AS IMPLICAÇÕES DA DESIGNAÇÃO PARA ‘DEUS’ NA TRADUÇÃO DA BÍBLIA PARA A (DES)CONSTRUÇÃO DE UMA TEOLOGIA AFRICANA – UMA REFLEXÃO SOBRE AS LÍNGUAS CHANGANA E NYUNGWE DE MOÇAMBIQUE

June 28, 2017 | Autor: Angela Natel | Categoria: Biblia, Tradução, Moçambique, Tradução Bíblica, Teologia Africana, Nyungwe, Changana, Nyungwe, Changana
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Anais do V Congresso da ANPTECRE “Religião, Direitos Humanos e Laicidade” ISSN:2175-9685

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AS IMPLICAÇÕES DA DESIGNAÇÃO PARA ‘DEUS’ NA TRADUÇÃO DA BÍBLIA PARA A (DES)CONSTRUÇÃO DE UMA TEOLOGIA AFRICANA – UMA REFLEXÃO SOBRE AS LÍNGUAS CHANGANA E NYUNGWE DE MOÇAMBIQUE Angela Natel Mestre em Teologia PUCPR [email protected] ST 16 – TRADUÇÃO DA BÍBLIA NO BRASIL Resumo: A partir de experiências com o povo Changana e Nyungwe de Moçambique entre os anos de 2002 e 2008, busca-se realizar uma reflexão sobre as implicações da escolha da designação para ‘Deus’ na tradução da Bíblia para a construção da teologia de um povo, com ênfase nas culturas tribais africanas. Com isso, desafia-se os envolvidos na tradução bíblica a atentar para detalhes que acarretam em grande responsabilidade teológica dentro de sua área de atuação e contribuir para a melhoria de futuros trabalhos, mesmo na área de revisão do que já foi produzido. Palavras-chave: Tradução Bíblia, Teologia Africana, Moçambique, Nyungwe, Changana.

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Introdução O sujeito nasce imerso em um mundo em que os sistemas de relações foram constituídos ao longo de um processo histórico, isto é, ele nasce em grupos sociais que por necessidade de sobrevivência criaram códigos que servem para comunicar os conhecimentos adquiridos aos demais integrantes e àqueles que estão iniciando na vida social (MENDONÇA, 2008). Ao fazer uso da linguagem o sujeito requer a construção de um repertório de significações compatíveis com a possibilidade de discutir ideologias, fazer uso de metáforas e explicar suas relações com o mundo de uma maneira representacional. Todas as línguas possuem, nesse sentido, seu código próprio de significado. O Ethnologue1 lista para Moçambique 43 línguas, das quais 41 são línguas bantu, chamadas “línguas nacionais” na Constituição, e as restantes são o português e a língua de sinais. De acordo com o censo populacional de 1997, as línguas mais faladas em Moçambique, como primeira língua (Língua materna) são a emakhuwa, com 26,3%, seguida da xichangana (11,4%) e da elomwe (7,9%) (GORDON, 2015). Em um primeiro contato com as línguas moçambicanas, iniciou-se o processo de aprendizagem do xichangana (também conhecido como idioma Changana), falado nas regiões de Maputo e arredores, ao sul do país. Para o povo Changana, que já possui uma tradução de todo o texto bíblico em sua língua materna, os meios de acesso à educação ainda são precários, e muitos não têm acesso ao sistema formal de educação. Mesmo os que têm acesso a tal sistema, a maior parte dos projetos de alfabetização no país não são nas línguas maternas locais mas em português, o que já pode ser considerado um primeiro desafio frente aos trabalhos de tradução e produção de material didático já que, como salienta Machado (1995), o conhecimento, como entendimento, processa-se de maneiras diferentes, as quais exercem uma influência significativa na aprendizagem formativa. A situação não é melhor quando se analisa o chinyungwe (ou idioma Nyungwe), língua falada na Província de Tete, região do rio Zambezi, e na Província de Maniza, na região do rio Luenha (GORDON, 2015). Neste caso, o que se tem à disposição é um 1

O Ethnologue é um catálogo cujo conteúdo abrange 7.102 línguas vivas conhecidas no mundo. Versão online: http://www.ethnologue.com/

