As implicações internacionais do modelo chinês de desenvolvimento no Sul Global: Consenso Asiático como Network power

Share Embed


Descrição do Produto

PENSAMENTO CRÍTICO

Perspectivas Asiáticas Marcos Costa Lima (Org.)

PENSAMENTO CRÍTICO

Perspectivas Asiáticas

Copyright©2016 Os autores Todos os direitos desta edição reservados ao Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento

FICHA CATALOGRÁFICA P467 Perspectivas asiáticas / organização de Marcos Costa Lima – Rio de Janeiro : Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento : Folio Digital, 2016. 372 p. (Pensamento Crítico; 6) Inclui bibliografia ISBN: 978-885-61012-74-8 1. Ásia – Economia. 2. Ásia – Livre comércio. 3. Ásia – Poder econômico. 4. Ásia - Desenvolvimento econômico. 5. América Latina - Desenvolvimento econômico. 6. Desenvolvimento sustentável. I. Lima, Marcos Costa. II. Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. III. Título. IV. Série. CDU 330.101

PENSAMENTO CRÍTICO

Perspectivas Asiáticas Marcos Costa Lima (Org.)

Rio de Janeiro, 2016

Perspectivas Asiáticas é uma publicação do Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento, em coedição com a Fólio Digital Editora. O Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento é uma associação civil de direito privado, de interesse público, sem fins lucrativos, cujos objetivos são: a documentação, o estudo e o debate do desenvolvimento do Brasil em todas as suas dimensões, em especial as sociais, políticas e regionais. Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento Av. República do Chile, 330 – Edifício Ventura / Torre Oeste, 9º andar Centro – Rio de Janeiro – RJ – 20031-170 Tel.: (55 21) 3747-9745 / 2172-6312 / 6313 www.centrocelsofurtado.org.br – [email protected] Patrocinadores

Fólio Digital Editora Rua Teotônio Regadas, 26/602 – Lapa Rio de Janeiro – RJ – 20021-360 Tel.: (55 21) 2558-2326 www.letraeimagem.com.br – [email protected] Coleção Pensamento Crítico – vol. 6 Perspectivas Asiáticas Organizador: Marcos Costa Lima Revisora: Priscilla Morandi Tradutora: Julia Nemirovsky Projeto gráfico: Sarjana Comunicação e Design Revisão gráfica: Adriana Gomes de Carvalho Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 1º de janeiro de 2009.

A todos que lutam por um Brasil democrático e com justiça social.

Sumário 13

Introdução: A ascensão da Ásia Marcos Costa Lima

23

1. Entre a desigualdade e o poder econômico Amit Bhaduri

33

2. Livre comércio, cooperação regional ou disputa por poder? Qual é o papel da Parceria Transpacífico? Henrique Altemani de Oliveira

33

1. Introdução

36

2. As diferentes propostas de integração: papéis e interesses dos diferentes atores

47

3. Um novo jogo: disputando poder regional e internacional

58

4. Considerações finais

67

3. As implicações internacionais do modelo chinês de desenvolvimento do Sul Global: Consenso Asiático como network power Javier Vadell, Leonardo Ramos e Pedro Neves

67

1. Introdução

69

2. O neoliberalismo hegemônico – O modelo de desenvolvimento chinês e o Consenso de Washington

72

3. Do Consenso de Washington ao Consenso Asiático

79

4. O caminho atual do Consenso Asiático: a crescente relação da China com a África e com a América Latina

83

5. Considerações finais

91

4. Lições do desenvolvimento econômico da China para a América Latina John Ross

91

1. Introdução

92

2. As conquistas econômicas da China são as maiores na história

94

3. Escala de crescimento econômico

95

4. A transição da China de uma economia de renda baixa para uma economia de renda média-alta

96

5. A posição da China na economia mundial

97

6. As conquistas sociais sem precedentes da China

99

7. Acontecimentos pré-1978

99

8. Expectativa de vida e bem-estar humano

102

9. Quando a expectativa de vida aumentou?

103

10. A China apresenta a mais rápida melhoria nos padrões de vida do mundo

104

11. Redução da pobreza

106

12. Consequências indiretas da redução da pobreza

107

13. Expectativa de vida e condições sociais gerais

109

14. Outros fatores determinantes da expectativa de vida além do PIB

110

15. O que a expectativa de vida demonstra sobre as condições sociais na China

112

16. Quando a China se tornará uma economia de renda alta?

113

17. O teste da crise financeira internacional

114

18. O teste dos 36 anos

116

19. Diferenças na estrutura econômica

117

20. O Gerenciamento Macroeconômico Superior da China

118

21. O que motiva os ciclos comerciais?

120

22. O que aconteceu no colapso pós-2007 – os EUA

122

23. As economias avançadas como um todo

124

24. China

125

25. O controle macroeconômico do investimento na China

125

26. Por que a China não teve uma crise de investimento?

126

27. Deng Xiaoping – o melhor economista do mundo

128

28. Consequências para a América Latina

135

5. Após a atual crise, qual o futuro da relação estratégica entre a América Latina e a China? Francisco Dominguez

135

1. Introdução

140

2. A natureza dos níveis de crescimento econômico sustentado sem precedentes na China

150

3. A expansão meteórica das relações comerciais entre a China e a América Latina

154

4. China e Brasil

155

5. As desvantagens e as dificuldades da relação entre a China e a América Latina

160

6. O que o futuro reserva?

165

6. Investimentos chineses na América do Sul: um desenho das preferências de destino e setores Alexandre Cesar Cunha Leite e Lohana Gabriela Simões de Oliveira Ramos

165

1. Introdução

167

2. O perfil do IED chinês na América do Sul

182

3. Setores preferenciais e a motivação na seleção

189

4. Considerações finais

193

7. A China na América Latina: investimento em infraestrutura portuária Adriana Erthal Abdenur

193

1. Desafios da infraestrutura portuária na região

196

2. Investimentos chineses

201

3. Considerações finais

203

8. O realismo chinês de Yan Xuetong Renan Holanda Montenegro

204

1. O campo das Relações Internacionais na China

209

2. A filosofia política da era pré-Qin

213

3. Abordagens contemporâneas do pensamento chinês tradicional

222

4. Considerações finais

227

9. Urbanização na China: processo, problemas e perspectivas Guoping Li, Yun Hou

227

1. Introdução

228

2. O processo de urbanização chinês e seus problemas

237

3. Perspectivas para o futuro da urbanização da China

240

4. Considerações finais

243

10. O Distrito de Arte 798: múltiplos fatores que influenciaram a sucessão do uso da terra e a restruturação industrial em Beijing Yimei Yin, Zhigao Liu, Michael Dunford, Weidong Liu

243

1. Introdução

245

2. Metodologia

245

3. Embasamento teórico: indústrias culturais, descentralização geográfica e sucessão do uso da terra

252

4. A transição de Beijing de uma cidade industrial para uma cidade criativa

255

5. O exemplo do Distrito de Arte 798

265

6. Considerações finais

271

11. Aspectos jurídicos e políticos das disputas no Mar da China Meridional Alexandre Pereira da Silva

271

1. Introdução

272

2. O Mar da China Meridional e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar: o cenário e o marco jurídico das controvérsias

276

3. A origem das disputas atuais: as notas verbais

284

4. O mapa da linha de nove traços e os “direitos históricos” sobre o Mar da China Meridional

289

4. Solução das controvérsias: meios político e jurídico

295

5. Considerações finais

301

12. Investidores institucionais, microfinanciamento e objetivos de desenvolvimento sustentável Alicia Girón

302

1. Introdução

303

2. Desregulação financeira e fortalecimento das microfinanceiras

305

3. Investidores institucionais e o comportamento das microfinanceiras

317

4. Microcrédito, mulheres e os objetivos de desenvolvimento sustentável

321

5. Considerações finais

325

13. Banco dos BRICS: uma via alternativa às instituições de Bretton Woods? Marcos Costa Lima e Joyce Helena Ferreira da Silva

325

1. Introdução

331

2. Acumulação de capital no contexto da financeirização: um panorama geral

337

3. Banco dos BRICS: Uma via alternativa às instituições de Bretton Woods?

349

Anexo

365

Sobre os autores

Introdução: A ascensão da Ásia O século XXI é herdeiro de processos fundamentais que ocorreram no século XX, e aqui me arrisco a indicar dois desses processos fortemente revolucionários que não podem estar fora de qualquer avaliação da economia política internacional desde o pós-Segunda Guerra Mundial: em primeiro lugar, as transformações técnico-produtivas que se aceleraram a partir do advento da computrônica e, em segundo lugar, a vertiginosa a ascensão da China no final da década de 1970. Mas, mais do que isto, há uma modificação geopolítica de deslocamento do poder tradicional, situado no entorno do Atlântico para o continente asiático, processo desencadeado pelo Japão a partir de 1955 até a década de 1970, quando este país apresentou taxas de crescimento do PNB de 10,5% na década de 1950 e 1960 e 7,6% em 1970. Para este processo, foi definitiva a intervenção estatal e a criação de um ministério específico, o MITI (Ministry of International Trade and Industry), que não apenas recuperou a economia do Japão, mas introduziu uma política de racionalização industrial que coordenou esforços de cooperação formalizados entre o governo japonês e o setor privado. O MITI também impulsionou a política industrial, e a desvinculação da  importação de  tecnologia , da importação de outros bens. As leis sobre o capital estrangeiro

do MITI concederam poder ao ministério para negociar preço, condições e acordos para importação de tecnologia. Este elemento de domínio tecnológico permitiu ao Japão promover as indústrias que considerava promissoras. O baixo custo da tecnologia importada permitiu um rápido crescimento industrial. Em 1951 o MITI fundou o Banco do Desenvolvimento do Japão, que também forneceu ao setor privado  capital de baixo custo em longo prazo.1

JOHNSON, Chalmers. MITI and the Japanese miracle, 1925-1975. California, EUA: Stanford University Press, 1982.

1

14

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

O Japão emergiu como o dragão econômico da Ásia Oriental. Os japoneses atingiram um alto padrão de vida, e o país ainda permanece como um motor industrial e financeiro para o Pacific Rim, mas agora à sombra da China. Os tigres como Singapura, Hong Kong, Taiwan e Coreia do Sul também experimentaram um forte crescimento econômico e são fortes concorrentes na economia global. Este chamado “milagre japonês” repercutiu nos países do Leste Asiático, através das cadeias industriais que se autoalimentavam na região para oferecer produtos manufaturados de alto valor tecnológico. Na esteira de Johnson, a economista do desenvolvimento do MIT, Alice Amsden, escreve um livro que também fez carreira: Asia’s next Giant: South Korea and late Industrialization.2 Para Amsden, na Coreia do Sul, o governo fez a maior parte das decisões de investimento, aquelas essenciais. As empresas envolvidas operavam com um extraordinário grau de controle do mercado, protegidos da concorrência externa. A economista reforça também a ideia central segundo a qual tanto o Japão quanto Taiwan e Coreia do Sul se industrializaram rapidamente, pelos investimentos realizados na educação, criando uma força de trabalho bem-educada, tanto aquela de colarinho branco quanto azul. Um processo de aprendizagem associado a uma busca de superar o atraso tecnológico intenso, ao mesmo tempo em que o Estado impunha padrões estritos de desempenho nas indústrias fomentadas3. Os estudiosos da Ásia, após a rápida industrialização destes late commers, passam inclusive a discutir se fazia sentido falar de um “padrão asiático de crescimento”, sintetizado em estado indutor, superação do atraso tecnológico, educação e export drive. Mas essa experiência exitosa na Ásia também teve seus momentos de fracasso, quando da crise da moeda e financeira de 1997, gerando muitas dúvidas tanto no seio dos decisores políticos quanto da sociedade científica. Amsden, Alice. Asia’s next Giant: Soth Korea and late Industrialization. Oxford: Oxford University Press, 1992. 3 Coutinho, Luciano. “Coreia do Sul e Brasil: paralelos, sucessos e desastres”. In: Fiori, José Luís (Org.): Estados e Moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 357378. 2

INTRODUÇÃO

15

Para Zhang Xiaoming (2006), as razões do insucesso são discutidas até hoje e representaram uma oportunidade para reduzir a “corrida para o desenvolvimento” e refletir coletivamente sobre o caminho de desenvolvimento que os países da Ásia deveriam seguir. Não obstante os períodos de dificuldades, Coutinho (1999, p. 375) chama a atenção para a rápida saída da crise pela Coreia do Sul, em que pese a violência da crise cambial. O PIB do país, que crescera em média 6,8% ao ano entre 1992 e 1997, teve uma queda vertiginosa em 1998 (- 5,5% e em 1999 já se projetava uma recuperação). A ascensão chinesa foi tida, em certo tempo, como uma força desagregadora para o crescimento econômico da região, que perdera muito de seu dinamismo após 1997. Para acalmar os ânimos do ASEAN, a China teve a corajosa atitude de estabelecer um Acordo de Livre Comércio com o bloco, que operaria no sentido de ampliar o comércio e os investimentos em benefício do conjunto. Assinado em 2002, o acordo desde então exerceu uma grande pressão sobre o Japão e a República da Coreia, que tiveram de seguir o exemplo através da intensificação de seu comércio com o Asean, baixo o guarda-chuva intitulado “Asean+ 3” (Asean mais China, Japão e Coreia do Sul). Com a China como um crecente poder regional econômico e político, sua iniciativa com o ASEAN acabou por produzir um novo momento na direção da chamada Nova Era da Integração Econômica na Ásia do Leste (WANG, 2005). Como nos diz Gilpin (2004), de 1980 até 1997, quando da crise que irrompeu na Malásia, a região da Ásia do Pacífico – um conjunto de países representado pelo Japão e Coreia do Sul, a Indonésia, a Tailândia, Singapura e a China – foi a região que mais cresceu na economia mundial.4 A ascensão da China, nesse contexto, se refere primeiramente ao rápido e sustentado crescimento de sua economia desde o final dos anos 1970, quando a reforma e a abertura foram adotadas por Deng Xiaoping. Em segundo lugar, pela entrada do país, em 2001, na Organização Mundial de Comércio, após

Essas economias cresciam a 8% ao ano, respondendo por cerca de um quarto da produção mundial e aproximadamente dois terços dos gastos mundiais de capital. Gilpin (2004, p. 323).

4

16

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

a duração mais longa de readmissão ao sistema de comércio multilateral na história do GATT/OMC. Hoje, buscar, pela via de um intenso pragmatismo, equilibrar os avanços dos tigres econômicos e do Japão é um desafio constante para a China, que centraliza e dá o ritmo da economia regional. Estes países, que em grande medida foram antigos inimigos na Segunda Guerra Mundial, são agora parceiros comerciais (a exemplo da China, do Japão e da Coreia) – embora as diferenças culturais e políticas entre eles permaneçam. Segundo Farooki e Kaplinsky (2012), a China passou a ser o maior exportador mundial e o segundo maior importador, ficando atrás apenas dos EUA. A China passa a ter uma presença internacional cada vez mais ampliada através dos investimentos diretos externos, sobretudo em petróleo e mineração. Mas, essa força que transformou a China em um gigante no comércio internacional e na fábrica do mundo esteve e está ligada endogenamente a uma política urbana de grande intensidade. O “caso chinês” de urbanização apresenta uma intensa atividade do Estado, com amplo planejamento do desenvolvimento, onde as cidades são um elemento central para um crescimento econômico “multidimensional”, em que se articulam campo e cidade e um processo migratório na direção da cidade, que torna imprescendível os investimentos em infraestrutura de estradas, ferrovias e mobilidade urbana, associados a um intenso processo de construção de moradias, escolas, universidades, hospitais, parques e centros comerciais. O “modelo chinês” parece adotar a máxima de Glaeser (2011), segundo a qual a densidade urbana fornece o caminho mais claro da pobreza à prosperidade, como a maior cidade das invenções, porque articula reduzir os custos através de economias de especialização e escala, proporcionando maior rapidez na disseminação de conhecimento e informação (COSTA LIMA et al, 2014). Neste sentido é que a China veio a se tornar o principal produtor mundial de automóveis e veículos, que sustentam a imensa demanda das grandes cidades (FARROKI, KAPLINSKY, 2012). Barry Buzan escreveu em 2010 um instigante e denso artigo sobre as possibilidades e os desafios que a China tem de manter sua ascensão pacifica-

INTRODUÇÃO

17

mente. O autor, diferentemente de Meashheimer5 e Fred Halliday6 , entende que o projeto é factível, contudo, que será muito mais difícil do que tem sido nas útlimas três décadas. A China terá que pensar fortemente sobre ela mesmo, sobre suas questões internas e sobre a sociedade internacional na qual é hoje um dos maiores players. Estes processos, em meio a uma crise ainda sem descortino, criará fortes tensões – por exemplo, com os Estados Unidos da América e com o Japão, sem que possa repetir a sua experiência de sucesso desde 1978. O país está melhor posicionado que a maioria das grandes potências para se sair bem e não poderá manter uma distância confortável dos problemas hoje enfrentados pelo Ocidente. Querendo ou não, a China será demandada para uma ação internacional capaz de estar à altura de suas atuais condições de uma grande potência. Neste sentido, a dimensão da paz e a afirmação categórica desta premissa7 podem representar um valor inestimável de superação da crise capitalista (BUZAN, 2010, p. 34) O livro que ora temos a satisfação de introduzir estabelece uma ampla reflexão sobre a região asiática, enfrentando as questões que foram aqui introduzidas e está estruturado em 13 capítulos/contribuições que o tornaram possível. Os temas e os autores convidados apresentam diversas abordagens que vão desde 1) uma discussão fundamental sobre desigualdade e poder econômico apresentada por Amit Bhaduri, que representa a sua reflexão quando do recebimento do Prêmio Vassily Leontief, este ano; 2) uma análise do professor Henrique Altemani sobre a Parceria Transpacífico, aprofundando a questão da não inclusão da China entre os 12 países-membros, além de enfatizar a maior assertividade dos Estado Unidos da América ao instrumentalizar a TPP como um elemento da estratégia de retorno e maior presença na Ásia e as reações chinesas; 3) o terceiro capítulo, de Javier Vadell et al, avalia a evolução Mearshheimer, John (2014). Halliday, Fred (1999). 7 No interior da China está emergindo um esforço para promover algum dos princípios inspirados em Conúncio, na direção de construir uma ordem mais coletivista, uma alternativa harmoniosa ao individualismo conflituoso que tomou conta do pensamento ocidental das relações internacionais Qin Yaqing (2012), Xiao Ren (2009). 5

6

18

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

do modelo de desenvolvimento sui generis da China, além do significado da sua relação com outros países em desenvolvimento na periferia do Sul Global; 4) o professor John Ross nos brinda com um estudo sobre o significado do desenvolvimento econômico chinês para a América Latina; 5) o quinto capítulo, do professor Francisco Dominguez, que se situa no mesmo campo das relações China-América Latina, busca examinar o imenso potencial que pode representar para a região o aprofundamento de suas relações com a China; 6) o sexto capítulo, do professor Alexandre César Leite e Lohana Ramos, tem por objetivos mapear os investimentos chineses na América Latina e identificar os setores prioritários, na tentativa de avaliar se estes constituem um padrão e melhor compreender a ação chinesa na definição dos seus investimentos na região; 7) Adriana Abdenur estuda as questões de infraestruturas portuárias, que são imprescindíveis para o comércio mundial, articulando as deficiências existentes na América latina no setor e os investimentos chineses que vêm aportando capital neste campo específico; 8) Renan Holanda nos introduz ao pensamento chinês no campo das Relações Internacionais e a um de seus renomados especialistas, Yan Xuetong, que defende a necessidade de se reformar o atual aparato teórico utilizado nos estudos sobre a China e a atuação internacional do país; 9) o professor Liu Guoping e Yun Hou nos introduzem no processo chinês de urbanização e seus problemas, defendendo a necessidade de políticas capazes de direcionar o País para a proteção ambiental, qualidade urbana e aprimorar a integração regional interna; 10) o professor Mick Dunford et al nos informam que, desde a reforma econômica, as cidades chinesas experimentam uma descentralização das indústrias de manufaturas e o crescimento dos serviços e dos distritos de indústria criativa nas antigas áreas industriais. Estudam o Distrito de Arte 798 em Beijing, as políticas de cultura e as iniciativas para transformar Beijing numa metrópole global; 11) o artigo de Alexandre Pereira aborda uma questão que vem ganhando proeminência na geopolítica de segurança mundial, a saber, as controvérsias em torno do Mar da China Meridional. As disputas atuais tiveram seu momento de partida em 2009, quando o Vietnã e a Malásia submeteram à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC), nos termos do artigo 76.8 da Convenção

INTRODUÇÃO

19

das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), propostas de plataformas continentais estendidas além das 200 milhas marítimas; 12) a professora Alicia Giron, da Unam, no México, estuda os Investidores Institucionais, as Instituições Microfinanceiras e os objetivos do desenvolvimento sustentável. O trabalho tem como foco refletir sobre as taxas de juros dos microcréditos nos países da APEC e sua relação com os fluxos de capital dos investidores institucionais. Conclui pela necessidade de regulação financeira profunda por parte dos bancos centrais dos países que constituem a APEC. Finalmente, 13) o estudo, de Marcos Costa Lima e Joyce Helena Ferreira, que analisa o Banco dos BRICS e se interroga sobre se este banco é uma via alternativa às instituições de Bretton Woods. Em sua primeira parte, o texto reflete sobre o golpe de Estado em andamento no Brasil e avalia as repercussões sobre os BRICS, para em seguida fazer uma reflexão sobre o processo de acumulação de capital no contexto da financeirização, que tem interferido duramente na economia global e a relaciona com a necessidade dos cinco países buscarem uma alternativa capaz de enfrentar a hegemonia bancária do G7, e apresenta, ainda, as primeiras decisões de projetos tomadas pelo Banco. Concluindo, é importante dizer que o Centro Internacional Celso Furtado, nos seus 10 anos de existência, tem dado uma atenção especial ao processo asiático através da realização de seminários e publicações, convidando cientistas sociais da região para atualizar, com os sócios do Centro, as transformações ali havidas e prospectar possibilidades de novas pessquisas. A este livro, o primeiro inteiramente dedicado às “Perspectivas Asiáticas”, também somou esforços o Instituto de Estudos da Ásia, criado em 2015 pela Universidade Federal de Pernambuco, que tem mantido contato com professores chineses e indianos e pesquisadores no Brasil e México, que vêm aprofundando seus conhecimentos não apenas sobre a Ásia, mas sobre o Brasil e a Ásia, os BRICS e a China na América Latina. Boa leitura. Marcos Costa Lima

20

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Referências BIJIAN, Zheng. “China’s ‘peaceful rise’ to Great-Power Status”. Foreign Affairs, v.84, n.5, p. 18-24, 2005. BUZAN, Barry. “China in international Society. Is ‘peaceful rise’ possible?”. The Chinese Journal of International Politics, v.3, p. 5-36, 2010. COSTA LIMA, Marcos; SILVA, Joyce Helena F.; ALVES, João Ricardo C. S. Territory, development and the economy of large Cities: perspectives of Brazil and China. Trabalho apresentado no Fórum Beijing, Peking University, 2014. COUTINHO, Luciano. “Coreia do Sul e Brasil: paralelos, sucessos e desastres”. In: FIORI, José Luís (Org.). Estados e Moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 357-378. FAROOKI, Masuma; KAPLINSKY, Raphael. The impacto f China Global Commodity Prices. New York: Routledge, 2012. FIORI, José Luís (Org.). Estados e Moedas no desenvolvimento das nações. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 357-378 GILPIN, Robert. “O regionalismo asiático”. In: O desafio do Capitalismo Global. Rio de Janeiro: Record Editora, 2004, p. 353-388. GLAESER, Edward. The Triumph of the City. London: Penguin Books, 2011. HALLIDAY, Fred. Revolution and World Politics: the rise and fall of the sixth great power. Basingstoke: Macmillan, 1999, p. 2. JOHNSON, Chalmers. MITI and the Japanese miracle, 19251975. Califórnia, EUA: Stanford University Press, 1982. MEARSHHEIMER, John. “Why China’s rise will not be peacefull”. National Interest, 2014. Disponível em: http://nationalinterest.org/commentary/canchina-rise-peacefully-10204. Acesso em: 08 de fevereiro de 2016.

INTRODUÇÃO

21

QIN, Yaqing. “Chinese Culture and its implications for Foreign Policy making”. Chinese Institute of International Studies, 2012. Disponível em: http:// www.ciis.org.cn/english/2011-11/18/content_4634967.htm. Acesso em: 01 de julho de 2016 WONG, John. “China’s economic rise- implications for east-asian growth and integration”. Bulletim of Asia-Pacific Perspectives, p. 31-44, 2005. XIAO, Ren. “Toward Chinese school of International relations?”. In: GUNGWU, Wang and YONGNIAN, Zheng (Eds.). China and the New International order. London: Routledge, 2009, p. 294-309. XIAOMING, Zhang. “The rise of China and Community Building in East Asia”. Asian Perspective, v.30, nº 3, p. 129-148, 2006. XUETONG, Yan. “The Rise of China and its power status”. Chinese Journal of International Politics, v. 1, p. 5-33, 2005. YUE, Jianjong. “Peaceful Rise of China: Myth or reality?”. International Politics, v.45, n. 4, p.439-56, 2008.

Entre a desigualdade e o poder econômico Amit Bhaduri

Analogias podem gerar confusão, mas às vezes também são esclarecedoras, trazendo uma nova perspectiva para um problema complexo. Para a relação entre desigualdade e poder econômico, tenho em mente a analogia da lei da gravidade. A desigualdade é visível e pode, inclusive, ser medida estatisticamente em muitos casos, mas o poder econômico que a gera é invisível e não pode ser medido. Assim como a força da gravidade, o poder é o princípio organizador da desigualdade, seja de renda, riqueza, gênero, raça ou regional. Seus efeitos podem ser amplamente notados em todas as esferas, mas as formas pelas quais o poder econômico influencia as variáveis econômicas visíveis permanecem invisivelmente obscuras. Isso desafia a análise empírica direta e deve ser analisado por meio de seus efeitos. Assim como a atração gravitacional, o exercício do poder também depende da existência de mais de um corpo, ou seja, de mais de um elemento. Em praticamente todas as situações, o poder se expressa em diferentes formas de dominação de um elemento por outro: o dominador e o dominado, o mestre e o escravo, o rei e seus súditos, o colono e o colonizado, o patrão e o empregado; relações de conflito e colaboração baseadas na dependência mútua e no antagonismo. As formas mudam, o conteúdo permanece mais ou menos o mesmo. Em muitos casos, conforme a abrangência da dominação aumenta, sua forma se torna menos clara. Quando forças coloniais dominam um país, elas quase que invariavelmente possuem colaboradores no país e pode haver benefícios não pretendidos. Os britânicos criaram uma classe média na Índia que colaborou amplamente com os poderes dominantes, e, além disso, abriu caminho para o conhecimento moderno ao mesmo tempo em que suprimia o conhecimento tradicional. Essa concepção de conflito e cooperação inerente

24

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

ao capitalismo foi inspirada no modelo predador-presa de tigres (ou capitalistas) que se alimentam de, por exemplo, coelhos (ou mão de obra assalariada) [aplicação de Goodwin da equação de Lotka-Volterra, em 1967. Contaram-me que ele tomou conhecimento do modelo através do biólogo Haldane, quando este visitava o Indian Statistical Institute, em Kolkata]. Haveria um crescimento desenfreado de coelhos caso os tigres não os comessem, mas, caso comessem demais, haveria oferta insuficiente de coelhos, o que ameaçaria a existência dos tigres. Há uma dependência mútua, mas seria um erro sugerir que os coelhos – e não os tigres – são o poder dominante. De acordo com uma enorme quantidade de livros didáticos, sobretudo nos Estados Unidos, os capitalistas podem contratar mão de obra, e a mão de obra pode contratar os capitalistas em um “mercado de capitais perfeito”, esquecendo que a dependência mútua não impede que haja uma relação de poder. Assim como em uma reação química complexa, temos que isolar a relação de dominância. E o princípio geral é questionar, em diferentes estruturas organizacionais, qual das duas partes – a presa ou o predador – sobreviveria sem a outra. O poder econômico está inserido na estrutura institucional e na ideologia que o legitimam. Isso ficará mais claro ao longo desta apresentação. Por tratar de interações entre pelo menos duas pessoas, o tema não pode ser satisfatoriamente abordado por meio do conceito do “individualismo metodológico”. E, uma vez que a questão da dominância não pode ser resolvida, ela é convertida na questão da diferença de gostos e preferências do indivíduo naquele contexto (à la Gary Becker com o argumento racial). Mais uma vez, assemelha-se ao tema da dependência mútua. Caso eu tenha uma preferência especial por não ter vizinhos que não sejam brancos, os vizinhos que não são brancos podem ficar à vontade para preferirem não ter brancos como vizinhos. Como iremos argumentar, há um grupo cujo conjunto de preferências define o que é ou não permitido em uma sociedade. Isso determina a relação de dominação e é o ponto crucial das relações de poder. De acordo com a corrente dominante da teoria econômica, as interações entre indivíduos racionais isolados estabelecem-se apenas através dos preços e quantidades no mercado. Eles buscam a otimização, motivados por seus

ENTRE A DESIGUALDADE E O PODER ECONÔMICO

25

interesses pessoais. Um verdadeiro discípulo de Adam Smith permitiria que a sociedade tivesse alguma influência por meio de diversas normas sociais e “sentimentos morais” tais como confiança, obediência a leis, mecanismos de execução contratual, etc., assegurando a viabilidade do mercado enquanto instituição. Entretanto, com ou sem tais normas sociais no mercado idealizado da teoria econômica, os indivíduos permanecem sem poder, exceto por meio de seu poder de compra derivado de transações com “dotações iniciais”. A desigualdade distributiva entra pela porta dos fundos das dotações representando a riqueza, mas a função da moeda como reserva de valor é esvaziada, uma vez que se presume que a incerteza seja banida. Sem moeda, apenas os preços relativos são relevantes. Eles costumam ter a qualidade de impactar o quanto é comprado e vendido no mercado por meio da troca, mas possuem a estranha qualidade de serem parâmetros definidos para todos os indivíduos, independentemente de serem afetados positiva ou negativamente por tal sistema de preço. Aqueles que definem as “regras do jogo”, organizando o mercado e definindo os preços, permanecem invisíveis, assim como a força da gravidade. Portanto, assim como o Deus de Voltaire, deve-se inventar um leiloeiro para cumprir a função de definir os preços de equilíbrio. Tal Deus inventado impede ainda que as pessoas pratiquem preços incompatíveis com o equilíbrio. Essa é a narrativa do leiloeiro todo-poderoso e de participantes passivos e impotentes no mercado. A questão de como os preços são definidos permanece não esclarecida, como uma lacuna na teoria. E precisa ser assim, devido à tentativa de esquivarse do tema do poder. Reconhecê-lo significa reconhecer o touro descontrolado dentro da loja de porcelana fina das teorias cuidadosamente trabalhadas. Para aqueles educados nessa tradição intelectual, isso definiu uma pauta de pesquisa ligeiramente dissidente voltada para a análise das “falhas de mercado”, dos erros na determinação de preços. A concepção mais tradicional era a de que haveria diversos tipos de mercados imperfeitos, desde monopólios até interações estratégicas derivadas da competição entre poucos rivais, e atritos como custos de transação e os “custos de menu” oriundos da alteração frequente de preços. A teoria dos jogos é melhor aplicada quando esses poucos concorren-

26

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

tes criam estratégias ou negociam uns com os outros, mas com estratégias e opções predeterminadas. O conhecimento atual sobre falhas de mercado passou a focar na informação como variável estratégica, nos casos em que um participante acessa (ou pode produzir) mais informações (verdadeiras ou não) do que outros, e assim desfruta do poder de definir preços. Os fundamentalistas de mercado consideram essa premissa abominável, uma vez que, para eles, os preços são informações “públicas” disponíveis para todos em um mercado. O mercado processa todas as informações da forma mais eficiente possível e as disponibiliza como preços correntes de mercado para todos os participantes, de forma justa e equânime. Nenhum participante individual poderia tirar proveito delas. Sendo igualmente informado, um preço para a mesma mercadoria deveria impedir a ocorrência de arbitragem, informações privilegiadas, inside trading, etc. Entretanto, o debate entre fundamentalistas de mercado e aqueles que aceitam a possibilidade de falhas de mercado decorrentes de múltiplas caracterizações de informações imperfeitas (por exemplo, risco moral, informações assimétricas, etc.) lida estrategicamente com a questão do poder econômico, mas não a enfrenta de fato. Para entender isso, trataremos do problema de forma mais direta. Vamos supor que o indivíduo X queira adotar a linha de ação 1 em vez da 2. Entretanto, o indivíduo Y tem o poder de forçá-lo a adotar a linha de ação 2. A questão de como o poder é exercido costuma ser explicada pela análise de como Y consegue fazer isso. Se desconsiderarmos o caso óbvio do uso da força militar bruta e direta como ameaça a X, não por ser menos importante (ela é sim muito importante nas relações internacionais), mas por não haver muito o que se discutir sobre isso, podemos então tratar de casos mais sutis nos quais o poder é derivado da informação. Y pode dissuadir X das seguintes formas: (a) revelando mais informações para X do que este tinha sobre as consequências negativas da escolha da sua linha de ação preferida (assim como um médico que explica ao paciente as consequências prováveis do hábito de fumar, ou um cientista explica a um político o perigo de uma guerra nuclear); (b) fazendo o mesmo, mas deliberadamente transmitindo informações erradas e dissuadindo-o de escolher sua linha de ação preferida (o que é especialmente

ENTRE A DESIGUALDADE E O PODER ECONÔMICO

27

importante em nossa era midiática, com comerciais e notícias patrocinadas, sem falar dos produtos financeiros esotéricos). Ambos relacionam-se com o aspecto da informação. Consideremos, porém, um terceiro caso que é muito mais relevante para a compreensão do papel do poder na economia e na sociedade. Seria o caso de (c) impedir que X siga a sua linha de ação preferida. A forma como isso é feita é a essência do problema mais abrangente da caracterização do poder. No nível abstrato sobre o qual estamos discutindo, as instituições são dispositivos sociais estabelecidos não apenas para rotinizar ações, mas também para reduzir as opções ou os recursos estratégicos de alguns, ao passo que os aumenta para outros. Acima de tudo, a análise do poder econômico é a análise das instituições e das ideologias que as promovem. O caso mais óbvio é quando o poder estatal decide o que é legal ou ilegal por meio da combinação entre instituição e ideologia. Instituições impostas pelo Estado sem consentimento da população possuem fundamentação frágil e precisam ser legitimadas por uma ideologia. E isso é ainda mais forte e duradouro quando a pessoa cuja opção está sendo cerceada consente por nem mesmo saber estar sendo regida por aquela ideologia. Por exemplo, Adam Smith propôs a ideologia para justificar o mercado como uma instituição que coordenava de forma mais eficiente as decisões dos indivíduos em uma sociedade com uma divisão do trabalho técnico e social elaborada. Ele criou uma ideologia para a existência do mercado enquanto instituição. Para Marx, a mesma instituição do mercado tinha o papel de liberar trabalhadores assalariados da escravidão ou da servidão exclusivamente para compeli-los a uma situação que criaria excedentes para geração de lucro. Essa era também uma ideologia relativa ao mercado. A tragédia é quando se reconhece uma delas como uma ideologia, mas não se é capaz de ver a outra sob o mesmo prisma. Há risco de dogmatismo em presumir que a mesma ideologia legitima, em todas as circunstancias e do mesmo modo, o cerceamento institucional das opções. A análise do poder econômico precisa ser mais variada e complexa. A economia, assim como qualquer outra ciência social, não é tão privilegiada a ponto de reduzir todas as relações de poder a uma só causa. Marx provavelmente foi o que chegou mais perto de fazê-lo, ao identificar a propriedade dos meios de

28

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

produção como instituição, e a propriedade privada como a ideologia que a sustenta. Juntas, elas definem as relações de poder. Entretanto, isso precisa ser adaptado a cada situação concreta, e eu gostaria de tentar ilustrá-lo com dois exemplos, um relativo ao capitalismo desenvolvido (EUA) e outro em desenvolvimento (Índia). A liberalização dos mercados de capitais a partir do meio de década de 1970 concedeu aos operadores privados, em detrimento do Estado, um poder sem precedentes de comercializar um volume cada vez maior de câmbio. Esse foi o início do crescimento fenomenal do setor financeiro e, na década de 1990, um de seus mais importantes segmentos escapou, de certo modo, ao controle do banco central. Suas operações de compra e venda não eram suficientemente supervisionadas ou tampouco garantidas pelo banco central. O sistema bancário paralelo, também chamado de bancos-sombra, são hoje mais relevantes quantitativamente do que o sistema bancário tradicional. A ideologia dominante deixou de ser a regulação, e a autorregulação passou a predominar em todo o sistema financeiro, sobretudo em seu sistema bancário paralelo. Bancos-sombra eram a instituição, e a autorregulação era a ideologia. Eles sustentavam-se um ao outro com a criação de diversas dívidas chamadas de securities (ou seja, valores imobiliários), vendidas como produtos financeiros; e também com a garantia mútua e recíproca de esquemas de seguro semelhantes aos de seguros privados. Quando esse esquema entrou em colapso, grandes atores (em grande parte, bancos de investimento) foram resgatados com injeção de recursos públicos pelo governo, sem este ao menos nacionalizar ou mesmo aumentar significativamente sua participação na tomada de decisões. A ideologia da autorregulação praticamente livre de controle externo permanece quase que inalterada até o momento. Muitas das instituições financeiras estão inundadas com liquidez injetada nas operações de resgate, mas sem muitas linhas de empréstimos para investimento produtivo em um cenário de depressão econômica. Um caminho fácil para elas é a criação de valores imobiliários esotéricos, com promessa de altos rendimentos e riscos que encontram um mercado entre os excepcionalmente ricos. A riqueza destes cresce em parte graças a isso, independentemente da situação de depressão

ENTRE A DESIGUALDADE E O PODER ECONÔMICO

29

econômica na economia real, aumentando ainda mais a desigualdade econômica. Fico abismado com esse exemplo, porque a mais inclusiva das instituições políticas – a democracia majoritária – demonstrou que a lógica política de “um adulto, um voto” e a lógica do mercado de “um dólar, um voto” não podem ser reconciliadas enquanto o poder econômico estiver cada vez mais concentrado em instituições financeiras regidas pela ideologia da autorregulação. Na verdade, isso aparece quase como um ponto crítico na trajetória da evolução democrática, como liberdade de mercado, aumentando a liberdade das corporações financeiras ricas. Uma minoria insignificante de indivíduos ricos domina a enorme maioria em uma democracia majoritária. Entretanto, meu interesse de pesquisa de longa data não são os equívocos das altas finanças por meio do seu crescente poder nos países desenvolvidos, e sim em países em desenvolvimento, tal como a Índia. O motivo pelo qual, apesar da assombrosa pobreza da maioria, a ideologia do desenvolvimento econômico tem sido considerada praticamente igual ao crescimento econômico promovido pelas empresas. Alguns poucos economistas estão envergonhados com isso, e querem que o crescimento seja moderado por medidas de bem-estar social promovidas pelo Estado; outros são mais pragmáticos e defendem o incentivo ao crescimento sem restrições, que poderá transbordar para os pobres em algum momento. Tanto os radicais quanto os moderados evitam lidar com a verdadeira questão. Um crescimento maior gerado por empresas significa maiores incentivos para investimento das empresas, o que é conhecido como um “ambiente de investimentos mais favorável”. Além dos recorrentes incentivos fiscais e concessões dados aos negócios (estimados como perda de receita, são da mesma ordem que todos os subsídios concedidos anualmente para a maioria pobre na Índia), o governo tentou oferecer incentivos mais amplos, concedendo terra e recursos naturais a preços praticamente simbólicos para empresas privadas. Isso gera um deslocamento em larga escala das pessoas cujo sustento dependia desses recursos. Esse desenvolvimento gerado pelo deslocamento de aproximadamente 600 mil pessoas por ano raramente atinge cidadãos realmente privilegiados, e sim os “adivasis” pobres, os habitantes nativos do país, e os menos privilegiados na hierarquia de castas, os Dalits que

30

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

vivem no campo. De acordo com mais do que um relatório governamental, os adivasis constituem cerca de 8% da população, mas representam 40% a 50% dos deslocados. Esse processo – melhor caracterizado como colonização interna, em vez de destruição criativa – afeta os pobres de forma desenfreada, para a criação um ambiente de investimento favorável para as grandes empresas. Ainda assim, devido à dimensão insuficiente dos mercados interno e externo (a Índia é um importador líquido sistemático, com um multiplicador de comércio exterior negativo), as empresas absorvem com suas vagas de emprego apenas uma pequena fração desses deslocados, mas sua tecnologia intensiva em recursos naturais obtêm uma produção maior do que é perdido com o deslocamento. Por exemplo, caso 10 pessoas, cada uma produzindo 2, sejam deslocadas da economia natural, e caso 5 delas encontrem emprego no setor empresarial com uma produtividade do trabalho de 8, a oferta de emprego e o acesso aos meios de subsistência cairiam pela metade, ao passo que a produção dobraria. Essa é a principal causa do crescimento do desemprego gerado pelas empresas, verificável não apenas na Índia. E pessoas instruídas, que frequentaram boas escolas, são ensinadas a aceitar isso como sendo a ideologia do desenvolvimento e a não questionar a temível obsessão com uma maior eficiência empresarial com vistas a ampliar a competitividade internacional, levando a um aumento do desemprego. Ao infundir a ideologia do aumento do crescimento na instituição democrática, à revelia do destino da maioria dos envolvidos, ela foi convertida em algo politicamente correto. Isso leva a um perigoso mutualismo que se desenvolve entre as empresas privadas e o governo, em nome de um maior crescimento. As empresas tornam-se excepcionalmente ricas, como nunca antes, por causa dos recursos naturais transferidos a elas a baixo custo. Isso aumenta a riqueza em uma velocidade que o lucro oriundo da produção nunca poderia alcançar. Enquanto a privatização do patrimônio estatal foi o modo como a Rússia criou a maior parte dos bilionários instantâneos, a Índia tem feito isso por meio da busca de um maior crescimento promovido pelas empresas! (A Rússia é o 4o país com o maior número de indivíduos com patrimônio líquido excepcionalmente grande [HNWI – High-net-worth individual], e a Índia é o 5o, de acordo com apuração recente). Na Índia, as grandes empresas retribuem

ENTRE A DESIGUALDADE E O PODER ECONÔMICO

31

o favor com generosas doações aos partidos políticos, tornando o custo de disputar eleições proibitivamente alto para cidadãos comuns que não dispõem do apoio de partidos políticos favorecidos por grandes doações. Na competitiva disputa das eleições multipartidárias, todos os partidos políticos, independentemente de seu matiz político, mais cedo ou mais tarde adequam-se. A democracia inclusiva de “um adulto, um voto”, em uma democracia de mulheres e homens pobres, é reconciliada com o poder econômico das empresas quando os custos banem os pobres de qualquer possibilidade de representação direta. Disso resulta uma massa homogênea formada por diversos partidos políticos de múltiplos matizes. Suas retóricas divergem quando na oposição, mas agem de forma semelhante quando no poder. A escolha deixa de existir devido à instituição da democracia e da ideologia de equiparação do desenvolvimento com um maior crescimento. Conforme a estrutura democrática esvazia-se de seu conteúdo e a industrialização promovida por empresas transforma-se sem objeções em uma democracia promovida por empresas, a necessidade de produção intelectual torna-se mais urgente – não no sentido de glorificar a instituição da democracia e a ideologia do maior crescimento, mas para confrontá-las com alternativas.

Referências DAHL, R.A. “The concept of power”. Behavioural Science, n.3, p. 201-215, 1957. GOODWIN, R. M. “A growth cycle”. C. H. Feinstein ed. Socialism, Capitalism and Growth, Cambridge, Cambridge University Press, 1967. GRAMSCI, A. Selections from the Prison Notebooks. Nova York: International Publishers Co., 1971. HARSANYI, J. “The dimension and measurement of social power”. In: ROTHSCHILD, K. (Ed.). Power in Economics. Harmondsworth, U.K.: Penguin Books, 1962/1971, p. 77-96.

32

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

LITTLE, R. J. A. & Rubin, D. B. Statistical Analysis with Missing Data. 2ª ed. Nova York: John Wiley, 2002. REHM, M. & SCHNETZER, M. “Property and power: lessons from Piketty and new insights from the HFCS (Household Finance and Consumption Survey)”. European Journal of Economics and Economic Policies, Intervention, v.12, n.2, p. 204-219, 2015.

Livre comércio, cooperação regional ou disputa por poder? Qual é o papel da Parceria Transpacífico? Henrique Altemani de Oliveira

1. Introdução A proposta para a constituição da Parceria Transpacífico (TPP, na sigla em inglês) foi lançada modestamente em 2005 por quatro pequenas economias (Brunei, Chile, Singapura e Nova Zelândia), membros do Fórum de Cooperação Econômica da Ásia-Pacífico (APEC, na sigla em inglês) e insatisfeitos com o lento progresso no desenvolvimento de blocos econômicos no Leste Asiático. Circunscrita a seus propositores (denominados como P4), a TPP passou a ter mais relevância somente a partir de 2009, quando os Estados Unidos aderiram e assumiram a liderança no processo e, com a adesão do Japão em 2013, adquiriu projeção internacional ampliada. Por fim, a assinatura do acordo comercial em 5 de outubro de 2015 pelos doze países membros, ainda necessitando de ratificação pelos respectivos parlamentos, foi saudada pela mídia internacional como um momento histórico para as relações econômicas internacionais. Foi apontada como “o maior acordo comercial da história” ou como o “novo modelo de acordo do século XXI” ao concentrar-se, além da tradicional facilitação de acesso ao mercado de bens, serviços e investimentos, em outras temáticas como padrões trabalhistas, meio ambiente, convergência regulatória e harmonização de padrões técnicos. Um questionamento inicial decorrente da composição dos membros da TPP1 é a ausência da China. Se é uma proposta de vinculação de economias

Membros do TPP: Austrália, Brunei, Canadá, Chile, Singapura, Estados Unidos, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru e Vietnã.

1

34

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

dos = dois lados do Pacífico, por quais razões a principal economia asiática ou o principal parceiro (primeiro ou segundo) dos membros da TPP não está presente? E se tem a ver com “princípios trabalhistas”, com importância de “empresas estatais”, ausência de democracia, por que deixar de fora a China e dentro o Vietnã? Ainda que aparentemente o objetivo primário seja comercial (livre comércio ou reforçar o sistema multilateral de comércio), não se pode omitir que as decisões de quem faz ou não faz parte destes acordos são prioritariamente políticas. Hemmer e Katzenstein (2002, p. 575, 587) ponderam que “embora frequentemente descritas em termos geográficos, regiões são criações políticas e não definidas pela geografia”, e complementam esta afirmação citando Simmel: “Nem Atlântico Norte, nem Sudeste Asiático existem como fatos geográficos. Ambos são politicamente construídos”. Neste sentido, pode-se raciocinar que a lógica para a definição dos membros da TPP não é a econômico-comercial, mas, como usual nos diferentes arranjos multilaterais, a político-estratégica. E, nesta linha de raciocínio, não se pode igualmente omitir uma questão correlata que percorre as diferentes etapas de proposições multilaterais no Leste Asiático: Estados Unidos é considerado e aceito como membro da região? Outra questão que desperta a atenção dos analistas de Relações Internacionais é o fato de, durante a Guerra Fria, a Europa ter desenvolvido uma série de instituições multilaterais (tanto na dimensão econômica quanto na de segurança), enquanto na Ásia as iniciativas foram quase que inexistentes. Hemmer e Katzenstein (2002, p. 575) afirmam que na parceria com o Atlântico Norte os Estados Unidos optaram por operar em base multilateral, enquanto que com os parceiros do Sudeste Asiático, bilateral. E, de forma excessivamente crítica, argumentam que os “Estados Unidos consideraram seus potenciais aliados europeus como membros iguais de uma comunidade compartilhada. Os potenciais aliados asiáticos da América, em contraste, foram vistos como estranhos e, em aspectos importantes, como uma comunidade inferior”. Neste sentido, a presente proposta de reflexão sobre o significado da TPP vai se concentrar especificamente na dimensão político-estratégica.

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

35

Não que não se reconheça sua importância econômico-comercial ou seu caráter inovador, mas simplesmente por entender que TPP, no espaço asiático, é mais uma proposta que se soma a uma longa série de propostas anteriores e atuais. A importância política da TPP parece estar sendo reforçada com o agravamento da crise na Europa em decorrência da recente decisão britânica de sair da União Europeia (votação em 23/06/2016), ao mesmo tempo em que retoma a tendência de acentuar a proeminência do Século do Pacífico em detrimento do Século do Atlântico. Reforça igualmente a pressão para a efetivação da TPP, em estágio bem mais avançado do que a proposta da Parceria Transatlântico (TTIP, na sigla em inglês). De quebra, a ênfase na TPP não decorre só dos problemas no continente europeu, mas do fato de que competidores que podem ameaçar (e ameaçam) a primazia americana, principalmente em sua capacidade decisória nas temáticas econômico-comerciais, estão na Ásia. O Japão na década de 1990 e a China no século XXI, ou o Leste Asiático como um todo ao longo deste tempo. Qualquer tipo de arranjo, acordo, tratado, área de livre comércio na Ásia é importante por ter presente em sua gestação e gestão a questão da presença ou não dos Estados Unidos. A primeira parte da reflexão concentrar-se-á no arrolamento e avaliação das principais propostas de constituição de áreas de cooperação econômica e/ ou de livre comércio, abordando precipuamente os papéis do Japão, nas iniciativas pioneiras; dos Estados Unidos, quando, perdendo capacidade econômica, passa a se interessar pelo dinamismo asiático; e da China, quando apresenta os primeiros resultados positivos em seu processo de desenvolvimento e busca ampliar sua inserção regional. Já a segunda parte enfatizará a maior assertividade estadunidense ao instrumentalizar a TPP como um elemento da estratégia de retorno e maior presença na Ásia e as reações chinesas.

36

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

2. As diferentes propostas de integração: papéis e interesses dos diferentes atores2 O Leste Asiático3 apresenta-se atualmente como um dos polos mais dinâmicos da economia internacional e, para muitos (TELLIS, 2010; KURLANTZICK, 2011; HAASS, 2013), confirmando a emergência do Século do Pacífico. No entanto, é interessante relembrar que a Ásia das décadas 1960 e 1970 não apresentava esta atratividade. Ao contrário, a região caracterizava-se precipuamente pela permanência de conflitos, guerras de libertação, conflitos ideológicos e atraso econômico generalizado, com exceção do Japão. De outro, destacava-se igualmente a presença ostensiva dos Estados Unidos (EUA) em seu processo de contenção da União Soviética (URSS), com pleno consenso nas considerações políticas e acadêmicas de que o país era e ainda é um ator regional por seu papel na manutenção da segurança regional e igualmente pela manutenção de seus interesses econômico-financeiros na região. Consequentemente, nas diferentes propostas, ao longo deste tempo, para implantação de acordos de cooperação, integração ou de áreas de livre comércio (FTA, na sigla em inglês), uma questão recorrente e polarizadora sempre foi e é a presença ou não dos EUA. Uma outra ponderação inicial é a defesa, enfatizada pelo conjunto da obra de Takashi Terada, de que o interesse japonês, ao idealizar as primeiras propostas integrativas no Leste Asiático, estava mais direcionado à perspectiva de reduzir as assimetrias Norte-Sul presentes na Ásia, em especial no Sudeste Asiático. Assim, o “Japão, como a única nação industrializada na Ásia, tem que agir como uma ponte para as nações em desenvolvimento na região” (TERADA, 1999, p. 7). Ou, “o principal interesse do Japão na coo-

Para esta reflexão foram utilizadas parcelas de análise já anteriormente desenvolvidas e expostas em Oliveira (2002a; 2002b; 2006). Serviu igualmente como base o ensaio de Oliveira (2015). 3 O conceito de Leste Asiático passou a ser empregado depois do fim da Guerra Fria indicando a tendência de junção do Nordeste Asiático (China, Japão e Península Coreana) com o Sudeste Asiático (Brunei, Camboja, Singapura, Filipinas, Indonésia, Laos, Malásia, Myanmar, Tailândia e Vietnã). 2

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

37

peração econômica na Ásia-Pacífico tem sido o de contribuir para o desenvolvimento no Sudeste Asiático [....]. Isto é evidente nas frequentes referências de líderes japoneses para solucionar o problema Norte-Sul” (TERADA, 2001b, p. 213). De outro lado, é necessário ressaltar que a ASEAN4 (Association of Southeast Asian Nations), atualmente com dez membros do Sudeste Asiático, transformou-se, ao longo do tempo, na base das propostas de institucionalização no Leste Asiático (econômicas, integrativas, políticas e mesmo de segurança), indicando que, em decorrência das disputas entre os atores do Nordeste Asiático, aquele que tiver o apoio da ASEAN apresenta melhores chances de assegurar um maior papel regional. 2.1. Japão inicia o jogo propondo uma FTA

A primeira iniciativa asiática concreta de desenvolvimento de um esquema regional de cooperação ou de integração, no plano econômico, surgiu em 1965, com a formalização da proposta apresentada pelo professor japonês Kiyoshi Kojima de criação de uma FTA, a Área de Livre Comércio do Pacífico Asiático (PAFTA – Pacific Asian Free Trade Area). A motivação para essa primeira tentativa decorreu, entre outros fatores, da percepção de que os blocos regionais em desenvolvimento (Comunidade Econômica Europeia - 1957 e Associação Latino-Americana de Livre Comércio - 1960) “estavam sinalizando para uma ruptura da economia mundial para blocos regionais, deixando o Japão de fora” (ARNDT, 1990, p. 563). A proposta previa como membros plenos EUA, Japão, Canadá, Austrália e Nova Zelândia, com a possibilidade de os países em desenvolvimento da região aderirem como membros associados. No entanto, essa proposta não foi bem aceita no Sudeste Asiático devido à ênfase na forte presença ocidental, sendo que, na realidade, o fator fundamental para sua descontinuidade foi o Singapura, Filipinas, Indonésia, Malásia e Tailândia são os membros originais da ASEAN quando de sua criação em 1967. Brunei foi aceito em 1984, Vietnã em 1995, Laos e Myanmar em 1996 e Camboja em 1999. 4

38

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

desinteresse dos EUA em participar de esquemas de cooperação regional que pudessem afetar interesses americanos. Ainda que sem êxito formal, a proposta do professor Kojima, enquanto reflexo de uma preocupação regional sobre as questões econômicas, propiciou o desenvolvimento de uma série de “conferências asiáticas” com o objetivo de refletir sobre as possibilidades de cooperação regional. É necessário frisar que essas conferências, que caracterizam o processo asiático, abandonaram completamente as perspectivas de FTA e concentraram-se especificamente nas questões de cooperação, e mesmo assim entendendo-se cooperação não como integração, mas como coordenação de políticas econômicas.5 2.2. Os Estados Unidos entram no jogo, retomando a proposta de FTA na Ásia

No final da década de 1970, nos EUA, em profunda crise econômico-financeira, com elevadas taxas de desemprego, inflação crescente e com base no relatório Patrick-Drysdale encomendado pelo Senado, crescia a expectativa de implementação de uma Comunidade do Pacífico. E, no Japão, sedimentava-se a perspectiva de que antes de uma organização voltada para a integração econômica, seria necessária a superação das diversidades culturais e ressentimentos históricos. Masayohi Ohira apresentou uma proposta política sobre regionalismo e colocou o Japão como um país pivô no plano regional, intenção que Terada (2001b, p. 197) classifica como de uma “liderança direcional”, isto é, “um líder direcionando o comportamento de seus seguidores para objetivos coletivos que o líder estabelece”.

