As imagens: figuração e reconhecimento do corpo em Almada Negreiros

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Comunicação Colóquio Almada Negreiros Universidade de Évora 19-20 Junho 1995

Maria de Fátima Lambert As imagens: figuração e reconhecimento do corpo em Almada Negreiros

A definição da concepção filosófica do corpo tem variado consoante os autores, as sociedades e os tempos, tendo igualmente em consideração parâmetros e critérios específicos que se enquadram na conformidade a valores religiosos, éticos, sócio-culturais e políticos. Refere-se à diversidade conceptual na abordagem dos pressupostos que se revelam fundadores para a sua explicitação, legitimação e vigência específica da definição do conceito. Apresenta-se ainda condicionada a sua presença e representação no domínio artístico: o tratamento social, o valor simbólico, a relação com o outro através da singularidade do corpo próprio, e em termos genéricos a relação do corpo singular com o mundo.1 Na actualidade, entendemos como justificáveis todas as determinações e variantes de comportamentos socio-culturais e artísticos, que numa primeira orientação se pautam pela promoção e desenvolvimento de cada um como pessoa na ordem do colectivo, de todos os "outros": existentes e essenciais, passando pela assunção individual - da pessoalidade.

1 Ver Claude Bayer - Epistemologie du Corps

2 Falar do corpo ao longo do século XX, na sucessão constitutiva da modernidade inicial equivale a um confronto progressivo com a sua definição numa perspectiva anatomo-fisiológica, para além da evidente contextualização ontológica e antropológica. A representação oficial do corpo - generalizada intelectualmente - parece ser a separação epistemológica no conceito de pessoa, para assim medir a relevância em termos de um culto do corpo próprio como prolongamento simbólico e de dimensão socio-cultural. Em Almada Negreiros, uma das temáticas recorrentes, quer na obra literária, quer na plástica, é precisamente a pessoa considerada numa dupla acepção: o corpo figurado enquanto exterior, e o corpo individualizado pela sua assunção enquanto ser único e total, portanto sensível e sagrado, formando assim uma unidade pela complementaridade. Devem evocar-se as diferentes modalidades de abordagem que demonstram a preocupação em compreender e reflectir acerca da sua essência e sobre a sua existência. A definição de corpo, emergente na sua obra literária, complexifica-se através de uma abordagem pictural, ambas convergindo para reflexões de perspectiva antropológica, mesmo ontológica, que o Autor desenvolveu nos textos de teatro, na poesia, no romance e nos então inéditos publicados por Lima de Freitas em Ver.

A tríade do corpo próprio - O corpo real, o corpo imaginário e o corpo simbólico: 0.Explicitação dos termos:

3 Sabe-se que a percepção, a representação e o conhecimento do corpo próprio, por parte do seu protagonista directo não é facilitadora ou gratuita. Exige uma atenção e acuidade extremas para aceder ao seu reconhecimento, mas também disponibilidade intuitiva para a sua compreensão e aceitação. Consoante as circunstâncias, condições e elaborações intelectuais, a noção do corpo próprio permite-se oscilar entre a aceitação, mas apelando frequente e intensamente à denegação, à indiferença, à recusa mais absoluta e dramática. O corpo é o mesmo, ou melhor, vai sendo à sua semelhança e valores, pois se cumprem as suas metamorfoses, mas vai sendo reconhecido diferentemente pelo "seu possuidor". Assim há que saber conciliar as noções de corpo real, imaginário e idealizado, o que proporcionará uma certa tranquilidade e saber acerca de si mesmo, nas eventualidades existenciais e na busca de sua essência. Existência e essência não se excluem, exigem-se e jogam-se. O corpo manifesto por Almada na sua obra global usufrui dessa tripla consciência e perspectivação definidora: o corpo idealizado, o corpo imaginário e o corpo real; conforme as situações e as evocações constatamos um, ou outro(s), muitas vezes tomando o mesmo conta da sua duplicidade. Definam-se então brevemente e segundo uma perspectiva psicanalítica os termos: a) Por corpo real, entenda-se o corpo efectivo, concreto e matérico, que como tal é plausível ser percepcionado visual, tactilmente..., daí decorrendo a elaboração pessoal - do próprio sujeito e dos outros - de uma imagem corpórea determinada pelas condições específicas naturais. b) Por corpo imaginário entenda-se aquele que é concebido pela imaginação pessoal profunda do indivíduo, e que pode não corresponder à

