AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS

May 28, 2017 | Autor: J. de Freitas Teo... | Categoria: Walter Benjamin, Modernity
Share Embed


Descrição do Produto

AS

IMAGENS DE SONHO DA

PARIS

BENJAMIN

XIX E WALTER

DO SÉCULO

NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO NO PROJETO DAS

A

PASSAGENS JORGE DE FREITAS *

RESUMO O objetivo desse artigo é abordar a imagem da Paris do século XIX como uma metrópole onírica, conforme destacado pelo filósofo Walter Benjamin nos arquivos temáticos do Projeto das Passagens [Das PassagenWerk], e a necessidade de despertar o coletivo envolto nesse sonho regido por imagens cuja finalidade é de ocultar as relações de produção existentes na sociedade capitalista. Para tanto, pretendemos nos ater à análise das imagens das passagens, das exposições universais, dos panoramas e do intérieur burguês. PALAVRAS-CHAVE Imagem. Paris. Passagens. Exposições Universais. Panoramas. Intérieur. Despertar.

* Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS (UFMG). Participante do NÚCLEO WALTER BENJAMIN (FALE-UFMG). Mestre em Filosofia pelo PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTÉTICA E FILOSOFIA DA ARTE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE OURO PRETO (UFOP).

373

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

Recebido em mai. 2014 Aprovado em jul. 2014

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

ABSTRACT The purpose of this article is to approach the image of nineteenth-century Paris as a dream metropolis, as highlighted by the philosopher Walter Benjamin at the theme files of Arcades Project [Das Passagen-Werk], and the need to awaken the collective wrapped in dream governed by images whose purpose is to hide the existing relations of production in capitalist society. To this end, we intend to stick to the analysis of images of the arcades, the universal expositions, panoramas and bourgeois intérieur. KEYWORDS Image. Arcade. Universal Expositions. Panoramas. Intérieur. Awaken.

374

O

objetivo desse artigo é abordar a imagem da Paris do século XIX como uma metrópole onírica, conforme destacado pelo filósofo Walter Benjamin (2009) nos arquivos temáticos do Projeto das Passagens [Das Passagen-Werk]. Para tal, faz-se necessário o exame das principais imagens de sonho que povoam o imaginário do parisiense. Imagens que fomentam a criação de uma atmosfera de sonho sobre a cidade material e, sobretudo, que atuam no preenchimento do mosaico construído por Benjamin acerca da modernidade. As principais imagens que julgamos conter os aspectos mais relevantes para a constituição onírica da cidade de Paris são as passagens, as exposições universais, os panoramas e o intérieur burguês. Na exposé de 1935 “Paris, capital do século XIX”, o filósofo destaca a ambiguidade de significação dessas imagens – em outras palavras, a impossibilidade de determinar o que realmente significam – como aquilo que constitui o seu potencial onírico, sua capacidade de configurar no imaginário do parisiense como qualquer coisa, ou melhor, como local de sonho onde as promessas de uma vida melhor podem ser realizadas. Essas moradas de sonho, que no imaginário do parisiense são locais de segurança onde se pode alcançar a realização dos desejos mais intensos, são locais onde os limites impostos pela realidade material podem ser suspensos, como, por exemplo, as passagens, “que são tanto casa quanto rua” (BENJAMIN, 2009, p. 48), que podem ser “casas ou corredores que não têm lado exterior – como o sonho” (BENJAMIN, 2009, p. 375

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

INTRODUÇÃO

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

450, [L 1a, 1]). Elas oferecem não apenas a embriaguez do passear pelas ruas iluminadas numa atmosfera de mercadorias que emanam do luxo e do brilho da capital do século XIX, como também o abrigo e a segurança dos interiores das residências. Buscaremos, no decorrer, desse artigo, investigar a configuração e a atuação dessa coleção de imagens benjaminianas que compõe um verdadeiro mosaico sobre a modernidade. É válido ressaltar que cada uma dessas imagens, vistas como locais onde “o coletivo procura tanto superar quanto transfigurar as imperfeições do produto social, bem como as deficiências da ordem social de produção” (BENJAMIN, 2009, p. 41), têm como motivação do seu programa onírico não apenas as premissas do progresso dos meios técnicos e o aumento da fetichização mercadológica, mas, principalmente, a finalidade de ocultar o funcionamento e as relações construídas pelo processo de produção capitalista. AS PASSAGENS

E AS EXPOSIÇÕES UNIVERSAIS

As passagens, “centros das mercadorias de luxo” e local onde “arte põe-se a serviço do comerciante” (BENJAMIN, 2009, p. 40), tributárias das evoluções da arquitetura em ferro e vidro e dos avanços econômicos do século XIX, tornam-se importantes fantasmagorias para a efetivação da magia da mercadoria, uma vez que disseminam por Paris a cultura da exposição mercadológica na vitrine. Para Rouanet e Peixoto (1992, p.66), no artigo “É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nelas”, “as passagens são mônadas, abreviações que contêm o 376

