aplacar os espíritos que demandam ser reverenciados. Do mesmo modo, pais e mães em especial estão sujeitos a parcialmente sentirem em seus corpos efeitos que sejam direcionados a seus filhos, derivados seja de um ritual iniciático, seja de um feitiço. Mesmo as pessoas que não são ligadas ao jarê, e portanto não compartilham da mesma ampliação familiar causada pela agregação dos demais membros de uma família-de-santo à biológica, veem suas famílias tornarem-se mais extensas graças às muitas versões do compadrio existentes na região214. De diversas formas, pais e mães aproximam outras pessoas de seu núcleo familiar tornando-as seus compadres e comadres ao apadrinharem seus filhos. De um ponto de vista cronológico, a primeira dessas formas é tradicionalmente exclusiva a madrinhas, por ser reservada à parteira que traz um recém-nascido ao mundo – que “pega a criança” ao nascer, como dizem –, primeira pessoa que virá a ser considerada como uma segunda mãe pela criança e a quem terá de se acostumar a fazer o pedido de bênção. São raras as pessoas na cidade que precisam recorrer a médicos e ao hospital para a realização de partos, sendo abundante o número de parteiras detentoras de saberes tradicionais que as tornam conhecidas, queridas e requisitadas por todos – oferecendo conselhos sobre os procedimentos do resguardo posterior ao parto, bem como indicações de preparados para males específicos que podem se abater sobre grávidas, bebês e crianças. Toda pessoa sabe quem foi a parteira que lhe “levantou” e a quem deve o mesmo tipo de respeito concedido a suas demais madrinhas e seus padrinhos. O principal compadrio é aquele estabelecido por ocasião do batizado de uma criança na igreja, seja ela católica ou evangélica, e que costuma acontecer até os três anos de idade. Não é incomum que uma criança mais nova permaneça sem nome depois de nascer e até que 214

Há ligações históricas do compadrio também com as formas de relação entre santos e seus protegidos no catolicismo popular (Monteiro 1974: 59-60 apud Rabelo 1990: 61-63).

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seja efetivamente batizada na igreja, e a escolha dos padrinhos para seu filho envolve grande consideração por parte dos pais. Em geral, o padrinho e a madrinha são escolhidos entre os amigos próximos dos pais da criança, não havendo necessidade de que sejam um casal, tornando-se todos compadres e comadres uns dos outros e ficando entendido que os padrinhos passam a ser, a partir daquele momento, corresponsáveis pela criação do infante. Ao mesmo tempo, uma terceira mulher pode ser convidada para carregar a criança no momento do batismo, sendo ela também considerada uma madrinha, chamada de “madrinha de carrego”215. Como mencionado anteriormente, entidades espirituais do jarê podem se incorporar durante o batismo na igreja e acabarem por ser elas mesmas padrinhos ou madrinhas da criança, por vezes em concretização a uma promessa. Similarmente, existem pessoas que passam a chamar amigos que ainda não possuem filhos pelos termos compadre ou comadre, estabelecendo de forma antecipada uma relação que poderá ser plenamente atualizada quando do nascimento de uma criança. Em geral, depois de já se ter procedido ao batismo na igreja, realiza-se no mês de junho seguinte um outro batismo durante o São João, normalmente chamado de batismo de fogueira. Nele, a criança poderá receber um novo padrinho, que pulará uma das muitas fogueiras acesas pelas ruas da cidade carregando o afilhado no colo e recitando uma reza adequada à ocasião. Processo similar pode acontecer depois que uma criança realiza sua crisma na igreja, havendo a crisma de fogueira. Ainda que por vezes haja repetições, nada impede que em cada uma dessas ocasiões uma pessoa diferente seja escolhida para ser o padrinho de uma mesma criança, seus pais adquirindo dessa forma um número cada vez maior de compadres e comadres. A todos esses podem se somar os padrinhos de iniciação num jarê, no caso das pessoas que se tornam filhos-de-santo de algum terreiro.

215

No restante do Brasil também são registradas as construções madrinha de apresentação, de representação, de bandeja ou de jirau (Gonçalves 1984: 78).

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Os rituais que ligam adeptos do jarê a uma casa de culto, descritos adiante em detalhe, exigem o acompanhamento de ao menos um padrinho e uma madrinha chamados “de obrigação”, em geral escolhidos pelos próprios iniciandos, com sugestões e anuência do curador do terreiro, entre pessoas que já sejam elas mesmas iniciadas – não raro entre outros filhos-de-santo da mesma casa. Idealmente, ao menos até que se tenha bastante idade, tempo de iniciação e confiança em sua força pessoal, um membro de uma casa de culto deverá sempre possuir padrinhos de obrigação, devendo realizar rituais para apontar novas pessoas para a posição caso os seus venham a falecer – num processo muito similar ao que ocorre caso seu pai-de-santo pereça. Como nos outros casos, também no jarê podem ser tanto a própria pessoa como alguma de suas entidades a responsável por apadrinhar um iniciando, este vindo a se tornar afilhado ou do carnal, ou de um de seus espíritos. Diferentemente do que ocorre nas outras formas de apadrinhamento, contudo, não há estabelecimento de compadrio entre o pai-de-santo responsável pela iniciação e o padrinho e a madrinha de obrigação. Essa ampla gama de apadrinhamentos e compadrios possíveis, cuja apreensão por um bom tempo me desnorteou consideravelmente, é posta em ação constantemente ao longo do cotidiano dos nativos da Chapada, e ainda mais no caso dos adeptos do jarê. Um afilhado deve respeito e consideração a seus padrinhos, qualquer tenha sido a razão do apadrinhamento, sendo instruído desde bem cedo a lhes pedir bênção na primeira vez que se encontrem num dia qualquer. Se, instruindo as crianças, os adultos por vezes lhes incitam a “tomar a bênção a” seus padrinhos, a forma mais comum de dizê-lo é com a construção “dar a benção a”, evidenciando o direcionamento da deferência que os afilhados devem a seus padrinhos e madrinhas, da mesma forma como se solicita a bênção dos parentes mais velhos (em geral pais e mães, tios e tias, avôs e avós) ou de seu pai-de-santo. Dar a bênção a uma dessas pessoas pode ser feito de forma mais breve e somente de maneira verbal (pedindo: “Bença, tia”) ou de modo mais detido oferecendo sua mão direita estendida próximo ao nível

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do rosto enquanto diz as mesmas palavras. O responsável por conceder a bênção une sua mão direita à do afilhado e a oferece para que seja beijada no dorso, podendo a seguir retribuir a ação. A resposta ritualizada que conclui o oferecimento da bênção em geral é “Deus te abençoe”, podendo haver bastante variação na substituição de Deus por Jesus, Senhor dos Passos, ou uma das muitas entidades do jarê, predominando Oxalá. Um afilhado deve fazer tudo que estiver a seu alcance caso um de seus padrinhos lhe faça um pedido, especialmente no caso de solicitações mais sérias e no auxílio de trabalhos coletivos (como reformas em casas, colheitas de roças ou realização de mutirões). Os padrinhos e madrinhas, por sua vez, zelam pelo bem e pela felicidade de seus afilhados, dando-lhes conselhos, presentes e se preocupando com as obrigações que esses assumem. Nos jarês, além de terem outras funções rituais mais explícitas, são também os padrinhos – especialmente as madrinhas – as pessoas responsáveis pelo acompanhamento de um afilhado que esteja incorporando uma entidade, tendo preferência na execução da tarefa as madrinhas de obrigação, mas cabendo àquelas que sejam madrinhas por outras razões responsabilidade praticamente idêntica216. Os inúmeros cumprimentos e trocas de bênção entre parentes carnais, afins, parentes de jarê, compadres, comadres, padrinhos, madrinhas e afilhados geram um quadro bastante vertiginoso de cortesias (e possíveis faltas de consideração) a princípio bastante difícil de acompanhar. Se, de qualquer modo, não costuma haver na prática muita diferença nas demonstrações de polidez mais protocolares esperadas entre as pessoas segundo as distintas formas de parentesco, bastando ter em mente a quem demonstrar e de quem se espera receber deferência, ao mesmo tempo distinções mais finas podem ser acionadas – por exemplo quando se quer exacerbar as consequências de um deslize. Muito mais 216

As madrinhas, e por vezes os padrinhos, de obrigação assumem assim o papel que nos candomblés litorâneos cabe às equedes, ajudando os afilhados a, por exemplo, colocarem suas vestimentas rituais e os amparando durante as manifestações das entidades. Nas ocasiões em que as madrinhas de uma pessoa não estejam presentes, seus irmãos-de-santo mais próximos, demais parentes ou amigos se responsabilizam por esse acompanhamento, de todo modo podendo também auxiliar as madrinhas nas demais vezes conquanto não mostrem estarem com isso tomando seu lugar.

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frequentemente, todavia, tais distinções são feitas em situações com desfechos cômicos dos quais todos os envolvidos irão rir com satisfação. Além do apadrinhamento, os rituais de iniciação no jarê geram outras fundamentais formas de parentesco ritual que unem entre si os membros de um mesmo terreiro, estabelecendo laços tanto entre os filhos e seus pais ou mães-de-santo como entre os irmãosde-santo que compõem uma casa de culto. Os adeptos afirmam que se tornar um filho-desanto raramente é uma escolha pessoal, do mesmo modo como a definição da casa de culto à qual irão pertencer muitas vezes escapa ao domínio da volição217. Depois que a iniciação de uma pessoa fica decidida, ela se dedica a juntar dinheiro para obtenção dos itens necessários à condução dos rituais bem como para remuneração do curador responsável218. Em ambas as tarefas, ela pode ser ajudada por amigos e parentes, bem como contar com o auxílio esporádico das próprias entidades envolvidas no processo, por vezes acontecendo de um paide-santo devolver, parcial ou integralmente – a mando de algum de seus espíritos –, a quantia que recebe como pagamento pela condução do processo, ao término do mesmo. A iniciação no jarê envolve dois rituais subsequentes, realizados em ocasiões diferentes: a “limpeza” e o “batizado”, cada um deles podendo ser também chamado indistintamente de um “trabalho”. O ritual de limpeza, chamado também e de forma bem menos frequente de “lavagem da cabeça” ou de “bori”, costuma acontecer durante uma festa de jarê, em geral algumas horas após seu início e algumas horas antes de seu término. Em determinado momento, o curador interrompe a sequência habitual de incorporações e silencia os tambores, e tanto ele como seus auxiliares preparam, no centro do salão, os objetos necessários à realização do ritual,

217

O processo divinatório que comumente antecede a aproximação de uma pessoa a um terreiro será descrito no capítulo 3, seção 3.4. Já os motivos que levam um iniciado em potencial a se tornar filho-de-santo serão mais detalhados no capítulo 4, em especial na seção 4.5. 218

Os valores de trabalhos de iniciação, bem como a composição exata de itens a serem obtidos, variam bastante de acordo com a pessoa a ser iniciada e as orientações dadas ao curador por suas entidades. A quantia que um iniciando precisa despender em um rito, usada pelo curador também para a compra de objetos e alimentos para o jarê, além de sua manutenção pessoal, costuma variar entre algumas centenas até dois milhares de reais.

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geralmente em múltiplos de três ou de sete, que podem compreender alimentos diversos em pratos, bebidas, charutos, pregos, velas, ramos de plantas, panos e fitas coloridos (prevalecendo a combinação de cores preto, branco e vermelho, mas com muitas variantes possíveis), dispostos de maneira circular219. Estando todos devidamente colocados no chão, o curador retoma o jarê com uma sequência de cantigas próprias ao trabalho em questão, conclamando à incorporação aquele entre os seus espíritos que será responsável pela condução do ritual – sendo mais comuns Ogum, Iansã ou um dos caboclos ligados às matas, já que todos estes, afirmam, não temem lidar com a morte. Já manifestada, a entidade indica que os auxiliares da casa devem trazer o iniciando, que até o momento aguardava no interior do quarto de reclusão, para se sentar num banco no centro do salão, voltado de costas para o peji e de frente para a saída do pagodô, e ser acompanhado por seus padrinhos. O iniciando encontra-se nesse momento descalço e já vestido de forma apropriada, com as roupas em geral cobertas por um tecido branco e portando colares de contas e braceletes de palha trançada, bem como vendado por um pano branco que cobre seu rosto por inteiro. Ao longo do trabalho de limpeza, que continua ao som dos atabaques, o oficiante procura afetar o iniciando com objetivo de afastar espíritos danosos responsáveis por infortúnios que sobre ele estejam se abatendo, como indicado tanto pelo processo divinatório quanto pelo conhecimento do pai-de-santo e suas entidades. Estabelece-se um conflito entre, de um lado, o curador e seus espíritos – em especial aquele que realiza o trabalho – e, de outro, o iniciando e as próprias entidades que o circundam e acompanham, algumas das quais terão sua conexão com o filho-de-santo enfraquecida a ponto mesmo de dele se apartarem definitivamente, caso a limpeza seja bem-sucedida. Primeiramente, o corpo do iniciando é tornado suscetível, “aberto”, à ação do ritual, recebendo sobre si o conteúdo de pratos de alimentos e a influência de outros objetos, lançados pelo oficiante, de composição geralmente

219

Ver foto 49 no anexo III.

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granular: farinhas, feijões, pipocas, milhos, saladas de folhas picotadas e talco, bem como a luz e calor de velas. Em seguida, ele recebe substâncias mais líquidas equacionadas à força vital: bebidas alcoólicas, mel, dendê, claras e gemas de ovos quebrados sobre sua cabeça, e o sangue sacrificial de um galo ou galinha abatido pela entidade do curador, em geral com uma faca dedicada especificamente a esse propósito, após o animal haver bicado três goles da cachaça disposta para o ritual – algo feito de preferência sem que seja preciso conduzi-lo demasiadamente a tanto. O galináceo pode ter sua cabeça cortada, suas extremidades removidas e estufadas no próprio corpo, que é posto em contato com o corpo do iniciando e depois depositado no centro do salão onde se acumula uma quantidade de itens rituais já utilizados. Em algum momento próximo dessa etapa do ritual, espera-se que ao menos uma das entidades que atormenta o iniciando se manifeste nele, sendo então repelida pelo espírito incorporado no curador com o auxílio dos padrinhos, que ao longo de todo ritual permanecem posicionados de pé atrás do filho-de-santo cada um com uma de suas mãos sobre os ombros do afilhado, o padrinho postando-se do lado direito e a madrinha do esquerdo, amparando-o. Continuando a entoar as cantigas necessárias, repetidas pela assistência presente, o oficiante da limpeza gesticula em direção ao lado de fora da casa, expulsando do aposento os espíritos perniciosos ligados ao iniciando. Procede-se em seguida à restauração da integridade do iniciando, por meio de uma série de operações feitas com as fitas coloridas que de início haviam cada uma tido uma de suas pontas amarrada ao redor da testa do filho-de-santo (completando e duplicando o círculo que delimita a área ritual), bem como com o cordão de São Francisco, instrumento essencial para todo curador, igualmente manejado próximo às cabeças dos envolvidos no ritual, conectando-as. O corpo do iniciando fica assim preparado na direção de seu restabelecimento e do retorno a uma condição íntegra, “fechado”. Todos os objetos utilizados no ritual são reunidos e envoltos pelos panos que permaneceram no chão – o preto constituindo a camada mais externa –, os auxiliares rituais devendo tomar cuidado

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para que nenhum escape à coleta, sendo o conjunto todo amarrado pelas fitas e tendo fincado em seu centro a faca utilizada para o sacrifício. O iniciando, por sua vez e já bastante exaurido, tem o corpo circundado pelo cordão e é coberto por um novo pano branco que o encobre da cabeça aos pés. Com pólvora, o oficiante desenha no chão, no centro do salão, um símbolo cabalístico (cujo formato pode lembrar, por exemplo, simultaneamente uma cruz e um tridente, as extremidades apontadas para os principais lados opostos do pagodô), ficando todos os presentes preparados para sua ignição. Assim que a marca é acesa, um auxiliar da casa trata de levar velozmente o conjunto de objetos gastos, no qual estão concentradas as energias nocivas manejadas no ritual, para o lado de fora do terreiro para ser despachado. Precisamente ao mesmo tempo, no instante marcado pelo surgimento do clarão provocado pela pólvora, os padrinhos sem hesitar conduzem o iniciando para o quarto de reclusão, onde terá início seu resguardo. O auxiliar, retornando ao salão, é recebido com fumigação de incenso pelo oficiante, que em seguida se retira para o peji, onde o curador voltará a si. Concluído o trabalho de limpeza, uma pessoa já pode ser considerada um filho-desanto da casa de culto, e muitos dos frequentadores dos jarês, especialmente os mais ocasionais, não realizam o ritual subsequente. Aqueles que se tornam membros mais efetivos de um terreiro, contudo, continuam em sua trajetória com a realização do trabalho de batizado, nunca feito antes da realização do primeiro. Inclusive, se um iniciado deixa transcorrer um intervalo de tempo consideravelmente grande entre a realização do primeiro e do segundo, pode ser necessário realizar uma nova limpeza para torná-lo outra vez propício ao recebimento do batizado. Os trabalhos de batizado ocorrem igualmente no decorrer de uma festa de jarê, normalmente após a realização de quaisquer limpezas feitas para outros iniciandos. Da mesma forma que ocorre nestas, também são sempre realizadas pessoa a pessoa, porém têm início com o filho-de-santo dançando no centro do salão e recebendo uma de suas entidades, acompanhado como de costume por música e cantigas. Após a

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incorporação, o iniciando é levado pelos padrinhos e demais adeptos da casa até o interior do peji, onde o curador o aguarda, sendo colocado sentado diante da pia batismal. Não costuma haver espaço para todos os frequentadores acompanharem o batizado no interior do quarto de santo, ficando o restante da assistência no pagodô repetindo as cantigas rituais específicas que serão agora puxadas pelo pai-de-santo sentado ao lado do iniciando. O curador procede ao batizado retirando uma pequena mecha de cabelo do alto da cabeça do iniciando, em geral num ponto próximo ao centro da abóbada craniana, com uma faca ou tesoura específica para a tarefa220. Ato contínuo, unge a cabeça do filho-de-santo com um preparado aromático armazenado na pia batismal, aplicando-o múltiplas vezes e podendo acrescentar ao processo outros itens como talco. Na mesma substância aquosa são banhados colares multicoloridos de contas que são em seguida colocados no pescoço do iniciando221. Enquanto faz isso, o curador entoa cantigas específicas tanto para as entidades que já são próximas do seu filho-de-santo, como para aquelas cujo grau de participação ele deseja aumentar, podendo igualmente terminar a enumeração com um apelo a todos os espíritos que porventura venham a se manifestar no iniciando. Ao elencá-las, o curador costuma apontar para as diversas imagens localizadas em seu peji, simultaneamente conclamando-as a se conectar ao iniciando e indicando aos demais filhos presentes os nomes de cada uma delas – algo que os mais perceptivos costumam caracterizar como uma ação pedagógica. Algumas das imagens são também erguidas e postas em contato direto com a cabeça do iniciando, que ao longo de todo esse processo manifesta seus espíritos em rápida sucessão de acordo com as cantigas anunciadas por seu pai-de-santo. Lançando saliva em sua própria mão, o curador aplica a substância na cabeça do filho-de-santo, no local de onde o cabelo foi retirado. 220

No jarê não há prática de se raspar o couro cabeludo dos iniciados, o que consiste em outro ponto de aproximação de seu ritual com o do o candomblé dito de nação nagô de Cachoeira, para o qual a ausência da raspagem é considerada um traço distintivo de sua liturgia em relação a outros candomblés (Brazeal 2007: 82,88). 221

Ver foto 50 no anexo III.

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Após a última das entidades ter deixado o corpo do filho-de-santo, ele se recupera por alguns instantes e é levado de volta para o pagodô, onde se sentará novamente num banco ao lado do curador. Dispostos no centro do salão encontram-se alguns outros objetos rituais, o principal deles sendo um recipiente, em geral uma bacia, no qual há um preparado cuja composição, variável, normalmente conta com dendê, mel, bebidas alcoólicas e sumos de determinadas plantas. Nesse instante o curador é tomado por aquele entre seus caboclos que será o responsável pela condução da próxima parte do ritual, que envolve o sacrifício de um animal de quatro patas, via de regra um bode ou carneiro, por vezes enfeitado com fitas, trazido de fora até o centro do pagodô pelos auxiliares rituais sem estar amarrado e tendo recebido, mais cedo no mesmo dia, um cuidadoso banho ministrado pelo filho-de-santo por quem será imolado. Da mesma forma que com os galos e galinhas sacrificados no trabalho de limpeza, considera-se um bom presságio quando os animais não esperneiam, não se debatem e nem hesitam muito ao adentrar o salão, sendo particularmente fortunosas as ocasiões em que o fazem de modo praticamente espontâneo, sem que seja preciso segurá-los à força. Quando o animal entra no salão, o iniciando já se encontra novamente tomado por uma de suas entidades, sendo despejado sobre as cabeças de ambos um pouco do conteúdo do recipiente ao centro do salão. A entidade que preside o ritual procede ao sacrifício, derramando um pouco do sangue no preparado líquido e erguendo o animal, com a ajuda de outros membros da casa, sobre o iniciando, que será banhado pelo sangue remanescente na criatura, amparado por seus padrinhos e ao som continuado das cantigas apropriadas ao momento. O curador oferece então com uma pequena concha alguns goles do preparado, misturado agora com o sangue sacrificial, para que o iniciando o beba, procedendo ao desmembramento das extremidades do animal (patas, rabo e cabeça), sendo esta repousada ligeiramente sobre a cabeça do próprio

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filho-de-santo antes de ser colocada, com as outras partes, no interior do recipiente ao centro do salão222. Ao término do ritual, a carcaça do animal será separada para que sua carne seja preparada e oferecida aos frequentadores do terreiro nas refeições do dia posterior. Suas demais partes, por sua vez, servirão de alimento a algumas das entidades cultuadas na casa, depositadas em locais específicos após a “matança”, para que ali sejam consumidas pelos espíritos (seu apodrecimento sendo o sinal de que estão sendo devidamente apreciadas pelos caboclos). O iniciando é levado para o quarto de resguardo e o oficiante retorna para o peji, onde a entidade deixará o pai-de-santo. Enquanto isso, os demais membros da casa trazem bacias com terra para o centro do salão, a essa altura bastante avermelhado pelo sangue que se espalhou por sobre o otim, espalhando-a com as mãos até que ela absorva a substância e o chão comece a retornar a sua coloração terrosa habitual223. De uma pessoa que concluiu o ritual de batizado, diz-se que agora é “pronta”, ou “feita”. Ao longo do ritual, as entidades que lhe são próximas passam por um processo de cristalização – seria talvez até mais preciso dizer condensação ou sedimentação – em sua cabeça. Como afirmam, seus espíritos tornam-se mais fortes, sua vinda em seus corpos mais constante e segura, suas incorporações mais frequentes. Comparando suas experiências nos dois procedimentos iniciáticos, meus amigos diziam que, apesar de ambos serem bastante intensos, a limpeza era mais “pesada”, exigia mais deles corporalmente, enquanto o batizado era mais “tranquilo”, mesmo porque era a última etapa da iniciação. Alguns comentavam também a respeito de variações dos mesmos rituais, por exemplo aqueles feitos do lado de fora dos terreiros, em rios, quando havia indicação de que sobre o iniciando não se deveria derramar sangue sacrificial, ou aqueles nos quais se acrescentavam pequenos cortes corporais feitos nos ombros dos filhos-de-santo.

222

Maiores considerações a respeito do sacrifício ritual serão oferecidas no capítulo 4, seção 4.5.

223

Ver foto 51 no anexo III.

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Na manhã seguinte aos rituais de iniciação, tanto no caso da limpeza como no batismo, os iniciados são levados – após terem passado o restante da madrugada no quarto de reclusão –, ainda com as roupas que trajavam durante os trabalhos, até um rio próximo ao terreiro para serem banhados. Os iniciados se unem ao seu pai-de-santo em meio às águas e são mergulhados por ele sete vezes, em seguida recebendo de cada um de seus padrinhos e madrinhas de obrigação por sete vezes o conteúdo de uma bacia cheia d’água sobre a cabeça, bem como lhes são entregues seus colares, devidamente lavados. Retornam a partir daí para seus resguardos, que podem durar muitos dias, alguns passados ainda no terreiro, outros após terem retornado a suas vidas cotidianas. As proscrições do resguardo envolvem tanto as já mencionadas restrições dietéticas como outras comportamentais (no começo os recéminiciados não devendo nem mesmo ser tocados por qualquer pessoa), como evitar passar por cercas de arame farpado, não deixar a cabeça descoberta sob o sol do meio-dia, não ter relações sexuais em determinados dias da semana (mais invariavelmente nas sextas-feiras) – por muitos considerada a mais difícil de não quebrar –, algumas delas devendo ser mantidas por dias, semanas, meses, anos, ou mesmo para toda vida. As evitações prescritas no resguardo costumam todas ter o mesmo objetivo: impedir que os filhos-de-santo tenham seus corpos novamente fragilizados, abertos a influências perniciosas, sendo importantes tendo em vista a proximidade do estado de maior susceptibilidade pelo qual passaram nos trabalhos. Algumas filhas-de-santo de mais idade, que faziam rituais para se ligarem a um novo pai-desanto após o falecimento do seu, comentavam como elas não estavam sujeitas às proscrições do resguardo com a mesma intensidade dos mais jovens, que realizavam sua primeira iniciação. Nos casos em que uma pessoa já foi iniciada por um pai-de-santo que veio a perecer, uma outra etapa ritual costuma ser acrescentada, em geral no início de um trabalho de limpeza, caso ela venha a se ligar a outro terreiro, ou mesmo somente como forma de romper

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sua conexão com o falecido, num procedimento chamado “tirar a mão do morto”. Nele, o filho-de-santo é colocado, no meio do pagodô, no interior de um círculo feito por velas, pólvora e o cordão de São Francisco. O curador que realiza o ritual provoca uma incorporação no filho-de-santo e, em meio a cantigas específicas, acende o círculo de pólvora, devendo os auxiliares rituais remover o iniciando de seu centro somente após sua ignição completa, levando-o para o quarto de santo. Como de costume, seus padrinhos de obrigação permanecem ao seu lado, amparando o afilhado e simultaneamente lhe fornecendo parte de sua força pessoal para enfrentar as agruras do trabalho a ser realizado, algo que igualmente fazem nas outras ocasiões, podendo eles também manifestar alguma de suas entidades, de maneira parcial ou completa224. Os rituais iniciáticos estão entre os considerados como alguns dos mais difíceis feitos por um curador, sua capacidade de realizá-los a contento sendo sinal não só de sua habilidade litúrgica como de sua força pessoal. Conheci curadores que se esmeravam em detalhes milimétricos ao conduzir a arrumação dos itens rituais a serem usados nos trabalhos, comumente debochando, de maneira brincalhona, das dificuldades que seus auxiliares rituais – alguns deles futuros curadores em potencial – exibiam ao nunca acertarem o posicionamento adequado dos objetos. Da mesma forma, são vistas como marcas de um bom curador, por exemplo, sua capacidade de provocar a incorporação em outras pessoas, o número e qualidade das entidades próprias que é capaz de mobilizar, seu pendor para lidar com situações inesperadas e improvisar diante de circunstâncias adversas que possam surgir no decorrer dos rituais. Só depois de passados muitos meses de trabalho de campo é que pude começar a perceber detalhes rituais mais intrincados, muito em função dos comentários que meus amigos faziam quando visitavam jarês que aconteciam em casas diferentes daquelas nas quais eram iniciados. Curadores com menos habilidade, me diziam, não adaptavam o

224

Como melhor detalhado no capítulo 4, seção 4.3.

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andamento da festa às necessidades do ritual, deixavam com que a sequência de cantigas lhes escapasse (tendo por vezes que consultá-las em anotações em vez de puxá-las da memória ou improvisá-las de forma bem-sucedida). Não possuíam a destreza, especialmente a manual, para controlar os objetos a contento, por exemplo acendendo a pólvora em momento errado e causando pequenos abrasamentos, tentando rasgar panos sem sucesso, interrompendo um trabalho por não ter um objeto à mão, causando nós em fitas e cordões. Tudo se passava como se os próprios objetos se recusassem a ser manejados, o que levava meus amigos a comentarem como um bom curador não podia ser alguém “atrapalhado”. Após uma limpeza a que assistimos, comentou-se exaustivamente como fora um absurdo a filha-de-santo não ter incorporado uma única vez ao longo do ritual, chegando mesmo a falar e indicar objetos para ajudar no desenrolar do trabalho. Mais escandaloso ainda fora o fato de a própria inicianda ter assistido à matança que era realizada em seu benefício, misturando-se seu olhar no meio do fluxo das atenções que devem ser dirigidas de maneira cautelosa pelo curador nesse momento225. Como disse certa vez um filho-de-santo bastante antigo, em outra ocasião mas na mesma chave, a respeito de como sua própria iniciação havia sido correta: “Eu vi a hora em que o trabalho começou, mas não vi a hora em que terminou”. De modo parecido, um curador não deve permitir que suas entidades se incorporem nele de forma muito intensa quando realiza um trabalho, já que assim arrisca não ser capaz de controlar as demais forças envolvidas no ritual, pelo próprio excesso da força pessoal mobilizada pelo pai-de-santo – cuja entidade, nesses casos, inadequadamente manifesta-se “turrando”, ou seja, emitindo os sons graves que são mais adequados aos momentos de dança. Estar atento às críticas e comentários que frequentadores de casas de culto faziam a respeito dos líderes dos jarês (por vezes até dos seus próprios iniciadores), foi uma forma de aprender mais a respeito de detalhes muitas vezes deixados propositalmente vagos no decorrer

225

Fenômeno que será descrito de forma mais extensa no capítulo 4, seção 4.2.

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dos rituais. Como já mencionado, as pessoas ligadas ao jarê utilizam com bastante recorrência enunciados que, ao mesmo tempo em que transmitem determinadas informações, explicitam a ocultação de outras, seja por desconhecimento, seja quando se está diante de pessoas menos próximas, ou ainda mesmo quando não se deve trair um segredo do culto. Quando se escuta a descrição de uma sequência ritual posteriormente a sua realização, inúmeras vezes se ouve: “Aí, ele foi lá e fez o que tinha que fazer”, que é somente uma dessas muitas formas de dissimulação – muitas outras das quais são utilizadas, como já mencionado, ao longo do texto da tese. Esse era o caso de outros dos rituais mais importantes de serem realizados numa casa de culto: o de plantar a roça para inauguração de um terreiro e os propiciatórios executados antes da realização de cada jarê. Apesar de não ter presenciado diretamente nenhum deles, pelo que se comenta o primeiro é feito com uma série de sacrifícios às entidades principais que irão proteger o terreiro, acompanhados da entoação de rezas e cantigas específicas para o momento, bem como da instalação de um conjunto de objetos de importância ritual enterrados no centro do salão, constituindo o otim. Ao menos parte da composição desse conjunto era de conhecimento dos filhos-de-santo mais antigos do jarê, já que o espaço precisava ser periodicamente escavado para que o conjunto fosse alvo de procedimentos que renovariam a energia ali depositada – a parte principal permanecendo sempre oculta de todos, à exceção somente da pessoa de maior confiança do curador. Já os ritos propiciatórios – que pude acompanhar à distância quando eram realizados pelos chefes dos jarês, de participação estritamente masculina e reservada somente a homens já iniciados – envolvem a alimentação do povo da porta, os exus e demais espíritos que habitam tanto o caramanchão como o entorno das casas de culto, sob os auspícios dos quais toda festa é realizada. Oferendas de velas, cachaças e pratos com farinhas são nesses casos as mais comuns, às quais são acrescentadas partes dos animais sacrificados nas matanças rituais, quando acontecem.

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Os rituais de fechada e aberta de um terreiro, para interrupção de suas atividades durante a Quaresma, são bastante similares, com algumas sequências diretamente invertidas. A fechada acontece ao término do último jarê do período, acompanhada de cantigas específicas à ocasião. O chefe da casa senta-se num banco no centro do pagodô, diante do qual há uma bacia com um preparado similar ao utilizado no ritual de batismo, acrescido de uma ferramenta metálica e um ramo de folhas verdes. Diante dele, os filhos-de-santo perfilam-se e, um a um, ajoelham-se para terem seus corpos fechados de modo a desestimular a manifestação das entidades durante o período. O chefe da casa molha os dedos no preparado e pinta com ele três pequenas cruzes no corpo dos membros da casa: uma em cada pulso e outra no pescoço, na altura aproximada do pomo-de-adão226. Em seguida, o filho se abaixa, apoiando-se nos quatro membros, para receber o preparado embebido no ramo que é batido em suas costas por três vezes, bem como recebe palavras do oficiante ritual. Após o último filho-de-santo passar pelo procedimento, e recolhidos os apetrechos utilizados, os presentes recebem velas acesas e se colocam de pé no salão formando uma roda e girando em sentido anti-horário, depositando-as um de cada vez no centro do salão. Por fim, os atabaques são colocados no mesmo local e cobertos por um pano branco, fechando a casa. O ritual de aberta, por sua vez, precede o primeiro jarê que terá lugar após a Quaresma, havendo inclusive um intervalo para que os presentes tomem banhos de purificação (muitas vezes acompanhados de preparados de ervas feitos pelo curador) e se arrumem para a festa. Na aberta, todos os presentes se sentam no chão do pagodô, ao redor de uma vela acesa circundada por um colar adornado com um rabo de boi ou um chicote, um copo com cachaça e uma faca cravada verticalmente no centro do salão – de certo modo abrindo seu solo. Oferendas para as entidades podem ser dispostas tanto no meio do salão como próximo a sua porta de saída. O entorno da vela é aspergido com a bebida e com dendê, 226

Não incidentalmente, como será visto no capítulo 4, seção 4.5, locais de grande concentração da força pessoal, com potencial de sangramento profuso.

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e o chefe da casa desenha um símbolo com pólvora no chão, que será em seguida aceso. Embalados pelo toque dos atabaques já descobertos, os filhos-de-santo são conclamados a dançar em roda pelo salão, em sentido anti-horário, sendo em seguida chamados um a um para terem seus corpos abertos e, junto dos demais frequentadores, receberem a bênção do curador. Ao som de cantigas específicas para a ocasião, todos se ajoelham diante do chefe da casa, que toca as costas dos presentes com uma ferramenta ritual e declara a casa aberta, em seguida incensando o pagodô e cômodos adjacentes por inteiro. Tanto as cerimônias de fechada como as de aberta de um terreiro podem ter etapas abreviadas ou serem realizadas de forma inteiramente resumida com a entoação de algumas frases específicas pronunciadas pelo chefe da casa, quando se diz que foram procedimentos feitos somente “em palavra”, por motivos distintos (caso o chefe da casa precise se ausentar em pouco tempo ou não haja recursos para a realização de um jarê, por exemplo). Próximos das datas em questão, meus amigos sempre se indagavam a respeito dessa possibilidade, mostrando de modo incontido seu desejo de que sempre fossem feitos jarês por inteiro nessas ocasiões. Existe, por fim, uma grande quantidade de microrrituais realizados ao longo de uma cerimônia de jarê, praticamente todos podendo ser considerados variações de formas de reverência aos espíritos, intensificados seja nas festas dedicadas a entidades específicas, seja como homenagem às mais importantes de um curador, seja ainda para se aproximar ou render tributo àquelas com as quais se tem uma relação mais pessoal. Nesses momentos, as entidades manifestadas nos filhos-de-santo recebem tanto oferendas (na forma de presentes, promessas, cantigas, adoração) como pedidos (de cura, proteção, alteração da sorte). Praticamente todas as entidades podem aproveitar essas oportunidades não só para dançar e, muito ocasionalmente, beber, como para transmitir mensagens tanto para os demais presentes como para o próprio carnal em que habita, e oferecer tanto conselhos como bênçãos. Similarmente, os mesmos presentes que são entregues às entidades incorporadas (como vestimentas,

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perfumes, frutas, bebidas) podem ser oferecidos em outros momentos nos demais locais em que elas habitam, como o peji, o caramanchão e as matas. Muitos dos procedimentos realizados nos rituais do jarê, somados a outros percebidos no convívio cotidiano com os habitantes de Lençóis e detalhados no capítulo anterior227, evidenciam uma série de disposições em relação ao chão e à terra que seria possível caracterizar como parte de uma metafísica telúrica228 que – se não é de modo algum, no universo das tradições de matriz africana no Brasil, exclusiva ao jarê – encontra na Chapada Diamantina um solo particularmente apropriado para elaboração. O telurismo místico do jarê pode ser de saída entrevisto na ação das entidades mais velhas, explicitamente ligadas à terra, como Nanã Borocô e Abaluaê, que quando incorporam imediatamente caem prostrados ao chão. É costume, quando se começar a cantar para esses espíritos, que todos os frequentadores de jarê levem ao menos os dedos de uma das mãos ao chão, mantendo contato com o solo. Quando chegam no pagodô, essas entidades se dirigem, engatinhando, até próximo dos atabaques, despejando-se diante delas água e dendê, que misturam com a terra batida que constitui o chão do salão, dando origem a uma lama que as próprias entidades manejam e espalham sobre seus corpos, especialmente nas costas das mãos e braços. Esse fenômeno amplia um que é minimamente reproduzido ao longo de todo jarê, quando a dança dos presentes descalços no chão de terra às vezes molhado (por água ou suor) o desgasta parcialmente, havendo cuidado para mantê-lo seco para evitar derrapagens. Assim como o derretimento progressivo das velas – objetos eminentemente verticais que parecem se tornar cada vez mais próximos do chão, sendo tragados por ele – transmite a ideia da permeabilidade do solo, muitas das substâncias utilizadas e produzidas nos rituais terminam sendo vertidas 227 228

No capítulo 1, seção 1.3.

O termo é aqui proposto como uma forma de transformar o uso que um dos principais cronistas da região faz da expressão “democracia telúrica” (Moraes 1983: 19). Por mais que minha descrição enfatize os aspectos cosmológicos do termo, esse telurismo pode muitas vezes se conectar com uma questão literalmente fundiária, como a que foi vivida pelos habitantes de Nova Redenção (Rabelo 1990: 129).

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sobre a terra do pagodô e a ela assimiladas, sobretudo o sangue mas igualmente o dendê, a aguardente, o mel, a água, o suor. A energia mobilizada nos e pelos rituais, que simultaneamente se constitui de e é transmitida por essas diversas substâncias229, penetra no solo da casa de culto e passa a fazer parte dele, sendo continuamente revolvida e readministrada por e em outras ações rituais, como no exemplo da lama230. Do mesmo modo, os filhos-de-santo jamais permanecem calçados depois de serem tomados por qualquer de suas entidades, por mais que as mulheres muitas vezes prefiram vir com calçados bastante ornamentados para a festa. Ao contrário dos sapatos fechados e dos tênis, as sandálias podem ser facilmente retiradas pelos demais filhos-de-santo quando se processa uma incorporação em um de seus irmãos, amigos ou afilhados. Meus amigos comentavam como se tratava de um sinal certeiro de falsa manifestação caso uma pessoa dançasse sem se incomodar em permanecer calçada, já que os espíritos incorporados se recusavam a dar qualquer passo caso seus pés não estivessem em contato direto com o solo231. Certa vez, falando a respeito da grande força possuída por um curador, bem como elogiando sua habilidade litúrgica, uma amiga exclamou simplesmente: “Ah, esse pisa no chão!” Existem mesmo momentos, observados com bastante gosto e atenção, em que as entidades incorporadas num jarê abandonam momentaneamente sua conexão com o solo, ou fazem com que outras pessoas a percam. Ainda que geralmente sua coreografia seja executada quase que exclusivamente bastante próxima do chão, alguns homens em particular, quando manifestando seus espíritos, acrescentam a ela pequenos saltos, por vezes tirando ambos os

229

Como será melhor detalhado posteriormente, no capítulo 4, seção 4.4.

230

Ver foto 52 no anexo III.

231

Por sugestão de Elias, depois de algum tempo abandonei por completo o uso dos tênis que ainda mantinha nas caminhadas para os jarês. Ele me disse que ficar descalço era uma forma importante de poder estar em contato com o “abajé”, o axé da terra que é, por excelência, feminino. Quando conversávamos sobre o assunto, ele confirmou a suspeita de que a conexão privilegiada das mulheres com a força do solo tinha ligação tanto com o fato de possuírem vagina, por esta constituir um receptáculo com abertura voltada para o chão, como por menstruarem. Essas considerações receberão tratamento mais detalhado nos capítulos 3 e 4, seções 3.2 e 4.5.

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pés do chão ao mesmo tempo em que dobram os joelhos. Esses passos são recebidos pela assistência com bastante alegria, considerados divertidos e belos. Imagino que essa avaliação se deva também ao risco que se aceita correr, não só de cair como de abandonar o chão por alguns instantes. De modo similar, uma saudação feita com muito gosto por determinados caboclos envolve tirar uma pessoa do chão com um forte abraço, dobrando o próprio corpo para trás enquanto a levanta, em geral reservada a crianças mas não limitada a elas. Os adeptos do jarê comentam que essa é uma forma de transmitir saúde à pessoa cumprimentada, me parecendo enfatizar uma determinada possibilidade de canalização que ocorre quando o seu próprio contato com o chão passa a depender de, e ser feito por, uma entidade. Numa inversão dessa configuração, lembram que se deve evitar pular por cima de uma pessoa qualquer quando esta se encontra deitada no chão, especialmente no período do resguardo, sob pena de abrir o corpo dela a influências danosas. Já se mencionou como os filhos-de-santo devem ficar em contato direto com o solo após a realização das iniciações232. O mesmo é igualmente importante antes e durante o próprio processo ritual. Em determinada ocasião, um senhor de idade avançada havia pedido para permanecer com os pés protegidos ao longo do dia em que seu trabalho seria realizado, já que sem os calçados ele caminhava com dificuldade, solicitação negada por seu curador, que lhe falou explicitamente sobre a importância de pisar descalço no chão e de repousar sentido seu corpo sobre a terra. Um amigo que auxiliara nesse ritual comentou como o pai-de-santo lhe havia instruído a não carregar para o interior do salão os animais a serem sacrificados, especialmente bodes a carneiros, conduzindo-os, ao contrário, com suas patas sempre tocando o chão, tanto nessa como nas demais ocasiões rituais da casa. A maior parte das entidades incorporadas sempre solicita que objetos a serem utilizados no ritual ou presentes que se lhes esteja ofertando sejam erguidos do chão e entregues em suas mãos, as mesmas nunca se 232

Em outra tradição de matriz africana, das casas de religião da cidade de Pelotas, o próprio processo iniciático pode ser chamado literalmente de “ir ao chão” (Barbosa Neto 2012: 88, 105, 224).

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abaixando para pegar nada. Além disso, todo filho-de-santo aprende rapidamente que, ao fazê-lo, deve antes e de modo bastante ligeiro retornar o objeto em questão para o solo por duas vezes, para só na terceira levantada entregá-lo ao caboclo, como numa espécie de pedido de licença à terra. A prática me deu a nítida impressão de que, ao levantar e retornar o item por algumas vezes apenas poucos centímetros do solo e de forma breve, tudo se passa como se parte da energia contida no local, da força da qual aquele objeto é depositário e transmissor, se desgrudasse do chão nesse momento, esparramando-se ao contrário e se concentrando no artefato. As considerações que ofereço a respeito dessa metafísica telúrica foram tecidas dando ouvidos a uma pessoa em especial, uma das grandes sábias de Lençóis cuja apresentação marcará o fim desse capítulo. Amplamente conhecida na cidade como Valdelice de Caxixão, em função do apelido de seu marido, habituei-me a chamá-la simplesmente de Dona Valdelice233. Dona Valdelice se dizia, ela mesma, uma pessoa muito cismada e desbocada, sendo tão temida quanto adorada pelos lençoenses. Autora de bordões célebres reproduzidos com gosto pelos habitantes da cidade (alguns dos quais mencionados anteriormente), Dona Valdelice me disse mais de uma vez, quando falava a respeito da configuração das potências do mundo com as quais os seres precisavam se haver, que pessoa alguma devia imaginar que era menos importante que outra, completando: “Grande mesmo, nesse mundo, só três coisas: Deus, a morte, e a terra”. Dona Valdelice passava seus dias habitualmente sentada em dois ou três lugares pela cidade, acompanhando a vida de seus amigos, vizinhos, e familiares, especialmente os inúmeros afilhados, que a interpelavam com contínuos pedidos de bênção. Gostava mesmo, contudo, era de fazer longas caminhadas pelas cercanias da cidade, acompanhada de alguma de suas amigas, relembrando os trajetos nos quais, e os tempos em

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Também me referia a ela como Valdelice do Alto da Estrela quando, geralmente em conversa com Elias, seu bom amigo, não queria dar margem a confundi-la com Valdelice do Baixio, dona da já mencionada casa de jarê no caminho para o Palácio de Ogum.

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que, cortava e vendia lenha para sustentar sua família, atividade que tivera feito praticamente sozinha e que lhe dava muito orgulho. Eu e Elias por vezes nos oferecíamos para acompanhálas nesses passeios, cujo número havia diminuído nos últimos tempos mas que continuavam a lhe dar grande satisfação. Antes de empreender uma dessas saídas mais longas, rogava a Deus e aos caboclos por um clima favorável, e nos oferecia incenso, esquentado com brasa de seu fogão a lenha, para que saíssemos cedo com o corpo protegido. Dona Valdelice aproveitava as caminhadas pelas serras do entorno de Lençóis também para recolher plantas com usos variados, ensinando a Elias, que já as conhecia mais razoavelmente, seus nomes, aplicações e formas de uso, em geral na forma de chás ou remédios após acréscimo de alguma bebida, bem como xaropes caseiros como um que me auxiliou a enfrentar o inverno da Chapada. Grande conhecedora de rezas contra ofensa de cobra e cortes de todo tipo, Dona Valdelice era grande amiga da tia de Elias, tendo esta falecido nos braços da primeira. Seu conhecimento dos meandros do jarê era também sem par, mesmo tendo deixado de frequentar o Palácio de Ogum há aproximados 30 anos, antes ainda do falecimento do curador que o inaugurou e de quem era grande amiga e comadre, já que havia lhe dado uma de suas filhas para batizar na igreja, episódio ao qual já aludi. A aproximação entre os dois não deve ter sido fortuita, contudo: desde criança, dizia-se que ela era detentora de uma força pessoal inigualável, razão pela qual, seu grande amigo e curador lhe diria, jamais poderia ser iniciada234. Isso que não significava, contudo, que ela não pudesse manifestar entidades e frequentar jarês, o que fazia com muito gosto, sendo inclusive convidada para realizar tarefas rituais na casa de seu compadre, que lhe afirmava explicitamente que o poder de sua casa crescia em função da mera presença de Dona Valdelice nas festas: “Quem faz graça, merece graça”, afirmava ela, em mais de um sentido.

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Retornarei a esse paradoxo aparente a seguir e também no capítulo 4, na seção 4.4.

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Muitas das pessoas que frequentavam os jarês de hoje em dia lembram-se da época em que Dona Valdelice ia ao Palácio de Ogum, suas entidades merecendo saudações rituais que levavam mesmo os que hoje são os mais fortes filhos-de-santo a se portarem de forma humilde. Dona Valdelice conhecia segredos da mata e auxiliava curadores com quem simpatizava em suas obrigações, chegando a ser por muito tempo a única pessoa a quem o chefe do Palácio de Ogum confiava a renovação dos três objetos sagrados, que ela chamava de a “ciência” da casa, centrais à composição do otim. O mais importante deles, provavelmente trazido de Cachoeira ainda pelas nagôs, ela dizia, era um objeto que se movia como se possuísse vida própria, e que fazia com que ela avistasse luzes coloridas ao ser lavado no rio próximo ao terreiro. Elias, que já ouvira muitas descrições de antigos filhos da Capivara do item que tornava a ser enterrado a cada vez no centro do salão, o apelidara de “aborto”, já que devia ser um pedaço de carne detentor de algum movimento próprio, dizia. O objeto fora removido do local em definitivo pelo curador do Palácio, que dele deu cabo antes de falecer: “Tudo tem seu fim”, afirmava, triste, porém resoluta, Dona Valdelice. Tudo tem seu fim, inclusive os jarês, dava a entender. Em nossas caminhadas, por vezes Dona Valdelice fazia uma pausa repentina e depois nos explicava que, naquele instante, ou naquele local em outra oportunidade numa caminhada anterior, tinha avistado um espírito. Suas visões, que tinham lugar em sua mente, ela explicava, eram mais frequentes quando estava próxima de algum marco no qual havia acontecido muito sofrimento ou mesmo mortes, como uma antiga senzala na qual escravos foram torturados, ou o Campo da Batalha, terreno no qual foram travados alguns dos combates no cerco que no passado se fez à cidade de Lençóis. Em ocasiões particularmente dramáticas, ela dizia, chegava a ouvir gritos, tiros e o galope de cavalos, estando ciente de que vivenciava no presente, de maneira parcial, eventos que tinham deixado como que impressas no território as marcas que via como espíritos – pessoas exatamente como nós, com a sutil

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diferença de que, por poucos centímetros, seus pés nunca tocavam o chão. Junto dos espíritos de pessoas falecidas, dizia Dona Valdelice, ela via também espíritos que eram as entidades cultuadas no jarê, da mesma forma como as vira quando da morte da tia de Elias. Seres trajando roupas em geral brancas ou verdes, esses outros espíritos podiam ser vistos por pessoas com determinado dom (como era, em menor grau, o caso de Elias, ela acrescentava), por ela possuído desde o nascimento. A forma como ela o justificava – bem como o motivo de possuir sua considerável força pessoal – era ainda mais significativa quando lembro que nela faz uso de um nome igualmente dado a qualquer entidade do jarê: “Sou igual a um caboclo. Tenho capacidade”. Sua afirmação certamente ia além de seu temperamento e de sua compleição, reconhecida como de descendente indígena, mas sem deixar de passar por ambos235. O grande curador, seu compadre, de todo modo já a prevenira: ela havia nascido feita.

235

Ver fotos 53 e 54 no anexo III.

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Capítulo 3 – Tombar

Sou eu, pai Ogum Sou filho que não tem medo Eu não tropeço no caminho E também não escorrego no lajedo

3.1 Associações

“Não chorem, meus filhos, pois eu sou a rainha da morte”. Essas estiveram entre as últimas palavras ouvidas por aqueles que acompanharam os instantes derradeiros de um dos maiores pais-de-santo que já houve na Chapada Diamantina, o já mencionado Pedro de Laura, chefe do terreiro nomeado Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, presenciadas tanto por muitos de seus iniciados como por seu único filho, Sandoval, que veio a se tornar um de meus grandes amigos em Lençóis. À época em que cheguei à cidade ele contava 33 anos, tendo sido adotado por Pedro e criado por ele e por Dona Laura, mãe deste, desde bastante novo. Sandoval dizia que hoje ele era uma pessoa muito diferente do jovem tímido e reservado que fora quando mais novo, já tendo também agora alguns filhos (incluindo uma menina chamada Laura, em homenagem à avó de criação), tanto de sua esposa atual como de um relacionamento anterior. Apesar de trabalhar há algum tempo como preparador de drinques num dos hotéis da cidade, Sandoval dedicava grande parte de seu tempo ao legado deixado por seu pai que, no leito de morte, pediu aos presentes que não deixassem a casa da Capivara ruir, continuando a realizar suas principais festas anuais, dedicadas a Oxalá e a Iansã, sendo essa última uma das mais reconhecidas entidades do curador, e autora da frase que abre esse capítulo.

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Diferentemente do que acontece com a maior parte dos frequentadores dos jarês, que recebem caboclos, Sandoval jamais manifesta entidades, exceção que, de toda forma, ocorre mais comumente com homens, em especial os mais jovens e que não passaram por nenhuma iniciação. Esse era seu caso também porque um curador não pode fazer trabalhos de limpeza ou batizado para seus próprios filhos carnais, modo como Sandoval sempre foi considerado por Pedro. Sendo seu último familiar em Lençóis, Sandoval tornou-se herdeiro dos bens materiais deixados por Pedro de Laura, que incluíam o terreno e a casa da Capivara. Assim como os filhos-de-santo remanescentes, ele próprio reconhece que seu pai nunca deixou apontada uma pessoa como seu sucessor espiritual para liderar o Palácio de Ogum, o pedido para que a mantivessem viva, em funcionamento, tendo sido feito a todos conjuntamente. Passados alguns anos, após ter ficado fechada para um período de luto e ter sido reaberta experimentalmente, a casa de culto que é hoje a mais importante da Chapada Diamantina prosseguia sua existência tendo, à época em que cheguei a Lençóis, como curador Pai Mussum, auxiliado pela tia de Sandoval, mãe-pequena do Palácio e irmã de sua mãe biológica. O próprio Sandoval continuava a ser um dos principais promotores das festas da Capivara, sendo o maior responsável pela organização logística dos eventos – os três, em geral e conjuntamente, dividindo entre si a maior parte dos custos financeiros envolvidos na realização dos jarês. Apesar de já tê-lo visto algumas vezes, Sandoval me foi formalmente apresentado durante a comemoração posterior à apresentação da quadrilha Bicho-do-Mato, da qual ele era integrante havia muitos anos. Contente em poder conversar num momento de maior descontração com meus colegas, que indagavam afinal de contas o que eu tinha vindo fazer em Lençóis, nesse momento eu lhes disse, provavelmente pela primeira vez de maneira mais direta, que gostaria de conhecer mais a respeito do jarê, para realização de uma pesquisa acadêmica. Fui quase que imediatamente direcionado a Sandoval, que todos os demais

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indicavam ser o filho do maior curador que a região teve nos últimos tempos, o renomado Pedro de Laura. A Sandoval pareceu difícil esconder um pouco de orgulho, especialmente quando ele disse que era o idealizador e atual presidente da Associação do jarê da cidade. De modo a promover a união dos filhos da Capivara entre si, entre os quais houve relativa dispersão até que as atividades do Palácio de Ogum fossem adequadamente retomadas, Sandoval liderou a criação, no ano de 2005, de uma associação que congregasse tanto os antigos frequentadores do terreiro como as novas pessoas que se aproximavam da casa, como eu ficaria sabendo posteriormente236. Muitos dos habitantes de Lençóis costumam reconhecer em si mesmos uma propensão ao associativismo, inclinação cujo surgimento atribuem à necessidade de se agruparem diante de momentos difíceis em sua história, em geral citando as grandes enchentes que muitas vezes devastavam a cidade, os períodos de seca, fome e alastramento de doenças que caminhavam conjuntamente, bem como as épocas nas quais o diamante escasseava, resultando em diversas sociedades de beneficência e socorro mútuo237. O caráter desse tipo de associação continua muito similar mesmo em muitas das novas organizações que não são diretamente ligadas ao trabalho, como o caso da Associação do jarê, que em seu estatuto prevê, por exemplo e entre outras atividades, o amparo a membros adoentados. A associação mais famosa e mais antiga ainda existente nos dias de hoje na cidade é a Sociedade União dos Mineiros (SUM), cuja fundação data da década de 1920, dedicada no presente majoritariamente à defesa dos direitos dos garimpeiros já aposentados mas tendo também grande influência na organização de eventos públicos em Lençóis. Como era de se esperar, nos últimos anos vem crescendo em importância a associação equivalente na qual se reúnem os guias de turismo da cidade, a

236 237

Ver fotos 55 e 56 no anexo III.

Há registros de associações praticamente desde a fundação da cidade de Lençóis, bem como de sua importância ao longo do tempo até os dias de hoje (Moraes 1963: 106; Senna 1996: 91; Ganem 2001: 19, 50; Araújo 2002: 179; O. Senna 2002: 12).

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Associação de Condutores de Visitantes de Lençóis (ACVL)238. Há conjuntos de pessoas dedicadas a uma atividade que desejam fundar associações, como o caso dos organizadores atuais da marujada, bem como outros que, por motivos diversos, não veem necessidade ou preferem passar longe de qualquer formalização de suas atividades, como os membros do reisado local, das quadrilhas, de outras casas de culto de jarê. Muitos dos homens que trabalham como guias na cidade consideram que as taxas de associação e participação não justificam seu credenciamento junto à ACVL, preferindo trabalhar de modo autônomo. Toda associação costuma ser conhecida pela figura de seu presidente, e estes estão rotineiramente atarefados não só com a organização das associações de que fazem parte como com a participação em inúmeras reuniões promovidas pelo poder público, às quais são frequentemente convidados a comparecer enquanto “representantes da sociedade civil”. Uma das principais razões que levou à configuração atual das associações de Lençóis tem a ver com um dos objetivos primários dessa forma de organização, na visão de seus presidentes: a concorrência em editais públicos de financiamento. Os presidentes das associações comentam como se organizar em uma associação é não só uma exigência governamental como também uma forma de se fortalecer diante do poder público, apresentando-se de forma unida em torno de uma causa. Em determinada ocasião, na qual alguns desses presidentes encontravam-se reunidos, um deles chegou a esboçar a ideia de que poderia ser criada mesmo uma associação das associações de Lençóis, para que suas demandas fossem consideradas conjuntamente, apesar de não ter obtido grande apoio para essa possível iniciativa – talvez, inclusive, por ser o presidente de uma das associações que, pela natureza mesma de sua atividade, os demais consideravam ter poucas chances de angariar financiamentos. 238

Outras organizações comunitárias anteriormente mencionadas também constituem associações devidamente registradas, como o Movimento Avante Lençóis, atuante na capacitação dos moradores do Tomba, a Casa Grande e a Academia de Capoeira Corda Bamba, voltadas à educação de crianças no Alto da Estrela, o Grãos de Luz e Griô, centrada na promoção da cultura, arte e pedagogia locais, o Grupo Ambientalista de Lençóis (GAL), promovendo a proteção e educação ecológicas, e a Filarmônica Lira Popular de Lençóis, responsável pela manutenção da orquestra.

