As fotografias de Robert Capa e David Seymour Chim na Guerra Civil Espanhola e o trabalho do fotojornalista. In: Anais do XXI Encontro Estadual de História: trabalho, cultura e memória - ANPUH-SP

September 18, 2017 | Autor: Erika Zerwes | Categoria: Cultura Visual, Fotografia, Fotografia de guerra
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As fotografias de Robert Capa e David Seymour Chim na Guerra Civil Espanhola e o trabalho do fotojornalista Erika Zerwes



A Guerra Civil Espanhola (1936-39) propiciou a realização de algumas imagens que se tornaram ícones da cultura visual ocidental. Imagens como a do soldado miliciano caindo no momento em que foi acertado por um tiro inimigo, feita por Robert Capa [Img. 2], e a de uma mãe que amamenta seu filho bebê no centro de uma multidão que, como ela, olha para cima, feita por David Seymour Chim [Img. 1], se tornaram paradigmáticas dentro do regime de visualidade das fotografias de guerra no século XX, e passaram das páginas das revistas – para onde foram inicialmente concebidas – para as páginas de livros de fotografia e para as paredes de museus. A guerra espanhola ocorreu em um momento muito particular na história da fotografia documental. O período entre-guerras na Europa viu o surgimento de avanços técnicos, como aparecimento de câmeras portáteis, de lente luminosa e filme em rolo – como a Ermanx, a Lunar e a Leica em 1924; a Rolleiflex em 1929 e a Contax em 1932. A leveza e agilidade destas permitiram que os fotógrafos as levassem para todos os lados, a luminosidade de suas lentes permitiu que eles se libertassem de condições de luz limitadas e o filme em rolo permitiu que várias fotografias em seqüência fossem realizadas sobre um mesmo tema, sem a necessidade de parar durante a ação para trocar as placas fotossensíveis a cada disparo1. Da mesma forma, durante os anos de 1920 e 1930 aconteciam modificações no olhar artístico advindas do construtivismo russo e da Bauhaus alemã2. Estas transformações, somadas à uma mudança na sensibilidade da sociedade da época, que passou a acolher a imagem fotográfica como modo de comunicação dotado de valor de verdade3, concorreram para a grande explosão na quantidade de revistas ilustradas que este período viveu.

Doutoranda em História pelo IFCH-UNICAMP, bolsista FAPESP. NEWHALL, Beaumont. The History of Photography. New York: The Museum of Modern Art, 1982, p. 219. 2 LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLE, Andre (ed). Histoire de la Photographie. Paris: Larousse, 1998, p. 166. 3 Sobre a fotografia de guerra e a imprensa, até a Primeira Guerra Mundial, Jorge Lewinski afirmou: “The concept of the photographic documentary essay was not yet established in the press. The general attitude to the use of photographs as illustrations had not altered since the beginning of the century. Editors continued to show little enthusiasm for photographs. Press ∗

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Este movimento teve início na primeira parte da década de 1920 na Alemanha, quando as revistas Berliner Illustrirte Zeitung (BIZ) e Münchner Illustrierte Presse passaram a ser ilustradas com fotografias. Elas possuíram em seu auge tiragens de quase dois milhões de exemplares4. A partir daí as revistas ilustradas se espalharam em grande quantidade por toda a Europa e EUA, e neste momento apareceram algumas das principais: já em 1929, apareceu a Vu francesa; em 1930 a soviética SSSR na stroika, impressa em quatro línguas, russo, francês, inglês e espanhol; em 1936, ano do começo do conflito espanhol, surgiu a Life, que era norte-americana mas, assim como a Vu, possuía circulação internacional; e ainda em 1938 apareceu a britânica Picture Post5. Durante toda a década de 1930 as revistas ilustradas foram estabelecendo um grande mercado para as fotografias documentais. Assim, a imagem de Capa do soldado caindo, por exemplo, apareceu pelas primeiras vezes nas revistas Vu de 23 de setembro de 1936, La Revue du Medecin de 30 de setembro de 1936 e Life de 12 de julho de 1937. Do mesmo modo, a fotografia de Chim mencionada acima apareceu pelas primeiras vezes na revista Regards de 14 de maio de 1936 e na Arbeiter Illustrirte Zeitung de 29 de julho de 19366. No entanto, depois que deixaram de ter valor de notícia, estas imagens ainda percorreram um longo caminho em livros de fotografia e em exposições em museus.

