AS IDÉIAS COMO DELITO: A IMPRENSA ANARQUISTA NOS REGISTROS DO DEOPS-SP (1930-1945) - Rodrigo Rosa da Silva

July 14, 2017 | Autor: R. Rosa da Silva | Categoria: Anarquismo, Anarquismo - Brasil - 1890-1930, DEOPS, Repressão Política
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO NO BRASIL (VOLUME 1)

Rafael Borges Deminicis Daniel Aarão Reis Filho (organizadores)

HISTÓRIA DOANARQUISMO NO BRASIL (VOLUME 1)

Editora da Universidade Federal Fluminense Niterói, RJ –‑ 2006

Copyright © 2006 by Rafael Borges Deminicis e Daniel Aarão Reis Filho (Organizadores) Direitos desta edição reservados à EdUFF - Editora da Universidade Federal Fluminense  - Rua Miguel de Frias, 9 - anexo - sobreloja - Icaraí - CEP 24220-900 - Niterói, RJ - Brasil  - Tel.: (21) 2629-5287 - Fax: (21) 2629- 5288 - http://www.prop.uff.br/eduff E-mail: [email protected] - MAUAD Editora - http://www.mauad.com.br - E-mail: [email protected] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. Normalização: Caroline Brito de Oliveira Edição de texto: Sônia Peçanha e Tatiane Andrade Revisão: Maria das Graças C. L. L. de Carvalho e Icléia Freixinho Capa, projeto gráico e editoração eletrônica: José Luiz Stalleiken Martins Supervisão gráica: Káthia M. P. Macedo Colaboradores: Marcos Peri, Renato Ramos e Milton Lopes

Dados Internacionais de Catalogação-na-fonte - CIP H673

História do Anarquismo no Brasil (volume 1) / Rafael Deminicis e Daniel Aarão Reis Filho (organizadores) — Niterói : EdUFF : Rio de Janeiro : MAUAD, 2006. 268 p. : il. ; 23 cm. – (Coleção Biblioteca EdUFF, 2004). Inclui bibliograias. ISBN 85-228-0414-1 1. História. 2. Anarquismo. I. Título. II. Série. CDD 320.75

Grupo de Estudos do Anarquismo – GEA/NEC – GHT/UFF

UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE Reitor: Cícero Mauro Fialho Rodrigues Vice-Reitor: Antônio José dos Santos Peçanha Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação: Luiz Antônio Botelho Andrade Diretora da EdUFF: Lívia Reis Diretor da Divisão de Editoração e Produção: Ricardo Borges Diretora da Divisão de Desenvolvimento e Mercado: Luciene Pereira de Moraes Assessora de Comunicação e Eventos: Ana Paula Campos Comissão Editorial Presidente: Lívia Reis Gisálio Cerqueira Filho João Luiz Vieira José Walkimar de Mesquita Carneiro Laura Cavalcante Padilha Márcia Motta Maria Laura Martins Costa Mariângela Rios de Oliveira Vânia Glória Silami Lopes

Sumário O GRUPO DE ESTUDOS DO ANARQUISMO – GEA/NEC, 7 Rafael Borges Deminicis (UFF) BREVES AGRADECIMENTOS, 9 SOBRE A COLETÂNEA, 11 ANARQUISMOS, ANARQUISTAS, 15 Daniel Aarão Reis Filho (UFF) A AURORA DO ANARQUISMO, 23 Nildo Viana (UEG) RAÍZES DO ANARQUISMO NO BRASIL, 45 Alex Sandro Barcelos Côrtes (UFF) DESVIO E ORDEM: O ANARQUISMO E A POLÍCIA NA REPÚBLICA VELHA, 57 Alexandre Ribeiro Samis (UFF) A IMIGRAÇÃO GALEGA E O ANARQUISMO NO BRASIL, 75 Eliseo Fernández, Milton Lopes, Renato Ramos ANARQUISMO EM PROSA E VERSO: LITERATURA E PROPAGANDA ANARQUISTA NA IMPRENSA LIBERTÁRIA DE SÃO PAULO DURANTE A PRIMEIRA REPÚBLICA, 95 Claudia Feierabend Baeta Leal (UNICAMP) As iDÉIAS COMO DELITO: A IMPRENSA ANARQUISTA NOS REGISTROS DO DEOPS-SP (1930-1945), 113 Rodrigo Rosa da Silva (UNICAMP) O INIMIGO DO REI: UM JORNAL ANARQUISTA, 133 Leonardo Carvalho Pinto (UNEB) LIMA BARRETO: ESCRITOR NEGRO E ANARQUISTA, 147 José Benjamin Montenegro (UFCG) NA CONSTRUÇÃO DE UMA BIOGRAFIA ANARQUISTA: OS ÚLTIMOS ANOS DE GIGI DAMIANI NO BRASIL, 161 Luigi Biondi (UFC) FLORENTINO DE CARVALHO, UM PROFESSOR INDISCIPLINADO! 181 Rogério Humberto Zeferino Nascimento (UFCG) A UNIVERSIDADE POPULAR: EXPERIÊNCIA EDUCACIONAL RIO DE JANEIRO, 203 Milton Lopes (GEA/NEC) O ANARQUISTA DAS LETRAS, 231 Orlando de Barros (UERJ) ANEXO, 265 ANARQUISTA NO