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Por meio da Associação dos Filhos-de-Santo do Palácio de Ogum e Caboclo SeteSerra, como é o nome formal da agremiação, Sandoval buscava manter unidos os adeptos da Capivara que haviam sido reunidos por seu pai, bem como promover o jarê de maneira geral na cidade de Lençóis e alhures, para cumprir a tarefa que Pedro de Laura deixara aos seus. Se é verdade que a aproximação entre Sandoval e outras pessoas interessadas no jarê que vinham para a região por qualquer período de tempo, como era o meu caso, era também uma forma de ele buscar fortalecer o culto – que se encontrava relativamente combalido desde o falecimento de seu pai –, este se mostrava um expediente explicitamente subordinado à manutenção do legado espiritual do Palácio de Ogum, como ele próprio viria a me dizer. Sem ser um possuidor aparente da capacidade mística que permite entrar em contato mais direto com as entidades do jarê, e sem ter tido desejo de se tornar um líder religioso para que viesse a desenvolvê-la, Sandoval afirmava que empreendia a luta para valorização do jarê – e do Palácio de Ogum, em particular – da melhor forma que lhe era disponível, ou seja, como herdeiro material de Pedro de Laura e presidente da associação de seus filhos-de-santo, função que ocupava também por haver tido como concluir seus estudos, como afirmava com orgulho, formando-se no Ensino Médio de Lençóis239. Sandoval cuidava com bastante zelo da logística envolvida na realização das festas na Capivara, ocupando-se não só de grande parte da compra de gêneros alimentícios e objetos necessários às cerimônias, como da arrecadação de contribuições dos filhos-de-santo e doações dos amigos da casa, fazendo uso de um conjunto de relações estabelecidas seja por já ter trabalhado em diversos locais na cidade, seja por ser presidente de uma das associações de Lençóis, seja ainda por meio da manutenção das conexões cultivadas em função da memória de seu pai. Tão importante quanto essas funções era a questão do transporte dos objetos e 239

Nosso amigo em comum Elias veio a se tornar presidente da Associação ao final de meu trabalho de campo, numa articulação promovida, entre outros, por Sandoval, já que o próprio não poderia concorrer a mais uma reeleição, de acordo com os termos do estatuto. Após o término do mandato de Elias – que ambos consideraram não ter sido experiência das mais afortunadas –, Sandoval retornou à presidência da Associação.

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pessoas até a casa de jarê, provavelmente a mais distante da sede do município ainda frequentada com regularidade por seus moradores. Sandoval se encarregava de convidar os habitantes da cidade para as festas, divulgando-as de casa em casa e buscando formas de garantir que os filhos-de-santo mais antigos pudessem continuar a frequentar a Capivara. Normalmente o caminho até a casa de culto tinha de ser transcorrido a pé, num trajeto inclusive intransponível para carros de passeio por se tratar de estrada bastante acidentada e haver necessidade de

cruzar rios cuja intensidade da correnteza podia variar

consideravelmente. Quando possível, os líderes do Palácio de Ogum fretavam transporte para as pesadas cargas necessárias à realização dos festejos, feito por caminhonetes cuja tração era capaz de vencer as agruras do trajeto – e no interior das quais se costumava reservar lugar para que os filhos-de-santo mais antigos não precisassem vencer a pé um caminho que fariam em não menos de quatro horas de caminhada caso tivessem de andar. Por sua vez, os chefes de casas de jarê um pouco menos distantes, mas ainda longe da sede, costumavam contratar os serviços de mototáxis ou mesmo jovens com carrinhos de mão para levarem para as festas comida, bebida ou – excepcionalmente, no caso dos últimos – pessoas240. Sandoval contava que muito do que por vezes era feito hoje em dia se tratava de transformações acarretadas pela necessidade de manter o culto vivo diante de um cenário bastante peculiar não só na cidade de Lençóis como no interior do próprio Palácio de Ogum. Concessões como participar de eventos públicos a pedido da prefeitura, incentivar a visita de turistas para conhecer o cotidiano do jarê, fazer apresentações de música e dança, eram experiências que, se no passado talvez não fossem vistas com bons olhos, configuravam-se na contemporaneidade como modos de revitalizar o culto – acabando por simultaneamente permitir uma maior aproximação de pesquisadores diversos, nos quais eu me incluía, dos meandros de seu cotidiano. Elias, defensor contumaz de uma determinada concepção de 240

Os preços pagos pelos serviços costumavam ser de até R$ 5,00 para carrinhos de mão, R$ 15,00 para motocicletas, e R$ 100,00 para caminhonetes, por viagem.

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tradição do jarê, e verbalizando a posição de muitos dos filhos-de-santo mais antigos da casa, costumava lembrar a Sandoval que era importante distinguir, ao menos no interior dessas iniciativas, aquelas que poderiam acabar comprometendo a integridade do legado das casas – via de regra por estarem mais interessadas em promover a si mesmas do que se colocar a serviço dos próprios jarês. Os dois se lembravam de um projeto em especial, promovido por uma organização não governamental em parceria com o Grãos de Luz e Griô, que por um período realizou excursões de turismo comunitário que incluíam uma visita ao Palácio de Ogum. Apesar de ter gerado alguma renda para a casa da Capivara, desentendimentos entre as associações envolvidas em pouco tempo levaram à interrupção da iniciativa. Depois de divulgados os trâmites e consequências do processo, enquanto alguns dos líderes de jarê de Lençóis ainda mantiveram ligações com o Grãos, outros se afastaram definitivamente, dando razão àqueles que, por sua vez e por diversos motivos, sempre haviam mantido distância dele. Em certa ocasião, Elias comentou comigo como sua reserva em relação ao que ele chamava de “espetacularização” do jarê promovida por associações como o Grãos tinha muito a ver com a autopromoção da instituição e consequente falta de reconhecimento do protagonismo dos próprios adeptos do culto, em especial quando insistiam no discurso do resgate cultural: “Resgate, resgate... Falam tanto em resgate que parece até que estamos todos morrendo afogados”, comentava ele com seu sarcasmo habitual. Da forma como lhe era possível, contudo, Sandoval continuava a buscar meios de fazer parte do circuito de editais de incentivo à cultura para os quais ele via associações como o Grãos, que tinham experiência prévia com – e pessoal dedicado à – elaboração de projetos, serem selecionadas241. Paralelamente, a Associação do jarê havia iniciado junto ao Iphan um processo para tentar tombar o patrimônio material do Palácio de Ogum, medida tomada no 241

A seu pedido, eu e outras pessoas procurávamos nos inteirar a respeito de editais nos quais fosse possível inscrever a associação do Palácio de Ogum, selecionando projetos que resultassem na obtenção de recursos que lhes permitissem reformar a casa e empreender outras atividades com vistas ao desenvolvimento do jarê em Lençóis, nenhum deles tendo contudo se concretizado durante meu trabalho de campo.

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ano de 2007 no escritório regional que a instituição mantém na própria Lençóis. Junto de alguns dos filhos-de-santo da casa, Sandoval havia tido a ideia de tentar tornar a casa da Capivara um patrimônio de reconhecimento governamental, de maneira similar à que sabiam ter sido tombado o conjunto arquitetônico da cidade anos antes. O processo junto ao Iphan correu por algum tempo, tendo o Palácio de Ogum inclusive recebido visitas de técnicos responsáveis pela elaboração de um dossiê para o órgão, até ser interrompido por não ser considerado prioritário diante das demais demandas recebidas pela instituição até aquele momento242. O tratamento que o processo de tombamento recebeu até então parece ecoar o que Elias considerava funcionar para o patrimônio da própria cidade em Lençóis, segundo o qual as normas de adequação e priorização acabavam sendo aplicadas diferencialmente de acordo com a posição econômica dos proponentes, o suposto valor cultural que os bens dos interessados teriam derivando dessa243.

3.2 Resiliências

Apesar de não incorporar as entidades do jarê, a participação de Sandoval nas festas não se limitava a seu preparo, já que ele frequentemente se unia aos demais homens na percussão dos instrumentos utilizados no culto, os principais sendo os atabaques, atividade

242

Fato que só consegui descobrir em visita pessoal à 7a Superintendência Regional do Iphan, em Salvador, a pedido da Associação do jarê. Também não me foi concedido acesso ao conteúdo já produzido para o dossiê do processo, que se encontra registrado no órgão sob o número 01502/000323/2007. Os responsáveis pelo processo recomendaram que a associação buscasse, concomitantemente, o tombamento do Palácio de Ogum em nível estadual junto ao Ipac, órgão responsável pelo patrimônio artístico e cultural da Bahia. 243

Similarmente, havia já em 1994 menção a uma iniciativa de interesse local favorável à criação de um museu do jarê que tampouco saiu do papel (Senna 1996: 73, 76). O tombamento do jarê acaba dificultado por uma concepção “acrítica e limitada” a respeito do que seja um monumento, que leva a “uma paralisia dogmática”: para essa perspectiva, o valor de monumentalidade de um marco acaba equacionado a sua suntuosidade, à grandeza de suas proporções e ao valor material das matérias-primas utilizadas em sua construção, mais do que aos “processos de investimento simbólico e de instituição social dos monumentos” (Serra 2005: 201-202 nota 52).

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eminentemente masculina. Nas casas de jarê contemporâneas é comum que sejam tocados três atabaques durante as festas, sendo possível, apesar de pouco frequente, celebrá-las também com dois ou quatro. Filhos-de-santo mais antigos se recordam de já terem presenciado ocasiões no passado nas quais esse número foi bastante ampliado, chegando mesmo a nove tambores tocados simultaneamente244. Os três tambores comumente utilizados podem ser todos de tamanhos distintos ou dois similares em altura com um terceiro mais alto ou mais baixo que os dois demais. Raramente, mencionam-se para os atabaques os nomes “trongo”, “retrongo” e “tritongo”, do maior para o menor, preferindo-se chamar a todos de maneira mais indistinta de “couros”. Já de modo mais rotineiro, referem-se aos tambores pela posição que ocupam na harmonia, ficando um dos maiores (e mais graves) responsável pela “marcação” e os demais (em geral mais agudos) pelo “repique”. Os atabaques costumam ter altura variando em torno dos 90 centímetros e diâmetro por volta de 30 centímetros em sua parte mais larga. Tradicionalmente, são feitos com uma técnica que chamam de “tronco cavado”, na qual parte do tronco de uma árvore tem seu interior removido e é utilizado integralmente, a “bomba” compondo o corpo do tambor. Preferencialmente deve-se utilizar inclusive uma árvore que tenha tombado por meios naturais, aquelas que já foram atingidas por raios resultando em peças extremamente propícias à mobilização das forças do jarê. Quando troncos inteiros não se encontram disponíveis, os chefes das casas recorrem aos tambores de “barrica”, cuja bomba é formada por tábuas, vindas por vezes de muitas árvores diferentes, unidas entre si. A árvore mais comumente utilizada para a construção dos atabaques é o chamado pau-d’arco, e o couro que os recobre costuma ser de animais de caça, em geral caititus (mais rígido e pesado, como diziam) ou veados (mais leve e maleável), ainda que também tenham mencionado ser possível utilizar

244

Informação similar à registrada em estudo conduzido cerca de quatro décadas atrás (Gonçalves 1984: 135136).

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couro de bodes ou carneiros245. O couro é preso à parte superior da bomba por meio de um aro de ferro que a circunda, ao redor do qual estão presos anéis ou amarras feitos com o mesmo metal246. Desses anéis partem cordas que se entrelaçam em ziguezague por outro aro metálico de tamanho próximo ao primeiro, posicionado pouco abaixo da metade da altura da bomba. Entre esse aro inferior e a bomba, paralelamente à extensão dessa, são colocadas diversas estacas de madeira apontando para baixo, que produzem a afinação do instrumento. Quanto mais as estacas são empurradas para baixo, com um martelo ou ferramenta similar, mais o aro inferior se retesa, por sua vez levando o aro superior a apertar as laterais do couro, esticandoo. O barulho de batidas contra as estacas de madeira é rotineiro ao longo dos jarês, já que a percussão contínua faz com que o couro abandone sua tensão ideal – que varia também de acordo com cada tocador – diversas vezes noite adentro. Alternativamente, alguns tambores possuem como método de afinação o uso de parafusos e tarraxas metálicas, preterido pelos filhos-de-santo que por vezes podem nelas se cortar ao serem tomados por entidades que os levem ao chão próximo dos tambores, acontecimento bastante corriqueiro. Os atabaques podem ser adornados em ocasiões especiais, em geral com faixas de pano amarradas em seu entorno, do mesmo modo como são por vezes amarradas no torso dos filhos-de-santo manifestados durante as cerimônias. Na manhã que precede um jarê, são postos pelo chefe da casa, ou a seu mando, para tomar sol, tendo-se espalhado uma pequena quantidade de azeite de dendê sobre seu couro, com objetivo de amolecê-lo e deixá-lo propício à cerimônia. Da mesma forma, ao longo dos toques, aqueles que os percutem podem aplicar o dendê nas próprias mãos, esfregando-as uma na outra e fazendo com que fiquem ligeiramente dormentes, como dizem. Essas medidas contribuem para que o couro não 245

A remoção de árvores para se fazer atabaques se tornou um problema nos dias de hoje pelo maior número dos espécimes adequados se encontrar no interior da área do Parque Nacional, constituindo crime ambiental fiscalizado pelo Ibama, que os membros dos jarês preferem evitar. O aumento do desmatamento que rareou os exemplares mais próximos às áreas das cidades, externas ao traçado do Parque, foi outro dos motivos que parece ter levado à maior utilização das bombas de barrica, conforme explicou Ronaldo Senna (comunicação pessoal). 246

Ver fotos 57 e 58 no anexo III.

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arrisque romper ao longo do toque, algo que constitui um dos piores portentos que pode acontecer num jarê. Quando não estão sendo utilizados, os atabaques são cobertos com panos brancos, e não devem ser removidos de suas casas senão por motivos especiais e mediante entoação de rezas específicas, pronunciadas ao levantá-los do chão. Os atabaques tampouco devem ser percutidos em dias nos quais jarês não serão celebrados, chegando a haver curadores que possuem instrumentos específicos destinados a ocasiões em que participavam de algum acontecimento público (o “tambor de eventos”, como dizia Elias, algo que faria os pais-de-santo de antigamente se revirarem em seus túmulos, ele acrescentava). Outros instrumentos são geralmente utilizados no acompanhamento dos atabaques, a maioria também manejada na maior parte das vezes pelos homens, como o triângulo, o agogô e o xequerê, também chamado de afoxé, uma grande cabaça recoberta por uma malha de contas similares às utilizadas para fazer os colares dos filhos-de-santo247. Já os caxixis e cabaças pequenas que funcionam como chocalhos são percutidos de forma mais indistinta tanto por homens quanto por mulheres. Meus amigos disseram já ter visto ou ouvido falar de jarês, no passado e alhures, acompanhados por maracaxás (chocalhos cujo formato lembra um losango, conforme descreveram), ou mesmo por violas e acordeões, a presença dessas últimas uma peculiaridade do jarê do Remanso. Todos os frequentadores dos jarês também são encorajados a participar batendo palmas no ritmo dos toques, e acompanhando com breves salvas de palmas o rufar dos tambores que acontece sempre que uma entidade, em geral assim que incorpora em um dos filhos-de-santo, agradece pela “caridade” que o conjunto da assistência demonstra ao prestigiá-la. As palmas com que se acompanha o som dos atabaques costumam ser de um tipo específico, batidas com as mãos bem abertas e espalmadas uma contra a outra, favorecendo a maior área de contato possível, resultando num som bem curto,

247

Ver fotos 59 e 60 no anexo III.

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seco, mas que deve ser preferencialmente o mais intenso possível, e produzido sempre que possível próximo aos espíritos manifestados no salão. Os tocadores de atabaque podem ser chamados de alabês ou de curimbas, ou ainda simplesmente de batedores de couro. Ainda que todo homem seja um tocador em potencial, há alguns que são reconhecidamente mais aptos para a atividade, seja por dominarem os ritmos, seja por possuírem o vigor necessário para tocar por toda madrugada, seja por terem a experiência que os torna capazes de reconhecer os sinais a serem observados enquanto se está sentado ao couro – dos homens que pouco tocam, por falta de habilidade com os atabaques, diz-se que são “gagos”. Idealmente deve haver sempre mais de três batedores para que se revezem enquanto os demais descansam, sendo comum que se permaneça junto ao tambor até que se esteja praticamente esgotado – o calor dos salões e da própria ação fazendo com que prefiram tocar sem camisas, que de outro modo podem ficar encharcadas pela transpiração. Os batedores exibem uma aura característica ao tocar, não só de cansaço como de grande satisfação, divertindo-se enormemente no andamento das festas. Os demais membros das casas de culto gostam de comentar a respeito dos maneirismos tanto comuns aos tocadores (como gestos específicos, viradas de cabeça, expressões faciais) como aqueles pelos quais distinguem uns dos outros, em especial sutilezas nos toques produzidos por cada um. Mais de uma vez, enquanto conversávamos em um outro cômodo, os presentes identificavam quais batedores estavam, naquele instante, sentados ao couro no salão ao lado somente por suas batidas, estas sendo por vezes atribuídas ao formato de suas mãos, aos tocadores que lhes ensinaram a bater, ou mesmo a suas personalidades, gerando estilos pessoais de toque. Sandoval reconhecia não ser dos melhores batedores, como era o caso por exemplo dos seus dois irmãos mais novos que, diferentemente dele, haviam sido criados por sua mãe biológica, e que também se tornaram meus bons amigos. Os irmãos de Sandoval encontravam-se entre os tocadores mais requisitados dos jarês da cidade, principalmente por

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não se cansarem facilmente e serem capazes de bater os atabaques por horas a fio, “segurando o couro”, como se diz – especialmente nos momentos em que há entidades dançando no salão ou em vias de se manifestar nos filhos-de-santo, quando a música deve ser contínua. Lembrando-se de quando era moço, um senhor considerado dos maiores batedores de Lençóis contava como ficava depois de passar a madrugada inteira no couro: “Nunca senti tanto tempo caminhando em mim”. Ainda que impressionassem por sua resistência à fadiga, qualidade bastante apreciada nos grandes batedores, todos afirmavam que nenhum dos jovens de hoje se igualava em capacidade técnica aos tocadores mais antigos. Os mais velhos se recordam como, no passado, as muitas entidades tinham de ser reverenciadas com toques bastante distintos, ritmos específicos que nos jarês atuais acabavam sendo pouco reproduzidos, limitados agora a algumas variações melódicas, muitas vezes somente mudanças na velocidade dos toques (como quando determinados caboclos dançavam ao som ou do couro mais solto, rápido, avexado, ou do couro mais amarrado, mais lento, caso dos espíritos mais velhos). A marca final de um grande batedor, que em geral acompanhava seu conhecimento dos diversos toques, era a capacidade de estar constantemente atento ao desenrolar do jarê, adequando seu ritmo aos acontecimentos da festa. Os tocadores de atabaque costumam se deixar mergulhar num estado de concentração próprio enquanto tocam, podendo fechar os olhos, virar as cabeças para o lado ou para cima ou dirigir seus olhares e ouvidos para seus companheiros de couro e para os instrumentos desses, entretendo-se uns aos outros numa conversa musical. Os melhores entre eles, contudo, são capazes de fazer isso sem nunca perder de vista os efeitos que os toques dos tambores têm sobre os filhos-de-santo no salão, sendo responsáveis por estimular e acompanhar as incorporações. Os batedores costumam obedecer aos sinais do chefe da casa – em geral acenos de mão, que podem ser retransmitidos pelos outros presentes para vencer a distância que os separa no interior salão ou superar a desatenção de um tocador – para dar início ou

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interromper determinadas canções, indicações que podem também ser feitas pelos demais membros e frequentadores da casa, com anuência do primeiro, ou pelas próprias entidades manifestadas. Os grandes batedores sabem, contudo, que não devem corresponder a essas orientações de maneira irrefletida, caso, por algum deslize, por exemplo, sejam feitas em meio a uma incorporação que esteja tendo início ou fim, pois esse processo bastante árduo só é propriamente levado a cabo, e de forma menos desgastante, ao som da música apropriada. Em outros momentos, tocadores e filhos-de-santo, manifestados ou não, nutrem com afinco uma agonística própria entre si. Os primeiros sentem-se realizados ao provocar, com o toque dos atabaques, incorporações nos membros dos terreiros, especialmente se um deles afirma categoricamente que suas entidades não irão se manifestar. Para citar um caso, quando uma filha-de-santo disse que seus caboclos estavam amarrados, um dos irmãos de Sandoval respondeu, ato contínuo: “Caboclo amarrado, eu desamarro”, seu chiste vindo acompanhado por duas curtas batidas no tambor. Do mesmo modo, os batedores comprazem-se em tocar de forma veloz apenas o suficiente para que um dançarino não consiga acompanhá-lo, apesar do músico acenar com a possibilidade. Os filhos-de-santo, por sua vez, orgulham-se quando se mostram capazes de dançar nesses ritmos liminares, e mais ainda quando levam os tocadores à exaustão enquanto os dançarinos encontram-se ainda de pé, ou quando os conduzem a um deslize caso acabem se atrapalhando com algum toque, mostrando-se incapazes de acompanhar a vivacidade dos movimentos no centro do salão. Em desafio, as entidades podem clamar por novos tocadores, descansados para substituir os sem vigor, ou mais habilidosos no lugar dos inaptos. Quase invariavelmente, de todo modo, essa agonística traz consigo um ar de jovialidade, tocadores e dançarinos alegrando-se com suas disputas, recheando-as com provocações e brincadeiras. Apesar de ser uma posição eminentemente masculina, também é possível que certas mulheres toquem os atabaques, havendo algumas que se notabilizam por sua habilidade, como

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era o caso da filha de um grande batedor que os irmãos de Sandoval costumavam chamar de “professora” – título que a mesma negava por dizer que não ensinava nada a ninguém. Ao afirmá-lo, essa tocadora aproximava-se ainda mais da atitude que cultivavam os grandes batedores, que diziam que, afinal de contas, saber tocar dependia menos de alguém que fosse bom em ensinar do que de alguém que soubesse aprender: a compreensão menos importante sendo a que acontece de forma explícita. As mulheres que efetivamente aprendiam e se dispunham a bater couro desde saída descobriam que não deviam fazê-lo exatamente da forma como fazem os homens, em especial no tocante à maneira como deviam aproximar os atabaques de si. Enquanto os homens os seguram entre as duas pernas, firmando-os contra o chão inclinados ligeiramente para frente, mulheres os apoiam de maneira lateral, passando ambas as pernas pelo mesmo lado do tambor (de modo similar ao que ocorre no estilo de equitação chamado “à amazona”). Um grande tocador de atabaque comentou como essa posição devia ser assumida pelas mulheres ao segurarem o couro não só por decoro como porque de outro modo exporiam o tambor a uma região perigosa, por ser canal do fluxo menstrual. Parece-me que, dessa forma, evita-se também colocar em contato mais direto duas caixas de ressonância capazes de mobilizar forças distintas e que podem entrar em conflito, como será visto posteriormente248. Seja homem ou mulher, todo batedor deve seguir determinado protocolo litúrgico ao lidar com os atabaques. Quando assume posição junto aos demais tocadores, uma pessoa deve proceder a uma ligeira persignação demonstrando deferência, ato igualmente repetido ao deixar o couro – ato que pode ser sempre abreviado ou realizado somente em pensamento, opção contudo menos frequente caso se esteja no início de um jarê. A batedora mencionada dizia como, por preferir não permanecer no atabaque durante a realização de matanças, escusava-se antes de se levantar erguendo ligeiramente o tambor do chão por três vezes, de

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Em dois momentos no capítulo 4, seções 4.4 e 4.5.

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maneira similar à referida quando um filho-de-santo retira um objeto ritual do chão durante os trabalhos, e possivelmente tendo aqui o mesmo sentido suplementar249. A função dos batedores é comumente acompanhada por algum tipo de remuneração, sendo a diretamente monetária a menos comum250. Mais costumeiramente, os tocadores recebem comida e especialmente bebida alcoólica em abundância durante as festas, sendo as doses de cachaça as mais comuns enquanto se põem a tocar madrugada adentro. Os chefes das casas de culto fazem o possível para agradar e cativar os melhores tocadores, já que deles depende em grande medida o sucesso dos festejos do jarê. Por todas essas mesmas razões, batedores costumam ser as pessoas que circulam mais livremente entre diversas casas de jarê, algo que eu, por acabar tendo me tornado amigo próximo de muitos deles, em grande medida também pude fazer. Os atabaques são bastante atrativos para crianças que frequentam as casas de culto, que se arriscam a tocá-los em determinadas ocasiões mesmo sabendo que serão em seguida admoestadas pelos adultos, que por sua vez não o fazem de imediato tanto para conferir até que ponto elas decidirão se arriscar como para lhes permitir algum treino com os instrumentos, imagino. De maneira geral, as crianças de Lençóis acostumam-se desde cedo a realizar experimentações musicais, sobretudo com percussão, que pode ser improvisada com latas, garrafas e baldes. O gosto lhes acompanha na idade adulta, os homens principalmente sendo responsáveis por animar qualquer reunião ou encontro mais festivo com alguma batucada, tanto com instrumentos musicais propriamente ditos como com caixotes ou tampos de mesa, acompanhados também por violões ou outros instrumentos de corda ou sopro, quando há presente algum membro da orquestra da cidade. Meus amigos mais ligados ao jarê,

249 250

Como visto no capítulo 2, seção 2.5.

De toda forma, meus amigos de Lençóis comentavam um pouco desejosos como batedores de um distrito próximo costumavam ser pagos em dinheiro por seus serviços nos jarês, recebendo até R$ 10,00 por noite de festa.

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em ocasiões nas quais não era possível por qualquer motivo realizar essas cerimônias, demonstravam predileção por cantoria em torno da fogueira, muitos deles exibindo conhecimento de um vasto repertório de chulas e sambas, alguns inclusive improvisados no momento, de modo similar a repentes. Já nas festas das casas de culto, alguns dos batedores diziam mesmo que só eram capazes de tocar os atabaques depois de haver ingerido alguma quantidade de bebida alcoólica, que os ajudava a acertar o ritmo. O consumo de bebidas, em especial da cachaça, mas também de vinhos, licores e cervejas, costuma ser essencial à atividade dos tocadores. Quando há bebida alcoólica suficiente, pode-se beber ao longo do dia – no caminho para e em preparação ao jarê –, mas o mais comum é que os batedores recebam do chefe da casa copos e garrafas com cachaça enquanto estão sentados ao couro. Se ela acaba, são rápidos em solicitar sua reposição, intercalando o acompanhamento dos toques bradando pedidos indiretos (“Ó o gole!”) que o dono da casa muitas vezes faz questão de ignorar, quando se mostram muito insistentes. Meus amigos comentavam explicitamente que bater os deixava “com fome”, mas que se tratava de uma fome que não podia ser saciada por comida, apenas por bebidas: mais especificamente, por “comer água”, que é, como dito, outra forma de se dizer “beber cachaça”. Comer água repunha suas forças, permitindo que continuassem a tocar, sendo essa energia, penso, a partir daí também redistribuída por meio das vibrações dos tambores para os demais presentes, notadamente para os filhos-de-santo que dançam no meio do salão e manifestam suas entidades, assim indiretamente nutridas pela cachaça, que em outras ocasiões também lhes abastece251. De forma mais direta, contudo, beber cachaça é uma atividade empreendida eminentemente pelos homens, a capacidade de suportar os efeitos álcool, ou de tentar fazê-lo, sendo considerada uma virtude específica e bastante valorizada, muitas vezes indicativa da

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Os tocadores se inserem assim nessa economia de trocas energéticas, gastando sua energia tocando, fazendo os tambores vibrarem, o que faz com que os caboclos balancem – o que por sua vez faz com que a casa como um todo pulse. Esses temas serão retomados no capítulo 4, seção 4.4.

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força pessoal que é constantemente manejada no jarê. Diversas vezes me indicaram como grandes curadores, como o pai de Sandoval, podiam beber por meses a fio sem que com isso ficassem comprometidos, abandonando o consumo de álcool e rapidamente retornando a si como se jamais tivessem bebido, e permanecendo períodos de tempo ainda maiores sem beber. Meu convívio com Sandoval e seus irmãos, bem como com outros filhos-de-santo e seus amigos, me ensinou muito a respeito do etos masculino da Chapada. Se a masculinidade dos lençoenses costuma ser explicitada a todo momento, é igualmente verdadeiro que demonstrações de imposição física e violência tampouco são indicações do comportamento que se espera de um homem – e os casos de agressão a mulheres ou crianças, se existentes, são restritos ao domínio doméstico e vistos justamente como ações de covardes, daqueles que justamente “não são homens de verdade”. Em Lençóis, os homens afirmam a própria masculinidade também com sua conduta, mas principalmente por meio de suas falas, gabando-se constantemente de suas proezas sexuais (ainda que nem sempre dando nomes aos envolvidos), tanto com mulheres quanto ocasionalmente com outros homens – desde que se certificando o falante de com esses ter assumido somente a posição ativa. Mesmo casados, supõem e esperam que a possibilidade de manter relações sexuais com outras mulheres permaneça aberta, desde que jamais deixem de fornecer o sustento para seu lar. Entre si, os homens brincam constantemente a respeito da sexualidade um do outro, colocando-a em questão por meio de piadas, jogos de palavras, e mesmo propostas para encontros na mata (tentativas que podem mesmo, por vezes, resultar em intercurso). Nessa chave, o maior elogio que se pode fazer a um homem é chamá-lo de “reprodutor”, título reservado não só àqueles que exibem uma linhagem longa como aos quais se reconhece o potencial de tê-la, e em geral reservado somente a homens de pele mais escura. De forma oposta, de um homem já casado

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que não tem filhos ou que gera apenas descendentes do sexo feminino diz-se, à boca pequena, possuir “gala rala”. Aqueles que viajam para outras cidades podem cultivar relações mais duradouras em paralelo a sua vida matrimonial, e os que conhecem capitais e outros países, especialmente, gabam-se de conquistar mulheres brancas que são sempre atraídas por sua cor. Por frequentemente também serem alvo de ações violentas racialmente motivadas, alguns homens afirmam explicitamente que devem buscar não ser (ou ao menos devem tentar não se portar como) homossexuais, posto que assim duplicariam os motivos para serem alvo de preconceito. Com exceção dos curadores, normalmente é um pouco menos comum encontrar nos jarês homens que incorporem entidades, especialmente as femininas. Elias dizia que muitos homossexuais acabavam com receio de fazer parte dos jarês para não ficarem marcados pela pecha que carregavam os assumidos, o que o levava a ter reserva quanto a alguns pais e filhos-de-santo de quem já ouvira comentários preconceituosos, já que ele mesmo considerava que um dos traços que diferenciava o jarê, como o candomblé, de outras religiões era o fato de não discriminar homossexuais em seu meio. Com isso Elias me indicava mais um motivo por meio do qual, afinal de contas, em sua visão e em muitos sentidos distintos, o jarê se tratava de um culto de resistência e luta. Uma das capacidades mais estimadas por meus amigos do jarê era o que eu chamaria de resiliência, característica fundamental para a afirmação do valor de alguém, qualidade palpável de algum modo intrínseca a determinadas pessoas, função de sua constituição, tanto física como espiritual. Não esmorecer diante do cansaço, não dormir mesmo durante cerimônias longas que varam a madrugada, manter-se firme em uma função mesmo estando com fome ou com sede, todas eram formas de se cultivar e demonstrar uma das facetas da

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força pessoal que mobiliza alguém252. A expressão mais comum utilizada para elogiar o comportamento de uma pessoa que vence esses obstáculos, mencionada anteriormente, é “jogar duro”. Pode-se jogar duro ao aguentar os passos de uma dança cansativa até o final, ao caminhar por horas a fio sem perder o ânimo, ao cantar e bater palmas de maneira vivaz por toda noite, ao acertar o ponto de uma receita difícil que outros errariam, ao não capitular diante de uma investida autoritária253. Essa tenacidade é igualmente reverenciada ao longo de todo andamento das cerimônias de jarê, nas quais os batedores são instados a não parar de tocar, continuar a “segurar o couro”, mantendo a vivacidade da festa e estimulando os filhosde-santo manifestados a se manter no centro do salão. Caminhar em direção à extenuação de todos os presentes é mesmo uma prescrição ritual, especialmente evidenciada no tratamento dado às entidades presentes quando essas anunciam sua partida. Quase sem exceção, os frequentadores dos jarês se dirigem aos espíritos incorporados pedindo-lhes que fiquem por mais tempo (ou por vezes mesmo lhes compelindo a tanto), numa série de enunciações que por vezes podem se tornar até mesmo somente protocolares, mas em geral sendo feitas com espontaneidade e regozijo: “Ainda está cedo”, “não vai embora ainda, não”, “fica mais um pouco”, “dança mais uma, caboclo”, “alguém tira outra cantiga”... Quanto mais a dança da entidade é considerada bela e traz alegria para os presentes, mais se procura fazê-la ficar, os tocadores podendo mesmo interromper com o rufar dos tambores as tentativas da própria de se despedir adequadamente, medida sem a qual não poderá deixar o corpo do filho-de-santo. Quando conversávamos sobre o assunto, um de meus amigos, requisitado batedor, em determinado momento resumiu o que considerava ser a essência do culto: “Jarê é isso. Jarê é entusiasmo”. 252

Não sucumbir diante do cansaço, mostrar-se firme e resoluto, é tão importante no jarê quanto no reisado, prática na qual são qualidades necessárias para se ser respeitado enquanto pessoa forte e que merece consideração, especialmente sendo forasteiro (Brantes 2007: 29-30). 253

A expressão parece-me também especialmente adequada para traduzir para o português, sem perder muitas de suas nuanças, o título da principal etnografia já escrita a respeito do jarê, Play and struggle (Rabelo 1990).

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3.3 Registros

Passados alguns meses do início do meu trabalho de campo, quando Sandoval, entre outros, já estava mais bem inteirado a respeito do que eu me propunha a fazer e dos possíveis frutos que teria minha estadia em Lençóis – a maior parte deles mais diretamente acadêmicos –, ele me perguntou se seria possível realizar algum tipo de registro das histórias a respeito de seu pai e do Palácio de Ogum que os filhos-de-santo mais antigos da Capivara estariam dispostos a contar, já que ele temia que após o falecimento dessas pessoas – muitas outras já tendo partido – não restaria ninguém que detivesse esse conhecimento. Depois de lhe expor que os resultados textuais da minha incursão contemplariam ao menos parcialmente essa demanda, acertei com ele que tentaria realizar também gravações audiovisuais com depoimentos dos que frequentavam a casa há mais tempo e das demais pessoas que haviam sido importantes na vida de Pedro de Laura. Com essa solicitação, Sandoval desejava expandir o material que já juntava há algum tempo a respeito da história de seu pai e da casa de culto na qual ele próprio crescera, como fotografias, cadernos de anotações e documentos diversos. Dessa forma, nos últimos três meses do trabalho de campo, realizei conversas gravadas com as pessoas que haviam sido mais próximas do pai de Sandoval, com objetivo de posteriormente disponibilizar cópias desses registros para os próprios envolvidos bem como transformá-los num documentário para a Associação do jarê. A gravação audiovisual desses momentos foi igualmente possibilitada por uma série de motivos: por ter me tornado próximo de muitos dos filhos-de-santo da Capivara, por elas serem feitas a pedido de Sandoval e da Associação, além de por contarem em sua execução com a presença quase constante de Elias, que conhecia bastante bem os envolvidos – muitos dos quais já haviam conversado com ele sobre esses mesmos assuntos diversas vezes. Elias também auxiliou na elaboração de um

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roteiro para a condução dos diálogos, modificado continuamente entre uma gravação e outra em função do acréscimo de assuntos que surgiam de forma espontânea e supressão daqueles que não despertavam grande interesse254. Outros membros da Associação se dispuseram a contribuir na gravação de cenas adicionais para a construção do documentário, aos quais aproveito para estender, junto dos já mencionados, meus agradecimentos. Envolver-se de diversas formas com a realização de filmes e documentários é uma realidade que alguns dos participantes dessas conversas e várias outras pessoas da cidade já conheciam bastante bem, Lençóis e outros locais da Chapada Diamantina já tendo sido palco da gravação de novelas e filmes, ficcionais e documentários. Em algumas dessas ocasiões, filhos-de-santo concordaram em ser filmados durante jarês ou em organizarem representações do culto que pudessem ser registradas, sempre se lembrando dos participantes que tiveram suas imagens gravadas e que podem ser vistos bem mais novos nas obras em questão255. Os registros audiovisuais feitos na região apresentam a realidade local e são motivo de grande orgulho para a população, que sabe que por meio deles seu ambiente e seus modos de vida se tornarão conhecidos até em locais muitos distantes, incluindo mesmo outros países, algo que consideram mais do que esperado por ser uma forma de disseminar em lugares longínquos a admiração que sentem pelo local onde moram – atraindo também mais visitantes para a Chapada. A participação em filmes também concedeu a alguns dos nativos que neles atuaram a possibilidade de viajar e conhecer pessoas de outros países com quem por vezes acabaram

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Foi igualmente fundamental a participação de Danilo, um jovem operador de câmera que trabalhava na Secretaria de Cultura – órgão também responsável pelo empréstimo de parte do equipamento utilizado – e que também tinha relações de parentesco com alguns dos entrevistados. Ver foto 61 no anexo III. 255

Entre algumas das produções cinematográficas realizadas na região foram lançados os filmes Diamante bruto, de Orlando Senna, em 1977; A lenda do Pai Inácio, de Pola Ribeiro, em 1987; Cascalho, de Tuna Espinheira, em 2004; Brilhante, de Conceição Senna, em 2005; Besouro, de João Daniel Tikhomiroff, em 2009. A cidade de Lençóis e sua história serviram de inspiração para a novela Pedra sobre pedra, em 1992, de autoria de Aguinaldo Silva, Ricardo Linhares e Ana Maria Moretzsohn, com parte de suas cenas gravada efetivamente na Chapada.

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estabelecendo famílias256. Alguns dos habitantes de Lençóis possuem cópias desses filmes em suas casas, que circulam para serem ocasionalmente assistidos pelos demais. De forma mais corriqueira, documentários de menor porte costumam ser vez ou outra filmados na cidade, e sua produção é encarada com desembaraço pelos habitantes. Muitos deles são realizados por alguma instituição local, seja uma associação, empresa ou a própria prefeitura, quando dispõem de equipamento e ilhas de edição, caso mais comum entre as que são Ponto de Cultura257. Os próprios envolvidos com o jarê dificilmente têm acesso direto a meios de produção audiovisual, sendo via de regra encarados somente como objeto de representação. Eu compartilhava com meus amigos do jarê algumas de minhas preocupações, às quais Elias igualmente chamava atenção, a respeito dos usos públicos que teriam as imagens obtidas junto aos filhos-de-santo, o tipo de retorno (financeiro ou de outra espécie) que os envolvidos poderiam esperar por sua participação (minimamente com a disponibilização de cópias para uso próprio), bem como o grau de decisão que teriam ou não no processo criativo – lembrando-lhes igualmente que nada isentava de saída o trabalho que eu mesmo fazia e que podia ser alvo das mesmas inquietações. De todo modo, o consentimento expresso dos envolvidos nas filmagens não deixava de lado uma atitude específica que as pessoas adotam ao saberem que estão sendo filmadas, e que não faz sentido interpretar em qualquer chave que oponha artificialidade e naturalidade258. Postura similar fazia parte dos muitos momentos em que os filhos-de-santo se deixavam fotografar pelos

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Sendo o mais emblemático o caso da protagonista do filme Diamante bruto: tendo interpretado uma personagem que se apaixona por um membro da elite branca que retorna à cidade após tê-la deixado na infância, a atriz termina realizando o sonho de se casar com um europeu, como conta no documentário Brilhante. 257

Entre os exemplos recentes encontram-se Jardim de plástico, de Delmar Araújo, em 2008, e Curandeiros do jarê, de Marcelo Abreu Góis, em 2010. 258

Aquilo que na fotografia de Pierre Verger só por vezes é possível entrever, em outras situações pode se tornar bastante explícito (Souty 2007: 69). Qualquer seja sua intensidade, essa atitude de “profilmia” pode permitir o desencadeamento de determinados acontecimentos no trabalho de campo, devendo igualmente ser integrada como mais um dos dados da observação (Opipari 2004: 23-24).

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próprios amigos ou por visitantes de suas casas – mais ainda quando pediam, eles próprios, para que fossem retratados pelas câmeras, evento recorrente. Apesar de muitos dos filhos-de-santo possuírem em suas residências fotos de cerimônias do jarê, algumas casas de culto chegando a expô-las em seus próprios salões, como já foi mencionado, a captação de imagens por visitantes é sempre uma questão inicialmente em aberto. Há chefes de casas que condicionam a participação de visitantes a não fotografarem nenhum momento da festa, outros que restringem somente alguns instantes de serem registrados. Os frequentadores mais antigos costumam comentar como no passado os grandes curadores só muito raramente permitiam que fossem tiradas fotos durante a realização dos jarês, simultaneamente afirmando que acreditam viver hoje num mundo que permite e conclama às maiores fixação e disseminação de imagens. São poucos os filhos-de-santo que possuem câmeras fotográficas digitais, apesar disso utilizadas com bastante frequência nas ocasiões festivas de suas próprias casas, seguindo a diretriz geral segundo a qual a possibilidade de se tirar fotografias depende antes de tudo da relação pessoal que se tem com os membros de uma casa de culto, especialmente com sua liderança. Nos primeiros jarês aos quais pude comparecer, fui instruído a não levar nenhum aparelho fotográfico. Posteriormente, os filhos-de-santo me indicavam locais e momentos específicos que podiam ser fotografados. O aumento do convívio, com o tempo, fez com que eu pudesse retratar praticamente qualquer ocasião pela câmera, cuja presença passou a ser, nos últimos meses do trabalho de campo, praticamente demandada em toda cerimônia, terminando por ser emprestada com regularidade aos meus amigos ligados às casas de culto para que os próprios tirassem fotografias da melhor forma que lhes aprouvesse. A progressão da permissividade para realização de registros imagéticos ocorrida com o tempo deveu-se também tanto às utilizações que teriam no futuro como à possibilidade de compartilhá-las muito imediatamente com os próprios envolvidos. Habituei-me a fazer

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compilações das fotografias que tirava durante um jarê e entregá-las gravadas em formato digital ao dono da casa em que haviam sido tiradas. Além disso, foi possível imprimir cópias das melhores fotos e entregá-las aos retratados em inúmeras ocasiões após as festas259. As visitas motivadas pela entrega das fotografias após um jarê passaram a ser rotineiras e sempre se configuravam em momentos propícios à retomada de conversas e impressões a respeito da festa, oferecidas nessas ocasiões num ambiente distinto e duplamente afastado daquele das casas de culto, tanto espacial quanto liturgicamente. Em suas próprias residências, os frequentadores que haviam sido fotografados nos jarês em geral comentavam com maior desenvoltura a respeito da cerimônia, indicando-me, por exemplo, detalhes que eu havia ignorado ou fornecendo opiniões mais pessoais acerca de procedimentos e posturas sobre os quais, por razões diversas, não haviam se pronunciado260. As fotografias também ofereciam aos filhos-de-santo a possibilidade ímpar de se verem incorporados por suas entidades, em situações que geravam reações das mais diversas, da alegria ao pesar, passando quase invariavelmente pela surpresa. Observando essas fotografias, os membros dos jarês faziam notar como seus corpos sofriam alterações visíveis quando manifestavam os espíritos, não só no semblante como em sua própria constituição: podiam se reconhecer mais fortes e robustos, mais lépidos e sinuosos, mais esplêndidos ou abomináveis, mais másculos ou delicados, de acordo com a entidade que na ocasião incorporavam. Assim como nas demais atividades da pesquisa, o estabelecimento da prática rotineira de fotografar e entregar cópias das imagens aos filhos-de-santo não se deu sem que os 259

A impressão das cópias em papel fotográfico só foi possível graças ao trabalho de Calil Neto, fotógrafo paulista que visitou a Chapada Diamantina com regularidade durante muitos anos antes de decidir morar em Lençóis, onde permaneceu por 18 anos, tendo estabelecido um laboratório na cidade. Calil é igualmente o autor de muitas das fotos que se encontram no anexo III, cultivando há algum tempo o hábito de fotografar cerimônias de jarê com a permissão dos filhos-de-santo da região com quem já firmara amizade, tendo igualmente se tornado membro da Associação do jarê. 260

De modo similar ao que ocorreu na pesquisa feita em Nova Redenção com os comentários oferecidos mediante a reprodução pela pesquisadora das gravações sonoras dos rituais que havia efetivado (Rabelo 1990: 104). O hábito de compartilhar fotografias com os retratados contribui para a geração compartilhada de um saber etnográfico (Souty 2007: 73-75, 125-126).

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envolvidos a acompanhassem e opinassem a respeito de sua condução, exercendo sobre ela determinados efeitos. A diretriz de somente entregar as fotos impressas para os próprios fotografados, por exemplo, foi elaborada após eu ter sido explicitamente indicado a não entregar imagens de determinada pessoa para outra que as havia solicitado, já que em função de desavenças passadas o objeto poderia ser utilizado para fins sinistros. Já sabedora dessa orientação, a primeira pessoa passou além disso a evitar estar posicionada próximo à segunda durante as festas, pedindo-me que evitasse os cliques nos momentos em que não fosse possível manter essa distância – como pode acontecer, por exemplo, no caso de uma saudação ritualmente prescrita. As fotografias que eu entregava podiam acabar servindo de decoração nos lares dos filhos-de-santo, acrescidas às por eles já possuídas, de todo modo sendo ciosamente vigiadas, em especial se exibiam entidades manifestadas, consideradas detentoras de uma qualidade especial ligada à própria força do espírito retratado. Observar as fotografias que podiam ser tiradas nos mais diferentes momentos, mas principalmente durante os jarês, funcionava também como um auxílio mnemônico à reconstrução dos eventos transcorridos, instrumento do qual os registros no caderno de campo puderem se beneficiar261. Ao receber as imagens, muitos dos filhos-de-santo enunciavam fórmulas de agradecimento, várias vezes querendo também se certificar, em seguida, que eu havia guardado cópias para uso em meu trabalho. Explicitamente, meus amigos contavam tanto com a prudência de não tornar públicas representações que, descontextualizadas, poderiam servir à manutenção de determinados estereótipos, como com a relevância de disseminar imagens que fortaleceriam a independência e o valor do jarê262.

261 262

Prática comum no universo das religiões de matriz africana (Souty 2007: 109, 124).

Além das imagens que se encontram no anexo III, expus algumas das fotografias que fiz em Lençóis na 27 a Reunião Brasileira de Antropologia, o conjunto tendo recebido o 1 o lugar no V Prêmio Pierre Verger de Ensaio Fotográfico, na modalidade de júri dos pares.

228

Sandoval se interessava igualmente por incentivar a elaboração de registros escritos da história do jarê, especialmente no tocante ao Palácio de Ogum. Além de guardar diversos documentos ligados de alguma maneira à existência da casa, procurava dar continuidade a uma prática à qual seu pai dera início, anotando num caderno os nomes das pessoas que visitavam o local e as que ali realizavam algum trabalho ritual, lamentando não ter encontrado os alfarrábios anteriores, possivelmente perdidos ou ocultados em poder de algum dos filhosde-santo da Capivara. Os próprios curadores da atualidade por vezes mantinham hábito parecido, além de se interessarem por todo tipo de registro que fosse feito em suas casas. Alguns deles se acostumaram a revisar as cerimônias que tinham acontecido em seus terreiros por meio principalmente das fotos e vídeos que lá eram por vezes realizados, bem como demonstrando alguma curiosidade por livros que descreviam detalhes dos jarês de antigamente. Alguns dos filhos-de-santo de quem fiquei mais próximo mencionaram também que, por não terem sido alfabetizados – “não terem letra”, como dizem –, não puderam registrar eles próprios informações preciosas em sua vivência nos cultos, lamentando notadamente o fato de não poderem ter anotado letras de cantigas que por vezes gostariam de ter mantido vivas. Comentários como esse serviram para alavancar a iniciativa, que já se esboçava, de me reunir com amigos para elaborar uma pequena coletânea com letras de cantigas de jarê. O conhecimento de cantigas usadas em situações as mais diversas é bastante difundido entre os nativos da Chapada, seja nos reisados, em brincadeiras de roda, festas com sambas e chulas, momentos de devoção a santos. Ainda que algumas das cantigas ouvidas nessas ocasiões sejam cantadas durante os jarês, existem muitas específicas a essas festividades e que nem sempre serão cantadas longe da realização de uma cerimônia ou por pessoas que não possuam conexão com uma casa de culto263. Alguns dos filhos-de-santo possuíam gravações 263

Não parece ter havido entre os garimpeiros da região o hábito de cantar canções específicas de trabalho, como os chamados “visungos” existentes no garimpo de Minas Gerais (Toledo 2001: 22-23). Um antigo garimpeiro

229

em fitas cassete feitas em jarês no passado, que guardavam com muita estima mesmo por vezes sem possuir qualquer meio de reproduzi-las. Sandoval havia certa vez mobilizado a Associação da Capivara para registrar cantigas de jarê, resultando em um disco compacto gravado em ótima qualidade264. Apesar de eu ter utilizado um gravador digital para gravar o ambiente sonoro ao longo de uma ou outra festa, com consentimento de seus frequentadores, a elaboração da coletânea de letras das cantigas de jarê foi um trabalho conjunto realizado durante algumas semanas junto com os filhos-de-santo. Além de Elias, outros de meus amigos mais próximos contribuíram com as letras para uma primeira versão, que foi em seguida impressa e levada para os chefes das casas para que conferissem sua correção e indicassem acréscimos (ou supressões) desejados. De modo a delimitar o escopo da coletânea, que de outro modo poderia se estender ainda mais, optou-se por imaginar uma sequência de cantigas que seria ouvida num dos festejos anuais do Palácio de Ogum, eventualmente somadas a outras de interesse dos que auxiliaram na empreitada. Ficaram de fora, propositalmente, cantigas das cerimônias de aberta e fechada da casa, bem como o dorosã, cantiga própria da Capivara265. Por vezes também os filhos-de-santo escrevem cantigas quando querem se lembrar de suas letras ou transmiti-las a outrem, ainda que elas não sejam cantadas displicentemente. Mesmo fora de ocasiões rituais, as cantigas raramente são enunciadas sem que sejam cantadas, e na íntegra, o que inclui repeti-las algumas vezes, do mesmo modo como se faz

bastante ligado ao jarê contou-me certa vez, depois de já termos nos tornado próximos, a respeito de um episódio no qual ele e outros amigos chamaram, não intencionalmente, um encantado para uma frente de trabalho ao cantarem cantigas de jarê de modo displicente. A entidade foi devidamente apaziguada, perdoou-os pela indiscrição e terminou por lhes indicar que em pouco tempo encontrariam um diamante no local, o que de fato se confirmou. 264

A iniciativa foi feita em conjunto com a fotógrafa Marisa Vianna, que se encontrava na cidade de Lençóis e tirou fotografias no Palácio de Ogum. Para a gravação do disco ela convidou o conceituado produtor musical Roberto Santana, responsável por discos de diversos artistas de renome. Uma cópia desse disco encontra-se ao final do anexo IV. 265

Depois de terminada, a coletânea foi impressa e cópias foram entregues a todas as pessoas que ajudaram em sua elaboração. Uma versão atualizada pode ser encontrada igualmente no anexo IV.

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num jarê. Essa atividade é sempre cercada de cuidados determinados, função da hora do dia em que são cantadas (evitando-se o meio-dia e a meia-noite), da época do ano em que se encontra (não sendo propício cantá-las após as fechadas dos terreiros), das pessoas que estão próximas. Não se arrisca cantar determinadas cantigas fora da ocasião ritual adequada, em geral as propiciatórias – sejam as destinadas aos trabalhos de limpeza e batizado, sejam as cantadas para o início de um jarê. Entoar cantigas também gera, via de regra, algum tipo de conversa em torno das mesmas, seja sobre seu significado, seja sobre memórias que despertam, seja sobre os efeitos que elas têm sobre outras pessoas. A discussão em torno das cantigas suscita diversos sentimentos e emoções, já que elas podem fazer vibrar ressonâncias afetivas específicas de acordo, me diziam, com a natureza de cada um. Em primeiro lugar, existem muitas cantigas que despertam determinadas lembranças nos filhos-de-santo, podendo fazer com que fiquem emocionados, recordem-se de certos momentos, pessoas ou entidades. O ato de cantá-las por inteiro e repetidas vezes não só auxilia didaticamente sua memorização como leva os ouvintes a acessar estados nos quais lembranças e sensações específicas são suscitadas, motivo pelo qual as cantigas são também – e, durante as festas, acima de tudo – fundamentais nos momentos de incorporação das entidades nos filhos-de-santo, podendo ser consideradas a contrapartida eminentemente feminina da música emitida pelos atabaques. A memória é ativada igualmente durante as cerimônias para o encadeamento adequado das cantigas uma após a outra, processo chamado de “tirar” ou “puxar cantigas”, que deve servir à continuidade das danças e manifestações dos espíritos. Entretanto, os estados afetivos que os frequentadores dos jarês assumem diante das cantigas não se devem somente à evocação de um sentimento ou vivência anterior, não têm a ver somente com uma rememoração: as pessoas são afetadas diferencialmente pelas cantigas por elas mobilizarem (e de certa maneira também serem) forças específicas ligadas às entidades, energias que reverberam nos filhos-de-santo. Meus amigos comentavam as formas

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pelas quais, quando uma cantiga específica é cantada para um caboclo, pessoas que possuam uma conexão maior com o caboclo pressentem-na, mesmo que não a estejam ouvindo. Contaram-me a respeito de uma jovem que nem sempre ia aos jarês, mas que invariavelmente acordava à noite em sua residência, a quilômetros de distância da casa de culto, no exato instante em que se cantava para a entidade que nela podia se incorporar. Falavam também a respeito de como, caso estivessem em alguma viagem em outra cidade, costumavam ser lembrados de datas comemorativas porque antes mesmo de olhar num calendário as cantigas próprias à ocasião surgiam espontaneamente em suas mentes. Há certas cantigas, diziam meus amigos, que exercem sobre cada um considerável influência, podendo não ter qualquer efeito perceptível sobre outras pessoas, de acordo com o grau de participação que músicas e filhos-de-santo compartilham. Essa proximidade pode ser uma característica inata a uma pessoa, sendo comum que se comente como uma cantiga específica ou um conjunto de cantigas dedicadas a uma mesma entidade afeta de maneira similar os membros de uma mesma família carnal. Essa intimidade pode ser também adquirida por meio da aproximação de um filho-de-santo a uma casa de culto e seus membros, o iniciado tornando-se mais sensível à ação de cantigas ligadas ao chefe da casa e seus padrinhos, tanto os de obrigação como os demais. Com o passar dos anos, determinadas cantigas e pessoas podem acabar se justapondo de forma a se tornarem cada vez mais indissociáveis, evocando-se umas às outras não só na memória como efetivamente durante os rituais. Quando cantigas dessa sorte são entoadas, pode-se perceber como os olhares já se voltam para o filho-de-santo em questão, sua manifestação sendo – e com isso também se tornando – iminente. Inversamente, quando um frequentador do jarê está em vias de incorporar um espírito mas o início do processo demonstra-se difícil e se estende por mais tempo do que esperado, pode-se recorrer a cantigas consideradas infalíveis para que aquela pessoa em específico seja tomada por aquela entidade. De muitas formas distintas, pode-se

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então dizer que as cantigas fazem parte também da composição das pessoas. Enquanto listávamos e cantávamos as cantigas para a organização da coletânea, era comum que se dissesse: “Essa cantiga é a cara de fulano...”, “Essa música é todinha beltrano...”, “Essa outra tem sicrano de cima a baixo...” Se é correto dizer que as cantigas podem compor os filhos-de-santo, modulando as relações entre as pessoas e entre elas e suas entidades, em outro sentido é bem provável que tenham sido também compostas, concebidas, por eles. Elias gostava de insistir comigo numa distinção que fazia quando eu me referia de maneira geral às canções entoadas nos jarês como “músicas”, dizendo que era mais adequado chamá-las sempre de “cantigas”, evidenciando a importância de suas letras serem possivelmente inteligíveis266, e separando-as dos “toques”, que de acordo com ele seria a melhor designação para as canções cujas letras não eram em português, algumas podendo ser em iorubá, ele arriscava. De toda forma, as similaridades rítmicas entre algumas cantigas e alguns toques, bem como as proximidades fonéticas e transformações pelas quais parecem ter passado267, somam-se a outro fato que permite levantar uma hipótese a respeito do desenvolvimento histórico dessas composições, aliado ao processo do qual o próprio jarê parece ter procedido. Por mais de uma vez, presenciei cantigas que tiveram suas letras improvisadas no próprio momento de sua execução, mais comumente quando quem a cantava – em geral uma entidade manifestada, mas podendo também ser um chefe de casa de culto – queria com ela passar uma mensagem, que poderia ser mais direta ou indireta, na forma dos já mencionados sotaques. Ainda que esse primeiro fosse o caso mais frequente, era também possível que surgisse uma cantiga original como forma de adoração 266

Salvo em raras ocasiões nas quais se deseja transmitir uma mensagem de maneira muito clara, a inteligibilidade ainda assim não é, de todo modo, tão importante para a execução das cantigas quanto a força com que se canta e os efeitos que se espera obter com elas. 267

Reconhece-se particular pendor para o improviso musical nos garimpeiros ao menos já desde o início do século XX (Moraes 1963: 126-127 nota 5), acompanhado por um gosto pelos jogos de palavras e pelas transformações por proximidades fonéticas (Senna 1998: 120-121; 130). Igualmente, menciona-se que eventos históricos foram amalgamados pelas chulas e cantigas de jarê, que os absorveram e transfiguraram (Senna 2002: 242).

