AS IMAGENS DE FUNGOS EM LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS: REVISITANDO A MEMÓRIA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR

May 30, 2017 | Autor: Marcelo D'Aquino | Categoria: Science Education, Análise do Discurso, Micology
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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014

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AS IMAGENS DE FUNGOS EM LIVROS DIDÁTICOS DE CIÊNCIAS: REVISITANDO A MEMÓRIA NA EDUCAÇÃO ESCOLAR 1

Marcelo D’Aquino Rosa (PPGECT – UFSC) Henrique César da Silva (MEN – UFSC)

RESUMO Este trabalho realiza uma análise epistemológica e discursiva do conteúdo de fungos em alguns livros didáticos de Ciências. Neste artigo investigamos se estas imagens oferecem possibilidades de deslizes, dentro do que é conhecido como memória discursiva, na interpretação dos professores e estudantes que realizam a leitura destes materiais. As figuras dos livros didáticos escolhidos para o artigo são selecionadas e posteriormente analisadas com a ajuda da bibliografia específica para esta área de conhecimento do conteúdo dentro da Biologia e com os autores e textos da área da análise do discurso. A leitura destas imagens nos permite verificar que existem possibilidades de desvios (ou deslizes) na interpretação e leitura destas ilustrações. Palavras-chave: Fungos, Livro didático de Ciências, Ensino de Ciências, Ensino de Biologia, Memória discursiva.

INTRODUÇÃO

O livro didático (LD) de Ciências é, ainda nos dias atuais, o recurso mais presente nas unidades escolares brasileiras para o ensino e aprendizagem dos conteúdos científicos. Para além de sua importância nas escolas em nossa sociedade, o LD se tornou um produto da nossa cultura e um direito adquirido do estudante da rede pública em nosso país. Os conteúdos curriculares no LD de Ciências encontram-se organizados de acordo com o que regem os Parâmetros Curriculares Nacionais, os PCN (BRASIL, 1998), documentos que balizam a formulação destes instrumentos. A matriz curricular da disciplina de Ciências para os

Artigo construído como trabalho final da disciplina “Circulação e Textualização de Conhecimentos Científicos”, ofertada no Programa de pós-graduação em Educação Científica e Tecnológica (PPGECT – UFSC) no semestre letivo de 2013/1.

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anos finais (6º - 9º ano) do Ensino Fundamental (EF) determina que a temática vida e os diferentes grupos de seres vivos sejam estudados ao longo deste ciclo da vida escolar. Assim, em algum momento dentro dos anos letivos do EF, o conteúdo do reino dos fungos é trabalhado dentro da disciplina de Ciências e é neste momento que o professor e os alunos enfrentam um grande desafio: a distinção deste grupo de seres vivos do reino das plantas. Os problemas começam a surgir quando olhamos para o ensino de Ciências aos estudantes menores, ainda no primeiro ciclo do EF, correspondente aos anos iniciais da vida escolar (1º - 5º ano): os professores destes anos letivos, geralmente formados nas licenciaturas em Pedagogia, muitas vezes possuem dificuldades em distinguir os fungos das plantas, problema que pode acabar se transferindo aos pequenos estudantes. Historicamente, a distinção entre os reinos Fungi e Plantae já era bastante difícil pelo aspecto da observação macroscópica dos seres vivos, ou seja, apenas o que era visível a olho nu, sem a ajuda de microscópios ou grandes lentes de aumento, era levado em conta na hora de classificar e organizar as formas de vida. Posteriormente, com o advento da microscopia na Ciência, as diferenciações entre fungos e plantas começaram a ser observadas nas descrições mais básicas dos seres vivos: [...] Fungos só são parecidos com vegetais na questão da ausência de grandes movimentos corporais (Alexopoulos et al, 1996). Excetuando-se esse fator, há um abismo gigantesco entre esses dois reinos, que se não forem adequadamente considerados, dificultam o ensino e a compreensão da Micologia, para professores e alunos, durante todo o período da educação básica. Fungos são seres sem clorofila – pigmento fotossintetizante presente em plantas – cuja forma de nutrição é conhecida como heterotrofia, ou seja, há a necessidade da presença de outro ser vivo, seja ele animal ou vegetal, servindo como fonte de alimento ao fungo. Outra diferença básica entre fungos e plantas, é que os primeiros não apresentam parede celular composta por celulose e lignina, mas sim por quitina (Alexopoulos et al, 1996). (ROSA; MOHR, 2010, p. 96)

As diferenças entre os grupos dos fungos, plantas e animais continuam a existir e se aprofundarem quando analisamos outros aspectos biológicos destes seres vivos. Um quadro comparativo, com as descrições destes três grandes grupos, encontra-se na tabela 1.

