As formas classicas, a grande recusa, o absoluto e o amor

July 21, 2017 | Autor: Imaculada Kangussu | Categoria: Herbert Marcuse, Surrealism, Literatura, Louis Aragon, Surrealismo
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as formas clássicas, a grande recusa, o absoluto e o amor
imaculada kangussu




A razão humana, num determinado
domínio de seus conhecimentos,
possui o singular destino de se ver
atormentada por questões que não
pode evitar, pois lhe são impostas
pela sua natureza, mas às quais
também não pode dar resposta por
ultrapassarem completamente as suas
possibilidades.

Immanuel Kant, Crítica da Razão
Pura, A VII








Durante a Segunda Guerra Mundial, a literatura produzida pelas
vanguardas francesas que se uniram à Resistência contra a ocupação nazista
foi foco de reflexão de Herbert Marcuse, em ensaio denominado "Algumas
considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária". Abaixo do
título, na página de rosto do texto datilografado pelo filósofo alemão,
está a data "September 1945".[1] O que significa que o texto é
contemporâneo da literatura sobre a qual discorre, i.e, foi escrito no
calor da hora.[2]
Ao escrever as "Considerações sobre Aragon", Marcuse apresenta a arte
como expressão de Grande Recusa ao totalitarismo vitorioso no mundo em que
ela aparece. Essa oposição é atribuída à alteridade própria à arte, capaz
de criar mundos outros, assombrar as fantasias e provocar a alienação da
alienação. Antagônica, enigmática, estranha, e ao mesmo tempo trincheira
que acolhe faculdades não atualizadas, desejos reprimidos, sonhos
irrealizáveis, ela aparece mais real, porque mais verdadeira no que diz
respeito às intensidades vitais, do que a própria realidade. A idéia de uma
Grande Recusa, cuja existência a arte testemunha, Marcuse toma emprestada
de Whitehead, de Science and Modern World.


A verdadeira relevância das proposições não-verdadeiras para
cada ocasião real é revelada pela arte, pelo romance e pela
crítica em referência aos ideais. A verdade que alguma
proposição a respeito de uma ocasião real seja não-verdadeira
pode expressar a verdade vital relativa à sua realização.
Expressa a "grande recusa" que é sua primeira característica.[3]