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aos espíritos incorporados ou em homenagem a alguma pessoa presente na casa. Em ambos os casos, o cantor que puxava a nova cantiga fazia questão de caprichar em sua pronúncia de modo a ensiná-la aos presentes, que iriam repeti-la tanto no momento em questão como possivelmente em outros jarês que frequentassem futuramente. Ouvindo-as nos dias de hoje, alguns filhos-de-santo cogitavam que algumas dessas cantigas tivessem surgido como adaptações ou mesmo traduções possíveis dos antigos toques em iorubá trazidos pelas nagôs, na mesma chave das conformações do culto que resultaram no jarê como existente hoje268. As cantigas no jarê são assim, em mais de um sentido, constantemente dialógicas. Em sua estrutura de execução, nunca devem ser entoadas apenas uma única vez, devendo ser, via de regra, cantadas três, cinco ou sete vezes, como afirmam os filhos-de-santo, na prática sendo repetidas até o momento em que quem as puxou indique com um gesto o silenciar dos atabaques. As cantigas são quase sempre iniciadas por um solista, ocasionalmente acompanhado por mais uma única outra pessoa, para serem em seguida repetidas – ou continuadas, no caso das músicas mais extensas – pelo restante da audiência, que pode a partir daí se dividir e se revezar na cantoria. Quando não há entidades manifestadas no salão, espera-se que o chefe da casa tire as cantigas a serem reproduzidas, especialmente por ser ele o responsável pela definição da sequência dos caboclos a serem louvados pelas músicas, que poderá variar de acordo com cada casa e cada ocasião ritual. Outras pessoas podem também dar início a uma cantiga, desde que elas sejam dedicadas à mesma entidade para a qual se está cantando naquele momento específico. Quando uma entidade se encontra incorporada, é comum que ela própria puxe suas cantigas antes de começar a dançar, a audiência então assumindo o restante da música e novamente se dividindo em dois coros. Somente a própria entidade ou o dono da casa – ou alguém que aja a pedido deles – deve puxar as chamadas

268

Como sugerido no capítulo 2, seção 2.1.

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cantigas de despedida269, que irão marcar a preparação para o fim de uma incorporação. Após todos os caboclos terem se despedido, é novamente o chefe da casa ou alguém por ele instruído que irá tirar uma cantiga de chamada, incentivando a incorporação de novas entidades, distintas das anteriores. Nem toda cantiga é aceita do mesmo modo pelos presentes, algumas podendo ser recusadas pelas entidades ou pelos tocadores, caso não aprovem seus ritmos ou suas letras, no caso de cantigas que considerem ofensivas ou que não sejam de seu conhecimento, quando se pede então que outra, de seu agrado, seja tirada. Cantigas para entidades distintas jamais devem ser intercaladas enquanto houver filhos-de-santo incorporados, sendo rapidamente interrompidas caso alguém puxe uma que não se insira na sequência em execução, processo que de toda forma se dá sem grande comoção ou repreensão a quem houver se equivocado. Existem cantigas reservadas a trabalhos rituais, outras destinadas a entidades específicas, outras ainda que podem ser cantadas indistintamente para qualquer espírito. Há cantigas que podem ser tiradas como forma de se fazer uma promessa a uma entidade, e outras para se realizar solicitações, ambos procedimentos também feitos de maneira mais reservada ao pé do ouvido do filho-de-santo manifestado. Existem também cantigas para disputas ou conflitos, em geral estabelecendo um desafio ou provação às entidades presentes que atestará a qualidade da incorporação ou a conduta adequada do iniciado, as mais comuns sendo as que solicitam que se espalhem brasas no salão sobre as quais os caboclos irão dançar até que apaguem270. Certas cantigas podem ainda ser cantaroladas durante a realização de tarefas do cotidiano, como preparar o alimento ou lavar roupas, ou em caminhadas longas para passar o tempo. Especialmente nessas ocasiões, os filhos-de-santo aproveitam para conversar uns com

269

Equivalentes aos “cânticos de aunló”, como são chamados no candomblé (Bastide 1958: 39).

270

Como será descrito no capítulo 4, seção 4.3.

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os outros a respeito delas, seus significados quando usadas como mensagens e seus efeitos possíveis, voltando-se para os mais antigos quando esses se encontram dispostos a compartilhar seu conhecimento. Conhecer um grande número de cantigas, bem como suas aplicações, e ser capaz de mobilizá-las com os efeitos desejados durante os jarês, são capacidades que caracterizam os iniciados considerados como detentores de grande força pessoal, da qual de todo modo essas qualidades derivam. As cantigas também são alvo de considerações estéticas, muitas delas sendo estimadas particularmente belas, avaliações que também se ligam à chamada natureza de cada pessoa. A execução das cantigas em coro também podia ser pensada como uma atividade especialmente admirável, a qualidade de sua harmonia dependendo menos da falta de dissonâncias entre as vozes do que de um desempenho contínuo e, fundamentalmente, animado271. Como será visto mais adiante, uma última fonte apontada pelos membros dos jarês da qual podem surgir cantigas novas – já que se trata de um processo criativo infindável –, ligada também em múltiplos sentidos à composição pessoal, e que possivelmente abriga a maior quantidade das canções que se perdem com o tempo por às vezes nunca chegarem a ser executadas uma segunda vez, só é acessível quando não se está acordado.

271

A apreciação da harmonia das cantigas do jarê se mostrou bastante similar à que é feita no reisado em outra parte da Chapada Diamantina (Brantes 2007: 36). Ainda que as mulheres fossem as principais responsáveis pela entoação das cantigas, não era incomum que os homens também participassem, por mais que, quase ordinariamente, o timbre das vozes mais graves acabasse sendo ofuscado pelo das mais agudas. A capacidade de, e o gosto por, acompanhar muitas das cantigas que eu com o tempo acabei demonstrando geravam bastante admiração e satisfação por parte de alguns filhos-de-santo – de modo similar ao que ocorreu com outro pesquisador que se dedicou aos cultos de matriz africana no interior da Bahia (Brazeal 2007: 7). As características que eu cultivara por ter alguma formação em canto orfeônico podiam, de acordo com meus amigos, indicar uma proximidade com as entidades das águas, das quais fazia parte a Sereia, tendo também me rendido ocasionalmente como apelido o nome de um cantor brasileiro bastante conhecido.

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3.4 Sonhos

Festas que no futuro serão motivo de novas lembranças continuam a ser realizadas naquela que é a mais antiga casa de jarê ainda em funcionamento de que se tem notícia na Chapada Diamantina, o Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, exceção entre as demais por ter sobrevivido longamente ao falecimento de seu criador. Como mencionado, sua estrutura localiza-se num terreno afastado alguns quilômetros da sede do município de Lençóis, ao longo de um caminho que liga essa cidade à de Andaraí, ao lado do Rio Capivara, que igualmente empresta seu nome à casa de culto no dizer rotineiro de seus frequentadores. Historicamente, a estrada ligando as duas cidades foi por um período em torno de um século a única forma de conexão de Lençóis com o resto do estado e o litoral, tendo caído em desuso com o surgimento do traçado de rodovias federais que interligavam Brasília às demais capitais. O caminho entre Lençóis e Andaraí chegou a ser alvo de alguma manutenção na década de 1980, impulsionada pelo garimpo de dragas e posteriormente rarefeita quando de sua proibição na metade dos anos 1990. O trecho de pouco menos de dez quilômetros da sede do município até o Palácio de Ogum não tem grande interesse turístico, feito ao pé da serra, com paisagem sem grandes alterações de relevo e sem vistas amplas, sendo de todo modo utilizado ocasionalmente por grupos de visitantes272. Assim como o de muitos outros, o potencial diamantífero do Rio Capivara foi reconhecido desde bastante cedo pelos exploradores da região, no local tendo-se estabelecido pequenos povoamentos e diversos garimpos ao longo dos anos, estando hoje todos praticamente desertos273.

272

O Rio Capivara é um dos tributários do São José e alimentado pela Cachoeira da Fumaça, uma das atrações turísticas visualmente mais impressionantes da Chapada Diamantina, segunda mais alta queda d’água do Brasil (Funch 2007: 84, 136 nota *, 139, 142-143). 273

À exceção de algumas construções na área da Estiva, que se consolidou como distrito de Lençóis, e na Capivara, dos demais povoamentos nos quais havia garimpo restaram apenas ruínas (Acauã 1847: 252; Pereira 1910: 51; Ganem 2001: 46; Araújo, Neves & Senna 2002: 136 nota 24, 146-147 nota 57).

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O entorno do terreno no qual se localiza o Palácio de Ogum é, na contemporaneidade, cercado também por grandes bancos de areia, resultado direto da exploração diamantífera ao longo dos anos e drasticamente acentuado no período do garimpo mecanizado. Os filhos-desanto da Capivara contam que, em determinada época, garimpeiros chegaram a aproximar suas escavações da área do terreiro, não tendo ali encontrado senão carvão e pedras sem valor, além de atraírem para si uma série de infortúnios. Achando por bem não arriscarem a ira de Pedro de Laura, o curador do Palácio de Ogum, abandonaram prontamente suas tentativas, muitos deles tendo inclusive posteriormente se tornado iniciados da casa e encontrado sorte garimpando em outros lugares. Em função disso, a área próxima à casa de culto encontra-se com vegetação mais preservada se comparada a suas redondezas, os muitos pés de manga que a compõem emprestando ao local um perfume característico quando vicejam. O terreno da casa é margeado por uma cerca de arame que mais serve para demarcar seus limites do que para impedir qualquer forma de ingresso: para tanto são empregadas outras formas de proteção. Na área próxima à entrada espalham-se assentamentos dedicados ao povo da porta, os exus e demais espíritos que habitam tanto o caramanchão como as áreas abertas em volta da casa de culto, aos quais se deve saudar ao adentrar o terreno. Em seguida, todos os visitantes da Capivara são também recebidos, na escada do lado de fora da casa e de costas para sua porta, por um dos membros da comunidade de culto, que encosta sobre suas cabeças uma caneca com água, pronunciando palavras específicas, jogando em seguida o líquido por cima deles em direção à estrada. Conclui-se o protocolo de chegada com a saudação às entidades diante do quarto de santo, após a qual uma pessoa pode se calçar e voltar a conversar normalmente. Os frequentadores do Palácio de Ogum gostavam de se lembrar como a casa hoje era muito diferente da que Pedro de Laura havia inicialmente encontrado, ao comprar o terreno de seu antigo proprietário. Inicialmente uma casa com poucos aposentos e com cobertura de

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palha, às ampliações que o curador fez somaram-se outras nos anos recentes, resultando numa construção que hoje conta com mais de 20 cômodos, como gostavam de lembrar, e com fornecimento de água trazida do Capivara por meio de canalização subterrânea através de mangueiras implementada pelos próprios filhos-de-santo. Como em toda casa mais afastada da sede do município, não há eletricidade disponível e a iluminação à noite é feita por velas e lampiões a querosene. Sandoval procurava se informar junto ao poder público sobre as possibilidades de obter alguma forma de geração de energia elétrica que pudesse alimentar a casa, inspirando-se nos painéis solares que alguns hotéis de Lençóis possuíam, acabando contudo desestimulado pelos valores elevados e pela extensa burocracia envolvida na remota possibilidade de um custeio governamental. Do lado de fora da casa, na parede externa do pagodô, ao lado do principal acesso à casa, encontra-se escrito, da mesma forma como deixou Pedro de Laura, “Terreiro-umbanda-Palácio-de-Iougum-com-todos-orixás”. Em uma das paredes da copa, pendurado em meio a fotos do curador, há um certificado, emitido pela Federação Baiana do Culto Afro-Brasileiro e assinado por Esmeraldo Emetério de Santana em 1991, concedendo diploma ao chefe do “Centro do caboclo 7 Serra”. Mesmo a dimensão considerável da casa construída no terreiro não comporta a quantidade dos frequentadores da Capivara nos dias de seus principais festejos, sendo muito comum que os visitantes armem barracas de acampamento na propriedade para pernoitar quando há jarês. Apesar das dificuldades e percalços desde o falecimento do mais famoso curador lembrado em Lençóis, hoje em dia o Palácio de Ogum mantém a realização de quatro grandes festas anuais, honrando o pedido feito por uma das entidades de Pedro de Laura antes de sua morte. Como mencionado anteriormente, a liderança da casa ao longo de meu trabalho de campo consistia numa espécie de delicado triunvirato, do qual faziam parte o curador então responsável pela casa, que atende por Pai Mussum, o proprietário material do terreno e presidente da Associação do jarê, Sandoval, bem como, por fim, sua tia materna, uma das

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mais renomadas filhas-de-santo da Capivara, de quem o próximo capítulo tratará mais extensivamente. Mussum se encontrava igualmente em vias de construir sua própria casa de culto, já que se havia acordado que mais nenhum sacrifício, ou “corte”, como costumam dizer, seria realizado nos limites do terreiro que pertencera a Pedro de Laura274. Por ser o zelador místico da importante casa e uma pessoa bem quista por muitos dos habitantes da cidade ligados ao jarê, Mussum começara a ver surgirem filhos-de-santo em potencial que precisariam ser iniciados com os devidos procedimentos, estimulando o estabelecimento de um terreiro próprio num local distante menos de um quilômetro do Palácio de Ogum, subindo a serra. Todas as festas realizadas na Capivara inevitavelmente remetem à comunidade criada por Pedro de Laura, no dizer de um de seus filhos-de-santo um verdadeiro “papa” daquela que até hoje continua a servir de testemunho como “a catedral do jarê”. Comenta-se constantemente como os jarês celebrados na contemporaneidade empalidecem diante dos que o pai de Sandoval celebrava, muitas vezes com toques ao longo de diversos dias seguidos. Se atualmente ainda havia alguma expectativa sobre a possibilidade de um jarê se estender por dois ou mais dias, a esperança sempre vinha acompanhada da lembrança do tempo de Pedro, no qual por vezes se chegava mesmo a nove noites consecutivas de festas em louvor às entidades. As cerimônias de Pedro de Laura eram consideradas tão imperdíveis que mesmo mulheres em gravidez avançada empreendiam a longa caminhada até a Capivara, algumas tendo chegado a dar à luz no próprio terreiro. A memória do curador falecido ainda permeia as cerimônias da casa em muitos momentos, levando os filhos-de-santo a se emocionarem, seja com a lembrança de sua voz ao ouvirem a cantiga-emblema do Palácio – o chamado dorosã –, seja com a visão da cadeira na qual ele se sentava e da qual conduzia os jarês, seja

274

Por motivos que serão detalhados posteriormente nesse capítulo, na seção 3.5.

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ainda com os primeiros raios da manhã ao invadirem o salão através dos cobogós que o próprio Pedro erigiu na parede externa do pagodô. As histórias da vida de Pedro de Laura aqui registradas foram contadas, de diversas formas, por muitas das pessoas que lhe foram mais próximas em vida, narradas tanto de maneira espontânea como fazendo parte das conversas filmadas que realizei a pedido de Sandoval. Nascido na Vila de Santo Inácio, distrito do município de Gentio do Ouro, no extremo oeste da Chapada Diamantina, em 16 de abril de 1928, Pedro Florêncio Bastos desde pequeno era conhecido como Pedro “de Laura”, por ser este o nome de sua mãe, que o criou sozinha depois de terem se mudado para Lençóis. Alguns de seus filhos-de-santo disseram que desde muito novo Pedro já exibia sinais de que nascera com um dom especial que o qualificava sobremaneira para se tornar um curador, uma capacidade pessoal que além de tudo foi ampliada não só pelo passar do tempo como pela trajetória que acabou trilhando. Longe de configurar uma opção pessoal, contudo, afirma-se que Pedro, mesmo reconhecendo seu potencial, jamais desejou se tornar um pai-de-santo. Poucos sabem como se deu efetivamente sua iniciação – se é que ela se fez –, sendo por vezes mencionado o nome de uma possível mãe-de-santo, Maria dos Mabaços, do povoado de Santa Luzia das Gamelas, no município de Andaraí, para a qual Pedro poderia ter sido levado para ser curado de uma enfermidade quando ainda criança. É ponto pacífico entre aqueles que o conheceram que o aprendizado de Pedro de Laura se processou em sua maior parte enquanto frequentava a casa do já mencionado Manezinho Bumba – avô materno da companheira de Elias. Líder e fundador da atual Vila do Remanso, comunidade de remanescentes de quilombolas localizada a aproximadamente 25 quilômetros da sede do município, Manezinho Bumba havia sido iniciado por Zé Rodrigues, curador de Lençóis considerado o maior mestre do jarê que já existiu na Chapada Diamantina, numa linhagem da qual Pedro de Laura de certo modo passou a fazer parte ao frequentar a casa do

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Remanso ainda muito jovem275. Passados alguns anos, contam as descendentes de Manezinho Bumba, durante uma viagem para a cidade de Andaraí, este cometeu o erro de se deitar com uma mulher, algo que sua sina de curador o impedia de fazer mesmo com a própria esposa. Durante a viagem de volta, metade de seu corpo ficou marcada por terríveis chagas cutâneas, que se alastraram da mesma forma pela metade equivalente do burro de carga em que vinha montado. Passados pouco mais de 20 dias do ocorrido, ambos vieram a falecer. Após ser cumprido o período de luto, a viúva de Manezinho Bumba passou o comando da casa para Pedro de Laura, que sempre se destacara enquanto um de seus frequentadores. Ainda muito jovem, Pedro fez seus primeiros filhos-de-santo no Remanso, alguns dos quais conheci morando na cidade de Lençóis. Uma das provas marcantes de que Pedro se tornaria um paide-santo de grande renome, atestando o desenvolvimento da força pessoal com a qual havia sido agraciado ao nascer, foi dada sete anos após a morte de Manezinho Bumba, quando realizava o sirrum deste, a cerimônia de encomendação definitiva do espírito de um curador276. Os parentes carnais de Manezinho Bumba foram convocados para atestar sua última aparição e confirmar que de fato se tratava do falecido, que se apresentou diante deles como se ainda estivesse vivo, excetuando-se o fato de seus pés não tocarem o chão277. A aparição ocorreu junto ao cruzeiro do lado de fora do terreiro, explicaram aos presentes, já que Manezinho Bumba não mais poderia adentrar o salão de sua casa por terem sido ali realizados trabalhos para entidades da esquerda, uma linha com a qual ele próprio não lidava em vida. Concomitantemente aos trabalhos que realizava no Remanso, Pedro de Laura fazia consultas em sua residência na cidade de Lençóis, além de sessões que alguns dos seus filhos-

275

Provavelmente desde os 14 anos, disseram alguns de seus filhos-de-santo, outros arriscando a idade de 17.

276

Cuja pronúncia na região pode ser também “serrum”. O ritual em si será mais detalhado no capítulo 4, seção 4.5. 277

Característica comumente associada à morte e aos mortos no jarê (Senna 1998: 227).

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de-santo caracterizavam como de “mesa branca”. No mesmo local ele jogava búzios – técnica que para ser adquirida necessitou da realização de uma penosa obrigação ao longo de dias recluso, diz-se que com os olhos vendados, sem comer, beber ou dormir – que podiam indicar a uma pessoa a necessidade de realizar algum trabalho mais elaborado, ou ainda prescrevia remédios naturais feitos com ervas medicinais em misturas específicas. Ao mesmo tempo, Pedro continuava a exercer o ofício de pedreiro que havia aprendido do mestre Miguel Ângelo Guerreiro, vindo com o tempo a se tornar mestre-de-obras e, por sua grande destreza, o profissional mais recomendado para realização de trabalhos que exigissem acabamentos delicados. Com o tempo, Pedro de Laura passaria adiante a técnica que havia aprendido e refinado, sendo responsável pelo ensinamento de alguns dos melhores pedreiros até hoje em atividade na cidade. Muitos entre aqueles com quem trabalhava viriam a se tornar também seus filhos-de-santo, e o considerável número de pessoas que reunia em torno de si, aliado ao encerramento das atividades na casa do Remanso, fizeram com que Pedro procurasse um terreno para fundar uma casa de culto, dessa vez observando seus procedimentos de abertura desde o início, plantando sua própria roça. A possibilidade de comprar o terreno próximo ao Rio Capivara, no qual hoje se encontra sua casa, o Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, surgiu com o falecimento do antigo proprietário do local, Arão, ainda próximo do ano de 1950, segundo consta278. Ao longo das décadas seguintes, os inúmeros filhos-de-santo feitos por Pedro de Laura comporiam em torno dele uma extensa família mística. Imaginando que seria possível criar um quadro genealógico de seus iniciados, me reuni com Sandoval, sua tia e outros filhos-desanto da Capivara, apenas para descobrir que se tratava de uma tarefa inglória, pois descobri

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Apesar de ser difícil precisar uma data exata, um de seus filhos-de-santo possuidor de ótima memória afirma que Pedro já realizava jarês na Capivara no ano de 1955. Os que arriscam a antiguidade ainda maior da casa mencionam o ano de 1949 para o falecimento de Arão – que alguns dizem também poder ter sido um curador, tendo erguido no local uma casa de apenas um cômodo na qual trabalhava – e o início do reinado de Pedro de Laura.

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então que todas as pessoas para quem um curador havia realizado alguma forma de ritual podiam ser consideradas filhos-de-santo dele, totalizando mais de 200, conforme estimaram. Disseram-me que muitos dos habitantes de Lençóis já haviam recorrido a Pedro para realização de trabalhos iniciáticos, ainda que provavelmente nem todos que o fizeram desejariam ser identificados, motivo que levou a confidenciarem alguns nomes sob a condição de que não fossem registrados publicamente. Praticamente todos os líderes das casas de culto hoje em funcionamento em Lençóis foram iniciados na Capivara, o restante ligando-se a um curador chamado Zeca do Barbosa, do município de Itaetê, no leste da Chapada, que se tornou também pai-de-santo de alguns dos filhos de Pedro após o falecimento deste. Muitos dos filhos carnais de pessoas iniciadas por Pedro de Laura foram acostumados a lhe chamar de avô, instruídas por seus pais, amalgamando e ampliando a família que ele cultivava com base na Capivara. Também há notícia de filhos-de-santo seus vivendo em muitos outros estados do país, alguns tendo sido iniciados quando de passagem por Lençóis, outros ainda em suas próprias cidades. Pedro era capaz de mobilizar determinadas entidades para produzir efeitos por vezes a distâncias de milhares de quilômetros, em geral por meio de fotos daqueles que se beneficiariam dos trabalhos rituais, uma das muitas capacidades pelas quais seus filhos o consideravam um curador inigualável. Seus filhos-de-santo contam que Pedro de Laura tinha uma voz aguda, com a qual puxava as cantigas na condução dos jarês, e que sobressaía ainda mais quando dava alguma gargalhada. Elias, que compartilhava de um tom de voz parecido e da similar “gaitada”, como são chamadas as risadas com esse estilo estridente em falsete, me disse que se lembra bem do modo como Pedro ria, algo que ocorria com grande frequência em função de seu bom humor e propensão a travessuras279. Mais ainda do que sua voz, os iniciados da Capivara se lembram

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A gaitada é igualmente uma característica distintiva dos raros homossexuais assumidos da cidade, parte também de uma postura de altivez e ousadia que cultivam para combater o preconceito de que inevitavelmente são vítimas.

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da grande aptidão que Pedro exibia para a dança, especialmente quando manifestava uma de suas entidades femininas, provocando a inveja das filhas-de-santo e a admiração dos homens, conforme estes me diziam, embevecidos: “Parecia uma mulher mesmo dançando”. As pessoas mais próximas a Pedro comentaram, com a mesma sobriedade com a qual ele parece ter sempre lidado com o assunto, a respeito de sua preferência por se deitar com homens, ainda que alguns afirmassem que não era impossível que também tivesse dormido com mulheres. De qualquer forma, mantinha uma postura reservada que transmitia a suas filhas-de-santo a segurança de que não se aproximaria delas sexualmente, receio que paira sobre praticamente qualquer curador do sexo masculino, mesmo que seja casado280. Por ser homem, de todo modo, a ele estava garantida a qualidade necessária para lidar satisfatoriamente com aspectos rituais com os quais as mulheres não devem se haver, como sacrifícios e a alimentação do povo da porta. O fato de jamais ter se casado era igualmente festejado por suas filhas-desanto, que diziam que curadores com esposas podiam se tornar sobremaneira sujeitos a elas e a sua família carnal, enquanto Pedro era constantemente dependente de suas filhas-de-santo, que assim amenizavam, com uma liberdade maior, a obrigação de servir a seu pai – algo que de toda forma costumavam fazer com gosto. De todo jeito, Pedro de Laura acabou por deixar um herdeiro material, ao “pegar para criar”, ou seja, adotar informalmente o filho biológico de uma de suas filhas-de-santo que não apresentava condições de sustentá-lo281. Sandoval foi criado por Pedro, assim como por Dona Laura, que passou a considerar como avó, desde muito novo, não tendo senão ouvido falar a respeito de muitas das maiores façanhas protagonizadas por seu pai no passado, em seus tempos áureos de curador. Os mais antigos filhos-de-santo da Capivara, conjunto que incluía muitos daqueles que Pedro iniciara ainda no Remanso e que o acompanharam na nova casa, sempre falam a respeito das proezas

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O assunto será aprofundado no capítulo 4, seção 4.1.

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Ver foto 62 no anexo III.

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de que só o criador do Palácio de Ogum era capaz. Tais feitos iam muito além dos rituais terapêuticos que se espera que todo curador realize, ainda que sua habilidade para lidar com males diversos fosse também bastante celebrada – aí incluída a capacidade de distinguir quando uma doença deveria ser tratada não por meios tradicionais mas por especialistas médicos, os chamados “homens de branco”282. Entre as façanhas espetaculares de que Pedro de Laura era capaz, ligadas a uma capacidade de efetuar movimentações desimpedidas, os frequentadores da Capivara mencionam em primeiro lugar o modo como, manifestando sua Iansã, ele atravessava a fogueira do terreiro sem se queimar. Conta-se como a entidade incorporada, trajando sua roupa cerimonial, repetia o feito ano após ano na festa em sua homenagem, para a qual era acesa uma fogueira com lenha de murici, madeira escolhida especificamente por produzir chamas muito ardentes. No ritual, Iansã chegava ao requinte de deixar cair sua coroa em meio às brasas, abaixar-se calmamente para pegá-la e colocá-la de novo na cabeça antes de sair do fogo, sem que um fio de cabelo sequer de Pedro de Laura saísse chamuscado. No mesmo registro de poder se movimentar desconsiderando obstáculos, comenta-se como, nas raras épocas de cheia torrencial do Rio Capivara (que pode subir mais de um metro acima do volume habitual), o chefe do Palácio de Ogum acompanhava seus filhos até a margem mais próxima e os atravessava, conduzindo-os pelas mãos dois a dois, caminhando como se flutuasse sobre as águas, já que de outro modo o rio caudaloso não poderia ser transposto. Similarmente, os filhos-de-santo mencionavam como, ao realizar trabalhos no Poção do Capivara, parte mais funda do rio na qual eram feitos alguns rituais, Pedro era capaz de prender a respiração por um tempo inacreditável, bem como, ao realizar matanças submersas, concentrar o sangue do animal sacrificado numa cuia e erguê-la para a superfície sem que seu conteúdo se misturasse com as águas do rio.

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O tema da cura será abordado de forma mais detida no capítulo 4, seção 4.5.

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Inversamente, também abundam os relatos de feitos nos quais o desempenho de Pedro de Laura foi direcionado para impedir ou dificultar movimentações, fossem de corpos, fossem de olhares, saberes e fluxos de atenções. É emblemática uma história contada a respeito de um fugitivo que buscara refúgio na Capivara por ter um assassino em seu encalço. Pedindo proteção a Pedro, este disse que não se preocupasse, permanecesse sentado imóvel junto dos demais homens na assistência do jarê e pronunciasse algumas palavras conforme lhe instruiria. Pouco tempo depois um jagunço chegou ao Palácio de Ogum, pediu desculpas por interromper a festa e acrescentou que lamentaria muito ter que derramar sangue na casa do pai-de-santo, caso encontrasse ali o homem que procurava. As pessoas que testemunharam o ocorrido contaram que o evento transcorreu no amplo pagodô da casa, e que o tempo todo o homem marcado para morrer estava plenamente à vista do mercenário e era seu conhecido, sendo impossível que não o tivesse reconhecido – não fosse pela ação mística de Pedro de Laura. O matador se despediu dizendo que continuaria sua busca, enquanto sua vítima permaneceu até o final do jarê e perguntou ao curador o que deveria fazer para escapar de seu perseguidor. Pedro o acompanhou na direção do caminho para Lençóis e o instruiu a pronunciar novo conjunto de palavras e não se deter na volta, não olhar para trás e não se dirigir a ninguém que encontrasse no caminho, confundindo assim o homem que ainda deveria estar em seu encalço pela trilha. Os filhos da Capivara disseram que o homem perseguido chegou são e salvo na cidade e tomou o primeiro ônibus saindo da Chapada, para nunca mais voltar. Pedro também era capaz de proteger ou penitenciar os iniciados com ações parecidas. Um de seus filhos-de-santo mais antigos me contou como, certo dia, antes de ir para o jarê, logo após acordar se assustara ao se deparar com uma cobra no interior de sua casa, que em seguida conseguiu matar. Chegando no Palácio de Ogum mais tarde, foi recebido por Pedro que lhe disse que o havia protegido a noite toda. O iniciado não tinha comentado com

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ninguém a respeito do animal e fora um dos primeiros a chegar na Capivara, creditando à ação de seu curador o fato de não ter sido ofendido pela cobra que provavelmente tivera muitas oportunidades para fazê-lo enquanto dormia. Outro de seus filhos-de-santo, famoso tocador de atabaque, narrou um episódio no qual estava fazendo troça de Pedro, de quem era bem próximo, imitando-o. Para lhe dar uma lição, e sabendo do gosto do batedor por caçadas, o curador lhe disse que dali para frente o iniciado só mataria mais quatro cotias, e a partir daí nunca alvejaria mais nenhuma. Após abater o número de animais que o curador mencionara, os animais passaram a eludi-lo constantemente, suas empreitadas mostrando-se infrutíferas, até que abandonou por completo o hábito de caçar. No mesmo registro, Pedro de Laura era capaz de produzir outras formas de ocultação para a defesa de sua casa e punição de desafetos. Seus filhos-de-santo lembram-se de uma ocasião na qual uma turma de habitantes do Remanso, que incluía o líder comunitário que sucedeu Manezinho Bumba e que também celebrava jarês, veio visitar a Capivara com o intuito de causar alvoroço e interromper o bom andamento do festejo. Pedro não se deixou abalar e recebeu os hóspedes com toda honraria, oferecendo-lhes comida e bebida farta, recomendando-lhes que aguardassem o início do jarê sentados à sombra de uma mangueira. O conjunto pôs-se a cantar animadamente ao longo do dia, mas se viram acometidos por um cansaço extremo e repentino ao cair da noite, caindo num sono profundo que não foi quebrado nem pelo toque incessante dos atabaques madrugada adentro. Quando acordaram, na manhã seguinte, estavam desorientados e levaram algum tempo até entender que a festa já havia transcorrido sem que tivessem tido chance de frustrá-la. Outros casos como esse poderiam ser até mais comuns se não fossem as medidas preventivas que Pedro tomava e que faziam com que pessoas se perdessem na brenha a caminho do Palácio de Ogum caso estivessem malintencionadas – da mesma forma como uma família perdeu o rumo do cemitério ao levar o corpo de um de seus membros, que havia se desentendido com Pedro, para ser enterrado, indo

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parar no meio da mata. Era como se os desorientados estivessem pisando “em outro mundo”, ficassem “fora do mapa”, como me disseram os filhos-de-santo, assegurando-me que não havia outra explicação possível senão o efeito das forças mobilizadas pelo curador para que pessoas que conheciam tão bem determinados trajetos – e que além de tudo eram caminhos amplos e bem mantidos – subitamente se confundissem a ponto de as vias lhes escaparem. Todos os filhos-de-santo reconheciam que Pedro de Laura era não apenas um curador de capacidade ímpar como uma pessoa absolutamente intempestiva, podendo ser tão atemorizante quanto obsequioso. Exigia dos frequentadores de sua casa obediência obstinada, sob risco de atraírem para si consequências sinistras, em geral em seus próprios corpos, de inchaços a doenças, que só passavam quando o agravo era desculpado. O símbolo máximo de autoridade no auge de sua época de supremacia na Capivara era o chicote ritual de tiras de couro que carregava consigo, chamado Sete-Perna, que muitos filhos-de-santo descobriam não ser meramente simbólico. O próprio Pedro podia ser alvo do açoite, como num ritual no qual uma de suas entidades entregava o objeto aos filhos-de-santo para que golpeassem o corpo do curador, com as costas nuas. Um de seus filhos-de-santo mais antigos, que o acompanhou vindo do Remanso, ao narrar essa história, disse que os iniciados que na ocasião não o golpeavam com a devida força – como era o caso de muitas das filhas-de-santo, com pena do curador – acabavam eles mesmos sendo exemplados, por desobedecerem à entidade. Sabendo disso, esse senhor disse ter caprichado quando chegou sua vez de manejar o instrumento, mesmo porque ele próprio já sentira na pele o efeito do Sete-Perna e essa seria sua oportunidade de ir à forra. Desferidos os golpes, recebidos pela entidade com aprovação, o filho-de-santo constatou com surpresa que, diferentemente do que acontecera no caso dele, nas costas do curador não ficou marca alguma. Não foi somente uma única pessoa que se indispôs com Pedro de Laura que acabou tendo um destino funesto, como atestam histórias conhecidas ou mesmo presenciadas por

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muitos dos habitantes da cidade. Por motivos que só é possível supor, um rapaz certa vez resolveu aplicar publicamente no curador uma surra com vara verde, no meio da rua, deixando sua camisa ensanguentada. Ao ser acudido por suas filhas-de-santo e levado para sua residência para se limpar e fazer curativos, ele lhes instruiu a não lavarem a camisa branca que vestia. Não se sabe se ele realizou algum procedimento com o objeto, mas o que todos notaram é que dentro de algum tempo o rapaz que o atacara começou a emagrecer de forma alarmante e sem motivo aparente, definhando progressivamente até morrer. No dia do enterro desse seu agressor, diz-se que Pedro saiu caminhando pelas ruas de Lençóis vestindo a mesma camisa, ainda manchada com sangue, agora seco. Em outra ocasião, um jovem decidiu ignorar os avisos que lhe tinham sido dados e comeu o alimento que compunha um despacho feito por Pedro deixado próximo ao cemitério, vindo a perecer após ter evacuado areia por dias a fio. Outro episódio nefasto, fruto direto de um de seus rompantes de austeridade excessiva, acabaria tendo consequências trágicas para o próprio Pedro de Laura. Uma das frequentadoras da Capivara, após ter sido duramente exemplada por ele com o Sete-Perna, veio a falecer alguns dias depois, alguns dizem que em decorrência dos ferimentos. Ela era irmã de uma líder de jarê que possuía sua casa de culto em Lençóis, e que jurou vingança contra Pedro. Para tanto, mancomunou com uma colega de Pedro, uma das muitas mulheres que no passado haviam sido damas-da-roda para os garimpeiros da cidade e com quem o curador costumava passar muitos dias bebendo. Certo dia, depois de se encontrarem consideravelmente embriagados, a ex-meretriz, enquanto estava em seu período, aproveitou-se da fragilidade do pai-de-santo para esfregar sua vulva na cabeça dele. Em seguida, deu-lhe de comer um peixe lambuzado com o mesmo sangue menstrual, fazendo com que a substância, provavelmente a mais danosa que existe para um curador283, não só entrasse em contato direto com sua cabeça, local de maior concentração da força pessoal, como fosse por ele ingerida, método

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Como será visto no capítulo 4, na seção 4.5.

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considerado infalível para a transmissão de feitiços. Pedro ficou temporariamente atrapalhado após o evento e, mesmo depois de ter se recuperado, desse dia em diante nunca mais foi o mesmo: continuou a ser um curador de grande renome, mas ficaram para trás os dias em que realizava muitas das façanhas pelas quais até hoje é lembrado. Sua comadre, mencionada no capítulo anterior, Dona Valdelice do Alto da Estrela, comentou que essa história não teve um desfecho satisfatório para nenhuma das partes envolvidas: as demais pessoas da família da falecida foram morrendo uma a uma, e a casa de jarê que mantinham em Lençóis interrompeu seu funcionamento, encontrando-se desativada até hoje. Seu Gilson comentou certa vez como figuras de grande força e magnetismo pessoais, como era o caso de Pedro de Laura, atraíam em torno de si diversos simpatizantes, muitos deles levando em conta o fato de por meio dessa proximidade obterem defesa contra adversidades, fossem de origem mística, fossem temporais – prefigurando assim a Associação que hoje Sandoval liderava, Seu Gilson acrescentou –, já que a fama do grande curador de Lençóis lhes garantia também algum acesso às instâncias do poder constituído. Uma de suas filhas-de-santo mais antigas, temendo ser presa por ferir gravemente outra iniciada da casa ao revidar agressões físicas que sofrera no próprio Palácio de Ogum, contou como Pedro havia lhe tranquilizado dizendo que falaria pessoalmente com o delegado e esclareceria que havia se tratado de legítima defesa, e que se alguém teria de dormir na cadeia seria ele por ter permitido que a briga acontecesse em sua propriedade. Após ter me contado que finalmente ninguém foi encarcerado, a senhora acrescentou que a proteção de Pedro, quando ele o desejava, podia se estender mesmo a pessoas que haviam derramado sangue e buscavam refúgio das forças da lei: se alguém era abrigado na Capivara, caso se tratasse de um de seus filhos-de-santo mais estimados, os policiais, como sabiam o que era melhor para eles, nunca ousavam ir até lá para procurá-lo – até porque, ainda que decidissem fazê-lo, tampouco encontrariam o caminho.

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Desavenças entre os frequentadores do Palácio de Ogum não eram incomuns, mesmo porque diversas famílias carnais diferentes se congregavam no terreiro. As disputas podiam ser mesmo, como visto, entre os próprios filhos-de-santo, por vezes ao imaginarem ser possível obter o favoritismo do curador. Em função disso, e com o passar dos anos, Pedro de Laura resolveu extinguir o tradicional cargo de mãe-pequena da Capivara, também chamado de “ogã”, desestimulando a competição entre os iniciados e recorrendo, de modo mais indistinto, aos membros de um conjunto variado de pessoas mais próximas de si para auxiliálo nas atribuições rituais. Não coincidentemente, todos os atuais líderes de jarê da cidade de Lençóis faziam parte desse coletivo mais restrito, ainda que fosse consenso que nenhum deles, ao menos até o momento, tivesse demonstrado os mesmos carisma e capacidade de mobilização de filhos-de-santo que Pedro de Laura exibiu durante seu reinado no Palácio de Ogum. Durante as conversas com os frequentadores da Capivara que eram mais próximos do curador, muitos enfatizavam sua amizade com Pedro de modo ainda mais marcado do que sua relação de parentesco ritual, por mais que essa também se mostrasse das mais constitutivas e que ele fosse considerado um pai, em muitos sentidos, insubstituível. Vários deles transmitiam a certeza de serem os filhos-de-santo prediletos de Pedro de Laura, o que me parecia ser testemunho menos de qualquer suposta tentativa de autopromoção dos iniciados do que da personalidade magnética do chefe da Capivara284. Uma das tradições que continua a ser mantida no Palácio de Ogum é a realização da fogueira de Odé – nome do caboclo que é uma versão infantil do orixá Oxóssi –, que acontece em dezembro no dia em que se comemora a festa para Iansã. Os membros da casa de culto

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Ver fotos 63 e 64 no anexo III. Certa vez comentei com Elias a respeito duas formas distintas de carisma, uma cujo portador é considerado uma pessoa excepcional em si, outra cujo portador é considerado excepcional por sua capacidade de fazer seus seguidores se sentirem pessoas especiais. Elias concordou com o fato de que, embora Pedro fosse sem dúvida portador de ambos os tipos de carisma, fica na memória de muitas de suas filhas-de-santo a confiança que depositava nelas, o modo como fazia com que se sentissem especiais, únicas, bem como seu grande apreço por elas. Muitas das filhas-de-santo mencionam como seus trabalhos de iniciação foram singulares, como ele lhes abria precedentes que não concedia às demais, como só elas eram escolhidas para realização de certas tarefas rituais etc.

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derrubam uma árvore jovem, alta e preferencialmente de tronco fino, numa área externa mas próxima ao terreno da casa de culto, e amarram em seus galhos diversos presentes, incluindo brinquedos, perfumes, sabonetes, frutas, biscoitos, balas, chocolates e outros doces. Depois, voltam a erguê-la, fincando-a no chão e amparando-a com pedaços de madeira lenhosa que à noite serão conflagrados para dar origem à fogueira. Os frequentadores da casa aguardam ansiosos que o tronco da árvore seja consumido para que ela caia e tenha início uma corrida desenfreada para se obter o maior número de presentes possível, da qual crianças e jovens participam com grande entusiasmo285. A direção e o sentido, em relação ao Palácio, que a árvore assume ao tombar encerram em si presságios para a existência futura da casa: cair em sentido oposto ao terreno é indicativo de que o ano vindouro trará acontecimentos favoráveis à Capivara e aos seus; cair voltada para a construção é sinal de que haverá tribulações e adversidades no caminho da catedral do jarê. No final do ano de 1997, a árvore erguida para a fogueira de Odé tombou apontando exatamente a entrada do terreiro, precisamente aos pés da cadeira na qual estava sentado Pedro de Laura. Pedro não viveria para ver a fogueira de Odé seguinte, algo de que ele próprio tinha certeza, como os filhos-de-santo da Capivara foram se dando conta. Como me disseram, eles descobriram que um grande curador é capaz de pressentir com alguma antecedência o momento de sua morte, tomando medidas para que o pior não aconteça a sua casa. Antes de morrer, Pedro de Laura removeu grande parte dos objetos assentados em seu peji e os despachou no Poção do Capivara, tendo ocultado ainda outros para que não pudessem ser utilizados por pessoas que não possuíssem a capacidade necessária. Muito do que ele deixou disponível, segundo Elias, ficou na forma de versões menos potentes dos instrumentos que o curador e suas entidades manejavam, como “ilusão”, nas palavras de meu amigo. Se é possível que a atitude de Pedro configure, por um lado, um expediente de solução de

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Ver fotos 65 e 66 no anexo III.

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continuidade, desfazendo-se adequadamente de forças que não podem permanecer atuantes sem sua presença, por outro lado constitui também uma forma de não transmitir essas potências gratuitamente, impedindo que sejam legadas a alguém que não possa – ou não deva – recebê-las: é preciso empenho para se erguer uma casa de culto, e é ao longo da própria empreitada de criá-la e fazê-la crescer que se adquire ao menos parte do conhecimento necessário ao cuidado das forças envolvidas no processo – como ele próprio havia feito ao vir do Remanso para a Capivara. Com suas últimas ações, Pedro de Laura apresentava a seus filhos-de-santo uma concepção bastante singular de destino. No fim da vida, Pedro se encontrava acometido por graves problemas de coluna que o impediam de se movimentar como outrora, e quando alguma de suas entidades incorporava tinha de dançar de maneira mais cuidadosa, mas ainda muito bela, com auxílio dos filhos-desanto. Seu estado de saúde, porém, se agravou em definitivo ao lutar contra um câncer que terminaria por vencê-lo. Pedro foi tratado em cidades da própria Chapada, recusando-se a ir para Salvador mesmo diante da insistência de todos que lhe eram próximos – aí incluídos alguns de seus próprios espíritos que, quando nele se manifestavam, rogavam aos filhos-desanto que acompanhassem o curador para locais nos quais poderia receber cuidados médicos mais intensos. Apesar de não faltarem voluntários para a tarefa, como disseram, foi o próprio Pedro de Laura que não aceitou ser transportado para muito longe da região na qual nascera, crescera e se criara; na qual preferia também morrer. Alguns dias antes de seu falecimento, mandou reunir as pessoas de quem era mais chegado para transmitir algumas últimas mensagens, quando foi enunciada a frase escolhida para dar início a este capítulo, contendo a mensagem de Iansã. Ainda que estivesse mais próximo de determinadas pessoas em seus últimos anos de vida, chegando mesmo a treinar de forma mais direta alguns curadores em potencial, Pedro não apontou uma pessoa em específico para assumir a condução do Palácio de Ogum, ponto que, por diferentes motivos, todos os presentes naquele momento frisam ter

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ficado claro. Aos ali reunidos ele pediu, de toda forma, para que não deixassem sua casa cair após sua morte. E é isso que os filhos da Capivara têm procurado fazer até então. A morte de Pedro de Laura esteve longe de significar o fim de sua presença nas vidas daqueles de quem era próximo, e o curador continuava a habitar não somente suas lembranças como seus sonhos. O próprio Sandoval – que, por não incorporar os espíritos, só tinha contato mais pessoal com as entidades da Capivara por meio de visões e sensações enquanto dormia – me disse que havia reencontrado o pai num sonho algum tempo após a morte deste, num momento em que ele apontava para o filho, destacando-o entre um conjunto de pessoas. Sandoval afirmou que entendeu o sonho que teve como uma mensagem de seu pai para que ele se colocasse à frente do Palácio de Ogum e liderasse a realização de seus festejos, motivo pelo qual ele passou a lutar contra a própria timidez e procurar ser um expoente na defesa do jarê como um todo – e da casa de Pedro em particular. Vários dos filhos-de-santo de Pedro de Laura já sonharam em alguma ocasião com o curador após seu falecimento, algo que passou a ocorrer com menos frequência, disseram, com aqueles que haviam buscado para si um novo pai-de-santo, especificamente após terem realizado o ritual já mencionado de tirar a mão do morto de suas cabeças. Mais de uma filha-de-santo contou como, antes de se iniciar em outro terreiro, teve um último sonho no qual Pedro se despedia dela e fornecia um sinal que era interpretado como indicação e aprovação a respeito da nova casa à qual ela deveria se conectar. Os sonhos dos filhos-de-santo com Pedro de Laura são bastante variados, mas praticamente todos acabam gerando repercussões bem diretas em seu cotidiano. Além de transmitir mensagens e fornecer presságios a respeito de acontecimentos futuros, há casos em que o curador os encontra para lhes ensinar novas cantigas que serão então reproduzidas nas cerimônias de jarê, transmitir procedimentos e fórmulas para realização de trabalhos rituais específicos, cobrar dívidas pendentes que aquele que sonha procura quitar imediatamente, ou

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para realizar ele próprio algum tipo de ação. Uma senhora contou como, muitos anos após o falecimento de Pedro, ele a visitou durante o sono, num período de sua vida pelo qual ela passava por uma grande aflição – cuja causa escapava a todos os profissionais de saúde que consultava –, oferecendo-lhe um preparo medicinal num copo de formato idêntico ao que ela sabia existir na Capivara, fazendo com que ficasse curada de uma vez por todas da enfermidade que a assolava. Assim como fizeram vários dos filhos-de-santo da casa ao narrar situações similares, enquanto comentava a respeito do assunto essa senhora se perguntava se fora o próprio Pedro de Laura que ela havia encontrado em seu sonho, chegando à hipótese de que fora afinal visitada por uma das entidades do curador, sob a feição deste. Afinal, alguns sustentavam, enquanto a matéria apodrece e tem seu fim definitivo, as entidades ligadas a uma pessoa podem continuar a existir de modos distintos e em locais específicos. Se só os mais antigos e corajosos entre os adeptos da Capivara escolhiam não realizar iniciações em outros terreiros, tanto estes como os que se sujeitavam a novos rituais mantinham em comum o fato de permanecerem – se não exatamente filhos-de-santo de Pedro de Laura – conectados ao Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, especialmente por meio das duas entidades que lhe emprestavam nome.

3.5 Propagações

“O jarê”, um filho-de-santo propenso a elucubrações certa vez sintetizou, “o jarê é uma pergunta sem resposta”. Conversávamos a respeito do papel do segredo no culto e sobre a existência de informações que não podiam ser divulgadas, tanto aquelas que deviam ser mantidas ocultas em função de um pedido explícito de seu detentor como as que, se fossem reveladas, acarretariam consequências indesejáveis para os envolvidos, pelos mais diversos motivos. O conhecimento de determinadas fórmulas, procedimentos, locais, substâncias, é

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parte do patrimônio de uma casa de culto e de seu chefe, é sua “ciência”, como dizem frequentemente. A manutenção da ciência do jarê nas mãos somente daqueles que estão aptos a utilizá-la é condição para a felicidade das cerimônias, princípio que acaba entrando em conflito com a prática de treinar possíveis novos curadores, à qual todo pai-de-santo tem de inevitavelmente fazer recurso para dispor de auxiliares rituais devidamente qualificados. De maneira explícita, os curadores afirmam que nunca ensinam nada a quem quer que seja, repreendendo especialmente os filhos-de-santo que comunicam o desejo de aprender a respeito da arte que é o ofício do curador. A recusa aparente em passar adiante o conhecimento adquirido, também exemplificada pela atitude anteriormente mencionada da hábil batedora que dizia não ser professora dos irmãos de Sandoval, está longe de se limitar aos jarês, tendo-me chamado atenção ao ouvir uma história contada por uma filha-de-santo a respeito de como aprendera a tecer. Quando era jovem, ela narrou aos presentes, separara alguns dias para deixar sua roça e visitar uma senhora conhecida como competente tecedora, com o intuito de aprender a técnica. Passara horas a fio sem dizer nada, só observando-a atentamente manejar a agulha e o fio, até que a senhora lhe perguntou se estava ali para aprender a tecer. A jovem lhe disse que sim, mas que resolvera não pedir para que lhe ensinasse e nem oferecera dinheiro algum à senhora, pois sabia que se fizesse qualquer das duas coisas sua demanda seria negada. A outra assentiu e continuou a tecer, e a aprendiz concluiu sua história dizendo com orgulho que tinha aprendido os movimentos até em menos tempo do que imaginara, não sendo contudo capaz de dar alguns pontos só com os dedos – como as mais habilidosas eram capazes de fazer – tendo por isso de recorrer à agulha – objeto que, por sinal, viera pedir emprestado à dona da casa em que nos encontrávamos, em função da sua ter acabado de quebrar. Em outro episódio, quando caminhávamos nos arredores da cidade, Dona Valdelice reprovara os curadores da atualidade por sua falta de conhecimento das tradições, acrescentando que ela não passaria o saber que

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tinha adquirido para ninguém. Eu e Elias encontramos uma forma de sugerir a Dona Valdelice que ele próprio já havia aprendido muito com ela, algo que ela negou peremptoriamente, dizendo que não tinha ensinado nada a esse respeito nem às próprias filhas, quanto mais a Elias. Ato contínuo, pôs-se a caminhar e cantar cantigas de jarê como muitas das que já lhe havia transmitido, entremeando-as com comentários a respeito das plantas medicinais que encontrava pelo caminho, enumerando seus nomes e usos. Ainda que seja uma possibilidade, recusar-se a assumir a posição de ensinador nem sempre resulta no impedimento da transmissão da ciência, dos saberes, segredos. Tampouco representa univocamente, ou principalmente, um meio de agregar valor ao conhecimento esotérico por sua própria ocultação286. Rejeitar explicitamente a transmissão do saber é antes de tudo um meio de limitar sua aquisição por transferência explícita, similarmente ao que ocorre quando um curador assume a liderança de uma casa de culto que era de outra pessoa: não é algo que possa, ou deva, acontecer sem que haja trabalho envolvido, sem que o próprio interessado despenda parte de sua energia pessoal na empreitada. Além disso, evitar a posição de instrutor é uma maneira de ensinar outra lição valiosa: a de que a ciência do jarê encerra em si de forma indissociável um potencial de utilização que deve ser corretamente apreendido (nos dois sentidos, tanto de assimilado como de encerrado; compreendido) para que não produza efeitos perniciosos, cuja acumulação por si só já pode suscitar287. Nesse sentido, como será visto a seguir, não há aprendizado inocente, até porque não existe acúmulo sem

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Em última instância o segredo seria assim, sugerem alguns, um mero dispositivo de dissimulação de relações de poder esvaziado e ressignificado em face de transformações históricas, como evidencia a preferência pelo termo “secretismo”, um recurso entre outros mobilizado pela busca e manutenção de prestígio (Jamin 1977: 124127; Johnson 2002: 187-188). 287

Alguns dos frequentadores menos habituais das cerimônias, ao se depararem com minha curiosidade a respeito do culto, quando passaram a ter maior intimidade comigo me perguntaram se eu pretendia dar início a uma casa de jarê quando voltasse ao Rio de Janeiro – algo que os adeptos de maior conhecimento consideravam, ao contrário, absolutamente impensável. Uns e outros, de toda forma, concordavam a respeito das possibilidades que meu trabalho tinha de registrar e passar adiante ao menos parte do saber envolvido na ciência do jarê.

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uma correspondente escassez288. Dessa forma, por fim, limitar a aquisição do conhecimento é uma forma de protegê-los, de blindar a ciência do jarê daqueles que não estariam prontos para mobilizá-la, inclusive por não terem “precisão” para tanto, termo que os filhos-de-santo usam com frequência, provavelmente tendo em mente suas duas acepções: tanto, por um lado, utilidade e necessidade como, por outro, exatidão, rigor na execução289. Pais e filhos-de-santo podem discutir abertamente acerca da transmissão do saber em ocasiões afastadas da concretização das cerimônias, estes tentando, em geral sem sucesso, convencer os primeiros a compartilhar detalhes e informações sobre eventos que presenciaram, enquanto aqueles frisam o quanto tiveram de batalhar, de forma árdua e com muita perseverança, para conquistar o conhecimento que haviam obtido. Um curador, por exemplo, gostava de fazer troça com seus iniciados, dizendo-lhes que muitos deles já haviam acompanhado a realização dos mesmos procedimentos inúmeras vezes, e que àquela altura já deveriam ter aprendido tudo que havia para ser ensinado. Os mais perspicazes e que retrucavam com igual irreverência diziam saber que havia sempre alguma alteração que suplementava as ações rituais, fosse uma palavra a ser dita no momento de colher uma erva, um ajuste na posição de um objeto na organização de um trabalho iniciático, uma cantiga a ser inserida fora da ordem habitual alterando a sequência de incorporações numa cerimônia: acréscimos ou supressões que contribuíam para a realização apropriada dos rituais290. Assim, não só suas formas de transmissão, mas a própria substância da ciência do jarê envolve igualmente movimentos de facilitação e interrupção de fluxos, uma perícia para canalizações 288

Como visto no capítulo 1, seção 1.5. Os corolários dessa constatação para a força pessoal dos envolvidos serão descritos no capítulo 4, seção 4.4. Não há motivo para não estranhar a noção de que seria possível realizar uma transmissão de conhecimento sem que a fonte do qual ele se origina sofra com isso algum esvaziamento (Goldman 2005: 108). 289

Pierre Verger comentara sobre as limitações das formas de ensino didáticas no aprendizado para se tornar adivinho, que mesmo após a iniciação é feito muito mais por observação (Souty 2007: 47). 290

Já se notou a aproximação, feita em grande parte da obra de Roger Bastide, entre as curvas e torções adicionais do barroco e as do candomblé, especialmente quando o primeiro é pensado, inspirando-se em Deleuze, não só como um conjunto de traços estilísticos mas como uma operação do olhar e do pensamento, ancorada em movimentos permanentes de diferenciação (Peixoto 2011: 395-397).