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Tabela 1 - Quadro comparativo entre os fungos, os animais e as plantas (adaptado de JUNQUEIRA; CARNEIRO, 2000).

Pigmentos fotossintetizantes

Parede celular

Substância de reserva energética Forma de nutrição

Fungos

Animais

Plantas

Ausentes

Ausentes

Presente,

Ausente, mas

formada por

possuem

quitina

quitina

Glicogênio

Glicogênio

Amido

Heterótrofos

Heterótrofos

Autótrofos

Presentes (Clorofila) Presente, feita de celulose e lignina

O LD de Ciências, justamente por abordar este assunto como um dos conteúdos curriculares, e como maior dos suportes para os processos de ensino e aprendizagem em nossas escolas (CARNEIRO; SANTOS; MÓL, 2005), merece um olhar especial da pesquisa das áreas da Educação e Ensino para os problemas desta natureza em sua formulação. Segundo Nuñez e colaboradores (2001), materiais didáticos de qualidade duvidosa ainda circulam pelas unidades escolares do Brasil e o professor de Ciências, eventualmente, precisa saber trabalhar também com estes materiais, extraindo o melhor deles. Quando olhamos para a aprendizagem dos conceitos científicos baseada na leitura de imagens em LDs de Ciências, nos deparamos com a necessidade da interpretação destas figuras pelos estudantes. E o ato de interpretar, na perspectiva da Análise do Discurso francesa, ocorre quando o sujeito confere sentido a alguma imagem, baseado em sua memória discursiva, ou interdiscurso (ORLANDI, 2009). A memória discursiva, no conceito da autora, remete a aquilo que o sujeito traz consigo de concepções prévias em relação a uma temática. Estas concepções estão disponíveis na cultura

naquele momento histórico-social e irão permitir ao sujeito fazer sentido e reativar sua memória ao ler e interpretar algum discurso, como um texto escrito ou imagético. Esta memória

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faz com que cada sujeito interaja com os enunciados e os interpretem de diferentes maneiras, pois este espaço de memória discursiva é sempre heterogêneo (ORLANDI, 2009). Se conferir sentido é interpretar as imagens através de sua leitura e esta interpretação parte do que já existe na memória discursiva (ORLANDI, 2009), existe também a possibilidade de deslizes ou deslocamentos dentro destas interpretações. Este fato ocorre porque um leitor que interpreta uma imagem não é neutro, ou seja, este sujeito realiza a interpretação da imagem baseado numa memória discursiva. Para Orlandi (2009), a possibilidade da interpretação outra existe porque sempre existe o incompleto, aquilo que o sujeito não retoma em sua memória discursiva, ou interpreta de outra maneira, pois já estava filiado a outra rede que já existia: Pela natureza incompleta do sujeito, dos sentidos, da linguagem (do simbólico), ainda que todo sentido se filie a uma rede de constituição, ele pode ser um deslocamento nessa rede. Entretanto, há também injunções à estabilização, bloqueando o movimento significante. Nesse caso, o sentido não flui e o sujeito não se desloca. Ao invés de se fazer um lugar para fazer sentido, ele é pego pelos lugares (dizeres) já estabelecidos, num imaginário em que sua memória não reverbera. Estaciona. Só repete. (p. 54).

O objetivo deste artigo foi analisar como são abordadas as imagens do conteúdo de fungos em alguns LDs de Ciências, verificando se estas imagens possibilitam o surgimento de deslizes dentro da memória discursiva (ORLANDI, 2009). A análise epistemológica (do conteúdo) é importante dentro desta perspectiva da memória discursiva, pois nos permite discorrer sobre as possibilidades de deslizes em leituras de imagens em LDs de Ciências e conferência de sentidos – ou seja, a interpretação – a estas figuras pelos estudantes de Ciências. Uma vez realizada esta análise, podemos inferir o quanto as leituras sobre os fungos nestas imagens podem ser dúbias e apresentar potenciais interpretações errôneas e distorcidas em relação ao epistemologicamente correto do conteúdo científico abordado.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