Como os mitos, a arte é verdadeira sendo uma mentira que se apresenta
como tal. Em sua recusa a aceitar como definitivas as limitações impostas
às reais possibilidades, ao esquecimento do que pode ser, reside sua função
crítica. Durante a ocupação fascista da França, a Grande Recusa, protesto
contra o estado de coisas dado, só poderia ser expressa livremente na arte.
As criações artísticas preservaram a negação determinada da realidade
estabelecida. O que vem a ser, em outras palavras, a mais pura forma de
liberdade. Marcuse considera o teor de verdade das obras está ligado à
alteridade da arte. Sua autonomia encontra-se entrelaçada à potência de
transcender e com isso relativizar o mundo dado. E ambas, autonomia e
transcendência, são realizadas através da Forma. As formas estéticas
aparecem no mundo e o transcendem: realizam o trânsito entre particular e
universal, o transe do princípio de individuação com a pertença ao gênero.
Fazem parte do que existe e recusam o existente, preservam o horror e o
reconciliam na forma estética – que sempre provoca prazer.[4] A forma
estética provoca estranhamento e força o alongamento do tempo de sua
percepção através das misteriosas apresentações do indizível, labirintos
onde a razão se confunde, e com isso conduz à emergência de uma nova
consciência através de novas formas de percepções, defende Marcuse, tendo
em vista a dimensão política da Forma.
A pergunta que atravessa os textos do filósofo sobre estética busca
saber como a arte pode manter sua força transcendente e continuar a
expressar a Grande Recusa se os mecanismos da indústria cultural parecem
tudo assimilar? Se a pergunta nunca foi respondida de uma vez por todas,
aparecem respostas distintas, em textos diversos, que acompanham o devir
das relações entre arte e sociedade.
As vanguardas européias, a partir dos anos 20 do século XX,
transformaram forma em conteúdo – que com isso não escapou de compartilhar
o destino de todo produto: foi transformada em mercadoria e absorvida pelos
mecanismos do mercado. O problema permaneceu sem solução. Marcuse observa
que o trabalho dos escritores ligados à Resistência representou um novo
passo neste caminho. Os intelectuais envolvidos foram aqueles que se uniram
aos comunistas, dividiram-se na época stalinista e lutaram contra a
ocupação da França pelos nazistas. A raison d'être de sua arte era o
político. Entretanto, tomar o político como conteúdo e formatá-lo em obra
seria entregá-lo ao sistema fascista. A obra de arte precisava "expor a
absoluta nudez da existência do homem, despida de toda a parafernália da
cultura de massas monopolista, completa e absolutamente só, num abismo de
destruição, desespero e liberdade".[5] Marcuse revela o temor de que, nos
sistemáticos esforços para reduzir, ou mesmo fechar, a fenda entre arte e
realidade, pode desaparecer a segunda alienação. A pretensão ao real leva à
perda da transcendência da arte, e a reduz à repetição do dado. "A arte só
pode expressar seu potencial radical como arte, em sua própria linguagem e
imagem, que invalida a linguagem ordinária, a prose du monde".[6]
Em "Algumas considerações sobre Aragon", a principal idéia apresentada
por Marcuse é a de que os escritores que compunham a chamada vanguarda
francesa, saudavam o escândalo ("le scandale pour le scandale") e
reverenciavam Sade e Lautréamont nos anos 20 e 30, durante a ocupação
alemã, adotaram um estilo clássico, austero, e enalteceram o amor e a
pátria. O filósofo se refere nominalmente a obras de André Breton, Position
politique du surréalisme, de Paul Eluard, Les sept poèmes d'amour em
guerre, e de Louis Aragon, Aurélien. O mundo dos escritores franceses
durante a Resistência era constituído pela realidade do fascismo
totalitário. E a linguagem de suas obras reviveu o vocabulário tradicional
e clássico do amor, linguagem aparentemente distante da oposição e da
resistência. Os textos exprimem uma sensualidade que não permite
sublimação. "A sensualidade é o kat'exochen apolítico", observa Marcuse,
"mas em seu caráter apolítico preserva a meta da ação política: a
libertação".[7]
A atualidade desse texto sobre a literatura francesa na época da
Resistência decorre do fato de que a linguagem amorosa e as rimas clássicas
continuam constituindo uma espécie de trincheira em territórios dominados
pelo pensamento monolítico. A potência do amor, como a da arte, depende de
sua força alienadora: de seu poder de permanecer outro, estranho,
antagônico, transcendente à cotidianidade. Portador de mistérios que
permanecem opacos à luz dos conceitos, o amor parece portar em si uma
espécie de alogia constitutiva. E como alienação da alienação, como uma
segunda alienação, em virtude da qual o sujeito se dissocia da sociedade
alienada, o amor como forma artística se torna político a priori. "Amor e
liberdade são uma e mesma coisa"[8], julga Marcuse. Durante a Resistência
francesa, o amor será o portador da promesse de bonheur, "o amor se torna o
a priori político da oposição artística"[9]. Louis Aragon incita:





Mais si parlez d'amour encore et qu'amour rime


Avec jour avec ame ou rien du tout parlez

Parlez d'amour car tout le reste est crime[10]


