As Ideias de Civilização e de Cultura

June 19, 2017 | Autor: Emanuel Guerreiro | Categoria: Cultural History, Cultural Studies, Civilização, História das Ideias
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AS IDEIAS DE CIVILIZAÇÃO E DE CULTURA

A cultura é um modo de se estar no mundo. Vergílio Ferreira (1992:282)

I. INTRODUÇÃO

Civilização e Cultura são dois termos interligados, dependentes do Homem e da relação com o seu semelhante, resultantes da vida em sociedade e do meio que influencia a existência humana: «(…) o termo civilização nunca vem só: é indefectivelmente acompanhado pelo termo cultura que, no entanto, não se limita a ser simplesmente o seu duplo. (…) há também a cultura e as culturas.» (Braudel, 1990:88). A uma civilização planetária única, caracterizada por

um

espírito

científico,

por

desenvolvimento

das

técnicas,

por

estabelecimento de uma política e de uma economia racionais, se opõe a cultura de cada país (culturas nacionais), cada uma das quais pode ser definida como um complexo estruturado de valores, um todo coordenado e sistematicamente integrado que guia a vida intelectual, o pensamento crítico e reflexivo de um indivíduo, de uma época, de um país. Até meados do século XVIII, o termo cultura era praticamente ignorado,1 oscilando-se entre uma distinção ou identificação com o termo civilização:2

«Partindo das suas raízes etimológicas no trabalho rural, a palavra começa por significar algo como ‘civilidade’ tornando-se, no século XVIII, mais ou menos sinónima de ‘civilização’, na acepção de um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material.». Cf. Eagleton, 2003:20. 2 Na primeira metade do século XIX, o termo alemão kultur era utilizado como sinónimo dos termos inglês civilization e francês civilisation; mas, na Inglaterra, na segunda metade do mesmo século, encontra-se o uso do termo cultura como sinónimo de civilização. O conceito de cultura seria definido, pela primeira vez, por Edward B. Tylor, em 1871, no seu livro Primitive Culture. 1

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Cultura e civilização nascem em França quase na mesma altura. Cultura, cuja vida interior é longa (já Cícero falava de cultura mentis), só toma na realidade o seu sentido peculiar de cultura intelectual em meados do século XVIII. (…) civilização aparece pela primeira vez numa obra impressa em 1766. O termo não tinha sido (…) empregado antes. Nasce, pois, muito atrasado em relação ao verbo civilizar e ao adjectivo civilizado, que remontam aos séculos XVI e XVII. Na realidade, foi necessário inventar, fabricar completamente o substantivo civilização. Designa, desde o início, um ideal profano de progresso intelectual, técnico, moral e social. A civilização é as «luzes». «À medida que a civilização se expandir pela terra, irão desaparecendo a guerra e as conquistas, a escravatura e a miséria», profetiza Condorcet em 1787. Nestas condições, a civilização não é concebível se não encontrar apoio numa sociedade de bom-tom, fina, «educada». Oposto à civilização está a barbárie (…). (Braudel, id.:90-91)

Terry Eagleton (id.:21) considera que «(…) enquanto a palavra francesa ‘civilização’ incluía normalmente a vida política, técnica e social, a ‘cultura’ alemã, tinha uma conotação mais estreitamente religiosa, artística e intelectual.». Será no século XIX que os dois termos se afastarão, dado o termo civilização assumir um carácter imperialista e cultura remeter para um significado social e de elevação intelectual; contudo, a etnologia (ou antropologia cultural) recusa opor cultura a civilização, não devendo a primeira ser considerada como um mero suplemento ornamental. Cultura e Civilização podem e devem unir-se, podem e devem distinguir-se. Unir-se, tornando-se reciprocamente englobantes, porque partem do mesmo sujeito (o homem como ser social) e porque visam o bem desse homem. Distinguir-se, porque a cultura vai mais no sentido da transcendência e civilização vai mais no sentido da imanência; porque cultura é mais do domínio do «ser», dos valores espirituais e da satisfação espiritual, e civilização mais do domínio do «ter», dos progressos técnicos, materiais e morais. Cultura constitui o aspecto pessoal e criador da Civilização e esta constitui o aspecto mais técnico e material da Cultura. Cultura refere-se, sobretudo, a uma actividade mental, enquanto Civilização se 2