A distribuição de LDs de Ciências nas escolas da rede pública no Brasil fica a cargo do governo federal, através de uma ação denominada Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD (BRASIL, 1985). Para este estudo foi folheado o Guia de Livros Didáticos (GLD) de 2011, um material que é referência para apresentação e escolha das coleções didáticas pelas unidades escolares e professores. 5316 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia

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O GLD analisado é referente aos anos finais do EF e foram escolhidas três coleções participantes da lista para análise das imagens: APEC (2006), Barros e Paulino (2006) e Canto (2012). Os dois primeiros LDs analisados são referentes a edições anteriores às últimas disponíveis no mercado, enquanto a terceira obra foi verificada através do último exemplar publicado desta coleção. As análises das coleções didáticas foram realizadas através de localização dos volumes contendo o conteúdo específico de fungos. Na primeira coleção estes conteúdos são trazidos no livro referente ao 6º ano do EF, enquanto nas duas últimas os fungos são abordados nos volumes referentes ao 7º ano. Após a procura dos capítulos sobre o reino Fungi nos LDs investigados, as imagens encontradas sobre o conteúdo foram analisadas e foi escolhida uma figura para cada coleção trabalhada neste artigo. Após esta análise inicial, as possibilidades de interpretação dos conhecimentos apresentados nas imagens foram levantadas e fez-se uma comparação entre estas leituras das imagens e a bibliografia específica desta área das Ciências. Os livros específicos do conteúdo de fungos (ALEXOPOULOS; MINS; BLACKWELL, 1996; JUNQUEIRA; CARNEIRO, 2000; ALBERTS, 2006) apresentam o conteúdo sobre fungos e seres vivos tal como os sentidos se encontram estabilizados hoje no campo discursivo da ciência, campo a partir do qual se deseja que o aluno construa suas significações, servindo de apoio para discussão epistemológica das imagens selecionadas. A discussão específica sobre o uso de imagens no ensino de Ciências é feita com base em textos e autores das áreas da Educação e do Ensino.

RESULTADOS E ANÁLISE

Como vimos até aqui, a interpretação dos discursos é passível de desvios ou deslizes pelas diferentes formações discursivas do sujeito, presentes em sua história (ORLANDI, 2009). Se para a autora o sujeito se relaciona com os discursos de acordo com sua memória discursiva, analisaremos a partir deste ponto as possibilidades de leitura das figuras escolhidas em cada coleção, evidenciando os potenciais erros a que estas imagens podem nos induzir e discutindo de que forma estes deslizes podem surgir para os estudantes a partir do seu interdiscurso. A imagem visualizada na coleção APEC (2006) (figura 1), a primeira das obras discutida, representa a primeira página do capítulo sobre seres que não são animais e nem plantas. Este já é um ponto problemático, pois pode levar o aluno de Ciências a induzir que as demais formas de vida diferentes de plantas animais são todas pertencentes ao mesmo grupo, o que não é verdadeiro: 5317 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia

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excetuando-se os reinos Animalia e Plantae, existem ainda os fungos, os protistas, as bactérias e os vírus (JUNQUEIRA; CARNEIRO, 2000). Existe ainda outro problema na imagem analisada: é mostrado crescendo sobre o solo um cogumelo com as cores vermelha e branca. A figura transmite a ilusão de que este fungo está presente e aparece no solo, crescendo de maneira análoga a uma planta, quando na verdade este ser está se nutrindo dos restos de vegetação mortos – provenientes das folhas e galhos secos no chão. Para ter esta clareza na interpretação da imagem, o estudante precisa assimilar a ideia de que os fungos são seres heterotróficos, o que pode não ocorrer na etapa do EF na educação.

Figura 1 - Página inicial do capítulo sobre Fungos na coleção didática analisada (Fonte: APEC, 2006).

Já a segunda coleção analisada apresenta em sua imagem (figura 2) um esquema ilustrado em cores-fantasia (fora do padrão original) de um cogumelo e seus esporos sendo espalhados pelo ambiente. Esta ilustração apresenta dois grandes erros conceituais: o primeiro problema está no tamanho exagerado do esporo, quando comparado com o cogumelo. Na verdade o esporo é muito menor que o cogumelo quando ambos são comparados diretamente. Para ser visualizado, o esporo de um fungo necessita de um microscópio óptico com lentes de aumento proporcionais a mil vezes o tamanho original dos objetos (ALBERTS, 2006). O segundo problema na figura 2 é relativo à forma como as hifas (filamentos) do cogumelo são representadas no solo. A forma da ilustração pode provocar no estudante uma interpretação errônea destes filamentos e a memória discursiva despertado no estudante pode remetê-lo a uma interpretação de raízes em plantas, estrutura presente apenas nos vegetais. Assim como os esporos, 5318 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia

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as hifas também são estruturas microscópicas e visualizadas apenas em um microscópio óptico (ALEXOPOULOS; MINS; BLACKWELL, 1996).