4 efectiva identidade, natureza e características desse mesmo corpo enquanto real. c) Por corpo idealizado concebe-se uma imagem do corpo próprio baseada numa aspiração, numa utopia, numa idealização de seu corpo, incorporado numa figuração fantasmática que corresponde a um profundo desejo de cumprir realmente tal idealização. Ao longo da vasta obra plástica e escrita, Almada representa, presentifica e/ou apresenta o corpo. O corpo que encobre, o corpo que esconde, mas também o corpo que recolhe, que é “continente” de si mesmo, que transporta a identidade pessoal, sensível e sagrada, que mantém a unidade para exteriorizar a essência visível (e invisível) do ser humano pessoal. Por isso, temos de reconhecer nas figurações humanas de Almada a recorrência alternada da prevalência do corpo real, ou imaginário ou idealizado, e ainda em alguns casos, como adiante se assinalará, a constituição triádica de corpo único.

1. O corpo idealizado: As referências, representações e presenças do corpo idealizado percorrem a obra de Almada, na medida em que remetem para o seu auto-retrato. O modo primordial de explicitação da idealização corpórea refere-se à figurabilidade imagética do artista em si mesmo: na obra plástica, bem como nas múltiplas emancipações/ficções de personagens autobiográficas patentes na obra poética e literária. Por outro lado, o corpo idealizado encontra-se inscrito também nas figuras femininas ansiadas, modelos espirituais ou físicos que o Autor exibe, quer a nível pictural, quer

5 literário. Esta multiplicação quase inesgotável de referências concentra-se contudo, na exploração gerada nas figuras femininas que denotam certa ambiguidade e/ou (am)bivalência - Maria e Judite; Noiva, Boneca, Maria., Ela.., o que porventura será o significado mais exaustivo que alberga a própria idealização da mulher - corpo e alma. (Esta segunda inscrição do corpo idealizada referido às figuras femininas não será tratado no espaço desta comunicação, parecendo contudo relevante mencioná-la.) Quanto ao corpo idealizado presente e representado nos auto-retratos há que considerar os termos e princípios fundamentadores em que se situa a abordagem. O corpo é invólucro efémero que determina o conhecimento primeiro que os outros têm de nós. A imagem visual (exterior) que do corpo emana tem aderências simbólicas daquilo que os “outros” efectivamente esperam seja correspondente, seja a verdade desse mesmo corpo. Projectam-se na imagem do corpo alheio os detalhes e características que sempre efabularam essa figura deveria possuir para corresponder à (outra) imagem visual/mental (interna). Outra é a imagem que o próprio tem de si mesmo. Assim nos surgem as imagens dos autoretratos quando se consideram em conformidade (ou não) relativamente aos meros retratos tirados ou realizados por outrém. Quer se trate de fotografias ou de pintura - o (auto) retrato deixa transparecer a convicção interna do corpo próprio. Reflecte os elementos que inconscientemente “o próprio” mais intensamente elabora como a autenticidade (ou fantasia) de si mesmo, para si, e não necessariamente para quem o veja ou contemple. O olhar simbólico dirigido e intencionalizado, preparado para acolher o corpo de Almada nas fotografias e nos auto-retratos (desenhos, caricaturas

6 ou pinturas) congrega toda a representação idealizada, concebida, de alguém que possuia uma condição e modalidade únicas de ser e ver. O corpo foi precisamente a primeira modalidade de abordagem artística de Almada desvelando-se, apresentando-se para a sociedade, em direcção aos outros, ao público. Uma figura, um corpo trabalhado e flexível que inventava poses e gestos para plenamente contestar a existência e testemunhar o impossível - bailados. O corpo por vezes estava nu, puro e textural, numa leitura que se faz das linhas e dos gestos que o cérebro indica e a intuição acredita. O corpo real na sua idealização vestida de fatos exuberantes que transportavam a exactidão dos ideais artísticos e dos princípios estéticos perseguidos com convicção. O corpo fornecia aos outros pretextos para enriquecimento das imagens do imaginário social-público, (des)idealizado, colectivo e mesquinho. O corpo idealizado na arte grega - em termos estéticos normativos constituí-se de proporções exactas, medidas e calculadas na sequência de tanta vida de pesquisas para atingir o número áureo de si mesmo, para as obras e para o mundo - leia-se para os outros, para a colectividade. Recebe-se - em termos públicos - o corpo alheio de Almada - através da acuidade do olhar pessoal, individualizado, e este encontra porventura os olhos rígidos e inquisitivos dos retratados. (Na história da fotografia muitos são aqueles que nos fixam até ao incómodo, para nos perguntarem o que fizemos com a sua memória, em que os transformamos, na medida em que nos exigem responsabilidade, comprometendo-nos pelo facto de os olharmos...)