liga mais às manifestações externas dessa actividade, como construções e edificações, meios de transporte e de comunicação.3 Com o movimento expansionista, o homem europeu viu-se perante uma nova realidade, dado o confronto com um outro homem, diferente na cor, nos hábitos, nos costumes, nas normas e regras de conduta – isto é, com uma cultura diferente da do descobridor, com outra civilização: «Uma primeira coisa se verificou com a Expansão dos portugueses no mundo: a existência de civilizações ‘sui generis’, com esplendores (…) artísticos ou monumentais impressionantes, nas terras do Oriente.» (Silva Dias, 1988:170). Entendendo-se civilização como a superioridade de uma sociedade sobre outra, neste caso, da Europa sobre outros povos, este novo «modelo de mundo», uma «nova forma de ver», obriga a uma alteração, a uma nova valoração: «A Europa descobre, redescobre o mundo e vê-se obrigada a acomodar-se à nova situação; um homem é um homem, uma civilização uma civilização, qualquer que seja o seu nível. Produz-se, então uma multiplicação das civilizações ‘de lugar’ (…).» (Braudel, id.:92). T. S. Eliot (1988:149) defendia: «(…) ‘cultura’ significa (…) o modo de vida de um povo particular que vive junto num lugar.». Desse encontro de povos e culturas diferentes resultaram processos de adopção, selecção e adaptação de novos elementos culturais, base de uma evolução que resulta de um intercâmbio comercial, científico, técnico e artístico. Conclui Fernand Braudel (id.:91):

Por volta de 1850, depois de muitas metamorfoses, civilização (e ao mesmo tempo cultura) passam do singular ao plural. (…) Ao pluralizar civilizações e culturas, renuncia-se implicitamente a uma civilização definida como um ideal, ou melhor, como Há quem defenda que é a partir do momento em que existem Estado e cidades que se deve falar de civilização, remetendo o termo para uma ideia de organização política, de estado de direito em que o homem actua como cidadão: «(…) este termo marca pela primeira vez a diferença entre um estado selvagem e um estado submetido às leis (…).». Cf. Hazard, 1974:210. 3

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o ideal (…). Tende-se já a considerar com o mesmo interesse todas as experiências humanas, tanto as europeias como as dos outros continentes.

II. AS IDEIAS DE CIVILIZAÇÃO E DE CULTURA

1.

Na linguagem corrente, a palavra civilização significa, quando aplicada a um povo, a posse dum património de bens materiais e de actividades espirituais que determinam uma condição elevada de vida colectiva, em oposição à dos povos chamados «bárbaros» ou «selvagens»; é o conjunto das manifestações da vida material e espiritual de um povo ou de uma época, qualquer que seja o seu grau de evolução e a sua riqueza. Entende-se por «povo civilizado» aquele em que se verifica um desenvolvimento contínuo: o progresso, ideia fundamental no conceito de civilização, como movimento gradual das instituições políticosociais do género humano, visando a perfeição e a felicidade, podendo resultar de uma evolução espontânea ou ser um fenómeno de imitação ou imposição. Para Lucien Febvre (apud Hazard, id.:211), civilização designava «(…) o triunfo e o desabrochar da razão, não apenas no domínio constitucional, político e administrativo, mas ainda no domínio moral, religioso e intelectual.». O termo civilização está directamente relacionado com tornar civilizado, instruir, difundir a civilização de um povo a outro, considerado mais atrasado e inferior, o que denota um juízo de valor que eleva a «nossa» civilização em detrimento da de «outros». Deste modo, os grupos ditos evoluídos empreenderam uma acção para trazer os grupos ditos menos evoluídos para um estado mais próximo do ideal de progresso intelectual, técnico, moral e social.

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No entanto, há quem considere que uma sociedade superior e avançada em termos técnicos e intelectuais não é detentora única de «civilização»: para o sociólogo e o etnólogo, todos os povos têm uma «civilização», dado um povo, por mais «primitivo» que se possa supor, ter os seus usos e costumes, a sua religião, a sua concepção do mundo e da existência, a sua técnica. Mesmo qualificado de «primitivo», qualquer grupo humano não está isento de organização social ou de conhecimentos técnicos, aquisições que garantem o seu porvir.