photography was treated at best as an information medium of limited scope, further restricted by censorship for the duration of the war. Thus, illustrations were of a routine nature and there was little attempt to use photographic imagery in an imaginative way. The majority of staff photographers were no more than adequate manipulators of the camera.” LEWINSKI, Jorge. The Camera at War: a history of war photography from 1848 to the present day. London: Octopus Books, 1986, p. 69. 4 FREUND, Gisèle. La Fotografía Como Documento Social. Barcelona: Gustavo Gili, 2004, pp. 101-102. 5 Idem, ibidem. 6 WHELAN, Richard. ¡Esto Es La Guerra! Robert Capa en acción. Barcelona, New York, Göttingen: Museu Nacional d’Art de Catalunya, International Center of Photography, Steidel, 2009, pp. 56-59.

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Img. 1. David Seymour Chim. Mulher em reunião sobre a divisão de terras. Estremadura, Espanha, abril-maio de 1936. Img. 2. Robert Capa. Morte de um miliciano republicano, Cerro Muriano, frente de Córdoba. Espanha, 5 de setembro de 1936. Os avanços tecnológicos e mudanças de olhar mencionados acima podem ser observados em ambas: as duas são feitas com câmeras de filme de rolo em formato de 35mm, como demonstra o tamanho da imagem; a fotografia de Chim é feita de cima para baixo, no meio de uma multidão, o que impossibilitaria o uso de um tripé ou de uma câmera mais pesada; também a fotografia de Capa tem como prerrogativa uma câmera que lhe permitisse se movimentar junto com o soldado fotografado, e que fosse rápida o suficiente e de fácil manuseio para que este instante tenha sido congelado na imagem. No entanto, estas características técnicas não eram exatamente novidade nos anos de 1930, e sozinhas não poderiam ser determinantes na grande repercussão que estas imagens alcançaram ao longo dos anos. Elas têm também uma grande força narrativa, a capacidade de unir alguns elementos para simbolizar o evento como um todo. No caso da fotografia de Capa, pode-se entender aquele soldado que cai como um mártir anônimo, representando todos os que morreram em nome da República, ela mesma considerada pelas esquerdas um mártir na luta contra o fascismo, entendido como um inimigo muito mais forte. Ao focar-se nas expressões de alguns dos rostos da multidão, em especial à mulher que carrega a criança e que se transforma em uma madona cristã, a fotografia de Chim pôde simbolizar o grande sofrimento que a guerra trouxe à população espanhola frente a um conflito que não respeitou delimitações de frentes de batalha, atacando igualmente combatentes e não-combatentes.

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No entanto, atentando um pouco mais a estas fotografias – seus processos de feitura, bem como de recepção – pode-se perceber que os seus significados simbólicos não lhes são inerentes, mas sim construídos. Quando Capa enviou para Paris a fotografia do soldado caindo, ela não ganhou imediatamente a notoriedade que tem hoje. A revista Regards de 24 de setembro de 1936 trouxe várias fotografias de Capa desta mesma série, mas não escolheu esta para ser publicada. Já a Life apenas foi publicá-la quase um ano depois de sua feitura, em 12 de julho de 1937. É possível inferir que, conforme a guerra foi se arrastando por mais tempo, e a República se enfraquecendo, a noção simbólica de ‘mártir’ foi se aderindo mais ao soldado que cai morto, uma vez que em 1936 ainda não se tinha clareza da amplitude de baixas impostas pelo conflito – que ao seu final contabilizaria cerca de 500 mil mortos7. A fotografia de Chim demonstra ainda com mais clareza esta significação a posteriori, por dois motivos: ela é um reenquadre de uma imagem mais aberta, e foi realizada antes do início do conflito. Chim esteve no país para fotografar as Olimpíadas dos Trabalhadores (um evento alternativo aos Jogos Olímpicos de Berlim, que foram boicotados por parte dos atletas já que acontecia em um país fascista) antes da madrugada do dia 17 para 18 de julho, quando o golpe militar comandado pelo general Franco deu início à guerra civil. Assim, esta fotografia retrata uma reunião em Estremadura feita pelo governo republicano sobre uma divisão de terras que este estava promovendo, dois meses anterior à guerra. Quando o conjunto de negativos do período, conhecido como a Mala Mexicana, foi recuperado em 2007, o negativo original desta imagem mostrou que o fotógrafo a havia feito mais aberta [Img. 3], e que ela foi reenquadrada para ser publicada8. O reenquadre aproximou a imagem do rosto da mulher com a criança, deixando de fora o restante da multidão, uma grande quantidade de cabeças, que termina – fazendo como que uma linha do horizonte – em uma parede branca. Este reenquadre chamou portanto a atenção para a expressão da mulher que, assim como duas das quatro crianças que estão ao seu lado, olha para cima. Com o desenrolar da guerra, ela passou a ter outro significado, uma vez que o lado de Franco, com auxílio de aviões alemães, adotou a prática até então inédita do bombardeio aéreo não só a alvos militares, mas também a civis, e que teve um de seus