7 Os olhos por demais mitificados - correndo o risco de ser um cliché banal nas abordagens à figura e retrato de Almada - são a tradição que, do Egipto, Narciso trazia nos barcos que navegando sob a protecção solar (órfica) nos mares, também são os dos portugueses nessa viagem da identidade nacional. Que da Grécia se tornavam esmalte vitrificado e intenso na palidez sólida da fixação e intencionalidade de Homero e Pitágoras. O olho é em Almada símbolo da percepção intelectual, do conhecimento, mas igualmente conhecimento sobrenatural e divino da Essência Ideal. Aliando a condição de “ver” e “olhar”, na inserção única e constitutiva do corpo,

encara-se

então

o

corpo

próprio

representado

enquanto

intencionalmente idealizado e também como pretexto e condição para a práxis, para a criação de arte, através do investimento existencial que a pintura exige intrinsecamente. Em Almada Negreiros, a afirmação corpórea manifesta nos auto-retratos sugere imediatamente a intencionalidade e a direcção única , indubitável desse olhar: convergindo aqui idealidade e realidade substancial do próprio. Olhar que comporta intrinsecamente a tal condição do “ver”. O ver externo e o ver interno e aquela espécie de zona virtual em que esse ver é atirado para a pintura e o desenho de si mesmo. Parece que a acuidade visual - articulando a visão interior e exterior do autor - sabia discernir, isolar e recombinar externamente os elementos que o distinguiam para os outros, mas para si mesmo relativamente aos outros, enquanto corpo singular e único. Essa unicidade devia-se à acentuação de determinados traços efectivos que contudo excediam a projecção da ordem ideal, pois se propunha exaltar a capacidade ideativa da imagem concebida pelo próprio para usar para si. Assim se constata que no decorrer das

8 representações em auto-retratos se mantenham certos traços, recuperados para a acentuação intencional do eu, que se pode revestir de formulações mais ou menos afectas ou condicionadas pelas exigências de explictação e estabilização de teor real e noutros casos imaginário. Seria um tanto excessivo pretender que todos os auto-retratos fossem igualmente ideais; ou pelo menos quando o são, e são-no na maior parte dos casos, essa qualidade e nota de idealidade apresenta-se cumprida por notas comuns reais e imaginárias - mas também por outras que não exercem tamanha persistência. Os primeiros auto-retratos datam da primeira exposição individual do artista - Exposição de Caricaturas - na Escola Internacional da rua da Emenda, em 1913, o que evidencia a intenção de celebrar a corpórea identidade pessoal desde início. Logo no convite para a exposição, encimando a assinatura do artista assoma uma auto-caricatura, que necessariamente

comporta

uma

visualização

mental

elaborada,

sobressaindo os elementos constitutivos que se tornariam emblemáticos para a configuração pessoal do autor: os olhos. Idealização justificada pela própria realização individual, mas notavelmente acentuada para atingir uma proporção extrema e ansiada. Segue-se uma outra auto-caricatura que cumpre propósitos idênticos - nunca publicada no jornal A Briosa, e ainda na rubrica Em Foco. Esta última já de maior dimensão e impacto e direccionando a atenção do público para o traço do desenho. A partir daí os auto-retratos foram-se sucedendo, com alguma regularidade, trazendo uma constatação do conhecimento interior do Autor colocado na presentificação plástica do corpo próprio idealizado, mas também real e imaginário.

9 Paralelamente, na apresentação literária do autor realizada nos "Frisos", em 1915, já se manifestava uma percepção exteriorizável dos desenvolvimentos internos, idealizados então na imagem ficcional e enfatizados na articulação ao corpo imaginário definido em alguns dos protagonistas dos contos breves: Narciso, Arlequim.. Ou seja, a representação ideal do eu - como corpo - completa-se entre ambas expressões criativas, o que aliás vem consolidar - mutuamente - a definição do mesmo ideal pessoal exteriorizável, não tanto por propósitos de valor estético (gratuito), mas enquanto continente para a consolidação de uma interioridade nitidamente associada e em adequação a esse invólucro visível.

2. O corpo imaginário: exemplaridade e complexidade do corpo nos "Frisos": Nos “Frisos” de 1915, encontra-se a evocação simbólica do corpo imaginário - não apenas em estado auto-referencial, mas ganhando alteridade: o enredo singularizado de cada uma das pequenas histórias leva-nos até à figurabilidade consecutiva de seres aparentemente possuidores de características humanas, mas que devido às suas circunstâncias deixam transparecer memórias míticas, remetendo-nos para figuras eternalizadas, cíclicas da cultura, literatura erudita, bíblica ou popular, procurando reflectir aspirações e desejos comuns ao género humano, na sua eventual condição de intemporalizado, acrónico. A situação e condições do corpo perspectiva-se, ou melhor, é pertença do tempo, ocorre, persiste e dilui-se na ambiguidade de significação do próprio conceito de tempo.