Assim,

as

sociedades

primitivas,

aparentemente

«atrasadas»,

apresentam-se bem adaptadas ao seu meio ambiente, o que revela a coerência entre o seu género de vida e o local onde vivem, como expressão de uma cultura, formas de agir e esquemas de vida partilhados pelos membros de uma comunidade.4 A cultura está indissoluvelmente ligada a um grupo humano, ao qual confere a sua identidade, com um conjunto de valores que lhe é próprio, e é esta diversidade de concepções que permite definir uma cultura em relação a outra. Daí que uma civilização seja uma área cultural, um conjunto de traços, de fenómenos culturais. Os povos legaram à posteridade documentos da sua actividade mental, que é possível encontrar nos inventos, na arte, nos monumentos, a que habitualmente se dá o nome de civilização; para exemplificar, veja-se a cultura azteca, subjugada pela conquista dos espanhóis no continente americano. Parece, então, que as civilizações envelhecem e morrem: ataques, guerras, concentração urbana, crime, doença, corrupção, pobreza, não serão factores que «matam» uma civilização? O colonizador obriga a respeitar o seu sistema de valores e os indivíduos podem perder a sua Atente-se no que pode ser designado como «homem primitivo actual»: a vivência das tribos amazónicas ou da Austrália, por exemplo, nossas contemporâneas, sem escrita nem tecnologia, mas com uma memória colectiva e transmissão de uma tradição que as identificam e diferenciam como sociedade organizada. 4

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identidade quando lhes são impostos elementos exteriores; perdem, então, a sua cultura, por influência – e pressão – de outra civilização, por vezes imposta pela violência ou através da força. Contudo, mesmo neste processo ocorre uma aculturação mútua, dado que a cultura dominante poderá assimilar elementos da cultura do povo dominado. Há, pois, uma relação conflitual, uma relação de forças entre culturas diferentes perante uma ameaça aos seus valores e à sua visão do mundo, à sua autonomia e equilíbrio, pois, desde o momento em que contacta com outras culturas, toda a sociedade humana sofre influências. As culturas existem em plena mudança: interpenetram-se, adquirem importância ou, pelo contrário, declinam até desaparecerem. Uma civilização não é um mundo fechado, como se fosse uma ilha no meio do oceano: as civilizações partilham, entre si, um fundo comum que permite a troca, entre elas, de valores e bens culturais; esta circulação nunca se interrompe, dado as civilizações se encontrarem abertas a este intercâmbio de conhecimentos. Defende Edward McNall Burns (1977:28):

Dizemos (…) que uma cultura merece o nome de civilização quando atingiu um nível de progresso em que a escrita tem largo uso, em que as artes e as ciências alcançaram certo grau de adiantamento e as instituições políticas, sociais e económicas se desenvolveram suficientemente para resolver ao menos alguns dos problemas de ordem, segurança e eficiência com que se defronta uma sociedade complexa.

A cultura é o conjunto dos saberes, das normas, das regras, dos costumes, das obras, elementos da vida humana, materiais ou espirituais, não geneticamente hereditários e, portanto, transmitidos de geração em geração, que constituem a herança social de uma comunidade ou de um grupo de comunidades, assegurando a sua perpetuação. É pelo intercâmbio oral entre gerações que se perpetua a tradição e a cultura sobrevive, num conhecimento 6

partilhado por indivíduos que vivem em grupo (sem excluir os analfabetos, por se valorizar uma cultura meramente livresca). A cultura afirma-se, pois, como comunicação, tendo por base uma língua, necessariamente diferente da de outro povo. A cultura será transmitida, ensinada, aprendida, isto é, reproduzida por e em cada indivíduo que, interiorizando informações e regras, perpetua o capital cultural e o modelo da sociedade onde se encontra inserido. A cultura do grupo é adquirida por aprendizagem e prática social e não por qualquer mecanismo biogenético: a cultura impõe-se do exterior ao novo indivíduo, que a recebe por herança, transmitida por herança, como se se tratasse de qualquer bem patrimonial. Cada geração recebe a cultura como um património que herda e, simultaneamente, trabalha-a, acrescenta-lhe o seu contributo, ao encontrar novas normas e valores, ao inventar novas formas de relacionamento ou de realização técnica, dado os esquemas e valores culturais não se reproduzirem de uma maneira perfeita de geração para geração, adaptando-se continuamente, evoluindo em função de necessidades económicas ou do contacto com civilizações diferentes. Porque o indivíduo pode alterar a cultura, ele surge não só como portador, mas também como produtor, indo, também ele, transmiti-la, por herança, às gerações vindouras. Este processo inicia-se logo ao nascimento, através de um conjunto de processos culturais que se mantêm até à morte do indivíduo. A cultura não só se transforma, evoluindo, como pode, também, desaparecer – na verdade, o desaparecimento físico de um povo (civilização) conduzirá, também, ao desaparecimento da sua cultura, como referimos em relação aos aztecas, contanto que permaneçam, ainda hoje, marcas da sua existência. Daí que a grandeza ou decadência de um povo se deva quer à sua evolução cultural como aos acontecimentos que a afectam. 7