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PRESTON, Paul. We Saw Spain Die. Foreign correspondents in the Spanish Civil War. New York: Skyhorse Publishing, 2009, p. 7. 8 YOUNG, Cynthia (ed). The Mexican Suitcase. New York, Gotingen: International Center of Photography, Steidl, 2010, vol. 2 p. 17.

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auges no ataque que destruiu a cidade de Guernica em 26 de abril de 1937. Neste mesmo ano de 1937, a fotografia reenquadrada foi publicada na capa do livreto de propaganda republicana Madrid [Img. 4], em uma montagem que trouxe aviões e uma bomba, colaborando com esta identificação da fotografia com a guerra.

Img. 3. David Seymour Chim. Mulher em reunião sobre a divisão de terras. Estremadura, Espanha, abril-maio de 1936 [reprodução do negativo presente na Mala Mexicana]. Img. 4. Capa do livreto Madrid, 1937. É provável que tanto o reenquadre quanto o significado apócrifo da imagem tenham acontecido à revelia do fotógrafo, pois a prática comum – especialmente durante guerras – era o fotógrafo mandar os rolos expostos para serem processados nas agências, ou quando o prazo para publicação era apertado, já nas revistas, portanto sem ver as imagens resultantes e tampouco como seriam impressas9. Ainda assim, a imagem que passou a ser a mais reconhecida, a que foi reenquadrada, traz muitos dos temas que seriam recorrentes, e fundamentais, dentro de toda a produção de Chim que se seguiu, tanto nesta guerra em particular quanto no trabalho fotográfico dele como um todo. O mesmo ocorre com a imagem de Capa. Ambas são das primeiras realizadas pelos fotógrafos ao chegarem respectivamente na Espanha, são portanto as primeiras impressões que eles tiveram, 9

Sobre isso ver WHELAN, Richard. ¡Esto Es La Guerra! Robert Capa en acción. Barcelona, New York, Göttingen: Museu Nacional d’Art de Catalunya, International Center of Photography, Steidel, 2009, pp. 32-35; GALASSI, Peter. Henri Cartier-Bresson, O século moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2010, pp. 15-17.

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mas pode-se dizer que prenunciam o olhar que eles teriam do conflito. O soldado caindo de Capa já trouxe a idéia de movimento e de instantâneo, de uma visão de dentro da batalha e a proximidade com a ação que culminariam com a sua famosa frase: “se suas fotografias não estão boas o suficiente, é porque você não está perto o suficiente”10. Do mesmo modo, a imagem de Chim traz um olhar voltado para a população comum – em oposição aos dirigentes da reunião – que já sinaliza para a sua preferência em fotografar o lado dos que sofreram os efeitos da guerra, e não o dos que o realizaram; traz a presença marcante de crianças, um tema muito reiterado até o fim de sua vida; por fim, a referência a simbolismos religiosos, nesta imagem o da madona com a criança, também se faria presente no conjunto de seu trabalho fotográfico. Esse simbolismo religioso pode ser visto, por exemplo, em uma das fotografias da série que Chim fez em outubro de 1936 – portanto já durante a guerra – registrando a catalogação das obras de arte do convento das Dezcalzas Reales em Madri [Img. 5]. A imagem mostra dois soldados republicanos carregando um crucifixo quase do tamanho deles, em um pátio, à contra-luz. A cena, inclusive com a sombra que os soldados e o crucifixo projetam no chão, remete à iconologia cristã, à tradição de se representar Jesus crucificado no Calvário no centro de outros dois condenados também crucificados. Já um registro mais direto do ritual católico pode ser visto na série que Chim fez poucos meses depois, em que retratou demoradamente todos os passos de uma missa a céu aberto organizada em Güeñes, no País Basco, para os soldados que em seguida iriam se dirigir à frente de batalha [Img. 6].