É exatamente essa ideia de coordenação de políticas econômicas que vai gerar as seguintes conferências: Pacific Trade and Development Conference (PAFTAD); Pacific Basin Economic Council (PBEC) e Pacific Economic Cooperation Conference (PECC). A PAFTAD (1968) era composta por economistas com interesses na cooperação econômica regional. O PBEC (1968), composto por homens de negócios, era um fórum de negócios com o objetivo de estabelecer um ambiente mais favorável para os negócios na região. Já a terceira série PECC (1980) será lançada no momento em que tanto Japão quanto EUA estão pensando mais objetivamente na questão de definição de alguma modalidade de regionalismo. 5

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

39

Aparentemente, o Japão necessita ter boas relações com os EUA e com todos os outros países da Terra. Entretanto, assim como os EUA dão atenção especial à América Latina, a Alemanha Ocidental à CEE [...], o Japão necessita dar atenção especial aos países da região do Pacífico. Isto não é uma questão que o Japão pode decidir sozinho. Nesta conjuntura, é importante que Estados regionais pivô estejam preparados [para cooperação regional]. (SANKEY SHIMBUN, 22 Outubro, 1978 apud HAMANAKA, 2010, p. 59, tradução do autor).

E, nos EUA, o senador John Green, presidente do Subcomitê sobre negócios com o Leste Asiático e o Pacífico, contratou os economistas australianos Hugh Patrick e Peter Drysdale para o desenvolvimento de um diagnóstico sobre a pertinência de implementação de um processo integrativo no Leste Asiático. O relatório gerado indicava a possibilidade de Japão, Austrália e ASEAN avançarem neste sentido, o que poderia prejudicar sensivelmente a influência e a liderança estadunidense na região. Enquanto o Japão buscava se posicionar como um Estado pivô, exercer liderança direcional, os EUA igualmente raciocinavam não só em termos econômicos, mas igualmente políticos e estratégicos. O bem conhecido relatório Patrick e Drysdale foi submetido em julho de 1979. Embora seu objetivo fosse econômico, argumentava detalhadamente o significado do regionalismo para os EUA não só do ponto de vista econômico, mas também político e estratégico. Alertava para o custo potencial de uma falha por parte do governo dos EUA em desempenhar um papel central no regionalismo emergente. (HAMANAKA, 2010, p. 62, tradução do autor).

Neste choque de expectativas (definição da região e de seus membros) e com base na visão japonesa de relativa oposição à definição de uma FTA é que se estabelece a terceira série das conferências, a Pacific Economic Cooperation Conference (PECC), contando com a presença de delegações de onze países:

40

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

os cinco desenvolvidos (EUA, Japão, Canadá, Austrália e Nova Zelândia), os cinco membros da então ASEAN (Malásia, Indonésia, Singapura, Filipinas e Tailândia) e a Coreia do Sul. Cada delegação tinha uma composição tripartite: um representante acadêmico, um do setor privado e um do setor governamental a título privado. He (2009, p. 65) considera que o estabelecimento da PECC levou os EUA, pela primeira vez, a considerarem seriamente a construção de uma comunidade econômica regional na Ásia-Pacífico. No entanto, a defasagem de poder entre os EUA e seus aliados asiáticos constrangeu o desenvolvimento da PECC até o final dos anos 1980. Com base nestas experiências constituiu-se, em 1989, a APEC (Asia-Pacific Economic Cooperation forum)6, com um caráter essencialmente econômico, informal, em resposta ao aumento do regionalismo econômico e, consequentemente, para discussão de questões econômicas e ampliação da cooperação regional. Note-se que a APEC não se propunha inicialmente como um bloco comercial, mas como um fórum negociador dos interesses dos diferentes países membros no sentido de ampliar e explorar as vantagens da interdependência econômica (OLIVEIRA, 1995, p. 109). Em uma análise objetiva, Yanagihara apontava que a APEC caracterizava-se como um mecanismo em busca de sentido, mas que sua existência já era significativa. Isto é, expressava o pertencimento a uma mesma região e o reconhecimento da necessidade e vontade política de colaborar regionalmente para a promoção do desenvolvimento econômico. “A APEC tinha um toque asiático característico que consiste no intercâmbio informal de pontos de vista, de opiniões e de busca do consenso através do entendimento mútuo. É um mecanismo deliberadamente vago” (YANAGIHARA, 1993, p. 72).

Constituída inicialmente com 12 membros (Austrália, Canadá, EUA, Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia e os seis membros da Asean – Indonésia, Malásia, Tailândia, Filipinas, Brunei e Singapura), a APEC conta hoje com 21 membros. Em 1991 foram aceitas as participações das três Chinas, sendo que as de Taiwan e Hong Kong como economias, e não como países. Em 1993 ocorreu a aceitação do México e de Papua Nova Guiné e, em 1994, do Chile. A Rússia, Peru e Vietnã tornaram-se membros plenos em novembro de 1998. E, deste este momento, foram suspensas novas adesões. 6

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

41

Até 1992, a APEC caracterizou-se pela ausência de propostas concretas que pudessem levá-la a ter uma atuação mais ativa no contexto regional. Para Donald Crone (1992), esta rede não emergiu rapidamente, pois, já antes de sua formação, algumas questões foram levantadas e ainda permaneciam em torno sobre o que cooperar e com quem. O principal ponto de polarização era a discussão sobre a viabilidade ou não da participação dos EUA – para alguns, um fator de estabilidade para a segurança regional, mas de instabilidade para o comércio e outras áreas correlacionadas, devido às suas críticas no tocante às condições sociais dos trabalhadores, aos direitos humanos e pressões sobre propriedade intelectual. De outro, temia-se que a participação dos EUA, em um mesmo organismo com o Japão, monopolizasse as atividades da organização, sendo que a ausência dos EUA e a ameaça de um bloco do yen desestimularia a proposta australiana. Sem previsão inicial de participação, os EUA foram aceitos pelo apoio japonês e australiano.7 Na reunião da APEC, em Seattle (1993) e presidida pelos EUA, a perspectiva de liberalização comercial tornou-se a peça-chave da agenda da APEC, com a proposta estadunidense de que a APEC acelerasse a cooperação econômica com vistas ao estabelecimento de um regime de livre comércio e de investimento na região (Para uma Comunidade Econômica da Ásia-Pacífico). Procurou também instrumentalizar a reunião para se obter um consenso mútuo de apoio à conclusão da Rodada do Uruguai do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT - General Agreement on Tariffs and Trade). Entretanto, esta disposição para definição de uma FTA decorria principalmente das intenções norte-americanas e dos países ocidentais membros, sofrendo uma velada oposição dos membros asiáticos, principalmente do Japão e Malásia. Assim, na reunião de 1995, sob liderança japonesa em Osaka, a perspectiva de transformação da APEC em uma FTA foi descartada. A reunião caracterizou-se pela retomada da via asiática, pela definição da ideia de “A decisão de incluir os EUA na APEC refletiu o desejo da Austrália e do Japão de manter seus principais aliados construtivamente engajados na região e para prevenir uma ‘divisão pelo meio’ da Ásia-Pacífico” (CAPLING; RAVENHILL, 2012, p. 287). 7

42

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

regionalismo aberto, segundo o qual as vantagens tarifárias concedidas mutuamente deveriam ser estendidas a todos os não membros, via cláusula da Nação Mais Favorecida (GATT) e sem exigências de contrapartida. Para melhor compreensão deste embate nipo-estadunidense, é necessário retomar as bases que fundamentaram a raison d’être da APEC: “As iniciativas da APEC tiveram sua origem no Japão e na Austrália, como também foi o caso da PECC. Para o Japão, a necessidade de coordenar as ações oficiais de promoção do desenvolvimento econômico na região continua sendo a principal razão da APEC” (YANAGIHARA, 1993, p. 74). Neste sentido, pode-se afirmar que o claro objetivo inicial dos EUA em transformar a APEC em uma FTA não teve sucesso precipuamente por causa da oposição japonesa. Note-se que este conflito Japão-EUA não se restringia ao tema APEC, ao contrário, era muito mais intenso internacionalmente com o embate entre as economias ocidental e asiática (liderada pelo Japão) e as acusações à economia asiática de práticas desleais. É pertinente observar que, neste mesmo momento da tentativa estadunidense de transformação da APEC em uma FTA, estava sendo concluída a criação do NAFTA (North America Free Trade Area), ocorria, e ainda indefinida, a Rodada Uruguai do GATT e, em dezembro de 1994, EUA propunha em Miami a constituição da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Para Bonilla (2014, p. 41-42), a APEC neste momento ficou muito marcada por uma profunda divergência. Enquanto os países que estavam em fase de consolidação econômica (Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura) ou em início de industrialização, como Malásia, Indonésia, Filipinas e Tailândia, defendiam fortemente o livre comércio e se opunham à formatação de blocos econômicos8, os EUA avançavam na constituição do NAFTA, propunham a ALCA e forçavam a transformação da APEC em um bloco econômico.

“É de todo nosso interesse manter aberto o sistema de comércio livre e leal. Com efeito, os países (membros) da APEC devem se considerar exemplos de cidadãos do mundo, respeitosos de um excelente GATT e opor-se à formação de blocos comerciais. Desta maneira, contribuirão para o crescimento econômico mundial” (Declaração de Lee Kwan Yew na II Reunião Ministerial da APEC apud BONILLA, 2014, p. 41). 8

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

43

2.3. Terceiro tempo: novas propostas e a entrada da China no jogo

O fim da Guerra Fria (GF) interrompeu o período (1972-1989) que Vogel, Ming e Akihito (2002) denominaram de “a era dourada”. O realinhamento estratégico entre URSS, China e EUA possibilitou que Japão e China normalizassem suas relações diplomáticas e mantivessem relações amistosas com os EUA vis-à-vis à URSS. Wan (2016, posição 171) acrescenta que o desaparecimento da URSS, no entanto, removeu os fundamentos para uma relação mais íntima entre Japão e China e que igualmente o início da década de 1990 apresentou tensão crescente entre Japão e EUA. “O debate intelectual entre ‘valores asiáticos’ e a democracia ocidental expressou o desafio político da Ásia para a primazia dos EUA na década de 1990” (HE, 2009, p. 53). E a China, no pós-Tiananmen e com a renovação do apoio do Partido Comunista Chinês e dos governadores das províncias costeiras ao processo de abertura ao comércio internacional (1992), retomou seu processo de desenvolvimento e buscava intensificar seus relacionamentos internacionais (com a região e fora da Ásia). Além das pressões dos EUA para a emergência de uma FTA na Ásia (APEC, 1993 a 1995) e mantendo a discussão sobre seu papel nos mecanismos regionais no pós-GF, a Crise Asiática (1997/98) é considerada o momento de inflexão das políticas regionais asiáticas, ao suscitar uma série de questionamentos sobre a região, os atores e seus papéis no sistema internacional, deixando patente a necessidade de definição de um esquema de bloco regional reativo aos já estabelecidos (UE e NAFTA) ou em negociação (ALCA). A crise, neste sentido, desnudou as fragilidades regionais, demonstrando, de um lado, que a interdependência por si só não tinha capacidade de manter a região isenta de instabilidades e, de outro, que o processo de disputa por poder econômico entre EUA, UE e Japão não afetava só o Japão, mas acabava englobando toda a região, exatamente em função da forte interdependência regional. Gordon, concisamente, considera que a tendência asiática de criar suas próprias instituições econômicas decorreu de quatro fatores: i) a inspiração transmitida pela Comunidade Europeia; ii) o plano estadunidense de expan-

44

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

dir o NAFTA para todo o hemisfério ocidental; iii) as consequências da crise asiática de 1997-1998; e iv) a política dos EUA de proliferação de FTA’s. E conclui apontando que o quarto fator (a ênfase dos EUA nesta direção) foi o que mais encorajou a Ásia a se voltar para acordos comerciais bilaterais e regionais (GORDON, 2005, p. 7, 9). Na mesma linha, Stubbs (2002, p. 446) pondera sobre o desconforto crescente entre os Estados Asiáticos em decorrência da emergência do NAFTA e da UE e “a necessidade do Leste Asiático desenvolver uma resposta organizacional”. E complementa que “a falta de uma voz regional coerente decorria da recente estagnação dos dois principais grupos regionais, APEC e ASEAN” (idem, ibidem, p. 447). E, por fim, a importância do que Higgott denominou de “política do ressentimento”, ou seja, o consenso regional de que o Fundo Monetário Internacional e os EUA impuseram uma série de soluções que só exacerbaram a situação (HIGGOTT, 1998, p. 333-356 apud STUBBS, 2002, p. 448).9 Nesse sentido, retomaram-se as expectativas de desenvolvimento de um processo de integração regional, com características essencialmente asiáticas, sem a participação de atores externos, podendo ser canalizado para estruturas institucionalizadas com o objetivo de encarar questões transnacionais comuns (OLIVEIRA, 2002a, p. 121). Nesta perspectiva, em uma reunião informal da ASEAN em 1999, deu-se início ao processo que passou a ser denominado como ASEAN+3 (ASEAN Plus Three (APT) + China, Japão e Coreia do Sul) e voltado a ampliar a cooperação no Leste Asiático, especialmente na economia.10 Note-se que a junção APT tinha sido precedida, ainda antes da crise asiática, pela institucionalização (1996) de um mecanismo buscando uma maior aproximação com a UE (ASEM - Asia Europe Meeting), com o objetivo de evitar uma aliança entre UE e EUA que pudesse constranger os interesses asiáticos (STUBBS, 2002, p. 442). Da mesma forma, na sequência da crise asiática e Quanto às críticas ao FMI e aos EUA, assim como a incapacidade das instituições regionais (ASEAN, ARF, APEC) em minimizar a crise financeira, ver igualmente Oliveira (1999, p. 202-203). 10 Ressalte-se que a crise asiática, além do ASEAN+3, propiciou, na dimensão financeira, a institucionalização da Iniciativa Chiang Mai (após a frustrada proposta do Fundo Monetário Asiático) e, em conjunto com as demais crises financeiras do final da década de 1990, a criação do G20 financeiro (1999). 9

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

45

ainda fortemente pressionados pela possibilidade das Américas constituírem um bloco (ALCA), institucionalizou-se o FOCALAL (Fórum de Cooperação Ásia do Leste - América Latina) (OLIVEIRA, 2000, p. 10-11). Retomava-se, assim, a crença de que a proposta de um mercado comum sem a presença dos EUA tinha significativa importância enquanto se buscava a definição de uma identidade regional, na qual não só se aceitava, mas também se requisitava as presenças japonesa e chinesa. Apesar desta presença chinesa no ASEAN Regional Forum (ARF) e na APEC, o relacionamento entre China e o Sudeste Asiático foi relativamente frio durante a primeira metade da década de 1990, devido não só às desconfianças mútuas, mas também às crises no Estreito de Taiwan e aos primeiros conflitos em torno da soberania em ilhas e recifes no mar do sul da China. De outro lado, a crise financeira asiática propiciou o entendimento da China como um parceiro cooperativo e confiável. Ba (2003, p. 637), por exemplo, aponta a unanimidade na ASEAN de que a China havia agido de forma responsável, não só pela ajuda financeira à Tailândia, mas principalmente por não desvalorizar o yuan apesar das fortes pressões. Como o Japão e as instituições regionais como a ASEAN, APEC e mesmo o ARF mostraram-se incapazes em debelar a crise, a China beneficiou-se da fragilidade dos principais atores regionais, e, ao não se engajar numa desvalorização competitiva, transmitiu a imagem de um poder cooperativo e pacífico. Apesar do esforço multilateral na implementação do APT, a China tomou a iniciativa de estabelecer um arranjo bilateral com a ASEAN. Para tanto, assinou em 2003 o Tratado de Amizade e Cooperação (TAC), sendo o primeiro país externo à ASEAN a assiná-lo (SÁNCHEZ, 2014, p. 236).11 A ação chinesa foi vista como de extrema importância, pois ao aceitar o princípio do TAC que estabelece “o código de conduta para as relações interestatais na região”, acabou por gerar um maior clima de confiança entre os diferentes atores envolviSánchez (2014, p. 236) ressalta que a assinatura do TAC teve um significado fortemente diplomático, revestido de “grande valor simbólico (...) oferecendo um motivo adicional de confiança a seus parceiros da ASEAN (...) contrário à conduta previsível de uma potencia percebida até há pouco tempo como uma ameaça para a região”.

11

46

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

dos. O TAC tem como diretriz básica a disposição em “solução das diferenças ou das disputas por meios pacíficos” e a “renúncia de ameaças ou do uso da força” (WU, 2012, p. 105). Enquanto o APT não avançava, a China assinou em 11/2002 o ASEANChina Free Trade Agreement (ACFTA). Note-se que esta tendência, denominada de ASEAN+1, tivera início com o Acordo da ASEAN com a Austrália e Nova Zelândia (09/2001) e, depois da China, foi igualmente ampliada com as assinaturas com o Japão (ASEAN – Japan Comprehensive Economic Partnership [AJCEP], 10/2013), com a Índia (2003) e com a Coreia do Sul (12/2005). Note-se que a China priorizava um relacionamento plurilateral com a ASEAN, enquanto que o Japão enfatizava relações bilaterais com os países membros da ASEAN, sendo o AJCEP muito mais um guarda-chuva. Para Chung (2013, p. 810), a AJCEP “não tem nada de tangível ou avançado nas dimensões comerciais e securitárias como a CAFTA”. Para Ba (2003, p. 643), os interesses da China no ACFTA são muito mais políticos do que econômicos, com a China buscando reduzir as preocupações da ASEAN com suas pretensões regionais. E, para Ravenhill (2002, p. 182), a iniciativa chinesa (ASEAN+1) foi um golpe diplomático que colocou outros países do Leste Asiático, não só o Japão, na defensiva.12 Se a crise asiática suscitou “os benefícios do estabelecimento de laços econômicos formais com as economias mais desenvolvidas da região, Japão e Coreia do Sul, e com o dinâmico mercado da China como uma estratégia de abortar futuras crises” (STUBBS, 2002, p. 449), os interesses conflitantes entre China e Japão, por suas aspirações de liderança regional, impuseram constrangimentos à cooperação que poderia ter sido estabelecida (idem, p. 453). Japão, que tinha apostado no APT como um instrumento de ampliação de sua liderança regional, ao ver a ampliação do papel chinês na definição da agenda do APT não se predipôs a apoiar a perspectiva de um East Asian É interessante a observação de um diplomata sênior singapuriano, em 2004, de que os índices de influência no sudeste asiático estão sinalizando negativamente para os EUA, com menos espaço para manobra do que teve nos últimos quinze anos, e com melhoria significativa para a imagem da China: “Na última década, os chineses não fizeram nada de errado no sudeste asiático. Os japoneses não fizeram nada certo e os EUA foram indiferentes” (KANG, 2007, p. 127).

12

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

47

Summit (EAS)13 que, no seu entendimento, poderia consolidar uma ordem regional sino-cêntrica. Neste sentido, o primeiro ministro Koizumi propôs a construção de uma Comunidade do Leste Asiático, com a inclusão de mais três membros, apontando que “Austrália e Nova Zelândia são parceiros essenciais em diferentes modalidades de cooperação econômica (para o Japão e China) [...] e a Índia desempenha um importante papel na cooperação econômica” (CHUNG, 2013, p. 813). Assim, a reunião da East Asian Economic Community, em dezembro de 2005, com o alargamento da ASEAN+3 para mais três novos membros (Índia, Austrália e Nova Zelândia), também denominada de ASEAN+6 marcou mais um desdobramento nas propostas regionais de integração. A inserção destes novos membros possibilitou a consideração de que a estratégia japonesa era contrabalançar o peso crescente da China, tendendo a superar o papel até então exercido pelo Japão, de locomotiva ou de líder econômico regional (TERADA, 2010). Excluído das duas propostas (ASEAN+3 e ASEAN+6), EUA retomou, em 16 de novembro de 2006, na reunião anual da APEC, a proposta para que a APEC reconsiderasse a criação de uma FTA na região, buscando ser realocado no arranjo multilateral asiático.

3. Um novo jogo: disputando poder regional e internacional Diferentes autores apontam que as iniciativas de institucionalização de mecanismos de integração ou de definição da região no pós-GF decorreram das preocupações de que tanto Europa quanto EUA buscavam “fechar” seus mercados e da percepção de que a Ásia estava atrasada. Neste sentido, para Bergsten (2000), “os países do Leste Asiático estão buscando fazer seus próprio O East Asian Summit (EAS) foi inicialmente proposto pelo East Asian Studies Group do APT e enfaticamente apoiado pela China como uma forma de Coreia, Japão e China cooperarem com os países da ASEAN. Raciocinava igualmente com a perspectiva de que este fórum multilateral, ao excluir os EUA, contribuiria para diminuir a influência americana no leste asiático.

13

48

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

arranjos econômicos. Como resultado, pela primeira vez na história, o mundo está se transformando em uma configuração de três blocos”, enquanto que Fishlow e Haggard (1992, p. 30) sugeriam que “o enigma com referência ao Pacífico não é explicar o progresso das iniciativas regionais, mas sua relativa fraqueza”. (apud RAVENHILL, 2002, p. 167-68). Em seu texto de 2000, Bergsten já utiliza o conceito de Leste Asiático, enquanto que Fishlow e Haggard (1992) faziam referência ao Pacífico. Stubbs (2002, p. 453-54) pondera que com a criação do APT “a ideia de Leste Asiático passou a estar firmemente enraizada no pensamento e no discurso de governos e de líderes de opinião na região”. Pode-se assim arrolar diferentes fatores para a desenfreada corrida para o estabelecimento de FTAs (bilaterais, plurilaterais ou multilaterais) observada no Leste Asiático, gerando o que Bhagwati (2005, p. 28) denominou spaghetti bowl ou noodle bowl. As primeiras propostas, ainda na GF, apresentavam-se como reativas às movimentações na Europa (CEE) e na América Latina (ALALC), mas tinham também como fator indutivo os interesses japoneses de exercício de “liderança direcional” em relação ao Sudeste Asiático, pari passu ao seu papel central no modelo dos “gansos voadores”. Ainda na GF, na década de 1980, são os EUA que buscam aproximação com o dinamismo econômico asiático como forma de recuperar sua capacidade econômica, mas também para ocupar um espaço político-estratégico em uma região desarticulada e em um momento no qual mudanças estruturais globais já estavam sendo sinalizadas. APEC é, de um lado, um resultado destas intenções americanas e, de outro, do choque com os interesses japoneses; daí então um fórum e uma questão crucial: qual a razão da permanência dos EUA na Ásia com o fim da bipolaridade e desaparecimento da URSS? Se na dimensão da segurança as respostas foram excessivamente tímidas14, na dimensão econômico-comercial apresentaram incipientes ensaios

Haass (2013), por exemplo, aponta que “a região destaca-se pela ausência de significativos acordos e instituições regionais, particularmente nas esferas político-militar e de segurança”.

14

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

49

para definição de mecanismos integrativos que representassem os interesses dos países do Leste Asiático. Não só respondiam às questões específicas asiáticas, mas introduziam a presença de um terceiro bloco no processo de redefinição do sistema e da ordem internacionais. Um terceiro bloco que apresentava até então um competidor (Japão) e que no início do século XXI já tinha um novo pretendente a assumir poder regional e internacional, a China. APT e ASEAN+6 são exatamente frutos, em primeiro, desta tentativa de definição de uma região (ou entre os interesses asiáticos e os americanos) e, em segundo, do choque de pretensões entre os interesses japoneses e chineses. Para Chung (2013, p. 802), o envolvimento chinês e japonês pode ser descrito em diferentes estágios, inicialmente buscando uma cooperação recíproca (APT de 1997 a 2004), depois engatando uma rivalidade mútua (APT e EAS de 2005 a 2009) e, finalmente, reposicionando-se para manter o outro em xeque. Estes estágios tiveram como fundamento os seguintes fatores: i) a incapacidade japonesa de continuar mantendo um controle efetivo sobre ascensão chinesa a partir de 2004; ii) as tentativas japonesas, a partir de 2005, de diluir a influência da China nos arranjos regionais; e iii) as movimentações japonesas no pós-2010 para conter a China com a construção de alianças (idem, ibidem). No entanto, Wan (2016, posições 181-190) ressalta a importância da aliança militar Japão-EUA no relacionamento China-Japão afirmando que explica, em parte, por que China e Japão não são aliados e não serão em um futuro próximo. A aliança dissuade a China e restringe o Japão, mas não é condição suficiente para garantir a estabilidade no Leste Asiático, sendo que a cooperação com a China e a interdependência econômica são também condições necessárias. 3.1. TPP e novas propostas na década de 2010

É em decorrência deste choque de interesses relativamente incompatíveis que se pode avaliar as novas propostas integrativas (re)lançadas na década de 2010, a Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), a Trans-Pacific Partnership (TPP) e a China-Korea-Japan Free Trade Area (CKJFTA).

50

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Com os atuais entraves na Organização Mundial do Comércio (OMC) e com os EUA buscando enterrar a Rodada Doha15, é praticamente impossível negar o desafio (necessidade e urgência) que se coloca diante de um cenário de tendência frenética de assinatura de acordos comerciais (de bilaterais a mega-acordos). Trabalha-se nesta reflexão com a visão de que a TPP, de um lado, corresponde a mais uma etapa do sinuoso processo de definição do regionalismo asiático, com a questão permanente do reconhecimento ou não dos EUA como um ator regional. Wan (2016, posição 3326) afirma que com a TPP, “os Estados Unidos buscam dominar a ordem regional no Leste Asiático com a ajuda japonesa, frente a uma China em ascensão”. Pode-se inclusive afirmar que a TPP, mais do que asiática, é um espaço voltado à constituição, de um lado, de uma FTA entre EUA e Japão16 e, de outro, calcada no princípio de “todos, menos a China”, forçando a China a projetar seus próprios programas integracionistas e criar uma ordem política internacional paralela ou competidora (GAO, 2013, p. 2). Assim, a RCEP (2012) representa uma reação chinesa17, com o objetivo de reafirmar a centralidade da ASEAN (buscando unir os diferentes ASEAN+1), ao mesmo tempo em que engloba a fórmula ASEAN+3, defendida pela China, e a ASEAN+6, de interesse japonês (DAS, 2012). Já a CKJFTA, com origem, em princípio, em 1999, quando da criação da APT, apresentou-se como um arranjo distinto, separado do ASEAN+3, a partir de 2008, gerando reflexões contraditórias. A constituição desta trilateral teve como pressuposto a aceitação da persistência de sérios conflitos entre os Moreira, Assis. “EUA querem encerrar Rodada Doha neste ano; China e Índia se opõem”. Valor Econômico, 06 de outubro de 2015. 16 Além da ratificação, foi aprovado que a TPP somente será efetivada se, ao menos, 6 países a ratificarem e correspondendo a 85% do PIB do total dos países membros. Neste caso, se Japão ou EUA não ratificarem, não haverá TPP. Para Ming Wan (2016, posição 3424), Japão e EUA detêm juntos 90% do total do PIB da TPP. 17 Gao (2013, p. 8) aponta que em resposta aos desafios levantados pela TPP, a China se engajou em uma competição “do tipo briga de cachorros” com os EUA, retomando uma série de iniciativas regionais previamente existentes e voltadas para o livre comércio. E Yifei (2015) aponta que ainda que decorrente e buscando manter a centralidade da ASEAN nos processos integrativos, a RCEP é visualizada como um contraponto à TPP. 15

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

51

atores do Nordeste Asiático, prejudicando a definição de ações concretas em relação à ASEAN. Destarte, um fórum exclusivo para minimizar as diferenças bilaterais (não só Japão-China, mas também Coreia-Japão e China-Coreia) e buscar uma posição mais consensual18 em relação à ASEAN (PIECZARA, 2012). Jin (2012) pondera que a participação japonesa simultânea na CKJFTA e na TPP não é um empecilho, ao contrário, cabe ao Japão equilibrá-las. Para avaliar a pertinência destas propostas, Bonilla (2014, p. 67-69) retoma a importância da consideração de que a Ásia deste século XXI apresenta uma vinculação econômica muito mais estreita, “com uma ampla gama de espaços de cooperação intergovernamental”. Os governos asiáticos estão agora “mais interdependentes e sofrem menos as influências políticas estadunidenses”. Assim, os projetos propostos refletem a competição para atrair japoneses e coreanos para a TPP ou para a CKJFTA. Em sua visão, a CKJFTA é “uma peça de um sistema multidimensional de relações intergovernamentais que abarca todo o Leste Asiático”. Ou seja, a CKJTA é modulada pelos acordos comerciais da ASEAN com os governos do acordo comercial trilateral; sua implementação levará necessariamente à constituição do bloco econômico da Ásia do Pacífico, dotado, na escala regional, da semente de um banco central, de um sistema financeiro e de mecanismos de supervisão, vigilância e prevenção de crises econômicas. Pelo contrário, a TPP seria somente uma FTA de última geração, se se quer assim, mas que vincularia nos âmbitos comercial e financeiro somente dez economias dinâmicas, mas menores, com as duas maiores economias avançadas do planeta. (BONILLA, 2014, p. 69, tradução do autor).

Para Ming Wan (2016, posição 3443), a resposta chinesa é relativamente moderada (ou cautelosa) na consideração de que EUA ainda é um grande poder e ainda mais preferido por alguns países asiáticos do que a China. De outro, alguns analistas chineses consideram que a TPP dificilmente será concluA Sexta Reunião Trilateral, ocorrida em Seul em 01/11/2015, apontou avanços significativos na cooperação comercial e de investimentos.

18

52

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

ída (WAN, 2016) e que, se bem-sucedida, ainda manterá uma abertura para o Japão não ignorar o mercado chinês, já que não defende sua exclusão e, em segundo, não pode excluir simplesmente pelo fato da China ser seu principal parceiro comercial (WAN, 2016, posição 3458). As discussões nos EUA apresentam duas perspectivas diferentes em relação à TPP. Uma, em termos estratégicos, a vê como um instrumento para mobilização de aliados para conter a emergente China. A outra a considera precipuamente na dimensão econômica, como um esforço para a construção de uma nova geração de regimes comerciais. Para Gao (2013, p. 1), Ann Capling e John Ravenhill (2012) apontam um acentuado contraste entre “securitização da política comercial”, objetivando a construção de um “clube de todos menos China” na região e a “multilateralização do regionalismo”, buscando romper as barreiras aos interesses dos EUA na Ásia-Pacífico. Obama, ao estabelecer em 2011 uma clara vinculação entre a TPP e os objetivos da política externa dos EUA na região da Ásia-Pacífico, afirmou que a TPP é stricto sensu um “modelo potencial” para o Pacífico, com os EUA desempenhando um papel na formação desta região e de seu futuro, sendo que este objetivo pode ser obtido reforçando a presença militar no Leste Asiático, reforçando alianças-chave e promovendo um sistema com base em regras, no qual os direitos trabalhistas sejam respeitados e nossas empresas possam competir em igualdade de condições; onde a propriedade intelectual e as novas tecnologias que alimentam a inovação sejam protegidas e onde as moedas sejam reguladas pelo mercado, com nenhuma nação tendo uma vantagem desleal.19

Autores como Higgott (2004) apontam uma recente tendência na política comercial dos EUA em usar acordos de preferência comercial (PTA, na sigla em inglês) para reforçar relacionamentos estratégicos. Este movimento teve Discurso do Presidente Obama, em 17/11/2011, no Parlamento Australiano, disponível em http://www.whitehouse.gov/the-press-office/2011/11/17/remarks-president-obama-australian-parliament. Tradução do autor.

19

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

53

uma data inicial (o acordo de livre comércio EUA-Israel de 1985), reforçado no pós-11/09 com uma série de negociações de PTAs com Estados de importância estratégica (Bahrein, Jordânia, Marrocos e Omã), ou mesmo para rever arranjos já existentes de segurança (Austrália, Chile e Singapura). Nesta linha, tanto Higgott (2003) quanto Capling e Ravenhill (2012) apontam que a securitização da TPP é consistente com a política comercial dos EUA. Enfim, a TPP faz parte de um processo essencialmente asiático, voltado à construção do regionalismo asiático, em conjunto com a estratégia política dos EUA de reinserção neste jogo de integração regional (ELMS, 2009; SOLIS, 2011). Ou, mais complexo, voltado a evitar um regionalismo asiático, ou mesmo um Século do Pacífico, com uma predominância chinesa e sem a presença americana. A partir da reiteração americana de que a TPP é o “pilar econômico” do rebalançamento, a China esforçou-se, em 2014, para avançar um acordo comercial bilateral com a UE como um contraponto tanto à TPP quanto à iniciativa TTIP; promoveu a RCEP (que não inclui os EUA) como o acordo “mais amigável” para a liberalização comercial. E, na APEC, defende a FTAAP (TOW, 2015, p. 16). E é também nesta linha reativa que pode ser avaliada a criação, em 2015, do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura.20 Até certo ponto, a ênfase americana em FTAs, nas atuais propostas de TPP e TTIP, assim como o crescente descrédito da OMC podem ser creditados ao empenho estadunidense de continuar controlando e definindo as regras do comércio internacional.21 Ou, em outros termos, a busca de soluções Toro Hardy aponta que a constituição do Banco Asiático de Investimentos em Infraestrutura, com 57 participantes em junho de 2015, inclusive o Brasil, foi um gol marcado pela China contra os EUA, seguido, no final do ano, pelo gol estadunidense com a assinatura da TPP (HARDY, Augusto Toro. La Asociación Transpacífica y el duelo Washington-Pekín, 13/10/2015. Disponível em: http://www.igadi.org/web/analiseopinion/la-asociacion-transpacifica-y-el-duelo-washington-pekin. 21 Trevisan aponta a declaração de Obama logo após a assinatura do TPP: “Quando mais de 95% de nossos clientes potenciais vivem fora de nossas fronteiras, nós não podemos deixar países como a China escreverem as regras da economia global” (TREVISAN, Claudia. “EUA, Japão e mais 10 países fecham o maior acordo comercial da história”. O Estado de S. Paulo. 06 de outubro de 2015, p. B1). 20

54

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

ad hoc, em decorrência das dificuldades de um avanço na OMC, pode ser creditada ao atual processo de redefinição tanto do Sistema Internacional quanto da Ordem internacional. Se Bergsten (2000) saudava a “configuração do mundo em três blocos”, os EUA demonstram não só a vontade política de continuar ditando as regras, mas de simultaneamente estar presente e definindo igualmente as normas nos três blocos (América – NAFTA; Ásia – TPP; e Europa – TTIP). Considerando que os EUA, ao não conseguirem emplacar a ALCA, buscaram expandir o NAFTA para os Andes, Bhagwati (2011) argumenta que “o resultado dos esforços dos EUA na América do Sul, entretanto, foi fragmentar a região em dois blocos e, o mesmo, é possível que ocorra na Ásia”. Neste sentido, Katagiri (2015, p. 1171) defende a tese de que bipolaridade é o cenário mais provável no Leste Asiático, visto que aparentemente não se tem como deter o crescimento do poder chinês de alcançar paridade com o poder americano. Tanto a lógica da interdependência econômica quanto a da balança nuclear forçarão à bipolaridade, com China e EUA coexistindo em uma base tanto competitiva quanto colaborativa. Afirmando que “a estratégia americana na Ásia não pode ser mantida a longo prazo”, Xiang (2012, p. 119) pondera que “hoje, no entanto, ‘a única e indispensável superpotência’ é também um poder superendividado e ocorre que seu maior credor externo é seu suposto principal rival estratégico. É lógico e viável cercar militarmente seu próprio banqueiro?”. Nesta mesma linha de raciocínio, partindo do pressuposto de que “o principal desafio estratégico que os Estados Unidos atualmente enfrentam é preservar sua primazia global em face de crescentes desafiadores, como a China” (TELLIS, 2014, p. 93), Tellis (2013, p. 110-111) aponta que a estratégia de conter o crescimento da China, isolando-a de seus vizinhos e do mundo não deve funcionar por diferentes razões. Uma é a realidade atual dos profundos laços econômicos da China com os EUA e com a comunidade internacional, sendo uma interação benéfica a todos. Em segundo, a incipiente centralidade da China fazendo com que seus vizinhos procurem evitar ter que escolher entre China e EUA; e, para complicar ainda mais, a

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

55

forte relação sino-americana (inexistente entre os EUA e a URSS durante o auge de sua rivalidade). Neste sentido, Tellis (2014, p. 105-106) defende que a melhor alternativa para reagir à crescente emergência chinesa é a estratégia rotulada como “vamos correr mais rápido”. Esta estratégia parte do princípio da necessidade de manutenção do atual regime internacional que alimenta a China, mas que também propicia ganhos para seus parceiros. No entanto, é necessário buscar neutralizar as vantagens chinesas com as seguintes medidas: i) ampliar a capacidade inovadora da economia norte-americana de forma a controlar os novos setores de ponta da economia global; ii) renovar a habilidade norte-americana de projetar poder militar globalmente; iii) reforçar o poder nacional dos países geopoliticamente fundamentais para contrabalançar a China (Japão, Índia, Indonésia, Austrália, Vietnã e Singapura, entre outros); e iv) por fim, gestar uma nova tessitura institucional do sistema de comércio multilateral, possibilitando que EUA e seus amigos reparem as perdas sofridas desde a entrada imperfeita da China na ordem liberal de comércio. O diagnóstico de Tellis aparentemente tem muita lógica quando se considera o papel que a China atualmente ocupa na economia e no comércio internacional, relembrando inclusive uma pergunta que a própria China fazia ainda na década de 1990: “Até quando vão nos deixar crescer?”. Hoje e desde sua entrada na OMC, este questionamento não é mais pertinente. No entanto, a estratégia proposta é viável? Em segundo, o risco desta proposta é o TPP tornar-se refém da estratégia norte-americana de contenção da China. Assim, Estados, como Austrália e Japão, profundamente dependentes da economia chinesa endossam, apoiam esta perspectiva americana? Bhagwati (2011) questiona a ideia de que países preocupados com uma China agressiva busquem segurança política ao invés de ganhos comerciais. Na sua visão, os aliados asiáticos dos EUA têm que ampliar seu laços estratégicos com os EUA e seus laços econômicos com a China, não sendo de interesse a participação em acordos comerciais hostis à China. Independentemente do ângulo utilizado para avaliar as estratégias de contenção, de engajamento ou de balanceamento, sobressai-se que o antago-

56

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

nismo EUA-China tem como fundamentos fatores estruturais. Assim, Tellis (2014, p. 116) aponta que os EUA buscam defender sua “hegemonia global ou sua primazia global” frente a uma China ameaçadora. Inoguchi e Ikenberry (2013, p. 4-5) defendem que, na dimensão econômica, os EUA têm “interesse estratégico em manter influência sobre a economia mundial. Quer que o dólar permaneça a moeda global. Fazendo isto, manterá as regras e normas globais em suas mãos”. Esta pretensão (ou mesmo obsessão) de manter, a qualquer custo, o controle sobre a definição das regras do comércio internacional não é recente ou decorrente da ascensão chinesa. Huntington (1992, p. 21)22, em texto desenvolvido logo após o fim da GF, identificava os principais interesses estratégicos dos EUA, pontuando que os três principais são: i) preservar a posição dos EUA como a primeira potência global, o que significa que na próxima década é preciso conter o desafio econômico japonês; ii) evitar o surgimento de um poder político-militar hegemônico na Eurásia; e iii) proteger os reais interesses econômicos americanos no Terceiro Mundo, os quais localizam-se prioritariamente no Golfo Pérsico e na América Central. (HUNTINGTON, 1992, p. 21).

Após pouco mais de 25 anos, algumas mudanças são bem perceptíveis: i) Japão, a ameaça na década de 1990, foi substituído pela China, a ameaça no século XXI; ii) a prioridade de defesa dos interesses no Golfo Pérsico foi substituída pela política de “retorno à Ásia”; e iii) apesar do declínio relativo da capacidade econômica, os EUA mantêm a prioridade estratégica de preservar sua “hegemonia global” e de evitar a ampliação de um novo poder na Eurásia. Ikenberry, mesmo defendendo o liberalismo internacional e o papel primordial dos EUA, pondera que “o desafio ao longo dos próximos cem anos é fazer a transição de uma ordem hegemônica norte-americana para um sistema de governança mais amplamente partilhado”. Reconhece o surgimento Publicado inicialmente como: “America’s Changing Strategic Interests”. Survival, 33 (4), p. 3-17, January/February 1991. 22

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

57

de novos atores reivindicando participar do processo decisório internacional e aceita que EUA e Europa necessitam abrir espaço para a China e outros emergentes. “Mas estes Estados já estão na ordem liberal – ONU, OMC e outros organismos globais. [...] O desafio é construir novas formas de ação coletiva, redistribuir direitos e autoridade e dividir a capacidade decisória” (IKENBERRY, 2014, p. 18). Interessante é o fato de que, na retórica, a ênfase está sempre alocada nas “instituições da ordem liberal”, mas, na prática, busca-se desenvolver arranjos à margem da OMC, com características discriminatórias. No que se refere especificamente à Ásia, Haass (2013), ao se referir à importância da presença e do papel dos EUA na estabilidade europeia no pós 2ª Guerra Mundial, defende que “o continente deve promover pactos regionais que incluam os EUA”. Evidentemente que, entre outros arranjos, em especial na dimensão político-estratégica, Haass está referindo-se à proposta da TPP que, associada à outra proposta, TTIP, demonstram que “a política de ‘qualquer um, menos a China’, é definida para deixar a China fora da nova onda de liberalização comercial e restringir sua ascensão econômica” (SHIELD, 2014, p. 160). Assim, TPP e TTIP são centrais para a estratégia de Washington de retomar proeminência na regulamentação do mercado. Estas negociações, enquanto criam tensões com a OMC, buscam o duplo objetivo geoeconômico de: a) tentar restaurar a capacidade de definir as regras que estava associada à antiga convergência monocêntrica de globalização; b) estabelecer uma sólida presença norte-americana na Bacia do Pacífico da Eurásia e na Bacia do Atlântico Norte para lidar com a ascensão da China (BARACUHY, 2014, posição 2134). Para Buzan (2010, p. 22), são três fatores que definem o clima tenso entre Estados Unidos e China: i) China dependeu e depende da ordem liderada pelos Estados Unidos para prover a estabilidade que necessita para seu desenvolvimento; ii) China quer evitar ser levada a um conflito com os Estados Unidos, como anteriormente potências emergentes não democráticas o fizeram (Japão e Alemanha); iii) China se opõe à liderança norte-americana e a uma estrutura de poder unipolar.

58

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Mesmo assim, a China mantém sua estratégia de não confrontar diretamente os Estados Unidos enquanto busca estabelecer uma rede de relacionamentos com outros Estados que possam prover um grau de apoio quando isto for necessário. Foot (2006, p. 94) apresentava o raciocínio de que a China não era parte nem procurava construir coalizões anti-hegemônicas. E, em artigo mais recente, Foot (2010, p. 124), indica que uma nova tendência na avaliação do papel da China é a aceitação de que uma cooperação entre EUA e a China é vital para a ordem regional e global em diversas questões-chave. Argumenta, entretanto, que uma cooperação sustentável entre os dois será muito difícil de ser mantida e aponta quatro fatores responsáveis por esta dificuldade: a convicção, em ambos, da excepcionalidade nacional; os diferentes sistemas políticos; a questão da ascensão chinesa e a hipótese da transição de poder global; e as mútuas desconfianças estratégicas.

4. Considerações finais A Ásia, descongelada no final da Guerra, ainda busca sua identidade regional, sendo que as propostas integrativas, com ou sem a presença dos Estados Unidos, retratam este processo e as dificuldades de definição do regionalismo asiático, inclusive por sua forte dependência dos Estados Unidos, em seu papel para manutenção da segurança regional ou como destino de parte considerável das exportações asiáticas. Se a Ásia necessita dos Estados Unidos para sua segurança e mesmo para sua saúde econômica, ela está, de outro lado, consciente (de forma mais explícita desde a crise asiática de 1997-98) que as regras atuais do comércio internacional trazem embutidos valores ocidentais que, no seu entendimento, prejudicam interesses asiáticos. Mesmo assim, tanto China quanto Japão consideram os Estados Unidos um aliado, parceiro, mas não o jogador dominante na região. Pode-se, inclusive, raciocinar que se o avanço chinês empurra o Japão para os Estados Unidos, para o reforço de sua Aliança Militar, o avanço estadunidense força o retorno japonês à Ásia.

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

59

Neste sentido, a Parceria Transpacífico, ainda que não seja de iniciativa dos Estados Unidos, foi por ele adotada e, como hoje se apresenta, atende precipuamente seus interesses estratégicos, tanto no plano global quanto no regional. Em primeiro lugar, é mais uma etapa do longo processo de definição do regionalismo asiático e das discussões de como implantar uma área de livre comércio, de quem participa ou não. Excluído das propostas do ASEAN+3 e ASEAN+6, os Estados Unidos visualizam a TPP como um instrumento para se manter presente no dinâmico espaço do Leste Asiático, hoje reconhecido como o mais dinâmico da economia internacional. E, de forma bem clara, a TPP traz embutido o objetivo estratégico de frear o crescimento econômico, financeiro e político chinês. Ou seja, evitar que a China assuma um maior poder regional ou internacional. Note-se que a estratégia de contenção não pressupõe destruir a China, como se processava na anterior linha de contenção da União Soviética. Hu Jintao apontava que “o desenvolvimento da China seria impossível sem a Ásia e a prosperidade da Ásia sem a China”23, e hoje talvez se possa igualmente afirmar que “o desenvolvimento da China seria impossível sem o do mundo e a prosperidade do mundo sem a China”. Os Estados Unidos reconhecem, assim, a atual relevância econômica chinesa, sua necessidade da continuidade deste desenvolvimento, mas o que busca é: 1) não estar fora, como um ator relevante, da região; 2) não perder, ou mesmo diminuir, sua capacidade de decidir regras e normas que disciplinem os arranjos integrativos regionais. A China, porém, não assiste passiva a estas movimentações estadunidenses e reagiu com as propostas de Regional Comprehensive Economic Partnership e da China-Korea-Japan Free Trade Area. Estas duas iniciativas remetem ao papel desempenhado pela ASEAN neste processo de regionalização, sendo que a TPP ignora a unidade da ASEAN. Assim, entre as diferentes propostas presentes no Leste Asiático, a TPP inova ao se basear na perspectiva de dividir a Ásia, de um lado constrangendo 23

Declaração de Hu Jintao em sua visita à Malásia em abril de 2002. Apud BA, 2003, p. 647.

60

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

a China e, de outro, discriminando membros da ASEAN e inclusive questionando o papel até então atribuído a esta instituição. A proposta do ASEAN+3 buscava resgatar o caráter asiático e restringir a presença de membros externos à região e, assim como todas as outras iniciativas, atribuía à ASEAN um papel central. A ASEAN+6 busca agregar mais três membros, mas mantendo o papel central da ASEAN. No plano global, fica igualmente cada vez mais patente que Estados Unidos há muito tempo passou a investir pesadamente no estabelecimento de blocos econômicos como estratégia para manutenção de sua capacidade decisória, sensivelmente diminuída nos organismos internacionais, em especial na Organização Mundial do Comércio. Se no passado o Terceiro Mundo criava constrangimentos à ação norte-americana ao defender a necessidade de uma Nova Ordem Econômica Internacional (NOEI), neste século as jogadas das potências emergentes, dos BRICS e, em especial, da China, estão concentradas no objetivo de ampliação de suas presenças nos processos decisórios internacionais (em especial, econômicos e financeiros) e consequentemente afetando a anterior capacidade monocêntrica dos Estados Unidos. Boa parte da literatura reconhece que o poder da China continuará a crescer, enquanto que, em termos relativos, o dos Estados Unidos tende a declinar. Neste sentido, a TPP e igualmente a TTIP, mesmo não sendo as únicas iniciativas, contribuem para esta perspectiva global de manutenção do controle de definir as regras e normas dos regimes comerciais, assim como sua presença nos continentes asiático e europeu. Evidentemente que, como estamos tratando de variáveis incontroláveis, não se tem como afirmar se a TPP será realmente implementada e como será seu desenho oficial. Mesmo assim, é possível aventar a hipótese de que a TPP será mais uma jogada interrompida, abrindo possibilidades para se pensar em uma Pax Consortis (ausência de um país hegemônico, no plano regional e, igualmente, uma multipolaridade no plano internacional.

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

61

Referências ARNDT, Heinz W. “The GATT system, free trade areas and regional cooperation”. In: FUKUCHI, Takao e KAGAMI, Mitsuhiro (Orgs.). Perspectives on the Pacific basin economy: a comparison of Asia and Latin America. Tokyo: Institute of Developing Economies & The Asian Club Foundation, 1990. BA, Alice D. “China and ASEAN: renavigating relations for a 21st-century Asia”. Asian Survey, 43 (4), p. 622-647, 2003. BARACUHY, Braz. “The evolving geo-economics of world trade”. In: BARU, Sanjaya; DOGRA, Suvi. Power Shifts and New Blocs in the Global Trading System. London: The International Institute of Strategic Studies, 2014. BERGSTEN, C. F. “Towards a Tripartite World”. The Economist, 15 July, 2000. BHAGWATI, Jagdish. “Reshaping the WTO”. Far Eastern Economic Review, 168 (2), p. 25-30, 2005. _______. “America’s Threat to Trans-Pacific Trade”. Project Syndicate, December 30, 2001. Disponível em: https://www.project-syndicate.org/commentary/ america-s-threat-to-trans-pacific-trade. BONILLA, J. J. Ramírez. “La Competencia Estados Unidos-China: El TransPacific Partnership Agreement vs. el Acuerdo de Libre Comercio China-Corea-Japón”. In: BONILLA, J. J. Ramírez; NAVEJAS, Francisco J. Haro. China y su Entorno Geopolítico: políticas e instituciones de la integración regional. México: El Colegio de México, 2014. p. 33-72. BUZAN, Barry. “China in International Society: Is ‘peaceful rise’ possible?”. The Chinese Journal of International Politics, 3, p. 5-36, 2010. CAPLING, Ann; RAVENHILL, John. “The TPP: multilateralizing regionalism or the securitization of trade policy?”. In: LIM, C. L.; ELMS, Deborah K.; LOW, Patrick. The Trans-Pacific Partnership: A quest for a twenty-first-century trade agreement. Cambridge: Cambridge University Press, p. 279-298, 2012.

62

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

CHUNG, Chien-Peng. “China and Japan in ‘ASEAN Plus’ Multilateral Arrangements: raining on the other guy’s parade”. Asian Survey, 53 (5), p. 801-824, 2013. CRONE, Donald. “The politics of emerging Pacific Cooperation”. Pacific Affairs, 65 (1), p. 68-83, 1992. DAS, Sanchita Basu. Asia’s Regional Comprehensive Economic Partnership. 2012. Disponível em: http://www.eastasiaforum.org/2012/08/27/asias-regional-comprehensive-economic-partnership/. ELMS, Deborah K. “From the P4 to the TPP: Explaining Expansion Interests in the Asia Pacific.” Paper presented at the Asia-Pacific Trade Economists’ Conference Trade Led Growth in Times of Crisis, 2009. Disponível em: http:// www.unescap.org/tid/artnet/mtg/Deborah%20Elms.pdf . FISHLOW, A.; HAGGARD, S. The United States and the Regionalisation of the World Economy. Paris: OECD, 1992. FOOT, Rosemary. “Chinese Strategies in a US-hegemonic Global Order: accommodating and hedging”. International Affairs, 82 (1), p. 77-94, 2006. _______. “China and the United States: between cold and warm peace”. Survival, 51 (6), p. 123-146, December-January, 2010. GAO, Bai. From Maritime Asia to Continental Asia: China’s Responses to the Challenge of the Trans-Pacific Partnership, 2013. Disponível em: https://fsi.fsi. stanford.edu/sites/default/files/evnts/media/Gao.TPP_paper.pdf. GORDON, Bernard K. “Asias’s Trade Blocs Imperil the WTO”. Far Eastern Economic Review, 168 (10), p. 5-10, 2005. HAASS, Richard N. “Which Asian Century?” Project Syndicate, October 28, 2013. Disponível em: http:// www.project-syndicate.org/commentary/richard-n--haass-on-asia-s-need-for-reconciliation-and-integration#A1aYjtaejsqZommH.99.

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

63

HAMANAKA, Shintaro. Asian Regionalism and Japan: The politics of membership in regional diplomatic, financial and trade groups. New York: Routledge, 2010. HE, Kai. Institutional Balancing in the Asia Pacific: economic interdependence and China’s rise. London: Routledge, 2009. HEMMER, Christopher; KATZENSTEIN, Peter J. “Why is There No NATO in Asia? Collective Identity, Regionalism, and the Origins of Multilateralism”. International Organization, 56 (3), p. 575-607, 2002. HIGGOTT, Richard. “The Asia Economic Crisis: a study in the politics of resentment”. New Political Economy, 3 (3), p. 333-356, 1998. _______. American Unilateralism, Foreign Economic Policy and the ‘Securitisation’ of Globalisation. Singapore: Institute of Defence and Strategic Studies, 2003. _______. “US Foreign Policy and the ‘Securitization’ of Economic Globalization”. International Politics, 41 (2), p. 147-175, 2004. HUNTINGTON, Samuel. “A Mudança nos Interesses Estratégicos Americanos”. Política Externa, I (1), p. 16-30, Junho, 1992. IKENBERRY, John. “The Quest for Global Governance”. Current History, 113 (759), p. 16-18, 2014. INOGUCHI, Takashi; IKENBERRY, John. “Introduction”. In: INOGUCHI, Takashi; IKENBERRY, John. The Troubled Triangle: economic and security concerns for the United States, Japan, and China. New York: Palgrave Macmillan, 2013. JIN, Jianmin. “China’s Concerns Regarding TPP no more than Empty Worries?”. Fujitsu Research Institute, January 11 2012. Disponível em: http://www. fujitsu.com/jp/group/fri/en/column/message/2012/2012-01-11.html. KANG, David. China Rising: peace, power, and order in East Asia. New York: Columbia University Press, 2007.