Figura 2 - Ilustração sobre Fungos na coleção didática analisada (Fonte: BARROS; PAULINO, 2006).

A imagem analisada na última coleção escolhida neste trabalho apresenta menos potenciais para distorção em sua visualização pelos estudantes de Ciências das escolas. O esquema representado pela figura 3 nos mostra duas ilustrações também em cores-fantasia, sendo a primeira de cogumelos na natureza e a segunda de um corte transversal, representado as hifas e filamentos que formam todo o corpo do cogumelo. Os deslizes na leitura e interpretação desta imagem podem surgir se o aluno não possuir em sua memória, de maneira bem clara, o conceito de hifa e o que ela representa na constituição de um fungo. De posse desta informação, o estudante consegue interpretar de maneira correta o segundo esquema desenhado. Ainda nesta figura, assim como na ilustração analisada na coleção anterior, faz-se muito importante a necessidade da escala, para que se possa também ter a dimensão do real tamanho dos cogumelos desenhados. Quando a escala é omitida, este dado acaba sendo faltante para que a interpretação da imagem seja realizada de maneira totalmente correta.

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Figura 3 - Ilustração sobre os Fungos na coleção didática analisada (Fonte: CANTO, 2012).

Quando as três coleções são comparadas entre si, visualizamos que a terceira obra apresenta menos possibilidades de deslizes na figura analisada. Este fator pode ocorrer pela mais recente editoração e publicação do LD – 2012, enquanto as outras duas obras são do ano de 2006. Um grande fator aliado neste sentido é o trabalho de comissão de avaliação formada pelo Ministério da Educação, que avalia as coleções didáticas inscritas em cada abertura de edital do PNLD e formula o GLD que é enviado às escolas e professores de Ciências. Este trabalho de avaliação das obras existe desde meados da década de 1990 e vem ajudando na melhora destes materiais para o ensino de Ciências em nosso país (NARDI, 1999). Sobre as imagens em LDs, Martins (1997) traz uma grande contribuição ao afirmar que este tipo de linguagem visual impõe menos barreiras ao aluno, além de despertar seu interesse e curiosidade. Ainda no ensino de Ciências, este tipo de recurso representa, às vezes, o próprio conteúdo a ser trabalhado. No trabalho de Rosa (2013), por exemplo, um dos professores de Ciências entrevistados para a pesquisa afirma ser essencial o uso das imagens para se trabalhar alguns conteúdos dentro do EF, como o sistema reprodutor e os corpos masculino e feminino. É notório que em um país como o Brasil, onde tantos estudantes possuem dificuldades para ler e interpretar textos escritos, as imagens possuem um grande papel para o ensino e a aprendizagem. Assumindo o LD como o recurso mais utilizado no ensino de Ciências e, muitas vezes até, como um agente que limita a ação do professor que ensina em sala de aula (CARNEIRO; SANTOS, MÓL, 2005), temos a dimensão da problemática que existe na leitura das imagens pelos alunos em aulas de Ciências e os deslizes em potencial que podem existir neste tipo de leitura. O estudante, ao analisar as imagens com os elementos que possui em sua memória discursiva, pode cair em erros de natureza epistemológica, fato que cria distorções na interpretação e aprendizagem de determinados conteúdos científicos – neste caso específico, os seres pertencentes ao reino Fungi. 5320 SBEnBio - Associação Brasileira de Ensino de Biologia