Seja ligado à alma, ou ao cotidiano, o amor deve ser o assunto, dizem
os versos, "pois todo o resto é crime". A volta dos artistas de vanguarda
às regras da métrica clássica é talvez o aspecto mais surpreendente da
poesia da Resistência. Aragon explica essa volta pela necessidade de salvar
a língua da derrisão total tornando-a instrumento para fazer as coisas
cantarem. É necessário fazer as coisas cantarem, pois já não se pode mais
fazê-las falar sem que falem a linguagem do inimigo. Também em Aurélien
(1945), terceiro romance de uma série que Aragon denomina Le Monde Réel, há
uma volta à forma clássica, às regras tradicionais características do
romance no século XIX. Aurélien segue os padrões do romance social moderno:
apresenta uma época retratando os estratos representativos da sociedade e
refletindo o movimento histórico da época no destino pessoal do herói,
Aureliano, e da heroína, Berenice. A trama parece um padrão aplicado: jovem
esposa pequeno-burguesa deixa a província e seu marido, que é farmacêutico
como o de Emma Bovary, para visitar o primo em Paris, onde se apaixona por
um amigo deste, o boêmio convicto, Aureliano.
Segundo Gérard Lebrun, Aurélien rivaliza com a Educação Sentimental,
de Flaubert, e nele a prosa francesa adquire novas vibrações da extinta
chama surrealista. "Ainda é a língua de Stendhal, mas cavada por dobras
imprevistas, atravessada por relâmpagos e súbitas tempestades. Falar em
estilo, aqui, seria fraco. Há um estilo de Sartre, de Mauriac, de Malraux –
mas há um efeito Aragon. Uma voz ou, antes, mil vozes que se cruzam, que
invadirão vocês, os arrastarão e não os largarão mais"[11].
No início do livro Aurélien, ao conhecê-la, o protagonista considera
Berenice feia, mal-vestida, provinciana, e fica intrigado com os
comentários – originados por seu amigo Edmund – de que ele estaria
interessado nela. Aureliano não entende o que provocara esses juízos. De
fato, ele se sentira atraído pelo nome dela, que lhe evocava terras e
tempos distantes, e só pelo nome[12]. Os afetos de Aureliano vão se
transformando, movidos pelo que pode ser considerado como a "intensidade"
de Berenice. E é quase de repente que Aureliano percebe estar apaixonado,
ou melhor, decide que está apaixonado. O bon vivant resolve:


estou apaixonado.
Dito isto, ficou a ouvir a pedra a cair no poço [...] Só ouvia,
e em si mesmo, aquela palavra pronunciada, aquela palavra imensa
e inesperada... Acabava de escolher de repente o seu caminho.
Sem apelo. Decidira-se. O amor. Seria, portanto, o amor. Era o
amor. Uma alteração total, uma agitação interior. O amor.[13]


A esta passagem, seguem-se páginas de tirar o fôlego, onde é narrado
o arrebatamento amoroso dos amantes, que absorve suas vidas, e cujo ápice é
a descoberta, por Aureliano de que "Berenice avait le goût de l'absolu",
Berenice tinha o gosto do absoluto. E esse gosto, Aragon nos faz ver,
apesar da grandiosidade que o substantivo evoca, é o que pode haver de mais
trágico, é a própria tragédia, é a condenação: aspirar ao infinito em uma
existência finita. A ânsia pelo absoluto será o elemento catalisador do
amor de Berenice por Aureliano, e será também o que impedirá sua
realização. Aragon adverte:


Há uma paixão tão devoradora que não se pode descrever. Consome
quem a contempla. Todos os que se lhe entregaram ficaram seus
escravos. Não se pode experimentá-la e recuar. Estremece-se só
de nomeá-la: é a paixão do absoluto. Dir-se-á que é uma paixão
rara, e até os frenéticos amadores da grandeza humana
acrescentarão: infelizmente. Que se desenganem. Encontra-se mais
difundida do que a gripe, e se é melhor reconhecida quando
atinge os nobres corações, possui formas sórdidas, que acarretam
devastações às pessoas vulgares, aos espíritos secos, aos
temperamentos pouco dotados [...] se quiserem, felicitem-se pelo
que ela pode conseguir dos homens, pelo que esta forma de
ansiedade faz gerar de sublime. Mas isso é só ver a exceção, a
flor monstruosa [...] Contudo, por mais diversos que sejam os
disfarces do mal, pode-se descobrir a pista por um sintoma comum
a todas as formas. Este sintoma é uma incapacidade total para
ser feliz. Aquele que tem a paixão do absoluto pode sabê-lo ou
ignorá-lo, ser levado por ela a governar os povos, a dirigir
exércitos, ou a sentir-se paralisado na vida vulgar, e reduzido
a um negativismo de bairro; aquele que tem a paixão do absoluto
pode ser um inocente, um louco, um ambicioso, ou um pedante, mas
não consegue ser feliz. Ultrapassa sempre em exigência aquilo
que faria a sua felicidade.[14]