64

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

KATAGIRI, Nori. “Strategy and Grand Strategy for the Future of Asia”. Asian Survey, 55 (6): 1170-1192, 2015. KURLANTZICK, Joshua. “The Asian Century? Not quite yet”. Current History, 110 (732), p. 26-31, 2011. OLIVEIRA, Amaury Porto. “Duas Visões da Apec (Conselho Econômico da Ásia-Pacífico)”. Revista Brasileira de Política Internacional. 38 (1), p. 99-116, 1995. OLIVEIRA, Henrique Altemani. “O Cenário Internacional e o Brasil em 2020”. Parcerias Estratégicas, 6, p. 194-215, 1999. _______. “Japão com País Normal e Ator Internacional”. Seminário sobre o Japão. Rio de Janeiro: IPRI/MRE, 2000. 26p. _______.  “Os Blocos Asiáticos e o Relacionamento Brasil-Ásia”. São Paulo em Perspectiva, 16 (1), p. 114-124, 2002a. _______. “Processos de Cooperação e Integração na Ásia-Pacífico”. Cena Internacional, 4 (1), p. 1-28, 2002b. _______. “A Ásia na Atual Conjuntura Internacional”. In: OLIVEIRA, Henrique Altemani; LESSA, Antônio Carlos (Orgs.). Política Internacional Contemporânea: mundo em transformação. São Paulo: Editora Saraiva, 2006, p. 83-100. _______. “Perdendo o Trem? Quais Trens ou Locomotivas?”. Mundorama, 07/12, 2015. PIECZARA, Kamila. “Explaining Surprises in Asian Regionalism: The Japan -Korea-China Trilateral Cooperation”. GR:EEN Working Paper, N. 24, 2012. Disponível em: www.greenfp7.eu/papers/workingpapers. RAVENHILL, John. “A Three Bloc World? The new East Asian Regionalism”. International Relations of the Asia-Pacific, 2 (2), p. 167-195, 2002. SÁNCHEZ, Fernando O. H. “La Fuerza del Consenso: La relación entre la ANSEA y la República Popular China, 1991-2010”. In: BONILLA, J. J. R.; NA-

LIVRE COMÉRCIO, COOPERAÇÃO REGIONAL OU DISPUTA POR PODER?

65

VEJAS, F. J. Haro. China y su Entorno Geopolítico: políticas e instituciones de la integración regional. México: El Colegio de Méxic, p. 219-245, 2014. SHIELD, Will. “The Middle Way: China and global economic governance”. Survival, 55 (6): 147-168. December 2013 – January 2014. SOLIS, Mireya. “Last train for Asia-Pacific Integration? U.S. Objectives in the TPP Negotiations”. Waseda University Organization for Japan-US Studies. Working Paper No. 201102, 2011. STUBBS, Richard. “ASEAN Plus Three: emerging East Asian Regionalism?”. Asian Survey, XLII (3), p. 440-455, 2002. TELLIS, Ashley J. “Power Shift: How the West Can Adapt and Thrive in an Asian Century”. Asia Paper Series, The German Marshall Fund of the United States. 8p. January, 2010. _______. “Balancing Without Containment: A U.S. Strategy for Confronting China’s Rise”. Washington Quarterly, 36 (4), p. 109-124, 2013. _______. “The geopolitics of the TTIP and the TPP”. Adelphi Series, 54 (450), p. 93-120, 2014. TERADA, Takashi. “The Japanese Origins of PAFTAD: The beginning of an Asian Pacific Economic Community”. Pacific Economic Papers, no. 292, Canberra: Australia-Japan Research Centre, 1999. _______. “Nagano Shigeo: business leadership in the Asia Pacific Region and the formation of the Pacific Basin Economic Council”. Australian Journal of Politics and History, 47 (4): 475-489, 2001a. _______. “Directional Leadership in Institution-Building: Japan’s approaches to ASEAN in the establishment of PECC and APEC”. The Pacific Review, 14 (2), p. 195-220, 2001b. _______. “The origins of ASEAN+6 and Japan’s initiatives: China’s rise and the agent–structure analysis”. The Pacific Review, 23 (1), p. 71-92, 2010.

66

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

TOW, William T. “The United States and Asia in 2014: reconciling rebalancing and strategic constraints”. Asian Survey, 55 (1), p. 12-20, 2015. VOGEL, Ezra F.; MING, Yuan & AKIHIKO, Tanaka. The Golden Age of the U.S.-China-Japan Triangle, 1972-1989. Cambridge: Harvard University Asia Center, 2002. WAN, Ming. Understanding Japan-China Relations: theories and issues. Singapore: World Scientific Publishing, 2016. WU, Xinbo. “The Spillover Effect of ASEAN-Plus-Three Process on East Asian Security”. In: GOLDSTEIN, Avery; MANSFIELD, Edward D. The Nexus of Economics, Security, and International Relations in East Asia. Stanford, California: Stanford University Press, p. 96-119, 2012. XIANG, Lanxin. “China and the Pivot”. Survival, 54 (5), p. 113-128, 2012. YANAGIHARA, Toru. “La Zona Económica Asia-Pacífico: origen y evolución”. América Latina / Internacional, 1 (1), p. 59-83, 1993. YIFEI, Chiao. Competitive Mega-regional Trade Agreements: Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP) vs. Trans-Pacific Partnership (TPP). Thesis in Political Science: University of Pennsylvania, 2015.

As implicações internacionais do modelo chinês de desenvolvimento do Sul Global Consenso Asiático como network power Javier Vadell Leonardo Ramos Pedro Neves

1. Introdução A ascensão econômica e política da República Democrática da China (RDC), no século XXI, configurou um importante processo de transformação na economia e na política internacional contemporânea. O presente capítulo atentase para a evolução do modelo de desenvolvimento sui generis da China, além do significado da sua relação com outros países em desenvolvimento na periferia do Sul Global. Esse processo de desenvolvimento chinês tem estimulado diversos debates entre acadêmicos estadunidenses. Nesse espaço, avalia-se o desenvolvimento chinês conforme as possibilidades de desafio, oportunidade e ameaça (FRIEDBERG, 2005; VADELL, 2011). Alguns defendem que a ascensão chinesa representa uma ameaça real aos Estados Unidos da América; outros defendem a tese de uma integração da RDC ao quadro das instituições multilaterais como forma de legitimar e reforçar a governança econômica global (IKENBERRY, 2008). Por outro lado, a escalada de potências emergentes como Brasil, Índia e Rússia tem alimentado outro tipo de debate sobre a condição da China enquanto também uma potência emergente ou potência em recuperação. Em duas décadas, a China saiu de uma condição periférica para o centro do sistema econômico global, o que alterou geograficamente o centro do processo de acumulação capitalista no mundo.

68

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

A China se tornou uma importante engrenagem da economia mundial e, como destaca Shambaugh (2013), apresenta-se como um Estado relevante nas seguintes áreas: redes de comércio global, mercado de manufaturas e commodities no setor de energia. Nesse novo cenário, a grande questão que o presente capítulo apresenta é: como compreender a relação entre a China e o Sul Global – especificamente com a África e a América Latina – no século XXI? Para tal proposta discute-se, como ponto de partida, a “revolução neoliberal” da década de 1970 e o fim do Sistema Bretton Woods. Nesse exercício busca-se esclarecer e diferenciar o neoliberalismo do Consenso de Washington (CW) (WILLIAMSON, 1990), compreendendo que o neoliberalismo é, ao mesmo tempo, um paradigma ideológico e um processo de transformação global que se expande para novas “geografias” reproduzindo a interminável acumulação de capital (HARVEY, 2005), além de configurar uma forma específica de globalização (SCHOLTE, 2005). Em outro quadro, o CW constitui uma network power bem específica de relações históricas Norte-Sul (GREWAL, 2008), a qual foi articulada na década de 1980 após a crise da dívida sob o paradigma neoliberal. De toda forma, apresenta-se a relação entre a China e o Sul Global atrelada às temáticas de comércio e investimentos, constituindo-se como uma nova network power em uma lógica centro-periferia atrelada às relações de troca e aos fluxos investimentos. Configura-se, assim, o “Consenso Asiático”. O ponto mais visível desse processo de aumento da interdependência entre a China e o Sul-Global está na realocação da América do Sul e de alguns países da África dentro da divisão internacional do trabalho após a crise do neoliberalismo, em 2001, a qual enfraqueceu os pontos ordenados pelo CW. Esse capítulo busca entender se o fortalecimento dessa nova network power pode ser uma superação do paradigma ideológico do neoliberalismo ou, em vez disso, uma nova manifestação de uma revolução passiva após a crise de 2008, ancorada em um tipo atualizado de governança hegemônica neoliberal. Para tanto, desenvolve-se uma análise sobre o crescimento das relações entre a China e o Sul Global, especificamente com a América Latina e alguns países africanos. Conforme o objetivo traçado, este capítulo se organiza em três seções, além desta introdução. Assim, a segunda seção destacará as questões

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

69

teóricas; a terceira seção será baseada nos dados materiais da relação apresentada – China na África e na América Latina; e, por fim, as considerações analíticas.

2. O neoliberalismo hegemônico – O modelo de desenvolvimento chinês e o Consenso de Washington 2.1. O neoliberalismo desde os anos 1970 e a experiência chinesa

Esta seção problematiza o modelo chinês de desenvolvimento para avaliar o quão neoliberal foi tal modelo a partir das reformas implementadas pelo Partido Comunista Chinês desde os anos 1980. Assim, essas reformas de mercado foram um modelo neoliberal de desenvolvimento chinês, como afirma Harvey (2005), ou forjou-se uma trajetória diferente de desenvolvimento, baseado na acumulação sem desapossamento, como Arrighi (2008) já argumentou? A despeito de serem entendidas como antagônicas, talvez não haja uma dicotomia nas linhas apresentadas. Todavia, por questões metodológicas, temos de diferenciar três níveis teóricos quando analisamos o neoliberalismo, não obstante eles serem dialeticamente interligados: 1) o nível global, ou o bloco histórico neoliberal transnacional dominado por Estados Unidos, que surge na década de 1970 (AGNEW, 2005; GILL, 1990); 2) os modelos específicos de desenvolvimento implementados pelos governos e forças sociais desde os anos 1980, ou, em outras palavras, de que maneira os agentes respondem politicamente ao ambiente estrutural em seus ambientes domésticos; 3) a forma como os agentes se acomodam e articulam institucionalmente nas network powers em termos econômicos e políticos no sistema hierárquico político. Estas network powers dizem respeito a relacionamentos Norte-Norte, Norte-Sul e Sul-Sul nos mais diversos aspectos. Neste quadro, a internacionalização do Estado (COX, 1981, 1987), que vem ocorrendo desde 1970, se conecta de forma desigual aos três níveis, a fim de apoiar o poder hegemônico dos EUA através da internacionalização da produção e da liberalização financeira.

70

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Segundo David Harvey, o neoliberalismo seria uma prática político-econômica segundo a qual o bem-estar humano pode ser melhor promovido por meio de liberdades e habilidades empreendedoras individuais em uma estrutura institucional caracterizada por direitos de propriedade privada fortalecidos, livre mercado, e livre-comércio. O papel do Estado é criar e preservar uma estrutura institucional apropriada para essas práticas. O Estado deve garantir, por exemplo, a qualidade e a integridade da moeda. Deve ainda ser responsável pelas funções e estruturas militares, jurídicas, de defesa, e de polícia necessárias para garantir os direitos de propriedade privada e, com o uso da força se necessário, garantir o bom funcionamento dos mercados. Além disso, caso não haja mercados (em áreas como terra, água, educação, saúde, segurança social, ou poluição ambiental), eles devem ser criados, pelo Estado se necessário. (HARVEY, 2005, p. 2)1

Assim, no primeiro nível, o neoliberalismo, em um sentido mais abstrato, é um processo dinâmico ancorado ao modo de produção capitalista, uma doutrina inspirada no liberalismo clássico remodelado por Friedrich von Hayek, Milton Friedman, e pelo desenvolvimento intelectual da Escola Virginia, bem como um projeto de classe (HARVEY, 2011), e um conjunto de políticas implementadas em um processo mais ou menos coordenado, composto por: a) privatização; b) liberalização – comércio e finança; e c) re-regulação – mal definida como desregulação (SCHOLTE, 2005). No segundo nível está a implementação de políticas domésticas. A expansão da globalização hegemônica neoliberal foi reforçada após a Guerra Fria, e as reformas de mercado foram implementadas em todo o mundo. No entanto, apesar de tal reforço, no caso de RPC emerge como modelo sui generis de desenvolvimento, com certa distância das reformas pró-mercado que, desde o “modelo” Reagan-Thatcher, impuseram-se no Sul Global. A abordagem do desenvolvimento chinês inicialmente

1

N.E. Os originais das citações se encontram no anexo, a partir da pág. 349.

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

71

foi seguida porque os reformistas literalmente não sabiam que direção estavam tomando: eram reformistas “sem um planejamento técnico” que simplesmente buscavam formas de melhorar os problemas graves e evidentes da economia planificada (...) a abordagem da transição foi completamente diferente na Europa Oriental e na Rússia de Boris Yeltsin (e na América Latina). Nesses países, o objetivo predominante das reformas realizadas era fazer a transição o mais rápido possível para uma economia de mercado moderna (...), os reformistas não acreditavam que seus governos podiam corrigir distorções em suas economias. (NAUGHTON, 2007, p. 86)

Naughton (2007) distingue dois estilos contrastantes de reformas econômicas chinesas. A primeira onda foi na década de 1980, e a segunda onda ocorreu na década de 1990. Ambos os processos de reformas de mercado, controladas pelo Estado e gradualmente abertos, não se pareciam com uma política de terapia de choque, como recomendado pelo FMI e o Banco Mundial: a privatização rápida, a desregulamentação e a liberalização comercial e dos investimentos de maneira unilateral e com condições rígidas, políticas ancoradas no argumento thatcherista de que “não há alternativa”. Conforme os pontos apresentados por Naughton (2007), a China, por suas condições materiais históricas, aderiu a outra alternativa de inserção no capitalismo. Os reformistas chineses viram necessidades não atendidas em suas economias. (...) Os reformistas chineses reduziram as barreiras e abriram gradualmente o sistema, dando a grupos e a indivíduos a oportunidade de empreenderem e atenderem às demandas dos mercados. (...) Empresas estrangeiras foram autorizadas a operar livremente em zonas econômicas especiais já que essa abordagem aumentaria os investimentos na China e poderia convencer corporações estrangeiras a transferir tecnologia para a China. Essas políticas eram vistas como algo que contribuía para o crescimento, ao passo que não ameaçavam inicialmente a habilidade geral do governo de administrar e controlar a economia. (NAUGHTON, 2007, p. 87)

72

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Como, ainda, Huang afirma: A China cresceu contando com inovações institucionais locais únicas, daquele contexto específico, tais como as Township and Village Entreprises (TVEs) de governos locais, descentralização, e controles financeiros seletivos.. Os mecanismos convencionais de crescimento, tais como a propriedade privada, a garantia dos direitos de propriedade, a liberalização financeira e reformas de instituições políticas não são componentes centrais da história do crescimento da China. (HUANG, 2008, p. 13)

Neste sentido, é possível notar que a China não aderiu ao CW enquanto processo de reformas em favor do mercado em um contexto de expansão da internacionalização da produção, assim como em favor da transnacionalização do Estado. De fato, voltando para o terceiro nível teórico acima referido, a China desenvolveu um modelo econômico muito especial no seu processo de internacionalização. De acordo com Amsden (2009), o estabelecimento de mecanismos de controle para alterar o status dos países pobres (resto) é uma variável chave para a compreensão da singularidade no processo de desenvolvimento econômico dos Estados que hoje podem ser considerados potências econômicas emergentes. Ainda, o mecanismo de controle recíproco do ‘resto’ transformou portanto a ineficiência e a corruptibilidade associadas à intervenção governamental em um bem coletivo, assim como o mecanismo de controle da ‘mão invisível’ promovido pelo mercado do Atlântico Norte transformou formas de mercado caóticas e egoístas em bem-estar geral. (AMSDEN, 2009, p. 39)

3. Do Consenso de Washington ao Consenso Asiático Para caracterizar esta mudança geoeconômica e geopolítica, seria interessante voltar à ideia do Consenso de Washington (CW) como apresentado por

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

73

Williamson em 1990, quando se tentou identificar o significado da expressão: “reformas econômicas” segundo “Washington” em um contexto de reestruturação econômica da América Latina e, ao mesmo tempo, como resolver a crise fiscal desses Estados. Portanto, para Williamson (1990), “Washington” diz respeito a um conjunto de instituições financeiras internacionais, além da base política dos EUA. O CW não era uma emulação mecânica ou a imposição do modelo econômico dos EUA. Segundo Williamson, “Washington nem sempre pratica o que prega aos estrangeiros” (1990, p. 2). Para alguns, o CW seria um produto intelectual com base em certa observação empírica (STIGLITZ, 2002, 2004; RODRIK, 1997, 2002, 2007). Para outros, o CW seria sinônimo de neoliberalismo, um “paradigma de política transnacional” (BABB, 2013; BAN e BLYTH, 2013); por fim, um terceiro grupo de analistas afirma que o CW é um modelo econômico específico de desenvolvimento, compreendendo, ainda, que o modelo liberal estadunidense se opõe ao modelo chinês ou “Consenso de Pequim” (RAMO, 2004; LI, BRODSGAARD e JACOBSEN, 2009; KENNEDY, 2010). Partindo de outra perspectiva, defendemos que o CW é uma network power incorporada ao bloco hegemônico neoliberal. O CW contribui para o processo de implementação do modelo neoliberal de ajustamento e de reformas que incluía a liberalização unilateral do comércio e das finanças, a privatização de empresas estatais, uma acelerada terapia de choque a fim de se adaptar e de disciplinar os países rumo à modernidade e ao primeiro mundo e a re-regulação de normas e instituições em favor da fluidez do capital financeiro, tido como pressuposto para o desenvolvimento econômico. Assim, como apontado, o CW desde nossa visão se constitui como um padrão específico de interdependência assimétrica entre atores internacionais e transnacionais, historicamente definidos, além de um composto de orientações mediadas por um conjunto de instituições internacionais. Esta network power é caracterizada como uma relação Norte-Sul, que, sob a ideologia econômica neoliberal, é apresentada como um pacote de políticas para os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento. O aspecto consensual desse padrão de interdependência assimétrica tornou-se mais consistente após a Guerra Fria com a retórica do “fim da

74

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

história”, com o fracasso de experiências econômicas e políticas autoritárias do “socialismo real” e com a perda de confiança na política de planejamento estatal minado pela crise fiscal e pelos desequilíbrios inflacionários em países menos desenvolvidos na década de 1980. Na América Latina e na África, os governos implementaram o CW de acordo com as recomendações das instituições financeiras internacionais, como o FMI e o Banco Mundial. Essas instituições concederam empréstimos e linhas de crédito para os países em desenvolvimento condicionados a políticas de ajustes econômicos drásticos, relacionados principalmente aos seguintes elementos: 1) liberalização financeira; 2) liberalização comercial unilateral; 3) privatização de empresas públicas; 4) re-regulação da economia e; 5) cortes de gastos e ajuste de orçamento. Na virada do milênio, os maus resultados das reformas neoliberais e uma nova crise econômica nos países em desenvolvimento estimularam uma forte crítica ao WC, até mesmo por parte de alguns economistas (STIGLITZ, 2002, 2005). Neste cenário, houve uma tentativa de criar novas alternativas para o CW: o Consenso de Monterrey, o Consenso de Copenhague, o Consenso do México, o Consenso de Buenos Aires. De acordo com Kennedy (2010, p. 467), os mal-entendidos, alterações e desafios enfrentados pelo CW formam o cenário crítico em que aparece a ideia de Consenso de Pequim. Em 2004, em tempos de recuperação da economia global, Joshua Ramo publicou um livro intitulado O Consenso de Pequim, com repercussão imediata. A versão que Ramo traz sobre o Consenso de Pequim é baseada em três condições para uma nação em desenvolvimento encontrar o seu próprio lugar na economia global: 1) inovação e experimentação constante; 2) ênfase dada pela China para a qualidade de vida, principalmente equidade e sustentabilidade, em questões de desenvolvimento; 3) o princípio de “autodeterminação”, que deixa de lado os ditames, as condicionalidades e as orientações do Banco Mundial e do FMI. O princípio da autodeterminação, nas palavras de Ramo, está ligado à resistência à pressão hegemônica, e esta é uma dimensão política importante da expansão econômica chinesa. Segundo ele, “os países em desen-

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

75

volvimento são a principal força para conter a hegemonia e salvaguardar a paz mundial” (RAMO, 2004). Relacionado a este argumento está a estratégia de “reduzir o status de superpotência absoluta dos EUA, promovendo um mundo econômico internacional multipolar” (RATLIFF, 2009). Este é um fator crucial que, em grande medida, faz do Consenso de Pequim, ou modelo chinês, algo tão atraente para outros países em desenvolvimento (RAMO, 2004). Isto é, de acordo com Ramo, o Consenso de Pequim seria um modelo de desenvolvimento particular (chinês) cuja estratégia poderia ser imitada por outros países em desenvolvimento, com um componente contra a hegemonia implícita. A análise de Ramo (2004) apresenta um conjunto de pressupostos normativos relativos ao modelo de desenvolvimento chinês, deixando de lado a dinâmica política e as consequências do modelo de crescimento acelerado chinês para os países em desenvolvimento. A RPC mostraria a outros países da América Latina, Ásia e África um modelo e um conjunto de ideias que ajudaria em seu próprio caminho de desenvolvimento social e econômico. Portanto, a China iria agir como uma influência positiva, gerando efeitos em três direções: 1) como uma reação às ideias ultrapassadas de Washington sobre o desenvolvimento; 2) apresentando uma espécie de cadeia de reação de crescimento endógeno, onde quer que o modelo seja imitado; 3) o crescimento da economia chinesa seria um “ímã” para que outras nações se alinhassem aos interesses econômicos da própria China. A definição de Ramo explica mais um modelo de desenvolvimento do que um padrão específico de interdependência. O autor descreve, na verdade, uma situação utópica (DIRLIK, 2007), com fundamentos fortemente normativos, e não um novo tipo de relações Norte-Sul. O modelo de Ramo não nos ajuda a compreender as implicações geopolíticas e geoeconômicas da interdependência econômica sem precedentes entre a América Latina e África com a RPC. O crescente relacionamento entre a RPC e o Sul Global forma-se com base em um comércio complementar impulsionado pela expansão comercial e financeira chinesa, o crescimento da economia mundial e o preço crescente das matérias-primas e dos recursos energéticos. Logo,

76

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

é muito mais complexo do que um processo de replicação do modelo de desenvolvimento chinês. Na verdade, no cenário político atual do Sul Global é quase impossível pensar em estratégias para a inserção global e em processos de integração regional excluindo o gigante asiático como o mais importante ator extrarregional. Assim como o CW, o Consenso Asiático (CA) é um processo de mudança contemporâneo e dinâmico, que ocorre a partir de uma transformação da estrutura neoliberal hegemônica. Particularmente, uma mudança associada à atual hierarquia do modo capitalista de produção, ancorada politicamente em dois polos – EUA e China –, que se encontram no centro do sistema político e econômico. O CA é, acima de tudo, uma network power dinâmica e voltada paras os âmbitos comercial e de investimentos (GREWAL ,2008), voltada para o extrativismo e para o acesso às commodities nas regiões sul e leste – ou seja, um novo tipo de relação Norte-Sul. A Network power é entendida, assim, como um padrão que permite algum tipo de “coordenação global” (GREWAL, 2008, p. 4), um “consenso” desigual, a existência de uma coordenação global comercial e financeira, organicamente interligada a uma globalização neoliberal mais ampla. O CA emerge em um contexto de ruptura do CW após a crise econômica de 2001, fomentando uma globalização neoliberal renovada e reformatada. Neste domínio, a ascensão da China e da Índia, a disputa por recursos naturais e de outras commodities, a compressão do espaço e os novos avanços tecnológicos trouxeram o surgimento de um novo padrão global de coordenação social e econômico. Nesse sentido, o CA é um conceito muito mais útil para compreender esta nova relação de complementaridade assimétrica Norte-Sul na era pós CW. O AC constitui uma nova network power entre a RPC e algumas regiões menos desenvolvidas, particularmente na África e na América Latina. Este conceito visa elucidar um tipo de relação de poder imposto pelas mudanças econômicas globais, a expansão e o crescimento da economia chinesa e as suas características particulares do modelo econômico chinês. Para a América do Sul e a África, o dilema não diz respeito à emulação do modelo de desenvolvimento chinês. Suas taxas de crescimento extraordinárias da primeira

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

77

década do século XXI não têm nada a ver com uma certa imitação dos passos chineses, como Ramo afirma. Pelo contrário, trata-se de tirar vantagens das novas possibilidades de integração na economia global a partir do comércio complementar com a RPC. No entanto, esta relação baseada no extrativismo e na produção de commodities poderia acelerar a consolidação de uma nova network power entre centro-periferia. Neste sentido, destacam-se algumas características do CA: 1.

As possibilidades de uma maior margem de manobra política ou autonomia para os países subdesenvolvidos e em desenvolvimento como resultado de condições de maior permissibilidade internacional econômica. O crescimento da presença econômica da China na América Latina e na África surge como uma nova opção comercial e financeira para o “Sul”, em contraste com as duras restrições do CW. Novas oportunidades de comércio, investimentos em energia, recursos naturais e infraestrutura, além dos empréstimos e ajuda financeira foram muito importantes para a recuperação dessas economias.

2. A crescente interdependência entre a RPC e os países menos desenvolvidos não é uma ameaça real para os EUA. No entanto, os EUA têm se preocupado com a presença chinesa na região e vêm exigindo transparência através da criação de mecanismos permanentes de consulta sobre as relações chinesas e interesses econômicos na América Latina (CORNEJO e NAVARRO GARCÍA, 2010, p. 82). RPC e EUA têm discutido acerca de suas respectivas políticas em relação à América Latina e à cooperação na região. As autoridades chinesas têm frequentemente reafirmado que o seu foco na América Latina depende estritamente de questões econômicas e que eles não têm ambições políticas. O paradoxo neste ponto é que o princípio de “não intervenção” e “apenas negócios” se choca com os interesses dos EUA em outras regiões cruciais, tais como África e Ásia. 3. A RPC visa a manutenção de relações harmoniosas e a promoção da estabilidade nas regiões menos desenvolvidas, a fim de garantir a segurança dos seus próprios investimentos e relações comerciais, apoiada no discur-

78

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

so confuciano de mundo harmonioso, especialmente sob o governo de Hu Jintao (2003-2013). 4. A China é uma nova opção de fonte de financiamento para os países africanos e latino-americanos. Diferentemente dos empréstimos do FMI e do Banco Mundial, a China não impõe condições políticas para a ajuda e o investimento2, corroendo algumas das bases do CW. De acordo com o Financial Times, entre 2009 e 2010, as principais agências financeiras oficiais chinesas – China Development Bank e China Export-Import Bank – emprestaram US$ 110 bilhões a governos e empresas nos países em desenvolvimento, mais do que o Banco Mundial (DYER, ANDERLINI e SENDER, 2010). O China Development Bank, o Banco de Desenvolvimento da África e o China Eximbank desempenham um papel importante neste sentido (GALLAGHER, IRWIN e KOLESKI, 2012; TAYLOR, 2009). 5.

Finalmente, o padrão de relação da RPC é baseado em uma estratégia bilateral de comércio e investimentos no processo de negociação com países menos desenvolvidos. Na América Latina, a China assinou acordos de livre comércio com o Chile, Peru e Costa Rica, e negociou, separadamente, o seu próprio status como uma economia de mercado livre na OMC com o Brasil e a Argentina. O mesmo padrão aconteceu entre a China e os países africanos, apesar da criação do Fórum da China- África (FOCAC) (TAYLOR, 2011; VADELL et al, 2013). Em suma, os pontos acima apresentados ilustram algumas característi-

cas do CA. Entretanto, com o intuito de melhor compreender os processos vinculados à tal network power, devemos compreender o padrão dos relacionamentos chineses com a África e a América Latina.

A única exceção poderia ser o reconhecimento oficial da República Popular da China como a única China. No entanto, o reconhecimento de Taiwan não é um impedimento para as relações comerciais e de investimento com a RPC. 2

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

79

4. O caminho atual do Consenso Asiático: a crescente relação da China com a África e com a América Latina As relações entre a China contemporânea com os países africanos no século XX devem ser analisadas desde a revolução comunista de 1949, liderada por Mao Zedong, e as suas implicações e as consequências da Guerra da Coreia. Após a morte de Stalin, as relações entre a República Popular da China e da União Soviética se deterioraram a tal ponto que a China realizou a maior mobilização de tropas na sua história para a fronteira da URSS. Em termos de política externa, Mao, com base em sua teoria dos três mundos, apresentava a RPC como líder do “Terceiro Mundo”, apoiando diversas lutas anticoloniais e vários governos revolucionários na África. Alguns anos mais tarde, ao longo da Revolução Cultural, a China iria se afastar das iniciativas revolucionárias dos países do Terceiro Mundo. Assim, a política externa da China, nesse período, baseou-se principalmente em motivações ideológicas, que se concretizaram em ajudas bilaterais. Neste contexto, os investimentos chineses na Tanzânia foram o caso mais significativo (TAYLOR, 2009, p. 13; YU, 1975). Assim, de acordo com Alden (2007), podemos dividir a relação entre a China moderna e a África em três etapas. A primeira etapa começa com a Conferência de Bandung e vai até o final da década de 1970; uma segunda fase se inicia com a implementação das reformas de mercado na China e termina na crise da Praça Tiananmen. Finalmente, uma terceira fase de aproximação com a África foi reforçada no século XXI, por meio da atual network power do Consenso Asiático. A primeira fase se inicia após a Conferência de Bandung em 1955 (MEIDAN, 2006; ALDEN, 2007), momento em que a RPC reafirmou explicitamente a liderança dos países do Terceiro Mundo no Movimento dos Países Não Alinhados (ARRIGHI e ZHANG, 2009; GRANDE, 2008; MEIDAN, 2006). Este tipo de relação Sul-Sul tomou forma com fortes características ideológicas e políticas, haja vista as modestas relações comerciais das duas regiões neste período. De acordo com Meidan (2006), o reconhecimento diplomático egípcio em 1956 e a normalização das relações com o Quênia em 1963 foram

80

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

os primeiros passos da relação China-África. No entanto, Alden (2007, p. 9) afirma que a presença da RPC no continente africano durante os anos 1950 não foi algo constante. Esta fase da relação China-África foi fortemente influenciada por transformações nas políticas interna e externa chinesa. Com efeito, neste período houve uma revitalização das relações da RPC com os países africanos apoiada ideologicamente pelos cinco princípios de coexistência pacífica, formulada em 1954: 1) respeito mútuo pela integridade territorial, 2) não agressão; 3) não interferência mútua nos assuntos internos dos Estados; 4) igualdade e benefício mútuo; 5) coexistência pacífica. Estes princípios foram e continuam a ser um guia para o relacionamento da China com os países menos desenvolvidos (PMD). A segunda fase da relação China-África começou em 1978. O líder chinês Deng Xiaoping havia implementado uma mudança na política chinesa de desenvolvimento e, consequentemente, na política externa chinesa. As relações com o Terceiro Mundo foram congeladas, afetando os laços com os países africanos. A política externa de Deng foi baseada, assim, em três componentes: 1) manter boas relações com os EUA; 2) apoiar uma política de contenção em relação a Taiwan; 3) atrair investimento direto estrangeiro (IDE) para estimular o desenvolvimento da China (ALDEN, 2007, p. 10). A terceira fase se inicia após a repressão contra os manifestantes na Praça Tiananmen, em junho de 1989. Após esse incidente, o Partido Comunista Chinês (PCC) passou a discutir a orientação política e o futuro do país. Na verdade, os acontecimentos de junho de 1989 afetaram negativamente a relação da China com os países desenvolvidos, mas não com o Terceiro Mundo (TAYLOR, 2009; GU, 2005). O episódio em Tiananmen foi um fator que levou a uma maior aproximação entre a RPC e os países em desenvolvimento, evitando, assim, o isolamento chinês nos fóruns internacionais. Outro fator que encorajou a reaproximação entre a China e os países africanos na década de 1990 foi a questão comercial. O governo chinês e as empresas estatais chinesas perceberam o elevado potencial dos recursos naturais da África, basicamente energéticos, como petróleo e minerais (TAYLOR,

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

81

2009, p. 14). A crescente interdependência entre a República Popular da China e os países africanos produtores e exportadores de commodities foram se aprofundando devido ao aumento da demanda chinesa por esses produtos (TAYLOR, 2006, 2009; FERCHEN, 2013). Em suma, a recente aproximação econômica entre a RPC e os países em desenvolvimento mostra uma mudança fundamental no projeto de desenvolvimento chinês, abandonando os objetivos de autossuficiência maoistas – um pilar da política chinesa desde a revolução de 1949. O espetacular crescimento econômico da China durante os anos 1990 e sua falta de energia e recursos naturais para sustentar tal desempenho econômico são fatores cruciais para a compreensão da terceira fase da relação entre a RPC e os países em desenvolvimento. Com relação às relações econômicas entre a China e os países da América Latina, estas têm se intensificado desde 2001 e 2002 (VADELL, 2007, 2013). Os desenvolvimentos foram evidentes em 2004 e 2005, quando o presidente chinês Hu Jintao e o vice-presidente Zeng Qinhong visitaram o continente sul-americano, a fim de assinar acordos de comércio, investimento e de cooperação em várias áreas.3 Desde então, os oficiais chineses reafirmaram repetidamente que as prioridades da RPC para a região se limitam estritamente ao âmbito econômico. Desde a Segunda Guerra Mundial a relação entre a China e a Latina América foi marcada por um forte pragmatismo, independentemente da ideologia política desses governos.4 O governo chileno democrático de Salvador Allende foi o primeiro país da América Latina a reconhecer oficialmente a RPC. Posteriormente, a ditadura de Pinochet continuou a fortalecer os laços com a RPC, especialmente quando tornou-se mais isolado internacionalmente. O pragmatismo de tais relações durante a Guerra Fria também pode ser

Como coloca Jiang Shixue (2006, p. 26), os objetivos de Hu Jintao se resumiam a: “1) fortalecer um entendimento estratégico comum e aumentar a confiança política mútua, 2) tomar medidas práticas e criativas para exploração do potencial de cooperação econômica, e 3) aumentar a relevância das trocas culturais para aprimorar entendimento mútuo”. 4 Por exemplo, durante a Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1971, a China defendeu, a pedido dos latino-americanos, a proposta das 200 milhas náuticas como um espaço de soberania do Estado (JIANG, 2006). 3

82

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

observado com a ditadura argentina (1976-1983). Argentina e RPC assinaram acordos comerciais e de cooperação em 1978 e em 1980, e o presidente Jorge R. Videla foi o primeiro presidente da Argentina a visitar a RPC. Desenvolveu-se, na verdade, um compromisso político internacional entre os dois países no âmbito da ONU: a RPC reconheceria e apoiaria as reivindicações de soberania argentina das ilhas do Atlântico Sul, e a Argentina oficialmente reconheceria Taiwan como uma província da RPC. Os líderes de direita e as forças armadas latino-americanas não percebiam a China como uma ameaça à sua segurança no contexto da Guerra Fria. De fato, as relações diplomáticas e comerciais entre a RPC e a região foram estimuladas por essas ditaduras de direita (DOMÍNGUEZ et al, 2006, p. 6). O alto grau de interdependência foi consolidado durante o período de reformas na China, no início de 1980. Os líderes chineses, por exemplo, denunciaram fortemente o grupo guerrilheiro peruano Sendero Luminoso, de ideologia maoista, como “contrarrevolucionário e revisionista” (DOMÍNGUEZ et al, 2006, p. 6). O pragmatismo da interdependência China-América Latina foi a principal característica deste relacionamento, que se intensificou a partir do século XXI – embora em um cenário internacional distinto. Atualmente, de acordo com Jiang (2006), os princípios de igualdade, benefício mútuo, desenvolvimento comum e relações de harmonia têm orientado as relações contemporâneas entre os atores em questão. A harmonia está relacionada com a ideia do capitalismo confucionista. Encina (2009) afirma, neste sentido, que este tipo de capitalismo é ancorado na confiança como uma forma de capital social, num quadro de reciprocidade e de interesse mútuo. Tais elementos estabeleceriam um novo capitalismo com novas bases consensuais, distintas da estrutura hegemônica anglo-saxã. De fato, o discurso chinês do capitalismo harmonioso emerge concomitante à estratégia de política externa econômica “voltada para fora”, que fortalece um novo padrão, uma network power comercial e de investimentos dinâmica e complementar, incrustada no sistema capitalista. A consequência política mais notável é a (re) emergência de um novo polo no centro desta estrutura, remodelando e reforçando a arquitetura da governança institucional global.

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

83

5. Considerações finais O cenário futuro parece ser uma consolidação das parcerias entre China e América do Sul e entre China e África. De fato, observa-se o fortalecimento da network power comercial e de investimentos entre Norte e Sul, bem como sua sobreposição à crescente cooperação Sul-Sul entre o gigante asiático e do sul global. Tais questões estão dando uma maior margem de manobra para os países em desenvolvimento, tanto em questões políticas quanto econômicas. No novo século, a América Latina e a África, regiões que passaram por complexas crises econômicas ao longo das décadas de 1980 e 1990, começaram a olhar para os chineses em busca de oportunidades de comércio, ajuda e investimentos. O fracasso das políticas neoliberais após a crise financeira mundial dos anos 2000 parece ter colocado limites às possibilidades de reformas e políticas de desenvolvimento unívocas para os países menos desenvolvidos. É neste contexto que a RPC emerge como um fator fundamental para a recuperação econômica da maioria dos países da América Latina e da África. A China tornou-se, neste sentido, o ator extrarregional mais importante para estes Estados. Neste contexto, é possível observar quatro grandes objetivos perseguidos pela RPC em suas relações com os países da América Latina e da África. Primeiro, a RPC necessita de grande quantidade de recursos naturais e energéticos para sustentar seu desenvolvimento interno (FERCHEN, 2011), levando a um crescimento médio de cerca de 9% nos últimos 30 anos. Neste contexto, os países da América Latina e África, ricos em recursos naturais, são vistos como parceiros ideais pela RPC. Observa-se que o boom comercial começou em 2001, quando a China entrou na Organização Mundial do Comércio (OMC). Em segundo lugar, a China lançou uma cruzada diplomática para o reconhecimento da RPC, uma vez que vários países da América Latina e da África ainda reconheciam Taipei, e não Beijing, como a China “oficial”5. O 5

Atualmente, existem 13 países que não reconhecem a República Popular da China na Amé-

84

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

isolamento de Taiwan é um objetivo claro da RPC, que se manifesta na sua política externa de forma geral. No entanto, o fato de um país não reconhecer oficialmente a RPC não implica necessariamente a ausência de relações comerciais com esta. Por trás deste jogo de reconhecimento há, por parte da RPC, uma espécie de “diplomacia do dólar”, que se traduz em ajuda financeira, em investimentos em infraestrutura e em aumento do comércio (TAYLOR, 2009, 2006; ALDEN, 2007; ELLIS, 2009). Este processo constitui e consolida a network power comercial e de investimentos entre Norte e Sul que cristalizou uma complexa teia de relações entre elites econômicas e políticas dos países em desenvolvimento e os investidores chineses e os governos – da RPC e de Taiwan. Em terceiro lugar, outro fator importante que estimula a expansão da RPC para o “Sul Global” é a oportunidade de obter apoio político nos fóruns multilaterais e nas organizações internacionais, principalmente votos na Assembleia Geral das Nações Unidas, onde os Estados votantes possuem o mesmo peso (ALDEN, 2007; ELLIS, 2009). Finalmente, a América Latina e a África são potenciais consumidores de produtos chineses. Depois da crise econômica de 2008, os Estados Unidos e a União Europeia sofreram uma acentuada recessão econômica, o que obrigou a China a estimular o seu mercado interno e a diversificar seus mercados de exportação para outras regiões, a fim de evitar uma crise doméstica. Como aponta Jiang Shixue, a expansão para mercados latino-americanos tem sido parte das metas da China de reduzir a sua dependência dos Estados Unidos, Japão e Europa (SHIXUE, 2008, p. 46). Como consequência desta política, houve um afluxo maciço de produtos manufaturados chineses para a região, o que levou a dois problemas: em primeiro lugar, afetou negativamente os setores industriais, principalmente em países como o Brasil, Argentina, México e África do Sul. Em segundo lugar, houve um aumento do déficit comercial em muitos países em desenvolvimento em sua relação com a RPC. rica Latina: Paraguai, na América do Sul; Panamá, Nicarágua, El Salvador, Honduras, Guatemala e Belize, na América Central; República Dominicana, Haiti, Saint Kitts e Nevis, São Vicente e Granadinas e Santa Lúcia, no Caribe.

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

85

Esta lista de objetivos não é exaustiva; sua relevância se deve ao fato de que tais pontos lançam luz sobre questões importantes relativas à network power do Consenso Asiático e seus desenvolvimentos e dilemas futuros: para a China, como manter sua estratégia em um processo de globalização neoliberal; para os países em desenvolvimento – latino-americanos e africanos –, como manter o equilíbrio entre os ganhos de tal parceria com a China e sua margem de manobra no sistema capitalista global; e para os EUA, como lidar com a ascensão chinesa e com as relações a ela intrinsecamente associadas. Mas estes são temas para pesquisas futuras.

Referências AGNEW, John A. Hegemony the new shape of global power. Philadelphia: Temple University Press, 2005. ALDEN, Chris. China in Africa. London; New York: Zed Books, 2007. AMSDEN, Alice A. A Ascensão do “Resto”: os desafios ao ocidente de economias com industrialização tardia. São Paulo: Editora UNESP, 2009. ARRIGHI, Giovanni. Adam Smith em Pequim. São Paulo: Boitempo Editorial, 2008. ARRIGHI, Giovanni; ZHANG, Lu. Beyond the Washington Consensus: a New Bandung? 2009, unpublished paper. BABB, Sarah. “The Washington Consensus as transnational policy paradigm: Its origins, trajectory and likely successor”. Review of International Political Economy 20 (2), p. 268-297, 2013. BAN, Cornel; BLYTH, Mark. “The BRICs and the Washington Consensus”. Review of International Political Economy 20 (2), p. 241-255, 2013. BRZEZINSKI, Zbigniew; MEARSHEIMER, John J. “Clash of the Titans”. Foreign Policy (146), 2005.

86

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

CORNEJO, Romer; NAVARRO GARCÍA, Abraham. “China y América Latina: recursos, mercados y poder global”. Nueva Sociedad (228), p. 79-99, 2010. COX, Robert W. “Social Forces, States and World Orders: Beyond International Relations Theory”. Millennium - Journal of International Studies 10 (2), p. 126-155, 1981. _______. Production, power, and world order: social forces in the making of history, The Political economy of international change. New York: Columbia Universty Press, 1987. DIRLIK, Arif. Beijing Consensus: Beijing “Gongshi”. Who Recognizes Whom and to What End? 2007. Disponível em: http://www.globalautonomy.ca/global1/position.jsp?index=PP_Dirlik_BeijingConsensus.xml. Acesso em 20 de novembro de 2013. DOMÍNGUEZ, Jorge I.; CATALINAC, Amy; CESARIN, Sergio; CORRALES, Javier; GOLOB, Stephanie R.; KENNEDY, Andrew; LIEBMAN, Alexander; MUSACCHIO-FARIAS, Marusia; RESENDE-SANTOS, João; RUSSELL, Roberto and RYU, Yongwook. “China’s Relations with Latin America: Shared Gains, Asymmetric Hopes”. Inter-American Dialogue, 2006. Disponível em: http://www.wcfia.harvard.edu/sites/default/files/Dominguez_Chinas.pdf]. Acesso em 25 de novembro de 2013. DYER, Geoff; ANDERLINI, Jamil; SENDER, Henny. “China’s lending hits new heights”. Financial Times, 2011. Disponível em: http://www.ft.com/ cms/s/0/488c60f4-2281-11e0-b6a2-00144feab49a.html#axzz2lxZFQ2l2. Acesso em 17 de outubro de 2013. ELLIS, Evan R. China in Latin America: the whats and wherefores. Boulder, Colo.: Lynne Rienner Publishers, 2009. ENCINA, Claudia Labarca. “El capitalismo confuciano en la era de la globalización: nuevas bases para construir xinyong y guanxi - Lecciones para Chile”. Estudios Internacionales (163), p. 23-46, 2009.

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

87

FERCHEN, Matt. “China-Latin America Relations: Long-term Boon or Short -term Boom?”. The Chinese Journal of International Politics 4, p. 55-86, 2011. _______. “Whose China Model is it anyway? The contentious search for consensus”. Review of International Political Economy 20 (2), p. 390-420, 2013. FRIEDBERG, Aaron L. “The Future of U.S.-China Relations. Is conflict inevitable?”. Internacional Security 30 (2), 2005. GALLAGHER, Kevin; IRWIN, Amos and KOLESKI, Katherine. “The New Banks in Town: Chinese Finance in Latin America”. Report. Inter-American Dialogue, 2012. Disponível em: http://ase.tufts.edu/gdae/Pubs/rp/GallagherChineseFinanceLatinAmerica.pdf. Acesso em 11 de setembro de 2013 GILL, Stephen. American hegemony and the Trilateral Commission, Cambridge studies in international relations. Cambridge (England); New York: Cambridge University Press, 1990. GREWAL, David Singh. Network power: the social dynamics of globalization. New Haven: Yale University Press, 2008. GU, Xuewu. “China Returns to Africa”. Trens East Asia (9), p. 1-14, 2005. HARVEY, David. A brief history of neoliberalism. Oxford; New York: Oxford University Press, 2005. _______. The enigma of capital: and the crises of capitalism. Pbk. ed. Oxford; New York: Oxford University Press, 2011. HUANG, Yasheng. Capitalism with Chinses Characteristics. New York: Cambridge University Press, 2008. IKENBERRY, John G. “The Rise of China and the Future of the West”. Foreign Affairs 87 (1), p. 23-37, 2008. KENNEDY, Scott. “The Myth of the Beijing Consensus”. Journal of Contemporary China 19 (65), p. 461-477, 2010.

88

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

LARGE, Daniel. “Beyond ‘Dragon In The Bush’: The studyof China – Africa Relations”. African Affairs 107 (426), p. 45-61, 2008. LI, Xin; BRODSGAARD, Kjeld Erik and JACOBSEN, Michael. Redefining Beijing Consensus: Ten general principle. 2009. Disponível em: http://openarchive. cbs.dk/bitstream/handle/10398/7830/CDP 2009-029.pdf?sequence=1. Acesso em 22 de outubro de 2013. MEARSHEIMER, John J. The tragedy of Great Power politics. New York: Norton, 2001. MEIDAN, Michal. “China’s Africa Policy: bussines now, politics later”. Asian Perspectives 30 (4), p. 69-93, 2006. NAUGHTON, Barry. The Chinese economy: transitions and growth. Cambridge, Mass.; London: MIT, 2007. _______. “China’s Distinctive System: can it be a model for others?”. Journal of Contemporary China 19 (65), p. 437-460, 2010. RAMO, Joshua Cooper. The Beijing Consensus: Notes on the New Physics of Chinese Power. London: Foreign Policy Centre, 2004. RATLIFF, William. “In Search of a Balanced Relationship: China, Latin America and United States”. Asian Politics & Policy 1 (1), p. 1-30, 2009. RODRIK, Dani. Has globalization gone too far? Washington, D.C.: Institute for International Economics, 1997. _______. After Neoliberalism What. 2002. Disponível em: http://www.new-rules.org/Docs/afterneolib/rodrik.pdf. Acesso em 22 de outubro de 2013. _______.One economics, many recipes : globalization, institutions, and economic growth. Princeton, N.J.: Princeton University Press, 2007. SCHOLTE, Jan Aart. “The Sources of Neoliberal Globalization”. United Nations Research Institute for Social Development. 2005. Disponível em: http://

AS IMPLICAÇÕES INTERNACIONAIS DO MODELO CHINÊS DE DESENVOLVIMENTO DO SUL GLOBAL

89

www.unrisd.org/80256B3C005BCCF9/search/9E1C54CEEB19A314C12570B4004D0881?OpenDocument. Acesso em 23 de novembro de 2013. SHAMBAUGH, David L. China goes global: the partial power. Oxford; New York: Oxford University Press, 2013. SHIXUE, Jiang. “Three Factors in Recent Development of Sino-Latin American Relations”. In: ARSON, C.; Mohr, M.; Roett, R. and Varat, J (Eds). Enter The Dragon? China’s Presence in Latin America. Washington: Woodrow Wilson International Center for Scholars, 2008. _______. “Recent Development of Sino-Latin American Relations and its Implications”. Estudios Internacionales XXXVIII (152), p. 19-41, 2006. STIGLITZ, J. E. The Post Washington Consensus. 2004. Disponível em: http:// www0.gsb.columbia.edu/ipd/pub/Stiglitz_PWCC_English1.pdf. Acesso em 15 de outubro de 2013. _______. Globalization and its discontents. 1st ed. New York: W. W. Norton, 2002. _______. “The Post Washington Consensus consensus”. Initiative for Policy Dialogue, 2005. Disponível em: http://policydialogue.org/files/events/Stiglitz_ Post_Washington_Consensus_Paper.pdf. Acesso em 21 de outubro de 2013. TAYLOR, Ian. China and Africa: engagement and compromise, Routledge contemporary China series 14. Milton Park, Abingdon, Oxon; New York: Routledge, 2006. _______. China’s new rol in Africa. Boulder, Colorado: Lynne Rienner Publishers, 2009. _______. The Forum on China-Africa Cooperation (FOCAC). Edited by T. G. Weiss and R. Wilkinson, Routledge Global Institutions. New York: Routledge, 2011. VADELL, Javier. “Rumo ao século chinês? A relação Estados Unidos-China pós 11/09”. Carta Internacional 6 (2), p. 97-111, 2011.

90

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

_______. “The North of the South: The Geopolitical Implications of Pacific Consensus in South America and the Brazilian Dilemma”. Latin American Policy 4 (1), p. 36-56, 2013. _______ et al. “FOCAC: estratégia econômica e política de cooperação Sul-Sul Sino-Africana”. Carta Internacional 8(2), p. 81-99, 2013. WILLIAMSON, John. “What Washington means by policy reform”. In: WILLIAMSON, J. (Ed.). Latin American Adjustment: How Much Has Happened? Washington: Institute for International Economics, 1990. YU, George T. China’s African Policy: Study of Tanzania. New York: Praeger, 1975.

Lições do desenvolvimento econômico da China para a América Latina John Ross

1. Introdução As conquistas econômicas da República Popular da China são, de longe, as maiores da história. Isso é verdade não só quando levamos em conta unicamente o crescimento econômico, como também se verifica, de modo ainda mais relevante, na melhoria dos padrões de vida e na diminuição da pobreza. Essa afirmativa é objetiva, não é exagerada, e é detalhadamente fundamentada a seguir. No Ocidente, ainda assim, é disseminada a falácia de que tais conquistas econômicas e sociais sem precedentes se devem ao capitalismo, e não ao sistema econômico socialista chinês. Essa concepção incorreta resulta em equívocos na estratégia econômica da esquerda internacional, inclusive na América Latina. Caso estejam convencidas de que as conquistas econômicas e sociais sem precedentes na China resultam de um sistema econômico capitalista, a esquerda e as forças socialistas não prestarão a atenção devida ao “modelo chinês” e não tirarão as lições adequadas. Isso terá consequências negativas sérias para a estratégia da esquerda na América Latina e no resto do mundo. Além disso, a falsa convicção de que a China é um sistema econômico capitalista permite que a direita almeje levar os créditos pelo sucesso socioeconômico sem precedentes do país. Desse modo, este capítulo apresenta quatro pontos independentes: (i) que as conquistas socioeconômicas da China são inéditas na história da humanidade; (ii) que essas conquistas socioeconômicas são fruto de um sistema econômico socialista, e não de um sistema econômico capitalista;

92

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

(iii) que as características desse sistema econômico socialista não são exclusivas da China; (iv) e que, portanto, é uma prioridade urgente para a América Latina – e para o resto do mundo – estudar as lições do sucesso econômico chinês. O objetivo principal é analisar os motivos para o sucesso econômico da China e tirar conclusões aplicáveis no mundo todo, inclusive na América Latina. Isso naturalmente não sugere que o “modelo chinês” possa ser aplicado mecanicamente em outros lugares, e sim que as forças econômicas fundamentais subjacentes a ele correspondem a processos econômicos gerais. O que é único na China é sua combinação específica. Isso está alinhado à insistência de Deng Xiaoping, que caracteriza o pensamento econômico chinês, de que a política econômica do país se baseie na situação nacional específica da China (em suas “características chinesas”), ao mesmo tempo em que “tentamos agir de acordo com leis econômicas objetivas” (XIAOPING, 1979, p. 173).1 Este capítulo é baseado no meu livro, publicado em chinês, O Grande Jogo de Xadrez (ROSS, 2016), no qual comparo o desenvolvimento econômico e as estratégias da China e dos Estados Unidos, levando em conta suas consequências geopolíticas.

2. As conquistas econômicas da China são as maiores na história A primeira questão é a de apresentar de forma objetiva e verificável o porquê da China ter realizado a maior conquista socioeconômica da história da humanidade. Para ser preciso, e sem exageros, nunca antes algo que afetasse as condições de um grupo tão grande de pessoas, ou de uma parte tão grande da população mundial, foi aprimorado tão rapidamente. Como será demonstraEssa afirmativa de que a China agiu ao mesmo tempo de acordo com condições específicas e com leis universais é insistentemente repetida por Deng Xiaoping em múltiplos contextos. Por exemplo: “Nosso princípio é integrar o marxismo com a prática chinesa e assim forjar um caminho próprio. É a isso que chamamos de construir um socialismo com características chinesas” (Deng X., 21 de agosto de 1985).

1

93

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

do detalhadamente, até mesmo o crescimento nos EUA, Estado que assumia uma posição dominante economicamente, ou na URSS, ocorreu em uma escala qualitativamente menor do que na China. A forma mais simples e clara de avaliar a escala sem precedentes das conquistas econômicas da China é observar o número de pessoas que delas se beneficia diretamente, por habitarem dentro das fronteiras do país; medição que pode ser feita não apenas em números absolutos, como também levando em conta a proporção da população mundial. A Tabela 1 apresenta, portanto, a porcentagem da população global nas maiores economias do mundo na época em que iniciaram o crescimento econômico sustentado.2 Tabela 1. População mundial em países no início do crescimento econômico rápido sustentado (%) País

Ano

% da população mundial

Reino Unido

1820

2,0%

EUA

1870

3,2%

Alemanha

1870

3,1%

URSS*

1929

8,4%

Japão

1950

3,3%

Economias dos “Tigres” Asiáticos**

1960

1,4%

China

1978

22,3%

Índia – potencial

1993

16,0%

* Média de 1920 (8,3%) e 1940 (8,5%). ** Total para Coreia do Sul (0,8%), Província de Taiwan (0,4%), Hong Kong (0,1%) e Singapura (0,1%). Fonte: Calculado de Maddison (2010)

Análise dos exemplos históricos: t O primeiro país a vivenciar o crescimento econômico rápido sustentado foi o Reino Unido, durante a Revolução Industrial, abarcando 2% da população mundial. 2

O crescimento rápido é, naturalmente, definido com base nos padrões do período em questão.