377

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

todo”. Nessa imagem de sonho estão contidos todos os elementos que constituem o imaginário do século XIX, todas as relações que permeiam o habitante da metrópole moderna podem ser apreendidas por quem saber ler as passagens: é ali, onde se pode avistar a mercantilização máxima dos seres humanos, como ocorre com as prostitutas; é ali que a mercadoria alcança o auge de sua exposição e a fetichização ganha um contorno brilhante na vitrine da boutique; é ali, também, que a massa se sente em casa, e o flâneur exercita sua flânerie e sua recusa ao trabalho, sem se dar conta, contudo, que já foi cooptado pelo mesmo; é, efetivamente, nessa morada do sonho coletivo, que a multidão se entrega a um tipo moderno de sonho, o sonho da realização de todas as promessas propostas pelo capitalismo. As passagens apresentam duas características que merecem ser destacadas, conforme salienta Benjamin (2009, p. 84) no fragmento [A 3, 6] do arquivo temático “A - Passagens, Magasins de Nouveautés, Calicots”: “acolher a multidão e retê-la através da sedução”. Na primeira característica – de acolher a multidão –, as passagens aparecem como o abrigo que o passante possui para esconder-se das “pancadas de chuvas” e o local que oferece “em dias de tempo ruim ou à noite, com uma iluminação que imita a luz do sol, passeios muito procurados ao longo das fileiras de lojas resplandecentes” (BENJAMIN, 2009, p. 85, [A 3a, 4]). Nesse contexto, as passagens são vistas pelos parisienses como locais seguros que além de proporcionarem proteção contra as intempéries da natureza, também exercem um efeito de acolhimento

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

produzido pela segurança das inovações tecnológicas – nesse caso, a segurança da iluminação artificial – e mercantis, uma vez que essas últimas, dispostas nas iluminadas e fulgurantes vitrines, acolhem a apreciação de qualquer um que caminha nessa morada de sonho. É uma sensação próxima à de um homem que, ao entrar em uma estrutura de contos de fada, se vê atordoado de todos os lados por “cores artificiais”, semelhantes à maçã vermelha da “madrasta da Branca de Neve” (BENJAMIN, 2009, p. 209, [G 1a, 1]), um conto de fadas que guarda, por trás de sua falsa aparência harmônica, um veneno mortal: a renúncia da construção de uma subjetividade autônoma em face do falso ideal de segurança. Nesse sentido, por trás da promessa de segurança, as passagens escondem a dureza da produção material e o processo de submissão do homem à estrutura dominante regida pela fetichização da mercadoria e pela necessidade incessante do consumo. À característica de proporcionar segurança e abrigo, acrescenta-se às passagens o caráter de favorecimento da comunicação e da circulação entre os comerciantes e transeuntes da metrópole moderna, favorecimento que ocorre devido ao emprego do ferro nas edificações das galerias, material que se destaca graças à sua “natureza funcional” para a efetivação de “construções que serviam para fins transitórios” (BENJAMIN, 2009, p. 40). A segunda característica -– reter a multidão – relaciona-se diretamente com o encanto que fulgura das vitrines, encanto esse capaz de deter a multidão através da sedução que reside nesse local de sonho, exercida, sobretudo, por meio da concretização da 378

379

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

proposta do sex appeal do inorgânico. Desse modo, não é difícil enxergar as passagens como um local de sonho e abrigo, onde todos podem se sentir seguros dentro das galerias “cobertas e aquecidas” (BENJAMIN, 2009, p. 85, [A 3a, 5]) e gozarem da possibilidade de sonhar pelo caminho entre as visões das mercadorias de luxo. Segundo Buck-Morrs (2002, p. 112), em A dialética do olhar – Walter Benjamin e o Projeto das Passagens, o “brilhantismo e o luxo urbanos não eram novos na história da humanidade, mas, sim, o acesso público e secular a eles”. Com as passagens, tem-se o acesso direto e indireto do público, ou melhor, da multidão a esse mundo de sonho e luxo. Acesso direto, pois a burguesia pode consumir as mercadorias de luxo que antes eram destinadas aos nobres; indireto, pois todos os habitantes da metrópole parisiense, independentemente de possuírem ou não poder aquisitivo para consumi-las, podem transitar pelas passagens e sentirem o fascínio que emana delas. Como visto anteriormente, o surgimento das passagens é tributário do progresso técnico na construção arquitetônica, que desde o início do século XIX passou a utilizar o ferro e o vidro como materiais principais de suas construções. Nesse sentido, a arquitetura criou, sobretudo com as passagens, um mundo de sonho composto em uma estrutura de ferro e vidro que favorece o valor da exposição da mercadoria na vitrine e, consequentemente, potencializa o caráter de sedução que essa exerce. O mundo de sonho, graças à utilização dessas novas técnicas arquitetônicas, passa a possuir tetos que se assemelham à estrutura das abóbadas das

