As grades de Germi

May 28, 2017 | Autor: Luiz Felipe Soares | Categoria: Literary Theory, Art and image theory, Pietro Germi
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As grades de Germi

O título de A cidade se defende também poderia ser Grades. Elas são
uma obsessão no filme. Barras de metal, portões, telas, alambrados,
balaustradas, portas e janelas aparecem quase a cada plano, não apenas
reiterando o tema da defesa, mas produzindo uma síntese da modernidade
urbana (não apenas do pós-guerra). Grades e portões internos ao estádio
atrapalham a fuga dos três assaltantes, Guido (Paul Muller), Paolo (Renato
Baldini) e Alberto (Enzo Maggio) – Luigi (Fausto Tozzi), o quarto, os
espera no carro. No apartamento da ex-namorada, Daniela (Gina
Lollobrigida), onde Paolo tenta se esconder, ele briga com as portas
internas, só lhe sobrando a janela, enquanto a polícia briga com a porta de
entrada; a entrada do prédio é cercada por uma grade de ferro. O prédio em
que Luigi mora com a mulher, Lina (Cosetta Greco), e a filha, Sandrina
(Patrizia Manca), é explorado pela câmera como uma grande muralha, em cuja
espessura há toda uma complexa geometria de corredores, escadarias e
claustros. Depois de pegar a filha no portão de ferro da escola, Luigi
caminha com ela por uma rua murada e invadida pela fumaça do trem que passa
paralelamente, abaixo – topografia artificial que também cumpre as funções
da grade: divisão, organização, proteção. No trem em que Luigi foge com
Lina e Sandrina, já enquadramento pelos trilhos e esquadrinhado pelo
bilheteiro, Lina, às lágrimas, é emoldurada, geometrizada por uma janela,
gritando pelo marido em fuga.

Já Guido, acostumado ao enquadramento de suas telas e desenhos,
movimenta-se intersticialmente, jogando com as fronteiras do permitido. No
restaurante, ele pode e não pode desenhar a cliente bonita (Tamara Lees).
Na estação ele atravessa trilhos e ruas, em trajetória permeável à lei
(própria do artista) ao jogar com paralelismos e perpendicularidades. Por
fim, Alberto ao mesmo tempo nega e garante sua vida ao brincar com
enquadramentos. Depois de explorar junto com a câmera uma profusão
escheriana de escadas e grades sobrepostas na altura e na espessura de
outro pardieiro, ele também atravessa uma janela, mas agarra-se a uma grade
externa, tosca e quadriculada – sob olhares ansiosos da mãe, do pai e da
lei, acima dele, e da comunidade que se reúne, abaixo, visível numa ousada
composição espacial em diagonal.

Para Rosalynd Kraus, grades são pontes entre natureza e cultura.
Sobrepostas cartesianamente sobre um mapa, por exemplo, elas nos localizam
no mundo, na cidade. Precisamos delas. Aplicadas a um rosto dito "real",
elas permitem o desenho do rosto, sua redução ou ampliação. De certa forma
nossa identidade depende das grades.

Havia no neo-realismo a busca por uma real identidade nacional, depois
da queda das ilusões fascistas, e então contra a Igreja Católica, o
capitalismo americanista e a social-democracia. Em cada um desses desenhos
de nação pode haver um modo de usar as grades. Em Germi, a nação desejada
era vista a partir da grade marxista em que o real é a luta de classes.
Aquela que, como neste filme, se contrapõe à ideologia vendo num pardieiro
uma muralha ainda cheia de vida. Além disso, neste filme, o desenho de uma
Itália real que precisa se assumir é assumido ironicamente enquanto
desenho. Os quatro assaltantes desesperados, em fuga por entre tantas
linhas e grades, tornam-se desenhos modelares de italianos que buscam,
também, afirmar seus desenhos: não apenas Guido, o desenhista, mas também
Luigi, o galã viril que ousa querer mandar em si mesmo; Paolo, o ex-craque
da bola cuja decadência é reconhecida pelas crianças; e Alberto, a criança,
que cedo reconhece o mundo como cerca.

Todos sempre estiveram presos por essas grades, por toda essa
analítica do espaço. Se a lei que defende depende da exceção, como faz ver
Agamben, justo a partir da Itália, desde a Roma Antiga, Germi localiza em
suas grades o mecanismo pelo qual essa dependência se espraiou no último
meio século, desde o berço da Itália moderna. Na poesia irônica de seus
enquadramentos aparece toda a violência dessa modernização.




Luiz Felipe Soares, doutor em Letras/ Estudos de cinema pela
Universidade Federal de Santa Catarina (Ufsc), é professor do curso de
Cinema da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul).
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