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dicionário, uma gramática elementar e apenas porções da Bíblia traduzidas, com o acesso ao sistema formal de educação de forma ainda mais restrita. Partindo do pressuposto de que não há equivalência perfeita e exata entre as línguas e, considerando as diferentes cosmovisões envolvidas, através de uma experiência de imersão intercultural e de ensino bilíngue tanto com o povo Changana (de Maputo) e Nyungwe (de Tete) entre os anos de 2002 e 2008 pretende-se destacar implicações da escolha da designação para ‘Deus’ nas traduções da Bíblia para a (des)construção de uma teologia Africana, podendo resultar em um cristianismo sincrético. Para tanto, apresentar-se-á aqui alguns conceitos encontrados nos materiais disponíveis a respeito das línguas mencionadas, juntamente com reflexões obtidas através da convivência, trabalho e estudo junto aos seus falantes nativos. É importante enfatizar o caráter preliminar destes apontamentos. Mesmo assim não se pode ignorar sua utilidade como desafio aos pesquisadores em Bíblia para que atentem às mais diversas situações decorrentes de suas escolhas para uma designação de ‘Deus’ em seus projetos para que, assim, surjam novas possibilidades de estudo e pesquisa que contribuam para um trabalho intercultural saudável e coerente.

Escrita e significado: o caminho para o entendimento de Deus A concepção de língua escrita que permeia as metodologias tradicionais é a de um código de transcrição de sinais sonoros (a fala) em sinais gráficos (a escrita). Assim sendo, o processo de alfabetização e letramento é a aquisição de uma técnica de codificação do oral (para escrever) e da decodificação da escrita (para ler). De acordo com Vygotsky, a compreensão da linguagem escrita é efetuada, primeiramente, por meio da linguagem falada (1989), isto significa que, para compreender a linguagem escrita, primeiro, deve-se compreender a linguagem falada. Dentro desse conjunto de significados, é possível construir o pensamento de que a escolha de determinada palavra numa tradução requer muito cuidado, já que sua definição acarretará na construção de novos conceitos e relações anteriormente desconhecidos ao falante.

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Ao deparar-se com a definição de uma palavra em um dicionário, por exemplo, muitas pessoas ignoram o fato de que aquela definição não é estática nem está isenta das relações já mencionadas. Definição e conceito caminham juntos na construção de ressignificações para o estabelecimento de pontes que irão nortear a cosmovisão e, consequentemente, a cultura de um povo. Quando se fala em designar ‘Deus’, por exemplo, podem surgir questionamentos como: o que se entende por divindade, sagrado? Há algum tipo de vinculação entre essa divindade e alguma religião já institucionalizada? O que caracteriza essa divindade? Quais seus atributos? O que é imprescindível manter no conceito dessa divindade para que sua definição não acarrete em uma descaracterização teológica? Estes e outros questionamentos surgiram a partir de uma experiência de contato com os povos xichangana (de Maputo) e chinyungwe (de Tete) de Moçambique entre os anos de 2002 e 2008 quando, de posse de materiais específicos lexicográficos de ambas as línguas bem como de uma tradução da Bíblia para cada uma delas constatou-se certas implicações na (des)construção da teologia vigente, bem como no ensino que se dava na utilização desses materiais. Experiência com a definição e o conceito de ‘Deus’ em Changana Ao deparar-se com práticas aparentemente incoerentes no sistema teológico cristão vigente em comunidades de Maputo e arredores, em Moçambique, uma breve investigação deu início às reflexões aqui apresentadas, no sentido de se repensar as escolhas que são feitas para a designação de ‘Deus’ na tradução bíblica. Ao participar de grupos e encontros denominados ‘cristãos’ em Maputo e arredores, observou-se o hábito das lideranças destes mesmos grupos estarem envolvidos simultaneamente com práticas cristãs e animistas2, o que pode caracterizar sincretismo religioso3. Após um tempo de convivência, descobriu-se que em Changana, a palavra atribuída e traduzida na Bíblia como Deus é ‘Xikwembu’, o singular de ‘swikwembu’, que são os espíritos dos ancestrais, como se pode observar na definição:

2

Filosofia, Ideologia ou crença de acordo com a qual todas as formas identificáveis da natureza (animais, pessoas, plantas, fenômenos naturais) possuem alma. 3 Fusão de cultos ou de doutrinas religiosas distintas que atribui uma nova interpretação aos seus elementos: sincretismo religioso.