Quem tem a paixão do absoluto renuncia a toda felicidade, nenhuma
felicidade resistiria a essa vertigem sempre renovada, ao pathos capaz de
deixar a dona de casa obcecada pelo chão da cozinha, que nunca julga polido
o suficiente. Dependendo de onde se coloca o absoluto, a vertigem que ele
provoca no amor, no vestir ou no poder, nos leva ao encontro de D. Juans,
Byrons, Napoleões... E Berenice precisava encontrar o absoluto em um ser de
carne. Aureliano aparece como um abismo hiante sobre o qual ela se inclina
destemida. O amor de Aureliano reveste para ela os sombrios e maravilhosos
caracteres do absoluto.
Parece que tudo vai chegar a bom termo. Que Aureliano realizará o
desejo de Berenice com seu amor absoluto e correspondido. Entretanto,
depois de poucos e breves encontros dedicados aos jogos amorosos e antes
que os amantes cheguem à cópula, o marido de Berenice deixa a província e
vai à capital francesa, passar as comemorações de fim de ano ao lado da
esposa. Aragon nada diz de Berenice, mas Aureliano se considera violentado.
Torna-se solitário e inimigo de qualquer companhia, amargurado,
melancólico, aflito, enciumado. E assim passa o natal. Certo de ser
correspondido, não consegue suportar a idéia de atravessar a virada do ano
sem a companhia da amada. O desejo e a certeza de encontrá-la levam-no,
depois de se preocupar em fazer-se belo, ao Lulli. O Lulli pertencia a um
casal de italianos, que tinham esse sobrenome, e era o lugar em Paris onde
se encontravam, em busca de diversão, o grand monde e o bas-fond. Aragon
coloca como freqüentadores do lugar personagens reais: Picasso, Renoir,
Cocteau, circulam no local entre outros artistas da época e os personagens
fictícios do romance. Quando, na noite do reveillon, Aureliano chega, nem
Berenice nem ninguém do seu grupo de amigos estava lá. Sustentado por
esperanças e espicaçado pelo desespero, Aureliano espera. É tão forte o
desejo que sustenta a certeza de que é lá que Berenice vai festejar, que,
ao ouvir a contagem regressiva dos últimos segundos do ano velho, quando as
luzes se apagam, Aureliano fecha os olhos, ao soarem as doze badaladas,
certo de que, ao abri-los verá Berenice. Ainda de olhos fechados, sente um
abraço e se entrega feliz. É infinita sua decepção ao perceber que está
abraçado a Simone, prostituta freqüentadora do Lulli e que, já havia algum
tempo, demonstrava forte interesse por ele. A partir daí, Aureliano bebe
tudo o que Simone lhe oferece e, no fim da noite, embriagado, vai dormir na
casa dela. Acorda no dia seguinte, dolorido, com lembranças obscuras e
volta arrasado para casa. É grande sua surpresa e maior seu prazer ao
encontrar lá Berenice insone. E ela, exausta, explica: não suportando a
idéia de ficar longe dele, abandonara o marido, os filhos, a família, os
amigos, na véspera do ano novo e fora a seu encontro. A porta estava
fechada e ela passara a noite sozinha na escada, sentada nos degraus. De
manhã, a moça que trabalhava para Aureliano a fizera entrar. É marcante
então o contraste entre a felicidade de Aureliano ao ouvir o relato e a
desilusão e o desgosto de Berenice ao encontrá-lo evidentemente recém saído
dos braços de outra mulher e, simultaneamente, exultando com a presença
dela, Berenice. Ele não percebia que aquele fora o fim.
Porque Aureliano, padecendo de saudades, cedeu aos apelos e a
consolação de uma prostituta amiga, Berenice o recusa para sempre, como a
um cristal quebrado, conforme suas palavras. Na seqüência, ela desaparece:
para ele, para os amigos, para o marido que abandona, e se refugia nos
braços de um poeta, a quem não ama, condenando a si e a Aureliano a viverem
sem amor, porque não pode aceitar um amor que não seja absoluto.
O contato físico mais intenso que ocorre entre os dois será também o
último e acontece durante um breve encontro, após dezoito anos de
separação, durante os quais Berenice cultivou o amor não consumado de