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

igrejas, fator que, segundo Benjamin (2009 p. 198, [F 4, 5]), instituía “algo de sagrado” à “fileira de mercadorias” luxuosas expostas nas vitrines das passagens. Sendo assim, as passagens apresentam-se como um local com resquícios do sagrado, cuja realização de promessas se dá pela comunhão do homem com a mercadoria que o enfeitiça e com a oferta de um abrigo seguro, não apenas das contingências materiais advindas do exterior, mas, sobretudo, daquilo que concerne às insatisfações e irrealizações da realidade. Dessa forma, as passagens assumem para si a falsa promessa de oferecer ao habitante da metrópole moderna a possibilidade de realizar o sonho de um retorno à condição primeva de abrigo, segurança e completude. Benjamin evidencia, contudo, que as passagens, apesar de seu alto teor de enfeitiçamento, não são por excelência o local da prestação de culto à mercadoria e às inovações técnicas. Tais locais eram as chamadas exposições universais, exposições realizadas no século XIX com o intuito de apresentar ao mundo os avanços técnicos e as inovações mercadológicas. Exposições entendidas pelo filósofo na exposé de 1935 como os “lugares de peregrinação ao fetiche da mercadoria” (BENJAMIN, 2009, p. 43-44), onde o homem da modernidade se entrega à diversão observando o movimento das novas máquinas e as novas mercadorias como se fossem verdadeiras obras de arte. De acordo com Giorgio Agamben (2007, p. 74), no capítulo “Baudelaire ou a mercadoria absoluta”, com as exposições universais, ocorre a modificação do interesse reservado à mercadoria. No contexto das 380

381

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

exposições universais, a mercadoria adotava “o tipo de interesse reservado à obra de arte”, ou seja, o que ocorria quando a mercadoria era exposta como uma obra de arte em um espaço reservado para tal exposição era a submissão do valor de utilidade à idealização do valor de troca. As exposições universais criavam espaços de sonho preenchidos pelas fantasmagorias mais recentes, fomentando o ideário de exposição dos avanços contínuos do progresso, disseminando, assim, duas formas de utopias. Na primeira delas, baseada na visão utópica de Grandville, o homem conquistaria, por meio das inovações tecnológicas, todo o universo, construindo pontes capazes de ligar os planetas, decretando, por fim, que o homem moderno tomaria seu café da manhã debruçado nos anéis de Saturno. Nesse sentido, Benjamin salienta, não apenas que as “fantasias de Grandville transferem para o universo o caráter de mercadoria” (BENJAMIN, 2009, p. 44), como também atuam como espécie de gérmen do modelo de propaganda (o reclame), destacando que os temas das obras de Grandville têm a função de entronarem a mercadoria e a ideologia progressista. Na segunda forma de utopia, baseada na teoria de Saint-Simon, a principal premissa é a necessidade de impulsionar o progresso industrial, de modo que até mesmo o Estado estaria submetido ao propósito do desenvolvimento dos meios de produção a fim de transformar o “globo terrestre em um paraíso”, conforme destaca um fragmento do Projeto benjaminiano (VOLGIN apud BENJAMIN, 2009, p. 624, [U 6, 2]) no arquivo temático “U - Saint-Simon, Ferrovias”. Nesse sentido, o

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

socialismo utópico saint-simoniano teria inicialmente a divisão entre as classes dos industriários e dos proletários. Entretanto, uma vez que os ideários dos industriários coincidissem com as manifestações dos interesses das massas populares, o antagonismo entre as classes deixaria de existir e todos seriam beneficiados com o amplo desenvolvimento da indústria. A primeira exposição industrial foi realizada em Paris no ano de 1798 e tinha o propósito de expor os produtos da indústria regional francesa e não aspirava à universalidade das exposições posteriores. Porém, Benjamin já capta, nessa primeira e pequena exposição, a orientação que irá seguir todas as outras realizadas posteriormente, a saber: o “desejo de divertir as classes operárias, tornando-se para elas uma festa de emancipação” (BENJAMIN, 2009, p. 216, [G 4, 7]). As exposições que vieram a seguir denominaram-se como exposições universais e apresentaram as inovações técnicas e mercadológicas das potências europeias industriais do século XIX. Seu início se deu na exposição universal realizada em Londres em 1851 no Palácio de Cristal, uma estrutura de ferro e vidro que, segundo Buck-Morss (2002, p.116), “misturava a velha e a nova natureza – tanto palmeiras como bombas em pistão – em um mundo de fantasia que penetrou na imaginação de toda uma geração de europeus”. De acordo com Benjamin, as exposições do decorrer do século XIX – culminando na de 1867 realizada em Paris no Campo de Marte, na qual a “fantasmagoria da cultura capitalista alcança seu desdobramento mais brilhante” (BENJAMIN, 2009, p. 45) – deram aos 382