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“xìkwembu (xi-svi) 1. Espírito ancestral; (neol.) deus. 2. Interj. Fórmula com que se jura, promete ou afirma: ‘Xikwembu, vatafikà!’ Hão de chegar, por Deus!” (SITOE, 1996, p.266) Como se pode observar, o significado ‘deus’ configura um neologismo na língua Changana, atribuído em tempo posterior devido às atividades missionárias cristãs. Contudo, conferindo-se os dados com falantes nativos na região de Maputo e arredores, obteve-se a confirmação de que, para muitos, a única diferença marcante entre as práticas era a de que num ambiente cristão consultava-se uma entidade (no singular) enquanto que no rito animista consultavam-se, mediante consulta a curandeiros (médicos tradicionais) e/ou feiticeiros, várias entidades (no plural), confundindo-se e mesclando-se os atributos das mesmas. Dessa maneira, constatou-se que o sincretismo encontrado em Maputo e região, onde o Changana é a língua materna e há conhecimento e práticas cristãs, resultava de uma escolha de um termo cujo significado primário consistia em um conceito com atributos distintos do que se pretendia exemplificar. No tempo em que se permaneceu em contato com o povo Changana, não foi encontrado um termo designativo de uma entidade que melhor caracterizasse os atributos da divindade cristã, como onisciência, onipresença, onipotência e eternidade. Por causa disso, optou-se pela elaboração de material didático bilíngue reforçando uma ressignificação do termo Xikwembu em contexto cristão, através de uma expansão conceitual: transformando-se o termo em homonímia. Uma realidade um pouco diferente, entretanto, foi encontrada mais ao norte do país. Experiência com a definição e o conceito de ‘Deus’ em Nyungwe Um dos nomes mais comuns para Deus em toda a África é Criador. Este termo genérico pode ser encontrado em inúmeras culturas tribais e é de grande ajuda na escolha de termos que possam designar a divindade cristã. A palavra para Criador em Nyungwe é Nyadenga (MARTINS, 1991, p.288). Este é o conceito africano mais fundamental sobre Deus. Mas, no entendimento africano, para ser criador pode haver a implicação de alguma relação familiar. Por isso muitos nativos acabam por confundir o Deus Criador descrito na Bíblia com algum antepassado poderoso. Entre alguns grupos

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étnicos, Deus é conhecido como o “Grande Antepassado”. Esta confusão foi observada com alguns falantes da língua changana, ao sul do país, mas em Nyungwe, ao norte, descobriram-se

mais possibilidades léxicas que pudessem contribuir para o

esclarecimento dos atributos da divindade. Na língua Nyungwe são usadas várias palavras para Deus descritas em seu dicionário, como por exemplo: “Cauta - Cf. Mulungu; Deus.” (MARTINS, 1991, p.155), “Dedza - cf. Mulungu; Deus.” (p.173), “Mulungu - Deus; firmamento; ku mulungu: firmamento, céu; mulungu waipa-ipa: temporal; Mulungu wandigwera: recebi coisa boa, tive sorte; Mulungu ali kubvumba: está a chover; Mulungu watalama: não chove, a chuva afastou-se, a chuva anda longe.” (p.267), “Mphambe - cf. Mulungu.” (p.253), “Nyadenga - cf. Mulungu; Deus Criador e Senhor.” (p.288), “Nyamakole - cf. Mulungu.” (p.291). No dia-a-dia, a ideia a respeito de uma divindade suprema, encontrada entre a população, era a de uma pessoa, um espírito ancestral, um espírito bom protetor ou algo muito parecido com isso, mesmo em ambientes afetados pelo cristianismo, produto de trabalho missionário estrangeiro. De uma maneira mais aprofundada, foi elaborada uma série de materiais didáticos bilíngues, sob a supervisão de um grupo de falantes nativos, a fim de se trabalhar os atributos encontrados nas entidades designadas por estes termos. Para tanto, utilizou-se de termos auxiliares que poderiam ajudar na construção de uma teologia com menos característica sincrética e ao mesmo tempo coerente com a cosmovisão nativa, tais como: chefe, rei, regedor - Nya’kwawa (MARTINS, 1991, p.291), santo - kucena, kusiyana makhalidwe, dono e senhor - Mbuya, mweneciro (MARTINS, 1991, p.241), e pai – Baba (p.143). Tanto o material didático quanto o ensino bilíngue em cursos de reforço e grupos de estudo de interesse direcionados se mostraram eficazes no que diz respeito às possibilidades para futuros estudos de tradução da Bíblia e formação teológica, a fim de se evitarem dificuldades como as encontradas entre os Changana de Maputo.