10 O corpo regido pelo tempo, no espaço próprio e alheio, interno para exteriorizar, projecta as suas imagens, desenvolve as suas mitificações ou exacerba as intenções. O corpo imaginário denuncia a inadiável condição do corpo sujeito, na transmutação fabulatória para a constituição imagética própria. O corpo imaginário é aquele que, segundo os termos da psicanálise, concebido pelo inconsciente pessoal, emerge da condição experencial profunda, e determinado pelas nossas pulsões: gozo/desejo, medo/angústia. Associa-se de forma inevitável à interioridade latente das situações vividas nos contos, transportando as suas mitificações mais pertinentes e decisivas para a deflagração ficcional que o autor, ironicamente nos quer legar. O corpo imaginário carrega as tensões, as ânsias, os medos, os desejos, enfim, tudo aquilo que mais enraizado se inscreve na dimensão profunda e mais íntima do ser. Incorpora-se nas figuras, cuidadosamente elaboradas por Almada, tomando de acordo com cada narração, sentidos e contextualizações específicas. É o tema problematizado da individuação pessoal, mas que funciona como alegoria da humanidade, enquanto o corpo simbólico, representa as qualidades e defeitos próprios de certas pessoas, a partir da primeira e efectiva constatação percepcional do corpo. A unidade destes contos, penso dever ser lida a partir da evocação múltipla e polissémica do corpo, que a despeito das suas interpretações referenciais específicas se situa ao nível da definição de uma linguagem que lhe pertence e o constitui como tal - linguagem corporal: a) - “Ciúmes”: Ocorre a morte do corpo por amor/ciúme: O corpo de Columbina é pretexto de desejo profundo, por parte de Pierrot - como se pode constatar na peça dramática “Pierrot e Arlequim”. A morte de

11 Columbina, morte do corpo imaginário de Pierrot, por processo de introjecção-extrojecção, terá o significado das mortes eventuais de ambos. b) - “Eco”: Eco , a ninfa doce e sensível que se tomou de amores por Narciso quando este caçava cervos - aparece associada à história bíblica das personagens primordiais no paraíso, salientando-se o equívoco procedente da virtualidade ilusória de uma voz sentida por Eva como corpo não-existente de outra mulher. c) - “Sèvres partido”: Simbolicamente a relação fundamental entre o (corpo) animal e o humano originando a fusão. Desde o início do conto que visualizamos a Amazona como imagem de desassossego para o príncipe sonhado, imaginário que percorre os caminhos do sonho, numa metamorfose projeccional que se incorpora no animal. d) “Mima Fataxa”: Amor-corpo-feitiço----magia: arte/vida; confronte-se a proximidade com a perspectiva psicanalítica de Freud, a propósito da função da arte.2 A figura porventura surrealizante de Mima-Fataxa seria posteriormente recuperada em toda sua dimensão no texto de 1916, que a propósito se deverá recordar. e) / f) “A Sombra” e “A Sesta”: A imagem, essa sombra do ideal associa-se à essencialidade imaginária do corpo. O corpo alvejado pelo olhar do sujeito sobre si mesmo, a sombra evocada, mas não conseguida, neste conto poderia ser, novamente uma referência a Narciso . Pois a sombra nunca alcançada significaria o espírito, por carência, do desejo não saciado pelo uso do corpo. 2 Freud, O.C., p.223: “A Arte constitui um meio-caminho entre uma realidade que frustra os desejos e

um mundo de desejos realizados da imaginação - uma região em que, por assim dizer, os esforços de omnipotência do homem primitivo ainda se acham em pleno vigor.”