383

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

habitantes da modernidade, “uma excelente noção do incrível grau de desenvolvimento dos meios de produção alcançado por todos os países civilizados, o qual ultrapassou, de sobremaneira, as fantasias dos mais ousados utopistas do século anterior” (BENJAMIN, 2009, p. 216, [G 4a, 1]). Na exposição de 1867, a demonstração dos avanços nas técnicas de produção alcança o ápice de seu desenvolvimento, algo que atua na disseminação da noção burguesa de que as possibilidades e necessidades de transformações sociais só seriam alcançadas se o proletariado se submetesse à ideologia que comemorava os progressos da indústria. Como imagens de sonho do século XIX, as exposições universais destacavam-se, principalmente, pela capacidade de enfeitiçamento que tais locais exerciam sobre os habitantes das metrópoles modernas. O fascínio era tamanho a ponto de delegações inteiras de operários oriundos de diversos países da Europa deslocarem-se até às exposições para sonharem com as promessas de emancipação oferecidas por essas moradas oníricas. O fetiche ali não residia apenas nas mercadorias e em seus meios de produção, mas também na consolidação da “função fantasmagórica” das exposições universais como “festivais populares do ‘capitalismo’, onde o negócio do entretenimento de massas chegou a ser um grande negócio”, conforme ressalta Buck-Morss (2005, p. 118). Retomando a definição das exposições universais como os locais aonde a massa vai para se divertir, revela-se, mais uma vez, o caráter onírico dessas construções em oposição à esfera crua da realidade. Portanto, as exposições

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

apresentam aos habitantes da modernidade – no mesmo sentido das passagens, pois todos, de burgueses a proletários, podem frequentá-las – a possibilidade de realização das promessas sonhadas pelo coletivo, promessas que alcançariam as suas resoluções mediante a procrastinação à ideologia de que o progresso tecnológico superaria, de uma vez por todas, os problemas da realidade trivial. OS PANORAMAS Sobre as imagens de sonho na modernidade, partidárias, especialmente, dos avanços tecnológicos, destacamos, na esteira de Benjamin, os panoramas como uma invenção importante para a consolidação de Paris como uma metrópole onírica. Esses panoramas, “uma parede cilíndrica, de aproximadamente 100 metros de comprimento e 20 metros de altura” (BENJAMIN, 2009, p. 571, [Q 1a, 1]), possuíam uma imagem, na maioria das vezes, que retratava uma paisagem campestre ou uma cena de guerra que era pintada em toda a sua extensão. Quando esse cilindro era girado, dava-se ao espectador – que observava a imagem por um pequeno buraco -– a impressão de que a imagem estava em movimento. Para Benjamin (2009, p. 42), o “apogeu da difusão dos panoramas coincide com o surgimento das passagens”, ou seja, os panoramas aparecem como uma estrutura de sonho que fomenta a idealização das passagens como moradas oníricas, o que fica ainda mais evidente quando lembramos que a mais famosa das passagens chamavase, justamente, Passage des Panoramas e tinha em sua entrada dois desses enormes cilindros que atraiam os 384

385

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

parisienses. Através de “artifícios técnicos”, os panoramas buscavam construir imitações perfeitas “da natureza”. Assim, de certo modo, eles “abrem o caminho para além da fotografia, ao cinema mudo e ao cinema sonoro” (BENJAMIN, 2009, p. 42) e figuram como a fantasmagoria capaz de apresentar uma modificação significativa nas relações estabelecidas entre a arte e a técnica, além de apresentarem a “expressão de um novo sentimento de vida” (BENJAMIN, 2009, p. 42). Cabe salientar que os panoramas apresentam uma revolução no campo artístico por se apropriarem das inovações técnicas para a produção de um novo tipo de arte, cuja função aproxima-se mais do entretenimento e, portanto, constrói com o seu observador uma relação que prioriza o valor de exposição em detrimento da postura de culto que vigorava até então. Nesse sentido, a técnica assume a prioridade nas relações que institui com a arte sem ser posta a serviço dela, mas, sim, o contrário – é a arte que é posta a serviço da técnica. A modificação dessa relação atua diretamente na subjetividade do habitante da cidade moderna por ele acreditar que com a invenção dos panoramas e a possiblidade de imitação perfeita das paisagens da natureza – inclusive do movimento, e as representações do nascer ao pôr do sol ganham espaço nesse sentido –, é possível inserir a paisagem do campo no interior da cidade. Assim, a imagem da cidade “amplia-se” para o espectador dos panoramas “transformando-se em paisagem” (BENJAMIN, 2009, p. 42) que pode ser encontrada nas entradas de uma passagem. Desse modo, aliam-se

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

ao sonho proporcionado pelos panoramas a noção de um retorno à natureza e a noção de superação pela técnica dos campos da arte e dos campos da natureza. O parisiense se vê diante de perspectivas inéditas da arte a partir da relação com a técnica. Os panoramas, a seu modo, relacionam-se com outras formas artísticas também tributárias da técnica de reprodução imagética (com destaque para fotografia) e prefiguram outras manifestações artísticas que estão por vir, como o cinema. Cabe destaca, no interior da argumentação benjaminiana sobre as imagens da modernidade, o impacto que a fotografia, em sua relação com os panoramas, possui na sociedade parisiense do século XIX. Daguerre, inicialmente um pintor de panoramas, inventa o daguerreótipo, um dispositivo constituído por “placas de prata iodadas e expostas na câmera obscura que precisavam ser manipuladas em vários sentidos, até que pudessem reconhecer sob uma luz favorável, uma imagem cinza-pálida” (BENJAMIN, 2012, p. 99). Em outros termos, uma técnica de captação de imagens que abre caminho para a técnica fotográfica aparecer como capaz de “gerar uma imagem do mundo visível, com um aspecto tão vivo e tão verídico como a própria natureza” (BENJAMIN, 2012, p. 101). Nesse ínterim – com a invenção do daguerreótipo e, posteriormente da fotografia –, o espaço da técnica consolida-se no campo da arte. Como fantasmagoria, a fotografia revela a existência de um “inconsciente ótico” (BENJAMIN, 2012, p. 100), ou seja, a ela amplia a gama de imagens, de paisagens a que o habitante da modernidade tem acesso, aproximando-o da ilusão de possuir, de ter 386