A cultura surge como um dado fluido e relativo; daí, a afirmação de que não há cultura, mas culturas. É um termo plural e vastíssimo, porque variável no tempo e no espaço. É a formação do homem enquanto homem, com o desenvolvimento dos seus conhecimentos e educação das suas faculdades corporais, intelectuais, morais e religiosas, por meio de actos que exprimem uma atitude de respeito e reverência para com algo ou alguém, considerados superiores, algo a que foi dado valor, por a cultura resultar de uma transformação valorativa. A cultura concebe, transforma e realiza valores. Engloba todas as actividades do homem como ser social, que não é apenas indivíduo, ser para si, mas participante de uma série de relações com outros indivíduos, com os quais realiza uma comunidade: se o primeiro contacto entre dois homens os tornou num ser social, esse fenómeno social humano constituiuse, por sua vez, no primeiro dos fenómenos culturais. Fenómeno partilhado, que confere uma semelhança entre elementos de um grupo, distinguindo-os de outro grupo, necessariamente portador de outra cultura. A cultura é, pois, a expressão do modo de vida, de pensar, sentir e agir de um determinado grupo. A cultura é a acção que o homem realiza quer sobre o seu meio, quer sobre si mesmo, visando uma transformação para melhor e concretizando a forma de expressão e de realização de um grupo, na medida em que lhe prolonga e amplia os magros recursos com que a natureza o dotou, permitindolhe sair mais facilmente vitorioso da luta a travar com o seu meio, no intuito de o dominar e transformar. Assim, o meio onde vive modela a cultura de um povo, dado condicionar as respostas aos problemas que se lhe deparam. Todas as culturas são respostas distintas a questões essenciais que se colocam quer ao homem individual, quer ao conjunto social. Ela é universal, mas cada uma é única; sendo resultante da vida dos homens em sociedade, é natural que ela não 8

permaneça inalterável ao longo dos tempos: é, portanto, diversa e múltipla. Cada grupo engendra a sua cultura; por isso, não há cultura, mas culturas.

2.

O encontro de culturas continua a ser uma constante da História, seja através das guerras e das conquistas ou por meios de comunicação mais pacíficos, como as trocas de consumo corrente: vestuário (de origem americana, como os jeans), perfumes (franceses), aparelhos de transmissão e comunicação (asiáticos), etc. Desde que se acha em contacto com outras culturas, toda a sociedade sofre influências, podendo integrar técnicas, produtos de consumo e ideias que existam na cultura estrangeira, num permanente acto de renovação que lhe permite progredir. Hoje em dia, as trocas culturais são aceleradas quer por movimentos migratórios quer pela velocidade da troca de informação imediata pelos meios de comunicação, pondo em contacto povos com culturas diferentes e criando novas formas de relacionamento, normas e valores, implicando alterações na cultura dos povos. Os europeus, principalmente os portugueses e os espanhóis, nas suas viagens expansionistas, encontraram civilizações que se lhes apresentavam como exóticas, dada a diferença de costumes, o que representou, para os homens cultos do Renascimento, o afundamento da sua concepção do mundo, até então centrada completamente na Europa. A colonização não foi, apenas, exploração económica: foi povoamento, foi transmissão do idioma, da cultura, da técnica, foi evangelização – as missões portuguesas foram, durante séculos, autênticos focos de irradiação da cultura portuguesa nas paragens longínquas descobertas e conquistadas: «A força predominante na criação de uma cultura 9