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específicas cuja aquisição diferencia os pais-de-santo dos iniciados, e cuja maestria distingue os melhores curadores dos demais. Parte do saber do culto é transmitida para aqueles interessados e preparados para recebê-lo, cultivando a atitude que Elias apropriadamente chamava de “tomar ensinamento”, frisando também a importância da proximidade pessoal com os mais antigos para que, ao longo do cotidiano e com o tempo, estes lhes passassem as histórias e orientações que desejassem manter vivas. Em parte também o conhecimento de detalhes e procedimentos alternativos podia ser adquirido de fontes diversas, incluindo mesmo livros e revistas que os curadores liam de maneira bastante seletiva, dando muito mais atenção a descrições e experimentos de personagens do que a qualquer autoridade que adviria de sua autoria ou possível inserção em ambientes acadêmicos. Além disso, alguns pais-de-santo comentavam ter o hábito de fazer suas próprias anotações em cadernos destinados ao propósito de registrar vivências e resultados obtidos em seus rituais e nos de outrem, guardados com muito zelo. Todos esses procedimentos indicam uma disposição específica em se aproveitar informações de forma parcelar e pô-las à prova, a confirmação de sua validade para eles sendo ratificada pela obtenção de efeitos específicos291. De todo modo, a maior fonte tanto de obtenção e aprimoramento da ciência do jarê quanto de confirmação de sua adequação para um curador continua a ser a experiência pessoal mediada pelas entidades místicas. O próprio Pedro de Laura, segundo seus filhos-de-santo, gostava de enfatizar que ele mesmo pouco sabia, o conhecimento que mobilizava nas cerimônias de jarê sendo predicado dos espíritos que era capaz de mobilizar. Ele afirmava que os iniciados deviam prestar sempre muita atenção ao que seus caboclos faziam e diziam quando nele incorporados, já que assim poderiam lhe transmitir informações e mensagens deixadas por eles – e mesmo aprenderem 291

No candomblé esse processo tentativo pode receber o nome de “catar folha”, em referência, entre outras, à ação de reunir pacientemente determinadas ervas – e saberes – ao longo do tempo, com auxílio da experiência, e em função dos sucessos e malogros acumulados com a prática (Goldman 2005: 107-109; 2006: 24; 2011: 423424).

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eles próprios algo do que esses seres grandiosos estivessem dispostos a lhes legar. Mussum, que se tornara um dos responsáveis pela condução dos jarês na Capivara, costumava comentar como as entidades que recebera de família – de sua mãe e de sua avó – haviam lhe transmitido saberes que ambas cultivaram em vida, por terem sido grandes parteiras e conhecedoras de diversas ervas e seus usos medicinais, tendo vivido numa época em que os preparos da medicina eram ainda menos disponíveis na região. As entidades que acompanham uma pessoa também podem se manifestar de formas mais indiretas e que permitem o estabelecimento de canais de comunicação com os iniciados, seja nos sonhos, como já mencionado, seja no próprio terreiro por meio de simulacros visuais que tomam a forma de pessoas, as chamadas “sombras”, e que nem todos os presentes têm capacidade de enxergar, seja ainda somente por suas vozes, escutadas pelos curadores durante a condução de rituais específicos para que saibam como melhor atender aos anseios dos espíritos. Por motivos diversos, muito da ciência do jarê existe sob a forma de segredos que, inevitavelmente entrelaçados, compõem uma sigética sacramental particular, uma economia de silêncios que não se dão todos pelos mesmos motivos, e que tampouco é possível controlar perfeitamente mas que se pode manejar de modo a ser pressentida – de modo parecido com o que se pode fazer num texto a respeito dela292. Os processos de treinamento e iniciação de um novo curador, momentos particularmente delicados para a transmissão de conhecimento, encontram-se repletos de exemplos das diferentes formas dessa sigética, como os pais-desanto que falavam a respeito dela davam a entender. Há silêncios que são mantidos para que

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Esse trecho é inspirado no procedimento promovido por uma passagem a respeito do tema da extravagância que evoca em sua narrativa um estilo desconcertante que se assemelha ao objeto de que fala, passagem que igualmente encerra a mais brilhante resposta que conheço contra quaisquer acusações de ‘exotização’ que se poderia dirigir à antropologia (Serra 1995: 175-180). O termo heideggeriano “sigética”, por sua vez, foi apropriado dos usos que lhe deu o mesmo autor em contexto distinto, sendo aqui utilizado no mesmo espírito comparativo por ele proposto (Serra 2008; Serra 2009: 84-85 nota 65). O tema aqui, de todo modo, é o do mistério, que possui em si uma dimensão sacramental (Bateson 1972: 36-37), face esta que pode ser redobrada nas religiões de matriz africana (Banaggia 2008: 8-9). Nelas, existe um silêncio voluntário e pleno de sentido que abre o caminho a outras formas de comunicação, sobre as quais já se escreveu de modo formidável (Souty 2007: 48, 385-401).

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determinadas informações não sejam transmitidas a pessoas que dela farão mau uso, e abundam histórias sobre relações conflituosas entre pais e filhos-de-santo quando estes desejam se tornar mais poderosos que aqueles, em geral resultando no infortúnio dos iniciados – mas nem sempre. A respeito desse processo, quando comentava sobre o que transmitia para um filho-de-santo que desejava se tornar curador, um pai-de-santo certa vez me disse: “Você pode ensinar a ele dez pulos, mas o pulo número 11 você não pode ensinar, que ele vai querer ser mais sábio que você e vai querer talvez até lhe derrubar”. Manter a posse exclusiva de uma quantidade suplementar de conhecimento, arduamente adquirido ao longo de sua trajetória mística, era um meio do pai-de-santo se resguardar contra possíveis investidas de iniciados ambiciosos. Arremetidas assim podiam acontecer justamente por se ignorar as razões que envolviam uma segunda forma de segredo no jarê, que recobre de silêncio determinadas informações cujo ato mesmo de enunciação acarreta efeitos nefastos para os envolvidos. Como disse um curador, usando uma expressão que me pareceu particularmente apropriada

por

poder

ser

igualmente

metafórica,

ao

falar

de

filhos-de-santo

desmesuradamente cobiçosos, existem aqueles que simplesmente querem desrespeitar “a lei da gravidade”. Somados a esses, há ainda o silêncio que decorre do segredo que não há como ser expresso, cuja natureza mesma o torna possível somente de ser experimentado: o inefável. Se o esoterismo da ciência do jarê em algum grau também pode motivar a falta de continuidade geral de grandes casas de culto na região, e por mais que seu número absoluto tenha diminuído nos últimos anos, conforme avaliam os filhos-de-santo, o jarê continua vivo, e novos templos têm sido erguidos, como em certa medida sempre se fez, em função da importância de um curador plantar sua própria roça e dar início a sua própria casa, desenvolvendo com o local uma ligação característica e ao menos parcialmente insubstituível. Parece ser invariável a constatação de que todo curador jamais desejou para si tornar-se um chefe de uma casa de culto, ou ao menos que nunca imaginou que sua vida tomaria esse rumo.

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Quando falam sobre a função, é comum que as pessoas se refiram a ela em termos de uma necessidade – similar à que faz com que um alguém seja iniciado numa casa de culto, mas ainda mais premente: diz-se que todo curador o é por precisar cumprir uma “sina”, uma “obrigação”, uma “sentença”, lidar com um “peso” – seja seu, seja em lugar de alguém próximo, como um membro de sua família que por algum motivo não possa assumir essa responsabilidade. Parte da trajetória inicial de um pai-de-santo envolve justamente acostumarse à ideia de sê-lo, o que também estimulará o desenvolvimento de sua mediunidade, sendo o primeiro processo, de modo reverso, auxiliado pelo segundo. Antes de se tornar capaz de plantar sua roça, abrir seu próprio terreiro, um curador em potencial precisará passar por alguma forma de preparo específica à assunção da posição. Alguns líderes do culto disseram que, já no momento em que foram feitos seus trabalhos iniciáticos, seus pais-de-santo perceberam no jogo divinatório ou no decorrer do próprio ritual de iniciação ser o iniciado detentor da qualidade que o habilitaria a se tornar ele próprio um iniciador, acrescentando procedimentos rituais que abririam seus caminhos para tanto. Nesse momento, uma pessoa pode se manifestar de forma mais contundente caso efetivamente deseje não se tornar um chefe de terreiro, como uma filha-de-santo contou ter acontecido com ela ao receber nova iniciação após o falecimento de Pedro de Laura. No ritual em que se ligava a uma outra casa, a mãe-de-santo que retirava a mão do morto de sua cabeça – ela sendo também filha da Capivara –, manifestando uma de suas entidades, disse-lhe ter reconhecido sua força pessoal e oferecido a possibilidade de que ela se tornasse também uma curadora. A inicianda recusou a oferta, preferindo manter-se somente como filha-de-santo e realizando jarês em sua casa de culto sem que ali fossem feitas iniciações. O preparo para se tornar um curador pode também envolver a harmonização com espíritos de quem o iniciado não era próximo anteriormente, que podem proceder tanto de pessoas que lhe são íntimas, em geral membros de sua família carnal, como, mais raramente, de determinados locais, como

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grandes árvores em porções específicas da mata, ou ainda lagos ou grutas. De modo parecido, a empreitada para se tornar um curador pode requerer o achado ou aquisição de itens místicos – tais como as já mencionadas pedras de raio, estatuetas dos santos, vestimentas e objetos pessoais pertencentes a outros pais-de-santo –, ou ser motivada por eles. Aqueles que se tornam curadores também enfatizam o rigor de seus resguardos após seu trabalho de iniciação, mantidos com muito mais diligência e por muito mais tempo do que o que se espera dos demais filhos-de-santo. O zelo assim demonstrado será um sinal da postura idêntica que o curador irá cultivar por toda vida ao se tornar um “guardião do segredo dos orixás”, como me disse certa vez um deles ao explicar o que significava o título de pai-desanto. Muitos potenciais curadores podem até nunca vir a formar suas próprias casas, dedicando-se a atuar enquanto curadores secundários – sendo considerado o principal entre os ogãs, os auxiliares rituais, de uma casa – nos terreiros de seus pais-de-santo, possivelmente dando suas obrigações por cumpridas após a morte do líder da casa de culto. Pode acontecer, entretanto, de um curador decidir tornar-se chefe de uma casa de culto ainda em vida daquele que o iniciou, preferencialmente contando com sua bênção. De acordo com pais-de-santo que seguiram esse caminho, no ritual de se plantar a roça para a criação de um novo terreiro há determinados procedimentos rituais, especialmente aqueles envolvendo a preparação do caramanchão, que nunca podem ser efetuados pelo próprio dono da casa, já que cabem ao paide-santo que lhe iniciou ou, na falta dele, a algum curador mais antigo, provavelmente a quem irá se solicitar primeiramente a realização do ritual de tirar a mão do morto de sua cabeça, sendo esse o caso. Estabelecido o terreiro, o novo curador dará início a suas atividades, podendo contar com a visita de seu pai-de-santo em sua casa recém-inaugurada e continuando a frequentar o terreiro onde foi iniciado, caso permaneçam em bons termos. Após passar a oficiar ele mesmo iniciações e ter seus filhos-de-santo, o novo curador será prova de que seu

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pai-de-santo passa a fazer jus ao título de mestre do jarê, ambos dando prosseguimento à tarefa de “dar qualidade” às pessoas, entidades e rituais feitos em seus terreiros. Uma das experiências que pode servir como demonstrativo da necessidade de que uma pessoa deve ser iniciada num terreiro é ainda mais significativa para aqueles que se tornarão curadores em potencial: a de enlouquecer. A maior parte dos pais-de-santo é rondada por histórias dos períodos em que ficaram loucos, alguns levados à força, amarrados com cordas, até as casas de culto nas quais seriam simultaneamente tratados e iniciados, livrando-se a partir daí dos ataques de insanidade. A loucura que assola os membros do jarê antes de serem apresentados ao culto é de uma espécie bastante característica, em geral rapidamente identificada por “entendidos” – que é como se chama qualquer pessoa que tenha algum conhecimento da ciência do jarê – como um sintoma que só poderá ser tratado por um curador. Essas crises podem ser desencadeadas tanto por acontecimentos seculares, como uma doença física ou uma desilusão amorosa, quanto por eventos místicos, quando em geral não se consegue atribuir nenhuma outra causa possível que não a ação direta das entidades espirituais, que de toda forma também podem figurar como copartícipes nos primeiros casos. Quaisquer que sejam seus motivos, a loucura tratada no jarê assume formas ligadas a concepções de selvageria, remetendo-se ou a uma conduta considerada raivosa, que pode incluir rompantes de fúria que terminam com objetos quebrados ou pessoas feridas, ou a um comportamento apático, no qual o enlouquecido não dispõe de interesse para nenhuma atividade e pode eventualmente se isolar da convivência com seus pares, indo para locais ermos e preferindo ficar e por vezes dormir em matas ou grutas afastadas da cidade293.

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O assunto é bastante delicado e, como outros, só começou a ser discutido comigo de forma mais aberta após muitos meses de convivência com os adeptos. Além das muitas histórias e depoimentos que acabei por escutar, houve uma única vez em que presenciei um desses ataques, quando cruzei certa noite por um jovem do Remanso – cujas falas e ações indicavam estar seguindo os passos do pai, um líder comunitário já falecido – esbravejando sozinho na rua contra uma das associações da cidade por ter se aproveitado dos remanescentes de quilombolas sem lhes proporcionar o retorno adequado.

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Tanto num caso como no outro, parte do tratamento junto a um curador envolvia métodos de domesticação dos envolvidos, fosse das entidades do aflito, do próprio louco, ou ainda do conjunto desses. Enquanto as primeiras tornam-se alvo de ações rituais por parte do pai-de-santo, feitas em sua maioria no interior do peji, o segundo passará a residir no próprio terreiro e será gradativamente amansado pela realização de tarefas manuais, como carregar água, catar e cortar lenha, varrer a propriedade. O futuro iniciado passará a ser alimentado pelo curador e entre eles se estabelecerá uma conexão que virá a ser fortalecida quando for possível realizar seu trabalho iniciático. Ao final dessa etapa, o filho-de-santo se encontra definitivamente curado e volta a sua vida cotidiana, retornando ao trabalho e ao convívio com seus amigos e parentes, sendo agora também membro de uma família conectada espiritualmente. Para aqueles que um dia se tornarão eles próprios curadores, o duplo acesso – já que ela se trata tanto de um ataque repentino como de uma via de aproximação – que essa loucura constitui é ao mesmo tempo indicativo e estimulador de sua permeabilidade à ação das entidades. Torna-se louco aquele que de algum modo já é mais suscetível às influências dos espíritos; simultânea e complementarmente, os filhos-de-santo explicam, ser alvo das ações desses seres faz daquele que experimenta o enlouquecimento ainda mais apto a reconhecê-las e porventura manejá-las294. A maior parte dos chefes das casas de culto da atualidade em Lençóis é composta por membros das últimas gerações de filhos-de-santo iniciados por Pedro de Laura. Apesar de muitos deles permanecerem inextrincavelmente conectados à Capivara e desejosos de honrar o pedido feito por seu pai-de-santo de manter viva sua casa, o fato de Pedro não ter apontado

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É bastante disseminada a ideia de que um enfeitiçado adquire o potencial de manipular as energias que o enfeitiçaram, tornando-se capaz de se tornar um desenfeitiçador, bem como um xamã se torne capaz de produzir uma cura por já ter ficado ele próprio sob ação da doença (Lévi-Strauss 1949: 195). De modo geral, nas religiões de matriz africana, a iniciação é um ritual que contém o princípio de sua própria repetição e que se completa propriamente nessa (Souty 2007: 362). A respeito dos curadores do jarê de quem não se tem certeza se passaram por um período de loucura similar, como era o caso de Pedro de Laura, comenta-se o mesmo que se falava de Dona Valdelice, sua comadre: era possível que já tivesse nascido feito. Esses temas serão elaborados no capítulo 4, seção 4.4.

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um sucessor direto – bem como de não ter deixado membros de sua família não mística com experiência e conhecimento da ciência do jarê – fez com que o Palácio de Ogum passasse por momentos conturbados após seu falecimento. Inicialmente, e após o cumprimento do período obrigatório de luto no qual na casa não deve ser feita nenhuma atividade, o conjunto dos filhos-de-santo da Capivara experimentou conceder a um dos iniciados menos recentes de Pedro de Laura a possibilidade de realizar rituais no terreiro, por já ter experiência na condução de jarês realizados em outras casas em Lençóis e em candomblés em São Paulo. Esse curador possuía a fama de ter sido “pai-de-santo do Corinthians”, por já ter diversas vezes atuado como consultor espiritual do time paulista, constando inclusive ao longo de muitos anos na folha de pagamento da equipe, registrado com outra função295. Os filhos-desanto contam que o período em que ele atuou como pai-de-santo na Capivara mostrou-se muito conturbado, gerando desavenças e tendo consequências graves até hoje para algumas das pessoas para as quais ele realizou trabalhos rituais, fatos que levaram Sandoval e os demais membros da casa a efetuarem seu afastamento e decidirem, coletivamente, que o Palácio de Ogum se tornaria uma casa de culto na qual haveria apenas a celebração dos festejos de jarê solicitados por Pedro e não seria local de realização de mais nenhum novo sacrifício ritual para iniciações: não haveria novos filhos-de-santo da Capivara296. De todo modo, restava a questão crucial de quem seria o curador responsável pela manutenção das obrigações espirituais devidas na casa, necessárias à realização das festas anuais que honrariam o pedido de Pedro de Laura, bem como pela condução das mesmas. As 295

A primeira visita do futuro pai-de-santo ao estádio do time parece ter ocorrido ainda em 1976, tendo sido contratado de 1982 a 2000 e depois convocado esporadicamente com o passar do tempo até bem recentemente. Ao longo dos anos, após ter estabelecido um terreiro de candomblé em São Paulo, esse pai-de-santo continuou a visitar Lençóis, sua cidade natal, continuamente. Alguns daqueles que o mencionaram ou entrevistaram costumaram notar certa coincidência entre seus afastamentos do time e alguns dos piores resultados obtidos pelo futebol do Corinthians (Placar 2000: 62; Bellos 2003: 173-175; Terra 2007; Couto 2009: D3). 296

Em função dos desentendimentos ainda presentes entre esse curador e meus amigos ligados à Capivara, ainda que ele tivesse estado por alguns períodos em Lençóis durante a realização do meu trabalho de campo, não tive contato com ele e tampouco compareci aos poucos jarês que ele oficiou na casa de um filho-de-santo que mora no entorno da sede do município.

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atenções se voltaram para os dois últimos filhos-de-santo que Pedro havia iniciado e que de certo modo começara a treinar para o desempenho da função, José Henrique, conhecido por todos como Mussum, e Gildásio, apelidado Daso. Inicialmente, Mussum pareceu a Sandoval a melhor opção, tanto por ele ter sido apontado por Pedro ainda em vida como responsável pela realização dos rituais para o povo da porta – ligados ao caramanchão, do qual Mussum detinha a chave –, como por ter sido iniciado algum tempo antes de Daso, de quem Mussum fora inclusive padrinho de obrigação, ainda que ambos tivessem aproximadamente a mesma idade. À época, frequentavam a Capivara diversos filhos-de-santo entre aqueles que, na atualidade, se tornaram líderes de suas próprias casas de culto. Quando cheguei em Lençóis, contudo, muitos deles haviam deixado de prestigiar os eventos no Palácio de Ogum, alguns por estarem agora já muito idosos e não poderem empreender a longa caminhada até o local, mas outros em função de um evento que contribuiria para estabelecer a configuração recente da liderança da casa. Anos atrás, numa noite fatídica, conforme rezam as muitas versões da história que me foi contada, a incorporação de uma das pessoas presentes na festa parecia não ter tido término adequado, e seus parentes e amigos mostraram-se muito preocupados com a situação que poderia ter um desfecho sinistro, caso o indivíduo desacordado não voltasse a si. Ainda que posteriormente a pessoa afetada tenha voltado a si, os presentes trocaram entre si mais do que só olhares desconfiados e farpas: insinuou-se que podia ter havido um feitiço envolvido, feito com a conivência ou mesmo pelo próprio curador que agora respondia pela Capivara. Os filhos-de-santo se mostraram divididos, e tanto Sandoval como sua tia materna, figura de destaque na casa, saíram em defesa de Mussum, afirmando sua inocência. Contrários a eles, estavam outros proeminentes filhos-de-santo da Capivara: Daso, Valdelice – que, apesar de compartilhar o nome com a comadre de Pedro, não se trata da mesma pessoa – e Dinha, mãe biológica de Sandoval e que tinha encontrado os meios de criar seus dois

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irmãos mais novos após deixá-lo com o chefe do Palácio de Ogum. Não vendo outro meio de terminar com o impasse, que se tornava cada vez mais acalorado, Sandoval arrogou a si a prerrogativa de dono material da propriedade, dando a entender que aqueles que questionavam a idoneidade de Mussum não eram mais bem-vindos na Capivara. Profundamente ofendidos, os dissidentes se afastaram da convivência com a nova liderança estabelecida do Palácio de Ogum e cimentaram o cisma ao se dedicarem, com o tempo, a casas de culto próprias. Daso continuou a realizar jarês em seu domicílio, experimentou um interlúdio malsucedido enquanto pastor evangélico e, após ser trazido à razão pela ação de suas entidades, conforme dizem, retomou praticamente do zero sua trajetória de pai-de-santo, estabelecendo sua casa de culto junto ao Rio das Toalhas, mencionada no capítulo anterior. Valdelice, por sua vez, fez jarês na já referida casa de culto no Baixio, onde não há iniciações, contando com a presença de sua família, amigos e muitos dos filhos-de-santo da Capivara com quem ainda mantinha boas relações, como a mãe biológica de Sandoval. Já Dinha, ainda que continuasse a frequentar tanto os jarês de Valdelice como os da curadora que se tornou mãe-de-santo de ambas, num terreiro num dos distritos de Lençóis, apenas recentemente hospedou um primeiro jarê em sua própria residência, nos limites da sede do município, no período em que eu já me encontrava na cidade e ao qual eu pude comparecer. Elias comentou comigo como achava uma pena ter acontecido a separação de parte importante dos filhos da Capivara, motivada pela ação indireta – tanto ele como outras pessoas concordavam – do mal-intencionado curador que ali reinara temporariamente, que de certa forma podia ter arquitetado a desavença ao ser afastado do Palácio – ou ao menos se comprazia em dizer que o fizera, como relatavam aqueles que o ouviram comemorar publicamente o racha entre os membros da casa. A liderança da Capivara, como dito anteriormente, se estabilizou numa espécie de triunvirato, do qual faziam parte Mussum enquanto curador e condutor dos festejos, Sandoval

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enquanto presidente da associação que reunia os membros da casa e proprietário material do Palácio de Ogum, e sua tia materna, irmã de Dinha, sobre quem falarei de maneira mais detida no próximo capítulo. Depois de já termos nos tornado amigos, Sandoval me diria como ele havia agora amadurecido e de certa forma lamentava o rumo que os mais importantes e ativos filhos-de-santo da Capivara haviam tomado em função dos acontecimentos passados, e como gostaria de poder reuni-los novamente na casa de seu pai. Todas essas pessoas continuavam a se encontrar ocasionalmente pela cidade, variando o grau de proximidade que ainda mantinham conforme se sentissem mais ou menos aviltadas e diretamente afetadas pelos eventos que tiveram lugar após a morte de Pedro de Laura. Além disso, havia ocasiões nas quais todos compareciam a um mesmo jarê, como os que eram celebrados numa casa considerada neutra por ser comandada por alguém que não fosse filho da Capivara e por isso não estando diretamente envolvido com sua política interna. Nesses eventos, por mais que as pessoas preferissem manter alguma distância entre si, quando eram tomadas por suas entidades podiam cumprimentar de forma muito respeitosa ou até efusiva uns aos outros, mostrando deferência e matando saudades já que, como me diria uma delas, “caboclo não tem má querência”, ou seja, não toma para si ressentimentos que aqueles que os incorporam podem nutrir em relação a outrem297. Sandoval sempre estimulou minha ida a outras casas de jarê além do Palácio de Ogum, mesmo aquelas que eram chefiadas por pessoas que não haviam sido feitas na Capivara, para que meu trabalho a respeito do jarê, ele dizia, pudesse ser o mais abrangente possível. Como me disse, ele tinha também certeza de que quanto mais festas de jarê comandadas por pessoas diferentes eu conhecesse, mais eu poderia confirmar sua avaliação de que nenhum local se igualava à casa de seu pai, que de fato merecia ser mantida em funcionamento e preferencialmente reconhecida pelo governo para se tornar um patrimônio a ser preservado.

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Ver fotos 67 e 68 no anexo III.

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Procurando desenvolver uma veia mais diplomática, Sandoval algumas vezes me acompanhou a jarês realizados nas casas de pessoas de quem ele havia se distanciado, valendo-se das amizades que eu havia estabelecido com os demais filhos-de-santo da Capivara e que tornavam minha presença nos festejos praticamente obrigatória. Após um desses eventos, Elias quis se certificar de que eu percebera que Sandoval buscava ao menos retomar contato com aquelas pessoas por meio das relações que haviam estabelecido comigo. Foi ficando claro que nenhum dos envolvidos ignorava as motivações dos demais, e os chefes das outras casas por vezes me utilizavam para indiretamente enviar recados para Sandoval, querendo se assegurar de que ele sabia que nunca seria destratado enquanto os visitasse – diferentemente do que ele próprio havia feito com eles no passado, era o complemento nunca dito mas sempre subentendido. Apesar de afirmarem explicitamente que a possibilidade de um retorno à Capivara era praticamente inexistente, pairava de modo constante nas falas desses filhos-desanto a mais ínfima das brechas. Ainda que sem dúvida fossem sentimentos que devessem ser levados em conta, não se tratava apenas de uma questão de orgulho ferido ou de altivez: quanto maior e mais significativa é uma mágoa, quanto mais longo o tempo durante o qual se é afetado por ela, mais magnânima torna-se a pessoa que um dia decide perdoá-la. Seria muito improvável que não se suspeitasse da existência de um feitiço envolvido no episódio, algo bastante comum nas desavenças pessoais entre filhos-de-santo, já tendo sido mencionadas algumas das formas pelas quais determinados sortilégios podem ser postos em prática. No jarê, feitiços se encontram entre as ações possíveis de serem efetivadas à distância, em geral por meio de algum objeto preparado especificamente para transportar influências perniciosas a seus destinatários, tanto por contato direto como por semelhança. No primeiro caso encontram-se, por exemplo, feitiços transmitidos por ingestão de alimentos e proximidade com pó de pemba ou com certos despachos, chamados de “bozós”. No segundo, a ação feiticeira encontra seu alvo viajando por meio de fotos que exibam a pessoa a ser

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enfeitiçada ou pelo nome da vítima escrito num pedaço de papel e sujeito a procedimentos específicos. Entre as formas de se combater a ação dos feitiços figuram métodos que dialogam com o mesmo repertório envolvido em sua criação, mas que objetivam impedir a chegada da ação feiticeira ou, ainda, desviá-la de seu curso original, podendo mesmo ser redirecionada para o próprio feiticeiro ou para quem quer que tenha encomendado sua realização. Objetos sob os quais recai a suspeita de serem transmissores de feitiços podem ser lavados, varridos, deslocados de formas ritualmente prescritas para que não tenham o efeito desejado. O uso de certas plantas, em geral transformadas em remédios, é também recomendado para tratar os sintomas do enfeitiçado e mesmo combater o próprio feitiço, favorecendo-se certas ervas consideradas especialmente “debatentes” – termo que na região carrega um duplo sentido envolvendo tanto propensão a discutir como capacidade de se chocar contra algo, colidir. As casas de culto em si são espaços que contam com proteção contra os efeitos adversos envolvidos em ações como as de feitiçaria, quando possuem origem externa a sua comunidade, tanto em função da vigilância do povo da porta como de medidas complementares como a colocação de fitas coloridas e oferendas em certos marcos na propriedade para defender não só seus frequentadores ocasionais como seus habitantes cotidianos, especialmente plantas e animais298. É possível realizar também no jarê uma distinção entre feitiçaria e bruxaria, de acordo com o grau de intencionalidade das ações realizadas, ainda que ela não altere as formas de combater seus efeitos299. Além da possibilidade de sentimentos como a inveja e a cobiça acarretarem, sem o conhecimento ou premeditação daquele que os nutre, consequências nocivas para os que deles são alvo – o chamado “olhado” –, é ainda mais comum a menção à 298 299

Ver fotos 69 e 70 no anexo III.

Diferentemente, contudo, do que ocorre entre no contexto etnográfico onde a distinção foi proposta (EvansPritchard 1937: 33-34, 230), no jarê não há separação clara entre feiticeiros e bruxos senão pelas ações que empregam, tampouco havendo uma substância-bruxaria específica com existência material no corpo dos bruxos, como será visto a seguir.

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ação direta, sem que uma pessoa se dê conta, das entidades que a circundam. Os filhos-desanto explicavam como os espíritos ligados a um iniciado, quando se trata de alguém que possui grande força pessoal – caso que não é limitado aos curadores –, podem ser propensos a tomar providências contra pessoas que se coloquem no caminho de seu protegido, quer estejam mancomunando diretamente contra ele, quer estejam simplesmente ignorando seus pedidos ou recomendações. Por mais que um curador possa ter uma índole calma, brincalhona ou apaziguadora, estilo que varia bastante dependendo do caráter pessoal de cada um, ainda assim nunca é boa ideia desobedecer a uma de suas orientações, sob pena de se encontrar vítima da ação de seus caboclos – algo que pode acontecer independentemente da vontade do pai-de-santo, ou mesmo contra ela. Por vezes é a própria capacidade energética de uma pessoa que acaba por protegê-la contra possíveis ataques feiticeiros e desemboca num contra-ataque na chave da bruxaria, tudo podendo se passar sem o conhecimento da potencial vítima inicial. Os curadores mais experientes terminam sendo capazes de reconhecer esses acontecimentos, quer ocorram com eles próprios, quer com pessoas de quem sejam próximos, tornando-se cada vez mais aptos a controlar os rompantes aos quais de outro modo as entidades estariam predispostas. O fenômeno de reflexo da ação feiticeira, qualquer que seja a origem da mesma, é um dos motivos que leva à existência, na cidade de Lençóis, de uma impressão algo generalizada, tanto entre as pessoas menos ligadas ao jarê como entre muitos dos entendidos, de que todo curador atua, ao menos parcialmente, também com o intuito de produzir efeitos perniciosos para outrem. A maior parte dos curadores nega a pecha de feiticeiro, ainda que, quando falem mais abertamente sobre o tema, dificilmente neguem o potencial para tanto, já que o conhecimento da ciência do jarê e o próprio acúmulo de energia em seus terreiros os tornam capazes de empreender ações feiticeiras ou de ao menos fazer deles focos para sua procedência. O que impede que efetivamente o sejam – ou ao menos o sejam de forma

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indiscriminada –, argumentam os curadores, é o fato de estarem eles próprios, mais que ninguém, sujeitos a essas ações, inclusive as oriundas de suas próprias entidades, que os motivam constantemente a atuar de modo caridoso e realizar somente ações rituais que tenham efeitos benéficos para os envolvidos, sob risco de eles próprios sofrerem a ira dos espíritos que a todo instante mobilizam. Por fim, há também feitiços que são disparados entre os mais entendidos, mesmo curadores e até de pai para filho-de-santo, e que funcionam como testes, provações para se asseverar a superioridade de um em relação ao outro. Os frequentadores da Capivara contam diversas histórias a respeito de feitiços enviados contra Pedro de Laura – em geral oriundos de pessoas que lhe eram bastante próximas e com quem ele mantinha relações de amizade aparente, como rege a etiqueta do jarê, acrescentam –, sem jamais deixar de lado o potencial destrutivo que essas ações poderiam ter. Os curadores, dizem os filhos-de-santo, estavam acostumados a ficar sempre “um experimentando o outro”, como “cobra engolindo cobra”: levando feitiços pessoalmente ou enviando-os por outros meios para os terreiros uns dos outros, os curadores se colocavam constantemente à prova. Os pais-de-santo ao mesmo tempo afirmavam que essa era uma forma de se cimentar relações de confiança, já que, ao serem capazes de lidar satisfatoriamente com os feitiços um do outro, ficava demonstrada a incapacidade de se causar efeitos danosos aos terreiros que visitavam, continuando a ser bemvindos quando quisessem comparecer aos jarês que lhes acolhessem. Pedro de Laura era envolto por inúmeras histórias que atestavam sua capacidade de lidar com as tentativas de outros iniciados de sabotá-lo, algumas vindas de filhos-de-santo que ele mesmo havia batizado no culto. Diante dos frequentadores de uma festa, o líder da Capivara dava indicações a seus iniciados para que encontrassem objetos que haviam sido trazidos por terceiros para prejudicar o andamento de uma cerimônia, podendo ele mesmo por vezes revelar a existência dos transmissores de feitiços e apontar publicamente os

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responsáveis pela tentativa de derrubá-lo em sua própria casa, sem que isso gerasse qualquer impedimento para que continuassem a frequentar o terreiro. Em outros momentos, longe dos dias de festejo, suas entidades podiam avisá-lo de feitiços encaminhados pelas matas em direção ao Palácio de Ogum, normalmente por meio de espíritos que viajavam na forma de animais, como pássaros, peixes ou varas de caititus, e que Pedro redirecionava para que carregassem seus efeitos para outros locais – em geral de volta aos que os haviam enviado. Por vezes mesmo, como me contou um de seus filhos-de-santo, Pedro agia no sentido de interceptar um feitiço em pleno envio, mandando ele próprio um preparado equivalente para que o efeito de ambos fosse neutralizado, uma espécie de “antimíssil”, nas palavras do iniciado, normalmente encaminhado pelas águas dos rios que inevitavelmente conectavam distintas casas de jarê. A genialidade de Pedro de Laura, que o tornava alvo de inveja por parte de muitos, foi somente uma das qualidades que fez dele um dos maiores mestres do jarê que a Chapada Diamantina já viu, e ainda que alguns de seus filhos-de-santo cogitem a possibilidade de que venha a nascer outro que possa superá-lo, muitos dos que o conheceram são da opinião de que em muitos sentidos ele continuará inigualável.

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Capítulo 4 – Levantar

É ouro, Santa Bárbara, é ouro É ouro, eu cheguei de mina É ouro, Santa Bárbara, é ouro Eu vivo na macumba pra cumprir a minha sina

4.1 Tramas

“Não tem cantiga mais certa que essa, no jarê”. Quando disse essas palavras, logo após terminar de cantar, Áurea tinha a voz embargada e os olhos ligeiramente marejados. Tanto a música quanto a letra haviam-lhe suscitado emoções que em geral preferia deixar dormentes, mesmo sabedora de que não era possível ignorar a inevitabilidade de grande parte de seu destino junto ao culto. Mais de uma vez, ela disse, pensara em desistir e jogar tudo para o alto, acrescentando que ninguém sabia ao certo o tamanho do sofrimento que pessoas com essa sina tinham de suportar. Na ocasião, estávamos sentados no chão, diante da casa de uma das comadres de Elias, conversando sobre cantigas de jarê, até então de forma bastante descontraída. Áurea comentou que houve uma época em que tentou abandonar o culto e chegou mesmo a ir umas poucas vezes a uma igreja evangélica, não conseguindo, contudo, pregar os olhos depois de voltar do local. As noites que passava em claro aumentavam a certeza de que em larga medida não havia alternativa: sua vida, toda ela, era e permaneceria inextrincavelmente ligada às realidades do jarê. Áurea não se deixou abater, finda a breve confidência aos presentes: em pouco tempo se recompôs e emendou em outras cantigas, com sua alegria costumeira, não permitindo que a resignação de que era testemunha lhe impedisse de alcançar a felicidade que era possível.

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Conheci Maria Áurea na primeira reunião da Associação do jarê para a qual fui convidado por Sandoval, seu sobrinho. Passado algum tempo tomei para mim o hábito de chamá-la de Tia Áurea, a exemplo do que fazem tanto Elias como várias outras pessoas da cidade, especialmente as que haviam conhecido o pequeno restaurante ao qual ela se dedicara durante alguns anos e que levava esse mesmo nome. Renomada cozinheira, Áurea trabalhava agora no setor de alimentação do hospital municipal de Lençóis, já tendo sido no passado vereadora na cidade, na época em que a posição ainda não era remunerada. Áurea era igualmente uma das grandes parteiras que a região conhecia, já tendo perdido a conta do número de crianças que ajudara a trazer ao mundo e das quais por consequência era madrinha: não menos que uma centena, estimava-se. O acúmulo de seus feitos era ainda mais impressionante em função de sua pouca idade, já que Áurea tinha pouco mais de 50 anos à época em que fui para a Chapada. De todo modo, sua maior fama era sem sombra de dúvida a de ser, nos dias atuais, se não a maior, uma das principais responsáveis pela manutenção do jarê em Lençóis, especialmente o da Capivara. Desde criança Áurea gostava de frequentar os muitos jarês da cidade, mesmo contra a vontade de sua família. Ela se lembra com gosto da época em que, nos meses festivos, uma pessoa podia pular de casa em casa, numa mesma noite, indo a diversas celebrações e tendo contato com inúmeras pessoas e entidades distintas. Áurea conta como esperava todos em sua casa irem dormir antes de sair de fininho para varar a madrugada, tendo por vezes de pular muros protegidos com cacos de vidro para não ser percebida. Ela sabia que na manhã seguinte acabaria sendo castigada pelos pais caso descobrissem por onde havia andado, algo que inevitavelmente acabava acontecendo. As surras que tomava ainda assim não a dissuadiam, seu fascínio pelo jarê mostrando-se duradouro. Áurea se recorda nitidamente da primeira vez em que foi até o Palácio de Ogum, quando não tinha nem dez anos, levada por Dona Valdelice, a já mencionada comadre de Pedro de Laura. Os rios que tiveram de atravessar

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estavam com água acima da cintura de um adulto, o que fez com que ela tivesse de ser carregada nas costas enquanto o transpunham. Algum tempo depois, quando já contava 12 anos, Áurea foi tomada por uma entidade durante uma pescaria à qual fora acompanhando uma senhora. Ela não possui nenhuma lembrança do que se passou a partir daí, senão após ter recobrado a consciência, quando percebeu que se encontrava na Capivara, no dia seguinte. Por terem lhe contado posteriormente, Áurea ficou sabendo que tivera de ser trazida amarrada com cordas para ser tratada por Pedro de Laura, que algum tempo depois viria a se tornar seu pai-de-santo. A partir daí o jarê se constituiu numa parte significativa da vida de Áurea, que chegou a ser ogã do chefe da Capivara antes de ele ter decidido extinguir o posto para evitar desentendimentos entre seus filhos-de-santo, como já indicado. De todo modo, Áurea sempre fez parte de um núcleo de iniciados que Pedro de Laura mantinha bem próximo de si, uma geração mais jovem que faria todo possível para levar adiante o legado do Palácio de Ogum após o falecimento de seu criador. Entre outros, desse conjunto também participavam Dinha – irmã carnal de Áurea e mãe de Sandoval –, Valdelice do Baixio – que não se deve confundir com a comadre de Pedro, que deixara de frequentar a Capivara –, Mussum e Daso – esses últimos ambos tendo se tornado curadores, cada um a seu tempo. Em função dos acontecimentos detalhados no capítulo anterior, o Palácio de Ogum acabou sob a liderança de pessoas ligadas a esse núcleo; contudo, ainda que tanto Sandoval como Mussum fossem figuras centrais para a continuidade do jarê da Capivara, o nome considerado por todos como absolutamente indispensável à realização das cerimônias era o de Áurea. Mesmo não sendo uma mãe-de-santo, destino que – ela sempre lembrava – fazia de tudo para evitar, os frequentadores do Palácio jamais se cansavam de fazer notar como, sem ela, não se poderia realizar um jarê na Capivara, até porque Áurea era a indiscutível possuidora tanto da maior

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ciência como da maior força pessoal entre aqueles que agora estavam à frente da casa300. Por todos esses motivos foi ainda mais preocupante quando, ao final da primeira cerimônia a que eu assisti no Palácio, Áurea caiu ao chão – e pareceu não mais se mexer. Em eventualidades do tipo, a pessoa afetada deve ser trazida de volta à consciência pelo curador presente na casa, o que no caso em questão ocorreu quando Mussum foi chamado e soou a campa da Capivara ao lado da cabeça de Áurea, junto ao chão. Ela ficou visivelmente abatida e se retirou para tentar descansar como faziam os demais, pois a madrugada fora longa e cansativa com a realização do jarê para Oxalá, que contara com um ritual de reverência no qual a entidade de Áurea desempenhara papel central. Todos traziam à mente o episódio quando, ao longo dos meses seguintes, os caboclos manifestados em Áurea mostraram-se, de novas formas, vacilantes: suas incorporações – que antes eram seguras e precisas – demoravam mais do que o comum para acontecer, seus passos de dança estavam mais cambaleantes e incertos do que o esperado, a ligação com os espíritos que a acompanhavam indicava que eles se encontravam enfraquecidos, “esgotados”, como ela própria afirmou. Áurea informou aos frequentadores mais recentes da Capivara algo que os mais antigos já sabiam: quando seu ritual de iniciação fora realizado, muitos anos atrás, não houvera dinheiro bastante para a aquisição de um animal de quatro patas, em geral necessário ao batizado, e Pedro de Laura dera sequência ao trabalho substituindo-o por um galináceo e procedendo a algumas alterações litúrgicas. À época, Pedro lhe avisara que aquela solução provisória não deveria durar mais do que sete anos, sendo então necessária a realização de um sacrifício adequado, que não chegou a ser feito. Desde então, “foram muitos sete anos”, disse Áurea, afirmando que parecia ter chegado a hora de realizar um trabalho de reforço para firmar suas entidades de uma vez por todas. O que levantava uma questão crítica: quem seria o responsável a fazê-lo?

300

Ver fotos 71 e 72 no anexo III.

279

O processo para se decidir o curador que realizaria o trabalho de Áurea mobilizou inúmeras das pessoas ligadas ao jarê de Lençóis, ainda que a escolha em última instância recaísse sobre ela própria, aconselhada também por suas entidades, como frisava. De modo a incorporar as divergentes opiniões daqueles de quem era próxima e contemplar o maior número de possibilidades antes de tomar sua decisão, ao longo de algumas semanas Áurea teve longas conversas com amigos e parentes, reunindo alternativas. Uma delas seria realizar seu reforço com um curador que possuísse um terreiro em outro município, para com isso não correr o risco de se indispor com ninguém de Lençóis. Contrários a essa opção pesavam o fato de ser mais difícil encontrar à distância um pai-de-santo confiável e capaz de realizar o ritual de maneira adequada, bem como o valor cobrado que poderia ser alto demais por não haver qualquer relação prévia com o novo iniciador. A opção de ter o trabalho feito na própria cidade, por sua vez, envolvia escolher entre um dos poucos curadores em atividade (lista ainda mais reduzida em função de algumas indisposições que não valia a pena reativar), bem decidir o local da cerimônia. Sandoval cogitou com sua tia a possibilidade de abrirem uma exceção a respeito da deliberação de não mais realizar rituais com sacrifício no Palácio de Ogum, não sem deixar de mencionar que sabia que outras pessoas tentariam considerar o evento um precedente, e caberia a eles serem firmes para não repeti-lo. Com isso, Sandoval se unia aos filhos-de-santo que consideravam ser o próprio Mussum a pessoa mais indicada para a tarefa, conjunto que polarizava com aqueles iniciados por Daso em seu terreiro no Rio das Toalhas. Na visão desses últimos, que acabou prevalecendo, a habilidade ritual de seu pai-desanto, bem como o fato de sua casa de jarê já estar mais bem estabelecida, eram fatores decisivos para dirimir a dúvida de Áurea. Ela acabou optando por tomar a decisão por meio de uma votação da qual participariam os seus afilhados, medida que Elias comentou comigo ser mais uma demonstração da habilidade diplomática de Tia Áurea.

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Com o passar do tempo, foi ficando cada vez mais claro que estava envolvido, na realização do trabalho de reforço de Áurea, igualmente em grande parte o destino do Palácio de Ogum, já que ela era hoje em muitos aspectos sua figura central. O curador que oficiasse o ritual de Áurea passaria a contar com uma boa dose da deferência prescrita na relação entre filho e pai-de-santo, bem como se tornaria conectado misticamente a uma pessoa não só detentora de grande força pessoal como pivô de mobilização de outras. A decisão de Áurea poderia ter uma gama de resultados distintos, desde a chancela de um novo curador para o Palácio de Ogum, até sua própria transformação em mãe-de-santo e reativação do terreiro enquanto tal, nenhum dos extremos tendo contudo se concretizado, não sendo o trono da Capivara ocupado por vivente algum. Os detalhes sobre a execução da obrigação de Áurea – que é outra forma de se falar a respeito do trabalho ritual que deveria fazer, como já mencionado – geravam outras perguntas, já que as pessoas envolvidas se indagavam se ela deixaria de ser filha-de-santo de Pedro de Laura e se seria preciso tirar a mão do morto de sua cabeça301. Após o reforço ter sido feito, com procedimentos rituais que em muito se aproximavam de uma nova iniciação302, com algumas adaptações feitas para a ocasião, a própria Áurea indicava que continuava a ser filha-de-santo de Sete-Serra, o mais bravio dos caboclos de Pedro, mas que agora era também, simultaneamente, filha-de-santo do Eru de Daso, entidade que também podia demonstrar renomada selvageria303. O fato de Daso ter sido o último iniciado da Capivara também foi fundamental para que, na realização do trabalho, ele fosse capaz de reproduzir parcialmente as condições da primeira iniciação de Áurea, mesmo sem tê-la presenciado em pessoa. Conforme ambos disseram, as próprias entidades que no passado haviam participado do ritual foram capazes de transmitir para o curador o 301

Ritual já descrito no capítulo 2, seção 2.5, e que será retomado abaixo, na seção 4.3.

302

Episódios como esse de reforço da iniciação podem ser considerados característicos dos candomblés de rito angola, aí empregados durante a própria iniciação ou mesmo também, a exemplo do caso aqui relatado, após esta (Serra 1978: 337). 303

Ver foto 73 no anexo III.

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conhecimento da disposição dos objetos, das cantigas e sequências litúrgicas que permitiram que os dois processos em muito se assemelhassem, garantindo sua continuidade. O reforço de Áurea foi um episódio marcante que se inscreveu em, e ao mesmo tempo constituiu um, cenário específico para o desenvolvimento contemporâneo das casas de jarê de Lençóis, de certa forma dando continuidade às tramas – principalmente, mas não só, no sentido de enredos304 – postas em marcha desde o falecimento de Pedro de Laura. O núcleo dos mais importantes filhos-de-santo da Capivara, em torno do qual essa pesquisa acabou se concentrando, continuava a ter no legado de seu pai-de-santo grande parte das motivações que os levavam, nos dias de hoje, a se aproximar ou se afastar daquele que fora seu primeiro terreiro e onde tinham se tornado irmãos-de-santo. Na trajetória dessa família, o instante que pude acompanhar de perto exibia de forma bastante evidente as cisões e reaproximações que pareciam ser parte constitutiva da história do jarê, os esforços para manter a tão desejada – e sabidamente inevitavelmente provisória – união de todos sendo contrapostos às vicissitudes da vida. De um modo ou de outro, esses filhos-de-santo estavam hoje ligados a casas de culto próprias e possuíam suas avaliações pessoais a respeito das melhores formas de se conduzir as cerimônias e orientar os rumos do jarê, aplacar as entidades e festejar as bem-aventuranças que lhes eram proporcionadas. Ao mesmo tempo, todos compartilhavam histórias num mesmo local que, diferentemente do que costuma acontecer na maior parte dos casos, não havia desaparecido por completo após o falecimento de seu criador. Membros das novas gerações começavam agora também a conhecer o jarê e a ser iniciados em seus segredos, jovens que estariam conectados por laços de outras dimensões, proporções distintas, que lhes 304

“Trama” em minha opinião é a melhor forma de traduzir para o português a “network” proposta pela ActorNetwork-Theory, que não por acaso é definida por seu principal autor no capítulo que dedica à análise da própria produção textual científica. Um bom registro acadêmico, para essa visão, é aquele que “delineia uma trama” (“traces a network”). Nesse sentido, vale marcar, uma trama não se confunde com aquilo que é descrito, trata-se mais especificamente de um indicador de qualidade, um conceito utilizado para “conferir quanta energia, movimento e especificidade” um registro – entremeado, portanto – é capaz de apresentar (Latour 2005: 128131). Até mais do que “enredo”, a ideia de trama chama atenção também para o ambiente do romance policial: cheio de detalhes aos quais o leitor deve prestar atenção, cativante de modo a despertar sua curiosidade e tentativamente surpreendente por suas reviravoltas.

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deixariam entremeados de formas novas, mobilizando-os a protagonizarem diferentes conexões e afastamentos. O relato precedente a respeito das alterações na configuração contemporânea dos jarês de Lençóis suscitadas pelo trabalho de reforço empreendido para Áurea precisou ser tão abreviado quanto se mostrou um tema delicado para todos os envolvidos, e minha principal preocupação ao tecê-lo possui dois aspectos ligados ao caráter contingente dos acontecimentos. Seria reduzir demasiadamente a complexidade dos eventos partir da suposição de que os envolvidos desde o princípio tinham em mente realizar determinadas ações (como abrir suas próprias casas, aproximar-se ou afastar-se de certas pessoas, ser ou não ser iniciado por alguém, tornar-se ou não um curador) com o objetivo único de produzir os efeitos que acabaram tendo lugar, como se todas as suas motivações derivassem de juízos mecânicos. Ao mesmo tempo, ignorar que determinadas pessoas terminam por ser brilhantes leitoras dos acontecimentos e procuram influenciar suas consequências seria não só ingenuidade como esvaziaria o mérito dos lances mais hábeis e não permitiria a adequada apreensão dos riscos que foram tomados em cada decisão. Como será visto adiante305, o jarê ensina que uma certa medida de ousadia é necessária para se produzir os efeitos mais significativos: enquanto a indiferença que beira a apatia estimula a estagnação e angaria quando muito a comiseração alheia, por sua vez a ambição desmesurada acaba por acarretar a ruína daquele que vai longe demais. As irreduções306 almejadas para a elaboração desse relato não derivam unicamente nem de haver encontrado uma situação de particular instabilidade que se prestaria ao princípio descritivo, nem tampouco da inevitável parcialidade do trabalho de campo que tem seu início e seu término em meio a histórias que o ultrapassam em ambos 305 306

Nesse mesmo capítulo, seção 4.2.

Mais do que se postular a irredutibilidade de determinados fenômenos, o princípio de irredução ao qual faço referência pode ser melhor definido como uma alternativa ao recurso à transcendência, sugerindo “um recuo frente a essa pretensão de saber e de julgar”: o princípio de irredução é assim duplo, já que pode recusar o automatismo tanto das redutibilidades ligeiras como das impossibilidades de comparação, das tentativas de reduzir dois termos à incomensurabilidade (Stengers 1993: 26-27; Serra 1995: 85; Latour 2005: 107, 137).

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os sentidos. Mais que isso, elas são tanto fruto de uma opção analítica e textual como uma maneira de transpor para o trabalho acadêmico aquela que é, paradoxalmente, talvez a sensação mais incontornável e mais desestabilizante compartilhada por todos que assistem a uma festa de jarê: a de que nada está garantido. A todo momento existe apreensão, já que as manifestações podem não se processar a contento e uma entidade nova pode surgir a qualquer instante, um objeto ritual pode faltar e outro pode ter de ser acrescentado, uma cantiga ou sequência litúrgica pode ser esquecida ou suprimida enquanto outras podem ser improvisadas e criadas na hora. O trabalho de reforço feito para Áurea teve alguns efeitos praticamente imediatos, observáveis já no segundo dia do grande jarê celebrado na ocasião no terreiro de Daso, que contou com diversos participantes e a realização de várias iniciações. Os caboclos que ela manifestava agora pisavam com muito mais segurança e propriedade, tinham vitalidade renovada, lembrando a todos dos belos movimentos que faziam quando Áurea era bastante jovem, como os que haviam ficado registrados no filme Diamante Bruto, como me disse Elias, no qual bem moça ela pode ser vista dançando durante as cenas em que foi registrada a realização de um jarê em Lençóis. Suas entidades deixaram também algumas mensagens para os presentes e para a própria Áurea, dizendo que agora sua carnal não iria tolerar ser posta para trás na Capivara, dando a entender que ela deveria a partir de então ser considerada, ainda mais indiscutivelmente do que antes, a verdadeira chefe da casa. De fato, no ritual que aconteceu alguns meses depois para a aberta do Palácio de Ogum – ao qual Daso, com seus filhos-de-santo, compareceu, algo que há muito não fazia –, um Ogum tomou Áurea durante o momento ritual inicial e anunciou que nos anos seguintes poderiam convocar sua Iansã para realizar aquela etapa tão fundamental. Houve quem suspeitasse que quem falava no momento era uma das entidades do próprio Pedro de Laura, enquanto outros imaginavam que era um dos caboclos da própria Áurea, já que até então ninguém jamais tinha sido capaz de receber

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diretamente num jarê um dos espíritos deixados pelo próprio Pedro – um feito considerável até mesmo para alguém da estatura mística dela307. A última reunião da Associação do jarê a que eu compareci, pouco tempo antes de terminar o trabalho de campo, contou com a presença de uma quantidade considerável de pessoas ligadas à Capivara, bastante maior que a primeira, na qual eu fora apresentado a Áurea. Apesar de ser inegável a existência de alguma tensão entre Mussum e Daso, provavelmente amplificada ainda mais nos filhos-de-santo de cada um deles cujo vínculo inclui em alguma medida tomar para si as posições daqueles que os iniciaram, o encontro transcorreu de forma tranquila e desembaraçada. Mussum comentou que assim como Daso era bem-vindo na Capivara e em sua própria casa, ele sabia que se quisesse visitar o outro pai-desanto seria igualmente bem recebido, lembrando que ambos se conheciam desde que eram crianças – “de bater baba na rua”, acrescentou, usando uma expressão que na região significa participar de um jogo informal de futebol mas cujo duplo sentido não deixou de provocar uma das típicas gaitadas de Elias. Da nova chapa eleita na ocasião, de que Elias se tornou presidente, faziam parte pessoas ligadas a praticamente todas as casas de jarê de Lençóis, com destacada participação de jovens que começavam a se interessar cada vez mais pelo culto. Uma das jovens encerrou a reunião com um pronunciamento, lembrando aos presentes que eram todos filhos e netos da Capivara, e como tal deviam fazer o possível para que o jarê continuasse a existir – e talvez voltasse a florescer como outrora – tanto em sua cidade como em outros locais da Chapada Diamantina. Em outras oportunidades, Áurea comentou a respeito de mais uma transformação que seu trabalho de reforço havia acarretado, bem como uma mudança de comportamento que ela esperava que se processasse em função dessa alteração. Elias havia mencionado, certa feita, a

307

Tema bastante disseminado nas religiões de matriz africana, dom e iniciação parecem não ser nem exatamente uma oposição, nem esgotar sozinhos o tema das qualidades que podem fazer parte da composição de uma pessoa em sua trajetória mística (Goldman 2012: 277-279).

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respeito das entidades místicas do candomblé sobre as quais ele havia aprendido em Salvador, no caso especificamente sobre Oxumarê, dizendo que se tratava de um espírito que passava seis meses ao ano sendo do sexo masculino e seis meses do feminino. Áurea, que possui uma forte ligação com Oxum, entidade que no jarê também pode ser chamada de Oxumarê, disse que por vezes ela se sentia dessa forma, já que ao menos durante metade do ano não queria saber de homem algum em sua cama. Logo em seguida, emendou dizendo que a partir de agora jamais voltaria a ser subjugada por homem algum, pois agora ela estava se tornando uma líder do jarê. Áurea é mãe de duas filhas de seu primeiro casamento, mas como deu a entender ela tinha em mente seu companheiro atual, que estava em detenção em Salvador e deveria visitar Lençóis durante a Semana Santa em liberdade temporária. A atitude de Áurea se inscrevia em duas importantes disposições de certo modo prescritas no jarê em relação ao cônjuge de uma pessoa. A primeira, liturgicamente marcada, envolvia a separação, especialmente prezada no caso dos curadores, de seus afazeres rituais na casa de culto e sua convivência conjugal, principalmente no tocante às relações sexuais308. Um curador, diz-se, se for casado, deve manter afastadas de seu terreiro quaisquer questões e influências domésticas, igualmente evitando ter relações sexuais em determinados dias, próximo de cerimônias, prevenindo igualmente seus filhos-de-santo de que não deviam mantê-las nessas ocasiões. A segunda disposição, mais informal, tem a ver especificamente com a liberdade prezada pelas mulheres casadas de frequentarem jarês se assim o desejarem, algo que nem sempre é visto com bons olhos por seus maridos. Sob determinado ponto de vista, ao menos parte da força pessoal de um curador simultaneamente deriva de e se traduz em sua potência sexual, especialmente no caso dos homens, que como visto costumam compor a maioria dos quadros de liderança das casas de

308

Remeto aqui, por exemplo, ao episódio já descrito protagonizado pelo líder do Remanso cujo terreiro foi herdado por Pedro de Laura, envolvendo as consequências de ter abandonado sua abstinência, narrado no capítulo 3, seção 3.4.