Aureliano como uma relíquia, que a manteve quase totalmente afastada da
vida dita real. Aureliano, mais sóbrio, abandonou a vida boêmia, constituiu
família e, por algum tempo, esqueceu Berenice. Ele a reencontra quando
passeia no jardim da casa de campo de Claude Monet, por acaso próxima ao
esconderijo de Berenice. A França estava então sob ocupação nazista, e
Berenice tornara-se militante de esquerda. Após uma noite de bebedeiras,
voltando para casa, espremidos em um automóvel lotado, Berenice é atingida
pelas balas inimigas e é nos braços de Aureliano que seu corpo encontra a
morte, esta sim, senhora absoluta.
No romance, Marcuse destaca o impacto causado pela decisão de Berenice
de abandonar o amor, e destruir sua vida, porque o amado dormiu com uma
prostituta, fato que, conforme assinala, até a moral burguesa consideraria
perfeitamente normal. O filósofo percebe aí um artifício capaz de revelar o
que a moral esconde: "a promessa revolucionária do amor".[15] Considerada
como atestado da impossibilidade física de substituir uma pessoa por outra,
a fidelidade personificaria a transcendência, em uma estrutura baseada na
fungibilidade universal. O ato de substituir é necessário à sociedade
fundada nas relações de troca universais. E a cisão entre amor e
sensualidade, "o direito de gozar esta sensualidade sem prejudicar o amor,
pertence às liberdades sagradas do indivíduo burguês", que ao tomar esta
liberdade, ressalta Marcuse, "afirma a sociedade a que pertence".[16] A
atitude de Berenice, em seu caráter desmedido e em sua recusa a ajustar-se
à sensatez, é, portanto, vista justamente como marca da transcendência do
amor sobre a ordem da vida estabelecida. A identidade entre amor e política
aparece na morte da heroína, julga o filósofo, em comentário muito mais
rico do que o aqui apresentado.
Daqui para frente, me distancio do pensamento de Marcuse – sem recusá-
lo – e navego sob bandeira própria, na interpretação da obra. Seguindo o
fio tecido pelo filósofo e que consiste em considerar o amor como
responsável pelo duplo nó entre estética e política no romance, parece-me
que, diversamente da leitura de Marcuse, o alvo de Aragon é uma crítica ao
absoluto, ou melhor, à idéia do absoluto. Passo agora a justificar esse
ponto de vista, qual seja, o de que, em Aurélien, Aragon realiza uma
crítica determinada e, a meu ver, fatal à idéia do "absoluto".
Conforme já assinalei, o epílogo ocorre – e o romance foi escrito –
durante o movimento francês de Resistência ao nacional-socialismo, em 1945.
Como se sabe, o nacional-socialismo sempre perseguiu certa "beleza",
entendida como expressão de uma suposta superioridade racial, como
evidência de uma raça forte, saudável e absolutamente pura. O culto ao
absoluto era inseparável da política nazista. Hitler deu vazão a suas
pretensões artísticas através da propaganda nacional-socialista, ele criou
os uniformes, as bandeiras e os estandartes de seu partido. Os comícios
tinham proporções astronômicas – Hitler era cenógrafo, diretor e
protagonista – e representavam o ideal nazista: o mito do "corpo" do povo
alemão, que deveria ser um corpo absolutamente "puro". "Le goût de
l'absolu" pode se transformar em mercadoria sinistra e mortal, capaz de
promover a servidão voluntária, e mesmo devota, a governantes iníquos. Pode
ser o estratagema pelo qual se realiza a enorme empreitada de mistificação,
buscada por tiranos dominadores. Em seu romance, Aragon radicaliza, escolhe
o pormenor, e deixa claro que a idéia de absoluto é nefasta até mesmo no
amor, esse sentimento responsável por boa parte das fantasias que nos
mantém vivos – e mais ou menos enlaçados uns aos outros. Encontrei a
capacidade destruidora da vertigem do absoluto sobre o amor muito bem
apresentada em um texto epistolar, cuja autoria deixo em suspenso – trata-
se de correspondência recente entre dois professores de filosofia a quem
deixo a liberdade de se identificarem, ou não – e que diz,