comum entre povos que têm, cada um, sua cultura distinta é a religião.» (Eliot, id.:151). Cristianizar, evangelizar, era civilizar; só era civilizado o indivíduo que fosse cristianizado. No entanto, não foram só os povos recém-descobertos que enriqueceram culturalmente com a presença dos europeus: o saber e a cultura dos povos subjugados, ou com quem se estabeleciam contactos, exerceram, em especial no século XVI, uma enorme influência na literatura, na arte e na ciência europeias: «(…) nações de hábitos diferentes não são inimigas: são dádivas de Deus. Os homens exigem dos seus vizinhos algo suficientemente diferente para chamar a atenção, e algo grande o bastante para provocar admiração.» (A. N. Whitehead apud Eliot, id.:67). Confirme-se, por exemplo, a adopção, pela língua portuguesa, de vocábulos oriundos dos três continentes onde marcou a sua presença expansionista, para designar as novas realidades descobertas. O império português, como mosaico de grandes territórios, era também um mosaico de culturas: - o continente africano, vastíssimo, permaneceu misterioso para os europeus durante muito tempo, dado os contactos dos descobridores serem esporádicos e limitados ao litoral ou restringir-se a contactos comerciais com o norte de África. Só os missionários se fixaram e contactaram com as populações, que se encontravam divididas em numerosos grupos étnicos, com línguas, costumes

e

mentalidades

diferentes,

apresentando

vários

níveis

de

desenvolvimento. A febre do ouro e dos escravos e a violência e ganância dos colonos não deixaram florescer os valores dos nativos, pelo que a sensibilidade africana, moldada noutro universo, teve dificuldades em se adaptar aos modelos ocidentais;

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- as relações entre europeus e chineses, que punham em contacto o Ocidente e o Oriente, tiveram com os jesuítas uma acção considerável: a China, com um nível de desenvolvimento assinalável, recusava a ciência, a técnica e a religião da «bárbara» Europa; o asiático, paciente, místico, contemplativo, poético, fora da angústia do tempo, compreendia mal o europeu, activo e irrequieto, curioso e dominador; - tal como a China, o Japão começou por acolher mercadores e missionários; a arte, a língua e mesmo certos costumes foram modificados: os europeus introduziram temas orientais nas suas obras e os asiáticos, apesar do tradicionalismo, também fixaram imagens da civilização europeia – as duas culturas interpenetraram-se; - no continente americano, a acção colonizadora visava a expansão económica, pelo que os colonizadores ambicionavam obter metais preciosos e explorar produtos que pudessem render bons lucros na Europa. Contudo, a busca de riquezas seguia a par da catequização de novos fiéis, os afáveis índios do Brasil, que viviam num estado civilizacional elementar.5 Considera José Sebastião da Silva Dias (id:170):

A cultura tinha sido concebida durante a Idade Média como acumulação de saber e formas de saber, referida a um arquétipo eterno, que se deslocava no tempo e no espaço. O europeu habituara-se à ideia da unidade ambiencial do «cosmos»: as mesmas crenças, a mesma mentalidade, os mesmos costumes, a mesma organização social. Essa ideia (…) afundou-se com os Descobrimentos. A ideia do diferente, do relativo do «mundo» e das coisas, das crenças e do «habitat», infiltrou-se nos espíritos. (…) O

Aos missionários se deve a defesa da teoria do «bom selvagem», primeiro grau do conceito de primitivo que alimentou, no século XVIII, um debate filosófico em torno da bondade natural, por oposição à noção de pecado original. O «bom selvagem» era visto como o último representante do Paraíso, numa visão positiva do ser humano, em estado natural, contra os vícios e a degenerescência do homem civilizado: «[os Selvagens] Eram belos, ágeis, fortes, resistentes; felizes, pois haviam-se mantido fiéis aos costumes e à religião naturais, não conheciam nem o que é teu nem o que é meu, ignorando o dinheiro, fonte de todos os males (…). O homem nu incarnava a virtude, a verdade, a felicidade.». Cf. Hazard, id.:203. 5

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esquema medievo, fortemente contestado pelos teóricos do humanismo, além e aquém dos Alpes, foi assim atingido nos próprios alicerces pelas revelações da Expansão. Não só a cultura apareceu mais nitidamente como simples produto histórico, mas apareceu também como um produto histórico de conteúdo variável no espaço e no tempo.