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g) “Canção da Saudade”: Emanação da ausência de percepção visual, de existência; visto - não visto; nascido - não nascido - cegueira de Homero... A condição corpórea do ser articula-se à emergência de ver, sendo o visto assunção e sinal de nascimento (existência-essência), de desvelamento de significado simbólico. h) - “Ruínas”: trata-se a presencialidade deturpadora e falsa da memória (certo platonismo) de pecados sem fim, evocação primordial história do homem, transportando vestígios das presenças corpóreas. i) - “Primavera”: Desejo-pecado que desabrocha no corpo da pastorinha: a descoberta e a consciência de si, nascem da emergência do corpo, precisamente como desvelamento, como descoberta. Para que tal aconteça torna-se necessário desocultar, para encontrar posteriormente, de dentro para fora, a identidade única. j) - “Trevas”: A anulação do real origina a emergência da “outra” realidade: imaginária. Trata-se de uma variante da evocação reflexiva da sombra já mencionada em e) e f) acrescida de uma abordagem consistente, de poética nocturna muito marcante, que radicaliza ainda mais a constituição fantasmática. k) - “Canção”: Milagre da pastorinha que, passados dois contos, se transforma em símbolo religioso popular - Nª Senhora dos Milagres; relacione-se com “A Pastorinha” do conto assim intitulado, ganhando a consistência de ser uma dimensão mística e religiosa, muito ingenuamente concebida, o que nos aproxima desse outro conceito fundamental que é o de ingenuidade que adiante desenvolveremos.

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l) - “A Taça de Chá”: Elogio do corpo fúnebre X função primordial originária que ironiza em Oriente: usando um posicionamento privilegiado para reter a nossa memória da leitura, Almada narra, com apurado e irónico sentido poético, a mecânica dos sentidos e das fantasias da gueisha. O corpo d’ele é matéria concreta e ainda viva, será corpo real até ao seu enfriamento definitivo, condição suficiente para a consumação da traição. O corpo d’ele depois será corpo já imaginário que porventura se irá consubstancializar em outro corpo, num encadeamento que se liga à própria leitura visual, mais uma vez, circular da própria chávena de chá.

Finalmente, a análise do tema referencial do corpo nestes breves contos pretendia isolar o teor da definição e abordagem, seguindo-se a confluência para a articulação global entre todos, o que nos leva a pensar na promoção da ambiguidade, que se associa a uma certa dose de ironia e inocência, geradoras de unidade poética, apesar de se tratar de produções primeiras do Autor.

3. O corpo real através da constituição da relação primordial: A percepção do corpo próprio, através dos diferentes sentidos, unificada pela globalidade de sua essência, articula-se de um modo dual na relação intersubjectiva - homem-mulher. O corpo próprio é a origem imediata que o “outro” reconhece para o encontro consigo mesmo. A partir de si, para outrém e dos outros trazido para o próprio. Existe uma espécie de circularidade que nos confronta com os outros, para poder chegar até nós, de onde afinal partimos para esse outro encontro. Todavia, aquilo que

14 somos, de modo mais caracterizante enquanto espécie, traduz-se na unidade essencial efectiva entre “corpo” e “alma”, entre a dimensão “material” e “espiritual”. O homem e a mulher são humanos: corpo/matéria e alma/espírito. Daqui uma outra dualidade de relação, implícita aos pequenos contos de Almada, entre as figuras femininas e as figuras masculinas. A dicotomia femininomasculino coloca-se em termos intrínsecos e profundos não apenas pelo corpo, mas pela alma que com o corpo constitui a unidade indivisível do ser humano. Tal acontece simbolicamente através do próprio enredo da peça “Galileu, Leonardo e Eu”, em que a Mulher define a sua alma como feminino, por analogia á própria consciencialização da diferença corpórea:

A alma é feminino. Sinto-lhe bem o feminino. Por ela entendo o quanto mais vale o seu corpo. Que outro espelho há do invisível senão o nosso corpo.3

O facto do corpo ser tão representado na escrita almadina justifica-se pela sua própria condição de ser visual/visível. O corpo, como “espelho do invisível, que é o nosso corpo”, adequa-se à pertinência e essencialidade de que a condição de ver se faz sentir ao longo da obra escrita e da obra plástica. A interioridade do ser pessoal torna-se visível através da sua constituição como corpo, recebido pelos outros enquanto imagem percepcionada desse corpo. A forma visível do corpo pode tornar-se equívoca, para quem a recebe, para quem a remete. A sua formulação recebe a projecção das formas idealizadas, dos modelos pré-estabelecidos,

3 Teatro, p.236

15 em termos de um imaginário pessoal, mas também do imaginário colectivo.

Nota: Esta comunicação estava elaborada para ser acompanhada pelo visionamento de uma série de slides, imagens das obras - auto-retratos e retratos de Almada Negreiros, alusivos ao tema desenvolvido, o que não foi possível, dado ser a comunicação enviada por Fax, não podendo estar presente, o que resulta de circunstâncias alheias à minha vontade.

Mª de Fátima Lambert Escola Superior Educação - I.P.P. Porto, Maio-Junho 1995

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