O

INTÉRIEUR

É conveniente destacar agora uma outra imagem de sonho que aparece com singular importância nos escritos benjaminianos. O intérieur burguês constitui387

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

vivenciado essas paisagens. Com a fotografia não ocorre apenas a ampliação da percepção do ser humano que tem acesso a uma gama infinita de imagens, mas também se amplia a “esfera da economia mercantil” (BENJAMIN, 2009, p. 43). Essa ampliação ocorre, justamente, pelo fato de a fotografia lançar no mercado uma enorme quantidade de imagens que impulsionaram a legitimação do uso da técnica com fins lucrativos. Segundo Benjamin, a fotografia serviu “para aumentar os negócios, ela renovou seus objetos, modificando as técnicas de fotografar de acordo com a moda, técnicas que determinaram a história posterior da fotografia” (BENJAMIN, 2009, p. 43). Esse fato que revela que o uso mercadológico da técnica de reprodução fotográfica fora adequado ao aparato de produção de fantasmagorias que visavam capturar a subjetividade do indivíduo, relegando o mesmo à condição de uma percepção voltada para o elogio da técnica e do progresso. Nesse sentido, com os panoramas e a fotografia, não somente ampliam-se as esferas da percepção e as esferas mercantis, como também instituise na modernidade uma nova esfera onírica, na qual o homem pode, na alienação própria da metrópole moderna, sonhar com o conhecimento de diversas paisagens diferentes. Em vistas desses avanços, a técnica de reprodução imagética funda-se como o novo paradigma de orientação do sujeito na modernidade.

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

se, para Benjamin (2009, p. 45), como “o espaço em que se vive”, oposto ao “local de trabalho”, e possui a função de sustentar o homem “em suas ilusões”. Ele se opõe ao local de trabalho pelo fato de ser neste último que o burguês presta contas à realidade e convive diretamente com o processo de produção material fundamentado na ocultação do caráter de exploração do proletariado, enquanto o intérieur, por sua vez, é como o local onde as “relações relativas aos negócios em forma de reflexões sociais” (BENJAMIN, 2009, p. 45) são reprimidas, ou seja, é onde o burguês exclui as contingências da realidade social e obscurece a consciência de sua condição de explorador, dirigindose, prioritariamente, à manifestação segura da interioridade burguesa. No arquivo temático “I - O Intérieur, O Rastro”, Benjamin destaca que a decoração do intérieur, especificamente composta por um mobiliário “de sonho” (BENJAMIN, 2009, p. 248, [I 1, 6]), faz com que o burguês sonhador se relacione com suas coisas como se elas o embriagassem de tal maneira que toda a dureza material da realidade fosse deixada de fora daquele espaço construído. Dessa forma, “ele mesmo”, o intérieur, se torna “um estimulante da embriaguez e do sonho” (BENJAMIN, 2009, p. 251, [I 2, 6]), um sonho depositado – como poeira – na proliferação de estilos que inundam a atmosfera do coletivo burguês. Uma atmosfera que se destaca pelo excesso de tecidos, principalmente das pelúcias, que facilitam a impressão de rastros, uma vez que, no melhor estilo do intérieur burguês, “habitar significa deixar rastros” (BENJAMIN, 388

O século XIX, como nenhum outro, tinha uma fixação pela moradia. Entendia a moradia como o estojo do homem, e o encaixava tão profundamente nela com todos os seus acessórios, que se poderia pensar no interior de estojo de compasso, onde o instrumento se encontra depositado com todas as suas peças em profundas cavidades de veludo, geralmente de cor violeta. (BENJAMIN, 2009, p. 255, [I 4, 4]).

O habitante do século XIX, um sujeito “despossuído do sentido da sua vida”, conforme apresentado por Gagnebin (2011, p. 60), decora o intérieur como se ele fosse um casulo. Nessa decoração, cada objeto possui uma relação especial com o seu proprietário. Nessa relação entre o sujeito que habita o intérieur e o objeto despido de seu valor mercadológico pode-se inferir o caráter de segurança consistente na atividade de “confeccionar para nós um casulo” (BENJAMIN, 2009, p. 255, [I 4, 5]), já que esse sujeito, que tenta, “desesperadamente, deixar a marca de sua possessão nos objetos pessoais” (GAGNEBIN, 2011, p. 60), transforma a sua moradia em um local idealizado contra as árduas situações do mundo real. À exigência burguesa de deixar rastros, como também à exigência de se decorar o intérieur à maneira de um casulo aveludado, opõe-se a inovação das técnicas de construção arquitetônica proporcionadas pela utilização do ferro e vidro, sobretudo, com as produções de Aldolf Loss e Le Corbusier, arquitetos que utilizaram o vidro como material onde “nada se fixa”, “inimigo por excelência dos segredos” e também “inimigo da propriedade”, 389