Certamente o amor é a coisa mais difícil que existe – sobretudo
porque hoje, ele é ainda a única coisa que resguarda traços do
absoluto. Portanto, se tem a tendência de carregar a pessoa
amada com todas as expectativas e exigências (e a si mesmo como
amante também), que não ousamos mais formular nem em relação a
Deus, nem ao político, nem à filosofia. Aí o peso fica
insuportável e as bobagens da vida levam uma vitória injusta.


Em Aurélien, a derrota do amor não pode ser atribuída "às bobagens da
vida", e, mesmo assim, parece injusta. Vale lembrar que, feliz e
distintamente, na vida de seu autor, vitorioso foi o amor. Elsa Triolet
tornou-se o centro de sua existência desde que se conheceram, em 1929, dois
meses depois de o poeta tentar suicidar-se. "Elsa, sem a qual eu teria me
calado", escreve na dedicatória da coletânea de poemas denominada Roman
Inachevé (1956).[17] Aragon era filho natural de um político da III
República e foi criado pela mãe que se fazia passar por irmã mais velha,
dissimulando seu "erro". Sua infância parece romance de folhetim –
"ridículo e atroz", sublinha Lebrun. À mãe julgava irmã, à avó chamava de
mãe e ao pai de tutor. Aragon se salva tornando-se o trovador de sua dama,
a romancista de origem russa, irmã de Lilia Brik, também musa, merecedora
de belos versos de Wladimir Maiakovski. E, ao contrário da personagem
Berenice, Elsa Triolet escreveu: "J'excuse tout en amour. C'est le seul
critérium qui à mon sens échappe aux dangers de la politique. Le pardon
vient de dernières frontières de l'amour."[18]
Considerando a dificuldade de abrir mão do amor absoluto, cabe
perguntar se, comparados com essa idéia à qual nos apegamos com tanta
teimosia e desejo, talvez não haja mais teor de verdade nos versos, da
poeta e cancionista inglesa P.J. Harvey, que proclamam,


Oh my lover, oh my honey pie,
You can love her,
You can love me at the same time,
And it's all right, oh yes, it's all right.


Encerro essas reflexões indagando se, diante da impossibilidade de
incorporação material do absoluto, não seria necessário também abandonar o
propósito de produzir um discurso sobre o conhecimento absolutamente claro
e distinto. Absoluta é a busca inquieta pelo que não se deixa capturar. E
talvez mesmo em nome da potência dos abismos entrevistos nessa busca, poder-
se-ia pensar se não há mais traços do absoluto nos trânsitos de um
pensamento que não se pretendesse sedimentar como verdade fechada, total e
definitiva e que, distintamente, se transformasse em formas, filosóficas ou
fictícias, epifanias da verdade, capazes de provocar um novo saber, ad
libidinem.




Bibliografia citada

ARAGON. Aureliano. Lisboa: Edições Arcádia, sem data.

ARISTÓTELES. "Poética" em Aristóteles, coleção "Os Pensadores". Trad.
Eudoro de Souza. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

DAIX, Pierre. Aragon, une vie à changer. Paris: Seuil, 1982.

KELLNER, Douglas. Critical Theory, Marxism and Modernity. Baltimore: The
John Hopkins University Press, 1989.

LEBRUN. "Aragon: uma vida perdida?" em Passeios ao léu. São Paulo:
Brasiliense, 1983.

MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária" em Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: UNESP, 1999.

_______ Counterrevolution and Revolt. Boston: Beacon Press, 1972. Tradução
brasileira: Contrarevolução e Revolta. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

_______ Eros and Civilization: a Philosophical Inquiry into Freud. Boston:
Beacon Press, 1955. Tradução brasileira: Eros e Civilização. Uma
Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud. Rio de Janeiro: Zahar,
1969.

_______ One-Dimensional Man: Studies in the Ideology of Advanced Industrial
Society. Boston: Beacon Press, 1964. Tradução brasileira: A Ideologia da
Sociedade Industrial. Trad. Giasone Rebuá. Rio de Janeiro: Zahar, 1969.

MERQUIOR, José Guilherme. Marxismo Ocidental. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.