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Considerações Finais Vygotsky salienta que a linguagem escrita é um sistema de símbolos e signos, denominado pelo autor como simbolismos de segunda ordem, isto porque, para se chegar neste, a pessoa passa antes pelos simbolismos de primeira ordem que são o gesto, o desenho e a fala. Além de que, a aprendizagem da escrita envolve, simultaneamente, múltiplos aspectos: os usos, as funções e a natureza da língua escrita. Aprender a escrever implica compreender os diferentes usos que as pessoas fazem da escrita, que não se reduzem aos usos que a escola faz ao solicitar cópias, ditados, completar frases, redações, leitura de textos em voz alta e assim por diante. Implica compreender as funções sociais da escrita, ou seja, que as pessoas leem e escrevem para dar ou receber informações, para questionar, para convencer, para instruir, para se organizarem

no

tempo e no espaço, para construir suas relações com o

transcendente, assim como para o próprio lazer ou diversão. A busca e o contato com o transcendente compreendem muito mais do que símbolos e signos linguísticos, alcança o âmago da humanidade. Ainda que não se tenha encontrado nas línguas Changana e Nyungwe de Moçambique um termo que melhor designe ‘Deus’ em seus atributos como os encontrados na cosmovisão judaicocristã, no curto período de contato entre os anos de 2002 e 2008, o que se procurou demonstrar aqui é a complexidade de tais escolhas e alguns riscos que acarretam de uma designação inadequada. Com este posicionamento, não se pretende questionar os motivos pelos quais os responsáveis pela tradução da Bíblia em Changana escolheram o termo Xikwembu para designar ‘Deus’, mas alertar para os perigos que certas escolhas podem causar na construção de uma consciência teológica africana, bem como para a necessidade da elaboração de materiais didáticos adequados que trabalhem a ressignificação dos termos escolhidos, exatamente com base no fato de que não existe equivalência exata entre as línguas e cosmovisões do mundo. Com relação ao Nyungwe, o desafio para os pesquisadores é a união de forças a fim de que esta e muitas outras línguas, não apenas de Moçambique, mas em todo o continente africano sejam incluídas em seus estudos, que novas frentes de trabalho

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sejam levantadas e fortalecidas para a construção de uma teologia africana coerente e relevante. Referenciais

GORDON, R. G. (Ed.). Ethnologue: Languages of the world (15.ª ed.). Dallas, Texas: SIL International. Versão online: http://www.ethnologue.com/, acessado em 16/04/2015. MARTINS, Manuel dos Anjos. Elementos da Língua Nyungwe – Gramática e Dicionário. Roma: Missionários Combonianos, 1991. _____. (Org.) Cuma Cathu Natisunge – Adivinhas – Provérbios – Contos dos Nyungwes. Tete, Moçambique: Missionários Combonianos, 2001. MENDONÇA,

Fernando

Wolff.

Aquisição

da

linguagem:

Uma

perspectiva

psicopedagógica. Curitiba, 2008. O’DONOVAN Jr, Wilbur. O Cristianismo Bíblico da Perspectiva Africana. São Paulo: Vida Nova, 1999. SBSA. A Bíblia Sagrada em Tsonga Padrão. South Africa: Sociedade Bíblica da África do Sul, 1989. SITOE, Bento. Xikwembu in Dicionário Changana-Português. Maputo, República de Moçambique: Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação, 1996. VYGOSTSKY, L. S. Formação Social da Mente. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1989. VYGOTSKY, L.S.;LÚRIA, A.R.; LEONTIEV, A.N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. 9º edição. São Paulo: Editora Ícone, 2001.

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