94

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

t O crescimento econômico rápido e sustentado dos Estados Unidos, após a Guerra Civil, ocorreu em um país com 3,2% da população mundial. t Quando a industrialização rápida soviética ocorreu, no final de 1920, a URSS tinha 8,4% da população mundial. t O crescimento rápido do Japão após a 2ª Guerra Mundial se deu em um país com 3,3% da população mundial. t O crescimento dos quatro “Tigres Asiáticos” (Hong Kong, Singapura, Coreia do Sul, e Província de Taiwan) ocorreu em economias que, juntas, representavam 1,4% da população mundial. Alguns outros países poderiam ser incluídos, como a Itália, na década de 1950 (1,9% da população mundial), ou a Espanha, na década de 1960 (1,0% da população mundial), mas a inclusão desses países não acarreta diferenças significativas. Nenhuma outra economia que tenha iniciado o crescimento econômico rápido sustentado abarcava um número tão significativo quanto 22% da população mundial, como era o caso da China no início de sua reforma econômica, em 1978. A China, na ocasião da “decolagem” econômica, tinha sete vezes a porcentagem relativa da população mundial do Japão ou dos Estados Unidos, e quase três vezes a da URSS.

3. Escala de crescimento econômico A escala de desenvolvimento econômico da China resultou em números igualmente incríveis e inéditos de aumento comparativo da produção. Em relação à paridade do poder de compra (PPC), corrigido monetariamente, o maior aumento real no PIB em apenas um ano já registrado fora da China ocorreu em 1999, nos Estados Unidos, quando o país aumentou sua produção em US$ 567 bilhões. O maior aumento de produção já obtido pelo Japão em um único ano, frequentemente atribuído ao “milagre” econômico do pós-guerra, foi de US$ 212 bilhões. Na Coreia do Sul, a maior das economias dos “Tigres Asiáticos”, o maior aumento do PIB em um único ano foi de US$ 90 bilhões.

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

95

Entretanto, em 2010, a China aumentou sua produção em US$ 1.126 bilhões.3 O aumento no PIB da China em um único ano foi, portanto, mais do que o dobro da maior alta na história dos EUA, e cinco vezes maior do que a do Japão. Isso, como dito, indica a escala sem precedentes do desenvolvimento chinês.

4. A transição da China de uma economia de renda baixa para uma economia de renda média-alta Também é necessário entender, sem exagero ou moderação, em que medida o crescimento extraordinariamente alto da China já alterou o posicionamento do país na economia mundial. A China já deixou de ser uma economia de renda baixa para se tornar uma economia de renda média-alta, de acordo com classificações internacionais. Como será analisado abaixo, na próxima década, o país se tornará uma economia de renda alta.4 Ainda assim, a escala de transição da China ainda é subestimada, e a percepção da posição da China na economia mundial é frequentemente pior do que a real, devido ao uso recorrente de um método de categorização e de classificação de países que induz ao erro, por não levar em conta o contingente populacional. Tal método não traça distinção entre Mônaco, um país com uma população de menos do que 40 mil pessoas, com um PIB per capita maior do que o da China, e a Índia, com uma população de 1,2 bilhão de pessoas, ou a Indonésia, com uma população de quase 240 milhões, que possuem PIBs per capita menores do que o da China. Esse método de análise leva a uma representação equivocada e ilusória da posição real da China na economia mundial. Os cálculos da posição da China na economia mundial devem levar em conta o contingente populacional dos diferentes países.

Calculado com base em nos dados disponíveis em The Conference Board (2013). Calculado em PPC EKS. 4 O critério oficial utilizado pelo Banco Mundial para a classificação dos países em 2013 era: renda baixa – Renda Nacional Bruta (RNB) menor do que US$  1.035; renda baixa-média – RNB entre US$ 1.036 e US$ 4.085; renda alta – RNB maior do que US$ 12.616. As RNBs são calculadas de acordo com a metodologia do Atlas Mundial. Para uma explicação detalhada, ver: . 3

96

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

5. A posição da China na economia mundial Para demonstrar a verdadeira dimensão do progresso da China a partir de 1950, deve-se levar em conta que, após a invasão pelo Japão e a guerra civil, a China era praticamente o país mais pobre do mundo, com um PIB de apenas 5% o PIB dos EUA. Em 1950, das 141 economias no mundo cujos dados podem ser calculados, apenas 10 países – oito na África (Botsuana, Burundi, Etiópia, Guiné, Guiné-Bissau, Lesoto, Malaui e Tanzânia) e dois na Ásia (Birmânia e Mongólia) – tinham um PIB per capita menor do que o da China.5 Ainda em 1978, com o início da “reforma e da abertura da China”, apesar do enorme progresso analisado abaixo, menos de 1% da população mundial vivia em países com um PIB per capita menor do que o da China, medido em taxas de câmbio de dólar corrente, enquanto que 74% vivia em países com um PIB per capita maior.6 Em 2012, a situação havia mudado. Em dólares correntes, apenas 29% da população mundial vivia em países com um PIB per capita maior do que o da China, e 51% vivia em países com um PIB per capita menor. Em termos de PPC, apenas 30% da população mundial vivia em países com um PIB per capita maior do que a China, ao passo que 50% vivia em países com um PIB per capita menor. A China havia, portanto, passado para a metade superior da população mundial em termos de desenvolvimento econômico, com menos de um terço da população mundial vivendo em economias mais desenvolvidas economicamente (ver Gráfico 1). Nunca antes na história da humanidade houve uma melhoria tão marcante na posição de uma parte tão grande da população mundial.

As informações acima foram calculadas a partir de “Maddison Historical Statistics of the World Economy: 1-2008 AD”. De acordo com os dados revisados calculados por The Conference Board for Total Economy Database de 2015, a Etiópia e a Tanzânia tinham, em 1950, um PIB per capita marginalmente maior do que o da China. Isso evidentemente não afeta o estudo de forma significativa. 6 As PPCs do Banco Mundial de 1978 não estão disponíveis, mas, levando em consideração o primeiro ano para o qual o Banco Mundial disponibiliza os números do PPC, ou seja, 1980, ainda assim menos de 1% da população mundial vivia em países com um PIB per capita menor do que o da China, enquanto 74% vivia em países com um PIB per capita maior. 5

97

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

Gráfico 1. População mundial vivendo em países com PIB per capita maior e menor do que a China entre 1978 e 2012 (%)

1978

1983

1988

1993

1998

2003

2008

2012

Fonte: Calculado a partir dos Indicadores de Desenvolvimento Global do Banco Mundial

6. As conquistas sociais sem precedentes da China Ainda que o crescimento econômico da China seja inédito historicamente, deve-se ressaltar que ele é apenas um meio para um fim humanitário e nacional muito mais abrangente. O objetivo da política econômica da China não é o crescimento do PIB, investimentos ou exportações, mas a melhoria do padrão de vida, a prosperidade e a conquista de diversas metas que, juntas, constituem a abrangente “renovação nacional” da China. O desenvolvimento econômico é apenas um meio indispensável para a concretização do “Sonho Chinês”. Isso posto, é importante avaliar as alegações de que “o milagre do crescimento econômico” da China é mais do que neutralizado pelas tendências negativas nas outras áreas. Um exemplo é a alegação de que as conquistas da China entre 1949 e 1978, quando o crescimento econômico acelerado come-

98

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

çou, foram insignificantes – ou até mesmo negativas, a ponto de caracterizarem a China com o termo “niilismo histórico”. Uma alegação semelhante é a de que o crescimento econômico acelerado após 1978 é suplantado pelas tendências negativas nas áreas social e ambiental, entre outras. É evidente que o objetivo da “prosperidade” nacional, que abarca questões nacionais e humanas reais, não pode ser considerado alcançado se o crescimento econômico for neutralizado pela deterioração social, ambiental e em outras áreas. Entretanto, os fatos demonstram claramente que o que se verifica é exatamente o oposto. Em primeiro lugar, as conquistas sociais da China durante o governo de Mao Tsé-Tung foram maiores do que em qualquer outro país em toda a história – e isso é afirmado por aquele que apoia declaradamente as políticas econômicas chinesas pós-1978, inauguradas por Deng Xiaoping, em detrimento da economia centralizada pré-1978. As alegações de um “niilismo histórico” são, portanto, falaciosas. De modo semelhante, os fatos demonstram claramente que as consequências dos fatores sociais e econômicos, entre outros, passam longe de ser negativas para o desenvolvimento chinês pós-1978. Ao contrário, o efeito combinado desses indicadores é significativamente maior do que seria esperado considerando apenas o nível de desenvolvimento econômico chinês. Esses fatos, evidentemente, não significam que a China não enfrente diversos problemas reais nas áreas social e ambiental. A poluição atmosférica e a baixa qualidade do ar na China chamam a atenção de todos com frequência e de forma bastante visual. No entanto, elas são uma lembrança de que o crescimento econômico e o PIB per capita não são apenas fatores “econômicos” com consequências sociais neutras. Eles são, na realidade, relacionados de forma acentuada, íntima e positiva com melhorias humanas sociais altamente desejáveis, como uma maior expectativa de vida, com saúde, lazer e proteção ambiental melhores. Levando em conta essa correlação do PIB per capita com outros objetivos desejáveis do desenvolvimento chinês (ou de qualquer outro país) nas áreas social, ambiental, cultural, entre outras, esses fatores não podem ser avaliados apenas em comparação com outros países com níveis similares de desenvolvimento, sem levar em consideração os níveis de desen-

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

99

volvimento econômico. Esses estudos comparativos não apenas demonstram que o crescimento econômico da China melhorou a qualidade de vida – tanto em termos domésticos quanto em comparação com o resto do mundo –, como demonstram também, de modo calculável e verificável, que as consequências sociais positivas da transformação econômica da China são ainda maiores do que suas conquistas econômicas. Primeiro os fatos serão apresentados e, em seguida, serão analisados os motivos que os geraram.

7. Acontecimentos pré-1978 As conquistas econômicas da China após 1978 foram analisadas acima. Entretanto, seria um equívoco não incluir as enormes conquistas sociais que ocorreram no período “pré-reforma”, ou seja, entre 1949 e 1978. Nesse período ocorreram os maiores avanços já conquistados por um país de destaque na história, com um aprimoramento das condições sociais e de vida para um número bem maior e para uma proporção maior de pessoas, sem precedentes em qualquer outro país. Isso evidentemente torna possível uma avaliação completa e decisiva sobre o período de reforma pré-1978, além de colocar em uma perspectiva adequada as diversas questões da história da China e de viabilizar um entendimento de aspectos da dinâmica interna no país.

8. Expectativa de vida e bem-estar humano É consenso que o critério mais abrangente para avaliar o impacto geral das condições sociais e ambientais de um país é a expectativa de vida média desse país – uma vez que ela resume e permite uma análise ponderada do efeito combinado de todas as tendências econômicas, sociais, ambientais, educacionais, de saúde, etc., positivas e negativas. A expectativa de vida é, portanto, uma medida mais adequada de bem-estar social do que apenas o PIB per capita, por mais significativo que este seja, e apesar do PIB per capita ser o maior

100

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

de todos os determinantes da expectativa de vida. Como colocou o ganhador do Prêmio Nobel Amartya Sen, sobre a relação entre essas variáveis: A renda pessoal é sem dúvida um determinante básico da sobrevivência ou da morte e, de modo mais geral, da qualidade de vida de uma pessoa. Entretanto, a renda é apenas uma das variáveis entre todas que afetam nossas chances de desfrutar da vida (...). O produto nacional bruto per capita pode ser um bom indicador da renda real média de uma nação, mas a renda a que as pessoas realmente terão acesso dependerá também do padrão de distribuição da renda nacional. Igualmente, a qualidade de vida de uma pessoa não depende apenas de sua renda pessoal, mas também de muitas outras condições físicas e sociais: acesso a tratamentos de saúde e seguros médicos – públicos e privados – são alguns dos fatores que mais influenciam a vida das pessoas. Além disso, há também outros serviços sociais, como a educação básica, a organização da vida pública e o acesso a tratamentos médicos modernos. Há, portanto, muitos fatores além da renda pessoal que podem ser determinantes para a expectativa e para a qualidade de vida das pessoas. (SEN, 1998, p. 6)

O Gráfico 2 mostra a primeira conquista de longo prazo da República Popular da China – a progressão da expectativa de vida – em comparação com a Índia, outra grande economia em desenvolvimento.7 Em 1947, ano em que a Índia conquistou sua independência, a expectativa de vida no país era de 32 anos. A expectativa de vida na China em 1949, o ano da criação da República popular da China, era de 35 anos, uma diferença de três anos em comparação com a Índia. Em 1978, o último ano antes da reforma da China, a expectativa de vida na China era de 67 anos e, na Índia, de 55 – uma diferença de 12 anos. Essa marcante acentuação da diferença não se deu porque os números da ÍnA Índia apresenta a comparação mais interessante porque é o único país comparável à China em termos populacionais, porque conquistou a independência do Reino Unido em 1947, quase no mesmo tempo em que a República Popular da China foi criada, e porque a expectativa de vida no país na época era semelhante à da China. 7

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

101

dia foram insatisfatórios – como fica demonstrado pelo aumento de 22 anos na expectativa de vida em um período de 32 anos; foi simplesmente porque o desempenho da China foi sensacional, com um aumento de 32 anos na expectativa de vida ao longo de 29 anos. Isso significa que a expectativa de vida na China antes da reforma aumentou mais do que um ano por ano decorrido, uma média de aumento anual de 2,3%. Gráfico 2. Expectativa de vida – China e Índia (anos)

Fonte: China 1949: BERGAGLIO, Maristella. “Population Growth in China: The Basic Characteristics of China´s Demographic Transition”. Índia 1947 e 1951: Dr. Poonam Kuruganti. “Healthcare achievements of post – independent India”. 1960-2011: Indicadores de Desenvolvimento Mundial do Banco Mundial

Para entender a verdadeira escala dessa conquista, em termos comparativos, é necessário apenas observar que a taxa de aumento da expectativa de vida na China nas três décadas após 1949 foi a mais alta já registrada em um país dessa relevância na história. Para fins de comparação: t Os Estados Unidos, nos 30 anos que se seguiram a 1880, ou seja, em um período de acentuado crescimento decorrente da recuperação da guerra civil, obteve um aumento anual da expectativa de vida de 0,9%.8 8

Calculado a partir de .

102

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

t A expectativa de vida no Reino Unido após 1871, um período de rápido crescimento, era menor do que 1,0% ao ano.9 t O Japão, considerado um país com um histórico excelente de aumento da qualidade de vida, e tendo desfrutado de um rápido crescimento devido à recuperação da 2ª Guerra Mundial, aumentou a expectativa de vida em 1,3% ao ano nos 29 anos que se seguiram à 1947.10 O aumento da expectativa de vida na China de 2,3% entre 1948 e 1978 superou de longe o de todos esses países cujos índices são considerados excepcionais quando comparados a padrões normais.

9. Quando a expectativa de vida aumentou? Esse avanço social espetacular e sem precedentes que ocorreu entre 1949 e 1979 não invalida a análise geral de que o desenvolvimento econômico nesse período foi menos rápido do que no “Período Deng Xiaoping”, após 1978, tampouco invalida os julgamentos políticos acerca do Grande Salto Adiante ou da Revolução Cultural. Mas ele demonstra claramente que as tentativas de apresentar o período pré-1978 sob um prisma social negativo, como “niilismo histórico”, ou ainda como um desastre social, como é representado em diversos livros no ocidente, é, sem meias palavras, uma mentira estrondosa. Alegações como as de Dikötter (2011, p. 11) de que a China teria “decaído ao inferno” são verdadeiramente risíveis. Nos 27 anos entre a criação da República Democrática da China, em 1949, e a morte de Mao Tsé-Tung, em 1976, a expectativa de vida na China aumentou 31 anos, ou seja, mais de um ano por ano cronológico. Para fins de comparação, 27 anos após a independência da Índia, a expectativa de vida média aumentou 19 anos. Longe de serem negativos, os índices chineses nesse período foram um dos feitos sociais mais extraordinários da história.

9 10

Calculado a partir de Longevity Science Advisory Panel (2012). Calculado a partir de .

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

103

10. A China apresenta a mais rápida melhoria nos padrões de vida do mundo Os anos pós-1978 serão agora abordados. A análise começará com o impacto mais direto do crescimento do PIB na prosperidade e nos padrões de vida da China: o aumento do consumo de bens e serviços pela população. Ainda que o consumo não seja o único determinante dos padrões de vida, como será explorado a seguir, ele é, de todo modo, crucial. A Tabela 2 demonstra as taxas de crescimento do consumo das principais economias: o G8 e o BRIC. São apresentados tanto o aumento do consumo das famílias quanto o aumento do consumo total (incluindo não apenas o consumo das famílias, mas também a despesa pública em áreas essenciais para a qualidade de vida, tais como a saúde e a educação). Levando-se em conta o tamanho da China, e na tentativa de estabelecer uma comparação adequada, foram elencadas as maiores economias em detrimento de Estados relativamente pequenos, como o Caribe. Entretanto, mesmo com a inclusão de economias menores, a China ainda se destacaria como o país com a mais rápida taxa de crescimento do mundo tanto em relação ao consumo das famílias quanto ao consumo total. O período fundamental de comparação apresentado na Tabela 2 inclui os anos desde os primórdios da reforma da China, em 1978, até o último ano para o qual se pode compilar dados disponíveis de consumo total para todos os países, ou seja, 2002. Entretanto, como não há informações disponíveis para a Rússia antes de 1990, uma comparação relativa aos anos entre 1990 e 2012 é também apresentada. As tendências demonstradas na Tabela 2 são claras. O aumento anual médio da China em consumo total foi de 7,9% entre 1978 e 2012, e 8,5% entre 1990 e 2012. O aumento do consumo das famílias no mesmo período foi de 7,7% e 8,1%. A China possui, portanto, as taxas de crescimento mais altas do mundo, sem sombra de dúvidas, tanto em relação ao consumo das famílias quanto em relação ao consumo total, que é o fator mais relevante para a determinação da qualidade de vida.

104

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Tabela 2. Variação % anual – medida em dólares 2005 com ajuste inflacionário  

Consumo das Famílias

 

Consumo total

1978-2012

1990-2012

1978-2012

1990-2012

China

7,7%

8,1%

7,9%

8,5%

Índia

5,3%

5,9%

5,4%

5,9%

Rússia

n/a

4,1%

n/a

3,2%

Brasil

3,2%

3,7%

3,2%

3,3%

EUA

3,0%

2,9%

2,7%

2,6%

Canadá

2,7%

2,8%

2,4%

2,5%

Reino Unido

2,8%

2,4%

2,4%

2,3%

França

1,8%

1,5%

1,9%

1,6%

Alemanha

1,6%

1,2%

1,5%

1,3%

Japão

2,1%

1,1%

2,3%

1,4%

Itália

1,7%

0,8%

1,6%

0,8%

Fonte: Calculado a partir dos Indicadores de Desenvolvimento Global do Banco Mundial

11. Redução da pobreza Os números acima demonstram mudanças médias no consumo. Entretanto, talvez a mais importante das estatísticas da China, do ponto de vista do bem -estar humano, seja sua contribuição para a redução da pobreza humana (não apenas dentro de suas próprias fronteiras, mas também levando em conta o impacto na redução na pobreza global). Isso demonstra claramente que, ainda que a desigualdade da China tenha chegado a níveis excessivamente altos, que carecem de medidas corretivas – o que é reconhecido pelo país –, é um equívoco argumentar que o desenvolvimento econômico da China beneficiou apenas os mais ricos. São as melhorias para os mais pobres e as melhorias no bem-estar humano que mais surpreendem. Levando em conta as tendências globais das últimas três décadas, a China retirou 728 milhões de pessoas da pobreza, de acordo com a definição internacional do Banco Mundial. O resto do mundo, junto, retirou apenas 152

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

105

milhões. Isso vai muito além de uma simples estatística econômica, como será demonstrado. É uma revolução na vida de 728 milhões de pessoas que afeta tudo, desde o tempo que vivem até a habilidade que têm de tomar decisões relevantes na vida. A China retirou da pobreza o equivalente a quase o dobro da população dos Estados Unidos, 40% a mais pessoas do que toda a população da União Europeia e mais do que toda a população de todo o continente latino-americano. As conquistas da China afetam sobretudo as mulheres, por elas serem os membros mais pobres da sociedade no mundo. Essas conquistas demonstram que a China fez muito mais pelos direitos humanos do que qualquer outro país do mundo. Para tornar essas tendências ainda mais claras, o Banco Mundial calcula o número de pessoas que vivem na pobreza ao redor do mundo por um critério de despesa de US$ 1,90 por dia. Esse cálculo é ajustado para diferentes níveis de preço em diferentes países através da PPC; ou seja, há uma adequação para os diferentes padrões de preços em diferentes países. Com base nesse critério, em 1981, 2 bilhões de pessoas viviam na pobreza no mundo. Em 2010, o último ano para qual os dados estão disponíveis, inclusive para a China, esse número havia reduzido para 1.120 milhões. O número de pessoas no mundo que vive na pobreza foi reduzido em 880 milhões, 728 milhões das quais viviam na China, e 152 milhões no resto do mundo. A China é responsável, portanto, por 83% da redução dos números mundiais de pessoas vivendo na pobreza. No entanto, o fracasso dos países capitalistas e o sucesso dos socialistas foi ainda mais surpreendente do que esses números. Das 152 milhões de pessoas fora da China, mais do que 30 milhões foram retiradas da pobreza no Vietnã, um país socialista. Portanto, juntos, os países socialistas retiraram 760 milhões de pessoas da pobreza, ao passo que todo o mundo capitalista conseguiu retirar apenas cerca de 120 milhões. Os países socialistas foram responsáveis por mais de 85% da redução do número de pessoas que viviam na pobreza no mundo; e os países capitalistas, por menos do que 15%. Esses dados mostram ainda quão fraudulenta é a alegação de que é o “capitalismo” que está conseguindo reduzir a pobreza na China. Se o capitalismo fosse um sucesso na redução da pobreza, a grande maioria da redução

106

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

da pobreza teria ocorrido no conjunto de países capitalistas, não na China socialista. Mas as informações demonstram claramente que menos do que 15% da redução da pobreza mundial ocorreu nos países capitalistas. Por outro lado, 85% ocorreu em dois países socialistas, sobretudo na China. Pode-se também observar que o sucesso da China não se deveu a um “nivelamento por baixo”, às custas de um aumento geral nos padrões de vida. Como já observado, a China teve o aumento mais rápido no consumo do que qualquer outro país. A alegação que às vezes aparece na mídia de que o consumo cresce mais lentamente na China é simplesmente uma fraude. A China teve, ao contrário, o maior crescimento de consumo no mundo.

12. Consequências indiretas da redução da pobreza Considerando essas tendências na renda, no consumo e nos padrões de vida, é quase impossível exagerar ao descrever a contribuição do progresso econômico da China não só para seu povo, como também para toda a humanidade. Mas é também claro que o impacto gigantesco para o bem-estar humano não se deu apenas por meio de seus efeitos diretos na renda e na despesa pessoais, mas por meio das consequências indiretas para o bem-estar humano. Na verdade, estes fatores indiretos são possivelmente tão importantes quanto os aumentos diretos no consumo. Como Sen observa: A expectativa de vida tem uma relação significativamente positiva com o PNB per capita, mas (...) essa relação se dá sobretudo por meio do impacto do PNB (1) especificamente nas rendas dos pobres, e (2) nas despesas públicas, sobretudo na saúde pública. Na verdade, quando essas duas variáveis são incluídas na relação estatística, a relação entre o PNB e a expectativa de vida desaparece completamente. Isso não significa, é claro, que a expectativa de vida não aumente com o crescimento do PNB per capita, e sim que a conexão se dá por meio da despesa pública com saúde e redução da pobreza. (SEN, 1998, p. 9)

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

107

As consequências para os padrões de vida e para o bem-estar humano de fatores outros do que os aumentos do PIB per capita e do consumo serão, portanto, analisadas.

13. Expectativa de vida e condições sociais gerais É evidente que o aumento do consumo na China – refletido materialmente na qualidade do alimento, da moradia, das férias, dos telefones, dos carros, dos móveis, dos cuidados com a saúde, etc. – é um fator decisivo para a determinação dos padrões de vida e para a criação de uma base para a prosperidade. O número de smartphones, carros, usuários de internet, férias no exterior etc. cresce rapidamente na China e é um reflexo disso. Entretanto, tenta-se às vezes alegar que o enorme aumento do consumo mensurável na China é contraposto por outros fatores como, por exemplo, serviços de saúde insatisfatórios, deterioração do meio ambiente, etc. Os fatos, entretanto, provam o contrário. Os dados sobre o impacto das condições sociais, da saúde, do meio ambiente, da educação, entre outros, demonstram que a expectativa de vida na China é melhor do que o esperado levando em conta apenas o crescimento econômico. É evidente que isso não indica, mais uma vez, que não haja pontos negativos, e nem é isso que está sendo argumentado. Indica apenas que os pontos negativos são clara e consideravelmente compensados pelas tendências negativas da China. Esse fato pode ser testado objetivamente. Como previamente observado, a expectativa de vida é o indicador mais sensível das condições de vida como um todo. Anteriormente, para avaliar o período pré-1978, foi feita uma comparação entre a China e o segundo maior país em desenvolvimento, a Índia. Não existem dados comparativos abrangentes que abarquem todos os países desde 1949. Entretanto, para o período pós-1978, é possível realizar uma comparação sistemática com a maioria dos países. Apresentando um panorama geral, o Gráfico 3 confirma claramente como, em todo o mundo, a expectativa de vida é essencialmente determinada pelas consequências diretas e indiretas do PIB per capita de um país. Ela

108

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

demonstra a correlação do PIB per capita e da expectativa de vida em 2011, o último ano para o qual há dados internacionais abrangentes disponíveis antes da redação deste estudo. Ela abrange todos os 117 países que possuíam registros anuais desde 1980 a 2011. Esses Estados incluem a enorme maioria da população mundial. Pode-se notar que as diferenças no PIB per capita representam 71% das diferenças na expectativa de vida. Gráfico 3. PIB per capita (em PPCs corrente) e Expectativa de Vida (em anos) –

Expectativa de vida

2011

PIB per capita (PPC corrente) – escala logarítmica Fonte: Calculado a partir dos Indicadores de Desenvolvimento Global do Banco Mundial, com todos os países com dados disponíveis entre 1960-2011.

Para explorar essa correlação com os dados mais abrangentes disponíveis, o Gráfico 4 apresenta a relação entre o PIB per capita e a expectativa de vida para todos os países em todos os anos entre 1980 e 2011, para os quais há disponíveis estatísticas comparativas do Banco Mundial. Levando em conta essa amostragem maior, o PIB per capita constitui 73% das diferenças na expectativa de vida entre os países. Ou seja, o PIB per capita é sem dúvida o fator mais decisivo para a expectativa de vida.

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

109

Grafico 4. PIB per capita (em PPCs corrente) e Expectativa de vida

Expectativa de vida

(em anos) – 1980-2011

PIB per capita (PPC corrente) – escala logarítmica Fonte: Calculado a partir dos Indicadores de Desenvolvimento Global do Banco Mundial, com todos os 117 países com dados disponíveis entre 1960-2011.

14. Outros fatores determinantes da expectativa de vida além do PIB Os dados acima demonstram, antes de tudo, que a expectativa de vida cresce rapidamente com aumentos do PIB per capita – internacionalmente, em média, dobrar o PIB per capita acrescenta 4 anos e 6 meses à expectativa de vida dos homens e 5 anos à das mulheres. Isso é, por si só, um fato essencial para a discussão do desenvolvimento internacional, e também para a discussão sobre a China. O aumento do PIB tem consequências sociais e individuais gigantescas, ou seja, aumentar o PIB per capita não é “neutro” socialmente, e sim altamente positivo. Antes de qualquer coisa, isso demonstra que o rápido crescimento econômico da China é uma enorme contribuição para o bem-estar do seu povo. Um julgamento preciso sobre a China foi feito por David Pilling, no Financial Times: “A expectativa de vida mais do que dobrou, ao passar de 35 anos, em 1949, para 75 anos, nos dias de hoje. Um feito miraculoso” (PILLING, 2013, online).

110

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Ainda assim, mesmo que quase 3/4 das diferenças na expectativa de vida entre os países sejam explicadas pelo PIB per capita, isso significa igualmente que pouco mais de 1/4 dessas diferenças é determinada por outros fatores, demonstrando novamente que a expectativa de vida é um indicador relevante do bem-estar social geral. Essas diferenças medem efeitos ambientais, educacionais, de saúde etc., positivos ou negativos, além do efeito mais relevante quantitativamente, o PIB per capita. Em 2011, com base nas médias internacionais, a expectativa de vida na China seria de 70 anos, com base no PIB per capita; mas, de acordo com os dados do Banco Mundial, era de 73. Para fins de comparação, a expectativa de vida nos EUA deveria ser de 81 anos, mas, na verdade, era de 79. Na China, portanto, as pessoas viviam três anos a mais do que o esperado com base em seus níveis de desenvolvimento econômico, enquanto que a expectativa de vida nos EUA é de dois anos a menos do que o esperado com base no mesmo critério. Os dados da China, portanto, demonstram claramente que o serviço de saúde, o meio ambiente, a educação, dentre outros, longe de serem fatores negativos, aumentam a expectativa de vida, enquanto que, nos EUA, diminuem-na.

15. O que a expectativa de vida demonstra sobre as condições sociais na China Uma análise mais abrangente confirma essas tendências significativas. É relativamente simples comparar o desenvolvimento econômico de um país com sua expectativa de vida. A comparação entre a posição de um país no PIB per capita global e sua classificação quanto à expectativa de vida demonstra se outros fatores, além do PIB per capita, estão fazendo com que a população de um país viva mais ou menos em comparação com o que seria esperado exclusivamente em decorrência de seu nível de desenvolvimento econômico. A Tabela 3 demonstra, portanto, a classificação do PIB per capita e da expectativa de vida das principais economias, ou seja, o G7 e as economias

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

111

em desenvolvimento do BRIC. Elas são subdivididas nas sete principais economias avançadas e as quatro principais economias em desenvolvimento. Como demonstrado, a China fica em 86º lugar em PIB per capita, mas em 75º em expectativa de vida. Ou seja, a expectativa de vida na China é 11 posições acima do que seria esperado com base em seu nível de desenvolvimento econômico. Tabela 3. Comparação do Ranking Mundial de Expectativa de vida e PIB per capita para economias do G7 e do BRIC em 2011 Ranking mundial de expectativa de vida

País

Posição da expectativa de vida em comparação com Posição do PIB per capita

Economias em Desenvolvimento China

75

+11

Brasil

78

-10

Rússia

104

-60

Índia

119

-3 Economias Avançadas

Japão

3

+22

Itália

6

+20

França

12

+12

Canadá

18

-1

Reino Unido

21

+2

Alemanha

23

-4

EUA

34

-23

Fonte: Calculado a partir dos Indicadores de Desenvolvimento Global do Banco Mundial

A China teve a expectativa de vida mais longa de todas as economias em desenvolvimento do BRIC, marginalmente acima do Brasil, mesmo que ainda não tenha o maior PIB per capita entre elas. A expectativa de vida era de 66 anos na índia, 69 na Rússia, 73 anos e cinco meses no Brasil e 73 anos e seis meses na China; apesar do PIB per capita no Brasil ser 29% maior do

112

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

que o da China, e do PIB per capita da Rússia ser mais do que o dobro do da China. Esses dados são muito reveladores para discussões acerca das condições socioeconômicas da China. Como a população da China vive um tempo significativamente maior do que o esperado, considerando o desenvolvimento econômico da China, qualquer alegação de que o crescimento acelerado do PIB ou do consumo na China seria compensado por índices ruins de saúde, qualidade de vida, meio-ambiente, entre outros, é falsa. O que se verifica é o contrário. A expectativa de vida na China é três anos maior do que o esperado com base no PIB per capita, o que demonstra que os resultados positivos de fatores como a saúde, o meio ambiente, a educação, entre outros, sobrepõemse significativamente aos negativos. Os indícios são, portanto, claros. O meio ambiente, a saúde e outros fatores que afetam a qualidade de vida são superiores na China ao que seria esperado com base no seu nível de desenvolvimento econômico.

16. Quando a China se tornará uma economia de renda alta? Finalmente, antes de passarmos para as tendências futuras, discutiremos quanto tempo levará para que a China se torne uma economia de renda alta – ou seja, para que alcance a prosperidade com base em padrões mundiais –, levando em conta que o país já fez sua transição de uma economia pobre para uma economia de renda média, de acordo com critérios internacionais. Como não falta muito para que isso seja alcançado, o cálculo é um tanto fácil. Caso seja alcançada a meta de crescimento do PIB anual de 6,5%; do Plano Quinquenal mais recente, de 2020; a China alcançará o status de “renda alta” de acordo com os critérios do Banco Mundial dentro de dez anos. Levando em conta os critérios internacionais do Banco Mundial, as economias de “renda alta” representam atualmente pouco mais do que 19% da população mundial com dados disponíveis sobre a Renda Nacional Bruta. Entretanto, somente a China abarca pouco menos do que 19% da população

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

113

mundial. A população da China é, portanto, quase igual a toda a população que já vive em economias de renda alta. Com a China se tornando uma economia de renda alta, o número de pessoas que vivem em economias de renda alta no mundo praticamente dobra. Esse é, sem comparação, o maior aumento na porcentagem da população mundial que vive em economias de renda alta na história.

17. O teste da crise financeira internacional Deixemos de lado o tema do sucesso econômico de longo prazo da China para tratarmos do grande teste enfrentado mais recentemente por sua estrutura econômica socialista e pelo seu pensamento econômico superiores ao Ocidente. O desempenho econômico comparativo das economias mais importantes desde o início da crise financeira internacional pode ser analisado com esse propósito. Como demonstrado no Gráfico 5, nos primeiros oito anos da crise financeira, iniciada em 2007, a economia da China cresceu 92,8% (em comparação a 9,9% dos EUA, 6,8% da Alemanha e 0,9% do Japão). A média de crescimento médio anual da China no período foi de 8,6% (em comparação a 1,2% dos EUA, 0,8% da Alemanha e 0,1% do Japão). O crescimento da China foi mais do que sete vezes mais rápido do que o dos EUA e mais do que dez vezes mais rápido do que o da Alemanha. O desempenho excepcional da economia da China nesse período é evidentemente incrível. A enorme disparidade no crescimento gerou, por sua vez, outros resultados globalmente divulgados: a produção industrial da China ultrapassou a dos EUA, a China se tornou a maior economia do mundo em comércio de bens, etc. O resultado foi, de modo geral, uma das maiores mudanças na balança de poder econômico global já testemunhadas em tempos de paz em um período tão curto na história.

114

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Gráfico 5. PIB: Mudança entre 2007 e 2015 (%) Inflação: preços constantes

Fonte: Calculado a partir do Relatório Perspectivas da Economia Mundial, do FMI, de abril de 2016.

18. O teste dos 36 anos O sucesso da China em atravessar a crise financeira internacional de forma muito mais bem-sucedida do que as economias ocidentais é condizente com suas conquistas econômicas de longo prazo. Por mais significativos que sejam os eventos dessa profunda crise econômica – que já dura oito anos –, não devemos esquecer que a China já passou por um teste muito mais decisivo para demonstração da superioridade da sua política e de seu pensamento econômicos em comparação ao ocidente, durante um período de mais de três décadas. É difícil pensar em um teste histórico mais abrangente. Os resultados desse período podem também ajudar a esclarecer a natureza do sistema econômico chinês. A enorme maioria das recomendações das instituições ocidentais para a China durante seu período de reforma econômica dizia que o país deveria adotar políticas – incluindo a privatização completa – que vieram a ser co-

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

115

dificadas nas estratégias econômicas da Rússia e da Europa Oriental, após 1989, e da URSS, durante sua dissolução, em 1991. Elas ficaram popularmente conhecidas como terapia de choque, ainda que não fossem exatamente isso. Entretanto, o chinês Justin Yifu Lin, ex-economista-chefe e vice-presidente sênior do Banco Mundial, definiu precisamente os resultados do teste entre as abordagens contrastantes da China e das recomendações da maioria das economias ocidentais: A China iniciou sua reforma no final de 1978 (...). Ela se saiu muito melhor do que a antiga União Soviética e do que os países da Europa Oriental que adotaram a terapia de choque proposta pelas teorias dominantes. O ponto de vista predominante entre os acadêmicos estrangeiros era que a economia de mercado era melhor, que a economia planificada era ruim, e que o sistema duplo que combinava a economia planificada com a economia de mercado era ainda pior. A teoria dominante (ocidental) insistia que os países socialistas deveriam dar um salto de uma economia planificada para uma economia de mercado de uma só vez. (LIN, 2012, p. 154)

Mas a prova factual, prática, foi decisiva. Ao comparar os resultados das políticas praticadas pela China, com a maior parte dos conselhos ocidentais, Lin observa: Desde o início, as políticas [chinesas] geraram um ceticismo disseminado nos círculos acadêmicos internacionais. Mas, indo contra a onda pessimista, a economia chinesa obteve uma conquista incrível após a outra, produzindo o “milagre chinês”, com trinta anos consecutivos de crescimento acelerado. (LIN, 2012, p. XV)

Lin é muito comedido ao apresentar o contraste desse modo, levando em conta a escala do que realmente ocorreu. A China passou, durante esse período, como já observado, pelo crescimento econômico sustentado mais rápido na história, e pela melhoria nos padrões de vida mais acelerada do que

116

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

em qualquer outro dos principais países do mundo. A China, cuja economia era menor do que 1/4 da norte-americana, tem hoje uma economia que está ultrapassando os EUA em PPC. Por outro lado, a Rússia, que seguiu as políticas defendidas pelas instituições econômicas ocidentais, passou pelo maior colapso econômico já sofrido em tempos de paz por um país dessa relevância desde a Revolução Industrial. Após 1991, a economia da Rússia retraiu quase 40%, a expectativa de vida dos homens diminuiu em seis anos, passando para apenas 58 anos em 1998, e em 2013 a população da Rússia foi reduzida em 4,6 milhões de pessoas em comparação com os números de 1991. O crescimento do PIB médio anual da Rússia entre 1991, o último ano da URSS, e 2014 foi de 1,0%; em comparação com os 10,2% da China. Na Ucrânia, o segundo maior Estado da antiga URSS, o resultado foi ainda pior. Em 2014, o PIB da Ucrânia chegava a ser 29% menor do que em 1991. Ou seja, a Ucrânia obteve um crescimento líquido negativo em um período de 23 anos. A China, ao seguir seu próprio caminho, concretizou grande parte do “Sonho Chinês”, tendo chegado mais próxima da “regeneração nacional completa”; enquanto que a Rússia, seguindo as recomendações do Banco Nacional e de outras instituições ocidentais, sofreu uma catástrofe econômica e nacional. Essa é a prova clara da superioridade da estratégia econômica e do pensamento da China em comparação com os do Ocidente.

19. Diferenças na estrutura econômica Neste tópico abordaremos as explicações estruturais dessas tendências. Uma dificuldade em entender corretamente a superioridade do sistema econômico chinês, ou seja, em entender que a China não é uma economia capitalista, e sim uma economia “socialista de mercado”, leva inevitavelmente a uma má compreensão da dinâmica relativa da China e das economias ocidentais. As diferenças entre a estrutura econômica da China e do Ocidente são claras. Para destacar alguns aspectos macroeconômicos:

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

117

(i) A economia da China é muito mais aberta para o comércio internacional do que a dos EUA; (ii) O nível de investimento fixo, definido a partir de uma porcentagem da sua economia, é muito maior do que o dos EUA; (iii) A China utiliza métodos diretos de indução pelo Estado para alterar seu nível de investimento, além de políticas monetárias e fiscais, enquanto que os EUA rejeitam investimentos Estatais e limitam-se a um gerenciamento macroeconômico quase que exclusivamente das políticas monetárias e fiscais; (iv) Para regular seu nível de investimento, a China tem um grande setor público, além de um setor privado, ao contrário dos EUA, que rejeitam o setor público por motivos ideológicos. Mas é a economia da China que tem tido um desempenho superior, e as economias ocidentais têm crescido muito mais devagar comparativamente. São essas diferenças estruturais que explicam o motivo da economia da China ter crescido tão rapidamente, ao contrário das economias ocidentais. Como será demonstrado, a política econômica e a estrutura econômica da China geraram um crescimento econômico maior do que o do Ocidente por estarem mais alinhadas com as forças que impulsionam o crescimento econômico do que as do Ocidente. Em suma, não é a estrutura da economia da China que é o problema, mas a do Ocidente.

20. O Gerenciamento Macroeconômico Superior da China As questões do crescimento de longo prazo da China, que já foram analisadas, e seu gerenciamento macroeconômico de curto prazo são inter-relacionadas e, além disso, demonstram claramente a natureza socialista – e não capitalista – da estrutura econômica da China. Será demonstrado abaixo que a estrutura econômica da China não apenas gera um crescimento no longo prazo melhor do que a do Ocidente, mas também que fornece ferramentas macroeconô-

118

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

micas de curto prazo poderosas e muito superiores às das economias capitalistas do Ocidente. Isso explica não apenas o crescimento econômico muito mais rápido da China do que nas economias ocidentais, como também seu desempenho econômico incrivelmente melhor do que o dos EUA e de outras economias ocidentais; o que, por sua vez, responde a questões essenciais da teoria econômica. Para ilustrar a superioridade do sistema de gerenciamento macroeconômico chinês, os fatos relativos aos ciclos econômicos nos EUA e nas outras economias ocidentais serão, primeiramente, apresentados e, então, a alternativa superior possibilitada pela estrutura econômica da China será analisada. Isso demonstrará a superioridade da estrutura macroeconômica do “mercado socialista” chinês em comparação com a do Ocidente não só em sua habilidade de gerar desenvolvimento econômico rápido, como também em sua habilidade de regular os ciclos comerciais no curto prazo. Essas questões estão integradas à natureza socialista do sistema econômico chinês.

21. O que motiva os ciclos comerciais? Para analisar o gerenciamento macroeconômico de curto e médio prazo, é necessário observar que é um erro aritmético elementar acreditar que, pelo consumo constituir a maior parte do PIB dos EUA e de qualquer economia ocidental, mudanças no consumo controlam os ciclos comerciais capitalistas no Ocidente e nos EUA. Na verdade, uma vez que variações percentuais relativas no investimento fixo são muito maiores do que as mudanças no consumo, são acima de tudo as flutuações no investimento que determinam as mudanças na economia durante as principais flutuações nos ciclos comerciais. Essa realidade dos ciclos comerciais pode ser vista claramente na mais clássica das derrocadas econômicas: a Grande Depressão americana pós-1929. O colapso pós-1929 foi gerado por uma drástica diminuição dos investimentos fixos dos EUA. Como demonstrado no Gráfico 6, entre 1929 e 1933, durante o colapso econômico que inaugurou a Grande Depressão, os investimentos fixos privados dos EUA caíram 69%, um declínio mais do que duas vezes mais

119

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

severo do que a queda no PIB dos EUA. Por outro lado, o declínio do consumo das famílias foi de apenas 18%, menor do que a queda de 26% no PIB dos EUA no período. O Gráfico 6 demonstra ainda – em relação às tendências dos diferentes componentes do PIB dos EUA – que, em 1938, último ano antes da 2ª Guerra Mundial: t O consumo das famílias nos EUA e a despesa pública tinham subido para níveis acima dos verificados em 1929; t O investimento fixo privado dos EUA permaneceu 39% abaixo do nível de 1929. Gráfico 6. Componentes do PIB dos EUA ($ variação em 1929 – preços 2009)

Consumo das famílias Despesas públicas Investimento Fixo Privado

Fonte: Calculado com base na Análise Econômica do NIPA, Tabela 1.1.3.

A combinação da recuperação no consumo e da incapacidade de recuperação do investimento privado explica o porquê de, em 1938, o PIB dos EUA estar apenas 2% acima do seu nível em 1929; uma média de crescimento anual ao longo de quase uma década de apenas 0,2%. As mudanças no investimento fixo privado, portanto, controlavam não apenas o crescimento econômico dos EUA no longo prazo, mas também as flutuações em seus ciclos comerciais; a Grande Depressão foi impulsionada pelo colapso do investimento fixo priva-

120

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

do nos Estados Unidos.11 O consumo dos EUA durante a Grande Depressão flutuou menos do que o PIB, em termos percentuais, mas a flutuação percentual dos investimentos fixos foi muito maior do que as variações no PIB. Será agora demonstrado que o mesmo processo ocorreu nas economias ocidentais durante a crise financeira internacional pós-2008.

22. O que aconteceu no colapso pós-2007 – os EUA O Gráfico 7 demonstra as mudanças nos principais componentes do PIB dos EUA entre 2007 (o último ano antes da crise financeira internacional) e 2009 (o pior momento da “Grande Recessão”), apresentando as primeiras tendências da crise financeira internacional, ou seja, os fatos que pretendemos elucidar. Ao comparar os preços de 2009 com os de 2007 (corrigidos monetariamente), vemos que: t O PIB dos EUA em 2009 era de US$ 455 bilhões; ou 3,1% abaixo dos níveis de 2007; t O consumo das famílias nos EUA era de US$ 195 bilhões; ou 1,9% abaixo dos níveis de 2007; t As exportações líquidas dos EUA tinham crescido US$ 317 bilhões; t O consumo do governo dos EUA havia subido US$ 146 bilhões; ou seja; 4,6%. O consumo total dos EUA, incluindo a despesa pública e o consumo privado, caiu, portanto, apenas US$ 48 bilhões (ou 0,4%) entre 2007 e 2009. Por outro lado: t O estoque privado dos EUA havia sido reduzido em US$ 183 bilhões; t Mas o investimento fixo privado do país era de US$ 766 bilhões; ou 22,4% menor do que os níveis de 2007. A despesa pública fixa era de apenas US$ 28 bilhões; ou 4,5% acima. O investimento fixo geral era de aproximadamente US$ 556 bilhões; ou 17,2% abaixo dos níveis de 2007.12 Keynes acertou em cheio em sua análise sobre isso, e ele lançou mão dos cálculos de Kuznets em The General Theory of Employment, Interest and Money ([1936] 1983, p. 386-392, lançado no Brasil com o título A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. São Paulo: Saraiva Editora, 2012). 12 Utiliza-se a palavra “aproximadamente” porque não é possível agregar de forma precisa, sem falhas, dados a preços constantes encadeados. Entretanto, em um intervalo de tempo tão curto, é improvável que a diferença seja muito significativa. 11

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

121

Gráfico 7. Mudanças nos componentes do PIB dos EUA – 2007-2009 (Preços 2009 US$ bi)

Fonte: Calculado com base na Análise Econômica do NIPA, Tabela 1.5.6.

Isso confirma claramente, portanto, que o padrão verificado na “Grande Recessão” dos Estados Unidos foi o mesmo da Grande Depressão. Apesar do consumo ser uma porcentagem mais alta do PIB do que o investimento, o declínio percentual em investimento fixo foi mais de 40 vezes maior do que a queda percentual total no consumo; 17,2% em comparação a 0,4%; enquanto o declínio percentual total no investimento fixo em dólares, com correção monetária, foi mais de 11 vezes mais severo do que a queda no consumo; US$ 556 bilhões contra US$  48 bilhões. É, portanto, a grave queda no investimento fixo dos EUA que explica a dimensão da “Grande Recessão”. O Gráfico 8 demonstra ainda que a “nova mediocridade” dos EUA, ou seja, o crescimento lento em comparação com padrões históricos, após 2007, foi também causada por uma incapacidade de recuperação do investimento fixo dos EUA. Em 2014, o último ano para o qual se pode estabelecer comparações com a China, o investimento fixo total dos EUA, corrigido monetariamente, foi de apenas US$ 71 bilhões; ou 2,2% acima dos níveis de 2007. Por outro lado, o PIB dos EUA era de US$ 1.475 bilhões; 9,9% acima do nível de 2007; enquanto o consumo doméstico dos EUA era de US$ 1.172 bilhões, ou

122

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

11,7% acima do nível de 2007. Em suma, foi o crescimento extremamente lento do investimento fixo dos EUA que determinou a “nova mediocridade”. Gráfico 8. Mudanças nos componentes do PIB dos EUA – 2007-2014 (preços 2009 US$ bi)

Fonte: Calculado com base na Análise Econômica do NIPA, Tabela 1.5.6.

23. As economias avançadas como um todo Para demonstrar que o mesmo processo da queda do investimento fixo, como ocorreu nos EUA, deu-se em outras das principais economias avançadas ocidentais durante a Grande Recessão, o Gráfico 9 apresenta as mudanças nos componentes do PIB para o total das economias da OCDE entre 2008, o pico do ciclo comercial pré-crise nos países da OCDE, e 2013. Naquela época, o PIB da OCDE cresceu apenas a uma média anual de 0,7%, devido à contração e à lenta recuperação. O Gráfico 9 demonstra que, em 2013: t O consumo das famílias, a despesa pública e o saldo comercial líquido dos países da OCDE estavam todos em níveis pré-crise; t O investimento fixo da OCDE, em PPCs com correção monetária, era de US$ 544 bilhões abaixo dos níveis de 2008.

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

123

A diminuição do investimento fixo, assim como nos EUA, foi, portanto, o fator fundamental que depreciou o PIB da OCDE durante a crise financeira internacional pós-2007. Gráfico 9. Total OCDE: Mudanças nos componentes PIB EUA – 2008-2013 (Total Economias OCDE – Preço Constante PPCs US$ bi)

Fonte: Calculado a partir das Contas Nacionais Trimestrais da OCDE.

Os dados demonstram claramente, portanto, que o mesmo padrão existia em todos os centros econômicos avançados do G7 durante a crise financeira internacional pós-2007, e também nos EUA. Assim como na Grande Depressão da década de 1930, o fator doméstico que motivou a Grande Recessão pós-2007 foi a queda do investimento fixo. O investimento fixo foi, portanto, não apenas um fator essencial nas taxas de crescimento de longo prazo, como também determinou a dinâmica de curto prazo do ciclo comercial. A Grande Recessão pode, na verdade, ser mais adequadamente alcunhada de “A Grande Queda dos Investimentos”. Foi a recuperação inadequada do investimento fixo que gerou o crescimento lento nas economias ocidentais.

124

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

24. China O impressionante contraste com a China é demonstrado no Gráfico 10. Não existem dados disponíveis sobre o saldo comercial líquido em preços correntes para o ano de 2014, mas os dados em preço constante para a China demonstram claramente que qualquer alteração teria sido insuficiente para alterar significativamente a situação. Levando em conta as tendências domésticas entre 2007 e 2014, os dados disponíveis mais recentes para mudanças nos componentes do PIB demonstram que o PIB da China aumentou em RMB (Yan renminbi) 16,5 trilhões; corrigido monetariamente. As variações nos estoques naquele período foram insignificantes. Os três fatores que geraram a expansão do PIB da China foram, portanto (com correção monetária): t A despesa pública aumentou RMB 2,1 trilhões; t O consumo das famílias aumentou RMB 5,7 trilhões; t O investimento fixo aumentou RMB 8,6 trilhões. Ao passo que a Grande Recessão nos EUA e no resto do ocidente foi causada pela queda do investimento fixo, na China o investimento fixo constituiu a maior parte do crescimento econômico rápido. Gráfico 10. China: Mudança nos Componentes Domésticos do PIB – 2007-2014 (Preços RMB com correção monetária)

Fonte: Calculado a partir dos Indicadores de Desenvolvimento Global do Banco Mundial.

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

125

25. O controle macroeconômico do investimento na China É ainda evidente, considerando os dados acima, quais mecanismos macroeconômicos permitiram que a China crescesse muito mais rapidamente do que os EUA e do que as outras economias ocidentais, não apenas no longo prazo, como, sobretudo, após a crise financeira internacional. O crescimento rápido da China deveu-se a um forte aumento do investimento fixo, ao passo que o lento crescimento dos EUA e dos outros países do Ocidente resultou da queda acentuada do investimento fixo. Atendo-se aos fatos e sem entender a dimensão do que estava colocando, o Wall Street Journal resumiu os motivos para o desempenho superior da China de forma inteiramente precisa: A maioria das economias incentiva o crescimento por duas frentes: fiscal e monetária. A China tem uma terceira opção. A Comissão de Reforma e Desenvolvimento Nacional pode acelerar o fluxo de projetos de investimento. (ORLIK, 2012, online)

O sistema de regulação macroeconômica da China, sua “economia socialista de mercado”, demonstrou, portanto, sua habilidade e sua força para conter tendências negativas dos ciclos comerciais, como fez depois de 2007 ao confrontar-se com o maior ciclo comercial após a Grande Depressão. Os mecanismos através dos quais a China obteve crescimento rápido, enquanto os EUA obtiveram crescimento lento, são claros: eles são explicados pelas diferentes tendências no investimento fixo. Mas a questão que deve ser respondida é: quais conclusões podem ser retiradas do fato de a China ter mecanismos de regulação macroeconômica muito mais fortes do que os EUA?

26. Por que a China não teve uma crise de investimento? O motivo pelo qual a China não sofreu problemas com o investimento fixo, como ocorreu com os EUA, é consequência direta das diferenças na estrutura econômica dos dois países. Mais especificamente:

126

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

t A economia da China possui um setor público maior, que pode ser instruído pelo governo a aumentar o investimento fixo; t A base do sistema bancário chinês é estatal e pode, portanto, ser instruída a conceder empréstimos para investimento. A economia da China, diferentemente da americana, possui, portanto, mecanismos estatais que podem assegurar que os fundos disponíveis sejam investidos. Desse modo, durante a crise financeira internacional, a China pôde expandir o investimento fixo, viabilizando um crescimento econômico acentuado, ao passo que o investimento fixo dos Estados Unidos recuou acentuadamente, levando à primeira Grande Recessão e, então, à “nova mediocridade”.

27. Deng Xiaoping – o melhor economista do mundo Ao compararmos as realizações mencionadas acima fica claro a relevância do feito que é a economia de mercado socialista da China, em termos tanto práticos quanto teóricos. Marx realizou uma análise teórica da economia, mas, na prática, antes da reforma econômica da China em 1978, os únicos dois sistemas econômicos que haviam de fato operado no mundo moderno tinham sido o de Adam Smith e o de Stalin (ainda que Adam Smith não tenha criado o capitalismo, ele foi o primeiro a analisá-lo sistematicamente). Mas, a partir de 1978, a China, sob o comando de Deng Xiaoping, criou a primeira alternativa efetiva aos sistemas econômicos de Smith e de Stalin. É essencial esclarecer que Deng Xiaoping não o fez rompendo com Marx – esse é um autoengano do Ocidente –, e sim retornando a Marx. Uma análise textual detalhada sobre a forma como a “economia de mercado socialista da China” é correspondente à proposta de Marx (mais especificamente, a proposta apresentada em Critique of the Gotha Programme13) demonstra que Deng Lançado no Brasil com o título Crítica ao Programa de Gotha (Coleção Marx e Engels. São Paulo: Editora Boitempo, 2012. Sobre a primeira edição, em inglês, acesse https://www.marxists.org/archive/marx/works/1875/gotha.