AS IDÉIAS COMO DELITO: A IMPRENSA ANARQUISTA NOS REGISTROS DO DEOPS-SP (1930-1945) Rodrigo Rosa da Silva1

A repressão ao anarquismo e o DEOPS O anarquismo foi alvo de intensa repressão em vários períodos da história, não só no Brasil, mas na maioria dos países em que se desenvolveu e acumulou força política, sendo visto pelas autoridades como uma ameaça à ordem vigente. Em São Paulo, há um histórico de repressão política que cresce às primeiras greves operárias e ao sur‑ gimento das organizações anarquistas. Leis e decretos foram criados e aplicados numa tentativa de minar as forças do movimento através de expulsões e desterros de estrangeiros e militantes, proibição de formação de entidades políticas, empastelamento de jornais, violên‑ cia contra as manifestações de rua e prisão de muitos anarquistas e simpatizantes. De acordo com Christina Lopreato (2003), há registros poli‑ ciais de repressão ao anarquismo, em São Paulo e no Rio de Janeiro, desde 1893; carregar debaixo do braço um jornal anarquista bastava como “prova do crime”. A apreensão de jornais igurava no rol das ações policiais, lado a lado com a vigilância, as detenções e prisões de militantes, o fechamento de entidades e sindicatos de tendência anarquista etc. Um breve olhar sobre a história do movimento operário durante as primeiras décadas do século XX é suiciente para notar que tais procedimentos foram aplicados em diversos momentos de nossa história republicana.2 A intermitente repressão ao movimento anarquista correspondia aos momentos de maior atividade sindical, ou aos períodos consi‑ derados críticos, ante a eclosão de supostos levantes e revoluções, manifestando‑se, ora pela aprovação de leis de criminalização do

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ativismo e de expulsão de estrangeiros, ora através de prisões arbi‑ trárias, dispersão violenta de concentrações e assaltos às redações de periódicos ou organizações operárias. Em dezembro de 1924, porém, com o surgimento do DOPS – Departamento de Ordem Política e So‑ cial, criou‑se uma polícia investigativa, especialmente voltada para o controle de “crimes políticos” e “crimes sociais”, responsável por uma repressão sistemática e sistematizada, capaz de atender à necessida‑ de de lei e ordem, e de “higienização social”, através do combate aos “indesejáveis” que ameaçavam a “saúde social” do país.3 O DOPS nasceu no conturbado governo do presidente Arthur Bernardes (1922‑1926), caracterizado pela vigência quase permanente de estado de sítio. A fundação do Partido Comunista Brasileiro e os levantes tenentistas, concomitantemente às greves operárias entre 1917‑1920, deram origem a uma legislação social nova e ao fortale‑ cimento dos instrumentos de força de que dispunham o Estado e a burguesia.4 A missão do DOPS era organizar a repressão com mais eiciência, contendo os movimentos populares e a ameaça do segmento militar radicalizado. Nos anos subseqüentes, os órgãos de segurança passaram a atuar seletivamente contra as lideranças políticas e os pobres em geral, negros, capoeiras, desempregados etc. Apesar de a Revolução de 30 ter introduzido novos atores e arranjos inéditos no cenário político‑social, a repressão cresceu sem cessar, intensiicando‑ ‑se, inclusive, no que diz respeito à articulação até então inexistente. A pesquisa dos prontuários do DEOPS‑SP (Departamento Esta‑ dual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo)5 revelou que só a partir de meados de 1930 a polícia política passou a funcionar sistemática e intensamente. Antes de 1920, não encontramos nenhum documento referente aos anarquistas.6 Após a extinção legal do DEOPS, em 1983, as ichas de antecedentes permaneceram sob custódia da Polícia Federal, servindo ainda como fonte de informação para ações policiais e militares,7 até que em 1991 foram disponibilizadas para consulta pública. Sabe‑se que a repressão política sobreviveu por quase 60 anos, através de regimes escancaradamente ditatoriais e de períodos di‑ tos liberais, sem perder as suas características: impingir o terror e colecionar arbitrariedades. De tão arraigadas, essas práticas policiais deixaram profundas marcas na sociedade brasileira.8 Ainda que o foco principal da atuação do DEOPS tenha sido alte‑ rado, a partir de 1935, centrando‑se no PCB e seus aliados, em resposta

à Intentona Comunista, e em 1938, na perseguição aos integralistas, após a tentativa de invasão do Palácio Guanabara, a repressão ao anarquismo e aos anarquistas nunca deixou de existir. Ao iniciar‑se a Segunda Guerra Mundial, quando a polícia política voltou‑se contra os cidadãos originários de países do eixo (alemães, italianos e japone‑ ses), os documentos de seus arquivos comprovam uma permanente repressão aos anarquistas durante os anos de 1924 a 1937, e mesmo depois, de forma intermitente, até meados da década de 1940. O DEOPS costumava sistematizar e catalogar as informações e documentos apreendidos e produzidos como “provas do crime”, recheando de papéis pastas a que correspondiam um número e o nome de um indivíduo, um grupo ou uma organização. Esses prontu‑ ários carregam histórias de quem ou do que foi, um dia, considerado “perigoso à ordem vigente”. Muito “suspeitos”, sem dúvida, eram os jornais anarquistas.

A imprensa anarquista Os jornais libertários, panletos, folhas, livretos, com periodici‑ dade certa ou esporádicos, tiveram uma inegável função formadora de opiniões e de fomento à revolta dos trabalhadores. É por meio do “discurso oral ou escrito que as idéias circulam, seduzindo, reelabo‑ rando valores e gerando novas atitudes” (CARNEIRO, 2002, p. 32). Robert Darnton (1992), em sua análise sobre a literatura sedicio‑ sa do século XVIII, esboça um corpus especíico dos livros proibidos, contestadores de “todas as ortodoxias – religiosas, ilosóicas, polí‑ ticas”, e que “zombam dos valores da Igreja e do Estado”. Sem dúvi‑ da, “sentimos uma poderosa fermentação ao lermos esses textos” (DARNTON, 1992, p. 160). Na França, essa literatura contribuiu para desencadear a revolução. Darnton acredita que “não podemos medir claramente seus efeitos na ação, nem recuperar a arriscada alquimia que transmuta a sedição em revolução, mas podemos seguir seus tra‑ ços, e sabemos, com certeza, que ela se comunica por um instrumento temível: o livro” (DARNTON, 1992, p. 161). O autor se refere à circula‑ ção e à leitura de livros, mas podemos também destacar os jornais e folhetos, destinados não só à formação política e à propagação dos ideais revolucionários, como à convocação de reuniões, palestras e manifestações. Esse item tem enorme relevância para a compreensão

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dos anarquistas, do seu movimento e da sua visão de mundo, e da repressão que se abateu sobre editores e leitores. Através de uma ampla rede de contatos, os jornais chegavam a todo o Brasil, praticamente. Tendo em vista conscientizar e ganhar novos adeptos, basicamente doutrinários, eles desempenhavam fun‑ ção ao mesmo tempo educativa e moralizante. No DEOPS encontram‑se jornais confiscados em poder de militantes e até prontuários completos, dedicados a alguns deles, A Lanterna e A Plebe, entre outros. Além disso, documentos da polícia apontam as folhas anarquistas como um “perigo à ordem social”. É fundamental, portanto, desvendar os mecanismos de repressão a esses jornais, uma vez que foi para atingir o movimento anarquista que se empreenderam ações para diminuir a sua circulação.