Com os descobrimentos, regista-se o primeiro contacto directo com outros povos, que não eram monstros, mas pela sua figura, pelo seu modo de ser, distinguiam-se dos europeus. Se o primeiro contacto se revestiu de admiração, dúvidas e incertezas, relativamente ao que era novo e inesperado, a verdade é que se começa a descobrir o denominador comum de humanidade que unia povos diferentes, suplantando lendas e crenças medievais. Pela primeira vez, abriram-se os olhos sobre o homem e sobre o lugar que ocupava no cosmos.

III. CONCLUSÃO

Para Vergílio Ferreira (2001:173), cultura «(…) foi sempre um certo modo de ser e de estar na vida.». Em todos os tempos e lugares, a vida em sociedade tem suscitado crenças, criado normas, idealizado valores, encontrado soluções organizativas e institucionais, inventado instrumentos de trabalho, desenvolvido capacidades, aperfeiçoado habilidades, produzido obras artísticas, técnicas e literárias que a caracterizam e lhe conferem originalidade. Numa palavra, a vida em grupo é uma vida em estado de cultura, isto é, cada sociedade exprime-se e realiza-se através de uma cultura. Considera Lévi-Strauss (2010:11): «Existem muito mais culturas humanas do que raças humanas (…); duas culturas elaboradas por homens pertencentes a uma mesma raça podem

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diferir tanto ou mais que duas culturas provenientes de grupos racialmente afastados.». Visto que nenhuma cultura se encontra isolada, mas sim em constante contacto e coligada com outras culturas, é absurdo declarar a superioridade de uma em relação a outra. De igual modo, a civilização ocidental foi considerada superior pela sua acção: expandiu os seus soldados, as suas feitorias, os seus missionários por todo o mundo; interveio na vida, nos hábitos e nos costumes das populações recém-descobertas; revolucionou a existência destas, impondo a sua cultura, a sua religião, a sua língua – eixo fundamental da cultura, tanto sob a forma oral como escrita, é memória do saber acumulado pelo passado e garantia da identidade no futuro, porque homogeneíza em mundividência comum as formas de pensar, sentir e agir. A língua portuguesa é pátria de povos dispersos, espalhados pelo mundo inteiro; após tantos anos, não foi substituída por outra e não receia assimilar contributos de outras, como sempre fez durante séculos, num vivo intercâmbio cultural. Hoje, não é possível afirmar a superioridade ou a inferioridade intelectual de uma raça em relação a outra, porque: a) uma civilização é o conjunto de realizações materiais que o homem alcança e o estilo de vida por elas condicionado (por mais primitiva que uma civilização seja, não deixa de possuir estas características); b) uma civilização pode decair, por esgotamento das suas próprias forças. Há que reconhecer a coexistência de culturas que oferecem, entre si, a máxima diversidade, pelo que a perfeição da «(…) civilização mundial só poderia ser a coligação (…) de culturas que preservassem cada uma a sua originalidade.» (Lévi-Strauss, id: 61). As sociedades humanas nunca estão 13

completamente fechadas sobre si mesmas e nenhuma cultura se desenvolve por completo à margem das demais. Daí que cultura seja pôr em comum, «(…) concebida como a criação da sociedade como um todo (…).» (Eliot, id.:52). A verdadeira contribuição das culturas é a sua diferença, constantemente em devir, em constante transformação.

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BIBLIOGRAFIA

BRAUDEL, Fernand (1990). História e Ciências Sociais. Lisboa, Editorial Presença, 6.ª edição. BURNS,

Edward

McNall

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História

da

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Ocidental.

Lisboa/Porto Alegre, Centro do Livro Brasileiro/Editora Globo, volume 1, 3.ª edição. DIAS, José Sebastião da Silva (1988). Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI. Lisboa, Editorial Presença, 3.ª edição. EAGLETON, Terry (2003). A Ideia de Cultura. Lisboa, Temas e Debates. ELIOT, T. S. (1988). Notas para uma definição de Cultura. São Paulo, Editora Perspectiva. FERREIRA, Vergílio (1992). Pensar. Venda Nova, Bertrand Editora. ------- (2001). Escrever. Chiado, Bertrand Editora. HAZARD, Paul (1974). O Pensamento Europeu no Século XVIII (de Montesquieu a Lessing). Lisboa, Presença, volume II, 1974. LÉVI-STRAUSS, Claude (2010). Raça e História. Lisboa, Editorial Presença, 10.ª edição.

in Brotéria. Volume 180, Março 2015, pp. 225-236 15

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