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culto. A comunicação entre essas duas energias dava a praticamente todos os curadores a pecha de terem – ou desejarem ter – diversos parceiros sexuais, mesmo quando casados. Em função desse pendor, cabia ao próprio curador frear seus impulsos mais libidinosos e canalizálos para as funções litúrgicas que exercia, aumentando assim sua força pessoal que acabaria por ser mobilizada nas cerimônias de jarê. Também em função desse atributo, os curadores acabavam por ser reconhecidos como importantes detentores de formas de se tratar adversidades de natureza não só conjugal como também puramente sexual, curando homens e, menos frequentemente, mulheres que lhes procuravam com dificuldades de manter relações utilizando-se de banhos com ervas, remédios naturais, procedimentos rituais ou outros métodos. Por esses motivos, não era incomum surgirem boatos a respeito da consumação de relações sexuais entre curadores e seus filhos ou filhas-de-santo, muitas vezes espalhados não só por pessoas não ligadas ao jarê como mesmo no próprio seio de uma casa de culto, encarados por seus membros com bastante lástima e seriedade309. Fossem somente rumores ou mesmo eventos concretos, cônjuges ciosos procuravam impedir sua profusão das mais diversas formas, muitas vezes tentando proibir seus companheiros de frequentar os jarês, empreitada que raramente tinha sucesso310. Usando um tom que indicava claramente que só em parte estavam brincando, as mulheres que iam aos jarês diziam que se tivessem de escolher entre permanecer ou casadas ou no culto, se separariam num piscar de olhos. Se nem sempre podem exercer funções de liderança direta, especialmente porque algumas atribuições rituais como a manutenção do 309

Histórias desse tipo são recorrentes nos meios das religiões de matriz africana, de certo modo ligadas a uma simbologia erótica que não necessariamente reflete uma licenciosidade por suposto aí presente (Serra 1978: 183). 310

Certa vez, durante uma reunião informal dos filhos-de-santo de uma casa de culto com seu curador, o tema foi abertamente discutido para que se encontrassem formas de ao menos limitar o surgimento de boatos envolvendo os membros daquela comunidade mística. Um dos principais pontos acordados, arguta sugestão do marido de uma das filhas-de-santo da casa e também iniciado do local, foi o de que se evitasse a presença de filhas-de-santo sozinhas com o curador no terreiro, algo até então feito de forma corriqueira para que ajudassem nas tarefas semanais como cozinhar ou varrer o terreno. Apesar de ter plena confiança tanto na esposa como em seu curador, disse o iniciado, o fato de haver sempre mais de uma filha-de-santo no local inibiria a geração de fuxicos por pessoas mal intencionadas.

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caramanchão só podem ser realizadas por homens, as mulheres costumam ter de todo modo papel central no desenrolar das cerimônias, ocupando o posto de ogãs nas casas de culto e sendo de modo geral valorizadas muito mais que os homens durante as incorporações de suas entidades. Existem também mulheres que se tornam curadoras, fazendo uso de arranjos específicos que permitem que auxiliares litúrgicos lidem em seu nome com o povo da porta, elas próprias continuando responsáveis por todas as demais operações que um curador do sexo masculino faria. De certo modo, na constituição do universo do jarê a independência feminina era não só prezada como estimulada, ao mesmo tempo função e fundamento da presença de mulheres que trabalhavam e obtinham seu próprio sustento independentemente de serem ou não casadas. No presente, o exercício de ocupações pagas por grande parte da população feminina de Lençóis tornava-se cada vez mais comum, absorvidas pela economia turística para trabalhos que os homens em geral não realizavam – como cozinhar, limpar e lavar, anteriormente consideradas só tarefas domésticas e como tais não remuneradas. Ao mesmo tempo, no passado, o jarê já costumava congregar mulheres independentes que possuíam fonte de renda própria, como exemplificado anteriormente – por mais que também dependessem, como todos os demais, dos resultados da economia garimpeira –, vendendo seus serviços aos trabalhadores da cidade. Entre esses serviços podiam estar incluídos os sexuais, como Elias gostava sempre de lembrar por considerar que as senhoras que outrora haviam sido mulheres-damas invariavelmente figuravam entre aquelas que – como todas prezavam – jamais se deixavam dominar por homem algum311. Com distintos graus de conformação, todas as pessoas ligadas ao jarê concordavam que intriga e fuxico eram em alguma medida inevitáveis ao culto – havendo mesmo quem os 311

Entre os fatores que podem ter influenciado a incompletude da ascensão feminina à liderança no jarê pode-se elencar a não ocorrência em Lençóis do mesmo êxodo que teve lugar em diversas outras cidades da Chapada entre as décadas de 1950 e 1980 para grandes centros urbanos do Brasil, como São Paulo, Rio de Janeiro e posteriormente Brasília. De todo modo, a expressão presente por exemplo na comunidade do Mulungu, no município de Boninal, também na Chapada Diamantina, segundo a qual “mulher casada é mulher governada” (Brantes 2007: 28, grifo suprimido), se adequaria perfeitamente à realidade dos jarês de Lençóis.

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considerasse integralmente necessários. Os membros das casas de culto que menos tinham medo de dizer abertamente aquilo que pensavam – os chamados “baforentos”, por gostarem de “bafôs”, confusões e desordens – costumavam acabar no centro dos eventos mais conhecidos e que seriam comentados por anos a fio, a serem lembrados fosse como possuidores de personalidades marcantes e inspiradoras, fosse como disseminadores da discórdia e da inimizade. Dessas tramas não faziam parte somente as pessoas, como igualmente suas entidades, algumas das quais obtinham fama de serem especialmente “sotaqueiras”, propensas aos sotaques, que são mensagens normalmente cifradas dadas na forma de cantigas ou avisos aos presentes, a ausentes ou mesmo ao próprio carnal que as manifesta. Não se segue necessariamente que os caboclos de uma pessoa que possua fama de fazer “resenhas”, disseminar relatos dos acontecimentos com ou sem intenções malfazejas, sejam eles próprios também particularmente faladores, e vice-versa, muitas vezes acontecendo o contrário. Mais uma vez, de qualquer forma, os melhores entre os curadores costumam ser considerados aqueles que dominam sobremaneira a arte do fuxico, capacidade compartilhada por seus espíritos, e que podem se ver envoltos durante a realização de jarê em disputas de sotaque, nas quais trocam cantigas com uma entidade manifestada de maneira crescente até que alguém se dê por vencido – em geral o desafiante. De todo modo, fazer fuxicos e intrigas de qualquer tipo não é uma atividade a que alguém se dedique levianamente, já que as repercussões, sobretudo as místicas, podem ser bastante graves312. Quanto mais importante uma pessoa é, maior a chance de ela se tornar alvo de fofocas, algo de que Áurea tinha plena consciência e pelo quê não se deixava abalar. Ao contrário, de certa maneira, tornar-se alvo de suposições por parte de outrem servia apenas para tornar patente o fato de que ela era uma pessoa invejável – e como tal devia logicamente se importar com esse sentimento somente na medida em que era preciso se proteger contra alguns de seus 312

A expressão que o resume de maneira sintética não deixa dúvidas sobre o canal de seus efeitos: “a língua fala, o corpo paga” (Gonçalves 1984: 114).

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efeitos possíveis, alguns dos quais podiam acontecer mesmo à revelia daqueles que lhe invejavam. Depois de ter feito seu trabalho de reforço, Áurea descansava ainda mais segura por contar com o amparo de suas entidades revitalizadas, especialmente daquela que era sua entidade mais bela e cobiçada, cujas cores principais a adornar suas roupas eram o amarelo e o dourado. Apesar de ser bastante morena e possuir compridos cabelos escuros, Áurea fora apelidada desde nova de “Loira”, forma pela qual tanto Pedro de Laura como a comadre dele, Dona Valdelice, a chamavam – ocasionalmente até hoje, no caso da última. Certa vez, enquanto conversávamos, acompanhados por Elias, diante do hospital onde Áurea trabalhava, sentados de frente para o Rio Lençóis, com suas águas cúpreas reluzindo ao sol, eu lhe disse que achava seu nome especialmente bonito e apropriado já que ele próprio remetia ao ouro. Áurea sorriu e me respondeu, sua voz terna: “Eu sei, meu filho. Eu sei...”

4.2 Confidências

As pessoas ligadas ao jarê, em especial, costumam tomar bastante cuidado com aquilo que dizem, não só por preferirem evitar a fama de faladores como por terem aguda noção das repercussões que podem estar envolvidas no próprio ato de falar, aí incluídas as consequências místicas. Em muitos sentidos, a voz é um poderoso instrumento no jarê, não só para a liturgia como para o manejo de determinadas entidades e energias que podem ser colocadas em movimento ao serem conclamadas ou simplesmente mencionadas – tanto de forma deliberada como não intencionalmente. Um curador mencionou certa vez como era praticamente tão significativo que, ao se aproximar de sua morte e finalmente falecer, uma pessoa parasse de se mexer como perdesse sua voz. A voz de alguém, ele deu a entender a seguir, ao mesmo tempo conectava uma pessoa a seus espíritos como era fruto dessa própria

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ligação, sendo um dos meios por excelência de colocá-los em marcha. O cotidiano de uma pessoa é cercado de fórmulas e enunciações que a conectam às entidades que lhe são próximas, em geral rogando sua proteção contra males e perigos ou mobilizando-as para que concedam suas bênçãos àqueles que lhe são caros. Impressionou-me o fato de que mesmo as conversas mais informais, nas quais os envolvidos encontravam-se em uma postura de escuta aparentemente displicente – muitas vezes com diversos falantes interrompendo-se e entabulando diálogos paralelos simultaneamente –, os interlocutores demonstravam sempre estarem atentos aos assuntos mencionados por todos. Essa capacidade de atenção difusa, para mim ainda mais abstrusa antes de me acostumar ao sotaque e ao estilo do falar local 313, não era acompanhada necessariamente por uma diminuição na acuidade da atenção às falas individuais, e em geral mesmo comentários feitos em voz baixa e em meio a conversas paralelas são sempre ouvidos e devidamente respondidos por aqueles a quem o tópico concerne. Além disso, é quase com o mesmo tipo de postura corporal e tom de voz que se discutem trivialidades e assuntos bastante graves, e garantias e promessas feitas são sempre lembradas posteriormente e levadas a sério, mesmo que feitas de modo aparentemente desinteressado – sem que haja muito contato dos olhos, em momentos descontraídos ou incluídos em comentários aparentemente acessórios. Uma das fórmulas que passei a entender como um meio de se resguardar contra a ação indesejada de forças místicas, geralmente empregada por pessoas que em sua trajetória haviam tido contato bem próximo com entidades do jarê e depois dele se afastado parcialmente, envolvia afirmar em alto e bom som que não se acreditava naquele tipo de coisa. Afirmações dessa espécie – mais de descrédito do que de descrença, como será visto a seguir – costumavam ser empregadas logo após se haver descrito uma situação particularmente perigosa, em geral envolvendo entidades de reputação nefasta, ou ainda ao se 313

Já caracterizado como “um falar com ritmo próprio, rápido, frases curtas, bem marcadas, com razoável variedade de inflexões” (Gonçalves 1984: 111).

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relatar um evento especialmente marcante que poderia conectar o falante às potências místicas às quais se referia, pois o próprio ato de narrá-lo poderia significar o reconhecimento de sua grandeza. Descrever essa medida como uma forma de proteção é de saída uma forma algo desleal de encará-la, não por se tratar de uma interpretação falsa, mas por se tratar, ainda que obliquamente, de uma maneira de privá-la de parte de sua eficácia. Dito de outro modo, enfatizar o objetivo defensivo que a afirmação possui pode acabar por inverter seu efeito esperado, colocando o falante justamente à mercê de forças com as quais ele não deseja se haver de modo algum. Um amigo frequentemente comentava comigo que jamais diria às senhoras com quem conversava que ele próprio não acreditava, por exemplo, em lobisomens e outras figuras míticas que lhe diziam ter visto com os próprios olhos, e me aconselhava a fazer o mesmo: “Iriam desatar em choro, além de acharem que eu as considero mentirosas”, ele dizia. Se recorro agora a expediente semelhante – e aqui sim o empreendo de modo análogo ao de meus amigos quando oferecem afirmações de descrédito –, o faço pois ele me permite lidar de maneira frutífera com outra questão, a da falta de sentido da investigação acerca da natureza da crença. Contrariamente a um paradigma da suspeita, que parte da inexistência de determinados fenômenos, considerados místicos se não tiverem seus meandros devidamente explicitados, o jarê com seu já mencionado ideal de suficiência parte da plenitude das formas de existência314: o que se precisa postular é a descrença, quando se deseja, excepcionalmente, extrair a si mesmo da ação das forças abundantes no mundo. Tampouco se trata, na maior parte dos casos, de um contraste absoluto entre extremos, como se bastasse uma única comprovação ou desilusão para que uma pessoa se tornasse plenamente crédula ou cética – como aconteceria no primeiro paradigma. Ou, como me disse certa vez um senhor que frequentava um dos terreiros a que passei a ir com maior frequência, e que Elias me diria ser 314

Um curador de Nova Redenção disse explicitamente: “O mundo é uma despensa, tudo que você procurar dentro dele, você encontra” (Rabelo 1990: 139).

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um dos últimos descendentes reconhecidos das nagôs de outrora: “Já vi muita coisa que me faria duvidar, e muita coisa mais que me faz acreditar”. Nesse jogo que não precisa ser de soma zero, torna-se muito mais contundente o acúmulo da experiência – e dos experimentos – para se formar a si mesmo e ao mundo em que se habita, do que a eliminação das supostas contradições e incongruências às quais se estaria submetido. Como outro senhor fez questão que eu entendesse bem claramente, para existirem, os próprios entes que constituem o mundo precisam da devida atenção, interesse e reverência, num processo que nada tem de meramente simbólico. Além disso, não se trata de meramente existirem ou não existirem, mas de se existir com mais ou menos intensidade, num gradiente que vai das forças mais potentes e perenes às que terminam por desaparecer, quiçá por completo315. Em maior ou menor grau, o jarê pode ser visto como um dispositivo de orientação de microcrenças316, de fluxos de intencionalidades e atenções, voltadas para o estabelecimento não só de canais comunicacionais como de vasos comunicantes que alimentam e mantêm vivos os entes do mundo – cujos graus de existência são continuamente variáveis –, incluídos nesse conjunto, ainda que possivelmente longe de serem sua parte mais fundamental, as pessoas que frequentam uma casa. Desse ponto de vista, os membros dos terreiros funcionariam antes de tudo como espécies de rebites, por sua capacidade de redirecionar, literalmente através de suas ações, determinados fluxos capazes de enfraquecer ou revitalizar certos entes do mundo, como aconteceu, por exemplo, no trabalho de reforço de Áurea e seus caboclos. Em várias outras situações ficou claro como a mera ação de direcionar a atenção para uma entidade determinada poderia ser o bastante para fortalecê-la ou esmorecê-la, por

315

A concepção africana da pessoa aproxima-se assim mais da filosofia medieval do que da kantiana, para a qual não há intermediários possíveis: existe toda “uma escala de graus do Ser. Existe-se mais ou menos” (Bastide 1953: 371). 316

Nesse sentido, a crença sendo concebida como um dos principais elementos que fazem parte da composição das mônadas abertas de que fala Gabriel Tarde (1895: 67, 90-91, 93), o mesmo valendo para o desejo.

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vezes com consequências terríveis para os envolvidos317. É por esse motivo que um iniciando precisa, por exemplo, permanecer com os olhos cobertos durante seu trabalho de limpeza, ou que não se deve chorar na presença de um espírito ligado a mortos, como é o caso de muitos exus no jarê. Em mais uma de suas pérolas, Dona Valdelice disse certa vez a Elias – quando este buscava bajulá-la elogiando seu vasto conhecimento da ciência do jarê a ponto de deixála irritada – que “só quem sabe tudo é Deus e os orixás”, e acrescentou, mais serena: “A gente só escolhe é em quem confiar”. Por meio de sua máxima, ela revelava com muita propriedade que no jarê a crença não passa do grau máximo da confiança, essa sim verdadeiramente fundamental. Perguntar se alguém acredita ou não no jarê ou em uma de suas entidades pode ser algo sem sentido ou mesmo ofensivo: a boa pergunta equivalente envolveria a questão do quanto uma pessoa confia ou não no culto e em seus participantes, tanto humanos como espirituais. Como mencionado anteriormente, ser ou não ser “de confiança” é um dos principais comentários que se pode fazer a respeito do valor de uma pessoa, e amigos próximos costumam, em meio a brincadeiras, dizer uns dos outros que não são de confiança, afirmação que de outro modo poderia constituir ofensa grave. “Ficar dando confiança” a quem não se deve é uma maneira infalível de atrair para si infortúnios, assim como o é escolher deixar de confiar em alguém de reputação ilibada quando a oportunidade se apresenta. Escolher em quem confiar significa bem mais do que acreditar ou não no conhecimento ou na palavra de uma pessoa, mas igualmente cultivar sua amizade e valorizar a capacidade daquele a quem se confere crédito de, por sua vez, confiar em outros que também lhe queiram bem – aí incluídas todas as entidades que circundam e podem habitar os envolvidos. As pessoas ligadas ao jarê 317

Daí não me parecer exato afirmar que predomina um sentimento de vergonha derivado do significado marginal que as incorporações rituais teriam em função da “condição marginal do culto na sociedade mais ampla” (Rabelo 1990: 265-266). Ainda que se sentir acanhado por ter para si direcionados muitos olhares também possa ser um motivo para fazê-lo (Rabelo 1990: 229), é também provável que alguns dos adeptos cubram seus rostos ao começarem a ser tomados por suas entidades para tentarem não ser afetados pelas atenções dos presentes.

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depositam sua confiança não como se confia num banco, esperando retorno, mas como se confia a alguém a chave de sua casa, como se confidencia a alguém um segredo: esperando que o depositário tenha em mente seu bem, não importe o que aconteça, e sabendo que confiar em alguém é igualmente uma maneira de se tornar confiável para aquela pessoa. A expressão da confiança absoluta é a fé, que os filhos-de-santo afirmam ser indispensável à obtenção de inúmeros dos efeitos desejados no jarê, tanto durante seus rituais como em seu cotidiano. Dizse, por exemplo, que tomar um remédio natural prescrito por um curador de nada adiantará se a pessoa não tiver fé tanto nas ervas selecionadas como naquele que as preparou e em suas entidades. Só um incauto, contudo, distribui sua fé indiscriminadamente, como me ensinou certa vez a líder das baianas de Lençóis: “Respeitar, eu respeito todo mundo. Agora, botar fé, não é em todo mundo que eu boto, não”. Se a questão de ter de escolher em quem confiar e em quem não confiar pode ser considerada um ponto pacífico entre os frequentadores do jarê, o mesmo não pode ser dito a respeito da decisão de a quem e quando vale a pena desobedecer, deixar de confiar por mais momentaneamente que seja – ainda que para tanto uma pessoa vá confiar antes de tudo em si mesma ou em suas entidades. Ousadia só não é o termo mais adequado para falar da qualidade que possuem aqueles que arriscam desobedecer às orientações que recebem por ser geralmente reservado à designação da conduta sexualmente imprópria, em geral esposada por homens jovens e pela qual são quase invariavelmente criticados ou mesmo punidos. Há, de todo modo, uma aproximação possível entre algo dessa atitude e o destemor tão prezado pelos grandes nomes do jarê, a coragem, audácia ou intrepidez necessárias àqueles que desejam testar os limites do que é possível realizar. Saber quando desobedecer às orientações de seu pai-de-santo, suprimir ou acrescentar objetos ou sequências à fórmula tradicional de um ritual, ignorar os avisos de cautela de uma entidade, é algo que distingue os iniciados que obtêm os efeitos mais impressionantes e duradouros daqueles que se contentam em seguir os preceitos

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estabelecidos, suas restrições e decorrentes limitações. A capacidade de agir de modo destemido varia não só de acordo com a personalidade e a força pessoal de cada um, mas igualmente tende a se ampliar com o passar do tempo e o acúmulo de experiência, tanto dentro do culto como na vida de forma geral. A dimensão dos riscos que se corre ao abusar da sorte, de todo jeito, costuma ser proporcional à grandeza dos resultados ímpares que se pode obter, sejam eles os esperados, sejam eles imprevistos, já que nada garante que um arrojo seja necessariamente bem-sucedido. A habilidade para realização de adaptações rituais costuma ser auxiliada por outra qualidade de que dispunham aqueles considerados como os melhores curadores da região, a saber, uma ótima memória318. No jarê, esse atributo costuma ser considerado ao mesmo tempo um derivado e um facilitador da ampliação da força pessoal de alguém, bem como função da maior proximidade com – e capacidade de acessar – as entidades que circundam uma pessoa, como era o caso de Áurea, apesar da relativa pouca idade. Os maiores detentores da ciência do jarê encontram-se entre aqueles que possuem memorizados não só eventos específicos do passado como uma vasta quantidade de cantigas, sequências rituais e nomes e efeitos de plantas, que são capazes de mobilizar quando as condições se mostram adequadas. A memória pode ela também ser treinada e aprimorada, atividade a que os curadores costumam se dedicar já que a capacidade de se lembrar com exatidão de histórias e detalhes passados concede a alguém a possibilidade de impulsionar transformações no presente de maneira cada vez mais confiável, se assim o desejar. Um pai-de-santo mencionou certa vez como considerava a mente algo muito parecido com um computador, instrumento que ele próprio jamais tinha utilizado, por reconhecer no aparelho a capacidade não só de processar

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Em diversas ocasiões os lençoenses chamavam atenção para a prodigiosa memória de alguns dos mais antigos habitantes da cidade, em especial as senhoras centenárias que haviam diretamente vivenciado ou ouvido relatos em primeira mão sobre toda a história da região (Ganem 2001: 21, 76). Na novela Pedra sobre pedra, inspirada na realidade de Lençóis, essas senhoras forem representadas pela figura de Dona Quirina, que se lembrava vivamente do passado apesar de ela mesma já possuir 120 anos de idade.

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informações, computá-las, como principalmente de armazenar uma imensa quantidade delas e possibilitar acesso rápido às mesmas319. De certo modo, seria possível dizer que do ponto de vista do jarê as pessoas que possuem uma memória invejável são consideradas as mais inteligentes de todas, sendo a capacidade pura de armazenamento sempre mais importante nessa avaliação do que a disposição para fornecer comentários sobre elas – inclusive porque deixar de fazê-lo pode contar em geral como sinal de que àquela inteligência se alia uma grande sabedoria320. Mesmo algumas das pessoas que detêm as melhores memórias também podem sem qualquer embaraço se dedicar ao registro escrito de cantigas, eventos e fórmulas místicas, sendo muito comum que os líderes das casas de culto possuam cadernos guardados de maneira bastante ciosa nos quais detalham parte de seu conhecimento tradicional. O acesso a esses cadernos costuma ser bastante restrito, confiado apenas às pessoas mais próximas do chefe de uma casa, e a autorização para que sejam realizadas cópias dos mesmos são ainda mais raras. Os cadernos costumam conter listas de visitantes da casa, datas de realização de cerimônias de jarê e iniciações, letras de cantigas e rezas, nomes e funções de ervas medicinais e modos de prepará-las. Não há problema algum em se recorrer a um desses cadernos ou outros aparatos escritos para se recordar, por exemplo, da letra de uma cantiga que só é cantada em determinadas ocasiões menos comuns, já que seu conteúdo funciona muito mais como um auxílio mnemônico do que como uma forma de se adquirir um conhecimento que previamente não se possuía. De todo modo, mais de uma vez os filhos-desanto indicaram que o simples fato de se ter acesso ao que havia escrito em cadernos como

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Outro curador, de Nova Redenção, disse: “Nunca tive estudo nenhum. Meu único estudo foi minha ideia, a memória que Jesus me deu em meu pensamento” (Rabelo 1990: 117, cf. tmb. 132). 320

A aproximação direta entre memória e inteligência já fora feita para as tradições religiosas iorubá (Verger & Anthony 1996: 174 apud Souty 2007: 267).

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esses, bem como em livros, nunca era suficiente para que alguém se tornasse um curador de verdade.

4.3 Caboclos

Um dos motivos adicionais que contribuía para Áurea se emocionar com a cantiga transcrita no início desse capítulo era o fato de ela ser dedicada a Santa Bárbara, que é outro nome dado a Iansã, aquela que era sua entidade mais famosa, batizada em sua cabeça por Pedro de Laura. Iansã, inclusive, é provavelmente o espírito que recebe a maior gama de nomes diferentes no jarê, evidenciando também uma conjugação de entidades que no candomblé são consideradas distintas. Conversando com Áurea certa vez, Elias lhe perguntou qual era, afinal de contas, a entidade principal dela, se Iansã, Oyá, Oxum ou Oxumarê, já que no jarê cantigas que se referem a esses quatro nomes (além de Santa Bárbara, nome em geral considerado o maior sinônimo de Iansã) são evocadas em momentos rituais nos quais só se deve reverenciar uma única entidade por vez. Áurea respondeu que a confusão de meu amigo era justificável, tanto por no jarê esses nomes efetivamente tratarem de um mesmo espírito como por sua entidade de frente ser uma variação específica chamada Iansã Tempo. Áurea, como muitos outros filhos-de-santo, tinha grande orgulho de suas entidades, especialmente, em seu caso, da Santa Bárbara que lhe acompanhava havia tanto tempo e que já conquistara grande reconhecimento por parte dos frequentadores do jarê, a ponto de se tornar uma presença obrigatória em praticamente qualquer celebração nas casas de culto. Áurea era propensa a falar com os amigos sobre suas entidades, e podia se mostrar genuinamente aborrecida caso fosse feita alguma comparação desfavorável entre sua Iansã e qualquer outro

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espírito, como quando alguém comentou que ela era muito enigmática: “Falem o que quiserem de mim, mas não falem mal dos meus caboclos”, afirmava. Os adeptos do jarê realizam – e operam com – distinções entre as entidades mobilizadas no culto que poderiam ser descritas por meio de três diferentes eixos, utilizando em todos os casos metáforas ópticas, especialmente adequadas não só por fazerem referência a domínios contínuos como por serem parte de uma das formas explicitamente utilizadas pelas pessoas que lidam com elas para diferenciá-las ou as aproximar umas das outras321. O primeiro eixo, de especiação das entidades, poderia ser imaginado como uma escala cromática de tonalidades, na qual cada matiz ou conjunto de matizes faria referência a um espírito determinado. Os frequentadores do jarê muito frequentemente reconhecem e fazem reconhecer entidades que se manifestam nas casas de culto em função das cores das roupas que empregam e que são aceitas pelos caboclos – como amarelo ou vermelho para Iansã, azul escuro para Ogum, verde para Sultão das Matas –, bem como graças aos objetos e adereços que empunham e sobre os quais exercem sua influência, em geral da mesma cor de suas vestimentas. A escala de tonalidades denota igualmente um dos critérios de averiguação das proximidades que podem existir entre entidades distintas, exemplificada pela vizinhança e passagem gradativa de cores lado a lado umas das outras: diferentes tons de verde indicam caboclos ligados às matas, mais próximos entre si do que das entidades pertencentes às águas, por exemplo, que vestem matizes de azul. Por mais que a escala de tonalidades funcione nesse momento antes de tudo como um instrumento retórico (por exemplo, apesar de poderem vestir o mesmo tom de azul, Ogum e as entidades das águas não são considerados próximos), muitas vezes ela pode corresponder de maneira bastante direta às conexões entre espíritos distintos, 321

Essas distinções são igualmente realizadas, com algumas flutuações específicas a cada caso, nas demais religiões de matriz africana. Não é nenhum exagero conectar esse sistema a uma determinada ontologia cromática que parte de um monismo energético de base (Goldman 2005: 116), por sua vez apenas “a resultante de uma multiplicidade intensiva de linhas de força e vetores” (Goldman 2012: 277-278). Um curador de Nova Redenção assim o exemplificou: “Um pai tem dez, doze filhos. Eles não podem ser todos exatamente iguais uns aos outros, certo? Bem, é assim com os encantados...” (Rabelo 1990: 129). A discussão a seguir poderá ser mais proveitosamente acompanhada junto do gráfico presente na próxima página.

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igualmente entrevistas pela posição relativa que ocupam nas sequências de incorporações rituais seguidas nos jarês, como será visto mais adiante.

Generalização

– Densidade +

Singularização

Especiação

Exemplo de área de existência pouco intensiva, em baixa saturação

Gráfico 1 – Eixos de diferenciação e aproximação das entidades

O segundo eixo de diferenciação das entidades refere-se ao grau de generalidade das mesmas, já que praticamente todas podem, num extremo, existir enquanto forças muito abrangentes – em geral ligadas a fenômenos climáticos (como tempestades), ambientes ecológicos (rios, matas, serras) ou ocupações (mineração, pecuária) – ou, no outro extremo, mostrarem-se instanciações singulares que cada pessoa pode manifestar. A maior parte das interações dos membros dos jarês com as entidades se dá quando elas existem dessa forma, habitando o corpo de um adepto e assumindo características particulares ligadas a ele, como algo de sua voz, maneirismos, estilo de dança. Os espíritos em sua face mais geral costumam ser lembrados quando são homenageados em festas específicas ou quando são invocados para conceder bênçãos a alguém322. Ainda que, por exemplo, muitas pessoas possam comparecer a uma festa para assistir à manifestação de uma das entidades de Áurea, um jarê dedicado a Iansã prestará homenagem a todas as Iansãs que se incorporarem nos filhos-de-santo 322

Nos jarês de nagô de antigamente, usava-se a palavra “calundu” para designar a entidade abrangente, o “encantado genérico”, sendo a origem quimbunda do termo apontada como mais uma evidência do fundamento banto do jarê (Senna 1998: 71 nota 42).

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presentes, no momento ritual específico destinado a sua chegada. Disposto verticalmente numa tela, esse eixo poderia ser entendido como um de densidade ou nitidez da imagem, no qual a seção superior seria preenchida por um contínuo espraiado – representando a divindade em toda abrangência de sua alçada – enquanto a inferior seria ocupada por pontos cada vez mais esparsos – indicando cada uma das entidades incorporada num adepto específico e assumindo sua roupagem particular. A terceira distinção possível de ser pensada envolveria o já mencionado grau de intensidade da existência da entidade, sem ignorar o fato de que um espírito que exista de maneira mais intensa que outros em geral acaba tornando-se também mais diferenciado que os demais a ele semelhantes. Quanto mais uma entidade é mencionada e reverenciada, quanto mais rituais são feitos por ela e em homenagem a ela, há quanto mais tempo ela costuma visitar rotineiramente um mesmo terreiro, maior será sua força pessoal e de modo mais determinante ela existirá em meio aos adeptos do jarê. Inversamente, espíritos que passam a ser ignorados, que deixam de ser devidamente alimentados e honrados com os procedimentos adequados, cujas incorporações são colocadas em dúvida ou deixadas de lado e rotineiramente suprimidas da sequência litúrgica habitual, acabam vendo diminuída sua relevância para o culto e, simultaneamente, sua própria capacidade de continuar existindo323. Justapondo-se aos dois eixos anteriores, esse terceiro poderia ser assemelhado ao grau de saturação das cores de uma imagem, tornando determinadas porções mais vívidas ou mais pálidas conforme a existência das entidades se mostrasse mais ou menos intensa. O fato de que os frequentadores dos jarês usam habitualmente os mesmos termos – entidades, caboclos, orixás, santos – de modo indiferenciado para falar a respeito de uma gama de seres místicos em suas variadas formas de existência não significa que não realizem com variável regularidade as distinções aqui propostas. Contudo, ao contrário e 323

A respeito desse fenômeno, no universo do candomblé já se ouviu a adequada expressão “orixá em vias de extinção” (Patricia de Aquino, comunicação pessoal apud Latour 1984: 21 e nota 4).

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provavelmente de maneira ainda mais importante, essa indiferenciação potencial aponta para uma das características mais fundamentais do sistema, que é sua capacidade transformacional. Mais do que servir ao estabelecimento da identidade de uma entidade, esses eixos permitem pensar tanto seus cruzamentos como as movimentações que, entre outras, a própria atividade de caracterização dos espíritos enceta. Constantemente os adeptos podem se encontrar diante da questão não tanto de descobrir a identidade de uma entidade mas de saber com quais ela se assemelha: é em função da proximidade ou da distância estabelecida em relação às demais que ela será, novamente, nem tanto reconhecida como configurada, sendo mesmo possível que um pai-de-santo estimule ou desencoraje o aparecimento e a consolidação de um caboclo específico numa pessoa, pelos mais diferentes motivos. Por sua vez, se as atualizações particulares das entidades manifestando-se nos corpos dos iniciados derivam de um movimento propulsionado por suas versões mais abrangentes, inversamente é a densidade das incorporações de um grande número de adeptos recebendo instanciações de um mesmo espírito que (re)produz ritualmente a presença nítida da divindade no espaço sagrado. Finalmente, é no curso dos acontecimentos tanto rituais como cotidianos que a potência das entidades é posta à prova, podendo ser ampliada se estável, ou se mostrando exaurida, precisando de renovação, como ocorreu no trabalho feito para Áurea. Além das incorporações, quando passam a coexistir de forma bastante intensa habitando os corpos dos iniciados, costuma-se conviver com as entidades de maneiras mais sutis, mais comumente por meio de manifestações ou puramente visuais ou puramente auditivas, que podem ter lugar tanto durante sonhos como em vigília324. A capacidade de se manifestarem dessas maneiras também é acompanhada pelas faculdades de ver e ouvir, ainda que muitas vezes não simultaneamente: ainda que não componham sua totalidade, estão longe de ser exceção tanto as vezes em que uma pessoa ouve uma voz que atribui a uma entidade 324

O nome dado às aparições puramente visuais das entidades, aleivosia, na região é por vezes pronunciado igualmente “livusia” (O. Senna 2002: 12).

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sem ter visto sua imagem, como aquelas nas quais alguém vê uma figura de aparência humana (em geral na mata) e se dirige a ela verbalmente sem obter qualquer resposta de volta. De todo modo, como mencionado, as entidades que circundam uma pessoa costumam estar constantemente atentas àquilo que se passa em seu redor, sendo propensas a agir sem que seja necessário instá-las a tanto. Como uma filha-de-santo certa vez afirmou enfaticamente: “Dizse que santo não é cego e, além disso, tem ouvido!” Os espíritos podem deixar também outras formas de rastros, como borrões luminosos em vídeos e fotografias, alguns dos quais podem ser distinguidos apenas pelos maiores entendidos do jarê, como os grandes curadores. Esperase que todo curador tenha conhecimento e seja capaz de reconhecer um grande número de entidades místicas, aprimorando-se ao longo de sua carreira em manejá-las corretamente. Dizse mesmo que os maiores entre os curadores terminam por ser capazes de lidar de maneira muito direta literalmente com todos os espíritos do jarê, sua alçada abrangendo idealmente todo o espectro de variações que o conjunto das entidades compõe. A incorporação das entidades pelos iniciados nas cerimônias de jarê, num processo que será mais bem detalhado adiante, costuma acontecer de acordo com sequências tradicionalmente estabelecidas em cada casa de culto e de acordo com cada celebração, podendo de todo modo sofrer alterações repentinas, feitas sempre que possível com orientação do líder responsável pela festa325. Quando uma entidade se manifesta num iniciado, fica estabelecido um ambiente no salão destinado à reverência somente de outras instanciações daquela mesma entidade: quando Áurea incorpora sua Iansã, espera-se que outras pessoas presentes recebam também suas próprias Iansãs e dancem todas juntas no pagodô. Caso aconteça de uma pessoa ser tomada por outro espírito que não seja uma Iansã, por exemplo um Oxóssi, os presentes tentarão dialogar com a entidade indiscreta e convencê-la a deixar

325

No candomblé essa ordenação da sequência de incorporações recebe o nome de “xirê”. No jarê, entretanto, não existe jamais nada parecido com o “adarrum” do candomblé, o toque que estimula a vinda, num mesmo momento, de inúmeras divindades distintas (Bastide 1958: 36).

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por ora a pessoa na qual se encontra e aguardar o momento posterior no qual outras similares a ela serão veneradas. Esses eventos são relativamente esparsos, quando muito limitando-se a uma ou duas entre as dezenas de incorporações que acontecem ao longo de uma cerimônia de jarê, sendo igualmente, e em grande parte, resolvidos a contento. Além disso, as manifestações que acontecem fora da ordem esperada são também percebidas como comuns tanto pelas entidades serem consideradas seres caprichosos quanto em função das mencionadas proximidades que entretêm, dividindo-se também, de acordo com suas características e afinidades, em alguns grandes conjuntos. As sequências a seguir, listadas por Áurea, acompanham de modo geral o ordenamento dos caboclos reverenciados nas festas na Capivara, habitualmente seguido pelas outras casas de jarê de Lençóis. De todo modo, sempre que é feita uma festa em homenagem a um espírito específico ele costuma preceder todos os demais da sequência tradicional. As primeiras entidades para quem se canta no pagodô fazem parte de um conjunto chamado de “caboclos de frente”, seres aos quais a designação “orixá” costuma também ser aplicada com maior frequência. Os caboclos de frente são liderados por Ogum, entidade combativa que veste tons próximos do azul escuro e que é também renomada por sua capacidade de oficiar trabalhos rituais. Após a despedida de Ogum as atenções se voltam para Iansã, também chamada quase indistintamente de Santa Bárbara e ocasionalmente de Oyá, Oxum ou Oxumarê, esta última considerada por alguns uma versão masculina da mesma entidade. Iansã costuma vestir tons de amarelo ou vermelho, é uma das entidades femininas por excelência do jarê, possui domínio sobre a morte e os mortos e – assim como Xangô, entidade que lhe sucede na sequência – sobre os raios, trovões e tempestades de maneira geral. Da mesma forma que ela, Xangô, que traja exclusivamente o vermelho, é também um orixá ligado à vaidade, tendo ele, contudo, especial aversão à morte e aos mortos, ao contrário da primeira. Elias certa vez sintetizou uma hipótese transformacional esboçada por algumas

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outras pessoas ligadas ao culto, segundo a qual alguns entre os orixás existentes nos cultos de matriz africana em seu princípio foram, durante a formação do jarê, transpostos para os outros conjuntos de entidades. Apropriadamente, entidades como Oxóssi, Iemanjá, Baluaê, Nanã e Oxalá aparecem, por vezes ligeiramente modificadas, na sequência ritual dos jarês, próximos não dos demais espíritos de frente, aqui descritos, mas dos demais caboclos separados nos conjuntos que são ocasionalmente chamados de forma geral de “linhagens”326. Após as incorporações sequenciadas dos três caboclos de frente, procede-se à visita das entidades pertencentes à “aldeia d’água”, numa fase cujo início é marcado por cantigas específicas saudando os espíritos dos domínios aquáticos presentes na linhagem. A aldeia d’água é “puxada”, chega ao salão, pela ação de Marinheiro, entidade que veste diferentes tons de azul e mais ligada às águas salgadas dos mares. Em ordem, ele costuma ser sucedido por Mãe d’Água, Sereia e Janaína327 – essa última uma versão infantil da entidade Iemanjá –, todas trajando, além dos tons de azul característicos de toda entidade da aldeia d’água, variações de rosa e amarelo claro. Essas entidades femininas são consideradas ligadas às águas doces dos rios e das lagoas, suas instanciações muitas vezes habitando marcos geográficos determinados na região da Chapada Diamantina e do município de Lençóis, sendo a mais famosa delas a Lagoa Encantada, formada pela junção dos rios Utinga e Santo Antônio328. Os espíritos ligados à aldeia d’água são quase invariavelmente vistos como bastante calmos e dóceis, em comparação tanto com os orixás de frente que lhes precederam quanto com os caboclos que imediatamente lhes sucedem na sequência e aos quais costumam ser postos em oposição. Sua forma de dançar pode ser igualmente descrita pelos iniciados

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Esse processo de transposição das entidades, que recebe alhures o nome de “caboclarização” (Senna 1998: 116), é um dos motivos que leva todos os espíritos a poderem ser chamados indistintamente de caboclos. Por sua vez, os conjuntos de entidades também podem ser considerados determinados espaços, “sítios” nos quais o “território sagrado” pode ser repartido (Senna 1998: 115). 327

Para a qual se registra também o nome de Inapiucina (Senna 1998: 133).

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Menção que também é feita na literatura regional (Pereira 1910: 57; Moraes 1963: 136-137, 139 nota 2).

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como tendo passos mais suaves que os demais espíritos incorporados, ainda que a diferença possa parecer por demais sutil ao observador casual. A chegada dos caboclos da “força da mata” marca uma das etapas mais movimentadas do jarê, não somente por contar com as entidades consideradas mais bravias e selvagens do culto como por ser também próximo a ela que se costuma haver a interrupção do fluxo de habitual de incorporações, necessária à realização de iniciações rituais. Os caboclos da força da mata, todos em geral vestindo tons de verde, costumam ser liderados por Sultão das Matas, ao qual se seguem incorporações das entidades Eru, Gentio, Índio (também chamado de Tupinambá) e Oxóssi – ou sua versão infantil, de nome Odé. As entidades que compõem a força da mata costumam ser de algum modo associadas à população indígena que deve ter no passado habitado a, ou viajado pela, Chapada, fossem espíritos de indígenas que faleceram ou se encantaram, fossem espíritos cultuados pelos próprios. Elias me lembrava que os caboclos da força da mata eram os “donos da terra”, que ele gostava de chamar de “caboclos da Terra de Vera Cruz”, e como tal seriam para sempre dignos de homenagem por parte daqueles que agora habitavam um território que por direito seria de outrem, num compromisso estabelecido pelas nagôs de antigamente329. Os caboclos dessa linhagem são considerados corajosos, bravos e teimosos, e tanto sua fala como sua dança são ditos “avexados”, ligeiros, exercendo em suas incorporações um movimento veloz que é inibido no mundo que agora habitam, chamado Aruanda330, associado às matas e a árvores específicas que lhes servem de morada. 329

Há registros sobre a ocupação, mais duradoura ou mais transitória, de diferentes etnias indígenas no território que é hoje denominado de Chapada Diamantina, incluindo maracás, paiaiás, paiaiazes, maracanasus, cariris, tapuias. Às línguas faladas por esses dois últimos – igualmente mencionados em algumas cantigas de jarê – atribuem-se termos e nomes muito usados na região, como orobó, assuruá, jequié, cincurá, catulé, mucugê, entre outros (Pereira 1910: 69 nota **; Pereira 1937: 42-43; Tavares 1959: 17-20; Siqueira 1978: 37-43, 111; Bandeira 1995: 13, 15; Araújo, Neves & Senna 2002: 148 nota 64). Um curador do Remanso, povoado de remanescentes de quilombolas, evidenciava em sua comunidade a defesa de um ideal de vida considerado indígena, afirmando que as agruras que grande parte da população nacional vivia haviam começado com a expulsão dos povos ameríndios de suas terras. De acordo com sua visão, constitutiva em algum grau de todos os jarês, quando forem vitoriosos na luta espiritual que agora travam, os caboclos obterão como consequência o retorno das populações indígenas às terras que são suas por direito (Senna 1998: 97-98). 330

No anexo IV, na seção destinada a cantigas oferecidas indistintamente a qualquer caboclo, ver a que começa com “E olha a palha do coqueiro”.

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A linhagem seguinte, dos “espíritos de luz”, costuma contar com entidades reconhecidas mais por sua ocupação que por qualquer cor específica de vestimenta, muitas delas podendo inclusive preferir, quando incorporadas em iniciados do sexo masculino, dançar sem camisas. Os espíritos dessa linhagem encontram-se entre aqueles que os iniciados consideram mais prováveis de terem sido pessoas determinadas que viveram entre seus antepassados, a história de muitos deles remetendo à época da escravidão. Entre eles, na ordem em que costumam chegar nos salões durante as festas, estão Mineiro, Tomba-Morro, Preto Velho, Jericó e Vaqueiro. Jericó, em particular, contam tanto os adeptos como as letras das cantigas em sua homenagem, foi um escravo que trabalhava tomando conta de gado e tinha especial predileção pela luz da lua, até ter sido cegado por seu proprietário por um grave deslize que teria cometido. As melodias de suas cantigas são tão lúgubres quanto belas, contrapondo-se à animação característica que acompanha em seguida as músicas cantadas para Vaqueiro, entidade que incorporada costuma fazer questão de simular uma vaquejada, usando uma tira de pano no lugar do laço e lutando contra um dos presentes que se dispõe a participar no papel de um dos membros mais irrequietos do rebanho. A última linhagem que comparece a uma festa de jarê é a do “povo velho”, que costuma se vestir com roupas brancas e realizar um ritual específico junto aos tambores. Liderada por Oxalá ou por Baluaê, a chegada dessas entidades é precedida por cantigas específicas cuja execução é acompanhada pelo gesto ritual, empreendido por todos os presentes, de levar uma das mãos ao chão, mantendo-a ali durante alguns instantes, seguindo a iniciativa do chefe da casa. Entre os membros do povo velho costumam estar também Nanã e Nagô, entidades femininas ligadas à lama, substância que elas recriam num dos confins do salão por meio da fricção constante e cadenciada de uma quantidade considerável de azeite de dendê, derramado pelo dono da casa, no chão de terra batida do salão. Como mencionado anteriormente, os iniciados que incorporam espíritos do povo velho costumam ir

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imediatamente ao chão e se locomover com muito custo, apenas engatinhando, bem como não serem capazes senão de balbuciar suas cantigas, em geral reconhecidas mais por sua melodia e ritmo do que pela letra, que articulam com dificuldade. Todo jarê costuma ser encerrado com incorporações a uma entidade que parece ser, contudo, o oposto das demais do povo velho, por sua jovialidade e vivacidade. Trata-se de Cosme e Damião – dupla à qual se refere também em conjunto sem o artigo ou somente pelo nome do primeiro –, uma das mais importantes entidades do jarê, motivo pelo qual a maior parte das festas costuma acontecer no mês de setembro, no qual é comemorado o dia em homenagem a esses santos gêmeos, de acordo com o calendário católico. Muitas festas dedicadas a Cosme são realizadas em Lençóis, algumas delas podendo mesmo acabar resultando em pequenos jarês caso a entidade decida incorporar em algum dos presentes. Quando se manifesta, em um ou mais de um dos iniciados num jarê, Cosme Damião assume comportamento infantil, com voz aguda e cometendo erros, especialmente trocas fonéticas, ao falar, de uma maneira que lembra o processo de aquisição da língua pelo qual passam as crianças. Ele se mostra dono de um senso de humor incomparável, estando sempre disposto a traquinagens e solicitando presentes e dinheiro (se satisfazendo imensamente com moedas de valor irrisório) dos frequentadores da casa que ainda se encontram acordados após muitas horas de celebração. Àqueles que procuram satisfazer os desejos da entidade, recomenda-se entregar qualquer tipo de objeto sempre em múltiplos de dois, número-chave para Cosme, a todo momento lembrado em suas cantigas. Cosme Damião também se compraz em entregar balas, sempre duas a duas, a todos aqueles que se encontram no local lhe prestigiando, dando especial atenção às crianças – e mais ainda no caso de gêmeos – que faz questão de tirar do chão, abraçar e abençoar. Cosme em geral finaliza sua participação, e com ela o jarê como um todo, lambuzando os participantes da festa, que devem em seguida lamberem-se para se limparem, com mel ou dendê. Se alguém não deseja sujar suas mãos e suas roupas, pode

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tentar evadir-se da entidade, o que por vezes gera perseguições cômicas. Voltarei à importância de Cosme para o jarê no final da conclusão da tese. Além das entidades mencionadas, existe um outro grande conjunto de espíritos ditos “da esquerda”, o já mencionado “povo da porta” – que só raramente comparece diretamente no salão de uma casa de culto – composto pelos exus. No dia da realização de um jarê, na prática os exus são as primeiras entidades a serem reverenciadas, com obrigações rituais e cantigas feitas no entorno das propriedades e junto ao caramanchão, executadas somente por homens, quase sempre acompanhados de perto pelo curador da casa. Apesar de também ser possível reconhecer exus específicos que se anunciam quando se manifestam de algum modo num adepto – como Zé Pelintra, Tranca-Rua, Pomba-Gira –, a maior parte desses espíritos existe e atua acoplada aos caboclos, às entidades “da direita”. Assim, os exus são chamados igualmente de “escravos” e “mensageiros” das demais entidades, por serem responsáveis pela realização de tarefas, envio de recados e colocação em movimento de forma geral das forças envolvidas no jarê. Apesar de não terem roupas de tons específicos, por dificilmente se incorporarem nos adeptos, as cores preto e vermelho são a eles associadas, sendo escolhidas para adornar suas moradas e utilizadas nos trabalhos rituais que eles facilitam. Suas oferendas são geralmente deixadas em encruzilhadas, cruzamentos dos caminhos, sendo toda forma de passagem tema sobre o qual exercem sua influência. Daso, o curador que acabou sendo o responsável pelo trabalho de reforço de Áurea, era bastante propenso a elucubrações a respeito dos exus, comentando com seus filhos-de-santo como eram poucos os capazes de ver que sempre que um caboclo chegava no salão para se manifestar numa pessoa, o exu que lhe trouxera ficava do lado de fora aguardando o término da incorporação para levar o outro espírito de volta à morada de onde viera. Aconteceu certa vez do Zé Pelintra de Daso se manifestar após um ritual e reclamar da importância excessiva que parecia estar sendo concedida ao Eru do curador, que acabara de deixá-los, lembrando aos presentes que sem a

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ação do exu o caboclo não teria como chegar ao pagodô. Os exus são volúveis por excelência, capazes tanto de unir como de separar, explicava Daso, ambas as ações referindo-se não somente a pessoas como a outras forças e entidades, objetos, operações, desejos331. Todas as entidades podem, de um modo ou de outro, transmitir mensagens e avisos, bem como realizar ou ter a si direcionados pedidos e promessas. As festas de jarê são momentos propícios à comunicação mais direta de pessoas com as entidades de outrem, durante as incorporações, não sendo incomum ver um dos frequentadores da casa chamando de lado um caboclo manifestado para trocarem palavras ao pé do ouvido. As entidades por vezes aproveitam a ocasião para deixar os mais diversos recados para seus próprios aparelhos, termo por vezes usado para se referir às pessoas que as incorporam, de orientações dietéticas a advertências comportamentais mais graves. Compromissos assumidos por pessoas com os espíritos são, via de regra, encarados com grande seriedade, da mesma forma como se confia no empenho e no resultado vindouro das promessas feitas pelos caboclos – diferentemente das promessas feitas por “carne podre”, como ocasionalmente são chamados os seres humanos em contraste com os espirituais. Há quem arrisque a ira das entidades ao adiar a execução de obrigações com elas admitidas em troca da obtenção de determinados efeitos, ancorando-se, para justificar a procrastinação, seja em contratempos súbitos, seja na enunciação de uma promessa assumida com termos vagos, seja ainda em sua própria força pessoal. Mesmo os mais audaciosos não duvidam da possibilidade de que venham a ser castigados pelas entidades, por mais que a punição possa vir muito tempo depois do que se imaginaria. Até mais do que a realização dos trabalhos rituais que podem acontecer nas cerimônias de jarê, os principais motivos que trazem as entidades aos salões estão ligados às diferentes formas de serem reverenciados pelos frequentadores das casas de culto. Como constantemente

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A respeito de seu papel nas religiões de matriz africana, fala-se do “princípio dinâmico” atribuído a essas entidades e pelo qual são responsáveis, agindo enquanto “centro[s] de comunicação” aos quais se atribui o equilíbrio dos elementos do cosmos (Elbein dos Santos 1975: 169-170, 180).

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lembram os adeptos, os jarês são festas em homenagem aos espíritos, que se manifestam nos iniciados para que possam ser devidamente adorados e presenteados, bem como para terem oportunidade de dançar e conferir bênçãos àqueles que presenciam suas vindas. As chegadas das entidades são sempre acompanhadas por saudações, em geral tanto palmas como abraços rituais, estes oferecidos a alguns ou mesmo a todos os presentes, cumprimentados um a um. No abraço em si o espírito manifestado estende sua mão para alguém que a recebe e, mantendo o aperto, ambos aproximam-se enquanto erguem as mãos unidas entre seus corpos até um pouco acima da cabeça. Ato contínuo, soltam-se as mãos que são passadas por cima dos ombros um do outro, iniciando o abraço – normalmente primeiro levando-se a cabeça para a direita e depois para a esquerda. Certas vezes a saudação ritual pode ser incrementada quando a entidade se ajoelha antes de estender a mão para uma pessoa, que a levanta quando aceita o gesto; noutras vezes é a pessoa que pode se ajoelhar antes de ser cumprimentada: ambos os gestos são denotações de respeito, ainda mais marcados e demorados quando envolvem aqueles entre os quais há relações de parentesco, em especial as de apadrinhamento332. O mesmo costuma acontecer com as conversas e trocas de presentes, e muitas das entidades fazem questão de serem reverenciadas com fumigação de incenso ou ainda com fogos de artifício – dificilmente ausentes nos jarês e usados igualmente no início de toda cerimônia –, além dos diversos objetos que lhes são eventualmente prometidos e entregados. Ao falar das manifestações das entidades durante os jarês, procurei manter recorrente uma indistinção a respeito da agência dos envolvidos. Frequentemente, ao falar sobre o fenômeno, as pessoas que vão aos jarês são não exatamente ambíguas, mas ambivalentes: enfatizam por vezes a ação da pessoa que incorpora, manifesta um espírito, noutras a da entidade que se incorpora, se manifesta nos corpos dos adeptos. Da composição da qual

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Ver foto 74 no anexo III.