A Lanterna Um dos jornais mais perseguidos pelo DEOPS foi A Lanterna. Fundado pelo jornalista e advogado Benjamin Motta, em 7 de março de 1901, na cidade de São Paulo, este periódico anticlerical circulou até fevereiro de 1904; nessa primeira fase, foram publicados 60 números. Voltou a ser impresso em 17 de outubro de 1909, agora sob respon‑ sabilidade de Edgard Leuenroth. Acaba em 1916, após 293 edições, mas reaparece em julho de 1933, ainda nas mãos de Leuenroth, para desaparecer deinitivamente no inal de 1935.9 Insistindo em iluminar as consciências contra as trevas da ignorância em que o clericalismo jogava a população, A Lanterna sempre fez jus ao seu nome. Assumi‑ damente um “jornal de combate ao clericalismo”, suas páginas eram repletas de ásperas críticas aos padres, à Igreja e ao Vaticano. A marcação cerrada que sofreu está explícita no Informe Reser‑ vado de dois investigadores, dias após o seu ressurgimento, em julho de 1933. Os beleguins relatam que “o jornal agitador anticlerical, ‘A Lanterna’, vai ser impresso, agora, na Gráica Paulista, à rua da Glória, nº 42”.10 No prontuário encontram‑se anexadas cópias de folhetos, pan‑ letos e convites relacionados às atividades do periódico. No festival realizado no Salão das Classes Laboriosas, em que discursaram Luiza Peçanha e o próprio Leuenroth, um policial iniltrado observou que “a maioria dos espectadores eram de fora, pessoal de algum trato, mos‑ trando bem quão eiciente tem sido a propaganda feita pelo jornal”.11 A presença de “arapongas” em reuniões e meetings anarquistas nada

tinha de incomum; havia investigadores designados para “cobrir” cada grupo suspeito. É curioso como muitos trechos dos relatórios expressam opi‑ niões pessoais dos “tiras” que os redigiram. Durante a comemoração pela queda da Bastilha, promovida por A Lanterna e realizada na sede da Federação Operária de São Paulo, em 13 de julho de 1934, “houve representação de duas peças, bastante obscenas, interessando muito à Polícia de Costumes”.12 Muitos militantes compareceram ao evento, denunciando, tanto na audiência como no palanque, a semelhança entre a Bastilha e os presídios paulistas. Um exemplar da edição de 20 de julho de 1933 encontra‑se anexado ao processo. Ela nos dá uma noção de como eram ferrenhas as críticas ao clero. Na capa, há uma ilustração de um barco repleto de padres e freiras, e um deles, apontando, grita: “Terra! Terra! O Pão de Açúcar! O Brasil! Eis‑nos em nosso Paraíso.” E na legenda: “Quando os povos civilizados limpam a sua casa, atiram o lixo para o Brasil”.13 A repressão foi além. Em novembro de 1935, temendo agita‑ ções comunistas, a Liga Anticlerical de Campinas foi fechada, e seu responsável, Atílio Pessagno,14 preso. Na sede da entidade, a polícia encontrou diversos exemplares de A Lanterna, assim como dezenas de outros jornais e uma pequena biblioteca de teor anarquista. Em seu depoimento, perante o delegado da cidade, Pessagno declarou “com‑ bater o clericalismo, por meio de conferência, por meio de imprensa, fazendo uso, neste caso, do jornal A Lanterna”.15 A polícia quis saber das suas ligações com “agitadores comunistas”, mas ele airmou que, por ser anarquista, nada tinha a ver com o comunismo, o PCB ou a ANL. Mesmo assim, “considerado elemento perigoso pelas suas idéias e pelas suas atitudes”,16 foi mantido preso por cerca de dois anos. Em 1947, durante uma reorganização do arquivo do DEOPS, um tal escrivão Magalhães deu‑se conta de que o processo havia prescrito e arquivou‑ ‑o, anotando “Se ele é anarquista, não pode ter ideologia comunista, pois esta última exige e obriga disciplina férrea”.17 Francisco Cianci,18 anarquista italiano que destacou‑se na greve insurrecional de 1917, em São Paulo, foi denunciado à polícia por carta anônima, segundo a qual ele recebia todo mês 300 cópias do jornal L’Adunata dei Refrattari, publicado em Nova York. Na busca, em sua residência, os investigadores encontraram materiais “comprometedo‑ res”, entre eles um panleto anticlerical de autoria, segundo relatório do serviço especial da polícia, “do perigoso anarquista Francisco Cianci,

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líder da Federação Operária de São Paulo”, que “constantemente cos‑ tuma fazer propaganda contra o regime burguês capitalista e contra o governo do Armando Salles, taxando‑o de fascista!”.19 O episódio lhe rendeu alguns dias de detenção. Em outra busca realizada na casa e na oicina de Ernesto Gattai,20 a polícia encontrou grande quantidade de publicações anarquistas, inclusive 85 exemplares de A Lanterna. Anexo ao prontuário de Pedro Brandão de Oliveira, encontra‑se um cupom de assinatura do jornal anticlerical e uma carta comentando a viagem do redator, Edgard Leu‑ enroth, ao Rio Grande do Sul.21 O DEOPS deparava‑se freqüentemente com indivíduos e grupos anticlericais e anarquistas. Para a polícia, a simples posse de jornais libertários tornava o indivíduo culpado por “crime de idéias”. José Oiticica, em carta interceptada pela polícia – violar corres‑ pondência era habitual – demonstra preocupação com A Lanterna, e aponta a necessidade de reabilitar o jornal. Muitos editores e colunistas de jornais anticlericais de São Paulo, do interior e de outros estados simpatizavam com as idéias anarquistas. Os anarquistas acreditavam que o combate à Igreja era parte da luta pela liberdade. O clero, aliado dos opressores, colaborava para a manutenção da escravidão do povo. Segundo Eduardo Valladares, os libertários eram incansáveis nas denúncias de que o Estado traz privilégios e miséria e a Igreja, sua íntima aliada, viola as consciências. Sempre tentavam mostrar que a vida miserável dos trabalhadores não era decorrente de uma vontade divina, e sim da união existente entre os capitalistas e seus parceiros, a Igreja e o Estado.22