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A frase consta em sua biografia na página da Magnum: http://www.magnumphotos.com/C.aspx?VP=XSpecific_MAG.PhotographerDetail_VPage&l 1=0&pid=2K7O3R14YQNW&nm=Robert%20Capa, acesso em 4/06/2012.

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Img. 5. David Seymour Chim. Soldados republicanos auxiliam no inventário do patrimônio artístico do convento das Descalzas Reales em Madri. Espanha, outubro de 1936. Img. 6. David Seymour Chim. Em Güeñes, Pais Basco, soldados republicanos assistem a uma missa ao ar livre, prática comum dos soldados bascos antes de irem para a guerra. Espanha, janeiro-fevereiro de 1937. Estes temas religiosos, porém, deixam transparecer uma agenda, e uma posição política, bem definidas do fotógrafo. Logo que a guerra começou, houveram demonstrações violentas de repúdio à Igreja, com o ataque a padres e freiras e a destruição de igrejas e seu patrimônio. A imprensa pró-Franco divulgou amplamente estes episódios11 – alguns que realmente aconteceram, outros inventados12 – os 11

Paul Preston cita uma reportagem da Reuters feita alguns dias depois do início do conflito: ‘“The victorious Government civilian forces, composed of Anarchists, Communists and Socialists have burned and sacked practically every church and convent in Barcelona’. The Reuters report went on: ‘The mob drunk with victory, afterwards paraded the streets of the city attired in the robes of ecclesiastical authorities’. Over the next few days the stories became ever gorier. The reign of terror was described under the sub-heading ‘Priests Die Praying. The mob is uncontrollable and class hatred rules”. According to this account, “Priests are being dragged with a prayer on their lips from their monasteries to be shot – in the back – by firing squads. Some of them have had their heads and arms hacked off after death as a final vindictive act’”. PERSTON, Paul, op. cit, p. 8. Do mesmo modo, François Fontaine afirmou: “L’Intransigeant n’a de cesse de dénoncer, dans ses articles et les légendes de ses documents, le comportement sacrilège des miliciens républicains et leur responsabilité dans la destruction des biens du clergé : « Le drame espagnol, guerre de religion. Le fanatisme des miliciens espagnols s’exerce, en tous lieux qu’ils occupent, sur les monuments religieux. Les autels sont profanés, les œuvres d’art détruites, les églises transformées en prisons, en dortoirs, en casernes », peut-on y lire le 16 janvier 1937. Sur les dizaines de documents publiés sur « la tourmente incendiaire » qui ravage les églises, très peu sont mis sur le compte des nationalistes. Lorsque c’est le cas, le journal précise que les églises sont alors « libérées » par les troupes nationalistes et rendues au culte”. FONTAINE, François. La Guerre D’Espagne, un déluge de feu e d’images. Paris: BDIC – Berg International, 2003, p. 189.

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atribuindo aos membros da coalizão de esquerda que governava a República, a Frente Popular. Esta associação foi muito danosa para a causa republicana, que buscava ajuda das democracias européias para sua luta contra os franquistas, que por sua vez tinham grande apoio da Itália e Alemanha fascistas. Deste modo, ao mostrar que os soldados republicanos eram também católicos e assistiam à missa, assim como seu governo estava preocupado em proteger o patrimônio artístico das instituições religiosas, Chim intentou fazer uma contra-propaganda procurando a simpatia da opinião pública internacional para a causa republicana, que ele retratou como uma luta contra o fascismo – em oposição à uma revolução vermelha, como queriam retratá-la os franquistas. Em 1936 as esquerdas européias – comunistas, socialistas, anarquistas, etc. – ainda defendiam uma união contra o fascismo, que seria um movimento forçosamente internacional. A causa republicana na Espanha, portanto, encontrava um eco especialmente na esquerda francesa, pois este país vivia naquele momento ele também um governo de Frente Popular. Estas foto-reportagens de Chim foram bastante publicadas na imprensa simpatizante da esquerda e em especial na revista francesa Regards, que pertencia ao partido comunista francês, para a qual Chim já trabalhava havia três anos13. Do mesmo modo, um segundo tema muito recorrente nas fotografias de Chim nestes primeiros meses da guerra, que também intentava aproximar a causa francesa da espanhola, foi o retrato de pessoas erguendo o punho fechado. Este gesto, que foi usado como saudação pelas frentes populares, especialmente a alemã, francesa e espanhola, em contraposição ao gesto da mão aberta usado pelos fascistas, já tinha 12