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participam, em diferentes graus, seres humanos e espirituais, diz-se que se trata de alguém que se encontra “atuado”, uma pessoa cujas ações são motivadas por vontades múltiplas sobrepostas. A chamada “natureza” de cada pessoa é formada por um conjunto variável de volições que ocasionalmente coabitam um mesmo corpo, aproximando-se e afastando-se dele conforme cada momento. Ao nascer, estabelece-se um temperamento determinado à natureza da pessoa, um somatório de forças que indicará se ela será ou não alguém suscetível à maior ação das entidades, se carregará ou não consigo a sina de poder ser tomado por elas durante os jarês. Enquanto as mulheres, de maneira geral, nascem mais recorrentemente com uma natureza cuja configuração lhes torna mais aptas a receberem as entidades, há alguns homens que compartilham destino semelhante, entre os quais estão os mais capazes para se tornarem curadores. A maior parte dos homens, de todo modo, costuma ser, por sua natureza, infensa às incorporações. Os adeptos, especialmente aqueles que recebem os espíritos, costumam se perguntar sobre os motivos dessa ausência, alguns sugerindo – não sem alguma apreensão – ser possível que existam pessoas que simplesmente não têm entidades. Há outras hipóteses para a ausência das incorporações, como me disse, por exemplo, certa vez uma senhora, me tranquilizando a respeito do fato de eu não sentir nada “de diferente” durante os toques, pois havia pessoas cujos caboclos podiam estar por demais ocupados batalhando espiritualmente pelo bem de seu carnal para nele se manifestarem. A natureza pessoal não é, contudo, imutável, podendo ser em alguma medida modulada de acordo com o passar do tempo: pessoas que jamais incorporaram entidades podem passar a fazê-lo, pelos mais diferentes motivos – passar a frequentar mais cerimônias de jarê, herdar entidades deixadas por seus antepassados quando estes falecem, passar por um trabalho de iniciação. Incorporar uma entidade durante um jarê é uma forma de prestar deferência à casa de culto onde acontece a festa. Enquanto pessoas mais jovens ou com menos tempo de iniciação costumam ter mais dificuldades em tentar conter as manifestações dos próprios caboclos,

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sendo até por isso desencorajadas por seus pais-de-santo a frequentarem celebrações em outras casas de culto, as mais antigas e com maior força pessoal são capazes de desestimular a incorporação de suas entidades quando assim o desejam. Nos momentos em que não há espíritos manifestados no salão, sempre marcados por alguma apreensão, entoam-se cantigas que convidam uma determinada entidade a comparecer ao pagodô, e os presentes trocam olhares e dirigem suas atenções àqueles entre eles que sabidamente costumam incorporar o caboclo em questão, estimulando-o a vir. Há muitas outras maneiras de induzir a chegada das entidades, seja recorrendo a cantigas específicas caras a algum dos presentes, seja pelo uso de objetos rituais – como a campa –, seja ainda pela ação de caboclos já incorporados se dirigindo a outros adeptos – cumprimentando-os com abraços, apertos de mão ou pela união de suas cabeças. O início da incorporação de uma entidade numa pessoa é assinalado por espasmos de arrebatamento e manifestações vocais curtas, marcadas e compassadas, uns e outras ocorrendo com brevíssimos intervalos entre si. As primeiras costumam acontecer com maior ênfase no caso das mulheres, as segundas nas incorporações que ocorrem em homens, via de regra marcadas por uma maior sobriedade. Normalmente, em poucos instantes a incorporação se concretiza, tendo por resultado a chegada da entidade que se coloca de pé, quase sempre com os olhos fechados (total ou parcialmente), e se dirige aos tambores por cujo rufar de boas-vindas é atraída. Caso o iniciado atuado esteja trajando peças de vestuário ou ornamentos que impeçam a movimentação considerada adequada pela entidade, os itens serão removidos pelos adeptos que se encontrarem perto dela, o mesmo tratamento sendo dispensado a quaisquer objetos que se julgue poderem machucar a pessoa. Desse modo, são removidos calçados, relógios, anéis e por vezes brincos e pulseiras, ocasionalmente com indicações da entidade mas sem que ela própria jamais os remova. Somente os colares de contas costumam ser mantidos, por vezes também resultando em seu rompimento no decorrer da incorporação – encarado ou somente como mau portento, ou como evidência de proteção

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contra uma ação perniciosa malograda enviada contra o adepto. A maior parte das entidades, ao chegar, procede a um ou mais cumprimentos rituais aos presentes (em geral com a fórmula: “Deus lhes pague, a caridade de vocês!”), bem como, no caso de algumas das mais importantes ligadas à casa em questão, oferece saudações aos tambores e às portas e extremidades do salão, dirigindo-se ao chão num mergulho repentino e lá encostando sua cabeça. Os frequentadores dos jarês mencionam com alguma frequência o quão penoso e desgastante é receber uma entidade, algo também evidenciado pelas muitas tentativas feitas de impedir sua vinda, sendo raro o jarê em que não aconteçam ao menos algumas. Para não “tombar no santo”, que é outra maneira de falarem sobre o processo de incorporação, há pessoas que podem tentar literalmente sair correndo do salão no momento em que começam a pressentir a chegada de suas entidades, por mais que as fugas quase inevitavelmente acabem por se demonstrar inúteis: diversas vezes as pessoas são tomadas e, cambaleantes, trazidas de volta ao salão por suas próprias entidades. Algumas crianças que frequentam os terreiros se animam diante da possibilidade de, no futuro, virem a ser elas também tomadas por caboclos – sentimento por cuja demonstração são admoestadas pelos adultos, que lhes afirmam peremptoriamente que o jarê não é algo com que se deva brincar e que a aflição inerente às incorporações é algo que faz com que não sejam desejadas. Uma minoria entre as crianças desde cedo se ressente de ver os adultos, especialmente seus familiares, atuados, desejando jamais ter de passar pelo mesmo destino. Esse foi o caso de uma das comadres de Elias quando era jovem, como ela nos contou, tendo chegado a comentar em voz alta, na época, que nunca viria a compartilhar da sina de sua mãe, chegando a desafiar os adeptos do jarê a fazêla dançar e ser tomada pelas entidades. Como estes predisseram, continuou ela, a jovem pagaria caro pela provocação, e alguns anos depois seus caboclos começaram a se manifestar, fazendo com que hoje ela tivesse se tornado, assim como sua mãe, uma filha-de-santo,

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frequentando alguns dos jarês de Lençóis com grande assiduidade – “e com muito gosto”, completou faceira. Quando incorporam suas entidades, os frequentadores dos jarês passam por uma transformação sensível, comumente acompanhada por uma alteração de sua postura, semblante e tom de voz – por vezes acompanhada por uma de dicção. Caso falem sobre seus carnais, enquanto incorporados, os caboclos se dirigem a eles usando a terceira pessoa, já que não estão falando de si mesmos. Ao dançarem e realizarem rituais nos pagodôs, os adeptos atuados exibem uma vitalidade impressionante, que muitas vezes se esvai quase completamente quando são deixados por suas entidades, ocasião a partir da qual costumam precisar ser amparados pelos presentes, que os dirigem a um local para se sentar e recuperar as forças. O momento no qual um espírito deixa seu aparelho, que ocorre em meio a canções de despedida para a entidade em questão, costuma ser igualmente acompanhado por uma série de arroubos, mais curta em sua totalidade do que os que ocorrem em sua chegada, e terminando num longo suspiro acompanhado pela abertura dos olhos do adepto. Nos terreiros, a despedida dos iniciados do local se dá junto ao seu pai-de-santo, mormente levando a cabeça a seu colo ou a sua mão, ou ainda no decorrer de um abraço ritual. Por sua vez, no caso das despedidas de visitantes que tenham sido iniciados por outra pessoa, ocorre o mesmo que se processa em casas de culto sem curadores: alguns dos presentes – em geral incluindo padrinhos e madrinhas do carnal, se estiverem presentes – se dispõem num círculo em torno da pessoa para ampará-la quando a entidade a deixar. Terminada a manifestação do caboclo, o adepto encontra-se sempre num estado de estupefação, seu olhar perdido avaliando o local onde se encontra, sem dúvida distinto daquele no qual estava quando foi tomado por sua entidade e do qual sua última recordação sente falta, como será visto adiante. A despedida das entidades do líder de uma casa de culto em seu próprio templo ocorre de maneira ligeiramente diversa, já que ele se dirige, incorporado, para o quarto de santo, onde será acudido por um ou

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mais de seus auxiliares rituais e onde por vezes trocará de vestimenta. No caso de uma incorporação por um exu, em vez de se dirigir para o quarto de santo a entidade levará o curador na direção oposta, para o lado de fora do pagodô. Em ambos os casos, deixa-se o salão passando pelos portais andando sempre de costas, sua atenção continuamente voltada para o centro do pagodô. Ainda mais do que ocorre durante as chegadas, nem todas as despedidas dos caboclos se processam plenamente a contento. Por vezes pode acontecer, por exemplo, de caboclos não desejarem ir embora, expressando com gestos e palavras sua vontade de continuarem sendo venerados no salão para além do período que o líder da casa julga adequado. Pode ser o caso de um capricho da entidade, pode ser que ela deseje punir seu aparelho por alguma impropriedade cometida, para tanto forçando-o a hospedá-la por tanto tempo que quando finalmente deixá-lo este se encontrará a ponto de desmaiar. Assim como quando os tocadores e demais presentes estimulam um caboclo a permanecer muito mais tempo do que o recomendável, é comum ouvir nessas ocasiões os filhos-de-santo comentarem, após o término da incorporação – e não inteiramente desprovidos de seriedade – que parece que estavam tentando lhe matar de tanto dançar. Os casos mais dramáticos são os similares ao exemplificado por Áurea, no qual ela ficou desacordada após o último caboclo da noite tê-la deixado, e que vi acontecer com ao menos uma outra pessoa, além de terem me contado sobre episódios com outros adeptos. Em ocasiões como essas, nas quais a pessoa precisa ser levantada, os envolvidos por vezes se perguntam o que exatamente terá acontecido para que a pessoa não volte a si: enquanto uns defendem que se trata de uma espécie de atraso no retorno do adepto em si, outros cogitam a possibilidade de que uma outra entidade tenha tomado o lugar da primeira com intuitos nada louváveis. De todo modo, finda uma incorporação, o filho-de-santo não guarda recordação do que se passou enquanto estava habitado pela entidade.

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Não ter qualquer lembrança ou memória daquilo que aconteceu durante a manifestação de uma de suas entidades é exatamente a forma como os frequentadores dos jarês falam acerca dos momentos em que passam atuados. Quando uma pessoa volta a si, após a despedida de um espírito, sua expressão facial e os comentários que faz indicam o quão atônita e perplexa ela se encontra, também em função de ter passado, sem ter memória do processo, de uma posição de participante espectador, sentada junto aos demais frequentadores da casa, a uma de participante avistado. Já se mencionou como os fluxos de atenções têm efeitos sobre aqueles a quem são dirigidos, de certa forma penetrando os iniciados e os tornando mais propícios às incorporações. Ao manifestarem suas entidades, os adeptos passam a ocupar o proscênio de uma festa de jarê, o centro do salão da casa onde a cerimônia se desenrola333. Durante a incorporação, ao contrário de quando estão “sãos”, como falam a respeito das pessoas quando não estão manifestando suas entidades, não é possível ter controle de suas ações, que passam ao domínio do espírito que naquele instante lhe habita. Ainda que alguns iniciados deem a entender que uma pessoa ao incorporar um caboclo passa a não ter consciência de nada do que acontece a partir da chegada do espírito, há quem prefira enfatizar somente o fato de não se ter controle e lembrança a respeito das ações então tomadas, cogitando, numa fina distinção, a possibilidade de que de maneira bastante tênue o iniciado em si possa continuar presente durante a manifestação, um pouco ao modo como as próprias entidades dele se acercam continuamente mesmo quando não está atuado. Por mais que todos concordem que as entidades, com a possível exceção dos exus, não guardam mágoas com os seres humanos, elas podem ser por vezes mobilizadas em função de disputas pessoais, e é comum que se diga que filhos-de-santo que costumam incorporar as mesmas entidades – especialmente caso se trate de seu caboclo mais importante – tendem a

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Ao longo de uma cerimônia, os adeptos do jarê se movimentam entre locais de observação e se alternam na experimentação de perspectivas subjetivantes e objetivantes, participantes diretos no centro do salão tornam-se espectadores rotineiros sentados nos bancos em seu entorno e vice-versa (Rabelo 1990: 272).

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não se dar muito bem. Como os espíritos fazem o possível para proteger os seus, inimizades podem acabar tomando a forma de disputas entre os santos, especialmente pelo fato de no jarê as incorporações de pessoas diferentes com uma mesma entidade acontecerem simultaneamente. Um dos eventos mais impressionantes de uma cerimônia, que pode acontecer tanto no âmbito de uma altercação entre caboclos quanto como maneira de comprovação da genuinidade das incorporações e da força pessoal dos envolvidos, é o ritual de pisotear brasas ardentes, chamado nas letras das cantigas e pelos próprios caboclos de “pisar no ouro”. Quando deseja realizá-lo, um caboclo puxa uma das cantigas específicas ligadas ao ritual, sendo em geral acompanhado pelos presentes a não ser que o chefe da casa sinalize contrariamente. Uma pessoa é instada a se dirigir à fogueira que deve permanecer acesa do lado de fora da casa em todo jarê, recolher com uma pá alguns punhados de brasas vermelhas – tomando cuidado, me disseram, para não carregar com elas muitas cinzas, que fazem acumular ainda mais calor no conjunto – e depositá-las no centro do salão. Em seguida, o caboclo que deu início ao ritual e os demais iniciados que estiverem incorporados, todos descalços como de costume, pisoteiam o apanhado velozmente até que não reste nenhuma brasa acesa. Depois que as entidades se despedem, seus pés não ficam com marca alguma e os adeptos não sentem dor, a não ser que um deles estivesse apenas representando sua incorporação ou que o ritual tenha sido motivado com desejo de causar mal a um dos envolvidos, caso no qual o caboclo que o desencadeou não protege seu carnal das queimaduras. Além desse ritual de disputa, que presenciei diversas vezes, os filhos-de-santo mais antigos mencionaram outro, o de “comer bolas de fogo”, que envolvia a ingestão de alguma espécie de bolinho – possivelmente um acarajé – que devia ser apanhado pelas entidades diretamente com as mãos do interior de um tacho com azeite de dendê fervente. Nem toda incorporação se concretiza plenamente, sendo muitos os possíveis graus em que, e circunstâncias nas quais, elas acontecem. Diversas vezes, durante a chegada dos

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espíritos, as manifestações das entidades parecem encontrar dificuldade em se consolidar, podendo ser estimuladas ou suprimidas pelas ações dos presentes, em geral do líder da casa, mas não somente. Nesses casos, em que acontecem as “irradiações” ou “seguimentos”, os adeptos mais antigos buscam controlar as incorporações parciais, que em geral acometem as pessoas mais jovens ou com pouco tempo de iniciação, já que se considera que seus caboclos ainda são jovens, inexperientes, brutos – também no sentido de violentos, porém, principalmente, no de não trabalhados, não lapidados, como são chamados os diamantes que ainda não foram transformados em brilhantes334. Quando deseja estabilizar uma incorporação, um curador costuma abraçar ou levar sua mão à cabeça do iniciado manifestado, que é orientado pelos demais até seu pai-de-santo para que não se dirija erroneamente para outras pessoas – caso no qual se diz com graça que se trata de um caboclo “extraviado”. Quando alguém deseja por qualquer motivo interromper uma incorporação em vias de se concretizar, pode tentar fazê-lo oferecendo a si próprio para receber a entidade, capaz de ser transmitida por meio de contato corporal, seja com um aperto de mão firme, um abraço ou mesmo com a aproximação e o toque das cabeças dos envolvidos. O processo pode ser iniciado pela própria pessoa, aos primeiros sinais da manifestação da entidade, expediente ao qual Elias, por exemplo, recorria frequentemente, sendo amparado por uma de suas madrinhas que ocasionalmente recebia entidades em seu lugar. A transferência de caboclos em via de incorporação é uma das muitas maneiras pelas quais alguém pode manifestar uma entidade que não seja sua, algo que também pode acontecer mesmo sem a presença do adepto que ela costuma habitar, por vontade da própria entidade. Em ambos os casos, o espírito manifestado pode ser reconhecido por uma forma característica de dançar ou mesmo por meio de uma afirmação verbal própria comunicando aos presentes, muitas vezes de modo críptico, de quem se trata. Os muitos momentos de

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Como já se sugeriu anteriormente (Goldman 2009: 127).

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contato entre os iniciados, que evidenciam uma considerável permeabilidade dos corpos dos frequentadores dos jarês à ação das entidades, nem sempre têm como desfecho a transferência direta de uma entidade de uma pessoa para outra. Até mais frequentemente, pode acontecer de a proximidade servir de estímulo para que ambos terminem incorporando suas versões da entidade cultuada no momento, forma pela qual é possível também despertar numa pessoa que jamais tenha dançado determinada entidade sua primeira incorporação da mesma, como foi o caso quando a cobiçada Iansã de Áurea provocou uma manifestação em uma de suas afilhadas. Mais cedo, no mesmo dia, e só parcialmente de brincadeira, a afilhada comentara com Áurea sua vontade de um dia, se possível, poder receber uma entidade tão gloriosa quanto a que acompanhava sua madrinha. O elogio a sensibilizou, e ela disse à afilhada que não descartava a possibilidade, tendo ficado sugerido que Áurea era capaz de exercer influência sobre a ação de sua entidade, e que poderia tentar convencê-la a transitar se assim o desejasse – indicando com isso também que a jovem seria uma candidata a, no futuro, receber o espírito como herança. A terceira possibilidade de transferência, na qual não ocorre nem uma passagem direta, nem uma incorporação simultânea, envolve uma transmissão energética, por meio da qual um iniciado deixa de, no momento, receber sua entidade e a pessoa que o auxilia passa a receber a sua própria, ou seja, aquela que já está habituada a se manifestar nele, e não a do primeiro. A grande permeabilidade dos corpos dos adeptos, da qual a ação das entidades toma proveito para que elas se multipliquem nas casas de culto, é mais um dos motivos que leva à admirável quantidade de incorporações que costuma ter lugar durante os jarês. Não é incomum que, ao longo de uma única noite, uma mesma pessoa manifeste quase uma dezena de entidades distintas, especialmente no caso das mulheres e dos líderes das casas. Um bom amigo comentou certa vez como, ao constatar a propensão de uma antiga filha-de-santo a receber com relativa facilidade uma vasta quantidade de entidades, decidira somar quantas

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incorporações ela protagonizaria numa festa particularmente prolífera: sem esconder um tom de voz ligeiramente jocoso, disse-me que foram não menos de 18. Em outra ocasião, Áurea fez menção de começar a fazer troça da facilidade com que essa senhora incorporava os espíritos, já que bastava um olhar do pai-de-santo para que ela fosse tomada por suas entidades. Áurea, contudo, rapidamente se censurou, lembrando que da última vez que, ao passar por ela na rua, a caminho de um jarê ao qual essa senhora nem compareceu, caçoara dessa sua inclinação, terminou sendo tomada pelas entidades da mesma a noite toda, numa vingança poética que, ela disse, ao mesmo tempo a forçava a reconhecer a realidade daquelas incorporações e não voltar a fazer troça da senhora. Episódio similar ocorreu quando conheci, na cidade de Andaraí, uma das mais antigas filhas-de-santo de Pedro de Laura, que por anos ficou responsável por cuidar da manutenção cotidiana do Palácio de Ogum. Muitos dos adeptos ali presentes que a visitavam queriam ouvir suas histórias e anotar letras de cantigas, e ninguém estranhou muito quando a anciã foi subitamente tomada por uma de suas entidades ao ouvir músicas de jarê que haviam sido gravadas pelos presentes. Enquanto em outra situação o acontecimento levantaria suspeitas, os presentes enunciaram três motivos que haviam culminado na manifestação: a qualidade do som da gravação estava impecável; a senhora ficara muitos anos sem receber suas entidades; e, como Áurea lembrou por fim, estávamos na Quaresma, época na qual os iniciados que não haviam participado de cerimônias de fechada num terreiro ficavam especialmente suscetíveis à ação dos espíritos. O jarê oferece um modelo de relação entre seres humanos e suas entidades que prioriza menos o entendimento dessas últimas como partes constitutivas dos primeiros, como se costumou entender para o candomblé, do que sua concepção enquanto dons espirituais, dádivas que possuem, entretanto, a capacidade de agir sobre seus detentores tanto quanto podem ser por eles mobilizados335. Só muito raramente costuma-se fazer menção aos adeptos 335

Apontando assim para um entendimento da sociedade concebida como a possessão – em português talvez seria possível dizer mesmo “tenência” – recíproca, sob formas extremamente variadas, de todos por cada um,

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apondo-lhes o nome de uma de suas entidades: dificilmente se ouve alguém falar de Áurea de Iansã, enquanto às vezes é possível distinguir claramente quando se trata da Iansã de Áurea, mesmo que ela se manifeste em outra pessoa. Não se diz recorrentemente que as pessoas “são” das entidades, mas que elas as “têm”, que elas são capazes de recebê-las. As incorporações no jarê parecem evidenciar menos a existência contínua das entidades nos corpos dos adeptos – que seriam ativadas quase como um revés da pessoa durante as manifestações –, do que seus devires nos humanos, que funcionam justamente como aparelhos a captar determinadas frequências, sintonizar forças específicas – sejam aquelas com as quais está habituado, sejam as de outrem que se coloquem em seu caminho – por meio da ação dos toques, das cantigas, dos rituais336. Além desses, há outro facilitador igualmente importante para que um iniciado se torne apto a receber as entidades em seu corpo, ao qual já se aludiu, a saber, as vestimentas que utiliza numa festa e as que lhe são oferecidas no curso das incorporações. O tratamento concedido a grande parte da indumentária usada pelos adeptos do jarê também se conecta à relativa transmissibilidade das entidades. Ainda que existam conjuntos pertencentes a determinadas pessoas e suas entidades, feitos muitas vezes com grande esmero e consistindo num dos maiores presentes que alguém pode oferecer a um adepto, não há jarê que aconteça sem a presença de determinadas peças de vestuário que podem ser usadas por qualquer um dos frequentadores ao manifestar um caboclo, principalmente saias mas também

como no caso das mônadas que se interpenetram reciprocamente (Tarde 1895: 79-81, 112, 115). Preferindo traduzir o francês “avoir” por “haver” chega-se, por consequência, à substituição da ideia de existência pela de “havência”, “a potência do evento, a preensibilidade do que ocorre” (Viveiros de Castro 2005: 11), indicando um conjunto muito mais rico do que aquele que o verbo “ser” delimita (Latour 2005: 217). A opção é feita inclusive em detrimento do verbo “ter”, que “conserva o aspecto tranquilizante e sólido de uma posse”, já que o haver “envolve a ideia de eclosão, de evasão e de flexibilidade” (Santoro 2005: 543-544 apud Vargas 2007: 43). 336

Trata-se, antes de tudo, de uma questão de ênfase: no jarê, as incorporações evidenciam as formas de convivência, coabitação e povoamento das entidades com os seres humanos, que podem, como que por antiguidade, desembocar na composição das pessoas quando estas cultivam o hábito de recebê-las e mesmo transmiti-las entre si. Em outro campo etnográfico, a inspiradora composição entre pessoas e espíritos por vezes evidencia também relações como as de captura como um modo integral de constituição de seres (Siqueira 2012: 31, 34, 67, 111, 181).

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torsos e outros itens. Diversas são as pessoas que podem comparecer aos jarês com calças compridas, curtas ou vestidos inteiriços, até mesmo para desencorajar a ação dos próprios espíritos a tomá-los durante as cerimônias. Quando, de todo modo, quase inevitavelmente esses adeptos acabam recebendo entidades, estas se recusam a começar a dançar até estarem vestidas minimamente a contento, o que costuma incluir saias no caso das mulheres e das entidades femininas e a remoção da camisa no caso de homens recebendo entidades masculinas. Os demais presentes ficam responsáveis por lidar com as demandas da entidade ou de negociar com ela e convencê-la a dançar com o vestuário disponível, quando este não se mostra plenamente satisfatório. Entre os iniciados, existem aqueles que preferem permanecer com turbantes, seus caboclos interrompendo os passos de dança caso sua cabeça venha a ficar descoberta, enquanto há outros que invariavelmente perdem suas coberturas e mesmo preferem permanecer incorporados com os cabelos soltos e em movimento, motivo de orgulho para muitas das mulheres mais jovens que os cultivam longos. A maior parte dos iniciados usa um único traje ao longo de uma festa de jarê, seja um conjunto mais simples ou uma roupa específica preparada para ser usada no culto, também raramente havendo orientação para que os presentes se vistam com cores relacionadas às entidades celebradas em festas determinadas, salvo o branco na festa de Oxalá – e mesmo assim se trata de uma sugestão que, como afirmam, não traz repercussões se não puder ser seguida. No jarê não é comum a utilização de uma ampla gama de adereços distintos de acordo com cada entidade, bem como o estilo das vestimentas costuma variar bastante pouco, ficando a ênfase mais nas suas cores do que necessariamente em seu formato ou em objetos que as complementem, ainda que haja exceções. De toda forma, as roupas e ornamentos usados durante uma incorporação também podem ser fruto de, e servir de estímulo a, determinadas predisposições do temperamento da entidade. Os filhos-de-santo antigos da Capivara se lembram da apreensão que envolvia a chegada do temido caboclo Sete-Serra,

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uma das mais importantes entidades de Pedro de Laura, que visitava o pagodô em duas versões distintas. Sempre que chegava ao salão, para cobrir a cabeça o espírito exigia ou seu penacho, ou seu chapéu de couro: enquanto o primeiro indicava uma postura apaziguadora e afável da entidade, tranquilizando seus filhos-de-santo, a utilização do segundo era acompanhada por uma atitude mordaz e impiedosa, diante da qual os presentes se acabrunhavam por recearem ser exemplados ao menor deslize. Áurea se recorda que, quando vinha realizar um trabalho ritual, Sete-Serra – que fora responsável pela iniciação dela e de quem, disse, sempre continuaria a se considerar filha-de-santo – invariavelmente chegava em sua versão ríspida. Conforme comentam os iniciados, as roupas e ornamentos não são apenas formas que servem ao auxílio do reconhecimento das entidades, mas objetos que em si ocasionam transformações e carregam algo da força pessoal de seu proprietário e de seus espíritos. Até por isso, as roupas de um curador, que podem mesmo chegar a muitas dezenas, são cuidadosamente descosturadas durante o sirrum, o ritual funerário feito após sua morte, no qual seus pertences são destruídos e despachados. Ainda que essa medida tenha sido parcialmente tomada com muitos dos bens de Pedro de Laura, seus filhos-de-santo acabaram guardando muitas de suas roupas no Palácio de Ogum, mantidas até hoje num grande baú e periodicamente limpas, mas jamais retiradas da Capivara. Os trajes de um curador, em especial, são, em certa medida, não só formas de intensificar sua proximidade com seus espíritos: configuram materializações de parte dessa conexão e das forças envolvidas no processo de incorporá-los. Como me contaram certa vez, depois que determinado pai-de-santo decidiu abandonar sua sina e realizar, ainda em vida, seu próprio sirrum, desfazendo-se de suas vestimentas rituais, uma das consequências menos graves que resultou do processo foi ele ter – mesmo após ter retornado ao jarê – perdido contato absolutamente com uma de suas

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entidades, que jamais veio a nele se manifestar novamente337. Em outro caso, um jovem e ambicioso curador de Lençóis, que teve acesso às vestes cerimoniais de um grande pai-desanto já falecido da cidade de Andaraí, experimentou vesti-las e acabou enlouquecendo por um tempo considerável, conforme disseram os filhos-de-santo, como consequência. O resultado foi não só um castigo pela atitude desmedidamente audaciosa do jovem: tratou-se de um efeito bastante direto da desproporção entre sua força pessoal e aquela pertencente ao curador falecido, de certo modo presente em – ou acessível por meio de – seus indumentos.

4.4 Forças

Espirituoso como de costume, Daso, o curador que acabou responsável pelo trabalho de reforço de Áurea, comentou certa vez como nele só duas coisas não prestavam: a cabeça e os pés. Igualmente vivaz, Áurea respondeu de bate-pronto: “Então não presta é nada”, arrancando risos de todos os presentes. Ainda mais que a agilidade dos seres humanos para realizar os movimentos no jarê, chamada sua “pisada”, a das entidades recebia especial atenção por parte dos adeptos, que dedicam diversas cantigas para falar a respeito da integridade do caminhar, da importância de não escorregar ou cair, da beleza de, mesmo diante das dificuldades, manter o equilíbrio e dançar de forma bela338. Seja realizando os passos de dança, pisoteando as brasas ou caminhando sobre resíduos que se acumulam no salão após os trabalhos rituais, todas ações feitas sempre com os pés descalços, as pisadas dos 337

Num episódio com o qual é possível estabelecer uma conexão, um dos caboclos de uma adepta do jarê em Nova Redenção fez com que ela ateasse fogo a todas as suas roupas – provavelmente as não rituais – por ela se teimar a reverenciar suas entidades (Rabelo 1990: 175). Também no candomblé se reconhece a ligação entre uma pessoa e suas roupas rituais, bem como os efeitos que danos a estas podem causar à primeira, já que “as roupas de uma pessoa, destruídas durante o rito, podem levá-la à morte: em verdade, destruir as vestes é já, de certo modo, matar” (Serra 1978: 344). 338

Ver, por exemplo, algumas das cantigas dedicadas a Jurema, Mineiro, Nanã, Odé, Ogum, São Sebastião, SeteSerra, Sultão das Matas e Xangô, bem como as destinadas a qualquer caboclo, no anexo IV.

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caboclos se encontram sob escrutínio permanente dos presentes. Os filhos-de-santo da Capivara me contaram que, quando tomaram coragem para perguntar a uma das entidades de Pedro de Laura a respeito dos seus passos de dança característicos, ela lhes disse que eles, que antes haviam reparado no “olho da falsidade” de Sete-Serra, agora haviam se dado conta do “pé da manobra” de Xangô. De modo geral, sempre que se manifestam nos salões, os caboclos se mantêm num estado de agitação contínuo, caminhando de um lado para o outro ou, no mínimo, cambaleando ligeiramente, quando não estão dançando. Entre as muitas enfermidades trazidas para serem tratadas pelas entidades, como será visto adiante, recebem especial destaque as formas de impedimento à locomoção, seja por inchaços nos pés e pernas, problemas nas articulações dos membros inferiores, recorrência de tombos e quedas339. Pude assistir, por exemplo, a um processo de cura de uma menina que mal conseguia caminhar e teve de ser trazida carregada num carrinho de mão até o terreiro no qual realizaria seu trabalho. Afirmava-se que “a entrevada” já tinha buscado diversas formas de tratamento sem sucesso – seus pais eram pessoas com situação econômica acima da média para a região, proprietários de um imóvel de uso comercial na sede do município. Após um longo ritual de limpeza, no dia seguinte a jovem já andava sem precisar de nenhum apoio, e chegou mesmo a nadar no rio em que a cerimônia foi concluída, para alegria de todos. A notícia de sua cura, cuja descrição sempre enfatizava a recuperação de sua capacidade de se mover sozinha e voltar a caminhar, espalhou-se pela cidade nos dias seguintes. Já se comentou como as entidades podem fazer os adeptos caírem, sendo todo tombo no jarê um motivo de preocupação adicional. Como também já foi visto, determinados espíritos são capazes de fazer com que as pessoas se percam em trajetos que lhes são de outro modo bastante familiares, quando se diz que ficam “fora do mapa”. As metáforas ligadas à localização parecem extremamente apropriadas para a vivência com as entidades, que estão 339

O mesmo se passava em Nova Redenção, sendo recorrentes os tratamentos de problemas de mobilidade nos adeptos (Rabelo 1990: 119).

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elas também em movimento constante: chegam, dançam, se vão; de um lado, habitam suas moradas num mundo ao menos parcialmente distinto do dos seres humanos, de outro, passam a habitar os seres humanos em diferentes graus quando neles se incorporam340. Além de outros temas, esses costumavam ser recorrentes nas longas caminhadas empreendidas rotineiramente pelos habitantes da cidade, especialmente quando se deslocavam para ir aos jarês. Muitos dos filhos-de-santo se lembram de como no passado chegavam a caminhar por três dias consecutivos para ir a jarês em outros municípios, em jornadas praticamente tão memoráveis quanto as próprias festas às quais compareciam. Elias foi quem primeiro me indicou a importância fundamental de se ir caminhando junto com os filhos-de-santo mais antigos para os jarês, já que durante as caminhadas de ida e volta pelas trilhas aconteciam conversas e eram oferecidos comentários a respeito da cerimônia próxima que dificilmente se repetiam em outra ocasião. Essas caminhadas se revelaram momentos verdadeiramente peripatéticos, tanto para mim quanto para os demais jovens presentes, que aproveitavam o trajeto para fazer perguntas e tirar dúvidas com os mais velhos a respeito dos segredos do jarê. Estes, por sua vez, preenchiam as caminhadas com ensinamentos dos mais diversos, de nomes e usos de plantas medicinais e rituais a cantigas cujo som se perdia pelas serras, invariavelmente passando por histórias e rumores tanto sobre o passado como sobre o presente. Muitas vezes, o peripatetismo dessas caminhadas tinha caráter recursivo, já que um dos temas mais caros ao jarê é justamente o do movimento341. De forma mais generalizada, inúmeros dos fenômenos que podem ser conectados ao cotidiano dos adeptos do jarê costumam ser chamados de “movimentos”, caracterizando ora doenças, alterações de 340

Daí também a riqueza e a beleza da noção de “povoamento” explorada em outro domínio etnográfico de modo a dar conta das múltiplas composições que formam pessoas (Siqueira 2012: 92-95, 108-111). 341

O próprio tempo pode ser considerado como uma medida de distâncias geográficas, sua passagem sendo aproximada a um deslocamento espacial. Nas movimentações que ocorrem no – e que são trabalhadas pelo – jarê é igualmente importante a dos corpos nos espaços das casas de culto, sem que o conjunto se limite a essas: movem-se as entidades, as narrativas, os olhares (Rabelo 1990: 129, 280-281, 302 nota 7).

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temperatura, ações das entidades, ora locomoções propriamente ditas, mudanças de local de moradia, passos de dança. O ritual de plantar a roça para dar início a um terreiro também pode ser chamado de “assentar seu movimento”, conferindo-lhe uma paragem específica em torno da qual o movimento passará então a acontecer: ele deixa de ser itinerante para se tornar giratório, inaugurando certas possibilidades não tanto de acúmulo quanto de concentração. A diretriz segundo a qual um curador deve evitar ao máximo se mudar após ter estabelecido sua casa de culto não deve ser confundida com um elogio à imobilidade, muito pelo contrário: em vez de abandonar o movimento, passa-se a se mover no mesmo lugar, sem deixar de se transformar e operar transformações. Ou, como afirmava Seu Gilson numa versão bastante característica do ditado popular: “Pedra que muda não cria limo”. Os movimentos característicos à natureza de cada pessoa podem então atraí-las para a casa de culto, onde passarão a ser tratadas e terão seu movimento pessoal acrescentado ao da comunidade em formação. O próprio jarê é considerado fruto de um movimento possível – e ele próprio um movimento específico – resultante da vinda de populações africanas para o Brasil, ficando claras as aproximações que se pode estabelecer entre o culto e outras das produções decorrentes da desterritorialização que sofreram. Como certa vez me disse Mussum, quando falava a respeito de seu filho, o renomado capoeirista, a capoeira e o jarê se assemelhavam por terem um mesmo enraizamento, sendo a África, além de tudo, o local “onde nasceu todo movimento”. Outro modo de falar a respeito desses movimentos, ainda mais recorrente no jarê, envolve pensá-los a partir daquilo que os suscita, que os motiva, posto que resultam da ação de forças, sendo esse o tema sobre o qual os adeptos do culto provavelmente se debruçam mais meticulosamente. A “força” de que se fala no jarê se assemelha à energia que no candomblé recebe o nome de “axé”, palavra esta que ouvi poucas vezes em Lençóis, em contextos distintos da vivência do culto, empregada para desejar boa sorte e vigor físico aos

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participantes de uma atividade qualquer (como as apresentações das quadrilhas). No jarê, ao contrário, força é possivelmente um dos termos mais utilizados para se falar a respeito de inúmeras realidades, sendo simultaneamente um elemento constitutivo dos seres – sejam eles humanos, entidades, animais, plantas, determinados objetos e substâncias, e mesmo certos gestos, frases e cantigas – e uma de suas propriedades, responsável por dar origem (ou término) a movimentos e transformações. A força é uma virtude que, por mais que se possa anunciar possuir ou não, se reconhece por meio de seus efeitos, tanto em ato como pelos já concretizados, que deixam rastros. Ser capaz de manifestar um grande número de espíritos, realizar procedimentos rituais com sucesso, não ser afetado por feitiços, todos são indícios de que se possui força em quantidade considerável. Há, dessa forma, uma relação proporcional e recíproca entre, por um lado, a intensidade das forças que constituem um ser e, por outro, sua capacidade de colocá-las em ação para obter determinados efeitos. Quanto mais forte é um curador, por exemplo, maior sua capacidade de realizar iniciações; reciprocamente, quanto mais trabalhos rituais realiza, maior se torna sua força pessoal. O mesmo pode ocorrer com objetos: quanto mais força existe numa pedra de raio, maior é sua capacidade de agir sobre o mundo, por exemplo atraindo humanos. Assim, vê-se como, em determinada medida, para o jarê todos os seres são resultado da aplicação de forças específicas, do empreendimento de alguma espécie de trabalho por parte de seres que, eles próprios, são também forças. O mundo natural, segundo os adeptos do culto, é constituído por excelência de seres criados pelas entidades, pelos caboclos, sendo as plantas, animais e objetos ao mesmo tempo formados por essas forças e repositórios delas: são simultaneamente frutos e veículos da ação dos espíritos. Os homens também são parte do mundo natural, bem como suas criações, ainda que estas muitas vezes se encontrem num grau de pertencimento mais afastado da ação originária dos caboclos, em geral possuindo menos força do que os objetos criados diretamente pelas entidades. Do ponto de vista dos seres

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humanos, de toda forma, nem toda criação do mundo natural encontra-se devidamente pronta para ser utilizada, podendo – ou devendo –, portanto, ser concluída, ou melhor: aprontada342. É o que ocorre com as pessoas iniciadas no jarê, das quais se diz também após o processo ritual que foram “feitas”, passando então a ser capazes de ver harmonizarem-se as forças que as constituem, podendo estas ser mobilizadas para a produção de efeitos visando ao bem dos iniciados. Sob mais de um aspecto, a iniciação no jarê é uma maneira de aproximar os seres humanos dos caboclos, também por serem estes últimos duplamente responsáveis por sua composição, por meio de uma transformação que passa a ser necessária conforme se constatem na vida de uma pessoa sinais específicos. A aproximação é feita justamente com um ritual denominado “trabalho”, já que é preciso dispêndio de energia para a obtenção da transformação. Quando concluída, a qualidade da feitura irá variar na proporção inversa à evidência de sua realização, posto que os adeptos afirmam de maneira bastante generalizada que obras realmente bem acabadas são aquelas que melhor ocultam sua artificialidade 343. Ou, como afirma um dos ditados preferidos de Elias: “Cabo bem botado, parece que foi nascido”. Ainda que qualquer pessoa possa, teoricamente, vir a ser iniciada no jarê, este não é um destino reservado a toda pessoa, pelos mais diferentes motivos, conforme dizem. Entre eles figuram tanto um afastamento muito amplo das entidades – que, como visto, leva os adeptos a conjecturarem se é possível que, no extremo, existam pessoas que não tenham caboclos – como uma proximidade já de saída muito excessiva. Desvenda-se assim a aparente contradição de uma pessoa já ter, como era o caso de Dona Valdelice, nascido feita: o trabalho minucioso que sua grande força pessoal incontestavelmente denotava não poderia ser feito por curador algum pois ele já havia sido empreendido antes mesmo dela nascer – e 342

Como diz a expressão local: “a cabaça é obra que Deus fez, mas é o homem que termina, que ele é que faz o furo” (Gonçalves 1984: 114). 343

Daí também as aproximações possíveis com o estilo barroco, mencionadas no capítulo 3, seção 3.5, cujos rebuscamento da forma e torções adicionais evidenciam sempre um trabalho copioso resultando em formas belas que subvertem o despojamento do modernismo arquitetônico e seu caráter ascético (Peixoto 2011: 387-388).

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diretamente por uma entidade. Como será visto adiante, arriscar fazer um trabalho ritual para alguém que já nasceu feito significa afirmar que se possui uma força superior à de quem realizou o primeiro trabalho; no caso, significa dizer que um humano pode ser mais forte do que uma entidade: pior ainda, significa desejar medir forças com ela. Não que se descobrir mais forte que um espírito seja, de modo ao menos hipotético, necessariamente uma impossibilidade, porém poucos são aqueles que demonstram a audácia que tal processo requer – mesmo por serem graves as sequelas conhecidas ou preditas para os que venham a tentar. De toda forma, não só nas situações de embate, fica claro que, ao menos sob certo prisma, os seres que habitam o mundo, especialmente os humanos e as entidades, podem ser pensados menos como entes distintos com relações ligando-os entre si do que como resultantes, ou seja, somas de forças que atuam também como forças e sobre forças344. No sistema de forças do jarê, diferentes combinações de vetores podem existir ora como motivadores, ora como receptores das ações, como ocorre, por exemplo, com os iniciados que simultaneamente incorporam e são incorporados por suas entidades. Os filhos-de-santo comentam como é fundamental desenvolver a habilidade de controlar as forças envolvidas nos rituais do jarê, sabendo quando devem ser contidas e quando devem ser impulsionadas – ou, ainda, quando devem ser deixadas em paz, já que nem todo fluxo deve ser canalizado para se transformar em energia, como me fizeram compreender. Idealmente, de qualquer forma, um curador deve fazer todo o possível para concentrar em torno de sua casa o maior número de forças de que for capaz, tanto de modo mais direto por meio das iniciações como por relações como as de amizade ou compadrio, como visto. Como mencionado, mais do que um modo de acúmulo propriamente, trata-se de um processo de convergência de forças seguido por sua redistribuição constante, já que elas 344

Como já se escreveu, num registro similar: “O aspecto propriamente artesanal, ou artístico, dessas religiões consiste em saber usar essas forças para fazer e desfazer formas, como, por exemplo, casas, corpos e, no limite, a própria vida. [...] [O] trabalho ritual é uma ação sobre a ação dos inúmeros seres sobrenaturais que povoam o mundo e que são como cristalizações do axé” (Barbosa Neto 2012: 265-266, grifo no original).

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só existem efetivamente se mantidas em movimento. Ademais, quando postas em marcha, as forças de que se fala no jarê demonstram certa propriedade ‘gravitacional’, passando a atrair sempre mais forças. A realização do trabalho de reforço de Áurea, por exemplo, serviu de estímulo para que muitas outras pessoas se iniciassem no mesmo dia, um motivo que elas próprias gostavam de frisar, gerando um evento que, por sua vez, concentrava mais pessoas, entidades e procedimentos rituais no terreiro de Daso. O curador, de sua parte, como comentou, considerava a vinda dos novos adeptos tanto um reconhecimento da força de sua casa e da qualidade de seus trabalhos como a pedra fundamental que estimularia ainda mais crescimento, previsão que se mostrou acertada, ao menos imediatamente. Ter força, enfim, é necessário para manejar forças: a roça precisa ser plantada, as entidades alimentadas, os filhos-de-santo tornados prontos, para que essas forças possam ser devidamente postas em movimento, para que se atualizem. As forças no jarê, como visto e como exemplificado sobretudo pelas incorporações, são eminentemente transmissíveis, sendo um dos principais motivos da vinda dos caboclos às casas de culto propagá-las na direção dos presentes. O rodopiar das saias usadas pelas entidades evidencia a distribuição das forças concentradas e postas em suspensão nos salões, por vezes na forma de diversas substâncias viscosas ou nubíferas que são ofertadas aos caboclos e por eles espalhadas. Além do mel e do dendê já mencionados, ligados a Cosme e ao povo velho, respectivamente, as entidades são presenteadas com perfumes (sobretudo alfazema), fumaça de incenso, de charutos e dos fogos de artifício, talcos, picotes de papel brilhante, pipocas. Ao receberem ritualmente estes objetos, os caboclos os disseminam entre os presentes, seja de maneira indireta, com suas danças, seja de forma bastante direta, oferecendo-os ou espalhando-os nos frequentadores de uma festa, muitas vezes um por um. De certo modo, também a luz das velas que são acesas para alimentar as entidades, inclusive no salão, se comporta similarmente, preenchendo espaços e conectando aqueles que são por

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ela iluminados ao mesmo tempo. Entre as substâncias utilizadas – à exceção do sangue sacrificial, que corporifica por excelência a força do jarê e que será alvo de considerações mais detidas adiante – provavelmente a mais importante para o bom andamento de uma festa é o álcool, que funciona não só para dar energia aos batedores, como mencionado anteriormente, mas igualmente pode ser solicitado por algumas das entidades ao se manifestarem. O oferecimento de bebidas alcoólicas às entidades é uma prática cercada de cuidados da parte dos líderes das casas, já que é sabido que existem muitas pessoas que frequentam os jarês com o intuito de se embebedarem, algo que, dizem os adeptos, foge aos objetivos da festa. De todo modo, aqueles que fingem incorporarem entidades acabam sendo castigados por suas ações, já que podem ser posteriormente cobrados por seus próprios espíritos ou pelos de outrem. Quando efetivamente manifestam caboclos, os adeptos que consomem as bebidas alcoólicas ritualmente não ficam ébrios, o que possibilita outra forma de punição – da qual Pedro de Laura era bastante afeito, como já mencionado – quando um curador orienta seus auxiliares a fornecerem cachaça de maneira desmesurada a um frequentador que solicite a bebida, levando-o a passar mal e demonstrando assim seu embuste. Quando se encontram efetivamente incorporados pelas entidades, ao contrário, os adeptos podem ingerir grandes quantidades de cachaça, que é chamada de “jurema” e cujo consumo é acompanhado de cantigas específicas, sem sofrer seus efeitos inebriantes345. Um motivo adicional que proscreve a ingestão de bebidas alcoólicas pelos adeptos propensos a receber entidades conecta-se ao seu efeito inibidor para as incorporações, possivelmente outro motivo pelo qual são, ao contrário, tomadas em grande quantidade pelos tocadores de atabaque. De qualquer modo, a capacidade que uma pessoa demonstra em consumir bebida alcoólica em quantidade

345

Apesar de usarem o nome jurema, no jarê não há utilização da bebida feita com a raiz da acácia dessa espécie e que igualmente empresta seu nome a diversos cultos no Nordeste (Brandão & Rios 2004: 180; Assunção 2010: 112-122).

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sem sofrer os efeitos da embriaguez é também, dizem os filhos-de-santo, demonstrativa de grande força pessoal, sendo a tendência ao alcoolismo, inversamente, um dos principais males tratados no jarê346. Fora o sangue, existem dois outros fluidos corporais bastante significativos para a transmissão de energia entre os participantes de um jarê: o suor e a saliva. Ficar responsável por enxugar o suor das entidades incorporadas é uma honra que costuma caber aos afilhados das mesmas, que carregam panos destinados à tarefa mas que por vezes são preteridos pelas entidades em favor das saias dos adeptos próximos. O contato dos frequentadores da casa com o resultado da transpiração dos iniciados manifestando seus caboclos, que também se dá de modo farto durante os abraços rituais, é considerado por muitos uma das maneiras de se aproximar da força dos espíritos, cuja evidenciação na forma do suor atesta novamente o trabalho despendido – no caso, principalmente durante a dança – na vinda das entidades. O papel da saliva, por sua vez, é exercido em rituais alimentares de transmissão de força, como o anteriormente mencionado mingau branco derramado sobre e lambido diretamente do vestido de uma filha-de-santo347. Quando possível, antes de uma festa, os iniciados mais antigos da Capivara gostam de fazer suas refeições de forma vagarosa, comendo dos pratos diretamente com as mãos, sem usar talheres, e compartilhando seu alimento com as crianças quando lhes dão de comer. A prática, dizem os mais antigos, não só proporciona um sabor distinto à comida como favorece a saúde daqueles que recebem o alimento de suas mãos. A saliva, por fim, como visto anteriormente, também é utilizada pelo curador ao final de uma das etapas do ritual de batizado, sendo depositada em sua própria mão e levada à cabeça do

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Como detalhado adiante, na seção 4.5.

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Como visto no capítulo 2, seção 2.4.

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iniciando, selando simbolicamente, com sua viscosidade característica, a abertura feita para as entidades, e unindo o filho-de-santo ao seu iniciador348. Além das muitas substâncias, como visto, envolvidas nos processos de redistribuição energética numa cerimônia de jarê, há também inúmeras formas de realizá-los por meio de operações rituais que envolvem as cantigas, os gestos e a fala. Oferecer uma música a um caboclo ou acompanhá-lo enquanto ele puxa uma cantiga, seja com a voz, seja somente com palmas; abraçar e receber os abraços das entidades, ocasionalmente acompanhados do toque das cabeças; saudá-las e ser por elas saudado; dirigir-lhes pedidos e promessas e escutar avisos e compromissos: todas são maneiras de participar das transferências de força que têm lugar nas casas de culto durante os jarês. Até a simples participação nas festas é um meio de se imiscuir nos fluxos energéticos em questão, como evidenciava, por exemplo, um senhor ao dizer que, mesmo sem nunca ter passado por um trabalho de iniciação propriamente dito, se considerava filho-de-santo da Capivara como os demais, por ter frequentado a casa desde muito jovem e ter reverenciado os espíritos da casa como faziam todos os outros. Esse senhor comentou também como, certa vez, decidiu pisar ele mesmo sobre as brasas, como faziam os adeptos manifestando suas entidades, ainda que ele próprio jamais recebesse caboclo algum. Pedro de Laura, provavelmente incorporando um de seus santos, pegou-o pelo braço e, sem soltá-lo, conduziu-o no pisoteio das brasas, sem que a ação resultasse em queimaduras para o adepto. Contaram-me muitos casos também nos quais uma pessoa acabava recebendo e zelando por entidades em nome de outras pessoas, quando estas não se demonstravam capazes ou interessadas em fazê-lo. Já de modo mais direto, alguns frequentadores de jarê, ao descobrirem que Áurea teria seu trabalho realizado no terreiro de Daso, resolveram, como mencionado, “pongar” no evento, pegando carona em sua iniciativa, pois sabiam que, desse 348

A transmissão de energia por meio desse procedimento é bastante comum no candomblé. Em outro episódio narrado numa das mais notáveis etnografias já escritas a respeito do candomblé, vê-se como um conjunto de entidades infantis busca justamente reanimar uma pessoa desacordada ao lambuzá-la com saliva (Serra 1978: 112, 259-264).

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modo, poderiam aproveitar parte da força de Áurea na realização de suas próprias iniciações, disseram explicitamente349. Depois que se transmite parte de sua força, especialmente no caso dos seres humanos, é possível que existam sequelas mais ou menos duradouras, tanto na forma de doenças ou complicações de locomoção, como já mencionado, quanto na de fraquezas generalizadas ou alterações no apetite – resultando em geral em sua falta. Em larga medida, a força pessoal de alguém se equaciona a sua energia vital, e quanto mais ela é mobilizada e dela se exige, maiores as chances de a pessoa responsável por seu manejo ficar debilitada, ainda que dificilmente de modo permanente. Quando uma pessoa cai desacordada por ação de suas entidades, como foi o caso por exemplo com Áurea, ela precisa ser literalmente reanimada, já que se encontra, por mais transitório que seja o período, momentaneamente despojada de grande parte de sua força vital, daquilo que a põe em movimento, que a anima. Nos casos em que falam a respeito de grandes e definitivas transferências de força entre pessoas, como pode raramente ocorrer quando um curador mais idoso confia seu legado espiritual diretamente a um sucessor, como me contaram em determinado caso ocorrido fora de Lençóis, aquele que abdica de sua força pessoal pode terminar falecendo, enquanto seu receptor terá vigor renovado, por mais que possa ter de início dificuldade em lidar com sua nova força e em se tornar capaz de manejá-la a contento, processo tão demorado quanto esperado. De todo modo, as forças postas em marcha no jarê possuem também uma propriedade entrópica, podendo acontecer de sua potência ser diminuída com o passar do tempo – especialmente se não for rotineiramente colocada em movimento, das formas descritas. A ação de manter sua força pessoal, e a de sua casa de culto, tanto em constante agitação, circulação, como em contínua 349

Como mencionado, o episódio guarda semelhanças com outros do candomblé angola; também nesses, a seu modo, objetiva-se uma concentração de tensão que será transformada em ampliação de um poder, passível então de ser mobilizado pelos presentes – redistribuído, no caso do jarê (Serra 1978: 301-302, 308-312, 341-345). Há igualmente uma ligação expressa entre o poder selvagem e não domesticado dos caboclos e a localização das casas de culto longe das sedes dos distritos e municípios, que não pode ser reduzida a sua função – de toda forma relevante – de afastamento dos poderes constituídos (Rabelo 1990: 156).

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concentração – numa direção de amplificação possível –, é um modo de lutar contra sua inevitável dissipação, tarefa que ocupa os adeptos do jarê durante as cerimônias. Ainda que por vezes os adeptos do jarê também falem a respeito de forças distinguindo-as entre dois tipos opostos, comentam essa distinção usando igualmente as ideias de “lados” ou “partes” opostas, chamadas seja de esquerda e direita, seja – com frequência um pouco menor – de lado branco e lado negro do jarê. Enquanto o lado direito é o das entidades que comumente se incorporam nos filhos-de-santo durante as cerimônias, o lado esquerdo configura o domínio dos exus, entidades que, diferentemente das primeiras, dificilmente são consideradas caboclos ou santos, como aquelas podem ser chamadas de forma praticamente indistinta. Como mencionado, os exus são entidades simultaneamente acessórias e essenciais a todo tipo de movimentação, inclusive à colocação dos caboclos em marcha para visitarem as casas de jarê e trabalharem. De forma geral, os adeptos do jarê tanto reconhecem como costumam repudiar aproximações feitas entre as entidades da esquerda e os demônios do cristianismo, oferecendo como provas, por exemplo, as diversas benesses e curas feitas pelos caboclos mas possibilitadas pelos exus. Por mais que existam também pessoas que afirmem que trabalham apenas com um dos lados das potências envolvidas no jarê, grande parte dos iniciados reputa ser impossível o manejo de uma parcela das entidades sem que se esteja ao menos minimamente sujeito à ação das da outra metade. Ao falar sobre a simplificação que pessoas não entendidas costumavam fazer a respeito da suposta exclusividade da realização de medidas benéficas ou daninhas que teriam, respectivamente, as forças da direita ou da esquerda, um jovem curador me explicou: “A rua é uma só, mas são duas mãos, é de mão dupla. Há dois sentidos, mas a energia que faz o bem e a que faz o mal, elas são uma só”350. Desse modo, mais precisamente, o que parece estar em jogo nas operações que competem a um pai-de-santo é a orientação do sentido dessa força, sendo que quando ela é 350

Ver igualmente, no início do anexo IV, a letra de uma das cantigas usadas na abertura de qualquer cerimônia de jarê, conclamando Baluaê.

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encaminhada para um lado, ela é literalmente transportada, levada a deixar sua posição atual na qual se produzirá necessariamente uma espécie de vácuo. Mais do que lados, para as forças do jarê esquerda e direita seriam assim antes de tudo sentidos, sendo possível entendê-los enquanto orientados seja para o esvaziamento, seja para a plenitude. Todo processo de transferência, entretanto, envolve passagens, gerando tanto espaços mais esvaziados como mais preenchidos. O surgimento desses esvaziamentos energéticos gera enfraquecimento e, no caso dos humanos, doenças, cabendo ao curador o restabelecimento de uma situação menos deficitária, por mais que todo equilíbrio atingido seja inevitavelmente provisório. Como voltará a ser visto adiante, uma das principais formas de se corrigir essas insuficiências energéticas é por meio do estabelecimento do contato entre as forças do pai-de-santo e do enfermo, em geral durante o processo iniciático, já que o estabelecimento dessa comunicação possibilita o surgimento de diferenças de potencial entre elas. A citada propriedade entrópica da força faz com que ela tenda a fluir dos locais onde é mais abundante para onde é mais escassa, nesse caso, via de regra, do curador para seus filhos-de-santo, mas igualmente das entidades de maneira geral para os seres humanos. Ainda assim, não é o caso de se descartar por completo a existência de uma força efetivamente negativa, uma ‘antiforça’ – no sentido que possui o termo ‘antimatéria’ – responsável não por esvaziamentos mas pela verdadeira aniquilação da energia. Essa antiforça, contudo, parece ser domínio exclusivo de entidades muito perigosas e com as quais pouco diálogo é possível, a exemplo das sombras de mortos, das quais se deve procurar sempre manter distância absoluta351. A configuração tensiva do processo de transferência de energia, descrita acima, auxilia a compreensão dos motivos que desaconselham a realização de trabalhos rituais para pessoas 351

Pouca negociação parece ser possível com estes espíritos, que também podem ser responsáveis por adoecimentos (Rabelo 1990: 205). Este parece ser um dos principais pontos de distinção entre os jarês e outros cultos das zonas mais rurais aparentados a eles, já que os curadores dos primeiros, afirma-se de modo categórico, “não trabalha[m] com mortos” (Senna 1998: 79, 184). Num outro campo etnográfico de matriz africana, as casas de religião da cidade de Pelotas, pode-se usar a expressão “axé de miséria” ou o termo “inxé” para se referir ao simétrico inverso do axé, que guarda claras semelhanças com a antiforça aqui exposta (Barbosa Neto 2012: 9598, 106, 226 nota 200, 274).