O anticlericalismo foi combatido pela Igreja, pela burguesia e pela polícia, acusado de ser produto de “militantes estrangeiros” e de “afrontar a mentalidade do povo brasileiro, que possuía sangue católico nas veias”.23 Em resposta à primeira acusação, os anarquistas lembravam, sarcásticos, que o cristianismo, tanto quanto o anarquismo e outras doutrinas políticas, não tiveram origem nas Américas, e que a vinda de padres estrangeiros para pregar o evangelho vinha desde o período colonial, mantendo‑se até as primeiras décadas do século XX. Por mais tensas que possam ter sido, as relações entre o Estado

e a Igreja em alguns períodos de nossa história, principalmente nos primeiros anos após a proclamação da República, o clero sempre procurou a acomodação com o Estado. Defendendo a obediência, a subserviência e o respeito à hierarquia, aliados a suas práticas sociais paternalistas e à sua atuação no meio sindical, a Igreja colaborou no processo de exclusão da Primeira República, e conseguiu reconquis‑ tar alguns de seus privilégios, restabelecendo, ainal, o poder que desfrutava na sociedade.

A Plebe A intensa perseguição movida pelos investigadores contra os periódicos anarquistas foi particularmente acirrada quando se tra‑ tou de A Plebe, seus editores e colaboradores. Fundado por Edgard Leuenroth em plena greve geral que paralisou a cidade de São Paulo por três dias, em junho de 1917, o jornal tornou‑se porta‑voz dos ope‑ rários e arauto das suas reivindicações. Sucessor de A Lanterna, mas veículo doutrinariamente anarquista, em suas páginas ampliaram‑se os ataques à Igreja, ao Estado e ao Capitalismo. Um dos textos publi‑ cados dizia que “para vencer o monstro social que infelicita o povo produtor não bastará decepar‑lhe uma de suas monstruosas cabeças que, como as de Hydra de Lerna, renasce com redobrado vigor para a sua maléica ação”.24 Recorrendo à mitologia grega, A Plebe propunha combater não somente o clero, posto que decepar uma das várias cabeças da serpente só a faria renascer; era preciso desferir golpes contra tudo aquilo que representasse exploração e opressão. A Plebe foi o mais duradouro órgão da imprensa anarquista no Brasil, circulando por todo o país e no exterior durante mais de 30 anos, e sendo publicado até 1949, com pequenas interrupções ocasionadas por problemas inanceiros e perseguições policiais. Sua periodicidade variou muito, de bimestral a mensal, eventualmente semanal, e sua tiragem chegou a atingir 10.000 exemplares, em 1919. A distribuição era feita pelos próprios militantes, nas ruas e em algumas bancas. Contribuições individuais, doações e de listas de apoio concorriam para a sustentação do jornal, mas os assinantes é que efetivamente o mantinham, recebendo‑o pelo correio, em pacotes, e fazendo‑o chegar a outras localidades. As seções “Munições para A Plebe” e “Correio Plebeu” publicavam todos os valores que chegavam à redação e os

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pedidos de remessa. Os recursos vinham de Taquaritinga, Barretos, Capão Bonito, Poços de Caldas, Palmeira, Vitória, São Luiz Gonzaga, Ponta Grossa, Fortaleza etc. Na edição de 26 de fevereiro de 1927, após mais de dois anos de ausência, o jornal reairma a necessidade das colaborações: “Lembrem‑se também os amigos da ‘A Plebe’ que o seu porta‑voz na imprensa vive exclusivamente do seu auxílio e que, se ele faltar, o nosso esforço será anulado pela impossibilidade de sozinhos mantermos a publicação da folha libertária”.25 As listas icavam a cargo de grupos de militantes e sindicatos, como “Os Sem Pátria”, de Sorocaba, o “13 de Outubro”, de Birigui, e a União Geral da Construção Civil, de Recife. Os festivais cumpriam a dupla função de divulgar e arrecadar fundos. Piqueniques também serviam para coletar dinheiro. Um deles realizou‑se no domingo, 23 de setembro de 1934, no Parque Jabaquara, incluindo “corrida pedestre e de saco”, com prêmios em livros, e “churrasco/chimarão”.26 Bilhe‑ tes de uma rifa de apoio foram vendidos em 1937; o vencedor desta “Ação entre Amigos de A Plebe” receberia uma caneta entalhada em madeira por Gusmão Soller,27 detido no Presídio Maria Zélia, à espera da conclusão do seu processo de expulsão, ainal arquivado.28 A propaganda do jornal se fazia por meio de panletos. Um deles estampava que: “O anarquismo é uma doutrina social que preconiza uma sociedade livre de todas as opressões e explorações do homem pelo homem. O semanário ‘A Plebe’ é porta‑voz dos anarquistas. Aos sábados está à venda em todas as bancas”.29 A Plebe teve vários redatores, desde Edgard Leuenroth, passan‑ do por Florentino de Carvalho, Manuel Campos, Pedro Augusto Mota e Rodolfo Felipe. Tipógrafo e jornalista, Edgard Leuenroth30 fundou a União dos Trabalhadores Gráicos e seu periódico O Trabalhador Gráico, tendo dirigido, ainda, a Folha do Povo, A Lanterna, A Guerra Social e A Plebe. Participante ativo da vida sindical, esteve presente em vários congres‑ sos operários. Foi preso após a greve geral de 1917, e na década de 1920, devido às agitações pró‑Sacco e Vanzetti. Em 1936 sofreu uma prisão “preventina”. Segundo Jaime Cubero, secretário do Centro de Cultura Social, Leuenroth esteve na cadeia “n vezes”.31 Florentino de Carvalho32 dirigiu A Plebe pelo curto período de detenção dos redatores que haviam participado da greve de 1917. Ele próprio amargou o cárcere e acabou sendo expulso do país, re‑ tornando em seguida. Na década de 1930, ainda era vigiado de perto