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As palavras de Gregolin (2005) nos ajudam a pensar na questão da interpretação de enunciados no formato de imagens, presentes em LDs de Ciências e lidos pelos estudantes de nossas escolas públicas: Todo discurso é fundamentalmente heterogêneo e está exposto ao equívoco porque se relaciona sempre com um discurso-outro. A possibilidade de interpretar existe exatamente por causa dessa alteridade nas sociedades e na história, que possibilita a ligação, a identificação, a transferência. “E é porque há essa ligação que as filiações históricas podem-se organizar em memórias, e as relações sociais em redes de significantes.” (PÊCHEUX, 1997, p.54). Como os sentidos estão permanentemente inseridos em redes enunciativas, a descrição de um enunciado coloca necessariamente em jogo (através de implícitos, de elipses, de negações e interrogações, de múltiplas formas de discurso relatado etc.) o discurso-outro como espaço virtual de leitura desse enunciado ou dessa seqüência. Esse discurso-outro marca, na materialidade discursiva, a insistência do outro como lei do espaço social e da memória histórica, logo como o próprio princípio do real sócio-histórico. (pp. 15-16).

Em outras palavras, toda interpretação relativa à leitura das imagens se insere num processo em que a produção de sentidos pelo aluno vai ocorrer de acordo com as concepções prévias, presentes na memória discursiva da rede em que o estudante estava filiado. O discurso-outro desta rede é o que faz com que esta pessoa olhe para determinada imagem e visualize neste enunciado aquilo que já lhe está presente na sua memória. E as imagens sobre fungos, que representam muitas vezes o próprio conteúdo e são os enunciados analisados neste trabalho, entram neste jogo a partir do momento que se relacionam com este discurso-outro, seja este discurso do aluno ou até do próprio professor de Ciências.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos com este trabalho que imagens com possibilidades de deslizes para os estudantes ainda estão presentes nos LDs, pelo menos em relação aos conteúdos de fungos destes materiais. Ao vermos que LDs com qualidade nem sempre ideal circulam pelas escolas, exaltamos a importância do papel do professor nos processos de ensino e aprendizagem em sala de aula. Quando este docente sabe fazer um bom uso de um mau LD, por exemplo, qualquer material pode ser utilizado para o ensino de Ciências, bastando apenas que o professor tenha consciência da

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qualidade deste instrumento e saiba utilizá-lo junto aos seus estudantes (CARNEIRO; SANTOS; MÓL, 2005). Inevitavelmente, quando analisamos a memória discursiva e a possibilidade de deslizes na interpretação das imagens em LDs, caímos na temática da formação de professores. Carvalho e Gil-Pérez (2011) ressaltam que a necessidade desta formação é permanente por alguns motivos, como uma possível carência na formação inicial (licenciaturas) e o fato de muitas das situações vivenciadas pelo professor só adquirirem sentido na vida prática deste docente, não na formação teórica, adquirida nas universidades. Concordamos com a visão dos autores que a necessidade de formação é permanente, ou seja, uma formação continuada. Particularmente, ainda visualizamos um segundo elemento relativo a formação de professores: a necessidade de se trabalhar mais o LD na formação inicial dos docentes, seja analisando teoricamente este instrumento didático ou com disciplinas e módulos práticos para trabalho com este material. Carneiro, Santos e Mól (2005) afirmam que o estudo do LD é uma atividade altamente formadora para os professores, afirmação com a qual concordamos. Terrazzan (2007) afirma que a formação de professores muitas vezes é feita sem os devidos cuidados nas atuais licenciaturas. Porém, um professor, quando bem formado, consegue ensinar e trabalhar com os materiais – entre eles o LD de Ciências – de maneira melhor e este fato pode melhorar o ensino de Ciências. Porém, ressaltamos que de nada adiantará o professor ser bem formado se este não souber se colocar no lugar de seus alunos e visualizar as possibilidades com os olhos destes estudantes das escolas. Para além dos temas formação de professores e do uso do LD de Ciências, a memória discursiva dos estudantes nas escolas sempre influenciará nas leituras e interpretações de enunciados textuais ou de imagem. A própria compreensão do que o professor fala – ou seja, seu discurso – pode sofrer graves distorções pelo estudante – o sujeito –, de acordo com o que este carrega em seu interdiscurso (ORLANDI, 2009). É importante ressaltar que no ensino e na aprendizagem das Ciências, o aluno deve se colocar como sujeito ativo do conhecimento, tanto para realizar as descobertas, quanto para se expressar nas formas oral e/ou escrita, visando mostrar quais potenciais deslizes são cometidos por ele. O professor, por sua vez, ao desenvolver sua tarefa de ensinar, deve ficar atento a estes desvios e, sempre que possível, retomá-los junto aos seus estudantes, para que o ensino de Ciências possa ser realizado da forma correta.

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REFERÊNCIAS

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