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que, como Dona Valdelice, já nasceram feitas. Os rituais que um curador empreende são realizados partindo da pressuposição de que ele irá corrigir uma deficiência energética por meio da abundância de sua força pessoal, aí incluídas as potências de suas entidades, e para tanto ele realiza medidas litúrgicas que irão auxiliá-lo em sua tarefa de transferir seu excesso de energia no sentido do iniciando352. Caso um pai-de-santo efetue os procedimentos costumeiros mas se depare com uma pessoa que, ao contrário do esperado, apresente ainda mais força do que ele, os resultados podem ser desastrosos: estabelece-se uma espécie de ‘curto-circuito por sobrecarga’, no qual a transferência de força ocorre de maneira desmedida, podendo deixar o curador, no mínimo, consideravelmente debilitado 353. Ao contrário do que ocorre com a maior parte dos iniciandos, como será detalhado mais adiante, nesses casos a aflição que pode levar uma pessoa a procurar – ou ser levada para – um curador deriva não de uma debilidade mas de uma superabundância energética, que é justamente uma das principais geradoras das loucuras que caracterizam o comportamento de muitos daqueles destinados a se tornarem, eles próprios, curadores354. As entidades mobilizadas no jarê, em especial as que se incorporam nos filhos-desanto, sob determinado ponto de vista podem ser pensadas enquanto forças em estado concentrado, capazes de participar no cotidiano dos seres humanos, entre várias outras formas, por meio de manifestações em seus corpos. Com o passar do tempo, com o cultivo do hábito de recebê-las nas casas de culto, com o surgimento da intimidade entre adeptos e seus espíritos, as forças – que as entidades simultaneamente são e têm – vão sendo como que 352

Ao final da bela etnografia a respeito da feitiçaria na região do Bocage ocidental francês (Favret-Saada 1977: 250-281) há uma série de esquemas que em tudo lembram as trocas de força aqui mencionadas. A ação dos curadores voltada para a eliminação das insuficiências energéticas no jarê é semelhante à dos desenfeitiçadores que buscam restituir a sorte e a saúde de seus clientes. Enquanto no jarê as formas de combate contra a feitiçaria também podem envolver procedimentos parecidos, uma diferença significativa se dá pela existência de determinadas entidades enquanto geradoras dos desequilíbrios nas forças pessoais. 353

Uma adepta, por exemplo, informa, de modo aparentemente despretensioso, como todas as pessoas que tentaram realizar algum tipo de cura em benefício dela acabaram mortas pouco tempo depois (Rabelo 1990: 178179). Em Lençóis, mais de uma vez ouvi falar de casos similares ou idênticos. 354

Como visto no capítulo 3, seção 3.5.

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decantadas nos corpos dos iniciados, condensadas neles: os caboclos que os filhos-de-santo manifestam são como ‘precipitados’ pessoais dos espíritos-força mais abrangentes. Como foi dito, também mais entes do mundo, como os outros animais, as plantas e determinados objetos, a exemplo de pedras específicas, existem enquanto produtos de certa ‘destilação’ das forças abrangentes com as quais os humanos travam contato, assumindo muitas vezes formatos e consistências determinadas que favorecem sua interação. Os rituais do jarê favorecem a utilização de inúmeras substâncias literalmente fluidas – e entre essas há especial atenção às viscosas e às nubíferas –, como os perfumes, a cachaça, o vinho, a água, o suor, a saliva, o sangue, o dendê, o mel, comidas como o vatapá e o caruru, o talco, o pó de pemba, as cinzas, a pólvora, o enxofre dos foguetes, o incenso, e mesmo o hálito – da palavra, das cantigas e do arfar que evidencia o esforço em perseverar contra o cansaço355. Todas essas formas que as forças do jarê podem adquirir para serem postas em circulação e transmitidas são capazes de serem espalhadas nos presentes, seja melando-os ou lambuzando-os, seja aspergindo-os ou pulverizando-os356. Por outro lado, outras substâncias também granulares cujas partículas não ficam em suspensão – como as farinhas, milhos e feijões – são reservadas à alimentação das entidades não incorporadas e também aos rituais de iniciação, tornando os corpos dos adeptos abertos, mais porosos às transferências, até que sejam fechados e protegidos pelas primeiras.

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Já se fez notar como nas trocas envolvidas na iniciação a energia mística é transmitida também pela voz, pelo hálito e pela saliva (Souty 2007: 455). 356

Em resposta a um comentário que fiz sobre a adequação de termos oriundos da mecânica dos fluidos para a consideração dessas forças de aspecto hidráulico presentes nas religiões de matriz africana, Martin Holbraad (comunicação pessoal) sugeriu que os pós – como o de pemba – figuram como uma espécie de substância particularmente propícia às transferências por serem, de certo modo, sólidos que se comportam como líquidos, podendo, por exemplo, se espalhar ou serem condensados.

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4.5 Vidas

Não foi uma única vez que Áurea comentou que jamais desejaria para si a sina de se tornar curadora e ter de realizar iniciações. Por mais que seja possível tomar determinadas medidas que estimulem ou desencorajem um destino determinado, ao qual se estaria predisposto por sua natureza pessoal, em última instância a vontade das entidades costuma ser soberana, ou pelo menos tende a cobrar um preço bastante caro para ser continuamente contornada. Diferentemente dela, entretanto, alguns outros habitantes de Lençóis acabaram por ceder ao chamado dos espíritos e se tornar pais e mães-de-santo, zelando, entre outros temas, pela saúde daqueles que frequentam suas casas de culto. Por mais que as curas não sejam o principal motivo das festas de jarê da cidade, ao contrário do que acontece nas regiões da Chapada mais distantes dos centros populacionais, voltadas à produção agrícola357, elas também se encontram presentes, especialmente nos terreiros que realizam iniciações enquanto principais mobilizadores da adscrição a uma casa. Seus estados de saúde configuram tema corriqueiro entre os lençoenses e, como muitos outros, um assunto consideravelmente público, sendo habitual quando se encontram cotidianamente pelas ruas da cidade perguntar a respeito da progressão de enfermidades e desejar a pronta recuperação dos membros das famílias uns dos outros que se sabe estarem doentes. Muitas das curas para enfermidades as mais diversas são realizadas por meio de chás, xaropes caseiros, infusões e garrafadas, preparados que podem ser prescritos para banhos ou para ingestão. O conhecimento necessário ao preparo desses compostos não é exclusividade dos curadores, ainda que seja comum que o possuam: também rezadeiras, benzedeiras e outros entendidos podem ser capazes de recomendá-los e prepará-los, e muitas das pessoas mais antigas da cidade possuem memorizadas inúmeras receitas ou indicações de usos das 357

Como indica a bibliografia disponível sobre os cultos realizados nesses locais (Rabelo 1990: 1, 212-215, 277; Senna 1998: 36, 41, 49).

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ervas encontradas na região358. Uma característica fundamental das curas realizadas com ajuda de ervas medicinais operadas pelos líderes do jarê, contudo, costumava escapar àqueles que se dedicavam a catalogar seus nomes e usos, como faziam, por exemplo, ambientalistas ligados a uma associação ecológica em funcionamento na cidade. Além do receio de falarem a respeito de muitas das utilizações tradicionais das plantas – algumas das quais fazem parte da ciência do jarê e que, até mesmo por isso, não devem ser divulgadas de maneira indistinta –, os adeptos mencionavam frequentemente, ao longo de entrevistas realizadas pelos ambientalistas e que acompanhei assim que cheguei a Lençóis, a importância da fé para a realização da cura com as ervas. Menos do que o fato um pouco mais banal, porém igualmente concreto, de que era preciso, ao menos em parte, acreditar na potência dos curadores para que se produzissem os efeitos terapêuticos desejados, a fé de que falavam os adeptos, fui perceber muito tempo depois, tinha a ver com a forma específica de confiança que se devia depositar nas pessoas e entidades do culto359. As ervas utilizadas nas curas realizadas nos jarês passam a ser, desse modo, elas também veículos das forças a serem mobilizadas pelos pais-de-santo na direção de seus filhos, sendo que sempre se comenta como os males tratados pelos curadores diferem das enfermidades que devem ser tratadas pela medicina. Enquanto algumas são mais facilmente distinguíveis de acordo com seus sintomas – já que nenhum líder de casa de culto deve afirmar, nisso os adeptos são categóricos, que pode curar, a título de exemplo, um tumor –, existem outras doenças cujas causas devem ser atacadas com ação ritual, cuja aparência nem sempre o indica. Para tanto, um curador recorre a uma revista, nome do já mencionado processo divinatório que irá revelar se aflições como certas formas de loucura ou de alcoolismo – para ficar nos exemplos mais recorrentes, seguidos dos problemas de locomoção 358

Muitas já foram compiladas, por vezes de maneira bastante minuciosa, em estudos sobre as tradições populares de Lençóis (Gonçalves 1984: 74-76, 145-167; Senna 1996: 25). 359

Como mencionado acima na seção 4.2.

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– possuem origem mística360. Uma revista pode mesmo indicar que o mal em questão não possui nenhum componente espiritual, o curador comunicando então ao enfermo que este deve se tratar com profissionais da medicina. É mesmo possível que se detecte uma doença que possua um misto de componentes espirituais e não espirituais, cabendo então ao pai-desanto uma parcela da cura, seja por sua ação direta, seja em rituais que mobilizem as entidades envolvidas de modo a auxiliar a cura a ser feita por médicos – por exemplo abrindo os caminhos destes, caso se encontrem obstruídos, de modo a facilitar o tratamento361. A principal forma de tratamento empreendida pelos curadores, de todo modo, é a que envolve diretamente o sacrifício ritual durante o processo de iniciação de um adepto. Idealmente, os trabalhos de limpeza contam com a matança de um galináceo e os de batizado com o oferecimento da vida de um animal de quatro patas, geralmente um caprino. Os animais sacrificados costumam ser do mesmo sexo do iniciando, e se evita escolher, nos batizados, animais de pelagem muito escura. Em épocas de dificuldade, como me contaram alguns dos filhos-de-santo da Capivara, era preciso que um único animal de quatro patas fosse sacrificado para mais de uma pessoa durante uma iniciação, num procedimento que contava com adaptações rituais para não comprometer sua integridade. Também podem ser feitos sacrifícios rituais para alimentação dos espíritos e como forma de homenagem aos caboclos, normalmente oferecendo-se frangos ou galos, acompanhando o sexo das entidades em questão. A matança é habitualmente responsabilidade de uma pessoa incorporada, normalmente o líder da casa, ou feita por um dos auxiliares rituais do local sob orientação direta de uma entidade manifestada. É comum que existam certos caboclos que sempre se 360 361

Como aludido no capítulo 3, seção 3.4.

Como no caso em que pediram a alguém que levasse velas para um curador para que este rezasse pelo sucesso de uma operação médica (Rabelo 1990: 189). Em um dos municípios vizinhos, chamado Wagner, para onde ocasionalmente podem ser levados doentes mais graves por contar com infraestrutura médica de maior qualidade, especialmente quando comparada à de Lençóis, por vezes ocorre também o inverso, com médicos que, após realizar anamneses e exames clínicos, terminam por informar a alguns pacientes que seus males necessitam ser tratados por especialistas de cultos tradicionais, como o jarê (Senna 1998: 211-216 e comunicação pessoal).

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encarreguem dos sacrifícios, sendo os mais frequentes Ogum e, em menor grau, Eru. Estabelece-se uma conexão entre os animais a serem sacrificados e os adeptos em benefício de quem o ato será feito desde antes do dia de realização da cerimônia: os iniciandos ficam responsáveis por adquirir os animais e cuidar deles até o momento do trabalho, o que inclui, no caso dos bodes e carneiros, banhá-los no rio e aprontá-los para o ritual, por vezes adornando-os com fitas. Mais de uma vez me pediram que tirasse fotografias dos iniciandos com os caprinos que seriam sacrificados em seus trabalhos, os animais sendo tratados com muito carinho e consideração, como membros da casa de culto de quem gostariam de guardar recordações por saberem que em breve não mais estariam com eles. Ao menos parcialmente a prática de sacrifício envolve um esforço de convencimento dos animais, que revelam sua disposição – ou indisposição – em ceder suas vidas pelos adeptos por meio de seu comportamento nos dias que antecedem ao ritual, bem como durante a realização do mesmo. Animais bravios, que tentem fugir à captura, que emitam muitos sons ou se debatam ao serem contidos, são sinais de obstáculos adicionais ao trabalho vindouro, por mais que dificilmente venham a adiá-lo ou a evitar o destino que lhes é reservado – ainda que haja histórias que testemunhem a exceção. Seres que, por outro lado, indiquem com seu comportamento que aceitam a sina de darem sua vida por outrem, sendo o exemplo prototípico o do animal que se dirige espontaneamente para o local onde será abatido – via de regra o centro do pagodô –, de forma dócil e como que resignada, dão prova da felicidade da iniciação, sendo encarados com grande consideração e reverência pelos adeptos 362. Contaramme certa vez que um carneiro foi poupado por tempo considerável por demonstrar essa natureza entendida como abnegada, tendo por fim como destino tornar-se oferenda num sacrifício votivo feito numa grande festa dedicada a Iansã na Capivara. No momento da

362

A atitude de reverência diante dos animais que se entende abrirem mão de suas próprias vidas é um tema recorrente não só em outras religiões de matriz africana como em diversas tradições ao redor do mundo que empregam atos sacrificiais (Serra 2009: 225).

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matança propriamente dita, em algumas casas as crianças presentes são levadas para outros aposentos para que não presenciem o corte do animal – e para que se diminua o risco de que sejam, de múltiplas formas, afetadas pelo processo e pelas forças nele mobilizadas. Os filhosde-santo falam sobre a importância da firmeza que deve ter o sacrificador ao segurar o animal, tomando-o pelas patas, no caso das aves, ou pela cabeça e chifres, no caso dos caprinos, sem que suas mãos se cruzem diante do crânio da criatura. O corte principal deve ser fundo e certeiro, de modo a diminuir o sofrimento do animal enquanto seu sangue se esvai sobre o iniciando, e também para que não se debata demasiadamente. Como mencionado anteriormente, o sangue, sobretudo o sacrificial, é uma das principais substâncias responsáveis pela transmissão da força que o jarê mobiliza, sendo também sua forma concreta por excelência, justamente por ser, por definição, o fluido vital primeiro. O sangue que é derramado sobre os adeptos e que é oferecido às entidades simultaneamente é e carrega consigo as forças que o curador coloca em marcha para realizar curas, para conectar ou separar pessoas e espíritos. Comenta-se como é fundamental que, após o ritual de iniciação, os novos membros da casa de culto durmam ainda uma noite com seus corpos e vestimentas marcados pelo sangue coagulado proveniente das oferendas, sendo removido na manhã seguinte com os banhos que encerram os trabalhos. O sangue residual que é derramado no centro dos salões de jarê ao final dos rituais iniciáticos é espalhado e coberto com terra, até que faça parte, literalmente, da força que se encontra depositada sob o chão do terreiro363. Em algumas casas, o sangue sacrificial é também consumido diretamente pelos frequentadores do jarê durante as cerimônias em homenagem a entidades caras ao líder do local, sendo derramado durante a matança numa bacia específica e misturado com alguma bebida, em geral cachaça, e mel364. O preparado, que é imediatamente oferecido aos presentes

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Como visto no capítulo 2, na seção 2.5.

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Há também registro do uso de cravo, canela, vinho e pimenta da costa na mistura (Gonçalves 1984: 135).

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em pequenos copos para que bebam alguns goles – sendo alertados de que devem fazê-lo com reverência –, recebe o nome de “sangue real”. Vê-se como o sangue sacrificial que idealmente precisa ser vertido nos rituais sintetiza muitas das modulações que as forças podem adquirir ao ser manipuladas: é uma substância fluida, transferível, transpositora, diluível, condensável, sápida. Inversamente, o sangue pode ser também uma substância utilizada com grande propriedade em procedimentos místicos que tenham fins contrários à vida, como no caso do sangue resultante de atos de violência365. De qualquer forma, a situação mais comum em que o sangue figura como uma espécie de força oposta à das entidades reverenciadas nas festas pode ser percebida no tabu da presença de mulheres menstruadas nas cerimônias. Os adeptos comentam como mulheres que estejam em seus períodos devem evitar frequentar as festas de jarê, já que a mera proximidade dos caboclos com alguém que possa menstruar por vezes é o bastante para drená-los de sua energia, fazendo com que aqueles que os incorporam tombem ao chão desacordados – tendo sido inclusive essa uma das suposições aventadas ao final da festa em que Áurea caiu pela primeira vez e que foi um sinal agudo de seu enfraquecimento. Numa ocasião em que, após ter passado por seu trabalho de reforço, Áurea comandava o início de uma cerimônia na Capivara, sua Iansã se manifestou e solicitou que qualquer mulher que estivesse em seu período menstrual se retirasse do salão, podendo no máximo acompanhar a festa à distância. A entidade acrescentou que ela própria não tinha problema em se encontrar naquele momento no pagodô, mas que outros espíritos provavelmente não seriam capazes de fazê-lo – indicando tanto seu vigor renovado como a capacidade de Iansã, especificamente, de lidar com forças ligadas à morte. Com o tempo, passei a saber que muitas jovens, desejosas de não perder nenhum jarê, alteravam a frequência de ingestão de pílulas

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Como exemplificado pelo evento da vingança de Pedro de Laura contra seu agressor, relatado no capítulo 3, seção 3.4.

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anticoncepcionais de modo a fazer com que seus períodos não coincidissem com as datas das festas, prática que era, de todo jeito, vista pelos mais cautelosos com boa dose de reprovação. Não é incomum que por vezes se diga de mulheres menstruadas, com algum eufemismo por se considerar um tema delicado, que se encontram “doentes”, ou ainda que estão de “corpo sujo”. Essa última designação também se aplica a quaisquer pessoas que tenham feito sexo recentemente, devendo passar pelos banhos propiciatórios anteriores à festa para que seu estado não seja nocivo às entidades. Em comum com o primeiro caso, no segundo os corpos dos adeptos passam a ser considerados “abertos”, especialmente sujeitos às influências de forças perniciosas, em função da proximidade que se estabelece com o canal vaginal. Como afirmam os adeptos, mesmo quando não menstruadas as mulheres possuem maior propensão e capacidade de fragilizar as entidades por possuírem em seus corpos um canal pelo qual há, de modo intermitente, passagem de sangue. O sangue menstrual é considerado substância especialmente adequada à realização e à quebra de feitiços, sua óbvia conexão com a morte – ou, para dizer mais precisamente, com uma não vida – qualificando-o para agir enquanto uma força contrária de considerável intensidade, duplamente abortiva366. Por compartilhar com esse sangue uma mesma via de passagem, a urina feminina, ao contrário da masculina, possui um similar potencial de neutralização energética, ao menos no que tange a sua aplicação contra feitiços, como me explicaram. Elias foi a única pessoa que me sugeriu um nome para essa força oposta à dos caboclos, chamando-a de “abajé”, termo que se estende igualmente à mulher que se encontre em seu período menstrual. Conforme ele me disse, essa força eminentemente feminina é capaz de derrubar as entidades nos salões de

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Conta-se que a bala responsável por matar Horácio de Mattos, o último grande coronel do sertão baiano – cuja história foi resumida no capítulo 1, seção 1.1 – foi levada a uma mãe-de-santo de candomblé, em Salvador, para que a deixasse em contato com sua vagina e a tornasse capaz de penetrar os encantamentos que protegiam o coronel (Moraes 1963: 178), e que lhe teriam sido concedidos por uma de suas tias, ligada ao jarê, conforme me disseram em Lençóis.

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jarê justamente por seu excesso, de modo ao menos parcialmente similar ao processo de sobrecarga descrito acima em relação às pessoas que já nasceram feitas.

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Conclusão – Voltar

Afinal, o que pode uma tese? Seria esperar demais que um texto na prática escrito por uma única pessoa fosse capaz de sequer se aproximar dos avanços científicos produzidos nos grandes laboratórios por equipes compostas por hostes de profissionais orientados para se atingir inovações significativas para um campo do saber367. Entretanto, angustiar-se a respeito da eficácia de um trabalho científico demonstra ou falta de ambição ou falta de modéstia, ambas atitudes que aqui procurei evitar, entre outros motivos também porque, em mais de um sentido, seria possível dizer que esse trabalho não possui um único autor. Assim, se acredito ter aqui realizado alguma contribuição ao estudo não só do jarê como das demais religiões de matriz africana, ela terá sido fruto da tentativa de transmitir inovações, conceitos e experimentações que só podem existir hoje graças aos conjuntos de pessoas que, ao longo do tempo, mantiveram essas práticas vivas e em constante transformação – muitas vezes a despeito das violências brutais às quais foram submetidos. Se o jarê pode, desse modo, ser pensado como um laboratório ímpar, a equipe que nele atua e ali realiza seus experimentos e descobertas é composta antes de tudo por seus próprios adeptos, um coletivo que também conta com sábios, inventores e polímatas, e a cujas elaborações as desse trabalho procuram fazer jus. É desse modo que eu destacaria, do capítulo 1, uma versão original da história e das histórias que envolvem a cidade de Lençóis, propondo também a consideração de uma visão

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De qualquer modo é precisamente assim que caminha o saber científico, e querer que um texto seja muito mais do que uma módica contribuição a determinado estado da ciência frequentemente significa acabar por se contentar com registros ainda mais gerais e supérfluos do que as descrições singulares que podem ser capazes de colaborar para inovações no conhecimento (Latour 2005: 123, 140, 148-149, 152, 155).

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garimpeira do trabalho e da imagem desses homens não como aventureiros cobiçosos e inconsequentes mas como senhores de si e provedores de suas famílias, mestres de uma arte que afigura menos uma coleta do que uma caça e uma negociação. Contra a visão de que o garimpeiro seria um perdulário, incapaz de se capitalizar, proponho levar em conta a ética da suficiência que eles apresentam e esposam, afastando o dinheiro da função de equivalente universal e exibindo uma aversão específica aos efeitos danosos que possuem as diversas formas de se experimentar certos excessos. Para minimizá-los, os garimpeiros pregam a manutenção de um equilíbrio entre a abundância e a parcimônia, mediada por uma série de potencialidades criativas. Do capítulo 2, por sua vez, realço as hipóteses históricas a respeito do surgimento do jarê, indicando diferentes modulações para a nostalgia estrutural que parece caracterizar as tradições de matriz africana – lembrando que, se as saudades que se sente podem ser outras ainda, no território nacional elas se encontram profundamente marcadas pela experiência de desterritorialização sofrida pelas populações escravizadas. Do mesmo modo, as formas como o método de pesquisa foi alterado pela vivência no campo, da qual derivaram igualmente certas opções narrativas oblíquas em função das lições sobre como conversar, o que dizer e quando calar, parte de um aprendizado a respeito das formas de polidez e deferência que levam essa tese a parecer menos um código normativo do que ora um manual de protocolo, ora um guia de etiqueta, ora ainda um tratado de ética. Do mesmo capítulo, singularizo uma disposição de subversão potencializante existente da ligação do jarê com outras religiões, em especial o catolicismo, bem como a existência de uma incerteza incontornável que leva a atentar para as condições de felicidade das cerimônias, com o termo referindo-se tanto a alegria como a sucesso. Do mesmo capítulo destaco ainda a vitalidade que o jarê de Lençóis demonstra e elabora, bem como sua ressurgência, termo que também se refere a um rio que se

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esconde sob a terra e adiante volta a nascer – terra que é, igualmente, o principal tema do que chamei de metafísica telúrica desenvolvida no culto. Das contribuições do capítulo 3 realço as adaptações que os jarês contemporâneos têm encetado, além da descrição da logística envolvida na realização das cerimônias e os usos que recebem as bebidas alcoólicas, que agem como muito mais do que inebriantes, sendo alimentos espirituais que se inserem numa lógica de trocas energéticas. Já a ideia de resiliência serve para conectar o não esmorecimento ritual a práticas de resistência que permeiam e transbordam o universo do jarê. Friso em seguida as ressonâncias afetivas que conectam pessoas a determinadas cantigas, bem como a ação dos curadores voltada para a alteração de capacidades de movimentação, favorecendo-as ou dificultando-as. Ressalto também como a recusa da posição de instrutor não significa o impedimento da transmissão do conhecimento, da qual inevitavelmente faz parte uma sigética sacramental, uma economia de silêncios promovidos por motivos diversos. Do final do capítulo, sinalizo a percepção da loucura como um indicador de permeabilidade que constitui um duplo acesso, termo escolhido por designar simultaneamente um ataque e uma via de comunicação. Finalmente, das proposições do capítulo 4 destaco em primeiro lugar a falta de sentido da investigação sobre a natureza da crença e sua alternativa em função da plenitude das formas de existência: o recurso à postulação da descrença que é feito somente quando alguém deseja afastar a si mesmo da ação das forças abundantes no mundo. Aponto igualmente as ideias consequentes de existência intensiva e da importância da confiança, bem como da fé que é seu grau máximo, para lidar com as entidades do jarê, para as quais são apontadas formas de diferenciação e transformação. Evidencio aqui também os modos de relação entre pessoas e entidades, que se associam em composições que remetem muito mais a uma química do que a uma mecânica de manifestações, das quais fazem parte um conjunto de permeabilidades e passagens, exibindo uma transmissibilidade entrevista, entre outros

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motivos, nas vestimentas cerimoniais. O peripatetismo dos adeptos aparece como pista para introduzir o tema da movimentação e seus ímpetos, desembocando numa ontologia de forças segundo a qual todo ente pode existir e funcionar simultaneamente como repositórios e veículos energéticos: podem ser encarados como resultantes, compostos de forças que agem como forças e sobre forças. Esses feixes de forças continuamente moduladas que constituem a matéria-prima do jarê são postos em movimento no ritual visando a uma terapêutica que inevitavelmente envolve sacrifícios rituais voltados para um enfrentamento de forças que coloca em questão vida e morte, assunto que será retomado ao final da conclusão.

Provavelmente se terá percebido que, em relação a sua narrativa, essa etnografia foi concebida para ser não um retrato direto dos acontecimentos no campo, mas estruturada de modo a transmitir ao leitor – e incitar nele – um processo de convivência e aprendizado cujas etapas se assemelham às vivenciadas durante a pesquisa. O jarê propriamente só foi apresentado após já se ter garantido acesso às histórias com as quais ele se combina, bem como já se ter descortinado as maneiras pelas quais fui sendo aproximado desse universo. De certo modo, a forma da tese se assemelha a uma andança, que para os habitantes de Lençóis costuma ser muito mais do que um evento de deslocamento espacial, já que se configura igualmente numa ocasião didática e possui caráter cosmológico: como procurei evidenciar pelos títulos dos capítulos, uma tese que fala sobre o jarê é inevitavelmente uma tese que caminha pelo jarê, que o percorre e por meio da qual ele próprio pode passar a caminhar mais longe, literalmente viajando além dos limites da Chapada Diamantina. Caminhar significa também traçar caminhos e mapeá-los, a tese sendo assim também uma cartografia de recusa de atalhos. Numa comparação mineralógica com os distintos tipos de garimpo, trata-se menos

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de uma investigação genética – que procura se aprofundar em origens para exaurir veios – do que uma prospecção aluviônica – que acompanha as movimentações fluidas das pedras pelos rios e serras. Em função disso, tentei aproximar a composição da tese à estrutura de um altar de jarê, uma construção da qual fazem parte elementos a princípio díspares mas que acabam sendo postos em contato de forma criativa e com determinados objetivos. Em diversos momentos, as diferentes seções do texto remetem umas às outras, os argumentos podendo ser revisitados e ampliados em função tanto de sua disposição como do redirecionamento do olhar efetuado pelo leitor. Procurei aqui emular a inventividade dos líderes religiosos que potencializam os objetos aos quais fazem recurso por meio de procedimentos de afastamento e aproximação, tanto espacial quanto conceitual. Por esse motivo, ao longo do texto busquei oferecer desenvolvimentos paralelos, que a princípio poderiam parecer conclusões ligeiras, para que o leitor pudesse estar preparado e fosse capaz de remeter a elas quando reaparecessem num momento posterior do argumento. Sempre que possível, e sem prejuízo da orientação etnográfica que privilegia os dados de campo, a composição do texto explorou também algumas conexões e variações que o jarê apresenta com outras religiões de matriz africana, trabalho que certamente encontra-se só no começo. As pessoas escolhidas como guias para orientar cada capítulo não o foram por qualquer suposta representatividade de um tipo médio ou ideal que exemplificariam. Ao contrário, até, cada uma delas demonstra em sua trajetória deslocamentos específicos por meio dos quais oferecem determinados pontos de vista ligeiramente deslizados dos que na própria região seriam considerados mais generalizáveis. Seu Gilson trabalhou mais como um faiscador do que como um garimpeiro em tempo integral, conciliando a cata das pedras com um emprego na cidade e não frequentando jarês com a mesma frequência que seu pai antes dele. Elias é um jovem que se dirige para o passado de Lençóis, recolhendo e contando

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histórias de um tempo em que gostaria de ter vivido, ao menos parcialmente atualizando-o ao fazê-lo. Sandoval é o filho de um dos maiores expoentes do jarê que já existiu em toda a Chapada Diamantina, tendo de lidar da melhor maneira possível com o legado material e espiritual de seu pai, ainda que, diferentemente dele, ele próprio não incorpore as entidades e tenha recorrido a uma associação para tentar manter unidos os filhos-de-santo do Palácio de Ogum. Áurea, por fim, é considerada a principal responsável pela continuidade das cerimônias da Capivara, indispensável para a realização dos jarês nessa casa e convidada de honra em outras, por mais que ela própria não seja – nem tampouco deseje se tornar – uma mãe-de-santo propriamente.

Não há dúvida de que fui obrigado a deixar de lado uma série de aspectos que surgiram na pesquisa e que podem ser retomados de modo mais detalhado em investigações futuras. O Movimento Avante conta com uma rica história e atuação junto a uma parte da cidade à qual eu pouco pude me dedicar, o bairro do Tomba, principalmente por ser considerada, muitas vezes de modo apenas jocoso, como rival à área do Alto da Estrela. A vila de remanescentes de quilombolas do Remanso é um local consideravelmente próximo a Lençóis e com muitas conexões diretas com a cidade, sendo de interesse pesquisar não somente seu turismo de base comunitária, sua organização em torno de algumas famílias tradicionais e sua luta por titulação como o jarê que parece estar ressurgindo nos últimos anos após um hiato. Além desse, o estudo de outros jarês não só dos distritos pertencentes ao município de Lençóis como de outras cidades da Chapada Diamantina enriqueceria o conhecimento das configurações contemporâneas do culto, especialmente os pertencentes às áreas agrícolas da região, que devem ter passado por alterações distintas às dos locais que se

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voltaram para o ecoturismo. A continuidade da pesquisa junto aos jarês de Lençóis já estudados também se apresenta promissora, não só por seu protagonismo na revitalização do culto como pelos processos recentes que têm posto em marcha, como as tentativas de tombamento de seu patrimônio material e imaterial e as novas disposições dos líderes tradicionais em função não só dessa como de outras inovações. Dentre os aspectos da tese que não se conectam diretamente e apenas com os jarês, aquele que é possivelmente o mais frutífero se reporta às elaborações singulares apresentadas pelo culto enquanto uma das muitas versões das religiões de matriz africana que tomaram forma após a diáspora. Assim como as demais, o jarê se afigura um caso privilegiado para o estudo de determinadas atualizações de virtualidades em detrimento de outras, que de todo modo podem nele continuar atuando de modos específicos. Assim é que o jarê apresenta certas variações para temas como as linhas de força que percorrem e separam os potenciais masculino e feminino, a distinção gradativa entre adeptos que são ou não tomados pelas entidades e as especificidades de suas manifestações, a falta de memória ou consciência do iniciado quando incorporado por um espírito, a vida dos objetos utilizados no culto, a relação do jarê com outras religiões, a ligação das práticas com o solo e a terra, as formas de realização dos sacrifícios, bem como as intercessões e passagens tanto entre vivos e mortos como entre humanos e caboclos que serão retomadas abaixo uma última vez. Espero que essa etnografia a respeito do jarê possa tanto se prestar à desestabilização de determinados conceitos368 quanto contribuir para a elaboração do conclamado novo quadro sinóptico das religiões de matriz africana, já que algo como as “Ritológicas” ainda está para ser escrito369.

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Estendendo-os com “imaginação social”, tarefa para a qual faz-se necessário tanto “perceber como são postos para funcionar no seu contexto indígena” como indicar “como poderiam funcionar num contexto exógeno” (Strathern 1996: 521 apud Goldman 2009: 119). 369

Musicalmente, talvez se inspirando para sua organização e composição não tanto nas formas da música clássica que guiaram as Mitológicas de Lévi-Strauss (1964: 33-38) mas sim na música eletrônica.

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A morte é um tema que no jarê costuma receber muito menos elaboração do que a vida e os vivos. Até por isso, não seria exato considerar a morte como o contrário da vida, já que não passa de parte de seu término, do mesmo modo como o nascimento é seu começo, esse sim possivelmente oposto ao fim que a morte pode denotar370. Costuma-se, inclusive, comentar que no jarê “tem jeito para tudo, menos para a morte”, considerada o momento derradeiro da existência para os seres humanos – ou ao menos para a maior parte deles. A morte, que é ocasionalmente ligada ao mar – “porque o mar é infinito”, explicam371 –, carrega consigo uma grande medida de inevitabilidade, ao mesmo tempo em que suscita um conjunto de conjecturas a respeito do que pode acontecer a uma pessoa depois de seu falecimento. Enquanto alguns dos adeptos consideram que as almas de todos os seres humanos podem viver eternamente num outro domínio da existência, a maior parte deles afirma de modo categórico que para os humanos não há nada depois da morte, motivo pelo qual não há razão para se ter medo do cemitério, como me disse Áurea – acrescentando que o mesmo não podia ser dito a respeito da igreja, esse sim um local atemorizante. Como mencionado anteriormente, é aí que ocorre o ritual de lamentação das almas372, por meio do qual os espíritos dos mortos são apaziguados. Vê-se assim que, se a alma de uma pessoa não constitui sua essência, que sobreviveria intacta após a morte, ela é um resquício possível que pode

370

É o que igualmente se depreende do fato de que os curadores, se podem por vezes invocar e talvez mesmo receber espíritos dos mortos, jamais o fazem durante as cerimônias de jarê, culto cuja “religiosidade está voltada pra o mundo dos vivos” (Gonçalves 1984: 131, 134). 371

A associação entre o mar e a morte parece ser recorrente nos candomblés angola e em outras religiões de matriz africana, em tudo lembrando, por exemplo, a “Kalunga” do palo cubano, inclusive no modo como falam a respeito dela, equacionada como mar: trata-se de um plano de imanência do qual sujeitos e objetos emergem ao sabor das flutuações, das marés (Ochoa 2004: 42-53; 2007: 482). O termo foi escolhido para fazer parte do nome de uma obra que reúne imagens produzidas ao longo de três séculos a respeito dos negros no Brasil (Moura 2000: 15). 372

Descrito no capítulo 2, seção 2.3.

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habitar no mundo por algum tempo, e que não é necessariamente deixado por toda pessoa ao falecer, ou “desencarnar”, como também se diz. Na linguagem mais usada no âmbito do jarê, trata-se da “sombra”, que aqui pode ser definida como um amálgama da pessoa que se foi somada a algo das entidades que lhe acompanharam em vida373. Uma pessoa após morrer pode ou não deixar no mundo dos vivos uma parcela de si à qual os viventes poderão ter acesso caso possuam a capacidade de lidar com esses seres, em geral chamada de “mediunidade”, que pode ser desenvolvida também nas cerimônias de jarê e cuja posse costuma ser indicativa da sina de se tornar um líder de casa de culto. Além de pessoas que falecem em acidentes naturais ou tragédias – o que costuma ser o caso das entidades da linha dos já mencionados “espíritos de luz” –, os humanos que em vida demonstraram possuir grande força pessoal e que a mobilizaram continuamente tendem a deixar para trás sua sombra, de algum modo sobrevivendo, parcialmente, a sua morte. Nem toda pessoa, então, irá necessariamente continuar a existir no além, local onde os espíritos dos mortos, por vezes chamados de “eguns”, habitam e de onde podem ocasionalmente partir para vir visitar os viventes, com resultados diversos. Os adeptos comentam que não é recomendável conceder muita atenção aos mortos, já que eles podem se nutrir desses fluxos de intencionalidades que são capazes, eles também, de veicular energia, gerando deficiências que podem ocasionar males a serem curados no jarê. Em função disso, os líderes das casas instruem os frequentadores das cerimônias a ignorarem seres estranhos que porventura pressintam ou detectem, a fim de que não corram o risco de fortalecer um espírito de morto e estimulá-lo a permanecer junto aos vivos. As entidades que são próximas de uma pessoa, e de certo modo também podem passar a fazer parte de sua composição, têm a mesma capacidade de sobreviver à morte de um iniciado, possivelmente num grau ainda mais pronunciado. Os filhos-de-santo de Pedro de

373

Acrescentando uma definição alternativa à oferecida anteriormente, no capítulo 3, seção 3.5.

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Laura eram unânimes em afirmar que, por mais que “a matéria” houvesse lhes deixado, os caboclos dele jamais iriam morrer, motivo pelo qual muitos adeptos, em especial os mais antigos frequentadores da Capivara, afirmavam não ver necessidade de recorrer a outro paide-santo. Ao contrário dos humanos, eles diziam, os santos não morrem, por mais que possam com o tempo desaparecer caso deixem de ser cultuados, como mencionado anteriormente. A possibilidade de não morrerem é uma das características que distingue essas entidades da maior parte dos humanos, à exceção daqueles que haviam deixado o mundo dos vivos sem morrer, ao se “encantarem”. Ao se tornarem habitantes desse outro mundo, esses humanos, por não terem tido de enfrentar a morte, sofrem uma transformação peculiar e passam a ter uma constituição que os aproxima das entidades cultuadas no jarê, muitas das quais podem ser chamadas de maneira intercambiável de “encantados”. Pessoas que encantam, geralmente desaparecendo nas serras ou matas, e cujos corpos jamais são encontrados, indicam um fenômeno que pode ser pensado como inverso ao do já nascer feito: trata-se de pessoas que não serão desfeitas pela morte374. Tanto essas como as pessoas que figuram entre os grandes nomes do jarê exibem também uma característica que mostra o cromatismo entre seres humanos, entidades do jarê e espíritos de mortos, já que – em função de sua considerável força pessoal – tanto aqueles que já nasceram feitos como os que ao longo da vida se tornaram prontos de forma muito intensa são particularmente propensos a se tornarem eles próprios entidades a serem cultuadas – do mesmo modo como no passado pode ter acontecido tanto com nativos do continente africano como com indígenas em território nacional, conforme conjecturam alguns adeptos375. Assim como os guiavam em vida, após abandonarem sua 374

No candomblé, crianças que são reclamadas para morrer antes mesmo de nascer, ditas abiku, têm sua existência na terra condicionada a uma negociação com as entidades, não devendo por isso ser iniciadas: como aí iniciação replica uma morte, às quais essas crianças são cotidianamente extraídas, não suportariam sofrer uma permeabilização ainda maior a seus efeitos (Augras 1994: 77-78 apud Barbosa Neto 2012: 28 nota 20). Apesar do termo não ser utilizado no jarê, o episódio que será narrado abaixo consistiria um exemplo bastante próximo a esse fenômeno, cujo desenrolar dramático se processou inteiramente diante dos viventes. 375

Menos do que divindades absolutas, muitas entidades podem assim ter se originado de seres humanos extraordinários (Senna 1998: 205).

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existência material essas pessoas podem continuar a prestar auxílio aos adeptos do jarê, de modo possivelmente não limitado à ação das entidades que deixam para trás e que podem continuar a existir. O processo mais elaborado de decomposição da pessoa é destinado aos grandes curadores, aos quais deve ser direcionado o ritual funerário já mencionado chamado de sirrum, em geral feito alguns anos após seu falecimento, passado um período de luto. O sirrum costuma ser oficiado por outro pai-de-santo, muitas vezes resultando na desativação completa da casa de culto do primeiro. Conforme os adeptos contam, nessas cerimônias não há toques dos tambores, que permanecem cobertos com panos brancos, sendo a destruição ou dissolução dos bens do falecido a principal atividade do ritual. Muitos dos pertences pessoais e objetos rituais do morto são quebrados no salão da casa de culto, o couro dos atabaques é rasgado e suas roupas cuidadosamente descosturadas. Torna-se difícil para os frequentadores da casa conter as lágrimas, ainda que devam tentar fazê-lo, sendo igualmente instruídos pelo oficiante a não dar grande atenção a quaisquer visões que possam ter durante o ritual, em geral do próprio falecido. Conta-se que o morto se manifesta também por meio do assento que costumava ocupar em vida, no qual ninguém mais se senta, podendo o objeto se agitar sozinho. Ao final do ritual, os objetos desfeitos são despachados nas águas, despejados no rio mais próximo para que possam seguir seu caminho e levar consigo grande parte da influência que o curador era capaz de exercer em vida. Os filhos-de-santo da Capivara dizem que não realizaram um sirrum para Pedro de Laura, optando ao contrário por manter intacta uma parcela considerável de seus bens pessoais, especialmente suas roupas, até hoje guardadas de maneira zelosa. Do ponto de vista de alguns iniciados, o egum do incomparável curador continua a proteger sua antiga casa, mantendo-a paradoxalmente viva e de certa forma congelada, já que é sua presença que impede a realização de novas iniciações no Palácio de Ogum.

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O fato de que nem toda dissolução da pessoa precisa ser necessariamente completa é mais um dos exemplos que aponta para uma continuidade possível entre vivos e mortos, humanos e entidades, podendo ser estas também responsáveis pela realização de passagens, atualizando conexões bastante diretas com o domínio dos mortos376. Esse foi o caso de uma criança recém-nascida, filha de uma mulher que deu à luz no próprio terreiro da Capivara na época de Pedro de Laura. Uma entidade, Odé, manifestou-se no curador e veio saudar a pequenina, perguntando à mãe da criança, em tom de aparente brincadeira, se ela não lhe daria o bebê. Achando alguma graça na situação, e ignorando as consequências de suas palavras – como frisou a senhora que me contou essa história –, a mãe disse sim à entidade, que ficara fascinada com a beleza da recém-nascida. Pouco tempo depois a criança deixou de se mover, abandonando os viventes, e não ficou dúvida entre os que acompanharam a situação que ela fora levada pela entidade. Ela descansaria a partir daí na “Cidade de Pé-Junto”, que é como Dona Valdelice, comadre de Pedro, com grande propriedade se refere ao cemitério, bela morada na qual todos os vivos repousarão um dia, como ela diz. Os pés juntos de que fala Dona Valdelice não se referem apenas ao modo como os mortos são depositados em seus caixões, mas chamam atenção igualmente para a principal característica de quem não está mais vivo, a saber a imobilidade dos pés que não mais sobem e descem as serras, não mais cruzam os rios e matas, não mais caminham nem dançam377. Todo jarê termina com uma homenagem a Cosme Damião, entidade da gemelaridade e em cujo mês de setembro costuma se concentrar o maior número de cerimônias das mais diversas casas de culto de Lençóis. Enquanto conversava um dia com Elias a respeito dos motivos que levam à centralidade de Cosme para o jarê, ele me presenteou com um mito que

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A essas transformações se dedica o belo epílogo com que se conclui a magnífica tese de Barbosa Neto (2012: 361-363). 377

Recorde-se aqui o episódio da senhora que recuperou sua mobilidade e fez seu habitual trajeto até o rio para lavar roupas antes de falecer, conforme visto no capítulo 1, seção 1.3.

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ouvira de uma das senhoras de quem tomara ensinamento, traçando sua origem às nagôs da cidade. Ao narrar esse mito, Elias aproximou Cosme dos Ibêji, orixá duplo africano ligado igualmente aos gêmeos. Segundo o mito, muito tempo atrás havia num reino africano um par de irmãos absolutamente idênticos, já por isso considerados muito especiais. Certo dia, durante uma celebração às entidades, a Morte chegou ao reino dizendo que iria levar consigo todos os seus habitantes, assim que o couro dos atabaques parasse de soar. Diante da sina nefasta, os irmãos tiveram uma ideia e decidiram se revezar nos atabaques, de modo que um pudesse descansar enquanto o outro mantinha a música viva, estendendo indefinidamente a duração da festa. Como eram idênticos e trocavam de lugar quando a Morte estava distraída, ela não foi capaz de distingui-los e imaginou que se tratava de uma mesma pessoa tocando ininterruptamente. Cansando-se de esperar, ela finalmente desistiu de seu intento e deixou o reino sem levar nenhum de seus habitantes. Os gêmeos foram saudados como heróis, tendo vindo eles próprios, posteriormente, a se tornarem divindades. De certo modo, todo jarê realizado até os dias de hoje pode ser pensado como uma reatualização desse embate, e desse ardil. Como os gêmeos do mito, os tocadores de atabaque são responsáveis por manter a festa sempre em curso, instando, junto dos demais presentes, os iniciados a continuarem dançando, as entidades a não deixarem o salão, apesar do esgotamento a que todos estão inevitavelmente sujeitos. Bater jarês é uma forma de fazer com que a vida, em sua plenitude, prossiga, e até por isso as cerimônias são voltadas para a cura e a reabilitação dos adeptos, para a mobilização das entidades e das forças que compõem e são compostas por ambos, para o afastamento progressivo dos mortos e suas influências perturbadoras. Bater jarês é sobretudo um meio de manter viva uma festa sem fim, uma festa que não pode acabar sem que se corra o risco de seu término significar também o término da vida como a conhecemos. De todo modo, uma festa é – e precisa ser – também uma ocasião feliz, animada, muito embora as circunstâncias nem sempre favoreçam a alegria. Mesmo

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diante de uma série de obstáculos, e convivendo com a possibilidade de que o jarê venha a desaparecer caso seu empenho não se renove, seus adeptos optam por uma existência plena de vivacidade. Dão testemunho, assim, não só durante as cerimônias como fora delas, das potências da vida, do movimento e da criatividade. Afirmam as forças do jarê.

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381

Índice remissivo

abundância e falta 52-53, 87-89, 174-175, 257-258, 291 água 23, 41,163, 165, 189, 245, 276-277, 304 álcool 60-62, 66, 82, 98, 104-105 no jarê 62, 218-219, 332-333 alimentos no cotidiano 46-47 no jarê 171, 173-176, 188, 207 altares domésticos 135-136 pejis 170-172 Alto da Estrela 86, 91, 93 Andaraí 6, 12, 155, 162, 236 apelidos 80, 94, 128 associações 204-206, 276, 284 atabaques 173, 210-212 batedores de 209-210, 213-218, 360 e outros instrumentos musicais 212-213 Áurea 203, 238-239, 267-269, 275-289, 297-298, 331, 340, 353, 355 Avante Lençóis, Movimento 96-97, 99102, 353 caboclos 117, 158-159, 188, 194, 269, 283, 297-309, 320-321, 325, 336, 338, 356360 Cachoeira (município) 30, 115-116 Calendário 129 litúrgico do jarê 151-153, 166, 175, 251 de festas populares 89, 136-139 caminhar e pisar 17, 38, 69-73, 324-326, 351, 359 candomblé 98, 116-118, 153-158, 220, 266, 297, 327 cantigas 228-235, 283, 312-314, 334 Capivara, casa de Pedro 162-163, 165, 222, 236-239, 242, 266-269, 279-280, 358 capoeira 66-69, 93, 110-111 Casa Grande, Associação 86-87 casas de jarê 156-157, 159-161, 165-173 catolicismo 8, 16, 136-146

Chapada Diamantina 3, 6, 12-14, 155 povoamento da 27 Parque Nacional da 13, 35, 46-47, 54, 56 confiança 282, 293-295, 341 cor e raça 14, 87, 91, 105, 107-115, 120, 128, 219-220 Cosme 152, 307-308, 359-360 crença 290-293 crianças 87-89, 148-150, 217, 313, 336, 343-344 criatividade 2, 5, 79, 352 cura 7, 9, 62, 245, 265, 325, 333, 337, 340 curador 157, 272-273, 328 Daso 164-165, 267-268, 279-280, 284, 331 diamantes 27, 31, 42-45, 59 dinheiro 55, 58-60, 64 divinação 7, 172, 252, 341-342 drogas 62-64, 66, 93, 98 Elias 94-99, 102-105, 107-108, 111, 121131, 134-135, 149, 158, 207-208, 284, 352-353 entrevistas 18, 122, 222-223 ervas 167, 187, 199, 271, 340-341 escravidão 6, 14, 28-30, 36, 38-39, 80, 105-107, 110-111, 114, 121, 200, 306 escrita 228-230, 296-297 etiqueta 61, 132-135, 216, 310 evangélicos 16, 145-148, 275 exus 166, 192, 293, 308-309, 315, 336 fala 81-82, 129-132, 165-166, 289-290, 334 feitiçaria 176, 248-250, 267, 270-274 felicidade, condições de 10, 160 festas 84-85, 89, 151, 156-157, 174 filmes 53, 80, 110-111, 223-224 fofoca e sotaque 24, 75-77, 131, 287-288 forasteiros 25-26, 35-36, 43, 50, 53, 56, 58, 66, 81, 86, 91 força 7, 17-18, 252-253, 292, 300, 323324, 327-339, 341, 344-347, 356 fotografias 224-227, 343

382

garimpo 25, 27, 30, 38-48, 50-52, 59-60, 92, 97, 106, 236-237, 351-352 Gilson, Seu 22-25, 37-39, 44-49, 55, 61, 250, 352 Grãos de Luz e Griô 101-103, 124, 208 Horácio de Mattos 31-32, 118-119 humor 45, 57, 78, 128 incorporação 7, 9, 158, 191, 301-302, 309321, 326, 331-332 independência feminina 286-287 indígenas 112-113, 201, 305, 357 iniciação de adeptos 62, 156-157, 171-172, 176177, 180, 182-191, 278-279, 329 de curadores 157, 167, 192, 240, 261262-264 jarê 5-11, 42, 110, 115-120, 132, 151-162, 255, 282, 354, 360-361 de brincadeira 148-150 e religiões cristãs 146-148 lamentação das almas 139-140, 143-144 lavagem da igreja 138-139, 142-143 Lençóis 6, 10, 14, 23-37, 43, 70, 155, 162, 236 loucura 264-265, 338 marujada 103 masculinidade 95, 219 memória 6, 9, 99, 104, 122, 130, 191, 230, 235, 295-296, 316 mito 354 morte 73, 140, 189-190, 202, 248-250, 252, 293, 337, 345-347, 355-360 movimento 7, 245-246, 258-259, 292-293, 301, 318, 325-327, 330-331, 335-336 musicalidade 217-218 Mussum 162-163, 238-239, 267, 279, 284 nagôs 6, 115-120, 125 natureza pessoal 147, 230, 235, 311 objetos rituais 183-185, 191, 194-195, 283, 331, 339, 358 ogã 157, 251, 263, 277 parentesco 80-81, 177-182, 243, 279 pedra de raio 41, 118, 328, 339 Pedro de Laura 113, 161-162, 202-203, 239-255, 259-260, 265-266, 273-274, 356-358 pesquisadores 26, 58-59, 99, 122-127, 207 política 82-86

pseudônimos 15-16, 132 quadrilha 89-92, 110, 203 reisado 138 relações sexuais no jarê 285-286 religião 16-17 Remanso 112-114, 240-241, 353 resistência 214, 220-221 rituais 9, 129, 133-134, 157, 193-196, 251252, 280, 283, 317 roupas 151, 312, 321-324, 358 sacrifício 158, 167, 184, 187-188, 278, 342-344 saliva 175-176, 333-334, 339 Sandoval 202-204, 206-210, 213, 222, 238, 244, 254, 267-270, 276, 279, 353 sangue 188, 216, 249-250, 339, 344-347 São João 89-90 segredo 125, 191-192, 255-256, 260-261, 263 Senhor dos Passos 30, 37-38, 71, 137, 145 sexualidade 80, 220, 244 Sincorá, Serra do 13-14, 27, 47, 51-52 sonhos 254-255, 301 subversividade 8, 141-145 suficiência, ética da 39-40, 55-56, 88-89 terra, importância no jarê 159, 170, 188, 195-198, 306-307 terreiros 156-157, 166-167 tombamento de Lençóis 33 do jarê 208-209, 354 trabalho 50, 54-55, 83 de campo 12, 15, 92, 127-130, 351 ética do 40-42, 55-56 trama 4, 281 transformação 3-5, 207, 300-301, 352, 354 transmissão de conhecimento 125-126, 256-260 transporte 49-50, 59 até os jarês 206-207 turismo 17-18, 25, 34-35, 46-54, 63-64, 78-79, 107, 113-114, 129 união 161-162, 267-268, 281 Valdelice do Alto da Estrela, Dona 198201, 276, 293 Valdelice do Baixio 163-164, 267-268 violência 64-65, 250

383

Anexo I – Perfis

Nesse anexo encontram-se breves perfis das pessoas mencionadas com maior regularidade ao longo da tese para referência durante a leitura. Ainda que estas sem dúvida façam parte do conjunto dos principais interlocutores com quem a pesquisa foi desenvolvida, certamente não o esgotam. A totalidade dos nomes pode ser conferida na seção de Agradecimentos no início do texto.

Áurea

Principal filha-de-santo do Palácio de Ogum, localizado próximo ao Rio Capivara, e tia materna de Sandoval, irmã de Dinha. Renomada parteira.

Carminha

Puxadora da quadrilha Bicho-do-Mato e irmã de Mussum, durante o São João a animada Carminha também respondia pelo apelido de Xuxa Preta.

Daso

Apelido pelo qual é conhecido Gildásio, último filho-de-santo feito por Pedro de Laura e curador do terreiro Pai Gil de Ogum, junto ao Rio das Toalhas.

Dinha

Mãe biológica de Sandoval e irmã de Áurea, realizou um jarê em sua casa localizada nos arredores da sede de Lençóis.

Elias

Pesquisador diletante apaixonado pelas tradições de Lençóis e contador de histórias locais, já tendo escrito para o jornal Avante.

Gilson

Ex-garimpeiro e contínuo do único banco da cidade de Lençóis, seu pai foi um dos sacrificadores rituais do Palácio de Ogum.

Joaquim

Dono da Pousada Violeiro, possui igualmente uma pequena venda no Centro de Lençóis. Marido de Dona Juanita.

384

Juanita

Dona da Pousada Violeiro, já tendo trabalhado em diversos estabelecimentos na cidade. Esposa de Seu Joaquim.

Mussum

Curador responsável pela condução de certas atividades rituais no Palácio de Ogum, começando também casa de culto própria. Irmão de Carminha.

Pedro

Maior curador de que tem notícia a memória recente de Lençóis e um dos

de Laura

grandes mestres do jarê da Chapada Diamantina. Pai adotivo de Sandoval e compadre de Valdelice do Alto da Estrela.

Sandoval

Filho biológico de Dinha e sobrinho de Áurea, adotado por Pedro de Laura. Presidente recorrente da Associação do jarê e promotor das festas na Capivara.

Valdelice

Sábia autora de máximas apreciadas e repetidas pelos habitantes de Lençóis.

do Alto da Comadre de Pedro de Laura e madrinha de inúmeros lençoenses. Estrela

Valdelice

Líder da casa de culto Águas de Iemanjá, localizada no Baixio, e atual

do Baixio

responsável pelo ritual de lamentação das almas em Lençóis.

385

Anexo II – Mapas

1. Localização da Chapada Diamantina. O Parque Nacional da Chapada Diamantina acompanha de modo bastante próximo os limites da Serra do Sincorá378.

378

Reproduzido de http://pousadaribeirao.blogspot.com.br/. A fonte indicada no local onde a imagem foi encontrada foi contatada e indicou que a imagem é de autoria desconhecida.

386

2. Geografia da Chapada Diamantina no entorno da cidade de Lençóis. Horizontalmente, o rio localizado mais ao sul ainda presente na imagem é o Rio Capivara, às margens do qual se localiza o Palácio de Ogum. No caminho da cidade até ele, passa-se necessariamente pela casa Águas de Iemanjá, no Baixio, próximo ao Córrego dos Cachorrinhos. O rio mais ao norte na imagem é o Rio das Toalhas, às margens do qual se localiza o terreiro Pai Gil de Ogum. Todos os rios mencionados são tributários do Rio São José, que corta a imagem verticalmente379. 379

Fonte do mapa: Google Earth.

387

3. A cidade de Lençóis. Para se chegar ao Palácio de Ogum saindo da cidade toma-se a trilha marcada com a direção “Ribeirão de Baixo”, na parte esquerda do mapa380.

380

Fonte do mapa: Guia Lençóis (http://www.guialencois.com.br/arquivo/pdf/mapa_lencois.pdf), reproduzido com autorização.

388

Anexo III – Fotografias

Esse anexo contém as fotografias às quais o texto da tese faz referência, acompanhadas de uma breve descrição. Não há certeza quanto aos nomes dos autores das fotos pertencentes ao acervo da Associação dos Filhos-de-Santo do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra aqui reproduzidas e indicadas na lista abaixo. A seguir encontram-se os nomes dos autores de todas as demais:

Associação do jarê Fotos 62, 63, 64.

Calil Neto Fotos 2, 3, 4, 8, 9, 13, 14, 15, 16, 29, 30, 31, 32, 34, 35, 39, 40, 42, 45, 47, 55, 59, 60, 65, 66, 67, 68, 74.

Gabriel Banaggia Fotos 1, 7, 10, 11, 12, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 33, 36, 37, 38, 41, 43, 44, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 56, 57, 58, 61, 69, 70, 71, 72, 73.

Tiãozinho Fotos 5, 6.

389

1. A cidade de Lençóis e suas serras.

2. Anoitecer em Lençóis.

390

3. Vista aérea do Centro Histórico de Lençóis.

4. Exemplos das fachadas das construções de Lençóis. As portas e janelas de muitas das edificações de menor porte seguem o mesmo estilo.