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

2009, p. 46). Nesse sentido, no Projeto das Passagens, Benjamin destaca que:

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

conforme destaca Benjamin (2012, p. 88) no ensaio “Experiência e Pobreza”, de 1933. Contudo, cria-se um paradoxo na utilização desses novos materiais nas construções, pois, se por um lado os arquitetos supracitados apropriam-se das novas técnicas de construção em oposição ao modelo vigente do casulo burguês, por outro, na contramão dessa corrente arquitetônica, tem-se o movimento do Jugendstil, como ornamentação que se utiliza do ferro na fundamentação da fantasmagoria do intérieur. Segundo Ernani Chaves, em “Der zweite Versuch der Knust, sich mit der Techink auseinanderzusetzen: Walter Benjamin e o Jugendstil”, o Jugendstil, [...] trata-se de um movimento que procura expressar as mudanças provocadas na sociedade moderna, pelas inovações tecnológicas, que atingem tanto âmbito publico (os prédios de escritórios, os bancos e as repartições públicas, cuja célula é o bureau, mas também as fachadas das estações de metrô), quanto o privado (a construção de casas de moradia seguindo o novo estilo). (CHAVES, 2009, p. 58).

Ademais, se a quarta seção da exposé de 1935, “Luís Filipe ou o intérieur”, trata da ascensão do homem privado ao terreno da história através do protecionismo que adquire para a realização de “seus negócios” e de como o espaço habitado por esse homem se torna “a expressão da sua personalidade” (BENJAMIN, 2009, p. 45-46) podemos pensar, na esteira de Chaves, que o Jugendstil, enquanto ornamento decorativo [...] representa nesta casa o que a assinatura do artista representa para o quadro, ou seja, a marca 390

Nesse sentido, sob a égide do Jugendstil, ferro e vidro, uma vez estilizados 1 como ornamentos decorativos (comumente inspirados na imitação das formas da natureza), assumem uma posição de fortalecimento da fantasmagoria do intérieur como a 1

Benjamin trata da questão da estilização promovida pelo Jugendstil na exposé de 1939 e também no arquivo temático “S- Pintura, Jugendstil, Novidade”. Cf. BENJAMIN, 2009, p. 53-67; 585-604. Entendemos o sentido empregado pelo verbo “estilizar” conforme o sentido proposto por Chaves: “[...] em primeiro lugar, ‘estilizar’ é tornar um objeto inútil, ’nãofuncional’, que serve apenas como objeto de contemplação; em segundo lugar, significa transformar algo que é histórico em natural.” (CHAVES, 2009, p. 61). Ambos os casos nos remetem à atitude do burguês para com os objetos que povoam o interior da sua habitação, de modo que, como dito anteriormente, ele retira o caráter de valor de uso dos seus objetos, imputandolhes apenas um valor afetivo. Nesse sentido, a atitude do burguês aproxima-se da do colecionador, para quem é decisivo que “o objeto seja desligado de suas funções primitivas, a fim de travar a relação mais íntima que se pode imaginar com aquilo que lhe é semelhante. Essa relação é diametralmente oposta à utilidade e situa-se sob a categoria singular da completude.” (BENJAMIN, 2009, p. 239, [H 1a, 2]).

391

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

do proprietário, o rastro de sua originalidade. Da mesma forma que o artista ao pôr a assinatura em um quadro o torna seu, mesmo quando este quadro deixa de lhe pertencer, vendido a um colecionador ou a um museu, o homem privado, o burguês, imprime, por meio dos ornamentos, a sua “personalidade” na casa em que habita, que ele fez sua desde o projeto de construção. Nela, tudo possui “alma”, a sua “alma”, preferencialmente, tal como as flores de Odilon Redon, que na sua perversão constitutiva, são flores com alma, são flores que cantam! (CHAVES, 2009, p. 58).

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

morada de sonho do burguês, local onde ele sonha isento de culpa, “não apenas com a sua grandeza” (BENJAMIN, 2009, p. 261, [I 7a, 1]),como também com a grandeza de seu capital. Evidentemente, outras imagens figuram na constelação de sonhos da metrópole parisiense, entretanto, nas quatro imagens aqui discutidas (passagens, exposição universal, panoramas, intérieur), parece residir o aspecto fundamental para a consolidação da atmosfera onírica da cidade de Paris. Atentamos para essas imagens não apenas por causa do papel protagonista que assumem nos textos das exposés (1935 e 1939) e no Projeto das Passagens, visto que cada uma delas possui um arquivo temático específico, mas também pelo fato de que nelas reside a efetivação da ideologia do culto ao progresso e a consolidação do programa capitalista, fundamentado sob a estrutura do fetiche da mercadoria. Destacamos também a possibilidade de, a partir dessas quatro imagens principais, derivar outras que povoam o imaginário onírico do parisiense. Contudo, reforçamos que as imagens supracitadas possuem um local de destaque no mosaico moderno de Benjamin principalmente pela ambiguidade de significação que possuem, ambiguidade essa que pode reforçar a visão da modernidade benjaminiana enquanto fundamentada em uma estrutura alegórica. A NECESSIDADE

DO

DESPERTAR

Para Benjamin, um dos principais propósitos do Projeto das Passagens seria, precisamente, o de recolher os fragmentos da totalidade social para direcionar as energias do coletivo para o despertar do sonho que 392

2

Esse domínio é apresentado por Luciano Gatti (2009, p. 82) no artigo “Walter Benjamin e o Surrealismo: escrita e iluminação profana”.