13

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

127

Xiaoping tinha plena consciência da análise marxista que estava empregando. Mas, mesmo sem uma análise textual, é fácil entender a reforma econômica da China a partir de princípios básicos. A própria palavra “socialista” é derivada de “social”, ou seja, de uma produção “socializada”. O sistema chinês de “Atenha-se ao grande, esqueça o pequeno” (Zhua da fang xiao) significa que a produção socializada de grande escala deve permanecer sob o jugo do Estado, ou seja, controlada pelas mãos socializadas comuns; enquanto que a produção em menor escala deve ser desestatizada, ou seja, sair do setor socializado. Isso corresponde simplesmente ao conceito marxista de que a superestrutura, as formas jurídicas, devem corresponder às relações de produção reais. A habilidade da China de controlar seu nível de investimento, como demonstrado acima, leva precisamente “à posição dominante da propriedade estatal” na economia chinesa, como dito no 3ª Plenário do 18º Congresso do PCC. Isso não significa que o governo detenha ou controle a economia inteira, e tampouco isso é desejável ou alinhado ao pensamento de Marx. Mas significa que o Estado e o setor público são fortes o suficiente para controlar o nível de investimento geral da economia. Camponeses ou outros proprietários de pequena escala não fazem parte da produção “socializada”. A estatização “de facto” dessa produção, por meio da coletivização soviética da agricultura, ou do sistema comunitário chinês pré-1978, foi uma tentativa de impor as relações de produção na economia lançando mão de uma superestrutura política. Desse modo, em termos marxistas, foi uma aventura econômica que, assim como todas as aventuras econômicas, não funcionou. É por isso que foram totalmente necessárias e resultaram em tamanho sucesso econômico a reintrodução da produção camponesa individual de pequena escala na China, após 1978, por meio do sistema de responsabilidade familiar, e a recriação de uma “burguesia nacional” fora dos setores econômicos “socializados” de maior porte (ao passo que tais setores econômicos maiores e socializados eram mantidos nas mãos do Estado). Deng Xiaoping não abandonou Marx, ele retomou Marx. E foi bem-sucedido. Nenhuma economia capitalista conseguiu obter um crescimento econômico na

128

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

escala da China. Nenhuma economia capitalista jamais retirou tantas pessoas da pobreza ou criou oportunidade para que tantas pessoas prosperassem. Para aqueles que ainda assim preferem tomar como base os cânones econômicos ocidentais em vez dos marxistas chineses, a China conquistou o que Keynes jamais poderia imaginar. Keynes propôs, em The General Theory of Employment, Interest and Money (KEYNES, 1983), uma “socialização abrangente do investimento” (p. 144) e que “o dever de ordenar o volume corrente de investimento não pode ser deixado com segurança em mãos privadas” (p. 320), e que, portanto, era necessária “uma taxa de investimento controlada socialmente” (p. 325). Isso esclarece o que, em termos econômicos ocidentais, traduz-se na “posição dominante da propriedade estatal” da China (CPC, 2014). Esse não é um conceito quantitativo ou uma necessidade de o setor público controlar a maior parte da economia da China. É o conceito de que o setor público deve ser grande e forte o suficiente para que possa, em termos keynesianos, definir o nível de investimento geral da economia. A China atende a esse critério e é por isso que, nos mesmos termos, é chamada de uma “economia socialista de mercado”. Nenhuma economia capitalista possui essa habilidade, e é por isso que o crescimento de longo prazo e a regulação macroeconômica da China teve um desempenho superior ao de qualquer economia capitalista. Portanto, Deng Xiaoping demonstrou que os conceitos analisados por Marx funcionavam na prática. Keynes criou uma economia racional em sua imaginação, mas Deng Xiaoping conseguiu criá-la no mundo real e demonstrar que ela só poderia ser implementada em uma sociedade socialista. Desse modo, Deng Xiaoping demonstrou a superioridade do pensamento econômico chinês em relação ao ocidental. E é por esse motivo que Deng Xiaoping é o maior economista do mundo moderno, superando qualquer outro no ocidente.

28. Consequências para a América Latina Quais são as consequências das tendências econômicas exemplificadas na China para a América Latina? Após o ano 2000, os governos de esquerda latino-ameri-

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

129

canos realizaram uma “revolução distributiva” crucial, que beneficiou enormemente a população do continente. Como analisou o Banco Mundial em 2013: Pela primeira vez na história, uma década de forte crescimento econômico na região veio acompanhada de um aumento no nível de emprego e da queda na desigualdade salarial, contribuindo para uma redução na pobreza sem precedentes e para um aumento na prosperidade em todas as camadas sociais (...). As rendas reais médias na América Latina (...) aumentaram mais de 25% desde a virada do milênio. E, com os salários mais baixos tendo aumentado consideravelmente mais rápido do que a média nacional, foram os 40% mais pobres que tiraram maior proveito. (WORLD BANK, 2013)

Entre 1999 e 2012, 31 milhões de pessoas na América Latina foram retiradas da pobreza de acordo com a definição internacional do Banco Mundial de pobreza extrema (gasto diário de US$ 1,90 por dia, PPC com preços de 2011). No mesmo período, 52 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza, com base na definição do Banco Mundial (US$ 3,10/dia, medido nas mesmas unidades). A base desse tremendo progresso social foi o crescimento econômico acelerado, em oposição à catástrofe econômica produzida no final do século XX pelas políticas neoliberais. Até 1993, o PIB per capita médio nas economias latino-americanas em desenvolvimento permanecia abaixo dos níveis de 1981. Em 1998, o crescimento anual médio do PIB per capita era ainda de apenas 0,9% (é utilizada uma média de cinco anos para evitar a influência de flutuações de curto prazo). Somente após Chávez ser eleito presidente da Venezuela, em 1998, seguido por outros líderes de esquerda latino-americanos, que o crescimento econômico foi intensamente acelerado. Em 2007, o crescimento anual médio do PIB per capita na América Latina chegou a 2,8% (considerando novamente a média de cinco anos), tendo crescido mais rapidamente em países-chave tais como a Venezuela e a Argentina. A “revolução distributiva” dos governos de esquerda assegurou que os benefícios desse crescimento econômico fossem compartilhados pela população da América Latina.

130

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Infelizmente, os problemas econômicos recentes demonstram que essa “revolução distributiva” ainda não foi acompanhada por uma “revolução produtiva”, ou seja, pela habilidade de manter um crescimento econômico positivo forte face às tendências da economia mundial. Em 2015, o crescimento do PIB da Argentina caiu 1,2%, enquanto o do Brasil caiu 3,8%. Diferentemente do que ocorre na América Latina, a estrutura econômica socialista da China tem a habilidade de manter o crescimento e de reverter ciclos efetivamente. Devido às consequências dessas desacelerações econômicas, a direita venceu a eleição presidencial na Argentina, as eleições legislativas na Venezuela, e conseguiu lançar a campanha para o impedimento da presidenta do Brasil. Isso é particularmente sério, uma vez que essas forças de direita se apresentam como de “centro”, para fins promocionais, mas possuem programas econômicos que representam uma mudança em direção ao neoliberalismo, com as mesmas políticas que levaram ao desastre econômico não só na América Latina, como também em outros lugares. A falha em manter um crescimento econômico substancial em situações de adversidade global levou, portanto, a retrocessos altamente indesejáveis. Apesar de morar na China, acompanho de perto a América Latina e já viajei para a região inclusive para participar de conferências e discussões com o próprio presidente Chávez. Devido a essa experiência, acredito que é essencial que a América Latina estude atentamente a economia da China. Não no sentido de que o modelo chinês possa ser mecanicamente copiado, e sim que os principais processos econômicos que operam na China aplicam-se também à América Latina. Foi a China que obteve sucesso na sua “revolução produtiva”. Por quase quatro décadas, a economia da China cresceu a tal velocidade que o país deixou de ser uma das economias mais pobres do mundo e chegou ao limiar de tornar-se uma “economia de renda alta”, de acordo com os critérios internacionais. Essa foi a maior “revolução produtiva” na história da humanidade. Mesmo após a crise financeira internacional ter produzido uma desaceleração na economia mundial, a China obteve um crescimento de 6,9% em 2015. Além do mais, ao contrário do mito disseminado pelos EUA, o crescimento

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

131

da China não beneficiou sobretudo os ricos, e sim as pessoas comuns. Como já mencionado, a China retirou 728 milhões de pessoa da pobreza, de acordo com os critérios do Banco Mundial. Em 2015, a renda disponível real corrigida monetariamente da população da China aumentou 7,4%. Esse é o tipo de “revolução produtiva” que a América Latina precisa. As diferenças entre a América Latina e o “modelo Chinês” são claras. Os métodos estatísticos modernos, adotados oficialmente pela ONU e pela OCDE, demonstram que o investimento fixo representa mais da metade do crescimento do PIB. O alto nível de investimento da China explica seu crescimento rápido: em 2014, o investimento fixo da China era 44% do PIB. Os níveis de investimento infinitamente menores da América Latina inviabilizam a obtenção de um crescimento rápido, assim como sua manutenção em situações globais adversas. O nível de investimento fixo da Argentina é de 17% do PIB; do Brasil, 20%; da Venezuela, 22%. O Equador, por outro lado, teve um nível de investimento decisivamente maior, 28% do PIB. Levando em conta a depreciação do capital, o contraste é ainda maior. A poupança líquida, ou seja, os recursos disponíveis para investimentos adicionais, é de 32% da Renda Nacional Bruta da China, em comparação a 7% na Argentina e 5% no Brasil. Alguns países, como a Bolívia e o Equador, chegaram a níveis de 15%, ainda abaixo do nível da China. Com níveis tão baixos de investimento fixo, o crescimento rápido e pacotes de estímulo anticíclicos tornam-se impossíveis. O motivo para o rápido crescimento do investimento na China é evidente. A China tem, ao mesmo tempo, um setor privado e um setor público, mas não é uma “economia mista” no sentido ocidental. Nas economias ocidentais, o setor privado é dominante. Na China, há uma “posição dominante da propriedade estatal”, utilizando a expressão oficial. Na terminologia ocidental, o modelo chinês pode também ser expresso em conceitos keynesianos: “o dever de ordenar o volume corrente de investimento não pode ser deixado com segurança em mãos privadas”, deve haver “uma taxa de investimento controlada socialmente”, exigindo “uma socialização abrangente do investimento”.

132

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

O “modelo chinês” não eliminou o setor privado, mas tornou o investimento estatal a força motriz da economia, com o crescimento resultante beneficiando também o setor privado. O sucesso da China é explicado por sua habilidade de ter um setor público que não administra a economia, mas que é grande o suficiente para manter e controlar seu nível de investimento. É esse modelo econômico – que não elimina o setor privado, mas que é impulsionado por altos níveis de investimento estatal – que explica o crescimento rápido da China e diferencia seu modelo da maior parte da América Latina. Para o sucesso econômico, o estudo da “revolução produtiva” da China deve suplementar a “revolução distributiva” da qual a esquerda latino-americana tanto se orgulha.

Referências CPC. Decision of the Central Committee of the Communist Party of China on Some Major Issues Concerning Comprehensively Deepening the Reform. 16 de janeiro de 2014. Disponível em: . Acesso em: Fev. de 2014. DIKÖTTER, F. Mao’s Great Famine. London: Bloomsbury, 2011. KEYNES, J. M. (1936). The General Theory of Employment, Interest and Money. London: Macmillan, 1983. LIN, J. Y. Demystifying the Chinese Economy. Cambridge, UK: Cambridge University Press, 2012. LONGEVITY SCIENCE ADVISORY PANEL. Life Expectancy: Past and future generations by gender in England and Wales. Disponível em: . MADDISON, A. Statistics on World Population, GDP and Per Capita GDP, 1-2008 AD. 2010. Disponível em: . Acesso em: 23 de jan. 2011.

LIÇÕES DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO DA CHINA PARA A AMÉRICA LATINA

133

ORLIK, T. “Show Me The China Stimulus Money”. Wall Street Journal, Nova York, 29 de maio de 2012. Disponível em: . Acesso em: 11 fev. 2014. PILLING, D. “The ghost at China’s third plenum: demographics”. Financial Times, Londres, 6 de novembro de 2013. Disponível em: < http://www. ft.com/intl/cms/s/0/2b6f8a7c-46d3-11e3-9c1b-00144feabdc0.html?siteedition=intl#axzz2jmQGmWfu >. Acesso em: 16 fev. 2014. ROSS, J. Yi Pan Da Qi [The Great Chess Game]. Beijing: Phoenix, 2016. SEN, A. “Mortality as an indicator of economic success and failure”. The Economic Journal, 108(446), 1-25, janeiro de 1998. THE CONFERENCE BOARD. The Conference Board Total Economy Database 2013. Disponível em: . Acesso em: 7 out. 2013. _______. Total Economy Database 2015. Disponível em: . WORLD BANK. Inequality in Latin America falls, but challenges to achieve shared prosperity remain. 14 junho de 2013. Disponível em: . XIAOPING, D. (21 de agosto de 1985). Two Kinds of Comments About China’s Reform. In Selected Works of Deng Xiaoping Vol. 3 (1982-1992). Foreign Languages Press, p. 138-139 , 1944. _______. (30 de março de 1979). Uphold the Four Cardinal Principles. In 2001 (Ed.), Selected Works of Deng Xiaoping 1975-1982. Honolulu: University Press of the Pacific, p. 166-191, 2001.

Após a atual crise, qual o futuro da relação estratégica entre a América Latina e a China? Francisco Dominguez

1. Introdução O BRICS, mesmo que ainda esteja em um processo de consolidação até o momento bem-sucedido, sofre diversas complicações graves, sobretudo devido às consequências políticas e econômicas que afetam negativamente alguns dos países, em decorrência da crise econômica. Isso ocorre de forma especialmente acentuada no Brasil (e na Rússia), mas também acarreta consequências negativas para as relações econômicas e comerciais entre a América Latina e a China, que até recentemente prosperavam. Essas relações econômicas, comerciais e políticas em fortalecimento entre a China e a América Latina pareciam materializar o surgimento de uma nova arquitetura da geopolítica global, baseada na cooperação, em relações econômicas mutuamente benéficas, no estabelecimento de novas estruturas políticas e financeiras e, sobretudo, em melhorias substanciais e de longo prazo no padrão de vida da população que sustenta as economias emergentes. Entretanto, tudo isso precisa se sustentar em bases econômicas muito mais fortes, caso pretenda sobreviver às inevitáveis flutuações violentas da economia capitalista mundial. Desde o início da década de 1990, há um constante fortalecimento das relações econômicas e comerciais entre a China e a América Latina, ao mesmo tempo em que tem havido um contínuo enfraquecimento nas relações comerciais, econômicas e (também) políticas entre a América Latina e os Estados Unidos. O ímpeto inicial desse fortalecimento pode ser, em grande parte, atribuído à Onda Rosa dos governos progressistas inaugurada com o início da Revolução Bolivariana protagonizada por Hugo Chávez, na Venezuela, em 1998.

136

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Por outro lado, o afastamento dos Estados Unidos envolve a maior parte dos governos na região, independentemente de sua convicção ideológica ou inclinação política. O declínio da relevância comercial, econômica e política dos Estados Unidos na América Latina – assim como no resto do mundo – pode também ser, em grande parte, atribuído ao fortalecimento da Onda Rosa1 e ao processo de integração regional pelo qual a região está passando, mas que também envolve governos com diferentes ideologias no espectro político da região. Entretanto, ainda que os fatores políticos sejam importantes para a compreensão desse duplo fenômeno – a ascensão da China e o declínio dos Estados Unidos –, não há dúvida que a ascensão e o fortalecimento contínuos do gigante asiático e o declínio e a decadência aparentemente inexoráveis do colosso do norte são muito relevantes para sua compreensão. As bases concretas subjacentes são o fato de que a China tem oferecido mercados, créditos, investimento e tecnologia para a América Latina, ao passo que os Estados Unidos não oferecem praticamente nenhum desses benefícios. Na verdade, pode-se argumentar de forma convincente que os Estados Unidos não oferecem à América Latina praticamente nada além de acordos comerciais, que a maior parte dos países não está pronta para assinar; bases militares, que a maioria deles não gosta ou não quer; e ofensivas de desestabilização de longo-prazo, altamente danosas e que costumam não funcionar. Uma breve análise do estado deplorável do México, o país com as mais fortes relações comerciais com os Estados Unidos na região, confirmaria que a melhor política é a de manter as relações comerciais mais afastadas possível das garras norte-americanas.2 Para detalhes sobre o crescimento da Onda Rosa, ver LIEVESLEY e LUDLAM (Eds.). Reclaiming Latin America, Radical Experiments in Social Democracy. Londres: Zed Books, 2009. Sobre as relações entre a China e a América Latina, ver FERNANDEZ e HOGENBOOM (Eds.). Latin American Facing China, South-South Relations Beyond the Washington Consensus. Oxford, Nova York: Barghanh Book, 2010. 2 O México é dominado territorialmente por cerca de uma dúzia de cartéis de droga, em uma situação na qual, nos últimos 6-7 anos, foram assassinadas 200 mil pessoas, e o país apresenta todas as características de um Estado falido (BEITTEL, June S. “Mexico: Organized Crime and Drug Trafficking Organizations”. Congressional Research Service, 22 de junho de 2015). Embora, desde a NAFTA, em 1994, o México esteja fortemente ligado ao comércio norte-americano, a ponto de 80% das suas exportações irem para os Estados Unidos; suas exportações para o país declinaram de 83%, em 1996, para 54% em 2013, com a China assumindo 16% de participação e tornando-se o segundo principal fornecedor de importações para o México (VILLAREAL, 1

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

137

Na verdade, as relações entre a China e a América Latina se tornaram uma característica tão central na prosperidade econômica da região que a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe iniciou um processo de análise dessas relações para desenvolvimento de uma estrutura política regional comum que busque assegurar o aproveitamento estratégico dessas relações. Desse modo, em 2012, a CEPAL publicou uma análise extremamente interessante e bem-fundamentada de 243 páginas sobre a relevância da China para a região, China, América Latina e o Caribe: Rumo a uma relação econômica e comercial estratégica, que sustenta que As economias da China e da América Latina e do Caribe (...) estão se tornando polos contemporâneos de crescimento global, já que as economias industrializadas serão forçadas a se adaptar nos próximos anos a um contexto de crescimento lento e de maior desemprego. A atual conjuntura da economia global nos convida a repensar a parceria global e regional, assim como as estratégias de construção de parcerias, para promover uma maior relevância das relações Sul-Sul no campo do comércio, do investimento estrangeiro direto (IED) e da cooperação. (ROSALES e KUWAYAMA, 2012, p. 11)

Desse modo, no livro, A CEPAL argumenta que as relações entre a China, a América Latina e a região do Caribe estão suficientemente maduras para realizar um salto qualitativo e passar a desenvolver laços estratégicos que podem trazer benefícios para todos. (ROSALES e KUWAYAMA, 2012, p. 243)3

O enorme desenvolvimento das commodities levou a um crescimento econômico vigoroso na América Latina, fornecendo, assim, recursos para fiM. Angeles. “U.S. Mexico Economic Relations: Trends, Issues and Implications”. Congressional Research Service, 20 de abril de 2015, p. 3.) 3 Portanto, mesmo sendo um país altamente dominado pelos Estados Unidos, a China se tornou um dos principais parceiros do México e um forte concorrente para os Estados Unidos.

138

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

nanciar as políticas de redistribuição, e também para desenvolver projetos de infraestrutura que levaram a reduções sem precedentes no desemprego, na pobreza e na pobreza extrema. Em um período de aproximadamente uma década (2002-2012), cerca de 70 milhões de pessoas foram retiradas da pobreza, 20 milhões destas foram retiradas da pobreza extrema, e houve reduções substanciais no desemprego ([CEPAL], 2015, p. 10 e 32). Com base nesses dados, uma análise conjunta da OCDE/CEPAL/CAF, de 2016, recomendava o estabelecimento de uma “aliança estratégica para o desenvolvimento” entre a China e a América Latina (OECD/ECLAC/CAF, 2015). As nações da Onda Rosa, sobretudo, mas não exclusivamente, que até recentemente incluíam a Argentina, o Brasil, e de modo geral também o Peru, estabeleceram relações muito próximas com a China e se beneficiaram amplamente da expansão das commodities, que foi repentinamente interrompida em 2008, quando o mundo entrou em um turbilhão causado pela crise global decorrente da contração do crédito. O abrupto declínio das importações chinesas de matéria-prima latino-americana e sua inevitável consequência (o desabamento dos preços) afundaram a maior parte da região em uma crise econômica. Com isso, forças políticas conservadoras, com o apoio dos Estados Unidos, tiraram proveito das dificuldades decorrentes do contexto e venceram as eleições na Argentina e no Peru, além de darem início a um processo de impeachment contra a presidenta Dilma Rousseff no Brasil que, até o momento, levou à sua suspensão temporária e à posse de um governo interino neoliberal radical que não vê a China com bons olhos. Consequências negativas semelhantes ocorreram no Equador, na Bolívia e na Venezuela, onde os governos progressistas enfrentam a pressão econômica do declínio das receitas de exportação e sofreram derrotas eleitorais. O aprofundamento das relações entre a China e o Brasil, no contexto político específico dos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), comprometido com o progresso social e com o desenvolvimento nacional desde 2002, tendo sido extremamente positivo para o gigante sul-americano, está sendo drasticamente revertido pela administração interina de Temer. A crise econômica e a instabilidade que acometeu o Brasil têm levado as forças

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

139

conservadoras a, pelo menos temporariamente, destituir a presidenta Dilma, com a expectativa de pôr um fim na atuação política do PT, que governa o país desde 2002. Do mesmo modo, a derrota do kirchnerismo na Argentina na eleição presidencial de 2015 levou ao governo neoliberal radical de Mauricio Macri, fato que, assim como no Brasil, ameaça o ímpeto desenvolvimentista e progressista de outro país-chave da região. Assim como no Brasil, o governo conservador de Macri, na Argentina, tem adotado políticas radicalmente neoliberais, revertendo em poucas semanas muito do que havia sido conquistado no país por meio da agenda progressiva pós-neoliberal do kirchnerismo. Desse modo, a promissora perspectiva de forjar uma nova arquitetura geopolítica global com a China e com seus aliados no BRICS, no que concerne à América Latina, foi posta seriamente em questão devido a essa expansão conservadora sobretudo, mas não exclusivamente, em três países-chave na região: Brasil, Argentina e Venezuela. Isso se aplica sobretudo ao Brasil, uma vez que sua participação no BRICS tornou-se complexa, e há incerteza em relação ao rumo que o presidente interino pró-EUA Temer tomara em relação a isso. O governo de Michel Temer é marcadamente pró-EUA, ao ponto de chegar a opor-se ao MERCOSUL, que até o momento havia sido um dos principais objetivos da política externa de todos os governos anteriores, desde o final da ditadura militar no país. Apenas a derrota política dos golpistas brasileiros, uma perspectiva que parece mais tangível a cada dia que passa, oferece a possibilidade de reedificar o maior parceiro latino-americano na aliança do BRICS. Além disso, o papel central do Brasil no BRICS criava diversos tipos de possibilidade de conexão em toda a Perspectiva Asiática da região.4 Precisamos examinar a natureza e a força intrínseca ao desenvolvimento econômico da China para avaliar se há bases concretas e sustentabilidade econômica que justifiquem a conclusão de que há potencialmente uma nova arquitetura geopolítica global e se a China oferece todos os ingredientes que Sobre isso, ver JILBERTO, Alex E. Fernández e HOGENBOOM, Barbara (Eds.). Latin America Facing China: South-South Relations Beyond the Washington Consensus. Nova York; Oxford: Barghahn Books, 2010. 4

140

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

permitiriam a viabilidade do caminho desenvolvimentista radical e pós-liberal, que os governos da Onda Rosa adotaram desde o início do século XXI.

2. A natureza dos níveis de crescimento econômico sustentado sem precedentes na China. A ascensão econômica da China tem sido tão extraordinária que, no intervalo de 35 anos, ela se tornou a maior economia do mundo em termos de PPC e, considerando seus níveis atuais de desenvolvimento econômico, em aproximadamente uma década sua economia ultrapassará a economia dos Estados Unidos se levarmos em consideração o PIB real. Além do mais, a China se transformou de uma nação agrícola de terceiro mundo, economicamente atrasada, em uma potência manufatureira baseada na tecnologia de ponta, em constante aprimoramento, que a permite produzir in toto os bens industriais mais sofisticados e avançados, tais como aviões, trens, todos os tipos de maquinário industrial e não industrial, além de dispositivos eletrônicos e todos os tipos de bens de consumo de alta renda, além de praticamente tudo o mais, com um desenvolvimento notável em P&D. Sobretudo, apesar do exaustivo esforço intelectual com fins de demonstrar que a China alcançou tudo isso graças à adoção de técnicas capitalistas de mercado, na verdade, o oposto se verifica: a China é uma economia na qual o mercado se encontra firmemente subordinado ao planejamento.5 Um dos maiores economistas ocidentais, com profundo conhecimento sobre a China, John Ross, resume isso da seguinte forma: “a façanha da China é literalmente a maior de todas na história da economia mundial”. Ele enfatiza que a população do país também deveria ser levada em consideração no cálculo do impacto do crescimento econômico da China no bem-estar. Essa conclusão não é uma descoberta recente. Na verdade, já em 1995, Peter Nolan redigiu uma análise muito reveladora sobre a forma como a China, por não seguir a aplicação soviética da terapia de choque, após a queda de Gorbachev e a ascensão de Yeltsin, obteve um enorme sucesso na reforma econômica de Deng (NOLAN, Peter. China’s Rise, Russia’s Fall, Economics and Planning in the Transition from Stalinism. Londres; Nova York: Palgrave Macmillan, 1995). 5

141

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

Dessa forma, muitas outras economias que obtiveram níveis rápidos e impressionantes de crescimento econômico em outros períodos históricos, alcançaram níveis não só muito inferiores aos chineses, como também afetaram partes substancialmente menores da população global. O Reino Unido, durante sua revolução industrial, representava 2% da população mundial; os USA, após a Guerra Civil, 3,2%; a Itália, a partir da década de 1950, 1%; o Japão, após a 2ª Guerra Mundial, 3,3%; os Tigres Asiáticos, 1,4%; a Índia, após a década de 1980, aproximava-se dos 16%; enquanto a China representava 22,3% da população mundial. Tabela 1. População mundial em países no início do crescimento econômico rápido sustentado (%) País

Ano

% da população mundial

Reino Unido

1820

2,0%

EUA

1870

3,2%

Alemanha

1870

3,3%

URSS*

1929

8.4%

Japão

1950

3,3%

Economias dos Tigres Asiáticos**

1960

1,4%

China

1978

22,3%

* Média de 1920 (8,3%) e 1940 (8,5%) ** Total da Coreia do Sul (0,8%). Taiwan (0,4%), Hong Kong (0,1%) e Singapura (0,1%) Fonte: Calculado a partir dos dados de Maddison, Statistics on World Population, GDP and Per Capita GDP 1-2008AD. Disponível em: .

Na tabela a seguir, são apresentadas as estatísticas das taxas de crescimento econômico da China entre 1952-2015. Ross compila a tabela comparativa mais interessante, com países que obtêm crescimento econômico sustentado, levando em conta sua participação percentual na população mundial.

63.591,00

58.801,88

53.412,30

48.412,35

40.890,30

34.562,92

31.675,17

26.801,94

2014

2013

2012

2011

2010

2009

2008

2007

3.524,72

4.560,79

5.059,72

6.040,37

7.495,56

8.461,35

9.494,59

10.352,12

10.864,88

USD

PIB em bilhões

8.974,12

10.03174

11.03785

12.357,02

13.810,26

15.154,32

16.585,00

17.960,67

19.392,36

PPC (Int’l$.)

14,2

9,6

9,2

10,6

9,5

7,7

7,7

7,3

6,9

Real crescimento (%)

20.337

23.912

25.963

30.568

36.018

39.544

43.320

46.629

49.351

CNY

2.675

3.443

3.801

4.515

5.577

6.264

6.995

7.591

7.924

USD

PIBPC

6.809

7.573

8.291

9.237

10.274

11.220

12.218

13.131

14.107

PPC (Int’l$)

13,6

9,0

8,7

10,1

9,0

7,2

7,2

6,7

6,3

Real crescimento (%)

PIB per capita (PIBPC) base: população média anual

1.317.885

1.324.655

1.331.260

1.337.705

1.344.130

1.350.695

1.357.380

1.364.270

1.371.220

População média em milhares

7,6040

6,9451

6,8310

6,7695

6,4588

6,3125

6,1932

6,1428

6,2284

2,9866

3,1575

3,1313

3,3091

3,5055

3,5246

3,5455

3,5406

3,4896

Taxa de câmbio 1 moeda estrangeira para CNY (Int’l$.) USD 1 (PPC)

Índice de referência

* XINHUA NEWS. China revises GDP calculation. 6 de julho de 2016. Disponível em: . Acesso em: 27 setembro 2016). ** Agência Nacional de Estatística da China. Disponível em: . Acesso em: 27 setembro 2016.  *** FMI / WEO (World Economic Outlook Database). Outubro, 2015. Disponível em: .  Acesso em: 27 setembro 2016.

r

p

67.670,80

CNY

2015

Ano

PIB

Tabela 2. PIB histórico da China entre 1978 e 2015* – Revisão baseada no 3º Censo Econômico Nacional de 2013** – Paridade do Poder de Compra (PPC) do Yuan chinês (CNY), como dólar internacional baseado no WEO do FMI de 6 de out. de 2015***

142 PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

21.765,66

18.589,58

16.071,44

13.656,46

12.100,20

11.027,04

9.977,63

9.018,77

8.488,37

7.942,95

7.157,23

6.112,98

4.845,96

3.552,43

2005

2004

2003

2002

2001

2000

1999

1998

1997

1996

1995

1994

1993

CNY

2006

Ano

616,53

562,26

732,01

860,84

958,16

1.025,28

1.089,45

1.205,26

1.332,25

1.461,91

1.649,93

1.941,75

2.269,32

2.730,33

USD

PIB em bilhões

PIB

1.715,19

1.980,83

2.244,57

2.511,81

2.789,86

3.041,04

3.322,85

3.684,99

4.081,81

4.520,87

5.073,29

5.738,51

6.593,05

7.657,08

PPC (Int’l$.)

13,9

13,1

11,0

9,9

9,2

7,8

7,6

8,4

8,3

9,1

10,0

10,1

11,3

12,7

Real crescimento (%)

3.015

4.066

5.074

5.878

6.457

6.835

7.199

7.902

8.670

9.450

10.600

12.400

14.259

16.602

CNY

523

472

608

707

779

826

870

955

1.047

1.142

1.281

1.498

1.741

2.083

USD

PIBPC

1.455

1.662

1.863

2.063

2.268

2.449

2.652

2.918

3.209

3.531

3.938

4.428

5.057

5.841

PPC (Int’l$)

12,6

11,8

9,8

8,8

8,1

6,8

6,7

7,5

7,5

8,4

9,3

9,4

10,6

12,1

Real crescimento (%)

PIB per capita (PIBPC) base: população média anual

1.178.440

1.191.835

1.204.855

1.217.550

1.230.075

1.241.935

1.252.735

1.262.645

1.271.850

1.280.400

1.288.400

1.296.075

1.303.720

1.311.020

População média em milhares

5,7620

8,6187

8,3510

8,3142

8,2898

8,2791

8,2783

8,2784

8,2770

8,2770

8,2770

8,2768

8,1917

7,9718

2,0712

2,4464

2,7235

2,8494

2,8471

2,7913

2,7142

2,7076

2,7015

2,6765

2,6918

2,8006

2,8196

2,8426

Taxa de câmbio 1 moeda estrangeira para CNY (Int’l$.) USD 1 (PPC)

Índice de referência

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

143

2.706,83

2.189,55

1.877,43

1.709,03

1.510,11

1.210,22

1.030,88

903,99

722,63

597,56

533,30

489,81

455,16

406,77

1991

1990

1989

1988

1987

1986

1985

1984

1983

1982

1981

1980

1979

CNY

1992

Ano

261,59

303,76

287,36

281,80

302,45

310,54

307,84

298,56

325,14

405,71

453,91

392,51

411,31

490,85

USD

PIB em bilhões

PIB

305,23

351,22

406,80

468,75

559,05

654,63

726,90

831,81

958,04

1.035,74

1.115,28

1.258,18

1.470,88

PPC (Int’l$.)

7,6

7,9

5,1

9,0

10,8

15,2

13,5

8,9

11,7

11,3

4,2

3,9

9,3

14,3

Real crescimento (%)

420

464

493

529

584

697

860

966

1.116

1.371

1.528

1.654

1.903

2.324

CNY

270

310

289

279

296

300

293

280

300

368

406

346

357

421

USD

PIBPC

311

353

403

458

539

623

681

767

870

926

982

1.093

1.263

PPC (Int’l$)

6,2

6,6

3,8

7,4

9,2

13,7

12,0

7,3

9,9

9,5

2,6

2,4

7,8

12,9

Real crescimento (%)

PIB per capita (PIBPC) base: população média anual

969.005

981.235

993.885

1.008.630

1.023.310

1.036.825

1.051.040

1.066.790

1.084.035

1.101.630

1.118.650

1.135.185

1.150.780

1.164.970

População média em milhares

1,5550

1,4984

1,7045

1,8925

1,9757

2,3270

2,9366

3,4528

3,7221

3,7221

3,7651

4,7832

5,3233

5,5146

1,4912

1,3946

1,3110

1,2748

1,2926

1,3809

1,4182

1,4549

1,5762

1,6501

1,6834

1,7403

1,8403

Taxa de câmbio 1 moeda estrangeira para CNY (Int’l$.) USD 1 (PPC)

Índice de referência

144 PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

365,02

322,105

296,147

301,311

280,374

273,335

253,022

243,526

226,132

194,578

173,016

178,028

187,308

171,720

1977

1976

1975

1974

1973

1972

1971

1970

1969

1968

1967

1966

1965

CNY

1978

Ano

69,754

76,086

72,316

70,280

79,039

91,856

98,922

112,700

137,396

142,960

162,013

152,543

173,380

216,81

USD

PIB em bilhões

PIB

PPC (Int’l$.)

17,0

10,7

-5,7

-4,1

16,9

19,4

7,1

3,8

7,9

2,3

8,7

-1,6

7,6

11,6

Real crescimento (%)

240

255

236

223

244

276

290

294

310

311

329

318

341

382

CNY

98

103

96

91

99

112

118

131

156

159

177

164

184

227

USD

PIBPC PPC (Int’l$)

14,3

7,7

-8,1

-6,6

13,7

16,1

4,1

1,2

5,4

0,2

6,8

-3,1

6,2

10,2

Real crescimento (%)

PIB per capita (PIBPC) base: população média anual

715.190

735.400

754.550

774.510

796.030

818.320

841.110

862.030

881.940

900.350

916.400

930.690

943.460

956.165

População média em milhares

2,4618

2,4618

2,4618

2,4618

2,4618

2,4618

2,4618

2,2451

1,9894

1,9612

1,8598

1,9414

1,8578

1,6836

Taxa de câmbio 1 moeda estrangeira para CNY (Int’l$.) USD 1 (PPC)

Índice de referência

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

145

123,637

115,124

122,094

145,747

144,036

130,821

106,929

102,898

91,078

85,938

82,419

67,900

1963

1962

1961

1960

1959

1958

1957

1956

1955

1954

1953

1952

30,548

31,651

33,002

34,976

39,515

41,063

50,238

55,039

59,203

49,595

46,764

50,222

59,125

USD

PIB em bilhões PPC (Int’l$.)

15,6

4,2

6,8

15,0

5,1

21,3

8,8

-0,3

-27,3

-5,6

10,2

18,3

Real crescimento (%)

119

142

144

150

166

168

200

216

218

185

173

181

208

CNY

54

54

55

57

64

64

77

83

89

75

70

74

85

USD

PIBPC PPC (Int’l$)

13,1

1,8

4,5

12,7

2,4

18,3

6,7

-0,5

-26,6

-6,4

7,5

15,5

Real crescimento (%)

PIB per capita (PIBPC) base: população média anual

Fonte: Agência Nacional de Estatística da China. Disponível em: .

145,554

CNY

1964

Ano

PIB

568.910

581.390

595.310

608.660

621.470

637.410

653.240

666.010

667.070

660.330

665.770

682.340

698.360

População média em milhares

2.2227

2,6040

2,6040

2,6040

2,6040

2,6040

2,6040

2,6170

2,4618

2,4618

2,4618

2,4618

2,4618

Taxa de câmbio 1 moeda estrangeira para CNY (Int’l$.) USD 1 (PPC)

Índice de referência

146 PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

147

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

O gráfico abaixo apresenta as taxas anuais de crescimento econômico entre 1979 e 2014 (MORRISON, 2015, p. 6). As incríveis taxas de crescimento econômico da China desde 1979, com uma média de 8-10% ao ano, são impressionantes não apenas devido ao PIB, mas sobretudo devido ao progresso social que é reconhecido e apreciado até mesmo por instituições pró-ocidentais, tais como o Banco Mundial que, recentemente, descreveu o fenômeno como “a expansão sustentada mais rápida da história, realizada por uma potência econômica – que retirou mais do que 800 milhões de pessoas da pobreza” (BANCO MUNDIAL, 2016). A erradicação da pobreza na China tem sido aclamada por alguns analistas ocidentais como o maior aumento em bem-estar humano na história. 6 Gráfico 1. Crescimento real do PIB da China: 1979-2014 (Porcentagem) 16

15,2

12

10,9

11,6 11,3

9

8 7,6

12,7 11,3

10,9 9,2

8,9

7,9

1010,1 9,3

9,1 7,8 7,6

8,4 8,3

10,4 9,6

9,2

9,3 7,87,8

7,3

5,3 4,1

4

14,2

10

10

6

14,2 13,9 13,1

13,5

14

3,8

2

1979 1980 1981 1982 1983 1984 1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

0

Fonte: FMI - Fundo Monetário Internacional, World Economic Outlook (WEO). Obs.: A marcante desaceleração em 1989 e 1990 deveu-se, em grande parte, ao turbilhão político e econômico que ocorreu na China após de 4 de junho de 1989, à repressão do governo chinês aos estudantes pró-democracia e às subsequentes sanções econômicas impostas contra a China por diversos países.

Ver, por exemplo, O’MAHONEY, Joseph e ZHANG, Weng. “China’s 1989 Choice: The Paradox of Seeking Wealth and Democracy”. The Wilson Quarterly, Fall 2014, que se refere a isso como “a maior libertação da pobreza da história da humanidade”. Disponível em: . Acesso em: 29 de junho de 2016. 6

148

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Historicamente, a expansão do capitalismo na periferia não levou nem a taxas tão sustentadas de crescimento econômico, e tampouco a tais níveis de aumento no bem-estar humano. Pelo contrário, levou, na maioria das vezes, à expansão do capital privado, com uma classe capitalista liderando um controle irrestrito do processo de acumulação de capital, das finanças do país e da predominância do lucro sobre o desenvolvimento humano, o que normalmente resulta na dominação externa pelo Capital da Cidadelas do imperialismo. Nada disso se aplica à China, portanto, assino embaixo da caracterização de John Ross, que define o desenvolvimento da China como um “socialismo com características chinesas”. Além do mais, em 2009 a China havia se tornado o principal ator no comércio internacional, onde desfruta de posições de liderança em muitas áreas. De acordo com a CEPAL, “apesar de um acentuado declínio em suas exportações, em 2009 a China se tornou o maior exportador de bens (US$ 1,202 trilhão), ultrapassando a Alemanha (US$ 1,121 trilhão). Naquele ano, a China respondeu por 9,6% das exportações mundiais. Foi também o segundo maior importador do mundo, atrás dos Estados Unidos, com uma importação de bens de US$  1,006 trilhão em 2009, representando 8% das vendas globais” (ROSALES e KUWAYAMA, 2012, p. 33). Há menos de um ano, a China liderou a criação do Banco de Investimentos e Infraestrutura da Ásia (AIIB), um banco de desenvolvimento global com uma abordagem multilateral que começará com um capital de US$ 50 bilhões e buscará preencher a lacuna causada pela carência de infraestrutura na Ásia, de US$ 600 bilhões por ano. Apesar da forte recomendação de Washington para que seus aliados não integrassem o AIIB, muitas nações se tornaram membros. Não apenas os suspeitos mais comuns, como a Rússia, o Brasil, a Índia, etc., mas também muitos aliados ocidentais dos Estados Unidos, tais como a Alemanha, o Reino Unido, a França, a Suíça e muitos outros, um total de 56 nações. A relevância da criação do AIIB é enorme, uma vez que ele “ajuda a consolidar a China como uma grande potência, destacando-se no quadro da evolução permanente do sistema internacional estabelecido, com o G20 (que será presidido pela China em 2016) como um ator essencial na governan-

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

149

ça econômica global, e agora com a provável inclusão do renminbi na cesta do DES” (HUMPHREYS et al, 2015, p. 14). Por iniciativa da China, o Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) do BRICS foi também estabelecido, tornando-se o banco do BRICS. Criado pela China, pela Rússia, pelo Brasil, pela Índia e pela África do Sul, o banco começou suas operações em julho de 2015, e já tomou a decisão de conceder crédito para a renovação da área de desenvolvimento energético com a quantia de US$  300 milhões para o Brasil, US$  81 milhões para a China, US$  250 milhões para a Índia e US$ 180 milhões para a África do Sul.7 O Ministro da Relações Exteriores do Brasil - ainda durante o governo de Dilma Rousseff - saudou oficialmente a criação do NBD da seguinte forma: os acordos constitutivos do Novo Banco de Desenvolvimento (NBD) – voltado para o financiamento de projetos de infraestrutura e desenvolvimento sustentável em economias emergentes e países em desenvolvimento –, e do Arranjo Contingente de Reservas (ACR) – destinado a prover apoio mútuo aos membros do BRICS em cenários de flutuações no balanço de pagamentos. O capital inicial subscrito do NBD foi de US$ 50 bilhões e seu capital autorizado, US$ 100 bilhões. Os recursos alocados para o ACR, por sua vez, totalizarão US$ 100 bilhões. (BRICS, 2016)

Stephany Griffith, especialista em finanças internacionais, explica habilmente a relevância desse evento: A criação do Banco de Investimentos e Infraestrutura da Ásia (AIIB), assim como o de outras instituições de desenvolvimento financeiro (tais como o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS e o Fundo Rota da Seda), parece não apenas anunciar uma nova era, como também trazer uma valiosa continuidade tanto da era pós 2ª Guerra Mundial quanto de um passado mais recente. “O banco do BRICS aprova seus primeiros empréstimos, um investimento de US$ 811 milhões em projetos de energia renovável”, Russia Today, 16 de abril de 2016. Disponível em: . (Disponível apenas em inglês.) 7

150

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

O AIIB e as outras novas instituição sinalizam um rompimento com o passado por serem sobretudo instituições multilaterais Sul-Sul. Elas utilizam uma parcela relativamente pequena da poupança e das abundantes divisas internacionais assim como o conhecimento técnico de algumas economias emergentes, sobretudo da China, e os canalizam para a infraestrutura tão necessária em outras economias emergentes e em desenvolvimento. (GRIFFITH-JONES, 2015, p.8)

Portanto, a orientação dos governos progressistas da Onda Rosa na América Latina de combinar seu desenvolvimento futuro com a construção de um novo mundo para a China é amplamente justificada, não apenas devido às impressionantes taxas de crescimento do gigante asiático, mas também devido a seus vigorosos esforços em construir uma arquitetura internacional financialmente robusta e bem-dotada tecnicamente.

3. A expansão meteórica das relações comerciais entre a China e a América Latina A expansão do comércio entre a China e a América Latina foi realmente impressionante, ainda que represente uma pequena proporção do comércio total da China. Desse modo, as relações comerciais da China com a América Latina passaram de uma posição quase que insignificante estatisticamente, em 2000, para mais de US$ 250 bilhões em 2014, como pode ser visto na tabela de comércio de bens com a China a seguir (BÁRCENA et al, 2015a, p. 36). O gráfico 2 demonstra que o comércio com a China no período entre 2000-2014 cresceu 2.500%, em aproximadamente uma década. Entretanto, a distribuição do comércio foi fortemente concentrada em algumas poucas economias que atraíram praticamente toda a atenção econômica da China, com o Brasil assumindo a maior parte do total (42,6%) e com o Chile sendo responsável por aproximadamente 1/5 do total (19,4%), como demonstrado na tabela (DIAZ JR. e LEE, 2009).

151

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

Gráfico 2. América Latina e o Caribe: comércio de bens com a China, 20002014 (milhões de dólares) 300.000 250.000 200.000 150.000 100.000 50.000 0 -50.000 -100.000 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014

Balança comercial

Exportações

Importações

Comércio total

Fonte: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), na base de dados das Nações Unidas, United Nations Commodity Trace Database (COMTRADE). Os dados de 2014 foram fornecidos por fontes oficiais de 16 países: Argentina, República Venezuela, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Panamá, Paraguai, Peru, Bolívia, e Uruguai.

Tabela 3. América Latina e Caribe (16 países): exportação de bens para a China, 2012-2014 (milhões de dólares e porcentagens) País

2012

2013

2014

% 2014

Variação 2013/2014

Argentina

5.001

6.407

4.650

4,9

-27,4

Bolívia

316

320

434

0,5

35,6

Brasil

41.228

46.025

40.616

42,6

-11,8

Chile

18.098

19.090

18 438

19,4

-3,4

Colômbia

3.343

5.104

5.617

5,9

10,1

Costa Rica

331

372

338

0,4

-9,0

Equador

392

569

502

0,5

-11,8

El Salvador

4

47

6

0,0

-87,7

Guatemala

35

167

43

0,0

-74,5

Honduras

114

135

71

0,1

-47,2

México

5.721

6.470

5.979

6,3

-7,6

152

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

2012

2013

2014

% 2014

Variação 2013/2014

Panamá

34

51

69

0,1

35,3

Paraguai

42

57

48

0,1

-16,0

Peru

7.849

7.331

6.968

7,3

-5,0

Uruguai

796

1.290

1.219

1,3

-5,5

Venezuela

14.101

11.587

10.324

10,8

-10,9

Total

97.403

105.024

95.323

100.0

-9,2

País

Fonte: Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), com base nas informações oficiais dos respectivos países.

A extraordinária expansão do comércio da China com a região resultou no Investimento Estrangeiro Direto da China em importantes projetos de infraestrutura. Abaixo, listamos alguns deles (ILYÁSOVA e SÉRBINOV, 2016, online). t Na Venezuela, a Faixa Orinoco e o Fundo Conjunto Chinês-Venezuelano, através dos quais haverá exploração conjunta e exploração de petróleo na região do Orinoco. Além disso, a Venezuela recebeu mais do que US$ 60 bilhões, o que representa cerca de 50% do total. Com o Fundo Conjunto Chinês-Venezuelano, mais de 200 projetos de desenvolvimento foram financiados, dentre os quais estão os satélites Simon Bolivar e Francisco de Miranda, rodovias e ferrovias. Além do mais, há projetos de prospecção/ explotação de petróleo com a Corporação Nacional de Petróleo da China (CNPC) e com a Companhia Petroquímica da China (Sinopec), ambas empresas estatais, somando um total de US$ 42 bilhões. t No Brasil, a ferrovia transamazônica Brasil-Peru, com 4 mil km, que unirá o Atlântico e o Pacífico, em um projeto estimado em US$ 30 bilhões e US$ 50 bilhões. t Na Nicarágua, um canal unindo o Atlântico e o Pacífico, através do lago Nicarágua. Um projeto de US$ 50 bilhões, com duração de seis a sete anos, que gerará aproximadamente 250 mil empregos diretos e possibilitará o

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

153

trânsito de mais de cinco mil embarcações. O canal é um empreendimento conjunto do governo/Estado da Nicarágua e o grupo HKND.8 t Na Argentina, a China National Offshore Oil Corporation (CNOOC) tornou-se a segunda maior empresa petrolífera, atrás apenas da YPF. A China e a Argentina são signatárias de 17 acordos que abrangem duas represas, ferrovias, projetos de irrigação e usinas de energia. t O Equador obteve empréstimos da China no valor de US$ 11 bilhões para financiamento de projetos hidroelétricos, pontes, rodovias e outras obras de infraestrutura, além de investimentos em saúde, educação e segurança. Há também joint ventures nas áreas de petróleo, cobre, ouro e energia eólica. t No Chile, a chinesa FDI investe na área financeira, de mineração, de agricultura, de comércio e de silvicultura. t Na Bolívia há o satélite Tupac Katari, em órbita graças à cooperação e ao investimento chineses. Além disso, a China também está envolvida em projetos ferroviários, rodoviários, de represas, mineração e usinas açucareiras. O investimento total é estimado em US$ 20 bilhões. Talvez o projeto China -Bolívia mais importante seja o corredor bioceânico, que ligará o Brasil, o Peru e a Bolívia, desde o Atlântico até o Pacífico. As relações da China com a América Latina não são, portanto, baseadas somente na extração de matéria-prima. Elas envolvem uma contribuição substancial para o desenvolvimento econômico dos países da região. Elas vão muito além das trocas comerciais. Uma análise panorâmica das relações entre a China e o Brasil, que faremos abaixo, demonstra o potencial de desenvolvimento econômico dessa relação, para o Brasil, e o potencial que têm para toda a América Latina.

O projeto do canal está envolto em algumas controvérsias e há temores de que ele não siga adiante devido a dificuldades financeiras enfrentadas pelo Grupo HKND. Entretanto, a Global Construction Review noticiou, em março de 2016, que as obras seriam iniciadas em agosto de 2016. Disponível em: . Acesso em: 29 de junho de 2016. 8

154

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

4. China e Brasil Entre 1984 e 2004, as exportações do Brasil para a China passaram de US$ 457 milhões para US$ 4,7 bilhões, o que representa um aumento de mais de 1000% em um intervalo de 20 anos. Seguindo essa tendência, as exportações da China para o Brasil passaram de US$ 365 milhões para US$ 2,9 bilhões, o que representa um aumento de 800%. Ainda que as relações tenham sido estabelecidas desde 1974, em 1993 as duas nações estabeleceram uma parceria estratégica – a Comissão Sino-Brasileira de Alto Nível de Concertação e Cooperação (COSBAN) –, e em 2010 assinaram o Plano de Ação Conjunta 2010-2014 (PAC). Em maio de 2015, as relações entre os dois países foi elevada ao nível de Parceria Estratégica Global, com um Diálogo Estratégico Global entre seus respectivos ministros de Relações Exteriores. O Plano de Ação Conjunta abrange a cooperação de longo prazo em áreas essenciais, tais como ciência, tecnologia e inovação, cooperação espacial, energia, mineração, infraestrutura e transporte, investimentos, cooperação industrial e financeira, cooperação econômica e comercial e intercâmbio cultural. O Brasil reconhece a RPC como o único governo legítimo da China e considera Taiwan uma parte inalienável do território da RPC. O Brasil apoia a “Política de uma China Única” e todos os esforços de paz para a unificação de todos os territórios chineses. Em 1988, os dois países assinaram a cooperação para a construção e o lançamento de satélites. Desde então, o Brasil lançou cinco satélites (em 1999, 2003, 2007, 2013 e 2014). Desde 2009, a China é o principal parceiro comercial do Brasil, tendo se tornado uma das principais fontes de IED. O comércio entre as nações passou de US$ 3,2 bilhões, em 2001, para US$ 66,3 bilhões, em 2015. Além disso, em 2012, a China passou a ser a principal fonte de importações para o Brasil. As exportações do Brasil para a China, em 2015, eram de US$  35,6 bilhões, e as importações somavam US$ 30,7 bilhões, resultando em um superá-

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

155

vit de US$ 4,9 bilhões. O superávit acumulado para o Brasil, em seu comércio com a China desde 2009, é de US$ 46 bilhões. A China é a principal fonte de investimento em energia, siderurgia e agronegócio no Brasil; e os países vêm intensificando sua cooperação financeira com diversos bancos chineses operando no Brasil. Os dois países criaram o Fundo Brasil-China para Expansão da Capacidade Produtiva, com um capital de US$ 20 bilhões, para infraestrutura, energia, mineração, manufatura, agricultura, entre outros. Eles colaboram em diversos mecanismos internacionais (BRICS, G20, BASIC) e, em junho de 2014, criaram o Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS, com um capital inicial de US$ 200 bilhões. Além disso, em abril de 2015 o Brasil se tornou um dos membros fundadores do Banco de Investimentos e Infraestrutura da Ásia.9 Em 2004, o PIB do Brasil era de US$ 669 bilhões. No final dos dois governos Lula, em 2010, o PIB do Brasil havia chegado a US$ 1,667 trilhão. Em 2014, no final do primeiro mandato de Dilma, o PIB do país havia chegado a US$  2,417 trilhões (tendo sofrido uma leve queda após atingir US$  2,615 trilhões, devido à crise econômica global). Tal desempenho econômico nunca poderia ser considerado um fracasso (THE WORLD BANK DATA, online).