Paul Preston cita um episódio para ilustrar esse assunto: “As a correspondent of the rival New York Herald Tribune, James Minifie believed that [William P.] Carney not only tilted articles in favour of the rebels, but also invented ‘news’ on the basis of ‘eye-witness’ reports. When these ‘absentee eye-witness reports’ appeared in the New York Times, Minifie would receive from his own paper queries about the episodes described. So blatant were they that he was able to respond adequately simply by cabling back the words ‘Another Carney exclusive’”. PRESTON, Paul. op. cit., p. 55. 13 Segundo François Fontaine, “Au cours de mois d’octobre et novembre [1936], Regards consacre six couvertures sur huit à la Guerre civile. Les titres et sous-titres sont autant d’appels à aider l’Espagne républicaine en lutte et à sensibiliser le lecteur aux bombardements de la capitale : « Madrid défend la liberté. Aidez l’Espagne républicaine à vaincre ! », « Il faut que cesse le blocus contre le peuple d’Espagne », « Des hommes, des vivres pour le front », « Les armées de la République passent à l’offensive », « Heures tragiques de Madrid », « Une capitale européenne sous le bombardement ». Les documents illustrant ces différents articles montrent essentiellement les victimes des bombardements, les Brigades internationales et la résistance de Madrid”. FONTAINE, François. op. cit., p. 82.

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sido retratado por Chim – e pelos demais fotógrafos que apoiavam as esquerdas, entre eles Capa – na França [Imgs. 10 e 11]. Ele o fotografou amplamente também na Espanha, mais precisamente de agosto a outubro de 1936, primeiro período em que esteve cobrindo a guerra. Em muitas destas ocasiões, assim como ele havia feito na França, suas imagens mostram crianças fazendo este gesto [Imgs. 7 a 9].

Img. 7. David Seymour Chim. Crianças em uma creche ou orfanato de Madri fazendo a saudação republicana. Espanha, agosto-setembro de 1936. Img. 8. David Seymour Chim. Habitantes de Talavera, próximo de Toledo, fazem a saudação republicana. Espanha, meados de setembro de 1936. Img. 9. David Seymour Chim. Crianças em Madri fazem a saudação republicana. Espanha, outubro de 1936.

Img. 10. David Seymour Chim. Celebrações da vitória da Frente Popular nas eleições em Paris. França, 24 de maio de 1936. Img. 11. David Seymour Chim. Manifestação anti-guerra em St. Claud, que se transformou em ato de apoio aos republicanos espanhóis. França, 9 de agosto de 1936. A reiterada presença de retratos de pessoas fazendo a saudação que era um símbolo compartilhado por franceses e espanhóis acontecia em um momento onde a causa republicana contava com grande entusiasmo de seus partidários – dos que acreditavam que as democracias ocidentais capitaneadas pela França iriam certamente

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se unir à luta espanhola contra o fascismo, e daqueles que acreditavam que a luta em defesa da República se desdobraria em uma revolução proletária. A constante presença de crianças nestas fotografias pode então representar a esperança em um mundo novo que Chim, ele também, acreditava que poderia estar começando a ser construído. O mesmo já valia para as imagens semelhantes feitas durante as comemorações da vitória da Frente Popular francesa em Paris. Na Img. 10 a menininha sonolenta, que ergue seu pequeno punho fechado até a altura do rosto, nos ombros do homem que aparenta ser seu pai, é a própria imagem da inocência e da pureza. Assim também na Img. 11 os meninos que fazem com decisão o gesto nos ombros de homens que também o fazem, pode representar um futuro que está sendo construído com vontade e união, em consonância com a figura no cartaz ao fundo, homem forte que quebra com suas mãos um rifle ao meio, rodeado por bandeiras de diversos países, representando uma união internacional. Robert Capa também trabalhou registrando os primeiros dias da Frente Popular francesa antes de ir para a Espanha cobrir a guerra civil. Como Chim, ele acreditava pessoalmente na causa espanhola. Embora também tenha em numerosas ocasiões se dedicado a registrar o lado dos não combatentes na guerra, suas imagens de batalhas seriam das que mais ganhariam repercussão, como anteviu a fotografia do soldado caindo. Após os primeiros meses de euforia com a possibilidade de vitória e de ajuda internacional, os republicanos encontraram revezes nestas duas áreas, e isto pode ter se refletido nos temas das imagens dos dois fotógrafos: a partir de março de 1937, com o cerco de Madri, a euforia de uma rápida vitória começa a esmorecer entre os republicanos. A temática da frente de batalha vai ganhando mais força, e tem seu auge com a cobertura que Capa fez da ofensiva republicana no Rio Segre em 7 de novembro de 1938. O ataque do Rio Segre foi a última grande vitória dos republicanos na guerra, que a partir de então só viveriam revezes até a completa derrota em 1939. Ela foi sua série mais extensa durante o conflito espanhol, e a mais publicada, ganhando grande repercussão na imprensa européia e norte-americana. Como pode-se ver em duas fotografias desta série, as Imgs. 12 e 13, estão aí presentes alguns elementos que também compõe a do soldado caindo: a idéia de movimento e de ação que elas trazem – em especial a Img. 12, desfocada, mostrando que o fotógrafo tremeu no momento do disparo, e muito granulada, indicando que a cena tinha pouca luz, provável resultado da poeira levantada por uma explosão – e sua condição de feitura, a 10