393

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

envolve toda metrópole moderna. A necessidade do despertar é destacada pelo filósofo no fragmento [N 1, 9] e apresenta a seguinte consideração acerca da delimitação do Projeto das Passagens: “Delimitação da tendência desse trabalho em relação a Aragon: enquanto Aragon persiste no domínio do sonho, deve ser encontrada aqui a constelação do despertar.” (BENJAMIN, 2009, p. 500). Desse modo, se Aragon persiste no domínio do sonho 2 como a “fase heroica” do surrealismo onde ocorre a “preparação” dos elementos oníricos e da embriaguez, Benjamin, por sua vez, considera necessário dar um passo para além da condição onírica. Em outras palavras, uma vez de posse dos elementos oníricos e das técnicas surrealistas – em especial, a técnica da montagem –, o filósofo visa a radicalização política da experiência surrealista em um processo de superação da condição onírica no campo da história, ou, conforme destaca Gagnebin (2011, p. 91), ele “insiste na necessidade do despertar e da ação” realizado pelo sujeito na história. Para Benjamin, a “apresentação da história”, não deveria “tratar de outra coisa” senão do “despertar do século XIX” (BENJAMIN, 2009, p. 506, [N 4, 3]). Nesse contexto, a história, aliada ao “instante em que o historiador assume a tarefa de interpretação dos sonhos” (BENJAMIN, 2009, p. 506, [N 4, 1]), atuaria na dissipação da atmosfera de sonho, a qual, se pensarmos com Aragon, instituía a metrópole em uma

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

“mitologia” que lhe era própria, não uma mitologia antiga, mas uma mitologia moderna, recheada de elementos que instituem um caráter mitológico à modernidade, sobretudo através das imagens de sonho em uma “constelação subterrânea, não em sua forma encantada original, mas em sua existência fantasmagórica no presente”, conforme enfatiza BuckMorss (2000, p. 137). Sendo assim, a caríssima oposição entre natureza e história – repousando na permanência de uma natureza mítica regida pelos elementos de sonho, fator que a instituiria como uma segunda natureza, nos termos do filósofo Georg Lukács, e a transitoriedade da história que se assenta na interpretação desses elementos, que devido a sua constituição ambígua e a arbitrariedade de suas significações nada mais é do que alegoria – é retomada por Benjamin para evidenciar que o movimento de interpretação realizado pelo historiador traz à tona as descontinuidades da permanência de uma natureza mítica (onírica), e, como consequência desse procedimento interpretativo, revela-se a existência de descontinuidades em um processo que julgava-se contínuo e permanente, o que ocasiona, desse modo, o despertar do estado de sonho. Esse movimento de interpretação das imagens que captura os sonhos do coletivo do século XIX constitui-se a partir um método de reflexão dialética que coloca em oposição o sonho e o despertar, porém, uma dialética em suspensão, cuja síntese não é determinada pelo filósofo. Nesse percurso dialético, o estado de sonho teria o papel de expressar as condições 394

395

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

de vida do coletivo, uma expressão falsa e deformada capaz de esconder a face real da situação em que vive o parisiense na sua metrópole de sonho. O despertar assumiria, assim, a capacidade de interpretação da expressão de vida do coletivo, com a finalidade crítica de, uma vez remexendo e coletando os sentidos que escapam à falsa totalidade harmônica que a aparência onírica apresenta para o habitante da metrópole, afastar a atmosfera do “historicismo narcótico”, própria da Paris oitocentista, e revelar “um sinal da verdadeira existência histórica”, sinal esse “que os surrealistas foram os primeiros a captar” (BENJAMIN, 2009, p. 436, [K 1a, 6]). Por meio da crítica à falsa aparência de totalidade da realidade, realizada pelo confronto e pela apropriação dos constructos oníricos, Benjamin aproxima-se de Breton – na perspectiva de um surrealismo marxista – e da concepção surrealista “de que a realidade mais concreta é formada” pela “convivência de opostos” (GATTI, 2009, p. 82). Esses opostos se encontram na metrópole parisiense, mais precisamente na oposição entre as imagens de sonho que trazem a novidade (a modernidade) e o despertar que remete o intérprete da história a um passado passível de atualização no presente. A ligação entre a novidade e o antiquado apresenta ao processo de despertar uma experiência de tempo em que o “presente se torna frágil a ponto de ser facilmente derrubado”. Esse processo situa a cidade de Paris “sob o signo da fragilidade” (GATTI, 2009, p. 86), uma fragilidade que diz respeito à Paris material – facilmente observada no movimento de Haussmannização