391

5. Seu Gilson, simulando uma garimpagem.

6. Seu Gilson simula o peneirar do cascalho feito pelos garimpeiros.

392

7. Detalhe da imagem de Senhor dos Passos em Lençóis.

8. Ruínas na vila do Barro Branco, no município de Lençóis.

393

9. Ruínas de Igatu, distrito do município de Andaraí, outrora um grande centro de garimpo.

10. Ruínas da fundação do Solar de Ricardina, na cidade de Lençóis.

394

11. Rua do Alto da Estrela, com suas formações rochosas características.

12. Amanhecer observado de casa no Alto da Estrela.

395

13. Atual configuração da marujada de Lençóis.

14. Marujada em formação se apresenta pelas ruas da cidade.

396

15. A vila de remanescentes de quilombolas do Remanso.

16. Os marimbus próximos à vila do Remanso, que são visitados em canoas.

397

17. Elias anota a letra de uma cantiga a pedido de Dona Eva.

18. Elias ajeita objetos de uma oferenda ritual para ser fotografada.

398

19. Altar doméstico na casa de Sílvio, um filho-de-santo de jarê.

20. Detalhe da lapinha de Dona Domingas com seus inúmeros objetos.

399

21. Reisado de Lençóis antes do início de uma procissão, com Dona Domingas ao centro.

22. Detalhe dos chapéus usados no reisado.

400

23. Dona Vâny, ao centro, na preparação da saída das baianas para lavagem da igreja.

24. Baianas em cortejo pelas ruas de Lençóis se dirigem à igreja.

401

25. Sob chuva, lamentadoras de almas rezam a última estação antes de entrar na igreja.

26. Dentro da igreja, lamentadoras lideram a entoação das últimas rezas às almas.

402

27. Crianças improvisam instrumentos para um jarê de brincadeira no bairro do Lavrado.

28. Crianças e jovens simulam receber entidades num jarê de brincadeira.

403

29. União das cabeças protagonizada por uma adepta incorporada, no centro, e uma jovem.

30. Repasto que costuma anteceder as festas de jarê na principal casa de culto de Lençóis.

404

31. Fachada do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, onde reinou Pedro de Laura.

32. Entorno do Palácio de Ogum, próximo a um banco de areia resultante do garimpo.

405

33. Mussum prepara um dos tambores da Capivara.

34. Um dos caboclos de Mussum incorporado no pai-de-santo.

406

35. Para se chegar às casas de culto deve-se tomar trilhas similares a essa saindo de Lençóis. Só uma pequena parte, contudo, encontra-se conservada como a retratada.

36. Salão da casa Águas de Iemanjá em festa.

407

37. O antropólogo retratado com Valdelice, Corró e uma de suas filhas, Daiane.

38. Um dos caboclos de Valdelice incorporado na chefe da casa de culto.

408

39. O terreiro Pai Gil de Ogum à noite.

40. Daso no Rio das Toalhas, ao lado do terreiro.

409

41. Daso com alguns dos frequentadores de seu terreiro, incluindo seus filhos-de-santo.

42. Um dos caboclos de Daso incorporado no curador.

410

43. Morada de Exu protegendo a entrada de um terreiro.

44. Caramanchão ao qual os frequentadores do terreiro se dirigem nas chegadas e partidas.

411

45. Mussum orienta um aprendiz no preparo das oferendas na entrada do Palácio de Ogum.

46. Árvore ornamentada antes de uma cerimônia no terreiro de Daso.

412

47. Peji do Palácio de Ogum, diligentemente conservado pelos adeptos da casa.

48. Parte da parafernália ritual do quarto de santo do terreiro das Toalhas.

413

49. Exemplo da disposição de objetos rituais para um trabalho de iniciação.

50. Dois conjuntos de colares após terem sido lavados pertencentes a iniciandos.

414

51. Adeptos espalham terra no centro do salão, mesclando o sangue sacrificial ao chão.

52. Caboclos prostrados ao pé dos atabaques dando origem a uma lama ritual.

415

53. Dona Valdelice, em um passeio nas cercanias de Lençóis para recolher ervas.

54. Dona Valdelice retratada a seu pedido diante do cemitério da cidade.

416

55. Sandoval posa junto de crianças ligadas ao Palácio de Ogum antes de uma festa.

56. Reunião da associação do jarê, à época presidida por Sandoval, à direita.

417

57. Um dos atabaques do Palácio de Ogum feito com a técnica do tronco cavado.

58. Detalhe das estacas usadas para afinação dos atabaques.

418

59. Tocadores de atabaque com expressões faciais características à função.

60. Outros instrumentos usados no jarê: o xequerê em primeiro plano e o agogô ao fundo

419

61. Gravação de entrevista nas proximidades do Palácio de Ogum, no Poção do Rio Capivara.

62. À esquerda, Pedro de Laura com seu filho, Sandoval, ainda criança.

420

63. Pedro de Laura, um dos maiores mestres do jarê da Chapada Diamantina.

64. Cerimônia na Capivara em foto na qual podem ser vistos muitos dos principais líderes do jarê da contemporaneidade.

421

65. Árvore preparada com presentes fincada no meio da fogueira de Odé.

66. Momento da queda da árvore consumida pela fogueira e corrida para pegar os presentes.

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67. Alguns dos frequentadores e iniciados da Capivara, hoje também ligados a casas diversas.

68. Caboclos de Daso e Mussum se cumprimentam ritualmente durante um jarê na Capivara.

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69. Fitas em árvores e moradas das entidades protegem as mesmas e estas ao terreiro.

70. Detalhe de árvore que serve de morada a um Exu no terreiro Pai Gil de Ogum.

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71. Maria Áurea, uma das mais importantes filhas-de-santo do Palácio de Ogum.

72. A Iansã, também chamada de Santa Bárbara, de Maria Áurea dança no salão da Capivara.

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73. Árvore onde mora um Eru, localizada na mata nas proximidades de um terreiro.

74. Adepta se abaixa em deferência antes de saudar a Iansã de Áurea, que retribui o gesto.

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Anexo IV – Cantigas

Esse anexo reúne letras de diversas cantigas de jarê da forma como me foram cantadas pelos filhos-de-santo de Lençóis para serem registradas. A maior parte delas provém do Palácio de Ogum e seus iniciados, tendo sido compiladas e disponibilizadas por escrito em cópias para os amigos que me auxiliaram mais diretamente na empreitada. Uma coletânea como essa dificilmente pode ser completa, em especial por três motivos. Em primeiro lugar, porque existem algumas cantigas que são envoltas em segredo, as quais me pediram especificamente que não divulgasse. Em segundo lugar, porque o repertório das cantigas é muito extenso e é difícil até para os filhos-de-santo de melhor memória lembrar todas elas quando não se está numa cerimônia de jarê. Em terceiro lugar, porque muitas cantigas desaparecem com o tempo enquanto outras são criadas e improvisadas, fazendo com que o repertório esteja em fluxo constante. A ordem das cantigas aqui registrada procurou seguir, grosso modo, a sequência das entidades que seriam cultuadas durante uma festa para Iansã no Palácio de Ogum. De todo modo, estão presentes também cantigas elaboradas em outros terreiros e, especialmente nas últimas partes do anexo, outras executadas para fins diversos então indicados. Ao final encontra-se uma cópia do disco gravado pelos membros da Associação do jarê mencionado no capítulo 3.

Exu Vem cá Exu, vem me dizer O que é que tem aqui Vem cá Exu, vem me dizer O que é que tem ao redor do peji Exu da meia-noite Exu da encruzilhada Exu da meia-noite Exu da encruzilhada Fala o povo de umbanda Sem Exu não se faz nada

Exu, Exu, Exu vai pro caminho Exu das sete encruzilhadas Exu vence por mim Cachorro late na rua Galo canta no muro Ô, salve, Exu Exu Tranca-Rua

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O sino na igrejinha faz belém-bedan O sino na igrejinha faz belém-bedan É meia noite o galo já cantou Seu Tranca-Rua que é dono da gira Vem correr gira que Ogum mandou Exu olha a babô-iá Exu olha a babô-iá Exu olha a babô-iá Faz Exu baboiá Marabô, eloguebô Xoxô adé Marabô, eleguebô Ai, meu Deus Xoxô adé

Olha o catacatá Exu loquê Ô lokã De canjerê Sai-te daqui Exu Mulambo Irmão de Exu-Mulambinho Vai ficar na encruzilhada Onde passa quem fala de mim Pombogira menina Pombogira mulher Pombogira menina Rainha de candomblé

Abertura de Sete-Serra Olha, olha catira de umbanda Espia, espia quem vem lá É o chefe, rei de quimbanda Chefe por chefe ele é o maioral Todo povo tá nos saravando Papai de quimbanda mandou lhe chamar Itália, Itália Ô leva é no seró Itália, Itália Ô leva é no seró Ogum mandou Exu levar Ô leva é no seró Pombogira já comandou Rá rá ê Pombogira já comandou Ô rá rá ê Raio de fogo, Ogum mandou Tupinambá vai levar Vai levar esse despacho Pros contrários não entrar Só queima a pólvora Pra quem sabe queimar Meu ponto é seguro Meu pai é Oxalá Povo de umbanda Olha os filhos seus Defuma os seus filhos Nas horas de Deus

Esse caboclo é bom É bom pra guerrear No terreiro de Ogum Quando a aldeia precisar Ô que caboclo é esse Que chegou até aqui Caboclo da mata bruta Da mata do cangoji Tava na aldeia de jacuritá Tava na aldeia de jacuritá Pra que meu Deus, pra que meu Deus Pra que mandou me chamar Eu vinha de jacuritamba Passei pelo jacuritá Chamei três curimbeiros Que eu vinha aqui sambar Segura o samba meus curimba Segura o samba que eu vim sambar

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Abertura Ogum das águas claras É vem acolá Vem abrindo as estradas Com seu batalhão real

Ô vamo incensar essa casa Que o dono dela chegou Ô vamo incensar essa casa Que Ogum é curador

Iansã / Santa Bárbara Que barco é aquele Ô que ê vem beirando o mar Mas é o barco de Ogum Carregado de orixá Quem sabe se Ogum foi pro debate Quem sabe se Ogum foi guerrear Me dê notícia de Sete-Serra, Jericó O que é que houve lá na aldeia Cetroá Portas abertas, casa incensada Ogum de Lê, é coroado Ó Deus, ó salve, Virgem Rainha da vitória Ó Deus, ó salve, aldeia Aonde os caboclo mora Essa casa tem quatro cantos Em cada canto uma janela O Divino Espírito Santo É quem toma conta dela Quando eu andava, em um caminho Eu só chamava por meu Deus E tanto eu chamei por ele Até que ele me valeu Nada mais do que Deus, meu Deus Só mesmo Deus, meus Deus Seja por mim, meu Deus Ajude eu, meu Deus Dê força, meu pai, dê força Dê força aos filhos teus Dê força, meu pai, dê força Cumprir a sina que Deus me deu Baluaê toma conta da porta Ô toma conta meu pai Oxalá Baluaê toma conta das estradas Para os contrários não passar

Oxumarê é luz É luz, é luz, é luz do mar Oxumarê é luz É luz, é luz, é luz do mar Oxumarê, mora no mar Ela vem nos ares Quando o arco-íris Bebe água aqui na baixa Oxumarê felocã É babá é felocã Oxumarê felocã É babá é felocã Flores e mais flores Sou eu, rainha das flores Flores e mais flores Sou eu, rainha das flores Iansã de Deus Iansã Oiá Iansã de Deus Rainha do mar Santa Bárbara Virgem Ela mora no Mar de Sé Ela é mãe da pobreza É dona de candomblé Santa Bárbara Virgem Ôiôê Santa Bárbara Virgem Rainha de candomblé Amirô, amiroé Santa Bárbara Virgem Rainha de candomblé

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Santa Bárbara é mãe, minha mãe É luz do mar, minha mãe Chega no terreiro, minha mãe Pra vadiar Santa Bárbara de Xangô Que acompanha São Domingos São Domingos é um nagô É um nagô tão ligeiro Que do ribeirão chegou Sou eu, princesa Sou eu, Oiá Sou eu, princesa Sou dona de canzuá Sou eu, princesa Chegou a baronesa Sou eu, princesa Vamos saudar o nosso Deus de grandeza Chegou minha Santa Bárbara De Oiá, aê Chegou minha Santa Bárbara De Ogum Dererê

Santa Bárbara mora no céu Janaína mora no mar A coroa de Santa Bárbara Clareia o mundo geral Ai, ai, meu Deus Mas a dona do mar sou eu Ai, ai, meu Deus Mas a dona do mar sou eu Santa Bárbara desceu do céu Com o cálice e a espada na mão Debatendo com os inimigos, Santa Bárbara Vós não tens medo não Vós não tens medo não, Santa Bárbara Vós não tens medo não Eu tava na ponta da pedra Bebendo água e aparando trovão Clareou, clareou, Santa Bárbara clareou Água na ladeira, sem poder descer Santa Bárbara Virgem, ô venha me valer Eu vi Santa Bárbara na boca da mata Vestida de branco, coroa de prata

Santa Bárbara é rainha Rainha dos orixás Valei-me minha Santa Bárbara Aqui hoje e em todo lugar

Santa Bárbara é zona É zona, é zona Ela é zona de braço forte É zona

É ouro Santa Bárbara, é ouro É ouro, eu cheguei de mina É ouro Santa Bárbara, é ouro Eu vivo na macumba Pra cumprir a minha sina

Santa Bárbara Virgem Rainha do mar Ela é dona do tesouro Ela é dona do altar Ele é curadeira Ela vem curar

Chegou Santa Bárbara De mina, mineira Me dê minha saia Que eu sou curandeira Eu sou Santa Bárbara Eu só ando é só Chegou Santa Bárbara Relâmpago é de caracol

Chegou Oiá de Deus, orobó bocumbalê Oiá de Deus, orobó edê iabá boco bolê É loira, é loira Santa Bárbara é loira Quando eu vim de Aruanda Santa Bárbara é loira É ô lelelê, elu Se no mar tem água, elu Eu tô com meu braço forte, elu Eu quero nadar, elu

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Iansã é uma moça bonita Ela é dona de seu jacutá Iansã é uma moça bonita Ela é dona de seu jacutá Hepa-hê, hepa-hê, hepa-hê Ela é mãe de Aruanda Segura a umbanda, que eu quero ver Hepa-hê Por cima de uma pedra No tombar de uma cachoeira Desci com mamãe Iansã Pra ver a falsidade No pé de uma pedreira Italiana, italiana Italiana é mamãe Santa Bárbara Italiana, italiana Ela chegou na maleta d’água Santa Bárbara é de fogo, é de fogo, é Procura Santa Bárbara se é, se é Iansã tem um leque de pena Pra se abanar nos dias de calor Iansã mora na pedreira Eu quero ver meu pai Xangô

Ogum no seu cavalo branco E com a sua espada de luz Ogum, Ogum meu pai Cubra teus filhos com o manto de Jesus Ogum de Lê, meu pai Ô narê, fala Ogum que é de Lê, leguedê Fala Ogum que é de Lê, camurajô Fala Ogum que é de Lê, leguedê Seu Ogum Beira-Mar O que é que trouxe de lá Seu Ogum Beira-Mar O que é que trouxe de lá Mas ele veio, ele veio beirando a aldeia Ele traz contigo o retrato de mamãe Sereia Da torre da igreja, Ogum assobiou Ogum abençoado, foi Jesus que abençoou Ogum, Ogum, ê Ogum nunca faltou Ogum foi dos primeiros que nessa casa chegou Senhor Ogum foi pra Itália E Oxalá deu carta branca Senhor Ogum foi para guerra Senhor Ogum foi vencer demanda

Santa Bárbara vai embora Ô pro reinado eu sei que vou Mas eu vou pra três colunas Eu vou pra aldeia pro redevô

Ô vamos bater palma na coroa de Ogum Ogum venceu a guerra Vamos todos, saravá

Quando a princesa for Lá pras ondas do mar Meus filhos estão dizendo Lá vai mamãe Iansã, Oiá

Eu sou Ogum Não bebo nada Só bebo água de sereno Quando eu achava

Ogum Senhor Ogum, vem cá, vem cá Tá lhe chamando lá na aldeia Cetroá Fala Ogum, fala Ogum-ê Fala Ogum, seu Ogum tá no jarê

Quem mexer com os filhos de Ogum Morreu, morreu, morreu Quem mexer com os filhos de Ogum Morreu, morreu, perdeu Eu tenho minhas sete espadas Pra me defender Eu tenho Ogum na minha companhia Ogum-ê, meu pai Ogum-ê, meu guia Ogum-ê, meu pai Ogum abençoado o filho da Virgem Maria

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Aonde está, senhor Ogum Aonde está que não me responde Ele está em alta aldeia Aonde mora o rei de congue Ô, abre as estradas Ogum A porta, Baluaê Oxalá é quem manda Santa Bárbara vem trazer Ô meu senhor, Ogum Ô meu senhor, Ogum de Lê A estrela que mais brilha Em Aruanda, aê Ô méje méje, de Ogum mejê-eá Ogum mejê-eá Ogum das sete espadas Das sete espadas, meu Deus Valei-me senhor Ogum Valei-me Ogum, meu Deus Ô xá, de xaraxaxá Ogum ê, Ogum á Ô xá, de xaraxaxá Senhor Ogum já veio do mar Só Deus, só Deus Só mesmo Deus Com os filhos de Ogum Só quem pode é Deus Ogum debateu, debateu, debateu Meu Deus, Ogum debateu Ogum nunca tremeu, meu Deus Esse caboclo é bom É bom pra guerrear No terreiro de Ogum Quando a aldeia precisar Ogum menino, Caiçara no lajedo Aê, aê, Caiçara no lajedo Sou eu, pai Ogum Sou filho que não tenho medo Eu não tropeço no caminho Mas também não escorrego no lajedo

Ogum-inho veio, Ogum já veio do mar Ogum-inho veio, Ogum, do pé da serra Olha pro céu, filho Que Deus é um bom pai Quem é filho de Ogum Ê, balança mas não cai Ô, gira-ê, giranda Corta a língua desse povo falador Na minha espada eu não tenho embaraço Me chamo Ogum de Lê E o meu peito é de aço Saravá, saravá Ô viva, meu pai Oxalá Saravá, saravá Ô viva Ogum, que ele veio vadiar Ogum de Lê Qué, qué, qué, cereuá Ogum de Lê Qué, qué, qué, maiongá Ogum pisou na pedra A pedra balanceou O mundo tava virado Santo Antônio endireitou Ogum correu da cutela caiu na curela Ogum de Lê Ogum correu da cutela caiu na curela Ogum de Lê Ogum é rei dos ares Ele é iolodê Ogum é rei dos ares Ele é iolodê Ogum já vai embora, ô gente Vai no balanço do vento, ô gente Caboclo já vai embora Já vai pra pedra do ouro Vai buscar o caboclo Que não engole desaforo

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Aldeia d’Água Louvores a Deus, ô viva Nossa Senhora Ô viva, a nossa Aldeia d’Água

Quem nunca viu venha ver Marinheiro pisar no ouro Marinheiro pisar no ouro Marinheiro pisar no ouro

Puxa a linha Marinheiro Marinheiro marinho Puxa a linha Marinheiro Marinheiro marinho

Eu também sei nadar Eu também sei nadar no mar Eu também sei, também sei Também sei nadar

Puxa a linha Marinheiro Marinheiro marinho Essa corrente é pesada É do caboclo marinho

Ligeiro Marinheiro, ligeiro nadador Ligeiro Marinheiro, sua aldeia embalançou

Eu sou Marinheiro, meu pai eu sei nadar Eu vou buscar meu barco no lado de lá Eu sou Marinheiro Eu tenho meu braço forte Eu sou Marinheiro Do Rio Grande do Norte Marinheiro da Vila Velha Eu vi sofrer Marinheiro da Vila Velha Eu vi sofrer Se não fosse Marinheiro Que seria de você Ô Santa Rita Pescadeira Tomaram meu anzol Tomaram meu anzol Eu vou pescar no mar

Seu Marinheiro, não me faz assim Ô embalança o mar, ô traz o Rei Marinho Eu tava na beira do rio Eu vi a Sete-Estrela passar Ô morê, morê, ô morê morá Ô morê, morê, morá Seu Marinheiro, é hora É hora de nós viajar É no céu, é mar, é terra Seu Marinheiro olha o balanço do mar Seu Marinheiro, é hora É hora de nós viajar É nas águas, ó que beleza Dona Sereia mandou me chamar Eu vou vestir de branco Uma calça de funil? Eu vou pegar meu peixe É no balanço do navio

Oê lagoa, pra quê encheu agora Pra quê encheu agora, oê lagoa Mãe d’Água Puxa a corrente do mar, Marinheiro Puxa a corrente do mar, Marinheiro Marinheiro, Marinheiro Eu vim vadiar no terreiro Marinheiro, Marinheiro Marinheiro que balança o mar Marinheiro que balança o mar Marinheiro, Marinheiro Quem te deu esse navio Ó foi meu pai Ogum, ô lá na beira do rio

Ô Mãe d’Água sai do poço Ô Mãe d’Água orixá Essa Mãe d’Água é de ouro Ela só vem vadiar Chegou a Mãe d’Água, chegou Chegou a Mãe d’Água, Sereia Chegou a Mãe d’Água, chegou Mais o Peixe Marinho, é Baleia A Mãe d’Água tem, tem sua morada A morada dela é nos olhos d’água

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Ô Mãe d’Água, ô Mãe d’Água Mãe d’Água cabelo louro Ô Mãe d’Água, ô Mãe d’Água Ô Mãe d’Águinha do forte do mar Puxa areia, puxa areia A Mãe d’Água tem, a Mãe d’Água me dá Um laço de fita pra eu vadiar Tomara que chova logo Tomara que não deixe de chover Para chover água de cheiro Nos pés de meu pai Baluaê Mãe d’Água é rica, é rica Mãe d’Água tem cabedá Mãe d’Água paga dinheiro Para ver Dois Dois vadiar Ô brinca Mãe d’Água vadeia Sereia Chegou os caboclos de aldeia Ô brinca Mãe d’Água vadeia Sereia Chegou os caboclos de aldeia Ô Mãe d’Água Ô princesa do mar Solta seus cabelos Deixa o barco navegar Eu já vou embora eu não posso demorar Deixei minha vela acesa na praia do mar

Sereia Eu estava no meio do mar Quando ouvi uma voz me chamar Eu estava sentado em uma pedra Ouvi a voz do caboclo Sete-Serra Eu sou Sereia minha mãe passeia Vivo navegando pelas ondas do mar Eu sou Sereia Vivo navegando pelas ondas do mar Mamãe serei-ci, mamãe Sereia Ai, ai, meu Deus, mamãe Sereia do mar Ô, Sereia, você hoje cai n’água Você tem Baluaê, você tem Mãe d’Água

Eu sou Sereia, Sereia Ô minha gente venha ver, a Sereia a vadiar Saia do mar, minha Sereia Saia do mar, vem brincar na areia Quando eu saí do meu mar Eu louvei Maria Louvei meu pai Sete-Serra E Nossa Senhora da Guia Por cima do mar azul, eu avistei uma sereia Por cima do mar azul, eu avistei uma sereia Eu avistei a Janaína Dos milagres das candeias Ê, ê, á, sereia no mar, Sereia Ô, rê, rê, bate couro na aldeia Ô, rê, rê, bate palma pra Sereia Bate palma pra Sereia que ela veio do mar Ela veio de longe, ela veio saravá No fundo do mar Eu tenho uma pedra Quem fizer mal pra mim Eu tenho meu pai Sete-Serra Eu sou Sereia Moro na pedra redonda Cheguei agora que mandaram me chamar Ó filho, venha receber A tua herança que mandaram te entregar Mas ela já se foi Até um dia quando eu encontrar Ó filho, venha receber A tua herança que mandaram te entregar Ô, eu já vou, já vou, já Vou-me embora pro lado de lá Vou-me embora pro lado de lá Senhor do Bonfim é quem vai me levar

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Tupi-Mergulhão Arrodeia a serra do rio ribeirão Arrodeia a serra do rio ribeirão Caboclo d’água é Tupi-Mergulhão

Janaína Trovão roncou no mar Relâmpago clareou Caô, meu pai Xangô Ô você traz Dona Janaína Branca de Neve, cadê Janaína Mas ela é rainha do mar Cadê aquela menina Sou eu, princesa, chegou a baronesa Sou eu, princês Vamos saudar nosso Deus de grandeza Chapéu de couro, meu Deus, abençoado Me dê licença eu entrar nesse reinado Iemanjá é minha mãe É mãe jarê Mora lá no poço fundo É mãe jarê

Ô meu pai O que é que houve na aldeia E ô meu pai Por que tá mandando me chamar Quem quiser ver Iemanjá Quem quiser ver Iemanjá Joga flor n’água amanhã Joga flor n’água amanhã Mas eu tava na beira do rio Quando minha joia perdeu Eu vou buscar a minha joia Que Peixe Dourado me deu Ô, Dona Janaína Princesa do mar Ô, quem governa as águas É caboclo de amaiçá E olha, olha alu belô E olha, olha alu belô Quando eu entrei nas águas Minha pedra rolou Quando eu entrei nas águas Meu Deus olha alu Belô

São Sebastião Eu tava na beira do rio Eu vi a Sete-Estrela passar É Janaína do mar Espanha Ela é princesa dos orixás Ô Ína, Jocina, ô Ína Marajô Ô Ína, Jocina Meu relâmpago é na lua Ô Ína vem me ver Jocina vem olhar Odé de Lê manda recado Reparrê, sou Iemanjá Iemanjá, é coroada É coroada, Iemanjá É coroada

Ó meu São Sebastião Sua espada está no mar Tá cravada numa pedra Só Jesus para arrancar Ô meu pai, ô minha mãe Sou eu, São Sebastião Não deixa eu cair no chão São Sebastião é d’água Ele é d’água, ele é d’água São Jorge na porta bateu São Jorge na porta bateu Passei a mão na fenda para ver quem é É São Sebastião, guerreiro de umbanda Ele é rei, é rei

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Xangô Gritou lá na mata Pra quem é de Xangô A machada tem dois cortes Pra quem é de Xangô A bando-ê, a bando-á Filho de umbanda não cai Para quem é filho de Xangô Trovão roncou no mar Relâmpago clareou Caô, meu pai Xangô Força de Deus aqui chegou Trovão roncou no mar Relâmpago clareou Chegou senhor Xangô Foi Santa Bárbara quem mandou Eu ia passando Eu não ia chegar Eu ouvi a voz foi de Iansã Rompe Xangô você é o rei dos orixás Eu sou rei dos ares O meu nome é São Jerônimo Eu sou rei dos trovões, eiá Meu nome é Xangô Deí Ô Deí, ô Deí Xangô Deí Caminhei, caminharei Caminhei, caminhará Caminhei sessenta léguas Pra chegar no canzuá O senhor parece escouro Que o Expedito ê vem aí O Expedito vem cantando Caô cabileci Ô caô, caô, caô, ô meu senhor Louvado seja, meu senhor Senhor Xangô Nesse terreiro chegou Ô, lá no alto daquela pedreira Eu vi o grito de Ari Xangô Caô, caô, caô, cabiecilê

Xangô de ouro, Xangô de prata Aqui chegou Xangô, meu Deus De madrugada Xangô não é meu, é de Oiá Eu mandei pra Bahia, assentar Eu mandei pagodô pra levantar Mas Xangô não é meu, é de Oiá Xangô é meu, Xangô Xangô é Baluaê Xangô também veio do mar Xangô também veio valer Orerê, orerê, orerê oê nagô Relâmpago é pra Iansã Trovão é pra mim Xangô Ai, ai, ai, meu Xangô é de pena, meu Deus Ai, ai, ai, meu Xangô é de pena, meu Deus Ai, ai, ai, meu Xangô é de fogo, meu Deus Ai, ai, ai, meu Xangô é de fogo, meu Deus Xangô está na hora, que o vapor assobiou Xangô está na hora, que o vapor assobiou Você não conhece a chamada de xangotô Quando Oiá falou Que Xangô gemeu O povo desta casa, Oiá, Oiá Todo se tremeu Oiá, Oiá Oiá de Deus Xangô já vai embora Vai pra sua cidade lá no juremá Um abraço para os que aqui deixa Embora com saudade ele vai orar Adeus, adeus, até um dia quando ele voltar

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Sete-Serra Ô meus caboclos veio Veio, veio, veio Ô meus caboclos veio Comer fruta no Pará-ê Sou eu, Sete Serra Eu tiro pemba em aroeira Sou eu meu pai Minha morada é em cachoeira Passeando pela mata da macumba Como vai, como passou, seu moço Deus que lhe dê boa noite, seu moço Deus que lhe dê boa noite, camarada Pegue esse boi, calunga Amarra no mangueiro, calunga Tira o couro dele, calunga Pra fazer pandeiro, calunga Você matou seu pai, calunga Mas não mata o meu, calunga Olha lá seus filhos-de-santo, calunga Pra não se atrapalhar, calunga

A galha do pau caiu Com o peso dos orixás Tenha fé em Deus, orixá Caiu, torna a levantar Onde está seu Sete Serra Aê abaeçá Eu tava no caminho da jutaia Esperando rei de Ogum passar Meu povo, adeus Que eu vou de mundo afora Vou ver Ogum lá em Aruanda Com Deus e Nossa Senhora Com Deus e Nossa Senhora Eu vou ver meu pai Ogum Me dê licença Oxalá Pra visitar dolorum Quando os passo canta Que a manda chora Quando os passo canta É caboclo que já vai embora

Força da mata Ó o rei, ó o rei, ó o rei de Napoleão Quem foi que matou a baleia Foi o mesmo que matou o dragão Ô viva, viva o rei, viva o rei de Napoleão Esse caboclo é duque É duque da mata Esse caboclo é duque, meu Deus Ele tem penacho Eu andava em um caminho Encontrei com três judeus Meu Jesus que povo é esse Jesus me arrespondeu Caboclo duque da mata São Judas de fariseu Deus que lhe dê boa paz Jesus que me dê boa luz Nós sabemos o dia de hoje, meus irmãos E amanhã só quem sabe é Jesus

Ô zum, zum, zum, zoou na aldeia Ô zum, zum, zum Na aldeia de caboclo brabo Eu sou um caboclo que moro nas matas Sou companheiro de sultão das Matas Eu já vou embora Minha morada não é essa Eu já vou embora Minha morada é na floresta

Índio Chefe dos índios chama os índios na aldeia Chefe dos índios chama os índios na aldeia Na aldeia, caboclo, na aldeia Na aldeia, caboclo, na aldeia Ô êra, ô êra, ô êra Seu rei das flores passou por aqui Ô êra, ô êra, ô êra Quem foi que trouxe índio bravo pro peji

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Chegou Índio da mata dos cangojis Cheguei agora eu vi as penas sacudir Chegou Índio da mata da juremeira Eu sou um caboclo Que só ando é nas carreira Ó Índio ê, ó Índio á Chegou da mata bruta Com todos seus orixás Caboclo da mata o que é que come Folha verde de guiné Se não achar a folha verde Come a folha que tiver Tupinambá é índio Tupinambá não erra Tupinambá é índio Ele é vencedor de guerra Tupinambá chegou, Tupinambá chegou Tupinambá chegou da torre de Babilônia Da torre de Babilônia Caboclo índio eu sou pelegrino Cobra coral, eu sou filho teu Mas toca fogo na areia do mar Caboclo índio ele veio vadiar Ô uma nuvem roxa Derramou água no mar Ô graças a Deus Chegou eu Tupinambá

Eru Eru, Eru, ô Eru trabalha bem Eru trabalha na macumba Nas horas de Deus, amém Pai, divino espírito santo Nas horas de Deus amém Ô deixa eu me benzer primeiro Pra livrar de algo, porém Caboclo Eru, olha ele, olha ele Caboclo Eru olha ele olha lá Com as santas forças Não tem nó que não desata E o nó que eu dei só Jesus pra desatar

Eru turrou na mata, o povo se assustou Aê, Eru, Eru da mata eu sou Eru, Eru, ô Eru é caboclo bravo Eru não conhece gente Eru só conhece mato Caboclo Eru, no Brasil ele é guerreiro Caboclo Eru, no Brasil ele é guerreiro Ele é malcriado, pra quem bole com ele Ele é malcriado, pra quem bole com ele O samba de Eru é pesado É pesado, é pesado Ô samba Eru, êá, o samba do mato é bom Eu sou caboclo Eru, eu vim obedecer Eu sou caboclo Eru, eu moro é no massapê

Sultão das Matas Auê, auê, Sultão das Matas Sultão quem lhe chamou foi eu A onça só teve de medo Foi do gemido que o Sultão deu Aê, boca da mata Ô deixa os caboclos passar Aê, boca da mata Pra ele poder saravá Quando eu andava em um caminho Eu encontrei com Nossa Senhora Aê, pai-de-santo Sultão das Matas chegou agora Caboclo rompe mata Fura abelha e bebe mé Não mexe com Sultão Quem não sabe ele quem é Eu sou um caboclo que moro nas matas Ô eu me chamo é Sultão das Matas Sultão, Sultão Mas o rei dos caboclos é Sultão Sultão, Sultão Não tem medo de pisar no chão

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Sultão da Mata não tem roupa Sultão da Mata só anda é nu Sultão da Mata não tem panela Sultão da Mata só come é cru Sultão ê, meu pai Sultão veio vadiar Sultão da boca da mata Ele é o rei dos orixás Sultão da Mata matou um passo de pena Sultão da Mata matou um passo de pena Ê, ê, ê, lá na aldeia da jurema Ê, ê, ê, lá na aldeia da jurema Na minha aldeia tem cobra preta Na minha aldeia tem jaracuçu Eu botei o meu joelho no chão Dei um grito bem alto na chegada de Sultão Na minha aldeia tem cobra preta Na minha aldeia tem jaracuçu Ajoelhei, botei meu ouvido no chão Dei um grito e um assovio na chegada de Sultão Sultão da mata verde Ê, ê, ê, ê, ê, á Sultão da mata verde Ê, ê, ê, reparrê mata pesada

Sou Gentio, sou Gentio, sou Gentio Eu sou Gentio minha mãe vim vadiar Eu sou Gentio Acompanhado de Alemanha, mamãe Sou Gentio, sou Gentio, vim vadiar Eu vim aqui hoje Vim matar minha cegueira Eu sou caboclo bravo Sou Gentio de capoeira No fundo do mar Tem uma fonte bela Aonde o rei Gentio Bebe água nela Gentio, meu irmão Camarada meu Sai da tua aldeia E vem brincar mais eu Eu sou um caboclo de opinião Eu sou Gentio guerreiro De bom coração

Jurema Ê, juremeira, ê, juremá A folha caiu serena, Jurema Dentro desse congá Ô, Jurema de cá, Ô, Jurema de lá É, Juremeira, é Juremeira

Gentio Gentio da minha aldeia Vem brincar mais eu Nas horas de Deus Quem chamou Gentio foi eu E ô, Gentio Tanto que eu te chamo que demora é essa Ô, meu pai Mas eu tava no mato jogando flecha Sou Gentio, sou gentiler Sou Gentio, sou gentiler Ai, ai, ai Sou Gentio da manda chora Sou Gentio da manda chora

Eu vou beber minha jurema, dê no que der Lá no pé da juremeira, dê no que der A jurema é boa, dê no que der Eu vou beber minha jurema, dê no que der A galha do pau caiu Com o peso dos orixás Tenha fé em Deus, orixá Caiu, torna a levantar Meu irmão, vou lhe pedir Vós queirais me perdoar A jurema do peji, ô meu irmão Vós dais um pouco esse orixá

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Caboclo bebeu jurema Caboclo se embriagou Com a folha do mesmo pau Caboclo se levantou

Ô pedra, ô pedra, ô pedra Aquela pedra ela é meu guia Ô pedra, ô pedra, ô pedra Aquela pedra que o Mineiro queria

Ê Jurema, é o pau que não bambeia É o pau que não bambeia, Jurema Aqui nessa aldeia

Ô pedra, ô pedra, ô pedra Aquela pedra é pra nós curá Ô pedra, ô pedra, ô pedra Aquela pedra é de Oxalá

Ô flor, que tanto cheira Mas é a flor, meu Deus, da juremeira Seu Juremeira, aonde vai Eu vou pra minha terra Seu Juremeira, espera eu Que eu vou vencer a guerra

Eu sou Mineiro Eu sou de luz Eu vim da Lapa De bom Jesus Ô, Mineiro, ô, Mineiro Ô Mineiro paragadá Sou caboclo, sou Mineiro Ô Mineiro paragadá

Turco Leão Leão, é turco Leão é vencedor Leão é rei das feras Mora no jardim das flor Puxa na linha do Turco Leão Ê, vem, ê, vem Puxa na linha do Turco Leão Ê, vem, ê, vem Ô Leão, ô Leão Meu pai é rei Leão E você, Rei dos Leão

Mineiro Quando a aldeia mineira chegar Ai, ai, meu Deus Ai, ai, meu Deus Quando a aldeia mineira chegar Ô, Mineirinho, ô, mineirá Eu venho de longe terra Da aldeia do lajeá Ô Mineiro, ô, Mineiro Ô Mineiro da lavra sou eu Ô Mineiro, ô, Mineiro Ô Mineiro da lavra chegou eu

Olha onde você pisa, caboclo Olha sua pisada, caboclo Deus guia seus passos pra frente, caboclo Olha sua pisada, caboclo Ô Mineiro tremeu, tremeu Ô Mineiro tremeu, meu Deus Ô Mineiro tremeu, tremeu Chegou nas horas de Deus Eu sou de mina Eu sou de mina Eu sou de mina De Minas Gerais Eu sou de mina Mineiro estava na serra O barranco desmoronou Mineiro chama seu povo Que mineiro é curador A aldeia me chama não posso faltar Cadê meu pai-de-santo nesse canzuá Eu vou furar meu peito com a lança fina E aparar meu sangue com a mão divina

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Oxóssi

Jericó

Ê vem Oxóssi, com seu cavalo Com sua lança e a sua espada na mão Com seu penacho, deixa correr Vamos saravá Ogum de Lê

Eu passeava em tão bela aldeia Eu passeava em tão bela rua Ó, que beleza Seu Jericó no clarão da lua

Oxóssi foi pra mata A mata embalanceia Oxóssi volta alegre Quando a capanga vem cheia

Ô, lua Que noite bela Eu só queria Conversar com ela

Oxóssi é, Oxóssi é o que Oxóssi é, Oxóssi é o que Salve a lua nova Salve o arerê Salve a lua nova Salve o arerê

Ô, lua, eu vi a lua Ô, que moça bela Ô, lua, eu vi a lua Eu conversei com ela

Senhor Oxóssi eu atirei na areia Senhor Oxóssi eu atirei na areia Atirei na areia, atirei na areia Atira, atira, atira Eu atirei pro ar Atira, atira, atira Eu atirei pro ar Eu atirei senhor Oxóssi Mas não foi para matar

Jericó velho, boiadeiro Meu pai tenha pena de mim Mas eu vim pela mata de flor Ô, valei-me, Senhor do Bonfim Que povo é esse Ô, que mandaram me chamar Mas é o povo dessa casa É o meus irmãos Meus amigos leá

Tomba-Morro Ô lico tico, lico tico, lico tico é Quem quiser pegar caça Vai armar mundé Quem manda no mato é Oxóssi Oxossi é caçador, Oxóssi é caçador Eu vi meu pai assoviar Eu mandei chamar É em Aruanda, ê, é em Aruanda, á Sou pena verde da umbanda É em Aruanda Não toca fogo na mata Na mata tem morador De lá da mata chegou Oxóssi velho curador Ê Oxóssi onde é sua morada Eu moro é na mata bruta Naquela mata fechada

Eu me chamo é Tomba-Morro Eu não sou de brincadeira Eu vou tombar as minhas pedras Lá no pé da cachoeira Meu pai eu vou te pedir Com a dor no coração Tomba-Morro ê vem aí Eu não quero ele aqui não A cancela bateu, quem vem lá É Tomba-Morro, meu Deus A cancela bateu, quem vem lá É Tomba-Morro, valha-me Deus Tomba-Morro mora, no pé da serra No pé da serra, meu Deus Tomba-Morro mora

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Ô, vamos tombar o morro Ô, vamos tombar o morro De cabeça para baixo As água levam

Preto Velho, Preto Velho Preto Velho curador Comigo ninguém topa Comigo ninguém topou

Eu já tombei, mandei tombar As pedras finas no meio do mar Eu já tombei, mandei tombar As pedras finas no meio do mar

Passei na porta de um bar Me chamaram de cachaceiro ‘Sê besta, moleque ousado Se eu bebo é com meu dinheiro

Tomba-Morro onde você mora Eu moro é no pé da serra Ô quando precisar de mim me chama Que eu venho vencer a guerra

Meu pai ê vem o velho O velho vem do mar O velho de tão velho Que não pode mais andar

Por cima daquele morro Só vejo pedra rolar Debaixo daquele morro Só vejo cobra piar

Meu pai ê vem o velho O velho ê vem de aldeia O cabelo do velho De tão alvo que alumeia

Deus lhe dê boa viagem Deus lhe dê boa viagem Nas ondas do mar sagrado Eu não digo o meu nome Eu só ando é calado Eu me chamo é Tomba-Morro E o que eu tombei está tombado

Mamãe Catarina Balaio de fulô Balaio de fulô Balaio de fulô

Preto Velho Chapéu de couro, por Deus abençoado Me dá licença pra eu entrar nesse reinado É meia-noite quando o galo cantou É de manhã o dia já amanheceu Seu Preto Velho pegou sua espada Para debater com seus inimigos Olhei pro céu, vi a estrela correr Olhei pra baixo, vi a pedreira rebolar Seu Preto Velho pegou sua espada E a Sereia cantou no meio do mar Preto Velho, Preto Velho Preto Velho do canjarê Comigo é na macumba No azeite de dendê

Nagô Ô Nagô Ína orixá Nagô rerê Ô Nagô Ína orixá Nagô rerê Chegou Nagô, bandeira Chegou Nagô velho, curandeira Lá no cacho do dendê Eu vi Nagô gemer Eu vi Nagô gemer Nagô, Nagô, Nagozága Nagozága de nagô Rainha da costa d’água Meu Deus para onde eu vou Nagô trabalha com dendê, farofa e vatapá Na linhagem de nagô Nunca puderam derrubar

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Ê cum, ê cum aê Nagô trabalha é com dendê Ê cum, ê cum aê Nagô trabalha é com dendê

Baluaê veio de aldeia Ele veio com seus orixás Ô viva Deus, viva todo o santo Lemos Ô viva nossa aldeia real

Nagõ velho, jarê O que é que veio fazer Mas eu vim vadiar no terreiro Valei-me, minha mãe, valei-me

Baluaê tem seu dia Nana-ê tem seu dia Baluaê tem seu dia Nana-ê tem seu dia

Eu venho de beira-mar Eu venho jogar meus búzios Eu venho de beira-mar Nagô trabalha é no seguro

Nanã Ô Nanã borocô, quem tremer, cai, cai Quem tremer, cai, cai Quem tremer, cai, cai

Oxalá Oxalá, Oxalá, Oxalá Ele é de Oiá Oxalá, tintin Oxalá meu alamim Oxalá, meu pai Tem pena de mim, tenha dó A volta do mundo é grande Os poderes de Deus, o seu é maior

Ô Nanã no-ê Ô Nanã no-á Ô Nanã no-ê Oxum já veio do mar Ela traz consigo Três pedras de ouro Para repartir, ô Com seus filhos todos Ô Nanã ê Nanã ê Nanã ê totô Nanã ê totô Nanã ê totô

Baluaê Perdoa Baluaê, com todos os orixás Perdoa Baluaê Pelo amor de Nossa Senhora Abaluaê, Abalorixá-ê Ouça meus pedidos, Obá Nas ondas do mar, ê Baluaê, atotô Baluaê, arê-ô Baluaê, atotô Baluaê, arê-ô Meu pai, ê vem o velho O velho vem do mar O velho de tão velho Que não pode mais andar

Nanã quando despede Despede com alegria Adeus santo terreiro Adeus até um dia Quem passeia na varanda É o senhor Baluá Quem passeia na varanda É o senhor Baluá Mas quem passeia na varanda É o senhor Baluaê

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Boiadeiro O dia já amanheceu Tá na hora Tá na hora do gado chegar Ô, tá na hora De lá de cima desceu uma boiada Uma boiada que Odé mandou Senhor Odé é um bom patrão Senhor Odé é um bom senhor Seu Boiadeiro, catingueiro E não deixa o gado passar Sou filho de mamãe da lua Sou neto de Oxalá Seu Vaqueirinho do norte Eu vim boiar Eu vim boiar meu gado Eu vim boiar

Você me chama Boiadeiro Eu não sou Boiadeiro não Eu sou tocador de gado Boiadeiro é meu patrão Eu sou Boiadeiro Eu gosto de vaquejar Eu sou Boiadeiro Gosto de negociar Em cima do morro, queu, queu Que a onça pegou meu cachorro Quero couro de jaleco Pra vender meu jaleco de couro Cetroá, cetroá A minha corda é de laçar Cetroá, cetroá A corda de laçar meu boi

Boiadeiro não é meu Boiadeiro é de alguém Quem falar de Boiadeiro Falou de mim também

Ô na minha boiada Me falta um boi Eu não sei se é um Eu não sei se é dois

Vaqueiro, Boiadeiro, oê Vaqueiro, Boiadeiro, oeá

Vaqueiro, quando o dia amanhece É hora de Vaqueiro trabalhar Vaqueiro, chama seu bando Que a bezerrada vai logo chamar

Quando eu vim de Minas De Minas para o sertão Comida de Boiadeiro É coalhada com requeijão Vaqueiro velho Ensina vaqueirinho Tem paciência com ele Que ele é pequenininho Seu Boiadeiro lá na mata choveu Choveu, que abarrotou Foi tanta água que meu boi bebeu Seu Boiadeiro Foi tanta água que meu boi nadou Olha a ponta do laço, Vaqueiro Boi vai pegar Boi vai pegar Na porteira do curral

Vaqueiro vai embora Que o dia já amanheceu Fugiu uma novilha E a novilha que o patrão lhe deu E ô Hilário, cadê meu gado E ô Hilário, meu gado não está Patrão, seu gado fugiu Hilário veio me avisar Na hora de eu viajar Olha a estrela, olha a estrela Olha a estrela matutina Boiadeiro olha a estrela

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Odé Cadê Odé, meu pai Cadê Odé Nós estamos batendo couro, meu Deus Cadê Odé Odé de Lê Pisa na ponta do pé Pisa na ponta do pé Odé de Lê, de Badé Odé, Odé, Odé mim tatá Odé, Odé, Odé mim tatá Odé mim tatá, Odé Odé, mim tatá

Italiano Italiano da Itália Sabe ler, sabe escrever Sabe ler, sabe escrever Sabe ler Italiano, Italiano Italiano e mamãe Santa Bárbara Italiano, Italiano Ele chegou na maleta d’água Italiano não une com inglês Italiano não une com Japão Italiano só acredita Naquilo que tá na mão

Deú não é menino Que se engana com tostão Deú não é menino Que se engana com tostão Só lembra de Deú na hora da precisão Só lembra de Deú na hora da precisão Dois-Dois não é meu Dois-Dois é de titia Dois-Dois não é meu Dois-Dois é de titia É pra pagar a língua dela Que falava todo dia São Dois viajeiro Que viaja no mar São Dois viajeiro Que viaja no mar A barca virou, pesou Dois-Dois quer nadar A barca virou, pesou Dois-Dois quer nadar Dois, Dois, Dois, ‘Taliano É Dois, é Dois, é Dois, ‘Taliano Dois-Dois não brinca Dois-Dois não erra Só entra no terreiro Com seu batalhão de guerra A pancada do tambor Abalou meu coração Abala mas não abala Viva Cosme Damião

Cosme Ô, Viva, ô, viva Ô viva Cosme Damião Ô Viva Cosme Damião meu pai Vós me deis licença A casa pode, meu pai O terreiro aguenta seus filhos

Ô Cosme Damião, mas cadê Deú Cosme Damião com todos seus orixás Ô Cosme Damião, ô viajou por água No som dessa corneta, todos dois, nadava Dois-Dois é rosa É sucena, é sucena É a flor cheirosa

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Cosme Damião A sua casa cheira Cheira a cravo e rosa Cheira à flor da laranjeira Ô Cosme, ô Cosme Ô Damião mandou chamar Ô chama ele Na carreira Pra vir brincar com Iemanjá São Cosme, São Damião Vieram de beira mar Ajuda o dono da casa em primeiro lugar Ajuda eu, São Cosme Ajuda eu, sambar Cosme veste verde Damião veste azul Santa Bárbara veste branco Na hora do cariru E a barquinha de Dois-Dois remou E a barquinha de Dois-Dois remar E a barquinha de Dois-Dois remou E a barquinha de Dois-Dois remou no mar Ê, Cosme Damião chegou Ê, Cosme Damião chegou Cosme bate caixa, Damião bate tambor Cosme dá remédio, Damião é curador Dois-Dois neném de ouro Ele é pai coroa-ê Dois-Dois neném de ouro Ele é pai coroa-ê Cadê meu anel de ouro Que eu perdi no mar azul Quem achou foi Deú

Ê vem Cosme, ê vem Damião Ê vem ele com a bandeira na mão Cadê a galinha de Dois-Dois Tá na cozinha cozinhando Dois-Dois é meu leá Tá comendo a galinha e não me dá Cosme Damião, a sua casa cheira Cheira a cravo e rosa Cheira à flor da laranjeira São Cosme, São Damião Que vieram de beira mar Ajuda o dono da casa em primeiro lugar Ajuda eu, São Cosme, ajuda eu, sambar Viva Cosme Damião Viva Cosme Damião Viva com muita alegria Viva com muita alegria Ajudai nós alcançar Ajudai nós alcançar O outro ano neste dia O outro ano neste dia Ô, Cosme, ô, Cosme Vamos pro lajedo Ô, o lajedo é frio Mas pra Cosme não faz medo Ô meu mano adeuzim Ô meu mano adeuzá Eu vou embora Pro meu canzuá Até amanhã, se Deus quiser Até outra hora, se eu aqui vier

Tapuia Mãe d’Água é rica, é rica Mãe d’Água tem cabedá Mãe d’Água paga dinheiro Para ver Dois-Dois vadiar Italiano da Itália Sabe ler, sabe ler, sabe escrever Sabe ler, sabe ler

Tapuinha veio, veio vadiar Tapuinha veio, veio vadiar Ô ela só deve vir Tapuia do forte do mar Ô ela só deve vir Tapuia do forte do mar Tapuinha menina, tá de viagem Tá de viagem, vai viajar

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Cantigas para qualquer caboclo Sou filho da macumba Não posso negar Sou filho da macumba Não nego meu naturá Sou filho da macumba Sou filho de macumbebê Sou filho da macumba Sou neto do jarê De quem é, de quem é De quem é que eu vou ter medo Mas se eu sou feito da macumba De quem é que eu vou ter medo Eu estava no meio do mar Mas quando ouvi uma voz me chamar Eu estava sentado em uma pedra Ouvi a voz do caboclo Sete-Serra Pisa no chão devagar Você pisa no chão devagarinho Pisa no chão devagar Você pisa no chão devagarinho Não tenho pai, não tenho mãe Mas o que é que eu vou fazer Só tenho por mim Jesus E o velho Baluaê Não tenho pai, não tenho mãe Ê, lá nas matas eu me criei Com a idade de doze anos Meu pai era africano Que sina trouxe eu Ele é o caboclo da macumba Ele é o caboclo macumbeiro Ele sabe a macumba onde está, ê Se me pagar a macumba eu vou buscar Ô mãe onde é que eu me escondo Ô mãe, o que é que eu vou fazer Ô mãe, cadê minha samambaia, minha mãe Para me esconder para a onça não me ver

E olha a palha do coqueiro, olha lá Se meu caboclo for embora eu vou buscar Olha aê, olha lá Se meu caboclo for embora eu vou buscar Eu sou um caboclo de Minas Eu venho de Minas Gerais Aqui não é terra de Aruanda Em Aruanda só se anda devagar Ô, mãe, eu vou para a mata Vou à procura de uma moita de espim Ô mãe, me ajuda a me esconder Minha mãe Tem feiticeiro procurando por mim Joguei minha flecha para cima Não sei onde ela foi cair Ela caiu numa aldeia tão longe, minha mãe Aldeia longe, aldeia dos cariri Nunca atirei a minha flecha Nunca atirei pra não ver cair Eu joguei minha flecha pra cima E acertei uma juriti Ogum é meu, Ogum é meu Ogum é meu, foi meu pai que me deu Ogum é meu Eu bem disse camarada, que eu vinha Na sua aldeia, camarada, um dia Eu já vou embora Lá pra marojia Meu pai Sete Serra Segura na sua filha Adeus, surpresa Rainha das Flor Quando você for Me leva que eu também vou Xangô já vai-se embora Vai pra sua cidade lá no juremá Um abraço para os que aqui deixa Embora com saudade, ele vai orar Adeus, adeus, até um dia quando ele voltar

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Ô, eu já vou, já vou já Vou embora pro lado de lá Vou embora pro lado de lá Senhor do Bonfim é quem vai me levar Adeus, adeus, adeus pátria, adeus O céu é luz, adeus pátria, adeus Eu já me embora, eu não posso demorar Meu pai tá me chamando Ô lá no forte do mar Na pancada do couro, eu vim Na pancada do couro, eu vou embora Eu já vou embora Minha morada não é aqui Eu já vou embora Minha morada é no peji Ô mãe, quando for a senhora me leva Me leva, minha mãe, pra sua aldeia Ô mãe sou seu filho e estou cansado Ô mãe, de viver na terra alheia Passa a nuvem Torna a passar Clareia as estradas Que é hora de eu viajar

Cantigas de sotaque Pisa no leguedê, escorrega Quem não sabe andar escorrega Pisa no massapê, escorrega Quem não sabe andar escorrega Ô quebra cabaça, machuca semente Chegou o povo que fala da gente A língua que fala o que não vê Merece fritar no dendê A língua que fala o que não é Merece cortar pelo pé Pisa, caboclo, que eu gostei de ver pisar A pisada do caboclo faz a areia esparramar

Pisa caboclo, não me atrapalha Deixa eu comer Deixa eu beber minha sapucaia Minha sapucaia é de Aruanda Não tem mestre que não coma Que não beba e que não caia Sou eu que me deito tarde Sou eu que acordo cedo Sou eu que ando jurado De jura eu não tenho medo Deú não é menino Que se engana com tostão Deú não é menino Que se engana com tostão Só lembra de Deú na hora da precisão Só lembra de Deú na hora da precisão Dois-Dois não é meu Dois-Dois é de titia Dois-Dois não é meu Dois-Dois é de titia É pra pagar a língua dela Que falava todo dia

Cantigas de trabalho ritual Ô meu Jesus de Nazaré, olha ele Olha ele meu pai Oxalá Com as santas forças Não tem nó que não desata E o nó que eu dei só Jesus pra desatar Oxóssi matou um boi Na porteira do curral Olha lá, venha ver Venha ver meus orixás Ora viva aí, reviva João Viva e reviva João Viva São Cosme, São Damião Viva São Cosme, São Damião O galo já cantou Damião O galo já cantou Damião É hora de oração, Damião É hora de oração, Damião

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O galo já cantou Eu não sei que horas são Vamos fazer a matança Para são Cosme Damião

Ô é de um a um É de dois a dois Ô Cosme Damião Ele é Dois Dois

Ô idedé conecô ibunecô Idedé conecô ibunecô Catuléça Tirará mucunã Ô idedé conecô ibunecô

Cosme Damião A sua casa cheira Cheira a cravo e rosa Cheira à flor da laranjeira

Cocorocô, o galo já cantou Cocorocô, o galo já cantou Ô dentro desta casa Vai chegar dois curador É dois curador, não é dois feiticeiro São dois raizeiros que chegou pra trabalhar

São Cosme, São Damião Que vieram de beira mar Ajuda o dono da casa em primeiro lugar Ajuda eu, São Cosme Ajuda eu, sambar

Cantigas de mesa e de reza para Cosme Viva Cosme Damião Viva Cosme Damião Viva com muita alegria Viva com muita alegria Ajudai nós alcançar Ajudai nós alcançar O outro ano neste dia O outro ano neste dia Cosme Damião Vem comer seu cariru É de todo ano Fazer cariru pra tu Vinte e sete de setembro Cosme Damião e Deú Até os peixe das água Comeu o seu caruru Ô vamos levantar o cruzeiro de Jesus No céu, no céu, no céu da santa cruz Cadê a galinha de Dois Dois Tá na cozinha cozinhando Dois Dois é meu leá Tá comendo a galinha e não me dá Ô Cosme Damião Eu já comi seu vatapá Quero que me dê O salão pra vadiar

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(item não disponível na versão eletrônica da tese, podendo ser encontrado junto à cópia depositada na biblioteca do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional)

Disco com cantigas de jarê gravado pelos membros da Associação dos Filhos-de-Santo do Palácio de Ogum e Caboclo Sete-Serra, reproduzido com sua autorização.

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