proximidade da frente de batalha. Ambas efetivamente denunciam a própria presença do fotógrafo ao lado dos combatentes e a conseqüente exposição aos mesmos perigos que eles. Na Img. 13 o fotógrafo aparenta estar um pouco atrás dos soldados que observam agachados um bombardeio que aparece na forma de fumaça no plano de fundo. No entanto, a fotografia é feita de cima para baixo, o que indica que o fotógrafo estava de pé e fora da proteção que as grandes pedras ofereciam aos soldados, para assim poder os incluir na imagem.

Img. 12. Robert Capa. Soldado participa de ofensiva republicana no Rio Segre próximo a Fraga, frente de Aragon. Espanha, 7 de novembro de 1938. Img. 13. Robert Capa. Soldados protegendo-se em meio a bombardeio durante a ofensiva republicana no Rio Segre próximo a Fraga, frente de Aragon. Espanha, 7 de novembro de 1938. Diferente, no entanto, da série de imagens da qual faz parte a do soldado caindo, que apresentam fotografias do combate isoladas, sem um fio condutor explícito – favorecendo inclusive que aquela imagem fosse retirada de seu conjunto para que representasse sozinha o evento – a série feita no Rio Segre foi pensada por Capa como uma história, uma seqüência de imagens coerente que deveria registrar cada etapa do ataque para que seu todo representasse o evento. Isso é indicado também pelas legendas detalhadas que ele redigiu e enviou junto com as imagens14. Nas principais revistas em que esta história foi publicada, ela foi montada respeitando esta seqüência, quase semelhante a uma foto-novela ou a uma história em quadrinhos [Imgs. 14 a 27].

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WHELAN, Richard. op. cit., p. 166.

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Imgs. 14 a 16. Revista Regards de 24 de novembro de 1938 com as fotografias de Capa da ofensiva republicana no Rio Segre.

Imgs. 17 a 23. Revista Picture Post de 3 de dezembro de 1938 com as fotografias de Capa da ofensiva republicana no Rio Segre.

Imgs. 24 a 27. Revista Match de 22 de dezembro de 1938 com as fotografias de Capa da ofensiva republicana no Rio Segre. Quando a revista Picture Post trouxe esta reportagem [Imgs. 17 a 23] ela a nomeou This is War! [Isto é a Guerra], e a encerrou com uma fotografia de Capa cuja legenda o anunciava como “The greatest war photographer in the world” [O maior fotógrafo de guerra do mundo]. Ao ressaltar o ineditismo deste tipo de registro, que estaria mostrando pela primeira vez aos leitores o que seria a guerra “de verdade”, e ao publicizar a figura de Robert Capa deste modo, a revista também marcou uma mudança que vinha se realizando dentro da fotografia de guerra. A imprensa já vinha ressaltando a qualidade de testemunhas privilegiadas e engajadas dos fotógrafos na guerra espanhola. No caso de Capa, isso já havia sido ressaltado desde a ocasião em