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

– e também a uma Paris onírica, revelada, sobretudo, no ritmo voraz com que o capitalismo substitui suas imagens de sonho, relegando as antigas ao reino das ruínas. Nesse sentido, fundadas sob o paradigma da fragilidade, até mesmo as passagens perdem seu esplendor, tornam-se ruínas e são substituídas por outras construções de sonho, nesse caso específico, pelos magasins de nouveautés. Benjamin espera que o historiador materialista seja capaz de despertar o coletivo que sonha por meio de um percurso que se divide em dois momentos: 1) a partir da apropriação e da mobilização das “forças da embriaguez” (BENJAMIN, 2012, p. 33) para a atuação política na história e 2) a realização de uma interpretação crítica acerca das energias coletadas na embriaguez do sonho, de modo que esse movimento de interpretação seja capaz de expor a dura carga da realidade existente por trás da falsa harmonia propiciada pelas imagens de sonho. É válido salientar outro aspecto que atenta para a necessidade de despertar do sonho o coletivo que se entrega ao enfeitiçamento das imagens oníricas, aspecto que diz respeito, especificamente, à relação do coletivo com a novidade. De acordo com Benjamin (2009, p. 588, [S 2, 1]): “O coletivo que sonha ignora a história. Para ele, os acontecimentos se desenrolam segundo um curso sempre idêntico e sempre novo”. Nesse sentido, o coletivo que permanece nesse mundo onírico identifica-se com os paradigmas que definem a visão da história como um acumulado de fatos em um tempo vazio e homogêneo que traça um percurso linear e contínuo. Em outras palavras, o coletivo que sonha 396

397

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

habitua a sua visão da história àquela que se define sob a forma do culto à ideologia do progresso e à promessa de realização de suas potencialidades pautadas nas relações estabelecidas com a mercadoria. Portanto, para o coletivo onírico, os acontecimentos que preenchem a temporalidade da história são sempre mediados pelo aparecimento da novidade, aparecimento necessário para a definição da temporalidade como modernidade. Assim, o surgimento da novidade – que no fundo representa apenas um retorno daquilo que anteriormente tinha o mesmo caráter de novidade – sentencia a temporalidade do coletivo que sonha como a eterna constituição de um “rosto do mundo que nunca muda justamente naquilo que é mais novo, de forma que este ‘mais novo’ permanece sempre o mesmo em todas as suas partes”, conforme destaca Benjamin (2009, p. 586, [S 1, 5]). Na consolidação do rosto da modernidade que se movimenta em um ciclo de repetição eterno das mesmas novidades – ciclo mediado, sobretudo, pelas imagens de sonho – se expressa, como dito anteriormente, a falsa aparência de uma realidade harmônica. Por isso, é necessário que o coletivo, orientado pelo historiador materialista, realize um movimento dialético de crítica e de interpretação que coloque frente a frente as imagens que fomentam a aparência de totalidade e o despertar que apresenta a história ao coletivo, para que, em um sentido próximo da relação esboçada com o surrealismo, a interpretação dialética seja capaz de interromper o ciclo de repetição imposto pela novidade. É necessário também que esse movimento de interpretação revele a presença do alto

FREITAS, JORGE DE. AS IMAGENS DE SONHO DA PARIS DO SÉCULO XIX E A NECESSIDADE DO DESPERTAR, SEGUNDO WALTER BENJAMIN NO PROJETO DAS PASSAGENS.P. 373-399.

grau de fantasia que constitui a visão onírica de Paris e que obnubila a face da realidade, assim como a possibilidade de uma escrita diferente da história. É justamente nesse jogo entre sonho e despertar que se revela a constituição onírica, transitória e alegórica da metrópole parisiense, além do agigantamento da tarefa do historiador materialista. Em seu movimento de crítica e interpretação das imagens oníricas que constituem boa parte do aparato imagético da modernidade, o historiador tem ciência do alto grau de ambiguidade – característica da alegoria – que essas imagens adquirem a fim de sobreviverem à transitoriedade da modernidade.

398

AGAMBEN, Giorgio. Baudelaire ou a mercadoria absoluta. In: Estâncias – a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Trad. Selvino José Assman. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Ed. UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. BUCK-MORSS, Susan. Dialética do Olhar – Walter Benjamin e o projeto das Passagens. Trad. de Ana Luiza Andrade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002. CHAVES, Ernani. Der zweite Versuch der Knust, sich mit der Techink auseinanderzusetzen: Walter Benjamin e o Jugendstil”. In: Revista Artefilosofia, v. 06, p. 56-62. Ouro Preto: ED. UFOP, 1° semestre de 2009. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 2011. GATTI, L. Walter Benjamin e o Surrealismo: escrita e iluminação profana. In: Revista ArteFilosofia, v. 6, p. 74-93. Ouro Preto: ED. UFOP, 1° semestre de 2009. ROUANET, Sérgio Paulo; PEIXOTO, Nelson Brissac. É a cidade que habita os homens ou são eles que moram nela? In: Revista da USP/Dossiê Walter Benjamin, n. 15, set-nov de1992.

399

Kalagatos - REVISTA DE FILOSOFIA. FORTALEZA, CE, V. 11 N. 21, INVERNO 2014

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.