pela polícia. A Relação de Anarquistas, elaborada pela polícia em 1926, dava conta de suas viagens de propaganda para pactuar “não só movimentos subversivos, como também o fabrico de bombas de dinamite e máquinas infernais”.33 Manuel Campos, espanhol, faleceu aos 33 anos, em 1925, vítima da tuberculose. Antes, estivera preso em Santos, e, apesar dos pro‑ testos, foi expulso do país em novembro de 1914, responsabilizado pelas agitações dos estivadores. De volta ao país, tornou‑se redator de A Plebe também por um curto período. Novamente preso à época da greve insurrecional de 1918, no Rio de Janeiro, foi libertado e mais uma vez detido, em 1920. Disseminou‑se então uma intensa campanha de denúncia contra essa arbitrariedade, praticada pelo delegado Ibraim Nobre. A pressão dos jornais libertários e dos operários e estivadores obteve sucesso. Livre, Manuel Campos mudou‑se para o Rio, indo trabalhar na construção civil. A doença adquirida nas masmorras matou‑o em pouco tempo.34 Pedro Augusto Mota atuou no Ceará até mudar‑se para São Paulo e tornar‑se redator de A Plebe, em 1924. Signatário do manifesto de 5 de julho de 1924, em que os anarquistas airmavam seu apoio aos acon‑ tecimentos revolucionários em andamento, foi enviado à Clevelância. Ele foge, mas vem a falecer em janeiro de 1926, em Saint Georges, na Guiana Francesa.35 De todos, apenas Manuel Campos e Pedro Augusto Mota não possuem prontuários no DEOPS‑SP. A estrita vigilância exercida sobre A Plebe está patente no rela‑ tório reservado de 30 de janeiro de 1933, onde se lê que:“Acaba de sair o número 11 do jornal libertário A Plebe, órgão direto da Federação Operária de São Paulo, e que encerra artigos de conhecidos anarquistas residentes em São Paulo”.36 Segundo a polícia, o “órgão oicial da FOSP” era O Trabalhador, dirigido pelo espanhol Hermínio Marcos,37 secretário da entidade. Vigiado pela polícia desde 1915, ele já fora preso diversas vezes como agitador, culminando por ser expulso do país em 1934. Aos 9 de março de 1933, respondendo a ofícios anteriores, o delegado de Ordem Social reporta ao chefe do Gabinete de Investi‑ gações que a Federação Operária de São Paulo [...] professa o anarquismo e, por todos os meios ao seu alcance, procura iniltrá‑lo entre as massas proletárias.

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114 Não é entidade reconhecida pelo Governo federal e, em absoluto, não reconhece a autoridade do Ministério do Trabalho.

Na seqüência, ele informa que A Plebe “dá acolhimentos às notas referentes à Federação”. Em seguida, aponta a “inconveniência em continuar a serem editadas essas publicações”, e sugere que sejam “pelo menos, submetidas à censura, como todos os outros jornais da capital”. O documento conclui com a solicitação de providências junto ao chefe de polícia local, a im de “zelar pela ordem social”, para que se ponha im à propaganda feita por ambas as publicações, pois, “conforme se poderá veriicar de seus escritos, os jornais em questão propagam abertamente a doutrina anarquista, em linguagem sempre acessível aos trabalhadores, tornando‑os verdadeiros e sinceros adep‑ tos do ideal anárquico”.38 Com o intuito de cumprir tal ordem, a polícia paulistana iniciou uma verdadeira caça ao jornal A Plebe. Passados não mais que dois dias, em 11 de março, cinco inspetores saíram às ruas da capital, reali‑ zando “batidas” em diversas bancas de jornais, apreendendo todos os exemplares à venda.39 No total, 495 exemplares.40 Os editores, porém, não esmoreceram. Uma anotação feita à tinta no relatório reservado de 4 de abril de 193341 declara que “A Plebe não se sujeita à censura. Isto é ilegalidade punível. À polícia compete essa repressão”. Rodolfo Felipe,42 então redator do periódico, estava detido desde 27 de fevereiro. Embora sem nenhuma prova, fora enviado ao Presídio Político do Paraíso, por ordem do delegado Viriato Carneiro Lopes, que o acusara de anarquista.43 Sua prisão gerou protestos da FOSP e do próprio jornal, cuja edição icou a cargo de Adelino Pinho. Em reunião da federação, Pinho declarou que, apesar da perseguição e da censura, A Plebe continuaria a ser publicado, normalmente. A edição de 11 de março, estopim da ofensiva contra o jornal, saiu com a seguinte nota: “Rodolfo Felipe continua, infelizmente, preso, no ‘Pa‑ raíso’ [...] Protestamos mais uma vez contra a arbitrariedade da sua prisão e reclamamos a sua soltura imediata”.44 Consta do seu prontuário que ele exerceu a direção de La Barricata e Germinal, e participou da greve geral de 1917. Em carta pessoal enviada a Edgar Rodrigues,45 Felipe airma ter começado a militar nas ileiras anarquistas em 1908, e dedicar a sua vida ao ideal por mais de 40 anos. Sobre as prisões que sofreu, relata que esteve