5. As desvantagens e as dificuldades da relação entre a China e a América Latina A grande dependência da exportação de commodities é a principal causa das atuais dificuldades políticas e econômicas da América Latina como um todo, enfrentadas por muitos dos governos progressistas da Onda Rosa latino-americana. Em outras palavras, a contração econômica da China, causada em parte não só por fatores domésticos, mas também pela desaceleração da

Relações Exteriores, s.d. Disponível em: . 9

156

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

atividade econômica mundial resultante da crise econômica global, revelou “a fragilidade estrutural do crescimento baseado em commodities” (OECD/ ECLAC/CAF, 2015, p. 15). Essa não é uma grande revelação, uma vez que a América Latina é e tem sido, ao longo da história, uma região que participa na divisão internacional como fornecedor de produtos primários e de matéria-prima, levando a um amplo consenso entre os acadêmicos de que essa é a principal causa de seu subdesenvolvimento e de sua grave desigualdade social estrutural. A diferença no crescimento econômico decorrente do fornecimento de commodities para a China tem sido a ausência da imposição de condições onerosas que comprometem a soberania nacional, e a depredação econômica que tem caracterizado a intervenção e as relações econômicas com as empresas multinacionais ocidentais, com os governos ocidentais e, sobretudo, com os Estados Unidos. Em muitas ocasiões, a interrupção do crescimento vertiginoso levou ao seu corolário, à imposição de Pacotes de Ajustes Estruturais devastadores. A CEPAL acertadamente caracteriza a forte relação entre a China e a América Latina como uma parceria, epíteto que não poderia ser utilizado para definir a relação com empresas multinacionais ocidentais. A relação da América Latina com a China tem sido benéfica para o desenvolvimento da região (que pode ser avaliada não apenas observando-se a experiência do Brasil entre os anos 2002-2013 analisados acima, mas também uma quantidade sem precedentes de investimento em infraestrutura que gerou substanciais benefícios para o desenvolvimento das nações que se beneficiaram do IED chinês). Numericamente, o “comércio entre a China e a região teve uma expansão sem precedentes nos últimos 15 anos, multiplicando-se 22 vezes no período” (OECD/ECLAC/CAF, 2015, p. 15). O que está por trás desses números é realmente impressionante: O comércio entre a América Latina e a China expandiu-se de forma inédita nos últimos 12 anos, mas o modelo de crescimento baseado em commodities está revelando seus limites. A China e a América Latina vêm expandindo vertiginosamente suas relações comerciais desde 2000, aumentando em 22

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

157

vezes suas trocas comerciais. Entre 2001 e 2010, a exportação de combustíveis fósseis e minérios da América Latina para a China cresceu a uma impressionante taxa de 16% ao ano, seguida por produtos agrícolas, com uma expansão de 12%. Hoje, a China é o maior parceiro comercial do Brasil, do Chile e do Peru. A consequência disso são vínculos mais fortes na cadeia global, ainda que assimétricos, entre a China e a América Latina. As commodities representaram 73% das exportações da região para a China (contra 41% em todo o mundo), enquanto que os produtos tecnológicos representaram apenas 6% (contra 42% em todo o mundo). Com a China voltando-se mais para o consumo e menos para os investimentos, já se observa uma redução na demanda por commodities, o que, somado à queda nos preços, está afetando os exportadores de commodities latino-americanos. (OECD/ECLAC/CAF, 2015, p. 17)

Portanto, a América Latina não pode continuar a depender apenas da exportação de commodities para seu desenvolvimento econômico, sobretudo porque sua economia progredirá apenas caso mantenha íntima associação com aquela área no mundo que continuou a crescer a largos passos apesar da crise global que praticamente interrompeu o crescimento das economias mais avançadas do mundo, mais especificamente a China e a zona econômica ao redor dela, ou seja, a Ásia e o BRICS. A China decidiu implementar alguns ajustes fundamentais em sua economia, de modo a tornar-se um país com alta renda. Além disso, confrontadas com a crise financeira global, as principais autoridades econômicas da China foram forçadas a frear o crescimento econômico que, em 2012, havia sido reduzido a 7,4% em comparação à média de 10,5% do período entre 2000-2010. Desse modo, ainda que em 2014 o valor das exportações chinesas tenha crescido 6%, as importações despencaram, afetando commodities tais como carvão, cobre, ferro e petróleo, assim como cimento e aço (ECLAC, 2015, p. 13-14). Os efeitos na América Latina foram fortes, sobretudo devido às enormes assimetrias regionais, principalmente quando consideramos sua “capacidade sem paralelos de desenvolver vantagens comparativas em manufatura”. Portanto, de acordo com a CEPAL,

158

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Em 2013, as commodities representavam 73% das exportações da região para a China, em comparação a 41% de suas vendas em todo o mundo. As manufaturas de baixa, média e alta tecnologia representavam apenas 6% de todas as exportações da região para a China, em comparação a 42% de suas exportações mundiais. Por outro lado, enquanto as manufaturas de baixa, média e alta tecnologia representavam 91% das importações da China para a América Latina em 2013, elas representavam 69% de suas importações em todo o mundo. (ECLAC, 2015, p. 21)

Pior ainda, a maior parte da América Latina falhou em diversificar suas exportações. Alguns países, como o Brasil, a Argentina e o Chile, apresentaram um retrocesso significativo e, portanto, reduziram a diversificação das suas exportações. Desse modo, a desaceleração econômica da China levou a taxas de crescimento econômico baixas (e, em alguns casos, negativas), levando a um declínio no investimento doméstico. As condições de crédito se tornaram mais rigorosas, o que resultou em uma recessão na maior parte das economias regionais. Em outras palavras, a forte dependência na exportação de commodities é uma condição necessária para que as relações econômicas e comerciais com a China sejam benéficas. Mas, evidentemente, não é suficiente. O que a América Latina precisa é adotar uma segunda fase de deslocamento da riqueza e definir um novo modelo econômico ancorado em políticas de desenvolvimento produtivo com vistas a melhorar a participação nas cadeias globais de valor, incentivar a diversificação econômica e promover a exportação de alimentos, serviços e turismo. (ECLAC, 2015, p. 21)

O principal problema tem sido a excessiva dependência na exportação de produtos primários. Essa vulnerabilidade evidenciou-se com a crise mundial, como demonstrado no gráfico abaixo (CASANOVA; XIA; FERREIRA, 2015, p. 12).

159

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

Gráfico 3. Índices de dependência na exportação de commodities, representando 75-80% do total de exportações para América Latina (ex: México) 0.40 0.30 0.20 0.10

Argentina

Brasil

Chile 2008

Colômbia

Peru

Óleos derivador do petróleo

Bruto

Cátodos de cobre

Minérios de ferro

Minérios de cobre

Bruto

Cobre não refinado

Minério de ferro

Minério de cobre

Cátodos de cobre

Bruto

Soja

Minério de ferro

Bruto

Óleo de Soja

Soja

0

Venezuela

2014

Fonte: Pesquisa BBVA baseada em estatística UN COMTRADE (Banco de Dados Estatísticos de Comércio de Commodities das Nações Unidas)

A CEPAL produziu uma análise muito interessante sobre os benefícios, as complexidades e, também, os problemas decorrentes de um relacionamento especialmente forte com a China, caracterizando-o como “uma nova era na relação econômica e comercial”. Nela, a CEPAL elogia muitos dos aspectos positivos da relação entre a América Latina e a China, indicando que As nações da América Latina e do Caribe devem considerar atentamente a integração produtiva centrada na China que ocorre na Ásia e tentar se inserir nas cadeias de suprimentos e de valor em formação. Para tanto, elas deveriam fomentar o investimento chinês na região e investimentos externos da região na China, além de promover alianças entre empresas locais e chinesas, reproduzindo, desse modo, a experiência de integração produtiva asiática que abarca as cadeias de valor e de suprimentos regionais e sub-regionais. (...) A tarefa mais urgente dos governos da região é a de promover uma pauta que inclua comércio, investimento, infraestrutura, logística, tu-

160

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

rismo e intercâmbio tecnológico, de modo a articular uma aliança estratégica com a China. (BÁRCENA et al, 2015b, p. 31).

6. O que o futuro reserva? O desempenho fraco ou até mesmo negativo das economias latino-americanas desde aproximadamente 2009 revelou as desvantagens estruturais de uma dependência tão profunda na exportação de commodities. É evidente que os países da região precisam diversificar suas estruturas econômicas, identificando áreas de produção ou de serviço nas quais tenham vantagens comparativas, sobretudo aquelas com potencial de exportação. De outro modo, a inevitável flutuação da atividade econômica mundial, hoje amplamente dominada por enormes fluxos financeiros, resultará em uma recessão econômica semelhante ou ainda mais grave do que o recuo que a região vivencia atualmente. Entretanto, de fato existem condições reais e potenciais para que uma relação comercial e econômica altamente benéfica com a China passe a um patamar superior, no qual as nações latino-americanas possam diversificar suas economias e enfrentar melhor qualquer futura recessão mundial, fenômeno ao qual a economia global capitalista tornou-se tão sujeita. Isso poderá ser alcançado por meio de transferências de tecnologia e investimentos em produção e infraestrutura. Para tanto, talvez seja possível identificar áreas de desenvolvimento, crescimento e investimento compatíveis com áreas de desenvolvimento, crescimento e investimento na Ásia, sobretudo na China, de modo a harmonizar com toda a Ásia potenciais ajustes futuros abrangentes, minimizando assim substancialmente o impacto de uma possível crise e viabilizando a manutenção de políticas econômicas e sociais progressistas que se encontram hoje ameaçadas em maior parte da região. Sobretudo, como as autoridades chinesas já devem ter notado, a precondição política para uma relação mutuamente benéfica com a América Latina é que os governos estejam comprometidos com as políticas progressistas associadas

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

161

à Onda Rosa. As forças sociais, econômicas e políticas associadas às elites tradicionais da América Latina, como vimos no Brasil e na Argentina (podemos apenas especular os horrores que se sucederiam à destituição do governo bolivariano na Venezuela por forças conservadoras), não só se aproximariam dos Estados Unidos e se afastariam da China como também atrasariam a região em dezenas de anos, pondo em risco o relacionamento mutuamente benéfico com a China e criando entraves para o projeto de construção de uma nova geopolítica mundial progressista, desenvolvimentista e humanitária. As forças conservadoras no Brasil e na Argentina, ainda que tenham sido temporariamente vitoriosas, demonstraram não apenas sua inabilidade para consolidar ou criar um consenso neoliberal com qualquer apoio social substancial, como também sua absoluta incapacidade de desenvolver a economia nacional, de ter uma visão de país soberano e economicamente autônomo, e uma total inabilidade inclusive de gerar crescimento econômico. A reação e a oposição em massa à aplicação das típicas receitas neoliberais (privatizações, empobrecimento das camadas populares, drástica redução ou eliminação de seus direitos sociais e políticos, prática disseminada de corrupção, desnacionalização de grandes parcelas da economia e abertura do capital para multinacionais insaciáveis, rendição às condições do capital financeiro, e assim por diante) têm sido tão intensas não só no Brasil e na Argentina, como também em países onde, por bem ou por mal (normalmente por mal), as elites restabeleceram sua influência política ou derrubaram governos da Onda Rosa eleitos democraticamente, tal como ocorreu no Paraguai e em Honduras, onde, junto da violenta repressão, há também uma forte resistência. Isso demonstra que a América Latina mudou tão radicalmente que ela não está disposta a tolerar a imposição de “soluções” neoliberais. E demonstra ainda que, na região, não obstante os retrocessos políticos temporários, não é possível governar para 1% da sociedade, o que é o modelo econômico promovido – por bem ou por mal – pelos Estados Unidos e seus aliados. Caso a América Latina siga em busca da inclusão social, da erradicação da pobreza, do crescimento econômico, da redução das desigualdades, da liberdade e da universalização da saúde e da educação, ou seja, da construção de um mundo

162

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

melhor, ela deve adotar um modelo que priorize o aumento do padrão de vida dos seus cidadãos. Isso significa a inclusão dos componentes essenciais do modelo chinês levando em conta as peculiaridades políticas e o contexto cultural de cada uma das nações da América Latina. Ou, como a CEPAL habilmente colocou: O desafio foi lançado. A transformação da China introduz diversos novos desafios e oportunidades para a região, e eles precisam ser incorporados em suas estratégias de desenvolvimento para que consigam crescer economicamente por meio de objetivos mais amplos de melhoria, diversificação e integração. (ECLAC, 2015, p. 170)

Referências BANCO MUNDIAL. China Overview. 6 de abril de 2016. Disponível em: . BÁRCENA, Alicia et al. “Latin America and the Caribbean and China Towards a new era in economic cooperation”. ECLAC, 2015a. _______. People’s Republic of China and Latin America and the Caribbean Ushering in a new era in the economic and trade relationship. Santiago: ECLAC, 2015b. BRICS, Ministry of External Relations, Presentation. Disponível em: . Acesso em: 29 de junho de 2016. CASANOVA, Carlos; XIA, Le; FERREIRA, Romina. “Measuring Latin America’s export dependency on China”. BBVA Research Working Paper, n. 15/26, Hong Kong, agosto 2015. Disponível em: .

APÓS A ATUAL CRISE, QUAL O FUTURO DA RELAÇÃO ESTRATÉGICA ENTRE…

163

CEPAL. Panorama Social de America Latina. Santiago: CEPAL, 2015. DIAZ JR., Michael e LEE, Robert Q. “China’s Rising Interest in Latin America”. China Business Review, 1 de setembro de 2009. Disponível em: . ECLAC. Latin America and the Caribbean and China. Towards a new era in economic cooperation. Santiago, Chile: United Nations, 2015. GRIFFITH-JONES, Stephany. “The Asian Infrastructure Investment Bank: changing development finance architecture”. In: HUMPHREYS et al. Multilateral development banks in the 21st century. Three perspectives and the Asian Infrastructure Investment Bank. Londres: Overseas Development Institute, p. 8, 2015. HUMPHREYS et al. Multilateral development banks in the 21st century. Three perspectives and the Asian Infrastructure Investment Bank. Londres: Overseas Development Institute, 2015. ILYÁSOVA, Margarita e SÉRBINOV, Iván. “China a la conquista de Latinoamerica”. Russia Today, 21 de novembro de 2016. Disponível em: . MORRISON, Wayne M. “China’s Economic Rise: History, Trends, Challenges, and Implications for the United States”. Congressional Research Service, 21 de outubro de 2015. Disponível em: . OECD/ECLAC/CAF. Perspectivas económicas de América Latina 2016: Hacia una nueva asociación con China. Paris: OECD Publishing, 2015. Disponível em: . _______. Latin American Economic Outlook 2016: Towards a New Partnership with China. Paris: OECD Publishing, 2015. Disponível em: . ROSALES, Osvaldo e KUWAYAMA, Mikio. “China and Latin America and

164

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

the Caribbean. Building a strategic economic and trade relationship”. Santiago: ECLAC, abril de 2012. THE WORLD BANK DATA. Brazil. Disponível em: . Acesso em: 27 setembro 2016.

Investimentos chineses na América do Sul Um desenho das preferências de destino e setores Alexandre Cesar Cunha Leite Lohana Gabriela Simões de Oliveira Ramos

1. Introdução O cenário econômico sul-americano é comprovadamente caracterizado como instável. Tomada em seu conjunto, a economia da região oscila entre períodos de crescimento econômico e períodos de retração econômica. No século XXI, ao longo de seus quinze anos, é possível estabelecer uma divisão temporal no que concerne ao crescimento econômico regional. Exceção concedida à Argentina, que, no período de 2000 a 20021, apresentou taxas negativas de crescimento econômico (CEPAL, 2016), a região contabiliza um período de crescimento até o marco temporal de 2008. Após 2008, sob efeitos da crise financeira global, a região desacelera e sua taxa de crescimento para o período apresenta redução acima de um ponto percentual (medida até o ano de 2013), segundo os dados do FMI – World Economic Outlook (2016). Neste mesmo período, a República Popular da China, doravante RPC, crescia a taxa média anual (até 2013) de 10,2 %, conforme indicam os dados disponíveis no FMI – World Economic Outlook (2016). Neste período, o crescimento econômico chinês serviu como uma escora para a economia mundial. Este também foi seu papel para as economias sul-americanas. A China, sustentada por um crescimento econômico diferenciado para os padrões do período, movida por uma estratégia de inserção internacional e objetivando No auge de sua crise, no ano de 2002, a economia argentina apresentou taxa negativa de crescimento econômico de 10,9%, segundo dados da CEPAL coletados em 2016.

1

166

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

uma expansão da sua participação nos fluxos globais de comércio, foi essencial para a região sul-americana. O tipo de mercadoria demandada pela China nas trocas comerciais com a região indicava um forte componente de complementariedade. Logo, a RPC foi gradualmente ocupando espaço como um relevante parceiro comercial dos países sul-americanos. Em pouco tempo a China tornava-se responsável pela aquisição de parcela significativa dos principais produtos de importação destes países – vale notar, em sua maioria, produtos primários derivados dos setores agrícolas e da indústria extrativa mineral. Ao mesmo tempo, a RPC passava a vislumbrar possibilidades de expansão produtiva e da sua base de oferta por meio do estreitamento de relações políticas e comerciais com as nações sul-americanas. O movimento de aproximação pode ser aqui categorizado em três níveis, a saber: i) a significativa elevação do fluxo comercial entre os países da região e a RPC; ii) a aproximação e, em um segundo momento, a presença na região por meio de acordos bilaterais e multilaterais que envolviam os países sul-americanos e, não menos importante, iii) o direcionamento de fluxos de investimentos para a região. São estes investimentos, notadamente os investimentos diretos, direcionados para a região o objeto deste artigo. Busca-se aqui delimitar o perfil dos investimentos chineses na América do Sul, tendo em vista sua entrada e participação no setor produtivo dos países da região. Ainda, estabelece-se como foco deste texto identificar os setores preferenciais para onde se destina o investimento chinês e, sobretudo, analisar as motivações na escolha do destino – país e setor específico –, tendo em vista a definição da premissa de que tais decisões são componentes estratégicos da política externa, comercial e industrial da RPC no seu objetivo de manutenção do seu desempenho econômico. Também é pressuposto que sustenta a argumentação construída no texto a manutenção do crescimento econômico e, consequentemente, observando o caso chinês, a derivação em maior desenvolvimento, que é ponto essencial da pauta política do Partido Comunista Chinês (PCCh), considerando sua continuidade e credibilidade a frente da política nacional.” Diante do acima exposto e observando os objetivos delimitados, o texto que segue encontra-se distribuído em dois tópicos, além desta introdução. O

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

167

primeiro tópico trata da identificação do perfil deste investimento chinês na América do Sul. Com este tópico pretende-se verificar se há um padrão, ou seja, se estaria a RPC realizando investimentos em setores de características semelhantes e, com isso, estabelecendo uma cadeia produtiva de oferta e capaz de servir de “ponte” comercial para os mercados regionais e extra regionais. O segundo tópico direciona suas atenções para os setores preferenciais. Com isto, busca-se identificar quais os setores são atrativos e, consequentemente, receptores dos investimentos chineses nas economias dos países da América do Sul. Porém, do que adianta identificar os setores preferenciais sem compreender a motivação? Assim sendo, busca-se lançar luz sobre o motivo da escolha. Procura-se assim identificar um padrão na escolha e explicá-lo tendo em vista a estratégia e a escala de preferência chinesa ao decidir investir na região. O texto é finalizado com as considerações finais.

2. O perfil do IED chinês na América do Sul Desde o século XX, a China tem concentrado esforços em prol de seu desenvolvimento. Entende-se aqui que o objetivo de alcançar o desenvolvimento passa por fatores políticos e econômicos. No âmbito político, a RPC planeja suas ações domésticas para atingir os anseios crescentes de sua população. Já no cenário externo, suas ações são consequências de decisão interna que objetivam, por meio de um processo de inserção internacional, fomentar e sustentar seu crescimento e alimentar suas capacidades dados seus objetivos de desenvolvimento. O que se pode inferir do acima descrito é que há um projeto em curso que une os ambientes externo e interno, direcionando-os a um propósito comum: o desenvolvimento. Ainda, o desenvolvimento, conforme delineado aqui, é um objetivo político e econômico. No que diz respeito à sua estratégia econômica, parte-se aqui da premissa de que a China privilegia seus objetivos econômicos internos e utiliza a arena internacional como meio para alcançá-los. Assim sendo, estratégias de inserção internacional são parte integrante do planejamento chinês. Participar dos principais mercados

168

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

comerciais globais, atuar como investidor internacional, financiar projetos de infraestrutura em países que sofrem com esta carência e constituir-se como emprestador em mecanismos de regularização financeira torna-se essencial para o projeto de inserção internacional chinês. Visando seu crescimento interno, a partir da segunda metade do século XX o país implementou os chamados Planos Quinquenais. Estes planos eram baseados em compromissos econômicos e políticos visando um maior bem-estar à população e segurança nacional (no sentido da independência e consequentemente da garantia de sua soberania2). Neste sentido, houve a necessidade de estabelecer uma base industrial e modernizar sua tecnologia adquirindo maquinaria para o desenvolvimento do setor agrícola3. Os Planos Quinquenais foram o meio utilizado para desenhar a trajetória do seu desenvolvimento. O primeiro Plano (1953-1957) tinha como principal foco o avanço da indústria pesada, que resultou, em uma primeira ocasião, o aumento de 5,7% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Vale ressaltar que a taxa de crescimento do setor industrial no período entre 1950 e 1952 caiu de 34,8% para 18,3%, logo, parte do crescimento configura um movimento de recuperação. Já o segundo Plano visou o aprofundamento de investimento e geração de capacidade do setor industrial, somado com a estratégia do Grande Salto Adiante, estratégia esta que teve como consequência a maior onda de fome no país, no período entre 1959 e 1962 (KISSINGER, 2011, p. 189), matando mais de trinta milhões de camponeses de fome e desnutrição (GOLDMAN, 2008, p. 375). Após passar por turbulências internas, como a Revolução Cultural (1966) na esfera social e as consequências dos Planos até então aplicados, na década de 1970 a China estabeleceu como foco seu crescimento e desenvolvimento. Com a ascensão de Deng Xiaoping emerge a percepção de que uma delimitação cuidadosa dos pontos essenciais para gerar o desenvolvimento chinês deVer a concepção de soberania proposta por Bates Gill em seu livro Rising Star: China’s New Security Diplomacy. Washington, D.C: Brookings Institution Press, 2010. 3 Cabe notar que a China, a despeito de seu substancial progresso econômico, principalmente após a década de 1990, ainda é um país majoritariamente agrícola. Ver Lyrio (2010) e Leite (2011). 2

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

169

veria constar de um projeto mais harmônico. Esta sinergia foi estabelecida na proposta das “Quatro modernizações”, arquitetado no Terceiro Plano Quinquenal (1966-1970)4. As “Quatro Modernizações” eram baseadas na modernização dos setores da agricultura, defesa, indústria, ciência e tecnologia, além do (re)planejamento da estratégia comercial. Complementarmente, figurava no cerne da estratégia a adoção de um projeto de inserção internacional assertivo, presente principalmente na promoção e adoção da “Política de Portas Abertas”. Todos esses fatores pontuados, considerados sem seu conjunto, proporcionariam um elevado e contínuo crescimento econômico chinês. Segundo Jenkins (2015), esse crescimento chinês e essa maior abertura podem ser considerados alguns dos acontecimentos mais importantes para a economia global nos últimos trinta anos. Enquanto no período após a década de 1970 a América Latina enfrentava um estancamento econômico, a China estava implementando medidas que logo resultariam em um período de grande crescimento na área econômica. Atrelado a esse crescimento, a participação chinesa no comércio mundial passa a ser mais integrada. Conforme elucida Jenkins, Além de passar por um crescimento rápido, a China também se integrou muito mais à economia global. Sua participação no comércio mundial aumentou de menos de 1%, em 1980, para quase 8%, e, em 2009, converteu-se no maior exportador do mundo, ultrapassando a Alemanha. O crescente superávit comercial da China deu lugar à acumulação de grandes reservas de divisas e converteu o país em um importante comprador de Títulos do Tesouro Americano. (JENKINS, 2015, p. 13).

Diante de contexto modificado, a China passa a olhar para além do seu território. Em 1999 foi lançado o “Go Global”, uma estratégia do governo chinês em conjunto com o Conselho Chinês para Promoção do Comércio Internacional (China Council for the Promotion of International Trade – CC4

Lançado por Zhou Enlai no IV Congresso Nacional do Povo em 1975.

170

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

PIT), visando a prospecção de investimento chinês em outros países, fornecendo auxílio a empresas chinesas para alcance de mercado internacional. De acordo com Holland e Barbi (2010), a estratégia estava baseada em cinco objetivos, a saber, (1) aumentar os investimentos da China no exterior, (2) diversificar a produção, (3) melhorar o nível e a qualidade dos projetos, (4) aperfeiçoar os canais financeiros para o mercado nacional e (5) promover o reconhecimento da marca de empresas chinesas nos mercados americano e europeu. (HOLLAND e BARBI, 2010, p. 9)

Apesar da China ainda ser, segundo dados da UNCTAD de 2014, o segundo maior país receptor de IED, o que significa que o país possui um alto potencial interno no que tange à atração de investimentos, é curioso notar seu interesse em expandir seus investimentos a outros países, sem distinção. Holland e Barbi (2010) pontuam seis possíveis justificativas para tal interesse. Não consta em nossos objetivos avaliar todas elas, apenas aquelas que influenciam diretamente o tema tratado. A primeira delas concerne à necessidade de assegurar acesso a recursos naturais necessários para garantir o crescimento do PIB dentro da meta de médio prazo (8 a 10% a.a. até 2013 e acima dos 6% após 2013). Vale ressaltar que a China vem conseguindo manter seu indicador de crescimento econômico nos últimos trinta anos (World Economic Outlook, 2016). Pode-se notar que essa busca por recursos naturais como objetivo estratégico pesa na decisão de investir nas regiões da África e na América Latina. Mais adiante serão apresentados dados que comprovam esta afirmação. O segundo fator levantado refere-se à procura de competitividade. Para os autores, Desde que se juntou à OMC, em 2001, a China teve de abrir gradualmente seu mercado doméstico à concorrência de empresas estrangeiras, o que induziu as firmas chinesas a se expandirem aos mercados externos

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

171

como forma de compensar pelas perdas no mercado doméstico. Na China, os processos de desenvolvimento econômico e de internacionalização da economia estão intrinsecamente ligados: para uma empresa chinesa não basta estar apta a concorrer domesticamente, ela precisa preparar-se para oferecer a qualidade e a tecnologia demandadas no mercado global. Para isso, as empresas chinesas precisam adquirir habilidades gerenciais específicas, como aprender a negociar e planejar a produção num contexto multinacional que envolve a complexidade das normas e legislações (em particular, trabalhista e ambiental) dos diversos países onde atua. (HOLLAND e BARBI, 2010, p. 11-12)

A terceira explicação refere-se aos investimentos realizados em países industrializados. Tais investimentos têm um perfil de catching up, ou seja, tem como objetivo atrair para seu parque produtivo a tecnologia necessária para seu salto industrial. Outro fator que os autores supracitados abordam referese ao fato de a China ser um país atrativo para investimentos externos diretos destinados à exportação, considerando sua estratégia comercial de atingir o maior número de mercados possíveis. O sexto fator desperta interesse. Segundo Holland e Barbi (2010, p. 16), atingir o maior número de mercados está associado ao interesse chinês de expandir sua zona de influência política e econômica (HOLLAND e BARBI,2010, p. 16). É um “círculo virtuoso” para a China. Consequentemente, o país tem destinado investimentos de distintos tipos e finalidades para um elevado número de países em regiões específicas. No que concerne a saídas de Investimento Externo Direto chinês, tomando como exemplo o ano de 2010, o valor total foi de US$68,8 bilhões, segundo o Ministério de Comércio da China. Vale salientar que o crescimento de saída de IED chinês está intrinsecamente relacionado ao ingresso do país na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001 e à conquista do reconhecimento da alcunha de “economia de mercado” por países sul-americanos. Este reconhecimento sugere que a China utilize as regras da OMC, diminuindo a possibilidade de medidas antidumping realizadas unilateralmente contra o

172

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

país5. Pode-se observar no gráfico a seguir como as saídas de IED a partir da China cresceram significativamente.

Saída total de investimentos (US$ bilhões)

Gráfico 1. Fluxo de saída de investimentos chineses (1985 – 2013)

Fonte: MOFCOM e UNCTAD, 2016.

É possível notar que o fluxo de IED apresentou um significativo aumento após a implementação do Go Global, em 1999. Entretanto, quais são as regiões de maior interesse chinês? Segundo Vadell (2011), “o crescimento chinês somado à sua expansão dão grande peso aos produtos derivados da periferia, ou seja, países latino-americanos e africanos”. Com a finalidade de sustentar o crescimento médio que a China vem tendo nas últimas décadas, o país necessita de recursos naturais e commodities. Nesse sentido, as regiões supracitadas configuram-se como fornecedores, instigando o comércio que apresentou um aumento a partir de 2001 (p. 60). Apesar da intensificação das relações econômicas da China com os países da América Latina em 2001 e 2002, foi com a visita do até então presidente Hu Jintao, juntamente com seu vice Zeng Qinghong, nos países sul-americanos em 2004, que proSegundo Vadell (2011, p. 69), “na prática, isso significa que as possibilidades de utilizar instrumentos de defesa comercial contra a entrada de produtos chineses diminuem e aumentam os empecilhos – ou os custos – para a abertura de painéis contra a China”. 5

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

173

porcionou a assinatura de diversos acordos comerciais de investimento com tais países (p. 59). Esta aproximação coincide com o período do governo Lula que possuía uma percepção mais universalista e multilateral para as relações internacionais brasileiras. Logo, desloca-se o foco dos países centrais numa relação de dependência rígida para os mercados regionais e para os países emergentes/renda média. O que merece ser destacado é que esta perspectiva universalista eleva a política externa brasileira a um patamar de maior integração e participação internacional. Segundo dados da Confederação Nacional da Indústria (2015), os maiores investimentos externos chineses são destinados às empresas estatais pertencentes aos setores de petróleo/petroquímica, energia e mineração (p. 22). Esse tipo de investimento, em um primeiro momento, não estava voltado para a América do Sul. Estes investimentos direcionados à região tiveram seu auge no final da primeira década do século XXI. Os dados da CNI (20015, p. 22) registram que 88% dos investimentos realizados na região pela China concentram-se no período entre 2010 e 2011. Contudo, sustentado em outra fonte, uma pesquisa disponível no The Dialogue6, de responsabilidade de Kevin Gallagher, Amos Irwin e Katherine Koleski, de 2016, mostra uma tendência de crescimento (ou retomada) dos investimentos após 2014. Assim, pode-se considerar que a estratégia de Go Global e esse boom de investimento que se deu dez anos mais tarde tem estreita relação. Na tabela a seguir é possível observar o fluxo de investimento direto chinês direcionado aos países sul-americanos no período de 2010-2013. Chama-se atenção para os valores do ano de 2010, em conformidade com a afirmação anterior.

6

Disponível em http://www.thedialogue.org/map_list/. Acessado em 11/06/2016.

174

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Tabela 1. Fluxo de investimentos diretos chineses nos países da América do Sul 2010/2013 Ano

2010

2011

2012

2013

2010/2013

US$ % do US$ % do US$ % do US$ % do US$ milhões total milhões total milhões total milhões total milhões

País Argentina

%

9.050

29,5

2.790

20,4

-

-

2.940

19,1

14.780

21,7

Bolívia

 

-

 

-

 

-

490

3,2

490

0,7

Brasil

13.160

42,9

8.560

62,7

3.270

39, 7

2.900

18,8

27.890

41

Chile

-

-

-

-

190

2,3

1.360

8,8

1.550

2,3

Colômbia

 

-

240

1,8

980

11,9

-

-

1.220

1,8

Equador

3.850

12,5

680

5,0

 

-

2.880

18,7

7.410

10,9

Guiana

-

-

140

1,0

610

7,4

-

-

750

1,1

Paraguai

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

2.500

8,1

-

-

-

-

3.420

22,2

5.920

8,7

Suriname

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

Uruguai

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

Venezuela

2.150

7,0

1.240

9,1

3.190

38,7

1.400

9,1

7.980

11,7

América do Sul

30.710

100

13.650

100

8.240

100

15.390

100

67.990

100

Mundo

123.410

 

112.130

 

133.950

 

144.300

 

513.790

 

Peru

Fonte: Heritage Foundation, 2015. Elaboração própria.

No que se refere aos setores de maior recebimento de investimento direto chinês, vale ressaltar os voltados para a energia7, sendo 2/3 dos investimentos chineses voltados para esse setor (CNI, 2015, p. 24). Como se pode observar na tabela 2, a porcentagem do fluxo acumulado do investimento direto chinês em países como Chile, Colômbia, Equador e Venezuela está acima da média regional, uma vez que a média da região corresponde a 66,86%. Além disso, pode-se notar que os investimentos chineses em âmbito mundial voltam-se também para o setor energético. Nos anos entre 2010-2013 o percentual do total dos investimentos chineses nesse setor foi de 48,96%, enquanto a média sul-americana foi de 66,86%. 7

Incluso o setor petrolífero.

175

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

Tabela 2. Fluxo acumulado de investimentos diretos chineses nos países da América do Sul por setores, participação (%) de cada país (2010-2013) País/Setor Mineração Transporte

Serviços Construção Energia Outros Total Agricultura Financeiros Imobiliária

Argentina

-

17,86

-

10,22

5,28

59,81

6,83

100

Bolívia

-

38,78

-

-

-

-

61,22

100

Brasil

11,29

4,48

3,08

6,2

4,37

69,31

1,25

100

Chile

-

-

-

-

-

100

-

100

Colômbia

-

-

-

-

-

100

-

100

Equador

27,53

-

-

-

-

72,47

-

100

Guiana

13,33

18,67

 

-

-

68

-

100

-

-

-

-

-

-

-

-

42,23

-

-

13,85

-

43,92

-

100

Suriname

-

-

-

-

-

-

-

-

Uruguai

-

-

-

-

-

-

-

-

Venezuela

5,14

9,77

-

3,63

-

75,69

5,76

100

América do Sul

12,06

7,35

1,26

6,4

2,94

66,86

3,12

100

Mundo

10,91

14,99

11,21

5,02

1,72

48,96

7,19

100

Paraguai Peru

Fonte: Heritage Foundation, 2015. Elaboração própria.

Outro setor que recebe grande atenção no que concerne ao destino dos investimentos é o de mineração. O índice mundial é de 10,91%, valor inferior ao da região de 12,06% e de países como Equador e Peru, 27,5% e 42% respectivamente (CNI, 2015, p. 24). No quadro 1, permite-se vislumbrar de forma mais detalhada, listada nos 50 maiores IEDs da China na América do Sul (2010/2013), em qual país as empresas chinesas investem, bem como o seu ano, a empresa-alvo, além de distinguir qual setor e subsetor recebeu tal investimento.

176

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Quadro 1. Os 50 maiores investimentos diretos da China na América do Sul – 2010/2013 País

Ano

Empresa Chinesa Investidora

Valor da Operação

Empresa-Alvo

Subsetor

Setor

Brasil

2010

Sinopec

$7.100

Repsol

Petróleo

Energia

Brasil

2011

Sinopec

$4.800

Galp Energia

Energia

Argentina

2010

CNOOC

$3.100

Bridas

Energia

Brasil

2010

Sinochem

$3.070

Statoil

Petróleo

Energia

Argentina

2013

China Energia Engineering

$2.820

Electroingeniería

Hidrelétrica

Energia

Peru

2013

CNPC

$2.600

Petrobras

Peru

2010

MinMineração

$2.500

Cobre

Mineração

Argentina

2010

Sinomach

$2.470

Ferrovia

Transporte

Argentina

2010

Sinopec

Equador

2010

SinoHidrelétrica

$2.300

Hidrelétrica

Energia

Equador

2013

China Ferroviaway Construction and China Nonferrous

$2.040

Cobre

Mineração

Brasil

2011

Taiyuan Iron CITIC BaoAço

$1.950

CBMM

Mineração

Argentina

2011

Heilongjiang Beidahuang Nongken

$1.510

Crecud

Agricultura

Venezuela

2012

Wison

$1.470

Hyundai

Brasil

2011

Chongqing Grain

$1.410

Venezuela

2013

Sinopec

$1.400

Petróleo

Energia

Chile

2013

SkySolar

$1.360

Alternativa

Energia

Venezuela

2012

State Grid

$1.310 National Electric Corp.

Brasil

2013

CNOOC and CNPC

Brasil

East China Mineral 2010 Exploration ans Development $1.200 Bureau (Jiangsu)

Argentina

2010

Shaanxi Chemical

$1.010

Brasil

2010

State Grid

$990

Plena Transmissoras

Colômbia

2012

Sinochem

$980

Total

Energia

$2.470 Occidental Petroleum

$1.280

Energia

Petróleo

Energia Agricultura

Petrobras, Shell and Total

Energia Petróleo

Energia

Aço

Mineração Químico Energia

Gás

Energia

177

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

País

Ano

Empresa Chinesa Investidora

Valor da Operação

Empresa-Alvo

Subsetor

Setor

Venezuela

2010

Sinomach

$960

Venezuela National Electric Power Company

Carvão

Energia

Brasil

2012

State Grid

$940

ACS

Venezuela

2010

CNPC

$900

PDVSA

Peru

2013

China Fishery

$820

Copeinca

Brasil

2013

China Construction Bank

$720

Banco Industrial e Comercial

Bancário

Serviços Financeiros

Argentina

2011

ICBC

$680

Standard Bank

Bancário

Serviços Financeiros

Equador

2010

Gezhouba

$670

Hidropaute

Hidrelétrica

Energia

Equador

2010

CNPC and Sinopec

$610

Petróleo

Energia

Equador

2013

Harbin Electric

$600

Celec

Hidrelétrica

Energia

Brasil

2012

State Grid

$550

Copel

Guyana

2012

China Ferroviaway Engineering

$510

Equador

2011

Harbin Electric

$470

Celec

Venezuela

2011

China Communications Construction

$460

Petroquímica da Venezuela

Energia Petróleo

Energia Agricultura

Energia

Sithe Global Power Hidrelétrica Hidrelétrica

Energia Energia Químico

Government of Singapore Construção Propriedade Investiment and Imobiliária Canada Pension Plan

Brasil

2012

CIC

$460

Brasil

2012

JAC Motors

$450

Venezuela

2012

China Ferroviaway Construction

$410

Brasil

2010

Chery

$400

Argentina

2011

CNOOC

$330

ExxonMobil

Venezuela

2011

China Communications Construction

$320

Ferrominera Orinoco

Brasil

2013

COFCO

$320

Agricultura

Brasil

2012

Beiqi Foton

$300

Automóvel Transporte

Bolívia

2013

China Aerospace Science and Tecnologia

$300

C.V.G. Ferrominera Orinoco

Autos

Transporte

Aço

Mineração

Automóvel Transporte

Tupac Katari

Petróleo

Energia Transporte

Telecom

Tecnologia

178

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

País

Ano

Empresa Chinesa Investidora

Valor da Operação

Venezuela

2010

Gezhouba

$290

Equador

2010

Three Gorges

$270

Venezuela

2011

China Communications Construction

$260

Brasil

2013

Three Gorges

$250

Colômbia

2011

Sinomach

$240

Empresa-Alvo

Subsetor

Setor Agricultura

Hidrelétrica

Energia

Bolivarian Ports

Marítimo

Transporte

Jari

Hidrelétrica

Energia

Carvão

Energia

Fonte: Heritage Foundation, 2016.

Pela observação das informações do Quadro 1, percebe-se o destaque em alguns países. Do total de investimentos direcionados a empresas nos países sul-americanos (dos 50 listados), o Brasil recebeu 17 desse total, seguido de 10 direcionados à Venezuela, 8 para a Argentina, 7 no Equador, 3 no Peru, 2 na Colômbia e 1 destinado à Bolívia, Chile e Guiana. No que concerne aos setores, segundo Jenkins (2015, p. 22), esses investimentos chineses têm dado atenção a setores considerados relevantes, uma vez tomados os interesses econômicos chineses. Um exemplo é a atenção para as indústrias extrativas, nas áreas petrolíferas e de extração mineral especificamente. Além destes supracitados, chamam atenção as atividades de montagem, utilizadas como instrumento fundamental para um melhor acesso ao mercado latino-americano. Neste sentido, Jenkins (2015, p. 23) cita como exemplo as aquisições da Sinopec e da PetroChina de empresas extratoras e beneficiadoras de petróleo e oleodutos no Equador. Já no Peru, identifica-se as ações da CNPC, enquanto na Colômbia, os investimentos da Sinopec. No que concerne aos investimentos de mercado, aparecem investimentos em ar condicionados (Gree) e produtos eletrônicos (SVA) da Zona Franca de Manaus, no Brasil, além dos investimentos nesses mesmos produtos e televisores na Tierra del Fuego, na Argentina (JENKINS, 2015, p. 23). O quadro 1 lista ainda quais setores receberam maior investimento direto chinês. Pode-se observar que 28 dos 50 maiores investimentos foram na área

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

179

de energia, sendo dos 10 maiores 8 nesse setor. Dos 50 maiores investimentos listados, 6 são no setor de transporte, 5 no de mineração e no de agricultura, 2 no setor químico e no de serviços financeiros e 1 no de construção imobiliária e tecnologia. Vale ressaltar que no setor energético, os subsetores que mais recebem investimentos são o petrolífero e hidrelétrico. Estas observações serão importantes na continuidade do texto, notadamente no segundo tópico. No que concerne ao setor energético, especificamente o petrolífero, a região é um grande polo de recebimento de investimento chinês. Nota-se um grande interesse das companhias estatais da China nesse setor, a exemplo da CNPC, CNOOC e da Sinopec. Cita-se aqui alguns exemplos. A empresa estatal argentina Enarsa (Energía Argentina Sociedad Anónima) demonstrava, ainda em 2010, interesse em colaborar com companhias chinesas para exploração de petróleo offshore na região da costa do Atlântico Sul (VADELL, 2011, p. 66). Em 2015, a Sinopec firmou um acordo de colaboração com a YPF para exploração em Vaca Muerta, na Argentina. Outra empresa que tem investido nessa área de petróleo é a CNOOC (China National Offshore Oil Corporation). Alcançando o patamar de segunda maior empresa petroleira da Argentina, perdendo apenas para a empresa nacional YPF. A CNOOC transformou-se em uma gigante em território argentino devido às suas aquisições. Ainda em 2010, a CNOOP comprou 50% da petroleira Bridas pelo valor de US$3,1 bilhões. No mesmo ano, a Bridas comprou 60% da empresa Pan American Energy por US$ 7 bilhões. No ano de 2010, a Sinopec adquiriu a empresa norte-americana Occidental Petroleum pelo valor de US$ 2,45 bilhões. Em 2011, a Pan American Energy adquiriu 100% dos ativos da empresa Esso Argentina por mais de US$ 800 milhões (ACTUALIDAD, 2015). A Sinopec também fez aquisições na Argentina nesse setor. Outro país que tem recebido grandes levas de investimento na região é o Brasil. Em 2010 e 2011 a empresa adquiriu 40% da empresa espanhola Repcol e 30% da empresa portuguesa GALP (Statoil) – ambas situadas no Brasil – pelo valor de US$ 7.100 milhões pela primeira e US$ 5.000 milhões pela segunda (ACTUALIDAD, 2015). Nos anos seguintes ainda houve aquisição acionária na Petrobrás, Shell e Total, todas instaladas no Brasil. Já na Vene-

180

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

zuela, em 2014 foi fechado um acordo com a CNPC, um investimento de US$ 28.000 milhões no projeto na Faixa Petrolífera de Orinoco. Outro acordo, de US$ 14.000 milhões, também foi firmado pela Sinopec (BBC, 2015). No Equador, a CNPC e a Sinopec possuem consórcio com a nacional Andes Petroleum, administrando inúmeros projetos em diversas províncias do país (BBC, 2015). No que se refere ao setor de minério, segundo a CNI, no ano de 2014 houve uma grande repercussão o aumento dos investimentos chineses no setor de minério no Chile: Os chineses adquiriram um grande projeto de cobre de uma firma suíça e compraram ativos da Petrobras no país, entre outros grandes investimentos no setor. Os investimentos em mineração no Chile também cresceram e Koch-Wesser (2014) atribui a expansão dos investimentos chineses em mineração nesses dois países à assinatura por eles de acordos de livre comércio – que incluem capítulos de proteção dos investimentos – com a China. (CNI, 2015, p. 25)

Outro país notório nesse ramo de minério é o Peru. Por meio do consórcio feito com a MMG LTD das minas de cobre Las Bambas, a China passou a investir US$ 19.000 milhões no país. Dados da Câmara de Comércio Peruano Chinês (Capechi) apontam que a China controlava, em 2014, mais de 30% do setor de minério no Peru (BBC, 2015). Com o intuito de deixar mais nítido para o leitor como tem sido a participação chinesa nos mais diversos países da região, a tabela 3 mostra com clareza os países que mais receberam investimentos chineses e para onde estes foram direcionados. Nota-se que a China tem se empenhado em investimentos no setor energético e no de mineração na região. Em alguns setores, observa-se uma concentração em países como Argentina, Brasil, Chile, Equador, Peru e Venezuela. Desta maneira, pode-se inferir que, na região sul-americana, a China vem realizando investimentos em setores específicos e semelhantes em alguns dos países componentes da sub-região. Entretanto, resta a dúvida se é possível afirmar que a expansão

181

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

destes investimentos vai além dos interesses econômicos e comerciais chineses, ou estes investimentos traduzem a preocupação chinesa na manutenção de uma cadeia produtiva de oferta capaz de servir como “ponte” comercial para os mercados regionais e extrarregionais? Tabela 3. Investimentos* chineses na América do Sul Setores preferenciais e principais países Energia

Montante (U$ bi)

Venezuela (2007 - 2015)

41,50

Brasil (2007 - 2015)

18,90

Equador (2010 - 2015)

6,10

Argentina (2007 - 2014)

2,70

Infraestrutura***

 

Venezuela (2007 - 2015)

20,60

Argentina (2007 - 2014)

12,50

Brasil (2007 - 2015)

1,20

Bolívia (2009 - 2015)

1,20

Equador (2010 - 2015)

0,80

Outros**

 

Equador (2010 - 2015)

9,00

Brasil (2007 – 2015)

1,70

Venezuela (2007 - 2015)

1,10

Bolívia (2009 - 2015)

0,35

Argentina (2007 - 2014)

0,06

Fonte: http://www.thedialogue.org/map_list/. 2016. Elaboração própria. * Investimentos diretos, empréstimos e financiamentos. ** Infraestrutura pública, construção de estradas, construção de equipamentos relacionados a meios de transporte como ferrovias e aeroportos. *** Agricultura e telecomunicações são os mais representativos.

De acordo com Holland e Barbi (2010), os IEDs chineses na América do Sul atuam em três frentes. A primeira delas constitui em uma forma de ga-

182

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

rantir fontes de matérias-primas, energia e alimentos, uma vez que a China configura-se como uma economia em grande expansão. Gallagher (2010, p. 2) chama esse tipo de investimento de “resource seeking”. A segunda tem o intuito de consolidar a indústria do país como altamente competitiva e voltada para economias globais. Neste ponto, vale destacar que a sub-região torna-se um grande mercado potencial consumidor de produtos chineses, uma vez que a China busca reduzir a dependência em relação aos outros mercados (principalmente depois da crise de 2008), como EUA, Japão e Europa (JIANG, 2008, p. 46), movimento conhecido como market seeking (GALLAGHER, 2010, p. 2). A terceira atua como forma de diversificação, uma vez que sua vulnerabilidade em relação ao dólar norte-americano é grande devido aos seus ativos atrelados à moeda dos EUA (HOLLAND e BARBI, 2010, p. 25). Este investimento é classificado como efficiency seeking (GALLAGHER, 2010, p. 3). É tomando como referência os anseios chineses para a região que se procura na seção seguinte esboçar uma explicação para a delimitação de setores preferenciais que se convertem em destino dos investimentos chineses na região. No entanto, é importante notar que há motivação na seleção de onde (país) e em quais setores os investimentos são realizados. São estas as preocupações que fundamentam o próximo tópico.

3. Setores preferenciais e a motivação na seleção Um fator relevante para compreender a relação da RPC com países da América Latina e, consequentemente, da América do Sul, reside no entendimento da estrutura do setor público chinês. Sobre a liderança do Partido Comunista Chinês, a relação entre o governo central, províncias, cidades e municipalidades constitui parte de uma teia institucional consolidada. Este arranjo político inclui as empresas estatais chinesas, a competição entre elas e entre atores produtivos da competição global (sejam empresas públicas ou privadas). Esta estrutura organizacional distingue a China das demais economias do globo. Sustentada neste constructo diferenciado, o governo central chinês controla

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

183

empresas públicas que atualmente respondem por mais de 50% da geração do seu produto bruto anual. Consequentemente, a forte presença do governo central na gestão das empresas chinesas e no setor financeiro permite, tanto no curto prazo quanto no longo prazo, que a China desenvolva estratégias e adote políticas direcionadas especificamente aos seus objetivos de manutenção do crescimento econômico, desenvolvimento de ciência e tecnologia, planejamento urbano e da produção agrícola. Seu setor financeiro e suas agências de investimento são alinhadas e envolvidas com tais objetivos, fechando todo um conjunto de instrumentos voltados, num primeiro momento, ao crescimento econômico, e de forma derivada ao desenvolvimento. As relações estabelecidas com os países da África e da América Latina são resultado da definição de objetivos domésticos que requerem o transbordamento para o cenário externo para serem alcançados. A região da América do Sul não é diferente. A consequência interna das reformas domésticas colocadas em prática na RPC pós-Deng Xiaoping pode ser sumarizada da seguinte maneira: um crescimento econômico contínuo no médio prazo cuja sustentação garante a estabilidade política do PCCh. Adicionalmente, percebe-se uma demanda por infraestrutura e por bens básicos (insumos, bens alimentícios) direcionados ao setor produtivo, que tem como foco atender prioritariamente a demanda interna, mas, simultaneamente, entende que objetivos externos (especialmente a inserção internacional) requerem um transbordamento para mercados adicionais e complementares ao redor do globo. Ao tornar-se o motor da economia mundial, por meio do aumento da sua capacidade produtiva e da alteração das mercadorias produzidas, a China passa a necessitar de mercados consumidores, mas, sobretudo, de fornecedores de insumos produtivos além de alimentos e geração de energia para movimentar sua grande máquina. É aqui que entram regiões como a África e a América Latina, aqui, por opção, restringida à América do Sul. Os interesses chineses para além de suas fronteiras atingem prioritariamente quatro grandes áreas, a saber: relações políticas (e diplomáticas); comércio, investimentos e financiamentos; energia e infraestrutura; educação e divulgação cultural. A região da América do Sul é alvo em todas estas quatro

184

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

grandes áreas com um número elevado de projetos e iniciativas em andamento. Desde a política de abertura, os continentes africano e latino-americano tornaram-se destino das empreitadas chinesas em todos estes campos. A ação política chinesa cresce significativamente após o ano de 2001, não por acaso. A aceitação da China na OMC pode ser considerada um ponto de inflexão nas relações chinesas com o mundo, a América do Sul não poderia ser deixada de lado. Deste ponto em diante, é recorrente a visita de representantes chineses aos países da região. É possível observar a cronologia das visitas de representantes chineses na Tabela 4 abaixo. Tabela 4. Visitas de representantes chineses aos países da região* (2001 – 2015) País Ano

Primeiro Ministro 

Presidente  Argentina Brasil Chile Colômbia Peru Uruguai Venezuela

2001

Zhu Rongli

Jiang Zemin

08/abr

2002

Zhu Rongli

Jiang Zemin

-

-

2003

Wen Jiabao

Hu Jintao

-

-

2004

Wen Jiabao

Hu Jintao

16/nov

2005

Wen Jiabao

Hu Jintao

-

-

2006

Wen Jiabao

Hu Jintao

-

2007

Wen Jiabao

Hu Jintao

2008

Wen Jiabao

2009

11/abr 04/abr

-

-

10/abr

19/abr

-

-

-

-

-

-

 

-

-

-

 

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

-

Hu Jintao

-

-

-

-

20/nov

-

-

Wen Jiabao

Hu Jintao

-

-

-

-

-

-

-

2010

Wen Jiabao

Hu Jintao

 

15/abr

 

-

-

-

-

2011

Wen Jiabao

Hu Jintao

-

-

-

-

-

-

-

2012

Wen Jiabao

Hu Jintao

23/jun

-

-

22/jun

-

2013

Li Keqiang

Xi Jinping

-

-

-

-

-

-

-

2014

Li Keqiang

Xi Jinping

18/jul

14/jul

-

-

-

-

20/jul

2015

Li Keqiang

Xi Jinping

-

21/mai

22/mai

-

-

11/nov 18/nov

20/jun 25/jun

20/mai 24/mai

Fonte: China’s Evolving Role in Latin America: Can It Be a Win-Win? 8. Elaboração própria. * Países fora da lista não receberam visitas oficiais de representantes do Governo Chinês

8

Disponível em: http://publications.atlanticcouncil.org/chinalatam//AC_CHINA090915DP.pdf.

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

185

Na ocasião da divulgação do documento/livro branco chinês de 2008 foram estabelecidos objetivos políticos e econômicos para a relação China América Latina e, consequentemente, abarcando os países da região da América do Sul. Foram levados em consideração a abundância de matérias-primas (insumos), a complementaridade produtiva entre os países da região e a cadeia produtiva chinesa além dos Five Principles of Peaceful Coexistence9. Desde a publicação do documento supracitado, observa-se que a China tem focado sua estratégia em um discurso que exalta as relações de tipo Sul-Sul, além de se propor a atender, na figura de investidor e financiador, as demandas em infraestrutura na região. Para tanto, são utilizados como instrumentos de entrada as relações comerciais, os esquemas de cooperação e a participação em projetos de desenvolvimento, além dos fóruns políticos extrarregionais. Não é estranho imaginar a atração exercida pelos países da região da América do Sul. Fornecedores de bens básicos, matérias-primas, insumos industriais e, a despeito das oscilações cíclicas, em trajetória de crescimento. Dos bens básicos destacam-se os derivados da mineração, soja e derivados e cobre. Peters (2015) afirma que a China, como nenhuma outra nação do globo, possui condições favoráveis para oferecer aos países da região um grupo de “produtos” inseridos em um único pacote voltado para a realização de investimentos e financiamentos de projetos. Segundo Peters (2015, p. 7), esta condição privilegiada é derivada da forte presença do Estado chinês em sua estrutura econômica. “These projects involve trade, financing, investments, and supporting services, all Chinese and, in most of the cases, in the public sector’s control.” O que se pode constatar é que houve um salto significativo no fluxo de investimentos chineses para os países da região. A Tabela 5 mostra a evolução deste fluxo. Países como Argentina, Brasil e Peru apresentaram saltos expressivos na transição do período 1990-2009 para o período 2010-2013. As causas dos saltos são distintas, mas o intuito aqui é encontrar pontos que apresentem convergência entre os países, ou seja, qual o sentido para a atração de capital chinês na forma de investimento e financiamento na região. 9

China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean.

186

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Tabela 5. Fluxo de IED da China para países da América do Sul (em milhões U$) País

Período 1990-2009

Período 2010-2013

Argentina

143,00

6.270,00

Brasil

255,00

23.886,00

Chile

-

100,00

Colômbia

1.677,00

2.071,00

Equador

1.619,00

278,00

Peru

2.262,00

6.846,00

Venezuela

240,00

900,00

Fonte: ECLAC data, 2015. Acesso maio/2016.

Nota-se pelos valores da tabela 5 que os investimentos chineses na região eram tímidos até 2010. Do período compreendido entre 1990 a 2009, o principal interesse chinês na região concentrava-se em participação em empresas de extração de óleo bruto e no setor de mineração. Foi a partir de 2010 que investimentos (aquisição de ações de empresas) de duas grandes empresas chinesas levaram os fluxos chineses a níveis mais significantes. Com a entrada na Sinopec no Brasil e da CNOOC na Argentina, a presença chinesa despertou atenção dos pesquisadores e, mais ainda, abriu as portas para a maior entrada de capital chinês na região. Antes de 2010, os fluxos comerciais já eram representativos, decorrentes da relação de complementaridade existente entre os bens produzidos nos países da região e os produtos vendidos pela China. Enquanto os países da região constituem-se em exportadores de bens básicos (soja, minério de ferro, cobre e petróleo) para a China, esta exporta manufaturados de maior valor adicionado para os países da região – situação que futuramente poderá tornar-se problemática para os países latino-americanos no geral. Mas, retomando a trajetória da análise dos investimentos, observa-se nos dados do MOFCOM e nos dados disponíveis na Heritage Foundation (2015) que, a partir de 2010, as empresas chinesas passaram a fazer parte (deter ações ou até mesmo realizar movimento de aquisição) das principais empresas e dos principais setores produtivos dos países da região. No setor

187

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

energético, notadamente gás e óleo, a China entrou na Argentina, Venezuela, no Brasil, na Colômbia, no Equador e, mais recentemente, no Peru. No setor de mineração, as empresas chinesas concentram seus investimentos no Peru, vindo com mais distância o Brasil e o Chile. Na extração de recursos naturais, a presença chinesa no Brasil já atinge setores dos mais diversos, alcançando até os elementos de terras raras (ETR), que são insumos industriais considerados estratégicos para a produção de produtos de alto teor tecnológico pela China (ver tabela 6). Tabela 6. Investimentos Chineses nos setores de Óleo e Mineração

País

Ano de entrada

Investimento acumulado (milhões de U$)

Peru

1994

326

 

Venezuela

1998

1.140

 

Equador

2003

199

Brasil

2010

11.911

 

Argentina

2011

2.450

 

Colômbia

2006

1.081

Brasil

2011

3.070

 

Colômbia

2009

877

CNOOC

Argentina

2010

3.100

Shougang

Peru

1992

453

Chinalco

Peru

2007

2.762

Zijin (45%), Tongling (35%) e Jiangji (20%)

Peru

2007

190

Minmetals (60%) e Jiangji (40%)

Peru

2008

730

Nanjinzhao

Peru

2009

100

Wuhan Steel

Brasil

2010

400

East China Mineral Exploration

Brasil

2010

1.200

China Niobium

Brasil

2011

1.950

Empresa Chinesa Setor: Óleo CNPC

Sinopec

Sinochem

Setor: Mineração

Fonte: ECLAC, 2015 e Heritage Foundation, 2016.