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que ele havia fotografado o soldado caindo. Naquela edição da Regards de 24 de setembro de 1936 as fotografias de Capa vieram acompanhadas da seguinte introdução: “Notre collaborateur Capa sur le front de Cordoue, a accompagné les miliciens qui montaient à l’attaque […]. Autour de notre collaborateur qui ne cesse pas un instant de photographier, les balles fauchent les hommes. Mais malgré le feu ennemi, les soldats s’élancent”15. Quando o jornal de esquerda francês Ce Soir publicou as fotografias de Capa da batalha de Madri, em 27 de março de 1937, a reportagem veio acompanhada de um elogio ao fotógrafo escrito por Charles Reber: Si je devais le définir en quelques mots, je dirais que ce garçon si sympathique, reporter-photographe né, n’a aucune conscience du danger ni des contingences et, partant, de ses responsabilités. Pour une belle photo, il donnerait tout l’or du monde, plus sa vie. En novembre dernier notre jeune ‘casse cou’, comme l’appellent ses amis, était à Madrid. Et quand je dis Madrid, c’est évidemment à la cité universitaire que je pense. On s’y bombardait, mitraillait, et tuait. Capa pouvait-il être ailleurs ?16 Nestas ocasiões já se deixava entrever esta associação do fotógrafo com a ação. Ela teria então seu ápice com a cobertura que Capa fez do Rio Segre: além da grande exposição promovida pela Picture Post, outras revistas também publicaram esta foto-reportagem com grande destaque, como a francesa Match na sua edição de 22 de dezembro de 1938. Une heure d’assaut. En Espagne, un photographe a accompagné les soldats à l’attaque […]. Un reporter, Robert Capa, a eu le cran de suivre des soldats tout le long d’une attaque. Il les a photographiés à bout portant, sous les balles, il a pu saisir ces secondes terribles où l’on devient inhumain pour ce battre et redevient enfant pour mourir17. Ainda o Ce Soir, em 15 de novembro de 1938, trouxe as fotografias de Capa precedidas por uma atestação de presença do fotógrafo dentro do coração da batalha: L’attaque républicaine sur la rive du Segré vue par notre envoyé spécial Robert Capa […]. J’ai accompagné les 15

FONTAINE, François. op. cit., p. 134. Idem, ibidem. 17 Idem, ibidem. 16

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‘marineros’ – ceux du Segré – pendant toute l’attaque, nous dit notre collaborateur. 24 heures de bataille terrible entre l’infanterie républicaine et le ‘matériel franquiste’18. Nesta apresentação, Capa, que em 1936 foi descrito apenas como colaborador, agora em 1938 é também enviado especial, mudança significativa, pois indica um ganho de importância da imagem fotográfica dentro da constituição da notícia, e consequentemente da própria figura do fotógrafo. Em um momento em que as posições eram fortemente polarizadas entre duas ideologias que se colocavam como opostas – a da direita, fascista e a da esquerda, que apesar de mais fragmentada entre socialistas, comunistas, anarquistas, ainda assim se posicionavam contra fascismo – não se esperava uma posição de neutralidade de ninguém19, mas ao contrário, o discurso que predominava era o do engajamento. Ao mesmo tempo, os correspondentes, fossem colaboradores ou enviados especiais, nem sempre possuíam a mesma opinião de seus editores e dos patrocinadores de suas publicações20. Uma parte grande da imprensa internacional era antipática à República, muitas vezes por influência da Igreja católica ou por posicionamento político anticomunista. Um exemplo era o jornal diário francês Paris-Soir, cujo correspondente, Louis Delaprée, expressou mais de uma vez seu descontentamento com o jornal, que ignorava em larga medida as reportagens que poderiam trazer simpatia para os republicanos. Em dezembro de 1936, ele enviou junto com sua reportagem, que mais uma vez não foi publicada, a seguinte nota: What follows is not a set of prosecutor’s charges. It is an actuary’s process. I number the ruins, I count the dead, I 18