“no [presídio] Maria Zélia durante 19 meses” e “conheci quase todos os postos policias de São Paulo”. Libertado em 16 de março de 1933, foi intimado em 19 de junho, para esclarecimentos; detido em 6 de outubro, por fazer propaganda anarquista, e em 12 de novembro, por publicar artigos censurados, experimentou algum sossego ao longo dos anos de 1934 e 1935. Em novembro deste ano, entretanto, voltou às grades, permanecendo preso em caráter preventivo até março. Na madrugada de 8 de maio, sua casa foi invadida pela polícia. A apreensão de grande quantidade de jornais e de um livro de hinos “subversivos” rendeu‑lhe quatro dias sob custódia do DOPS. Viajando a passeio para a cidade de Santos, foi preso após um banho de mar, em 8 de junho, junto com Gusmão Soller. No dia 30, perante o Juízo de Direito para Inquirição de Presos Políticos, declarou que na polícia daquela localidade apenas lhe perguntaram como tinha fugido para Santos, pois estivera preso; que por mais que o declarante explicasse que tinha sido regularmente solto, continuou preso naquela localidade por cerca de doze dias, num cubículo infecto juntamente com loucos, epilépticos, morféticos, mendigos e presos comuns criminosos, onde o declarante teve oportunidade de assistir quadros horrorosos de passarem presos três dias sem comer porque a comida distribuída era manifestamente insuiciente.

Permaneceu no cárcere até 16 de junho de 1937, quando o Tribunal de Segurança Nacional, no Rio de Janeiro, mandou arquivar o processo. Mesmo atrás das grades por tanto tempo, Rodolfo Felipe con‑ tinuou sua militância em prol do anarquismo, editando pequenos jornais escritos a lápis. Esses boletins improvisados circulavam entre os prisioneiros, contendo notícias e “causos” da vida carcerária em termos críticos e sarcásticos. Seus nomes eram sugestivos: Gazeta do Paraíso, A Truta, A Cana e O Xadrez. O número 3 deste último trazia um anúncio: “Vende‑se duas grades de ferro em perfeito estado. Preço bom. Tratar com Martinez. Xadrez 11.” Na mesma edição: “Todos os hóspedes que ontem ausentaram‑se do ‘Paraíso’ à francesa foram

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reguindados a este inconfortável estabelecimento de repouso”. Já um dos exemplares de A Cana traz a história de uma “festa” que os presos izeram quando um companheiro de cela conseguiu um prego, cedido pela administração do presídio, para que pudesse pendurar a roupa. Em meio à “comemoração”, e “profundamente emocionado diante de tanta ordem e disciplina [Felipe] proferiu um choroso discurso sobre a anarquia [...] encerrando‑se assim a bela festa do preguinho.” Cópias de A Plebe e de O Xadrez encontram‑se anexadas ao seu prontuário como “provas” de seu crime: defender o anarquismo. Não só editar jornais e escrever colunas caracterizava, aos olhos dos investigadores da Ordem Política e Social, um crime punível com prisão. Muitas pessoas foram detidas e “ichadas” pelo DEOPS apenas por ter em mãos uma edição de A Plebe. Os exemplares encontram‑se nos prontuários do próprio jornal e de seu editor, Rodolfo Felipe, bem como na pasta referente à Federação Operária de São Paulo.46 No prontuário do suíço Felix Zirolia,47 encontra‑se um exemplar de O Trabalhador, de 1o de maio de 1932, e a notícia de sua prisão junto com José Surckre, “por portar jornais e panletos”. Edições de A Plebe foram ainda apensadas aos prontuários de Angelo Venâncio,48 Francisco Giraldes Filho49 e Melchiades Pereira de Souza.50 Ernesto Gattai, além de cópias de Lanterna, tinha em sua casa 108 diferentes exemplares de A Plebe.51 Um caso singular aconteceu com Benedito Romano,52 ex‑mili‑ tante do PCB, convertido ao anarquismo a partir da sua participação na FOSP. Abandonado num bonde Penha‑Lapa, um pacote de jornais anarquistas foi levado à delegacia. Ao ser fotografado, constatou‑se que o material era destinado à Caixa Postal 195. Os próprios funcionários dos correios informaram da chegada periódica de publicações estran‑ geiras àquele endereço. Assim, os investigadores do DEOPS armaram uma armadilha e prendeream Benedito, dentro da agência, no dia 1o de outubro de 1941. Em sua residência foi apreendido um belo acervo de publicações anarquistas: seis livros e 12 jornais, incluindo um exemplar de A Plebe e um de A Lanterna, adesivos e fotograias. Ao delegado de polícia, ele airmou que havia sido detido diversas vezes pelo mesmo motivo – “recebimento de jornais anarquistas” – e que desde 1937 era responsável pela coleta da correspondência enviada à Caixa Postal 195, registrada em nome de Edgard Leuenroth e “a serviço do anarquismo desde 1900”, para uso de A Plebe. No prontuário, dá como “Motivo da Prisão: Atividades Anarquistas”.53 Benedito Romano foi processado,

mas aparentemente o inquérito não chegou a ser concluído. Acabou posto em liberdade pouco mais de um mês após o episódio.

Resistência à repressão Apesar do poder que a repressão dispõe sobre as suas vítimas, e conquanto não fossem indiferentes à perseguição que sofriam, os anarquistas não se deixavam intimidar. O relatório reservado de 9 de março de 193354 relata uma reunião na sede da FOSP, onde foi “discutido o caso da prisão de Rodolfo Felipe, redator de A Plebe”. Para o delega‑ do do DEOPS, Dr. Bento Borges da Fonseca, a prisão fora “arbitrária”, pois “os comunistas têm mais direito de reunião que eles, anarquistas, porque quase todos os comunistas são nacionais, ao passo que os anarquistas são estrangeiros”. Outro relatório reservado55 revela que os anarquistas se opunham às políticas trabalhistas de Getúlio Vargas, e que tinham ciência da iniltração de agentes de polícia: Hermínio Marcos foi agressivo ao último limite contra os Poderes constituídos, depois de fazer referências ao Ministério do Trabalho e ao Departamento Estadual do mesmo [...]. Aconselhou os ouvintes à rebeldia do operariado espanhol, terminando por dizer que o operário deve rebelar‑se e não aceitar as imposições de quem quer que seja, inclusive não temer a polícia de Ordem Social, cujos representantes se ali estivessem nada poderiam fazer.