188

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Ao mesmo tempo, a China tem realizado investimentos pesados em infraestrutura nos países da região. São encontradas duas motivações comuns: a primeira consiste na carência e, consequente, demanda por capital para ser investido na criação/manutenção de infraestrutura, especialmente nos setores de transporte e energia. A segunda razão está além da elevada capacidade de investimento chinês e na baixa condição dos países da região em despender valores dignos para construção de infraestrutura básica, mas conta muito o conhecimento adquirido pela China ao longo destes mais de 30 anos de construção de estrutura para cidades cuja população ultrapassa os 20 milhões de habitantes. Não se pode furtar de citar o estímulo de valorização do capital chinês e o aumento da sua participação oficial nas economias destes países. Há uma discussão sobre o grau de dependência que estes países estão criando com a economia chinesa. Ao mesmo tempo, há o argumento de que a China está ocupando espaços vazios deixados pelas nações desenvolvidas quando estas optaram por não investir e financiar as economias em desenvolvimento. A este respeito há muito a ser discutido, mas não é o propósito deste texto. Para finalizar este tópico, cabe então destacar que as relações entre China e países da região foi adensada a partir de 2001. Porém, no que concerne ao fluxo de investimentos, estes são acentuados a partir de 2010 (o que não quer dizer que não havia IED chinês antes desta data). Estes investimentos concentram-se em setores reconhecidos como preferenciais pela China, ou seja, setores produtores de insumos básicos (óleo bruto, minerais e soja). Também é após 2010 que se observa a entrada de empresas chinesas e capital chinês nos investimentos em infraestrutura. A perspectiva é que tais investimentos cresçam nos países da região, tanto devido à carência quanto ao ímpeto do investimento chinês. Para tanto, pode-se observar participação de instituições financeiras chinesas, tais como o Banco de Desenvolvimento da China e o Eximbank. Ainda, observa-se a criação de instituições que serão instrumento da realização destes investimentos na região da América Latina, tal como o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura. Dentre outras possibilidades, tudo indica que o capital chinês é bem-vindo nestes países. A existência de terras em abundância complementa a equação que referenda a motivação

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

189

chinesa. O que se pretendeu expor aqui é que há um interesse mútuo, de caráter complementar, que concede dinamismo ao fluxo de investimentos chineses em direção aos países da região.

4. Considerações finais A América do Sul transformou-se em um grande polo de recebimento de IED chinês desde o começo deste século. Em 2001, com a aceitação da China pela OMC, observou-se um salto nas relações comerciais da RPC com o mundo. Dado o apetite chinês por insumos e por mercados consumidores, a atenção chinesa aos fluxos comerciais nos mercados globais foi aumentando. Ao mesmo tempo, os investimentos chineses ao redor do globo começaram a crescer significativamente. Não foi diferente seu comportamento direcionado à América Latina e, consequentemente, em relação aos países da América do Sul. Mas foi no ano de 2010 que esse montante saltou significativamente, como se pode observar nos dados apresentados. O fato de a região ser rica em diversas matérias-primas de interesse chinês tem uma grande participação neste processo. Simultaneamente, deve-se ressaltar a ascensão de novos governos na região dotados de uma perspectiva política e econômica crítica, influenciados pelo signo da diversificação, desenvolvimento, multilateralismo e favorável ao movimento de integração internacional. A China exerce um papel primordial no surgimento e fortalecimento de um novo modus operandis político e econômico na região. A conscientização de que a China se tornava um global player também exerceu um papel forte quanto à atração e atenção destes países, devido à possibilidade de que ela ocupasse espaços deixados pelos países desenvolvidos. A vontade e o interesse chinês de investir na região e a carência de capital para investimentos em infraestrutura dos países sul-americanos formam o conjunto de incentivos para o aumento da presença chinesa. Consequentemente, observa-se a China crescendo em volume de investimentos realizados por meio de suas empresas (estatais) na região. O desenvolvimento dessa relação entre China e América do Sul, bem como as preferências

190

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

chinesas em determinados setores, pode ser explicado mediante a estrutura diferenciada que a China possui em seu setor público. Uma vez que o governo chinês controla boa parte dessas empresas públicas que efetuam esses investimentos na região, o mesmo se torna responsável por direcioná-los no sentido de manter seu acelerado crescimento econômico, funcionando como uma retroalimentação. A estratégia realiza-se via participação e/ou aquisição de empresas (ou parte delas via aquisição acionária), via esquemas de cooperação sob o signo Sul-Sul e em financiamentos em projetos de infraestrutura. Conforme exposto, a China possui um padrão em seus investimentos, direcionando-os para os setores de energia e mineração, extração de óleo bruto e, em menor escala, em infraestrutura.

Referências ACTUALIDAD. La inversión multimillonaria de China en América Latina desplaza a EE.UU. Disponível em: https://actualidad.rt.com/economia/171183-infografia-inversiones-china-america-latina. Acesso em: 30 de abril de 2016. BBC. Las cinco principales inversiones de China en América Latina. Disponível em: http://www.bbc.com/mundo/noticias/2014/05/140428_china_america_latina_inversiones_lp. Acesso em 28 de abril de 2016. _______. ¿Por qué a China le interesa tanto hacer negocios en América Latina? Disponível em: http://www.bbc.com/mundo/noticias/2014/07/140714_economia_china_america_latina_msd. Acesso em 28 de abril de 2016. CELAC. China-CELAC Forum Cooperation Plan (2015-2019). 2015. Disponível em: http://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/zxxx_662805/t1227318.shtml. CENTRAL PEOPLE’S GOVERNMENT OF THE PEOPLE’S REPUBLIC OF CHINA. China’s Policy Paper on Latin America and the Caribbean. 2008. Disponível em: http:// www.gov.cn/english/official/2008-11/05/content_1140347. htm.

INVESTIMENTOS CHINESES NA AMÉRICA DO SUL

191

CEPALSTAT. Base de Datos y Publicaciones Estadísticas. Disponível em: http://estadisticas.cepal.org/cepalstat/WEB_CEPALSTAT/estadisticasIndicadores.asp?idioma=e. Acesso em: 23 de abril de 2016. CNI. Interesses da indústria na América do Sul: investimentos, 2015. Disponível em: http://www.sindimetal.com.br/wp-content/uploads/2015/08/Interesses-da-Industria-na-America-do-Sul-Investimentos.pdf. Acesso em: 23 de abril de 2016. GALLAGHER, Kevin. China and the Future of Latin American Industrialization. Issues in Brief, Boston, p. 1-8, Oct 2010. Disponível em: http://www. bu.edu/pardee/files/2010/10/18-IIB.pdf. Acesso em: 19 de abril de 2016. GOLDMAN, Merle. A Era de Reformas pós-Mao. In: FAIRBANCK, John K.; GOLDMAN, Merle. China: Uma nova história. Tradução de Marisa Motta. Porto Alegre: L&PM Editores, 2008. GRANSOW, Bettina. Chinese Infrastructure Investment in Latin America. An Assessment of Strategies, Actors and Risks. In: PETERS, Enrique Dussel and ARMONY, Ariel (Eds.). Latin America-China Beyond Raw Materials. Who Are the Actors? Mexico: FES, RED ALC-CHINA, UNAMCECHIMEX, 2015. HOLLAND, Marcio; BARBI, Fernando. China na América Latina: uma análise da perspectiva dos investimentos diretos estrangeiros. Textos para discussão 247, mar. 2010. Disponível em http://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/4251. Acesso em: 20 de abril de 2016. IMF – INTERNATIONAL MONETARY FUND. World Economic Outlook. April 2016 edition. Disponível em: http://www.imf.org/external/pubs/ft/ weo/2016/01/weodata/index.aspx. Acesso em 23 de abril de 2016. JENKINS, Rhys. La expansión global de China y su impacto en América Latina. La expansión de China en América Latina. Equador: Sebastián Mantilla Baca-Centro Latinoamericano de Estudios Políticos (CELAEP), 2015.

192

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

KISSINGER, Henry. Sobre a China. Tradução de Cássio de Arantes Leite. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. LEITE, Alexandre César Cunha. O projeto de desenvolvimento econômico chinês – 1978-2008: a singularidade de seus fatores políticos e econômicos. Tese de Doutorado em Ciências Sociais/Relações Internacionais PUC/SP, 2011. LYRIO, Maurício Carvalho. A ascensão da China como potência: fundamentos políticos internos. Brasília: FUNAG, 2010. SHIXUE, Jiang. “Three Factors in Recent Development of Sino-Latin American Relation”. In: ARSON, C; MOHR, M. e ROETT, R. Enter the Dragon? China’s Presence in Latin America. Washington: Woodrow Wilson, 2008. VADELL, Javier. “A China na América do Sul e as implicações geopolíticas do consenso do pacífico”. Revista de Sociologia e Política, vol 19, nº suplementar, p. 57-79, 2011.

A China na América Latina1 Investimento em infraestrutura portuária Adriana Erthal Abdenur

Um dos grandes gargalos para o desenvolvimento a longo prazo na América Latina é a deficiência da infraestrutura portuária da região. Além de problemas históricos – como falta de capacidade dos portos, manutenção inadequada dos equipamentos e da dragagem, empecilhos burocráticos e fraca integração multimodal –, essa infraestrutura não vem acompanhando o crescimento e a diversificação do comércio exterior da região. Apesar de algumas iniciativas nacionais e sub-regionais, a escassez de investimentos tende a agravar a situação. Portanto, é importante identificar novas fontes de capital. Este é o caso da China, que, além de se tornar parceira de peso no comércio com a região, tem financiado e implementado projetos de infraestrutura portuária pelo continente. Essa nova onda de investimentos representa uma série de oportunidades – e novos riscos – para o desenvolvimento da região. Diante desse quadro, este artigo analisa alguns dos projetos de investimento em infraestrutura portuária com os quais a China está envolvida na América Latina, com vistas a apontar alguns dos benefícios e riscos de tais investimentos.

1. Desafios da infraestrutura portuária na região Estudos empíricos em diversos contextos revelam uma relação positiva entre a melhoria de infraestrutura e o crescimento econômico, com redução dos custos

O texto foi originalmente publicado em março de 2013 na revista Pontes, do International Centre for Trade and Sustainable Development (ITCSD), de Genebra: http://www.ictsd.org/ bridges-news/pontes/news/a-china-na-américa-latina-investimento-em-infraestrutura-portuária. 1

194

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

de transporte e externalidades para a produção e aumento da produtividade2. Na América Latina, uma série de gargalos dificultam o desenvolvimento da infraestrutura portuária, gerando ineficiências que reduzem o volume e aumentam o custo das operações portuárias na região. Apesar de alguns resultados positivos decorrentes de reformas implementadas na década de 1990 o boom das commodities da última década alargou a lacuna entre a infraestrutura existente e a demanda crescente. Embora as economias da região tenham mantido desempenho razoável no contexto da crise econômica global, a escassez de capital dos países industrializados avançados reduziu os investimentos nos portos latinoamericanos. Além disso, os níveis de investimento na infraestrutura da região permanecem aquém dos 4-5% do produto interno bruto (PIB) recomendados pelo Banco Mundial, com a média em torno de 1-2%. A Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) estima que a região deveria investir cerca de 5,2% de seu PIB para que a média de crescimento anual se aproxime dos 4%. Para alcançar os países do Leste Asiático, os gastos teriam que atingir 7,9% do PIB3. Por um lado, tais estimativas agregadas ofuscam variedades entre os países da região nessa seara: Argentina, Brasil, Colômbia, Panamá, Paraguai e Uruguai têm portos que se adequam a padrões internacionais aceitáveis de eficiência e segurança4. No entanto, mesmo nestes países, os portos não vêm acompanhando a demanda crescente5. Primeiramente, o equipamento e a logística portuária não atendem às necessidades de navegação, movimentação e armazenamento de mercaVer: Rozas, Patricio; Sánchez, Ricardo J. Desarrollo de infraestrucutura y crecimiento económico: revisión conceptual. In: CEPAL Serie 75. CEPAL, 2004. Ver também: OCDE. Clarifying Trade Costs in Maritime Transport. Working Party of the Trade Committee, OCDE, 29 mar. 2011. 3 Ver: Latin American Business Chronicle. Infrastructure Bids in Latin America. (18 out. 2012). 4 Ver: Santiago, Priscila Braga. Infraestrutura: Experiência na América Latina. Textos para Discussão CEPAL/IPEA 25. IPEA, 2011. 5 Só no Brasil, o movimento total de contêineres mais que triplicou entre 1999 e 2010. A defasagem portuária adquire ainda mais urgência para o Brasil com a perspectiva de exploração em grande escala do pré-sal. Ver: Agência Nacional de Transportes Aquaviários. Anuário Estatístico Portuário. ANAq, 2011. 2

A CHINA NA AMÉRICA LATINA

195

dorias 6. A alta concentração de atividade em poucos portos também contribui para a defasagem. No Brasil, dos 34 portos organizados, 13 – quase todos na região Sudeste – responderam por 90% da carga transportada em 2011. Os problemas são agravados à medida que o tamanho dos cargueiros aumenta. Os maiores cargueiros em operação, de 13.000 TEUs, só poderão operar regularmente na América Latina se os portos forem expandidos e modernizados, com equipamento especializado e manutenção apropriada. Além da insuficiência dos equipamentos, a infraestrutura portuária sofre com entraves burocráticos, impasses políticos e tarifas excessivas. De acordo com o Banco Mundial, importar um contêiner para o Brasil custa o dobro da média dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) – sendo que essa estimativa exclui subornos e taxas cobradas por empresas intermediárias. A incerteza regulatória, a rigidez dos arcabouços jurídicos e as estruturas administrativas confusas inibem a concorrência e contribuem para a ineficiência da infraestrutura e serviços portuários. Alguns governos operam seus portos com mão pesada, afastando investidores privados mesmo quando a lei permite tal participação. Em muitos países, as parcerias público-privadas (PPPs), arrendamentos e concessões são frequentemente mal estruturados. Políticas restritivas de reserva de frete encarecem o transporte marítimo, desviando cargas ao transporte terrestre. Por fim, a qualificação da mão de obra e a profissionalização das autoridades portuárias são desafios para praticamente todos os países da região. A integração entre a infraestrutura portuária e as redes rodoviárias, ferroviárias e de logística ainda é frágil, e a fraca interligação entre portos de diferentes países restringe a criação de economias de escala. Mesmo nas vias terrestres que já estão interligadas – como o corredor que se estende da Venezuela pela margem ocidental dos Andes e as rotas vinculando o Brasil com a Na Baía de Guanabara, por exemplo, há longas filas de embarcações à espera de carga, descarga ou finalização de documentação, com custos altíssimos de sobreestadia. Ver: Banco 6

Mundial. Quality of port infrastructure. WEF, 2012. Ver também: Banco Mundial. How to Decrease Freight Logistics Costs in Brazil. World Bank Transport Papers 39. World Bank, abr. 2012.

196

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Argentina e o Chile –, a transitabilidade das rodovias é precária; acrescenta-se, ainda, a fragmentação da malha ferroviária. Alguns governos vêm lançando iniciativas com vistas a preencher essas lacunas. Entre 2000 e 2010, 29 países da região implementaram 688 projetos de infraestrutura com participação privada, um total de US$ 191 bilhões em investimentos7. A participação do setor privado em projetos de infraestrutura foi maior no Brasil (53% do investimento total e 44% dos projetos) e no México (18% do investimento total e 11% dos projetos) – dois países que recentemente lançaram pacotes de estímulo a investimentos em infraestrutura. Para promover a integração regional, a Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e de outras organizações. Por sua vez, a CEPAL tem fomentado a troca de conhecimento sobre melhoria de portos por meio de pesquisas sistemáticas e de workshops sobre técnicas de planejamento. Mesmo assim, os investimentos em infraestrutura portuária são insuficientes.

2. Investimentos chineses Apesar de o comércio dominar as relações econômicas entre América Latina e China, o investimento chinês na região também vem crescendo. O aumento dos investimentos chineses na infraestrutura da região encaixa-se na estratégia chinesa de fortalecer seus laços com a região. Quando, em 2012, o primeiro-ministro Wen Jiabao visitou quatro países da região, o governo propôs a criação de um Fórum de cooperação China-América Latina, com aportes iniciais de US$ 15 bilhões voltados para infraestrutura. Tais empréstimos seriam somados aos investimentos já em andamento, os quais se concentram no setor extrativo e incluem projetos ambiciosos para os portos da região. Quase 7

Disponível em: http://bit.ly/YUv0Rd.

A CHINA NA AMÉRICA LATINA

197

todos esses investimentos buscam aumentar a eficiência do escoamento e do transporte marítimo das commodities latino-americanas para a Ásia. O governo chinês ajuda a identificar novas oportunidades e facilita a atuação das empresas chinesas, sobretudo das grandes estatais que operam no setor extrativo e na infraestrutura de grande porte. No entanto, empresas privadas de porte médio e pequeno que se especializam em partes mais específicas da cadeia produtiva também atuam em alguns portos. Em novembro de 2011, foi realizado um seminário sobre oportunidades de investimento na América Latina, com a participação de representantes do Comitê Consultivo Popular do Partido Comunista e do Ministério das Relações Exteriores chinês. Ainda, durante uma reunião realizada em Pequim com sua contraparte argentina, o ministro da Agricultura chinês, Han Changfu, afirmou que o governo estaria selecionando empresas chinesas para compor uma delegação de empresários interessados em investir no setor agrícola e na infraestutura de portos argentinos. Além de grandes construtoras, estão presentes empresas de transporte marítimo, como a China Overseas Shipping Company (COSCO), China Shipping e Hanjin. Os projetos são financiados por bancos e instituições financeiras, inclusive o Banco de Desenvolvimento da China e o EximBank chinês, que oferecem crédito para projetos de infraestrutura e industrialização. Há bastante variação na divisão de trabalho entre os atores chineses e as instituições locais. Além disso, o cálculo diplomático chinês varia dentro da região. No Caribe e na América Central, o isolamento de Taiwan, com a qual diversos países mantêm relações, pesa na distribuição dos investimentos. A China também possui interesses estratégicos fortes nos países com os quais mantém parcerias e diálogos estratégicos, como Brasil, Chile, México e Venezuela – e isso também se reflete no volume de investimentos. No México, quatro dos cinco maiores portos recebem investimentos de empresas chinesas. Há também planos para a criação de um gigantesco centro de distribuição de produtos chineses (apelidado de “Dragon Mart”), que constituiria um centro de distribuição de mercadorias chinesas por todo o continente. Apesar da novidade do investimento chinês em certos lugares, algumas empresas já acumularam bastante experiência nos portos da região. Desde

198

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

a década de 1990, a Hutchison-Whampoa, conglomerado baseado em Hong Kong, opera terminais de contêineres nos dois lados do Canal do Panamá. Em 1995, a Hutchison-Whampoa formou parceria com uma empresa privada das Bahamas com vistas ao desenvolvimento do porto de Freetown para que este receba cruzeiros. Anos depois, a Hutchison-Whampoa dragou e expandiu o porto, criando um dos maiores centros de contêineres do mundo. A proporção da mão de obra trazida da China também varia de acordo com a natureza do projeto, as leis trabalhistas locais e a reação política à atuação chinesa. Em Freeport (Bahamas), a Hutchison-Whampoa emprega cerca de 500 funcionários, entre os quais apenas 5 estrangeiros (nenhum deles de nacionalidade chinesa)8. Já no Suriname, onde a China vem implementando uma série de projetos de infraestrutura, a grande maioria dos trabalhadores é chinesa. Os interesses da China pelos setores de extração e commodities agrícolas estão refletidos nos investimentos portuários, que visam a agilizar o transporte de minérios, soja e outras commodities produzidas no continente para a China. O padrão é semelhante ao papel dos investimentos chineses na infraestrutura africana, onde predominam linhas ferroviárias e rodoviárias simples, que se estendem do interior até portos voltados à exportação dessa produção específica. Na América Latina, em toda a costa do Pacífico – onde os países latino-americanos têm priorizado suas relações com a China –, empresas chinesas estão expandindo e modernizando diversos portos dessa mesma forma, sempre associando-os a um centro de mineração. Além disso, a China e alguns dos seus parceiros ao longo da costa oriental da América Latina têm investido cada vez mais no fortalecimento dos mecanismos de cooperação no Pacífico, tais como a recém-criada Aliança do Pacífico, da qual pouco se beneficiam os países voltados para o Atlântico. O Chile, que possui longa tradição de busca por laços com o Pacífico e que, em 2006, assinou um tratado de livre comércio com a China, tem avaliado uma proposta de investimentos no valor de US$ 285 milhões para projetos no deserto do Atacama. O projeto seria encabeçado pela Hebei Wenfeng Industrial 8

Ver: .

199

A CHINA NA AMÉRICA LATINA

Group, que opera a filial Minera San Fierro no Chile, e incluiria extração de minério de ferro em Mina Escondida e um terminal portuário (em Puerto Desierto) para o escoamento. O projeto representaria um aumento em 135% dos investimentos chineses no Chile até 2010. Se a empresa receber a licença ambiental, a construção do porto deve começar em abril de 2014. Empresas chinesas também estão negociando investimentos no porto de San Antonio como parte do projeto de criação de uma Cidade Comercial Internacional. Nesse local, manufaturas chinesas seriam finalizadas e re-exportadas para outros países da região com o selo “Fabricado no Chile”. As negociações nem sempre culminam em projetos concretos, por diversas razões. Nas Ilhas Caiman, a China Harbour Engineering Company negociava há meses a construção de um cais para navios cruzeiros de grande porte em George Town, quando o governo britânico reforçou regras de licitação que excluíram a empresa da concorrência. No Brasil, a Wuhan Iron and Steel assinou uma parceria com a EBX para uma siderúrgica de US$ 5 bilhões no complexo do novo superporto de Açu, mas o projeto ainda não saiu do papel. Participação do setor privado em projetos de infraestrutura (2000-2010)

53%

Em relação ao investimento total

44%

Em relação ao total de projetos

Além disso, empresas chinesas vêm propondo a construção de “canais secos” vinculando o Caribe ao Pacífico, na esperança de contornar o alto custo de trânsito pelo Canal do Panamá. O presidente colombiano Juan Manuel

200

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Santos caracterizou como “avançadas” as discussões sobre a referida proposta, que percorreria 220 km desde o Pacífico até uma cidade nova, que seria construída perto de Cartagena. O projeto contaria com financiamento do Banco de Desenvolvimento da China e teria capacidade para transportar até 40 milhões de toneladas de carga do interior até o Pacífico, priorizando o carvão que a Colômbia vende para a China. Mais ao Norte, uma empresa de Hong Kong propõe financiar e construir o “Grande Canal da Nicarágua”, que combinaria uma hidrovia e uma ferrovia, com custo estimado em US$ 30 bilhões. No entanto, esses projetos ainda não saíram do papel. Outros projetos no Caribe têm sido facilitados pelo estreitamento das relações com a Venezuela, da qual a China compra petróleo e onde empresas chinesas têm investimentos estimados em US$ 50 bilhões. Em Puerto Cabello, a China Harbor Engineering Company participa da construção de um terminal de contêineres9. O governo venezuelano agora negocia com a chinesa ZMPC a compra de guindastes de pórtico e outros equipamentos. Além disso, a Metallurgical Corporation of China (MCC) tem um projeto para expandir o porto venezuelano de Palúa, dobrando a capacidade de movimentar minério de ferro no Rio Orinoco. No entanto, cabe destacar que a morte do presidente Hugo Chávez e a possibilidade de instabilidade política no país têm gerado apreensão em certas empresas investidoras. Um dos maiores projetos em infraestrutura portuária propostos até agora seria implementado no Suriname, onde quase 10% da população é constituída por imigrantes chineses10. A Cheng Dong International e a China Harbour assinaram um Memorando de Entendimento de US$ 6 bilhões para projetos que abrangem um porto de águas profundas, assim como uma rodovia e ferrovia de Paramaribo até Manaus, reduzindo a necessidade de cabotagem ao longo do litoral da Amazônia. Investimentos chineses também prometem alterar o perfil dos portos do Atlântico Sul. No “superporto” de Açu, no estado do Rio de Janeiro, a grande De acordo com o governo venezuelano, o terminal diminuirá o tempo de desembarque de carga em 600%. Ver: . 10 Ver: . 9

A CHINA NA AMÉRICA LATINA

201

prioridade é facilitar a exportação de minério de ferro, soja e petróleo para a China. Na tentativa de atrair investimentos chineses para o complexo, o governo estadual recebeu a visita de 100 empresários chineses. Da mesma forma, antecipando os investimentos no porto, a prefeitura de São João da Barra passou a oferecer aulas de mandarim aos locais. Quando Wen Jiabao visitou a América do Sul, em 2012, o presidente uruguaio José Mujica propôs que a China investisse no novo porto em Rocha, o que facilitaria a venda de carne bovina para a China. Na Argentina, os investimentos chineses alcançam a Patagônia. Na província de Rio Negro, a maior produtora de alimentos da China tem planos de cultivar 330 hectares e expandir o Porto de San Antonio Oeste, com vistas a exportar parte dessa produção para a China.

3. Considerações finais Em todo o perímetro latino-americano, a China tem investido em portos de forma a agilizar a exportação de minérios e commodities para a China. Esses investimentos são promissores para portos pré-existentes e para instalações abandonadas ou em fase de planejamento. A construção de terminais, a expansão de portos e a modernização do equipamento deverão gerar uma série de benefícios para os países da região, sobretudo porque o comércio internacional vem assumindo maior importância em suas economias. Além disso, os investimentos chineses podem alimentar novas dinâmicas saudáveis de competição inter-portuária, por exemplo a concorrência crescente entre México, Colômbia, Suriname e Chile para tornar-se o ponto de entrada da China para o continente latino-americano. No entanto, os investimentos chineses também representam certos riscos, na medida em que, ao criarem linhas para o escoamento da produção do interior do continente, tendem a reforçar um modelo econômico baseado na exportação de commodities. Embora esse modelo traga benefícios econômicos, também torna as economias da região mais vulneráveis às oscilações da demanda e dos preços de commodities específicas. Práticas como a relativa

202

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

falta de transparência (mesmo para os padrões da região), o descaso com o meio ambiente e as tensões sociais produzidas pela contratação limitada de mão de obra local também podem ter impactos negativos. Ademais, com poucas exceções, os projetos sendo implementados ou negociados pouco contribuem para a integração intra- e inter-regional na América Latina. Cabe aos atores da região aproveitar a estrutura sendo implantada de forma a maximizar suas externalidades positivas. Em alguns casos, isso pode acontecer por meio da integração multimodal. Em outros contextos, mediante investimentos públicos ou incentivos para o capital privado, os quais seriam aplicados estrategicamente, voltados a interligar portos-chave do sistema. A IIRSA, o BID, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e outras instituições nacionais e regionais também estão bem posicionadas para identificar e complementar os projetos em andamento, mapeando os principais corredores de exportação e adequando projetos e linhas de financiamento voltadas à integração de infraestrutura em grande escala. Ao mesmo tempo, as negociações diplomáticas e econômicas com a China devem formular planos a longo prazo, buscando evitar as distorções e as tensões políticas e maximizar a transferência de tecnologia e conhecimento. Finalmente, apesar dos atrativos do abundante capital chinês – sobretudo em um contexto de retração dos investimentos estadunidenses e europeus –, os países da América Latina não devem apostar apenas na China: a diversificação das fontes de investimento é importante para reduzir os riscos decorrentes da dependência de um único país. Toda vez que um país domina os investimentos em infraestrutura de outro contexto, ele cria um path dependency (por meio de especificações técnicas, tecnologias de construção, laços institucionais etc.), que dificulta a inserção de empresas locais. As novas assimetrias — ou até mesmo dependências — produzidas pelos investimentos chineses devem ser levadas em conta por atores locais na melhoria e integracão da infraestrutura portuária da região.

O realismo chinês de Yan Xuetong Renan Holanda Montenegro

A ascensão da China durante as últimas décadas talvez seja o acontecimento mais marcante para o estudo das Relações Internacionais desde o fim da Guerra Fria. As implicações práticas de tal fenômeno são muitas: a China tornou-se a segunda maior economia do mundo; analistas temem uma possível confrontação hegemônica com os Estados Unidos; houve uma reorganização das forças regionais na Ásia, com uma lenta deterioração do poderio japonês; etc. No entanto, é no campo teórico que se posta um dos grandes desafios para a disciplina, haja vista a aparente incapacidade das teorias à disposição em explicar com rigor o “fator China” nas relações internacionais.1 A política externa chinesa pode ser descrita utilizando-se as lentes do (neo)realismo ou do liberalismo? Estamos diante de mais uma grande potência que vai projetar seu poder pelas vias militares? O enfrentamento militar é mesmo a estratégia dominante no rol de ações à disposição das elites tomadoras de decisão do Partido Comunista? Perguntas como essas têm balizado muito da literatura que vem sendo produzida sobre a China no campo das Ciências Sociais em geral, e em particular na disciplina das Relações Internacionais. É na esteira destes acontecimentos que a academia chinesa na área de Política Internacional tem ganhado força. Cada vez mais, especialistas chineses apregoam a necessidade de se reformar o atual aparato teórico utilizado nos estudos sobre a China e a atuação internacional do país. Nesse contexto, o nome de Yan Xuetong é emblemático. Trata-se de um dos acadêmicos mais respeitados no campo das Relações Internacionais na China, sendo reconhecido como um ferrenho defensor da incorporação de elementos da filosofia chinesa ao corpus teórico Durante todo o texto, utilizamos o termo Relações Internacionais (RI), com as iniciais maiúsculas, para designar a disciplina acadêmica. Ao mencionarmos “relações internacionais”, com minúsculas, nos referimos ao objeto de estudo da disciplina.

1

204

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

da disciplina. Seu livro mais conhecido, Ancient Chinese Thought, Modern Chinese Power, foi lançado em língua inglesa pela editora da Universidade de Princeton em 2011. PhD em Ciência Política pela prestigiosa Universidade da Califórnia (Berkeley) e professor da Universidade de Tsinghua, onde também é diretor do Instituto de Estudos Internacionais, Yan Xuetong representa uma geração de intelectuais que está à frente de uma nova fase no campo das Relações Internacionais na China, agora mais distante da tutela oficial do pensamento comunista. Antes, uma parte considerável da academia chinesa se dedicava a estudos voltados apenas para orientação política. Para entender o atual contexto de reformulação e incorporação de novos elementos às teorias das Relações Internacionais, com especial ênfase à questão chinesa, faz-se necessário analisar, antes, a evolução da disciplina na China. Sendo assim, este artigo está dividido da seguinte forma: primeiro, apresentamos um breve panorama sobre o campo das Relações Internacionais na China; em seguida, discutimos os aspectos centrais da filosofia política chinesa que são trabalhados na obra de Xuetong; depois, apresentamos a intersecção do pensamento tradicional chinês com o estudo das Relações Internacionais; por fim, tecemos as considerações finais. Espera-se, com isso, situar a academia brasileira a respeito de um debate que tem se revelado profícuo na academia chinesa, bem como instigar reflexões neste sentido por parte da comunidade nativa de pesquisadores. O Brasil possui uma longa lista de intelectuais e pensadores que prestaram contribuições valiosas para o país, cujos ensinamentos certamente têm algo a acrescentar à interpretação do meio internacional.

1. O campo das Relações Internacionais na China As Relações Internacionais só vieram a ser reconhecidas oficialmente na China como uma disciplina autônoma dentro do campo das Ciências Sociais no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, a partir das reformas

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

205

liberalizantes implementadas pelo governo comunista. Os primeiros departamentos de Relações Internacionais, entretanto, surgiram na China em 1963, nas universidades de Pequim, Fudan e Renmin. Ao mesmo tempo, dez instituições de pesquisa foram criadas, todas sob controle de alguma instituição do governo, como o Ministério das Relações Exteriores. Havia um claro direcionamento dos pesquisadores para atuarem em estudos voltados à orientação política. Até os anos 1980, o ensino da Teoria das Relações Internacionais como se conhece no Ocidente simplesmente não existia que era ensinado sob o título de “Teoria da Política Internacional”, na verdade, consistia em interpretações do ponto de vista de autores como Marx, Engels, Lenin, Stalin e Mao. Foi somente após Xiaoping cunhar o termo “socialismo com características chinesas” que os pesquisadores nativos das RI começaram a se debruçar mais ativamente sob uma possível teoria chinesa ou com aspectos chineses. Nas décadas de 1950 e 1960, os ementários dos cursos teóricos de política internacional possuíam títulos como “Lenin and Stalin on China” (1953), “Quotations of Comrade Mao Zedong on International Issues” (1958) e “Stalin on the International Situation and Soviet Foreign Policy” (1964). Em linhas gerais, as universidades ofereciam cursos que explicavam a aplicação de teorias marxistas ao entendimento de temas como imperialismo, colonialismo, liberalismo e estudos de guerra e paz. Obras tidas como clássicas dentro da disciplina das RI só vieram a ganhar suas primeiras traduções já nos anos 1990, sendo “A Política entre as Nações”, de Hans Morgenthau, o ponto de partida para esse processo (QIN, 2010). Dado que o ano de publicação da primeira edição da obra foi em 1948, pode-se inferir que o delay para que o livro saísse em chinês foi de pouco mais de 40 anos. Cabe ressaltar, contudo, que esse esforço de tradução iniciou ainda em fins de 1979. Assim, foi somente com as traduções de livros de autores como Keohane, Gilpin, Waltz, Buzan, Bull e outros – todos essenciais para um acurado estudo teórico dentro das RI – que a comunidade das Relações Internacionais na China começou a distinguir mais claramente a pesquisa enquanto esforço acadêmico e enquanto uma ferramenta política.

206

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Um primeiro acontecimento que impactou o desenvolvimento da disciplina foi a criação da Associação Nacional de História das Relações Internacionais, em 1980. Dez anos depois, esta primeira organização nacional no campo das RI teve o nome trocado para Associação Nacional Chinesa para Estudos Internacionais (China National Association for International Studies – CNAIS). As associações em nível provincial e municipal também começaram a florescer durante esse período. Foi devido a esse maciço interesse na disciplina que o campo da Teoria das Relações Internacionais também passou a receber grande atenção nos círculos de debate das universidades chinesas. Song e Chan (2000) notam que, mesmo com os avanços, a situação geral do campo das RI na China era insatisfatória até o início do século XXI. Em texto publicado há mais de 15 anos, os autores afirmam existir uma deficiência na qualificação dos professores e pesquisadores da área. Enquanto havia algo em torno de 100 instituições que ofereciam alguma formação em Relações Internacionais, mais de 90% delas tinham uma orientação política velada. Por ano, naquela época, o número de formados em RI era de apenas 150 bacharéis, 100 mestres e 40 doutores. Além disso, dos cerca de 2 mil professores que lecionavam disciplinas de Relações Internacionais, poucos possuíam formação específica. As exceções só eram observadas nas universidades maiores. Desde então, houve alguma evolução neste cenário, já que muitos chineses têm retornado ao país após se formarem no exterior – principalmente nos Estados Unidos, caso de Yan Xuetong. Feng (2011) divide a evolução da disciplina das RI na China em cinco etapas. A primeira fase segue de 1949, com a Revolução, até 1963, época em que universidades e institutos ganharam os primeiros departamentos na área de Estudos Internacionais e todo o esforço de pesquisa era voltado para auxiliar o novo governo. A segunda fase, até 1978, contempla dois momentos importantes da história do Partido Comunista: a Revolução Cultural e o embate sino-soviético. A partir daí, há a fundação institucional das bases que levaram ao desenvolvimento das RI na China, apesar de haver pouca mudança referente a

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

207

questões de método e teorias de pesquisa. Entretanto, as RI como disciplina acadêmica independente só se estabelecem de fato na terceira fase, entre 1978 e 1990. Na quarta fase, entre 1990 e 2000, acontece um forte desenvolvimento de aspectos científicos da teoria social relativa às Relações Internacionais, agora já estabelecida como um campo distinto do aconselhamento político. Neste período, as teorias ocidentais crescem em importância, sobretudo com a tradução de vários clássicos. Por fim, a quinta fase, iniciada em 2000, compreende um momento em que a academia já havia absorvido basicamente todas as abordagens teóricas ocidentais, incluindo até as mais distantes do mainstream, como o feminismo e a teoria crítica. Quadro 1. As etapas da evolução do campo das RI na China 1949-1963

Criação dos primeiros departamentos. Pesquisas voltadas para aconselhamento político do governo revolucionário.

1964-1978

Revolução Cultural e desconfiança quanto à União Soviética.

1978-1990

Institucionalização das RI como disciplina autônoma dentro das Ciências Sociais.

1990-2000

Estabelecimento das RI para além do aconselhamento político oficial. Maior rigor científico. Traduções de clássicos. Teorias ocidentais ganham força.

2000-presente

Absorção completa do mainstream da disciplina. Debate sobre a incorporação de elementos chineses ao corpus teórico das RI.

Fonte: Feng (2011), com elaboração do autor.

É dentro deste contexto que surge o debate sobre a criação de uma Escola Chinesa de Relações Internacionais. Em linhas gerais, três grupos de pesquisadores podem ser identificados dentro da academia chinesa: 1. Os que iniciaram um processo para integrar a China ao mainstream das RI; 2. Aqueles que buscam desenvolver novos conceitos para analisar o comportamento internacional chinês; e 3. Um grupo particularmente formado por estudiosos chineses que pretendem consolidar uma Escola Chinesa. Yan Xuetong e os defensores da chamada Tsinghua School podem ser enquadrados nos grupos 1 e 2. A discussão sobre a potencial criação de uma Escola Chinesa coloca de lados opostos seus defensores, geralmente ligados ao China Foreign Affairs

208

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

University2, e aqueles que advogam apenas uma teoria com características chinesas, cujos principais representantes são da Tsinghua University, capitaneados por Yan Xuetong. Pelos defensores, pode-se eleger Qin Yaqing como o principal expoente. Esses dois grupos de pesquisadores compartilham o objetivo em comum de dar maior visibilidade ao pensamento tradicional chinês dentro do estudo das RI, assim como aconteceu com o pensamento ocidental, vide a influência de nomes como Hobbes, Maquiavel e Tucídides. Contudo, há pontos vitais de discordância. O Professor Yan apresenta três motivos para rejeitar o projeto da ‘Escola Chinesa’. Primeiro, as teorias mais conhecidas de RI normalmente não são nomeadas por seus criadores, e sim por outras pessoas. Segundo, as teorias raramente recebem o nome de países; é mais comum que uma teoria seja nomeada com base em seus argumentos centrais, o nome de seu criador ou da instituição que a desenvolveu. Terceiro, o termo ‘Chinesa’ é amplo demais para designar qualquer teoria desenvolvida na China. Nenhuma teoria ou escola de pensamento pode representar a diversidade e a complexidade da história e da tradição da China. Parece-me que esses argumentos, ainda que sensatos, baseiam-se sobretudo na semântica para justificar a adequação do rótulo ‘Escola Chinesa’, em vez de colocarem de forma substantiva o motivo pelo qual os conceitos intelectuais estão por si só equivocados. (FENG, 2011, p. 7)

Como se vê, Yan Xuetong rejeita o rótulo “Escola Chinesa”, embora reconheça a necessidade e urgência de novos elementos teóricos para se entender o comportamento contemporâneo da China. Mais que isso, o autor entende que a filosofia ancestral chinesa também pode ser útil para se analisar fenômenos internacionais que ultrapassam a China e o continente asiático. Temas Vinculada diretamente ao governo comunista, por meio do Ministério das Relações Exteriores. Antes da sua fundação, em 1955, foi precedida pelo Departamento de Diplomacia da Renmin University of China. Até 2005 era chamada de Foreign Affairs College. Qin Yaqing é seu atual presidente. 2

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

209

como poder, hegemonia e guerra, por exemplo, estão no centro da discussão proposta por Yan Xuetong, como veremos na seção seguinte.

2. A filosofia política da era pré-Qin Ao passo que o neo-realismo trouxe uma reformulação dos cânones clássicos do pensamento realista, distanciando-se de aspectos morais e pregando a neutralidade do rigor científico, a abordagem defendida por Yan Xuetong – um realista assumido – também propõe uma espécie de adaptação do realismo tradicional, mas a moralidade desempenha um papel central. Além disso, a proposta de Yan3 retoma o nível do indivíduo, e não a estrutura, como unidade principal de análise nas relações internacionais. As origens dessa empreitada do professor Yan Xuetong para repensar o realismo por meio das contribuições da filosofia chinesa remontam ao período que antecede a dinastia Qin, que governou a China entre 221 e 206 a.C. Mais especificamente, dois momentos da história chinesa estão em foco: o Período da Primavera e Outono (770-476 a.C.) e o Período dos Estados Guerreiros (475221 a.C.). O cenário que se observava na China durante a época em questão remonta, em alguma escala, ao que a Europa vivenciou por séculos: uma competição implacável entre diversos pequenos Estados por vantagem territorial. Foi durante este período que a China presenciou uma espécie de idade de ouro do conhecimento, muito embora ainda se saiba pouco sobre aquela época. Pensadores como Confúcio, Mêncio e Lao-Tsé viveram neste intervalo de tempo. A denominação de Período da Primavera e Outono, por exemplo, foi tomada de empréstimo do título de um livro chamado Anais da Primavera e Outono. Trata-se de um registro histórico oficial em forma de crônicas sobre eventos que aconteceram em um dos vários Estados existentes na China, Em chinês, o sobrenome precede o nome de uma pessoa. Xuetong, no caso, é o nome principal, ao passo que Yan é o sobrenome. Na ordem tradicional que usamos no Ocidente, a forma correta seria Xuetong Yan. Durante todo o artigo, mantemos o modo chinês de se grafar. Em alguns momentos, nos referimos ao autor apenas pelo seu sobrenome. 3

210

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

chamado Lu. O livro, compilado e editado por Confúcio, cobre a história do Estado de Lu de 722 a.C. até 481 a.C. Apesar não haver consenso sobre o ano exato em que o Período da Primavera e Outono terminou, os especialistas são uníssonos em apontar este espaço da história chinesa como um divisor de águas. Em termos tecnológicos, a China realizou sua transição do bronze para o aço, o que proporcionou avanços consideráveis na agricultura, no comércio e no artesanato. As comunidades políticas baseadas em clãs começaram a definhar, e isso levou ao desmantelamento de uma burocracia essencialmente familiar. Distritos administrativos ligados por uma coordenação central substituíram o feudalismo. De forma análoga, um livro editado pelo pensador Liu Xiang, intitulado Os Estratagemas dos Estados Guerreiros, deu nome ao período que sucede a Primavera e Outono. No Período dos Estados Guerreiros, sete Estados principais viviam em permanente guerra entre si. Eram eles: Wei, Zhao, Han, Qi, Chu, Qin e Yan. Neste período, o progresso foi fortemente tocado pelo avanço no comércio e no setor de transportes, o que propiciou a emergência de grandes cidades. Sistemas de irrigação e de conservação de água também levaram progresso à agricultura. Em termos de cultura e filosofia, as várias escolas de pensamento que surgiram no Período dos Estados Guerreiros criaram uma espécie de base civilizacional que culminou com a unificação liderada pelo Estado Qin. Esse momento específico teve grande influência nas gerações seguintes que viveram no território chinês. Os chamados Mestres da era pré-Qin representavam uma nova categoria que acabara de emergir dentro da política chinesa: os intelectuais oficiais. A maior parte nasceu em famílias com poucas posses, mas desenvolveram uma capacidade única de aprendizado. Alguns eram grandes pensadores e filósofos, outros entendiam mais de história, astronomia ou matemática. Questões políticas e militares também eram objeto de exploração. Entre os representantes desta safra de intelectuais, podemos citar: Confúcio, Lao-Tsé (ou Laozi), Mêncio, Mozi, Xunzi, Xu Xing e Zhang Yi. Entre as escolas de pensamento, quatro podem ser destacadas: Confucionismo, Taoismo (ou Daoismo), Maoismo e Legalismo.

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

211

Para os propósitos deste artigo, três pensadores são essenciais: Confúcio, Mêncio e Xunzi. Os dois últimos são representantes notáveis do pensamento confucionista; o primeiro é o seu criador. Confúcio viveu entre 551 a.C. e 479 a.C., sendo considerado o mais sábio entre todos os sábios chineses. Também ficou conhecido como o “Professor de 10 mil gerações”. O pensamento desenvolvido por Confúcio teve um profundo e duradouro impacto na história da China, tendo sido duramente perseguido pelos comunistas durante a Revolução Cultural. A mais importante obra confuciana são os Analetos, uma compilação escrita por seus discípulos e sucessores que reproduzia as palavras e os ensinamentos do grande mestre. Mêncio (372-289 a.C.) talvez tenha sido o mais notável aprendiz de Confúcio. Ficou muito famoso durante a dinastia Song e, mais à frente, passou a ser chamado de “Segundo Sábio”. Um livro cujo título é seu nome, escrito por ele próprio e seus discípulos, é considerado, ao lado dos Analetos, um dos clássicos do pensamento confucionista. Por sua vez, Xunzi (312-238 a.C.) chegou a ser considerado um Legalista, pois dois dos seus mais brilhantes alunos – Hanfeizi e Li Si – se tornaram representantes notáveis desta escola. De acordo com Yan Xuetong, o estudo do pensamento político na era pré-Qin lançou luz sobre um importante período da história chinesa, propiciando contribuições para o enriquecimento do corpus teórico das Relações Internacionais. Nas palavras dele, todavia, a criação de uma Escola Chinesa das RI é improvável e, de longe, não se constitui um objetivo para os pesquisadores da Universidade de Tsinghua. Para Yan, a filosofia política dos Mestres da era pré-Qin é, sim, diferente do pensamento desenvolvido no Ocidente por autores como Hobbes e Maquiavel. No entanto, essa distinção desperta uma reflexão mais aprofundada não sobre as diferenças entre Leste e Oeste, mas sobre as diferentes formas de se enxergar as relações internacionais. Duas principais críticas são recorrentes sobre o trabalho de Yan Xuetong e dos seus colegas da Tsinghua School: 1) há uma incerteza a respeito da autenticidade dos textos e do próprio intervalo de tempo do período que antecede a unificação da China pela dinastia Qin, o que lança dúvidas sobre qualquer conclusão tirada sobre este período; 2) as relações entre Estados feudais nos

212

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

períodos da Primavera e Outono e dos Estados Guerreiros são diferentes das relações entre Estados-nação, de modo que isso inviabilizaria um paralelo entre ambos. Em primeiro lugar, a autenticidade dessas obras não tem relação com nossa capacidade de retirar lições delas. Mesmo se considerarmos que as obras de mestres pré-Qin foram rescritas no início da Dinastia Han, elas ainda assim teriam sido escritas há mais de dois mil séculos e as ideias nelas refletiriam o que as pessoas pensavam sobre política entre Estados naquela época ou o que pensavam sobre política na Era pré-Qin (...). Em segundo lugar, a história do Período das Primaveras e dos Outonos e do Período dos Reinos Combatentes pode nos fornecer muitos exemplos instrutivos. Na verdade, não são apenas as relações entre os Estados Chineses naquele período que eram diferentes das relações internacionais hoje, as relações entre os estados europeus antigos também o eram. Ainda assim, ninguém questiona quando são retirados exemplos da experiência da “História da Guerra do Peloponeso”, de Tucídides, para interpretar eventos nas relações internacionais contemporâneas. (YAN, 2011, p. 202)

Como se vê, a questão abordada pelo professor Yan vai além. Trata-se de uma contestação sobre o desenvolvimento das teorias contemporâneas nas Relações Internacionais, focadas exclusivamente na história da Europa e na filosofia política lá criada. Segundo o autor, o conhecimento acumulado pela academia chinesa no que diz respeito às intersecções entre a filosofia política nativa e as Relações Internacionais atraiu muita atenção nos círculos acadêmicos dentro do país, mas ainda há um longo caminho a percorrer. O debate sobre o tema ainda é muito incipiente entre os scholars dos grandes centros produtores de conhecimento, como Estados Unidos e Europa (Inglaterra e França, sobretudo). Para Yan Xuetong, três passos podem acelerar esse processo de difusão das ideias discutidas na China: 1) tradução das pesquisas para o inglês e outras línguas, de modo a facilitar o acesso aos trabalhos desenvolvidos pelos acadêmicos chineses; 2) expandir os estudos

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

213

comparativos entre o pensamento interestatal4 da era pré-Qin, o pensamento europeu clássico e a teoria contemporânea das Relações Internacionais; e 3) criar uma nova teoria com base na filosofia da era pré-Qin e no corpus teórico contemporâneo das RI. Na visão de Yan Xuetong, a terceira tarefa pode ser encarada como a mais importante. Somente por meio do desenvolvimento de uma nova teoria é que o valor do pensamento político dos Mestres da era pré-Qin seria devidamente valorizado. Claro que a academia chinesa se coloca diante de um empreendimento coletivo e, como visto, ainda não há consenso sobre os caminhos a seguir.

3. Abordagens contemporâneas do pensamento chinês tradicional Apesar da repercussão da pesquisa encabeçada por Yan Xuetong, ele não foi o primeiro a estudar mais a fundo o pensamento político da era pré-Qin. Já em 1922, Liang Qichao publicou um livro chamado History of Pre-Qin Political Thought. Nele, já eram discutidas questões como o militarismo dos legalistas e o pacifismo de outros pensadores. Um impasse, contudo, ficava claro na obra de Qichao: não havia diferença clara entre política doméstica e questões internacionais. Ao todo, há quatro tipos de literatura nas quais o pensamento da era préQin foi trabalhado de alguma forma: 1) nos estudos da história antiga da China; 2) nos estudos da história do pensamento chinês; 3) nos trabalhos sobre a história das relações externas chinesas; e 4) nas pesquisas no campo das Relações Internacionais. Este quarto nicho de pesquisa, no qual Yan Xuetong se encaixa, só ganha corpo de fato no século XXI. Trata-se de uma agenda comum de pesquisa que integra as teorias contemporâneas das RI com o pensamento político interestatal dos Mestres da China antiga. O termo “filosofia política interestatal” é amplamente utilizado por Yan Xuetong. Trata-se de uma forma de verbalizar que o pensamento desenvolvido durante a era pré-Qin se deu dentro de um contexto específico de relações entre os estados que coexistiam no território da China. 4

214

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

O grande esforço embutido na agenda de pesquisa de Yan Xuetong e dos seus colegas da Universidade de Tsinghua foi esquematizar o pensamento da era pré-Qin dentro dos parâmetros epistemológicos e metodológicos da ciência moderna. A linguagem e o rigor analítico empregado pelos pensadores da China ancestral são muito distintos daqueles utilizados atualmente. O problema reside no fato de que os trabalhos dos filósofos chineses ancestrais não possuem uma metodologia clara, seus padrões são heterogêneos e a lógica analítica empregada apresenta-se contraditória em muitos momentos. O trabalho de Yan Xuetong limita-se a sete pensadores em particular: Guanzi, Lao-Tsé (Laozi), Confúcio, Mêncio, Mozi, Xunzi e Hanfeizi. Muitos dos insights, contudo, são oriundos exclusivamente da escola confucionista e seus três principais representantes: Confúcio, Mêncio e Xunzi. Os escritos dos sete pensadores supracitados são analisados pelo professor Yan segundo quatro diferentes ângulos: forma de pensar, visões sobre a ordem interestatal, visões sobre liderança e a questão da transferência de poder hegemônico. Dois eixos classificatórios são empregados para enquadrar os sete filósofos em questão: o nível de análise e as ideias epistemológicas. Essas informações podem ser visualizadas com mais clareza no quadro abaixo. Quadro 2. Níveis de análise e ideias epistemológicas Nível de análise Ideias epistemológicas

Sistema

Determinismo conceitual

Lao-Tsé, Mozi

Estado

Indivíduo Confúcio, Mêncio

Dualismo

Guanzi

Determinismo material

Hanfeizi

Xunzi

FONTE: Yan (2011), com tradução e elaboração do próprio autor

Os níveis de análise seguem a clássica tipologia proposta por Waltz no seu clássico “O Homem, o Estado e a Guerra”, de 1959. Note que os três pensadores confucionistas compartilham da mesma perspectiva analítica no âmbito do indivíduo. Mozi e Lao-Tsé, por outro lado, analisam as relações

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

215

interestatais por uma perspectiva mais ampla, focada em todo o mundo e não somente nas vantagens de cada Estado. Guanzi e Hanfeizi mencionam o Estado e o poder relativo como principais elementos de suas análises. Confúcio e Mêncio escreveram sobre o comportamento do “ruler”, o governante, a figura do líder político. A instabilidade ou estabilidade de uma ordem internacional era inteiramente determinada pelos anseios morais do líder político, acreditava Confúcio. Xunzi pensava praticamente da mesma forma, mas tinha a natureza da liderança política e seus ministros como variável independente – e Sociedade Internacional, e não Ordem, como a variável dependente. Como os pensadores confucionistas podem ser tidos como os mais influentes, dada suas intersecções já encontradas com a Teoria das Relações Internacionais5, nos ateremos apenas a eles três6 . Como mostrado no Quadro 2, Xunzi se enquadra epistemologicamente como um dualista, ou um “determinista conceitual moderado”, nas palavras de Yan (2011, p. 30). Ele vê as ideias do governante e dos ministros-chefes como a força motriz por trás da conduta do Estado e, portanto, a causa da mudança no status de um Estado depende das ideias do governante e dos ministros-chefes. Para ele, as ideias do governante o levam a escolher ministros-chefes, levando a mudanças no status de um Estado (...). Porém, a análise de Xunzi sobre a causa do conflito se assemelha a de um dualista. Ele vê ao mesmo tempo o desejo humano e a escassez material como a origem do conflito entre os Estados (...). Ao mesmo tempo, vê um sistema de classes como uma variável interveniente na determinação da possibilidade de conflito entre Estados. Pesquisadores ocidentais já realizaram essa transição do confucionismo para a contemporaneidade em seus trabalhos. Dois livros, em especial, ficaram muito conhecidos: Cultural Realism: Strategic Culture and Grand Strategy in Chinese History, de Johnston (1995); e The United States and China, de Fairbank (1983). Em linhas gerais, pode-se afirmar que ambos desenvolveram uma agenda de pesquisa para identificar traços do pensamento confucionista no comportamento da China. 6 Em Ancient Chinese Thought, Modern Chinese Power, Yan Xuetong dedica um capítulo inteiro somente ao pensamento de Xunzi, intitulado: “Xunzi’s Interstate Political Philosophy and Its Message for Today”. 5

216

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Sustenta que caso não haja normas para distinções entre classes as pessoas brigariam por qualquer motivo. (YAN, 2011, p. 30)

Confúcio e Mêncio, por sua vez, analisam as relações interestatais em termos de conceitos. Os dois acreditam que a influência maior dentro das relações entre Estados é a perspectiva moral do governante. Enquanto variável, a moralidade assume dois valores: benevolente e não benevolente. Para Confúcio, um verdadeiro líder precisa ser moralmente elevado para poder submeter povos distantes ao seu governo. Os dois pensadores acreditam que a benevolência é a fundação de todo um sistema, ou seja: um conceito define as bases sistêmicas do argumento filosófico de ambos. 3.1. Ordem, Hegemonia e Conflito

Na esteira desse processo de sistematizar o conhecimento da era pré-Qin dentro de um arcabouço metodológico mais contemporâneo, Yan Xuetong trabalha de forma minuciosa cada conceito presente no pensamento dos filósofos confucionistas. Xu (2011), que posiciona as filosofias de Mêncio e Xunzi em extremidades distintas do confucionismo, trabalha exaustivamente alguns desses conceitos. Apesar de discordarem em alguns princípios fundamentais, como a bondade ou a maldade da natureza humana, Mêncio e Xunzi concordam em vários pontos referentes à filosofia política. Para os dois pensadores, o comportamento do governante e de seus ministros é central na compreensão do processo político como um todo. Na visão de Mêncio, a natureza do sistema internacional e da ordem internacional é resultado direto do tipo de Estado. Xu (2011) lista bem os principais tópicos desencadeados no pensamento de Mêncio. Em sua análise, a natureza do sistema internacional como uma variável dependente tem duas variantes, que são: o sistema de autoridade humana e o hegemônico. A variável dependente da ordem internacional possui também duas variantes: a ordem, e a desordem. A variável independente da natureza do Estado tem duas variantes, que são: o rei sábio e o hegemônico.