Idem, ibidem. Fontaine exemplifica a grande polarização de ideologias com o caso da imprensa: “Pierre Dumas, envoyé spécial de La Petite Gironde, a été confronté à ce problème durant un contrôle policier, alors qu’il effectuait un reportage à Saragosse, ville occupée par les nationalistes : « Cette fois, nos inquisiteurs lisent les journaux que nous apportons, catastrophe ! J’ai un numéro de L’Humanité…, mais un numéro de L’Action française vient à mon secours. Lorsqu’on veut me faire préciser la position de La Petit Gironde, je n’ai plus qu’à prendre les deux journaux et à dire ‘‘milieu’’ … Le policier n’est pas de mon avis. Il affirme que ‘‘Hoy no se puede’’. Aujourd’hui, il ne pas possible d’être au milieu ! » (La Petite Gironde du 2 août 1936)”. FONTAINE, François. op. cit., p. 128. 20 Preston cita o correspondente norte-americano Frank Hanighen: “Almost every journalist assigned to Spain became a different man sometime or other after he crossed the Pyrenees… After he had been there a while, the queries of his editor in far-off New York or London seemed like a trivial interruptions. For he had become a participant in, rather than an observer of, the horror, tragedy and adventure which constitutes war”. Apud PRESTON, Paul. op. cit., p. 15. 19

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weight the blood spilt. All the images of martyred Madrid, which I will try to put before your eyes – and which most of the time defy description – I have seen them. I can be believed. I demand to be believed. I care nothing about propaganda literature or the sweetened reports of the Ministries. I do not follow any orders of parties or churches. And here you have my witness. You will draw your own conclusions.21 Mesmo quando a intenção era o relato neutro, portanto, a grande polarização ideológica levava o repórter a se engajar. E também a adotar uma posição de testemunha privilegiada que, como Delaprée, queria se fazer ouvir e se fazer acreditar. A fotografia neste caso era um instrumento valioso. Assim, a proximidade da linha de combate e a presença da ação em nas imagens de Capa, e a grande qualidade narrativa desenvolvida desde o soldado caindo até a sofisticação do conjunto de imagens do Rio Segre, foram o modo com que ele respondeu a uma demanda específica, que foi o desafio de representar a Guerra Civil Espanhola em fotografia. Do mesmo modo que Chim o fez através da adoção de um léxico simbólico em suas composições, que apesar de ter se dado por outros caminhos, também gerou imagens muito narrativas – como se observa nas fotografias da saudação dos punhos fechados e dos esforços de preservação de patrimônio e relação harmoniosa dos partidários da Republica com a Igreja. Como se viu, no cerne destas duas práticas está o engajamento. Acompanhar portanto os modos com que esse engajamento se traduziu em imagens para Capa e Chim ao longo da Guerra Civil Espanhola auxilia na compreensão de alguns dos fatores que fizeram com que aquelas duas imagens iniciais, as Imgs. 1 e 2, tenham se tornado ícones, participando do estabelecimento de um regime de visualidade do que passou a ser conhecido como fotojornalismo moderno, e possibilitando que François Fontaine, como uma grande parte dos críticos e historiadores da fotografia, pudesse afirmar com segurança que o mito do foto-repórter nasceu durante esta guerra da Espanha22.

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PRESTON, Paul. op. cit., p. 16 Para Fontaine, “On peut affirmer que le mythe du photoreporter est né dans l’Espagne en guerre. Cette confrontation quotidienne avec le danger – qui était loin d’être motivée par l’appât du gain – a donné à ces photographes une aura exceptionnelle. (…) Capa n’est pas seulement le témoin d’un événement, il devient un acteur direct des scènes qu’il prend en photo. Il monte au front et partage tous les risques de ceux qu’il cherche à photographier (…)”. FONTAINE, François. op. cit., p. 134. 22

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Bibliografia FONTAINE, François. La Guerre D’Espagne, un déluge de feu e d’images. Paris: BDIC – Berg International, 2003. FREUND, Gisèle. La Fotografía Como Documento Social. Barcelona: Gustavo Gili, 2004. GALASSI, Peter. Henri Cartier-Bresson, O século moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2010. LEMAGNY, Jean-Claude; ROUILLE, Andre (ed). Histoire de la Photographie. Paris: Larousse, 1998. LEWINSKI, Jorge. The Camera at War: a history of war photography from 1848 to the present day. London: Octopus Books, 1986. NEWHALL, Beaumont. The History of Photography. New York: The Museum of Modern Art, 1982. PRESTON, Paul. We Saw Spain Die. Foreign correspondents in the Spanish Civil War. New York: Skyhorse Publishing, 2009. WHELAN, Richard. ¡Esto Es La Guerra! Robert Capa en acción. Barcelona, New York, Göttingen: Museu Nacional d’Art de Catalunya, International Center of Photography, Steidel, 2009. YOUNG, Cynthia (ed). The Mexican Suitcase. New York, Gotingen: International Center of Photography, Steidl, 2010.

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