Em uma reunião do Sindicato dos Artíices em Calçados e Classes Anexas, na sede da Federação, em abril de 1933, um dos presentes: “atacou a polícia por ter prendido e proibido a circulação do jornal A Plebe, dizendo também que a polícia, agora, tem agido, porém com mais receio, porque sabe bem que os operários agora estão organizados e por isso a polícia já tem um pouco de medo”.56 Pela imprensa e em reuniões, a questão dos presos e as práticas repressivas sempre estiveram em pauta. Ginzburg airmou, recentemente, que “juízes e historiadores estão vinculados pela busca das provas”,57 mas através de métodos diferentes de coleta, análise e apresentação. Buscando uma postura

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anti‑retórica, os historiadores utilizam‑se de citações, criando uma narrativa truncada e dissonante, e ainda assim mais eicaz do que dis‑ cursos ictícios e longas listas de autores. Daí o recurso às notas nas margens ou nos rodapés. Para obter “efeito de verdade”, reconstruir fatos e comprová‑los, os historiadores recorrem também a evidências agrupadas e analisadas (e citadas) num arranjo particular a cada autor. Já os juízes, e por conseqüência todos os membros do Poder Judiciário, e a polícia transformam cada indício em prova a favor ou contra o “acusado”. As provas se encadeiam na constituição de uma espécie de história nem sempre completa e linear, mas arquitetada pelos investigadores a partir de pequenos fragmentos de “fatos”, convertidos em “icções” do enredo almejado e conveniente aos seus interesses. As fontes “reais” são delações, vigilâncias, depoimentos, interrogatórios, apreensões de documentos etc. “O efeito de verdade” sustentado pelo DEOPS ergue‑se sobre o medo e a violência. A polícia precisa “mostrar serviço” e autojustiicar‑se. Por isso, as fontes policias são perigosas, do ponto de vista do historiador. Ginzburg chama atenção para o cuidado necessário ao se “avaliar as provas”, e frisa que os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam, por meio da possibilidade de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. [...] é preciso aprender a ler os testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu.58

Se por um lado tal sorte de documentos seduz, pela sua riqueza de informações e organização, deixando entrever por entre suas linhas a vida e as idéias dos detidos e vigiados, por outro, é intermitente, cao‑ lha e planejada. A organização de um prontuário policial, basicamente de acusação, visa incriminar alguém, sendo uma construção consciente por parte das autoridades policiais e de seus funcionários. Nos rela‑ tos, os investigadores costumavam tão‑somente indicar quando tal palestrante foi mais exaltado, e sobre as atividades, supostamente subversivas; o restante, ou seja, as demais atividades do “suspeito” ou da organização, capazes de dar uma idéia de normalidade ou morali‑

dade, são postas de lado, talvez por concorrerem para atestar alguma honestidade, caráter ou boa vontade aos “indesejáveis” e “inimigos da ordem”. Esta tática de forjar os próprios inimigos recaiu sobre os anar‑ quistas. Desde ins do século XIX, seja através de manobras judiciárias, seja por meio de constantes cerceamentos de liberdade, o Estado vem tentando transformar o anarquismo em delito, associando‑o à imagem do agitador estrangeiro e dinamitador. A vigilância exercida pelo DEOPS sobre cidadãos “suspeitos” a priori deixa claro que não se buscava “o criminoso a partir do crime, mas o crime através do (suposto) criminoso”.59 A pessoa era conside‑ rada suspeita e potencialmente criminosa, ou extremista, segundo o jargão das autoridades, conforme as suas idéias e as suas leituras, que a coniguravam aos olhos da polícia como uma “ameaça à segurança nacional”. O crime político era o crime contra a autoridade, contra o Estado. Portanto, mesmo sem ter cometido qualquer delito ou ato anti‑social, o indivíduo era “culpado” por ser anarquista, assim como os judeus, os italianos, as mulheres, os homossexuais etc. Através dos prontuários do DEOPS, pode‑se entender a tentativa estatal de consolidar e neutralizar, pelo esmagamento, esses inimigos sediciosos. De fato, é impossível enganar‑se diante de tantos documentos comprobatórios da preocupação que os jornais anarquistas causavam, e o temor que suas organizações despertavam, durante toda a década de 1930 e até meados da década de 1940. Obviamente, o anarquismo não “foi destruído”, “superado por formas melhores de organização” ou “tornou‑se incipiente”, ou invísivel. Mesmo admitindo reluxos, intercalados com momentos de maior agitação, não se pode traçar uma curva da efervescência política no período pós‑1930 sem levar em conta os anarquistas, a Federação Operária de São Paulo, o Centro de Cultura Social, as páginas de seus periódicos, as manifestações anti‑ fascistas e de combate ao integralismo. Se a repressão policial esteve presente, a ação e a resistência também estiveram, seja através de militantes e associações, seja por meio de periódicos que divulgavam ideais e peris de coragem.

Notas 1

Mestrando em história social do trabalho pelo IFCH/UNICAMP, sob orientação do Dr. Michael M. Hall.

2

Cf. HALL; PINHEIRO (1985), LOPREATO (2000), RODRIGUES (1972) e SAMIS (2002).

3

Cf. LOPREATO, 2003.

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Cf. PINHEIRO & HALL, 1985, p.106

5

Optou‑se por utilizar a denominação DEOPS‑SP, pela qual o órgão tornou‑se mais conhecido, apesar das diversas mudanças de nomenclatura que sofreu ao longo de sua existência. Cf. AQUINO; MATTOS; SWENSSON JR. (2001).

6

Rara exceção é a sempre citada e consultada “Relação de Anarquistas”, elaborada em 1926. Isso não signiica que a polícia não elaborasse documentos ou exercesse vigilância sobre os anarquistas, mas sim que nos prontuários a que tivemos acesso a documentação concentra‑se com maior freqüência entre os anos de 1930 e 1941.

7

Cf. AQUINO; MATTOS; SWENSSON JR., 2001, p.25‑26.