TRIOLET, Elsa. Luna Park. Paris: Gallimard, 1959.

WHITEHEAD, Alfred North. Science and the Modern World. Cambridge:
University Press, 1926.


* * *
-----------------------
[1] MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", em Tecnologia, guerra e fascismo. São Paulo: UNESP, 1999;
p.267.
[2] Ou, para ser mais precisa, quase todo ele. Uma vez que a primeira, das
quatro seções que o compõe, foi datilografada em máquina diferente, e
Douglas Kellner, atual editor da obra de Marcuse, considera que ela, a
seção I, possa ter sido escrita em data posterior. Cf. MARCUSE, "Algumas
considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária", op.cit.,
p.268. As reflexões que aqui apresento têm como objeto as seções II e III.

[3] WHITEHEAD. Science and the modern world, p.228. Citado por Marcuse, em
"Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária"
(1945), p.270. Parece ser esta a primeira vez que aparece o conceito de
"Grande Recusa", utilizado por Marcuse para configurar uma atitude radical
diante da tibieza da razão no mundo dado. Parte do texto citado reaparece
em Eros and Civilization (1955), p.149; na tradução brasileira, p.139. E
sua seqüência é apresentada em One-Dimensional Man (1964), p.149; na
tradução brasileira, Ideologia da Sociedade Industrial, p.201. José
Guilherme Merquior ressaltou, equivocadamente, que "Marcuse tirou a idéia
melodramática de uma recusa absoluta de Maurice Blanchot" (grifo meu).
MERQUIOR. O Marxismo Ocidental, p.224. Lembro ainda que o motto da "Grande
Recusa" tornou-se slogan nos protestos estudantis dos anos 60 do século XX.
Cf. KELLNER. Critical Theory, Marxism and Modernity, p.210ss.
[4] Conforme registrou Aristóteles, "nós contemplamos com prazer as imagens
mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por exemplo
[as representações de] animais ferozes e [de] cadáveres". ARISTÓTELES.
Poética, IV, 14.
[5] MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", p.271.
[6] MARCUSE. Counterrevolution and Revolt, p.103; na tradução brasileira,
p.103.
[7] MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", p.273. A vocação da poesia é apresentada com palavras de
Baudelaire: C'est une grande destinée que celle de la poésie! Joyeuse ou
lamentable, elle porte toujours en soi le divin caractère utopique. Elle
contradict sans cesse le fait, à peine de ne plus être (É grande o destino
da poesia! Feliz ou lamentável, ela traz sempre consigo o divino caráter
utópico. Sem cessar contradiz o fato, sob pena de deixar de existir)".
Ibidem.
[8] MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", p.275.
[9] MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", p.274.
[10] "Sim, falem de amor ainda e que amor rime/ Com dia com alma ou com
absolutamente nada falem/ Falem de amor pois tudo o mais é crime". Cf.
MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", p.285.
[11] LEBRUN. "Aragon: uma vida perdida?" em Passeios ao léu, p.164-165. O
autor salienta que "Aragon merece ocupar o mesmo destaque, na literatura
francesa do século XX, que Marcel Proust e Céline. Ainda mais por sua obra
romanesca do que pela poética". Ibidem, p.164.
[12] Berenice era o nome da filha de Herodes, famigerado rei da Judéia. "O
nome, evoca em Aurélien a estranha memória do Oriente Romano, da
grandiosidade e do luxo imperiais decadentes." MARCUSE, "Algumas
considerações sobre Aragon: arte e política na era totalitária", p.281.
[13] ARAGON. Aureliano, p.158.
[14] ARAGON. Aureliano, p.256-258.
[15] MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", p.282.
[16] MARCUSE, "Algumas considerações sobre Aragon: arte e política na era
totalitária", p.283.
[17] Sobre a vida de Aragon, cf. LEBRUN. "Aragon: uma vida perdida?" e
DAIX. Aragon, une vie à changer.
[18] "Eu perdôo tudo no amor. Ele é o único critério que a meu ver escapa
aos perigos da política. O perdão vem das últimas fronteiras do amor."
TRIOLET, Elsa. Luna Park. Paris: Gallimard, 1959; p.54.
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