8

Podemos citar como emblemáticos dois casos recentes: uma série de reportagens divulgadas há algum tempo pela Folha de S.Paulo a respeito de documentos militares que se prestavam à vigilância de movimentos sociais (Cf. Folha de S. Paulo, edições 15/7/2001); e o procedimento do GRADI (Grupo de Repressão e Análise de Delitos de Intolerância), denunciado em São Paulo por grupos de direitos humanos por seus procedimentos de iniltração de agentes e de vigilância de movimentos sociais, chegando a ser alcunhado como “um novo DOPS”, Cf. GRADI, um novo DEOPS? in DH – Jornal do Grupo Tortura Nunca Mais –SP, Ano II, no 3, Nov/2002.

9

Cf. RODRIGUES, 1997.

10

Doc.01, Folha 01, Prontuário DEOPS‑SP no 1553 – A Lanterna.

11

Doc.03, Folha 03, Prontuário DEOPS‑SP no 1553 – A Lanterna.

12

Doc.02, Folha 02, Prontuário DEOPS‑SP no 1553 – A Lanterna.

13

A Lanterna, Ano XI, no 355 – 20/07/1933.

14

Prontuário DEOPS‑SP no 3748 – Atílio Pessagno.

15

Doc.04, Folha 04, Prontuário DEOPS‑SP no 3748 – Atílio Pessagno.

16

Doc.08, Folha 08, Prontuário DEOPS‑SP no 3748 – Atílio Pessagno.

17

s/Doc., s/Folha, Prontuário DEOPS‑SP no3748 – Atílio Pessagno.

18

Prontuário DEOPS‑SP no 625 – Francisco Cianci.

19

s/Doc., s/Folha, Prontuário DEOPS‑SP no 625 – Francisco Cianci.

20

Doc.21, Folha 17‑18, Prontuário DEOPS‑SP no 4688 – Ernesto Gattai.

21

Doc.10, Folha 12 e Doc. 11, Folha 13, respectivamente, Prontuário DEOPS‑SP no 3097 – Pedro Brandão de Oliveira.

22

VALLADARES, 2000, p.14.

23

VALLADARES, 2000, p.66.

24

A Plebe, Ano I, no 01 – 09/06/1917.

25

A Plebe, Ano XI, no 246 – 26/02/1927.

26

Panleto apreendido, intitulado “Grande Pique‑nique popular de ‘A Plebe’”, s/doc., s/folha, Prontuário DEOPS‑SP no 2303 – A Plebe.

27

Prontuário DEOPS‑SP no 4045 – Gusmão Soller.

28

Prontuário DEOPS‑SP no 122 – Edgard Leuenroth (2 volumes).

29

Prontuário DEOPS‑SP no 2303 – A Plebe.

30

Para saber mais sobre a vida e a obra de Edgard Leuenroth ver KHOURY (1988).

31

Cf. JEREMIAS et al. (2002, p. 145).

32

Para saber mais sobre a vida e a obra de Florentino de Carvalho ver NASCIMENTO, 2000.

33

Cópia do índice no 1 da Relação de Anarquistas, 15/02/1931 – Prontuário DEOPS‑SP no 144 – Florentino de Carvalho.

34

Cf. RODRIGUES (1997, p. 131‑136).

35

Cf. RODRIGUES (1998, p. 57‑60) e SAMIS (2002, p. 220).

36

Doc.13/16, Folha 15, Prontuário DEOPS‑SP no 188 – Hermínio Marcos Hernandez.

37

Prontuário DEOPS‑SP no 188 – Hermínio Marcos Hernandez.

38

Doc.06, ls. 08, Prontuário DEOPS‑SP no 2303 – A Plebe.

39

Doc.09, ls. 11, Prontuário DEOPS‑SP no 2303 – A Plebe.

40

O número de bancas inspecionadas e a distribuição geográica delas pela cidade dá uma noção do alcance da distribuição de A Plebe naquele período: “Largo S.Bento, Rua José Paulino, Estação da Luz, Avenida Tiradentes, Praça do Correio, Largo da Sé, Praça do Patriarca, Largo do Tesouro, Praça Antônio Prado, Largo da Concórdia, Estação do Norte, Largo do Belém, Avenida São João, Penha, Rua Teodoro Ramalho, Consolação e Rua Paraíso.”

41

Doc.21, ls. 23, Prontuário DEOPS‑SP no 2303 – A Plebe.

42

Prontuário DEOPS‑SP no 400 – Rodolfo Felipe.

43

s/doc., s/folha, Prontuário DEOPS‑SP no 400 – Rodolfo Felipe.

44

A Plebe, São Paulo, 11/03/1933.

45

Cf. RODRIGUES (1998, p. 97‑98).

46

A Plebe no 5 (24/12/1932), no 8 (14/01/1933) e no 9 (17/01/1933), Prontuário DEOPS‑ ‑SP – 716 – Federação Operária de São Paulo (4 volumes).

47

O Trabalhador no 6 (1/5/1932), Prontuário DEOPS‑SP no 1685 – Feliz Zirolia.

48

A Plebe no 72 (29/09/1934), Prontuário DEOPS‑SP no 2764 – Angelo Venancio.

49

A Plebe no 91 (22/06/1935), Prontuário DEOPS‑SP no 3117 – Francisco Giraldes Filho.

50

A Plebe no 66 (07/07/1934), Prontuário DEOPS‑SP no 3034 – Melchiades Pereira de Souza.

51

Doc.21, ls. 17‑18, Prontuário DEOPS‑SP no 4688 – Ernesto Gattai.

52

Prontuário DEOPS‑SP no 1262 – Benedito Romano (2 volumes).

53

s/Doc., ls. 11, Prontuário DEOPS‑SP no 1262 – Benedito Romano.

54

Doc.15/18, ls. 17, Prontuário DEOPS‑SP – 188 – Hermínio Marcos Hernandez.

55

Doc.58/50, ls. 54, Prontuário DEOPS‑SP – 188 – Hermínio Marcos Hernandez.

56

Doc.18, ls. 20, Prontuário DEOPS‑SP – 2303 – A Plebe.

57

Cf. GINZBURG (2002, p. 62).

58

Cf. GINZBURG (2002, p. 43).

59

Cf. AQUINO; MATTOS; SWENSSON JR. (2001, p. 25).

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