217

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

A definição de Mencius da autoridade humana é um Estado ‘que pratica a benevolência pela virtude’, ao passo que sua definição de um Estado hegemônico é “aquele que finge ser benevolente, mas lança mão da força.” (XU, 2011, p. 162)

Mêncio e Xunzi adotam um método simples, mas relativamente rigoroso, em suas análises. Os dois utilizam uma única variável para explicar qualquer tipo de mudanças em uma lógica de causa e efeito, como pode ser visualizado na figura abaixo. Figura 1. Cadeia de causalidade entre o governante e a ordem internacional Mudanças no poder estatal

Governante

Ministros

Tipo do Estado

Ordem Internacional

Relações exteriores Fonte: Tradução do autor com base em Xu (2011, p. 165).

A ordem internacional, nesse sentido, é diretamente relacionada ao tipo de poder que cada governante exerce. Trata-se de uma espécie de cadeia iniciada com as decisões do governante, passando pelos vários espectros comportamentais de um Estado até gerar um output na última etapa deste ciclo: a própria ordem. Tanto Mêncio quanto Xunzi usam uma variável simples para explicar mudanças dentro de uma lógica de causa e efeito. O governante, então, é a primeira variável independente e a ordem internacional é a variável dependente. No meio, o pensamento político dos dois possui um encadeamento de processos que são interpretados sob a lógica da causalidade. Dos dois pensadores utilizam o método indutivo em suas análises, uma

218

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

das estratégias de concatenamento de ideias mais comuns entre os filósofos daquela era. De acordo com Yan Xuetong, muitos dos exemplos utilizados por Xunzi para corroborar suas análises não são posicionados com precisão no tempo, há pouca informação sobre os contextos em que ocorreram e praticamente não é possível garantir a autenticidade deles. Além disso, é notória a ausência de uma variável de controle, o que confere pouca cientificidade às teorias dos pensadores confucionistas. Rigorosamente, o método empregado pelos confucionistas não era o método científico. E é exatamente esse o trabalho desenvolvido pelo professor Yan Xuetong: enquadrar e esquematizar. Ao passo que ambos os pensadores concordam que o governante (e suas perspectivas morais) é a variável independente com maior peso, talvez a principal diferença encontrada nas filosofias de Mêncio e Xunzi esteja no fato de que este segundo reconhece três formas de poder dentro do sistema internacional: além da autoridade humana e da hegemonia, há também a tirania. Isto acontece porque Xunzi não se opõe à ideia de que um Estado possa buscar a hegemonia, ao contrário de Mêncio, que a condena fortemente. Ambos concordam, entretanto, que a autoridade humana é a forma mais elevada de poder, considerada uma espécie de fundação moral do governante. Possuir autoridade humana é como possuir a verdadeira liderança, ou o dom de guiar “tudo abaixo do paraíso” (Tianxia)7. Para implementar um governo benevolente, com autoridade legitimada e justa, o governante deve ter senso de justiça. Para Mêncio, somente após garantir o sustento básico de sua população é que o governante deve pensar, por exemplo, em promover educação. É por meio da educação que se estabelece uma sociedade harmoniosa, explica. Na ótica de Mêncio, a educação faz com que as pessoas entendam os relacionamentos humanos em geral, e cinco deles em particular: o afeto entre pais e filhos, a justiça entre governantes e ministros, diferentes papéis entre marido e esposa, hierarquia entre irmãos, Tian = céu, paraíso; Xia = abaixo. Na literatura em língua inglesa, Tianxia é traduzido como “All Under Heaven”. O conceito foi traduzido da filosofia milenar chinesa. É por meio do Tianxia que se explica a ordem internacional por uma perspectiva chinesa. Todo o sistema tributário que balizava o comportamento da China imperial diante de seus vizinhos foi construído dentro desta percepção de mundo – ou de ordem internacional. 7

219

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

confiança entre amigos. Caso haja boas performances nestes cinco espectros da vida social, logo tem-se uma sociedade harmoniosa e bem ordenada. Dentro dessa lógica, qual seria então o caminho para um governo dotado de autoridade humana, a forma mais elevada de poder? Essa perspectiva normativa encontra raízes em mais uma cadeia de processos desenhada pelo pensamento de Mêncio e Xunzi. Este último elenca três fatores de poder estatal: político, econômico e militar. Ao contrário do que a tradição realista das Relações Internacionais prega, Xunzi enxerga o poder político como o primordial para se exercer os outros dois. Yan (2011) pondera, todavia, que Xunzi talvez tenha negligenciado a importância do militarismo na consecução de um governo com autoridade humana. A visão de Mêncio sobre o mesmo tema é mais pragmática. Para ele, a perseguição de uma moralidade política também atende por “justiça”, ao passo que a busca por poderio econômico e militar é enquadrada como “lucro”. Sendo assim, o analista consegue enxergar as pretensões de um governante simplesmente ao investigar se o mesmo persegue a “justiça” ou o “lucro”. Nesse sentido, o debate sobre justiça e lucro é também um debate sobre hegemonia e autoridade legítima. Somente este segundo tipo de governo consegue ser imune ao declínio, inevitável ao governante que adota práticas que levam a um governo hegemônico. Na figura a seguir, pode-se ver o debate proposto por Mêncio acerca das relações dedutivas entre justiça e lucro. Figura 2. Relações lógicas: justiça vs. lucro e autoridade humana vs. hegemonia Discurdo de justiça

Busca pelo modo humano

Governante

Hegemonia Discurso de lucro

Fonte: Xu (2011, p. 173)

Governo benevolente

Busca pelo modo hegemônico

Governo hegemônico Declínio

Autoridade humana Declínio

220

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Por fim, há diferenças importantes entre Xunzi e Mêncio no que diz respeito às origens dos conflitos e os meios para solucioná-los. Mêncio crê na bondade da natureza humana, ao contrário de Xunzi, e isso já nos diz muita coisa sobre o pensamento de cada um no que tange à questão do conflito. Para Xunzi, por exemplo, os desejos são intrínsecos à natureza humana, o que leva as pessoas a sempre buscarem mais bens materiais, que, por definição, não satisfazem essa ânsia por desejos. Mêncio não crê que a natureza humana é originalmente boa, mas que as pessoas têm uma inclinação natural para praticar o bem. Para tanto, é preciso que essa tendência à bondade seja direcionada e forjada. Quando fala em meios de evitar o conflito internacional (ou interestatal), Mêncio prega o emprego de alguns “ritos”. Sua estratégia envolve dois passos. O primeiro é utilizar a persuasão e a educação para influenciar os governantes, principal variável na cadeia de causalidade até a ordem internacional. O segundo passo, a ser dado somente após o primeiro ser cumprido, é “corrigir relações humanas distorcidas”, o que pode ser transcrito como “restaurar a ordem ritual”. Muito da noção de ordem e governabilidade na China deriva deste núcleo duro formado por hierarquia nas relações e nos laços sociais. Cinco tipos de relacionamento – pai e filho, imperador e ministro, irmão mais velho e irmão mais novo, marido e mulher, amigo e amigo – formam a base dos códigos de convivência e dialogam diretamente com quatro laços sociais: propriedade, justiça, honestidade e sentimento de vergonha. A esse código moral de convivência os chineses chamam de Lizhi, uma espécie de governo regulado por princípios de ética e moralidade. Quando a natureza humana é distorcida, as relações entre as pessoas também são distorcidas. Quando as relações humanas são distorcidas, conflitos invariavelmente eclodirão. Portanto, para impedir conflitos violentos, é necessário respeitar as relações humanas. A distorção das relações humanas é demonstrada pelo fim dos rituais entre as pessoas. Nas relações humanas, há relações hierárquicas (governante e ministro, pai e filho) e relações de igualdade (entre irmãos, cônjuges, e amigos) Elas não podem

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

221

ser unificadas por meio do princípio da benevolência e da justiça (...). Com as relações humanas em ordem e com a ordem ritual restituída, e quando o governante houver adotado o caminho da benevolência e da justiça, então um Estado não mais terá que nutrir pensamentos de ganhos em detrimento de outros. Quantos mais reinos desse tipo houver, então naturalmente haverá menos conflitos internacionais. (XU, 2011, p. 176-177)

Devido à crença na ânsia humana por saciar seus desejos, Xunzi entende que a racionalidade da mente pode controlar os desejos, e a forma de fortalecer tal racionalidade seria por meio de normas sociais – os ritos, se tomarmos a filosofia de Mêncio. As normas podem fazer com que o comportamento humano seja desejável para a manutenção da ordem. A crença de Xunzi na capacidade de forças externas em suprimir conflitos é central em sua teoria. Yan Xuetong, contudo, questiona: se essas normas são implementadas e mantidas por pessoas (ou Estados), então como elas podem ser implementadas e mantidas quando há pessoas más (ou Estados maus) que buscam aplicar apenas as normas que lhes convém? De fato, os três representantes da escola confucionista – Confúcio, Mêncio e Xunzi – são consensuais ao acreditarem que o estabelecimento de normas (ritos) pode levar a uma ordem desejável. A diferença está no tipo de norma que cada um propõe. Xunzi afirma que a causa da guerra são os desejos humanos egoístas e a ausência de normas para contê-lo. Para ele, cada classe deveria usufruir de normas específicas, o que conteria possíveis tensões entre estratos sociais distintos. Xunzi acreditava que normas específicas para classes garantiria direitos aos senhores feudais, mas também imporia limites à autoridade dos mesmos. Xunzi viveu no fim do Período dos Estados Guerreiros, tendo falecido pouco tempo antes da unificação da China pela dinastia Qin. Ainda vivo, Xunzi pôde presenciar todo o poderio do Estado Qin, aspirante inexorável à hegemonia. Sendo assim, as principais questões políticas pensadas pelo filósofo diziam respeito a esse processo de unificação – guardadas as proporções, algo similar ao contexto em que Maquiavel escreveu O Príncipe. Antes

222

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

da China vivenciar aquele momento, seu território era organizado por meio de um sistema feudal que muito havia sido idealizado por Confúcio e seus seguidores. Por outro lado, Mêncio viveu no meio do Período dos Estados Guerreiros, em um momento no qual nenhum Estado sozinho tinha condições de emergir como um ator hegemônico. Como se vê, há intersecções e discordâncias importantes dentro do pensamento confucionista, mas é certo que o contexto em que cada um dos seus representantes escreveu joga papel essencial para uma compreensão mais ampla da filosofia ancestral chinesa.

4. Considerações finais O estudo das Relações Internacionais tem sido balizado, há muito, pela constante competição entre duas principais correntes: a realista e a liberal. Todo analista lança mão de alguma teoria para explicar acontecimentos e, como afirma Walt (1998), a interpretação de um fenômeno tende a variar de acordo com as lentes teóricas empregadas. A bem da verdade, parece ter ganhado alguma força a visão de que as ordens regionais, em uma perspectiva analítica sistêmica, podem ser uma ferramenta conceitual bastante adequada aos propósitos da disciplina do que um conceito mais amplo de ordem internacional. Qual analista em sã consciência afirmaria que a ordem a balizar as relações internacionais no Oriente Médio é a mesma que dá pano de fundo às relações sino-americanas ou entre as nações da Europa Ocidental? Uma parte considerável da literatura teórica no campo das Relações Internacionais, senão a sua totalidade, foi elaborada por autores ocidentais (europeus e norte-americanos, basicamente), que escreveram segundo conceitos ocidentais (europeus), que foram pensados em contextos específicos da história do Ocidente (ou da Europa). Ao se perguntarem o porquê de não existir uma teoria das relações internacionais não ocidental, Acharya e Buzan (2010) notam que há certas semelhanças entre a evolução da Teoria das Relações Internacionais (TRI) no Ocidente e além dele, sobretudo na

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

223

Ásia. Dois pontos são mencionados: 1) assim como a teoria ocidental utiliza obras clássicas de Tucídides, Hobbes, Maquiavel e outros como ponto de partida, há também figuras clássicas centrais no pensamento religioso, político e até militar de nações asiáticas, como Sun Tzu, Confúcio e Kautilya; 2. em segundo lugar, o pensamento de líderes como Mao, Nehru ou Xiaoping traz bases sólidas para a interpretação da ordem internacional sob o viés sino-asiático. A agenda de pesquisa tocada por Yan Xuetong, ainda que não tenha desencadeado a criação de uma teoria, é salutar diante deste cenário. Trata-se de um autor chinês, que atua em uma universidade chinesa, que muitas vezes escreve em chinês, propondo uma readequação do pensamento realista tendo como base a filosofia chinesa ancestral. Sobretudo, estamos falando de um autor preocupado em seguir os rigorosos padrões científicos em sua metodologia de pesquisa. Todavia, por retomar o conceito de moralidade e dá-lo uma posição central no seu argumento, o professor Yan Xuetong recebeu críticas da comunidade científica. A principal delas reside no fato de que o autor se alinha com o pensamento realista, mas dá uma ênfase decisiva a questões sobre moralidade. Para Yan Xuetong, contudo, quem acredita que ele foi contraditório entendeu errado o cerne do realismo. Na visão dele, o realismo entende a moralidade como parte importante do poder e um elemento essencial das suas capacidades. Nos seis princípios do realismo político de Morgenthau, dois são sobre moralidade. O argumento traçado por Yan Xuetong é baseado em grande parte nos escritos de Morgenthau. Segundo ele, é a moralidade que provê a legitimidade para o uso da força; sem moralidade, até o poderio militar pode ser afetado. Dentro do realismo, a moralidade vem acompanhada de códigos específicos, concretos, e não se constitui um mero conceito abstrato. Confúcio, por exemplo, defendia que a confiança das pessoas é muito mais importante que questões militares. Sem a primeira, sequer se pode cogitar a utilização da força com alguma feição de legitimidade. Como se vê, temas caros ao corpus teórico das Relações Internacionais estão no centro da análise proposta por Yan Xuetong por meio do seu “Rea-

224

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

lismo Chinês”. A lógica que enquadra a perseguição pela hegemonia como algo inerentemente ruim, tanto para o Estado quanto para o sistema, é outro elemento que põe em oposição o pensamento chinês com um dos pressupostos mais importantes da teoria ocidental no campo da política internacional. Tomemos como exemplo a Teoria da Estabilidade Hegemônica, desenvolvida inicialmente por Kindleberger e levada adiante por outros autores, como Gilpin. Para esses autores, um sistema internacional anárquico só pode manter seu equilíbrio através da presença de um hegemon capaz de prover os bens públicos necessários à manutenção da ordem. Já os pensadores confucionistas atribuem à atuação do governante, do líder político, as causas mais básicas de mudanças na balança de poder internacional. Trata-se de uma abordagem diferente em vários sentidos: no nível de análise, na importância de cada conceito, na relevância do poder material, etc. É claro que mesmo os governantes dotados da chamada Autoridade Humana precisam do militarismo, mas é certo que tal fator não se mostra tão prioritário como no pensamento ocidental tradicional. Na visão de Yan Xuetong, a noção de construção das ideias oriunda dos pensadores da era pré-Qin prescinde de uma lógica hierárquica, de cima para baixo, do forte para o fraco. Isso traz duas implicações para o crescimento da China na contemporaneidade. Em primeiro lugar, há uma pressão para que as ideias que a China promove mundo afora sejam também adotadas internamente. Em segundo lugar, essas ideias requerem que a China possua uma posição de poder no tema em questão, ou elas não prevalecerão diante da comunidade internacional. Vejamos, por exemplo, o novo conceito de segurança que a China propôs e conseguiu implementar no Sudeste asiático, algo que só foi possível porque Pequim não estava envolvida em alianças militares com terceiros. Seguindo essa mesma lógica, podemos citar as críticas que a China sofre pelo seu discurso de democratização das relações internacionais, abrindo mais espaço para as potências emergentes – caso dos BRICS. Tal postura não tem sido bem recebida internacionalmente, já que os chineses não abrem mão do seu poder de veto no Conselho de Segurança.

O REALISMO CHINÊS DE YAN XUETONG

225

Opostamente, o ideal chinês de que as reformas econômicas devem preceder as reformas políticas tem sido aceito quase que universalmente entre os países em desenvolvimento. Esse ideal, acentua Yan Xuetong, desafia frontalmente a noção ocidental de que a democracia é uma pré-condição para um desenvolvimento bem-sucedido. Utilizando, em tradução livre, as palavras escritas pelo professor Daniel Bell no prefácio de Ancient Chinese Thought, Modern Chinese Power: “Se os realistas norte-americanos mais influentes podem sonhar com um mundo sem armas nucleares, então Yan Xuetong pode sonhar com um país que inspira o resto do mundo com seus valores humanos”.

Referências ACHARYA, Amitav; BUZAN, Barry. Non-Western International Relations Theory: perspectives on and beyond Asia. New York: Routledge, 2010. FAIRBANK, John King. The United States and China. Massachusetts: Harvard University Press, 1983. FENG, Zhang. The Tsinghua Approach and the Inception of Chinese Theories of International Relations. Chinese Journal of International Politics. Oxford: Oxford University Press, p. 1-30, 2011. JOHNSTON, Alastair Iain. Cultural Realism: Strategic Culture and Grand Strategy in Chinese History. Princeton: Princeton University Press, 1995. QIN, Yaqing. Why is there no Chinese international relations theory?. In: ACHARYA, Amitav; BUZAN, Barry. Non-Western International Relations Theory: perspectives on and beyond Asia. New York: Routledge, p. 26-50, 2010. SONG, Xining; CHAN, Gerald. International relations theory in China. In: HU, Weixing; CHAN, Gerald; ZHA, Daojiong. China’s International Relations in the 21st Century. Maryland: University Press of America, 2000.

226

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

WALT, Stephen M. International Relations: one world, many theories. Foreign Policy, 110, p. 29-32; 34-46, 1998. XU, Jin. The Two Poles of Confucianism: A Comparison of the Interstate Political Philosophies of Mencius and Xunzi. In: YAN, Xuetong. Ancient Chinese Thought, Modern Chinese Power. Princeton: Princeton University Press, p. 161-180, 2011. YAN, Xuetong. Ancient Chinese Thought, Modern Chinese Power. Princeton: Princeton University Press, 2011.

Urbanização na China Processo, problemas e perspectivas Guoping Li Yun Hou

1. Introdução Por ser um país cuja população representa uma parte significativa da população global, o ritmo da industrialização na China é uma questão nada insignificante. Antes da década de 1960, muitos pesquisadores fora da China se concentraram principalmente na história da urbanização do país. Entre as décadas de 1970 e 1990, passaram a focar mais em algumas questões sistemáticas, tais como os fatores que condicionavam a urbanização, a morfologia urbana, as redes urbanas, os sistemas urbanos e as diferenças regionais de urbanização. Nota-se que o ritmo de urbanização da China está atraindo cada vez mais atenção do mundo desde 2000. Para pesquisadores chineses, essa pauta de pesquisa concentra-se no ritmo da urbanização e pode ser dividida em quatro períodos: o período inicial, que se deu entre 1978 e 1983; o segundo período, que ocorreu entre 1984 e 1988, quando acadêmicos chineses apresentaram algumas opiniões e teorias originais com base no trabalho de acadêmicos estrangeiros; o terceiro período, entre 1989 e 1997, que tratou do tema da localização; e, finalmente, desde 1998 até os dias de hoje temos um período caracterizado sobretudo por pesquisas patrocinadas pelo governo. Faz tempo que os acadêmicos chineses buscam encontrar um padrão para o ritmo de urbanização diferente daquele dos países desenvolvidos e adequados para a China per se. Depois que Renyou publicou seu artigo abordando questões da urbanização chinesa, muitas outras pesquisas surgiram, tais como os estudos de Fei Xiaotong sobre cidades pequenas na China (1984) e sobre as características únicas da urbanização chinesa (1986), a análise de Hu Xuwei sobre o nível de urbanização da China (1983), as pesquisas de Zhou Yixing sobre a hierarquia das dimensões urbanas (1986), funções urbanas (1988), suburbanização (1998), etc.

228

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

2. O processo de urbanização chinês e seus problemas 2.1. Principais aspectos do processo de urbanização chinês

Northam (1975) propôs uma curva em forma de “S” para representar um padrão geral do processo de urbanização. Ela divide a urbanização em três fases: crescimento gradual, ascensão explosiva e maturidade. Em 1949, a taxa de urbanização na China era de apenas 10,6%, tendo subido para 19,3% em 1961 e caído para 17,6% em 1977. O crescimento da urbanização na China começou a disparar com a abertura e com a reforma, em 1978, tendo posteriormente entrado em um rápido período de urbanização a partir 1995 (ver Gráfico 1). Esse período, chamado de “urbanização impetuosa” por alguns acadêmicos, gerou muitos problemas sociais graves. Gráfico 1. Taxa de urbanização da China entre 1978 e 2010

Fonte: Agência Nacional de Estatística da República Popular da China.

Esse processo de urbanização acelerado levou à formação de muitas cidades grandes na China. Em 2014, havia 142 cidades com uma população de mais de um milhão de pessoas. Dentre elas, seis cidades – Beijing, Xangai, Tianjin, Chongqing, Guangzhou e Shenzhen – tinham uma população

URBANIZAÇÃO NA CHINA

229

de mais de 10 milhões de pessoas, além de 10 cidades com uma população entre cinco e 10 milhões, dentre as quais estavam Wuhan, Chengdu, Nanjing, Foshan, Dongguan, Xi’an, Shenyang, Hangzhou, Harbin e Shantou, localizadas sobretudo na costa leste e no centro da China, o que deixava a área do oeste do país muito pouco urbanizada. Atualmente, surgiu uma nova tendência para o processo de urbanização da China, com uma maior relevância para as áreas metropolitanas. Em alguns países desenvolvidos, como os Estados Unidos e o Japão, as áreas metropolitanas já foram desenvolvidas há tempos. Parr (2002), Phelps e Ozawa (2003) desenvolveram o conceito de externalidade regionalizada para explicar a formação das áreas metropolitanas. Na China, três das principais áreas metropolitanas – a área metropolitana de Yangtze Delta, a área metropolitana de Zhujiang e a área metropolitana de Beijing-Tianjin-Hebei – já se tornaram os polos econômicos principais de todo o país. Estima-se que, em 2006, essas três áreas metropolitanas tenham criado 36,76% do PIB da China, ocupando apenas 3,38% da área do país e com 15,54% da população. 2.2. Problemas decorrentes do processo de urbanização da China

Juntamente com todos os avanços que acompanharam a urbanização da China, vieram também alguns problemas, que precisam ser resolvidos para o desenvolvimento futuro do país. 2.2.1. Padrão espacial de urbanização desequilibrado

A distribuição espacial da urbanização na China é bastante desequilibrada, com enormes barreiras não só entre as regiões como também dentro delas. Na década de 1990, as províncias do nordeste foram pioneiras tanto na urbanização quanto na industrialização, ao passo que a maior parte das áreas do sul permanecia agrícola, levando a taxas de urbanização altas no norte e baixas no sul. Na época, Beijing e Tianjin eram as cidades mais urbanizadas da China, com um percentual de população urbana maior que 50%. Heilongjiang, Jilin e Liaoning eram as três províncias mais urbanizadas.

230

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Figuras 1 e 2. Diferenças regionais na taxa de urbanização em 1990 e 2013

12.26 – 15.52 15.53 – 18.61 18.62 – 28.90 28.91 – 48.00 48.01 – 73.48

23.71 – 40.48 40.49 – 48.87 48.88 – 58.71 58.72 – 67.76 67.77 – 89.60 Fonte: Agência Nacional de Estatística da República Popular da China.

231

URBANIZAÇÃO NA CHINA

A urbanização, que era intensa no norte e escassa no sul, tornou-se intensa no leste e escassa no oeste em 2013. A Tabela 1 mostra que a taxa de urbanização do nordeste e do leste da China era muito maior do que a do centro e a do oeste, em 2013. O leste da China se tornou a área mais urbanizada, com uma taxa de urbanização de 62,8%. Durante esses anos, a costa leste da China desempenhava um papel de liderança no desenvolvimento econômico do país. A área mais urbanizada se localizava principalmente ao longo da costa leste e incluía Jiangsu, Xangai, Zhejiang, Fujian e Guangdong. O nordeste da China ficava em segundo lugar, atrás apenas do leste, cuja taxa de urbanização chegava a 60,22%. O centro e o oeste da China eram sociedades extremamente agrícolas até 2013, com uma taxa de urbanização abaixo de 50%. Tabela 1. Taxa de urbanização nas diferentes regiões da China em 2013 Região

Taxa de urbanização (%)

Nordeste

60,22

Centro

48,49

Oeste

45,98

Leste

62,80

Fonte: calculado com base no Anuário Estatístico da China publicado em 2014.

A enorme diferença no nível de urbanização dentro das regiões também não pode ser ignorada. As forças de aglomeração das grandes cidades, especialmente das megalópoles, continuaram a crescer, inclusive na mesma região; enquanto que outras áreas urbanas, especialmente as cidades pequenas, estão sofrendo muito com a extrema falta de incentivos para o desenvolvimento, enfrentando um declínio populacional sem precedentes e questões decorrentes do envelhecimento da população. Essas cidades pequenas são formadas, sobretudo, por uma população jovem que ainda não saiu da casa dos pais, e de idosos. Não há praticamente nenhuma força de trabalho nas cidades pequenas para impulsionar o desenvolvimento econômico. Entretanto, lotadas com o excesso populacional, as cidades grandes estão sofrendo com muitos

232

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

problemas urbanos, tais como o engarrafamento, a poluição ambiental, as tensões relativas aos recursos naturais, os custos de moradia extremamente inflacionados e as enormes desigualdades de renda. As políticas públicas das megalópoles são amplamente dedicadas ao controle do crescimento populacional. O desequilíbrio entre as cidades grandes e pequenas é um risco em potencial para o crescimento econômico substancial da China. 2.2.2. Estrutura industrial urbana de baixa qualidade

A estrutura industrial de muitas cidades ainda passa por um estágio de industrialização bastante inicial, o que compromete o desenvolvimento da indústria terciária. Como demonstrado no Gráfico 2, em 2013, Beijing era a cidade com a indústria de serviços mais desenvolvida, representando 76,9% de todo o PIB da cidade – número muito inferior ao da cidade de Nova York, de 87,89%. Observando a composição interna da indústria secundária, notamos a escassez de empresas altamente inovadoras e competitivas. Da perspectiva industrial, o impulso para o crescimento econômico urbano é insuficiente, e ainda não foi estabelecida uma estrutura industrial moderna competitiva. Gráfico 2. A estrutura industrial das principais cidades chinesas em 2013

Fonte: Calculado com base no Anuário Estatístico da China publicado em 2014.

URBANIZAÇÃO NA CHINA

233

2.2.3. A questão da população semiurbana

A velocidade da urbanização é excessivamente acelerada e existe uma grande quantidade de “população semiurbana”, resultando em uma taxa de urbanização anunciada maior do que a real. Entre 1978 e 2013, a taxa de urbanização da China cresceu de 17,9% para 53,7%, o que representa 1% de urbanização a cada ano. Além disso, entre 1978 e 1998, a taxa de urbanização subiu apenas 12%, ou seja, 0,6% ao ano; entre 1998 e 2013, a taxa de urbanização subiu 23%, uma média de 1,5% ao ano. Ou seja, a velocidade da urbanização é muito alta desde 1998. Essa velocidade já é maior que a dos Estados Unidos e a do Reino Unido na época em que eles tinham o mesmo nível de urbanização. Por mais rápida que seja a velocidade da urbanização, devemos observar que, de acordo com o 6º censo populacional de 1 de novembro de 2010, dentre 690 milhões de pessoas que viviam em áreas urbanas, apenas 430 milhões haviam registrado residência permanente, ou seja, tinham um hukou chinês. Havia 260 milhões de pessoas que tinham migrado internamente na China (definido por aqueles que haviam deixado seus domicílios por mais de seis meses). Levando em conta apenas residentes registrados, a taxa de urbanização real na China foi de 31,9%. Mais da metade da população de migração interna é formada por trabalhadores rurais que se tornaram trabalhadores migrantes e pelos membros de suas famílias. Eles são chamados de “população semiurbana”. Essas pessoas, ainda que sejam contabilizadas como população urbana, nunca tiveram direitos iguais aos dos residentes registrados. Desse modo, podemos dizer que a taxa de urbanização foi superestimada. De acordo com o Novo Plano de Urbanização Nacional (2014-2020), a diferença entre a taxa de urbanização de residentes permanentes e a taxa de urbanização de residentes registrados se manteve em alta entre 1978 e 2012, chegando a 17,3% em 2012.

234

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

2.2.4. Uso ineficiente da terra

No processo de urbanização da China, a urbanização da terra cresce mais rápido do que a urbanização da população, levando a um problema de baixa eficiência do uso da terra urbana. Ao longo da última década, muitas cidades grandes e pequenas estabeleceram diversas áreas de desenvolvimento e prepararam novas áreas da cidade para a aceleração do ritmo de urbanização. Entretanto, devido a algumas complicações no sistema de registro de moradias, em outras políticas relacionadas e à pouca oferta de emprego em cidades grandes e pequenas, a velocidade da urbanização da população é relativamente baixa. Entre 2000 e 2010, a velocidade de urbanização da terra foi 1,8 vezes mais rápida do que a urbanização da população. As estatísticas indicam que a área de construção por pessoa é muito alta, mas a eficiência do uso dos recursos fundiários, sobretudo a eficiência do uso da terra industrial, é relativamente baixa. De acordo com a segunda pesquisa nacional sobre os recursos fundiários, ainda que a produção da terra seja baixa, a área destinada à construção urbana per capita é de 130 m2, bem diferente do nível médio de muitos países desenvolvidos na Europa. 2.2.5. Diferenças na estrutura interna urbana

O ritmo em que trabalhadores rurais migrantes adquirem os mesmos direitos dos trabalhadores urbanos foi desacelerado. Isso fez com que surgisse um quadro de desigualdade dentro do espaço urbano, derivado do quadro de desigualdade existente entre as áreas rurais e urbanas. A diferença entre as áreas rurais e as áreas urbanas na China é gigantesca e marcante. Há muitos anos, a diminuição da disparidade rural-urbana tem sido o principal objetivo da China para a pavimentação de um caminho saudável de urbanização. Entretanto, devido ao sistema de registro de moradias, sistemas de planejamento de uso da terra separados e políticas de financiamento da terra prejudiciais, a disparidade não foi reduzida. A renda da população urba-

URBANIZAÇÃO NA CHINA

235

na é três vezes maior do que a rural. Não só existe uma estrutura socioeconômica desigual entre a área rural e a urbana, como também recentemente tem surgido uma estrutura socioeconômica desigual dentro das próprias cidades, devido ao crescente número de trabalhadores rurais que se tornaram trabalhadores migrantes, levando consigo suas famílias. O número de trabalhadores rurais migrantes e de suas famílias é enorme e, nas cidades, eles vivem em condições de pobreza, com acesso limitado à seguridade nacional, residindo em ambientes abomináveis. Em 2011 havia 263 milhões de trabalhadores rurais migrantes na China, dentre eles 163 milhões tinham decidido deixar a cidade em que moravam. Com renda média mensal de apenas RMB 2.290,00, no final de 2012 formavam o grupo mais pobre nas áreas urbanas. O quociente dos trabalhadores empregados que pagam seguro de vida, seguro de acidente industrial, seguro-saúde, seguro-desemprego e seguro-maternidade é de, respectivamente, 14,3%, 24%, 16,9%, 8,4% e 6,1%. Em relação às condições de vida desses trabalhadores rurais migrantes, de acordo com pesquisas, 50% deles vivem em dormitórios, canteiros de obras, locais de produção ou de trabalho, 20% alugam casas compartilhadas e menos de 1% compra casas perto do local de trabalho. 2.2.6. Problemas do ambiente urbano

Os problemas ambientais estão presentes em todas as áreas urbanas da China, chegando mesmo a atingir algumas áreas rurais. O processo de urbanização acelerado e extensivo está tendo custos ambientais cada vez mais altos. A urbanização rápida, especialmente a urbanização de terras, tem agravado a falta natural de água potável. Mais de 100 cidades estão rodeadas de resíduos. A maior parte das cidades enfrenta sérios problemas de poluição dos recursos hídricos e diferentes níveis de poluição atmosférica. No início de 2013, uma neblina que cobria um milhão km2 no leste da China pairou por diversos dias.

236

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

2.2.7. Surtos de problemas urbanos

Problemas urbanos, como engarrafamentos, altos preços de moradia, poluição e vilas urbanas (núcleos urbanos altamente concentrados) estão se disseminando em muitas cidades, principalmente devido a uma séria carência de instalações e serviços públicos. A economia de escala das cidades faz com que elas cresçam cada vez mais, o que se torna incontrolável. As cidades grandes, em número cada vez maior, trazem consigo problemas urbanos como engarrafamentos e preços de moradia cada vez mais altos. Os engarrafamentos não estão afetando apenas cidades de primeiro nível (first-tier), como Beijing e Xangai, eles estão atingindo também capitais de segundo e terceiro níveis (second and third-tier), cidades altamente povoadas. Entretanto, planejamentos governamentais inadequados dificilmente atendem às demandas sociais a tempo, e a falta de serviços e instalações públicas piorou ainda mais esses problemas. 2.2.8. Sistema injusto de registro de moradias

O saneamento inadequado, os sistemas de registro de moradias e de financiamento de terras injustos e o sistema de avaliação do governo, juntos, obstruíram o desenvolvimento saudável da urbanização. O sistema de registro de moradias da China separa políticas de registro de áreas rurais e urbanas e, além disso, controla a flutuação populacional. Esse sistema restringiu severamente o processo de transação dos trabalhadores que migraram do campo para a cidade na tentativa de adquirir um hukou urbano, o que indiretamente levou à predominância da urbanização da terra sobre a urbanização da população. A velocidade de urbanização e as taxas de urbanização logo se tornaram uma meta importante em planos quinquenais de diferentes áreas, como um índice de modernização econômica indispensável.

URBANIZAÇÃO NA CHINA

237

3. Perspectivas para o futuro da urbanização da China Para lidar com problemas da estrutura espacial urbana irracional, da baixa competitividade industrial e da predominância da urbanização da terra sobre a urbanização da população, devem ser tomadas medidas que estabeleçam um padrão de urbanização intensivo, equilibrado e de alto nível. Com a promoção da nova urbanização pelo governo central e com o enorme entusiasmo que ela gerou nos governos locais, chegou a hora de adotar um novo padrão de urbanização de alta qualidade e em escala moderada. Esse padrão envolve medidas que incluem os seguintes pontos: (1) Definir um padrão racional de distribuição do espaço urbano. A China precisa formar um sistema urbano no qual cidades grandes, médias e pequenas sejam desenvolvidas de acordo com seu porte. Para alcançar esse objetivo, o governo central da China definiu um padrão estratégico para o espaço urbano de “duas horizontais e três verticais”1 com vistas a melhorar a competitividade internacional das aglomerações urbanas no leste da China e a fomentar algumas aglomerações urbanas em áreas competitivas do oeste da China. Essa estratégia é eficiente sobretudo para a criação de um ambiente político que beneficie a integração regional. (2) Aprimorar a estrutura industrial urbana e se concentrar no desenvolvimento da economia de serviços e no desenvolvimento econômico com base na instalação de sedes de empresas estratégicas (headquarters economy). A indústria tem, per se, uma tendência de passar do estado de indústria primária para terciária. E, para os formuladores de políticas, é necessário seguir a tendência de aprimoramento da estrutura industrial urbana e tornar a estrutura industrial mais voltada para produtos refinados e de ponta, O padrão estratégico espacial urbano de “duas horizontais e três verticais” foi apresentado pela primeira vez no 12º plano quinquenal chinês. Essa estratégia busca expandir o crescimento econômico do leste ao oeste, do sul ao norte; tomando a Ferrovia Transcontinental Eurasiática e o Rio Yangtze como as duas rotas horizontais; e a área costal ao leste, a linha BeijingGuangzhou, e a linha Baotou-Kunming como as três rotas verticais.

1

238

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

e também para serviços. Isso exige que a estrutura econômica seja ajustada para que adote um padrão fortemente baseado no conhecimento, voltado para a indústria de serviços e para o desenvolvimento econômico com base em produtos de qualidade superior. Em cidades grandes, sobretudo megalópoles, chegou a hora de adotar medidas para promover serviços voltados para a produção (producer services) – como as finanças – em áreas específicas; e de acelerar o ritmo das indústrias de ponta em cidades estratégicas. A headquarters economy e a economia de serviços deveriam se tornar os dois pilares do desenvolvimento de excelência para essas áreas. (3) Incentivar o desenvolvimento de áreas urbanas com baixo consumo de carvão, além de tomar medidas para o desenvolvimento de cidades ecológicas com baixo consumo de carbono. O modo de urbanização extensiva deve ser convertido para um padrão de baixo consumo, baixo carbono, alta eficiência, com o desenvolvimento de uma nova urbanização intensiva e habitável, que favoreça uma urbanização ecológica e intensiva, tornando possível um processo de urbanização racional e sustentável. (4) Manter tanto a velocidade quanto a escala da urbanização moderadas. Após o crescimento econômico acelerado ao longo dos últimos 30 anos, que se deu desde a reforma e a política de abertura, a China entra agora em um estágio de crescimento econômico moderado. Enquanto isso, indústrias intensivas em mão de obra estão tendo que enfrentar mudanças e necessidade de aprimoramento, o que torna impossível o emprego de tantos funcionários como no passado. No futuro, o aumento de oportunidades de trabalho dependerá cada vez mais da indústria terciária, que, por sua vez, depende do desenvolvimento da indústria secundária. A intensa pressão para o aumento do número de vagas de trabalho tem revelado que a velocidade e a escala da urbanização já não são mais capazes de dar conta do desenvolvimento industrial.

URBANIZAÇÃO NA CHINA

239

(5) Promover o crescimento inteligente e controlar a expansão espacial. A quantidade de espaço disponível para urbanização ultrapassou a demanda por atividades socioeconômicas em muitas cidades grandes e pequenas, após muitos anos de urbanização da terra. Em algumas das novas áreas planejadas, não se consegue desenvolver atividades econômicas eficientes, com economia de escala, sobretudo na indústria terciária, devido ao desenvolvimento de pequena escala e baixa densidade. Para restringir a expansão espacial e promover o crescimento inteligente das áreas urbanas, temos que limitar estritamente a oferta de terra; controlar a exploração do espaço, circunscrever as fronteiras do crescimento urbano; orientar o desenvolvimento da urbanização com transportes, etc. (6) Incentivar o desenvolvimento de metrópoles policêntricas e interconectadas; além de simplificar algumas funções urbanas desnecessárias, solucionando, assim, problemas urbanos. Na tentativa de obter os benefícios das economias de escala, as cidades chinesas estão se tornando cada vez maiores . Isso leva ao surgimento de cada vez mais problemas urbanos, tais como engarrafamentos e altos preços de moradia. Os congestionamentos não estão afetando apenas cidades de primeiro nível, como Beijing e Xangai, estão atingindo também capitais de segundo e terceiro níveis. A superconcentração das funções urbanas e a distribuição das atividades econômicas e da população em algumas áreas urbanas específicas são a causa dos problemas urbanos. Para solucionar esses problemas, deve-se criar um novo conceito de desenvolvimento urbano, e deve-se promover o desenvolvimento de cidades grandes policêntricas e interconectadas. (7) Aprimorar o gerenciamento do transporte em cidades grandes. Os engarrafamentos na China são, na maioria das vezes, consequência do movimento pendular, do desequilíbrio de múltiplos meios de transporte e de confusões na sequência do tráfego. Dessa perspectiva, um método efetivo para o país seria um sistema de controle de tráfego mais intenso que utilizasse

240

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

todo o potencial dos recursos rodoviários por meio de coordenação e planejamento eficientes. (8) Promover e coordenar o desenvolvimento sustentável de áreas urbanas. Um desenvolvimento coordenado e sustentável das áreas urbanas engloba cinco aspectos. Primeiro, uma economia com indústrias de ponta e alta produtividade. Em segundo lugar, um ambiente urbano ecológico e com baixa produção de carbono, adequado para moradia e para saúde. Em terceiro lugar, a racionalização dos recursos e o cuidado com o meio ambiente. Em quarto lugar, a inovação tecnológica e a integração da pesquisa e da produção devem impulsionar o desenvolvimento econômico. Em quinto lugar, o espaço urbano deve ser concentrado e deve se orientar por um planejamento racional.

4. Considerações finais A China passou por um longo período de urbanização rápida e extensiva, que trouxe consigo muitos problemas, tais como padrões espaciais de urbanização desequilibrados, estruturas industriais urbanas de baixa qualidade, população semiurbana, uso ineficiente da terra, estruturas socioeconômicas desiguais entre a área rural e a urbana, custos ambientais, problemas urbanos e sistemas de registo de moradia injustos. No futuro, para um desenvolvimento urbano saudável, um novo padrão de urbanização de escala moderada e alta qualidade deve ser promovido por diversos projetos de políticas públicas.

Referências NORTHAM, R. M. Urban geography. Nova York: John Wiley & Sons, 1979. PARR, J. B. Agglomeration economies: ambiguities and confusions. Environment and Planning A, 34(4), p. 717-732, 2002.

URBANIZAÇÃO NA CHINA

241

PHELPS, N. A.; OZAWA, T. Contrasts in agglomeration: proto-industrial, industrial and post-industrial forms compared. Progress in Human Geography, 27(5), p. 583-604, 2003. XIAOTONG, F. Small Town, Big Question. Jiangsu: Jiangsu Renmin Press, 1984. _______. Small towns in China: functions, problems & prospects. Califórnia, EUA: China Books & Periodicals, 1986. XUWEI, H. An Analysis of Urbanization Level of China. City Planning Review, n.2, p. 23-26, 1983. YIXING, Z.; YANCHUN, M. The Suburbanization Process of Large Cities in China. Urban Planning Review, n.3, p. 22-26, 1998. _______; QI, Y. An Review on the Urban-size Hierarchy of China and the Territorial Types of the Hierarchy on Provincial Level. Acta Geographica Sinica, n.2, p. 97-111, 1986. _______; ROY. B. The Classification of Industrial Function of Chinese Cities (Including Attached Counties), Theories, Method and Results. Acta Geographica Sinica, n. 43, p. 208-298, 1988.

O Distrito de Arte 798 Múltiplos fatores que influenciaram a sucessão do uso da terra e a restruturação industrial em Beijing Yimei Yin Zhigao Liu Michael Dunford Weidong Liu1

1. Introdução As reformas econômicas da China e seu rápido crescimento econômico redefiniram radicalmente a geografia das cidades chinesas. Tais cidades passaram por uma descentralização industrial (HSING, 2010; GAO, LIU e DUNFORD, 2014) e pela reutilização das zonas industriais abandonadas (ZHENG, 2011; REN e SUN, 2012). Esses processos de sucessão do uso da terra envolvem fatores importantes com trajetórias inter-relacionadas, mas são também promovidos por vetores mais amplos que operam em diversas escalas e que andam lado a lado com mudanças na personalidade e na importância relativa das indústrias criativas e de serviços. Com o abrandamento do controle político da cultura e com o reconhecimento do seu valor econômico, as indústrias criativas passaram a ser promovidas por diversos níveis governamentais na China, de modo a diversificar a economia urbana existente, valorizar o capital humano e os recursos culturais, gerar riqueza nas áreas urbanas, criar oportunidades de emprego, criar espaços públicos vibrantes, promover a diversidade cultural e a inclusão social. As indústrias criativas localizam-se predominantemente em áreas metropolitaOs autores agradecem encarecidamente ao apoio financeiro da Fundação Nacional de Ciências Naturais (41471113, 41201116 e 41125005) e da Academia Chinesa de Ciências (bolsa de Professor Visitante 2009S1-44). Agradecem ainda a Liang Lv, por seu apoio cartográfico.

1

244

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

nas (ZHENG, 2011; ZIELKE e WAIBEL, 2014). Alguns exemplos são a Fábrica 798 e Songzhuang (LIU e HAN et al., 2013; SUN, 2010; REN e SUN,2012); Nanluoguxiang (SHIN, 2010) em Beijing; Red Town e M50 (ZHONG, 2010; WANG, 2009) em Xangai; White Horse Lake em Hancheu (WEN, 2012) e Dafen em Shenzhen (LI et al., 2014). Pelo fato de o Distrito de Arte 798 de Beijing ser um símbolo da nova civilização industrial na China e um pioneiro da nova indústria criativa chinesa, ele foi utilizado como estudo de caso para explorar a ascensão e as mudanças dos distritos industriais criativos no país e demonstrar que seu desenvolvimento deve ser examinado de modo a identificar tanto os fatores mais gerais envolvidos quanto as especificidades do caso. Mecanismos gerais sempre operam por meio de eventos específicos, e fatores contingenciais muitas vezes podem afetar trajetórias de desenvolvimento urbano (LIU e DUNFORD, 2012). Na China, essas correlações são ainda profundamente moldadas por aspectos do sistema de governo chinês. Um número cada vez maior de estudos teóricos e empíricos lidam com a distribuição espacial, com as características da localização das indústrias criativas na China e com os fatores por trás do seu desenvolvimento (LIU, HAN e O’CONNOR, 2013; SUN, 2010; WANG, 2012, XIONG, 2009; ZIELKE e WAIBEL, 2014), sem dar conta totalmente de sua natureza complexa e cambiante e subestimando o papel das forças globais, das relações entre Estado e mercado e das políticas de uso da terra que também condicionam essa mudança. Este capítulo apresenta uma análise dos fatores que se dão em diferentes escalas ao longo do tempo, combinando fenômenos gerais (o desenvolvimento do mercado imobiliário urbano e a globalização) com fenômenos específicos (políticas chinesas relativas ao direito de propriedade, transformações econômicas, cultura, governo, etc.) para entender a transformação de uma zona industrial de prestígio em um espaço para indústrias criativas. O artigo é dividido em cinco partes. A Seção 2 define a metodologia. Na Seção 3, a estrutura teórica é definida. As Seções 4 e 5 examinam a ascensão de Beijing como uma cidade criativa e o caso do Distrito de Arte 798. A Seção 6 conclui o artigo.

O DISTRITO DE ARTE 798

245

2. Metodologia Este artigo vale-se de cinco anos de observação participante realizada pelos dois primeiros autores nos projetos da indústria criativa de Beijing, incluindo o Distrito 798, no contexto de suas atuações como consultores de planejamento do governo local; e tem por base ainda uma série recente de sondagens e entrevistas individuais realizadas entre o final de 2010 e o início de 2011. Foram entrevistadas mais de 20 autoridades locais seniores, com cargos em agências de gerenciamento da terra e de planejamento urbano, na Comissão de Desenvolvimento e Reforma, na Comissão Administrativa do Parque de Ciência Zhongguancun e na Diretoria de Construção e Gerenciamento do Distrito de Arte 798; além de membros de 40 empresas ligadas à arte. Entre outubro de 2013 e maio de 2014, outras sondagens e entrevistas foram conduzidas com membros de empresas ligadas à arte, sobretudo com as que entraram no mercado após 2011. Os dados obtidos na primeira pesquisa foram suplementados com os dados obtidos na segunda.

3. Embasamento teórico: indústrias culturais, descentralização geográfica e sucessão do uso da terra A história da Fábrica 798 é a história da influência do valor dos aluguéis na sucessão do uso da terra; sucessão essa que avançou (no caso da indústria para um distrito de arte), retrocedeu (projeto para a indústria de eletrônicos) e voltou a progredir por meio da modernização (com galerias sofisticadas e de propaganda). É uma história sobre a transição da indústria para serviços e, em particular, para um subconjunto de indústrias culturais e da subsequente modernização do distrito de arte para abrigo de atividades com maior geração de receitas/lucros, uma história sobre trajetórias interdependentes, sobre a interação de processos que se desdobram em diferentes escalas. Pelo menos três áreas de pesquisa influenciam as questões examinadas neste artigo: estudos sobre (1) o crescimento do setor de serviço e desenvolvi-

246

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

mento das indústrias culturais e de criação, (2) a localização intrametropolitana e (3) o uso do espaço urbano. Deve-se também atentar para as peculiaridades do contexto chinês. Esses processos de transformação envolvem mudanças na estrutura industrial e no uso da terra que ocorrem em múltiplas escalas, estão em permanente evolução e cujas trajetórias estão relacionadas a muitos outros fatores. Podem existir diversos projetos e propostas a qualquer tempo, e a disputa entre eles pode moldar significativamente as trajetórias de médio prazo. Essas evoluções envolvem processos de restruturação industrial e renda fundiária – e a sucessão planejada do uso da terra –, mas sempre refletem desdobramentos mais específicos e uma série de eventos críticos em diferentes níveis: nacional (reforma da política cultural chinesa), global (as relações internacionais da era comunista, as Olimpíadas de 2008 em Beijing, a intervenção das organizações internacionais) e local (remanejamento das escolas de arte, escolhas dos artistas locais, e ações dos governos locais). O que se dá em um lugar reflete fatores locais, mas reflete também o impacto de vetores mais amplos. 3.1. A ascensão das indústrias culturais e criativas dentro e fora da China

Em “The coming of the Post-Industrial Society”2 , Bell (1974) previu uma mudança radical do foco econômico, de mercadorias para serviços. Mais recentemente, o setor de serviços se tornou mais significativo em termos de produção e emprego. Ainda que questionável (GERSHUNY, 1977), a observação dessa tendência levou à ideia de que os serviços podem surgir como uma alternativa à manufatura para o crescimento econômico. O setor de serviços inclui setores dinâmicos e não dinâmicos, impostos e serviços sustentados pelo mercado. Essas atividades abrangem indústrias culturais (originalmente identificadas pelos teóricos da Escola de Frankfurt Adorno e Horkheimer, são caracterizadas pela produção em massa de produtos culturais padronizados). As indústrias culturais são frequentemente entendidas como indústrias criativas Lançado no Brasil com o título “O Advento da Sociedade Pós-industrial”, pela Editora Cultrix, em 1977. 2

O DISTRITO DE ARTE 798

247

nas quais a criatividade humana é posta à serviço da produção de inovações (CAVES, 2000). Essas indústrias se concentram em grandes cidades onde os principais atores da indústria cultural estão localizados e onde galerias, museus, bibliotecas e universidades financiadas pelo Estado estão amplamente presentes, atraindo pessoas talentosas. Essa situação levou a um forte desejo por parte das autoridades das cidades de promover o desenvolvimento de conglomerados da indústria cultural. O desenvolvimento de espaços criativos depende, entretanto, de um mercado global de mercadorias e serviços, instituições locais e nacionais, indústrias criativas (e seus participantes, tais como artistas, comerciantes e consumidores de obras de arte, associações industriais, instituições de ensino e educação e órgãos reguladores) e de relações, práticas e normas que moldem e limitem suas interações culturais. O Estado é um ator crucial na China devido à estrutura de governo centralizada. Na China, a comercialização de produtos culturais por muito tempo não existiu (KEANE, 2011), já que, de acordo com a ideologia marxista-leninista tradicional, os produtos culturais serviam aos propósitos da ideologia socialista e não possuíam uma função econômica. Foi apenas em 1998, com a criação do Departamento da Indústria Cultural, no âmbito do Ministério da Cultura, que o valor econômico da produção cultural foi aceito pelo Partido Comunista chinês e pelo Estado chinês. Dois anos depois, a indústria cultural foi oficialmente reconhecida como um setor da economia pela primeira vez em uma das “recomendações” do 10º Plano Quinquenal chinês (KEANE, 2009). Desde então, unidades de serviço cultural públicas, subsidiadas pelo Estado, foram gradualmente transformadas em empresas culturais estatais, o ambiente político gradualmente se tornou favorável às indústrias criativas, e a meta de tornar a China um país inovador até 2020 contribuiu para a construção de sistemas de políticas relacionadas à inovação, que apoiavam indústrias criativas. Na China, o governo ainda é caracterizado por uma estrutura altamente hierárquica. Quando o governo central decide desenvolver as indústrias culturais e criativas, os governos locais as promovem ativamente (ZIELKE e WAIBEL, 2014). Por exemplo, dezesseis governos municipais em Beijing

248

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

anunciaram o desenvolvimento de indústrias criativas e o estabelecimento de parques de criação. A contribuição das indústrias criativas e culturais para o emprego e o crescimento econômico aumentou (Tabelas 1 e 2). Tabela 1. A estrutura das indústrias culturais e criativas em Beijing (em milhares) 2007

2008

2009

2010

2011

2012

Cultural e Artístico

48

48

52

53

74

72

Jornalismo e Publicações

167

160

156

149

151

156

Radiodifusão, TV e Filme

46

46

48

44

55

60

Software, Rede e Serviços Computacionais

348

398

451

516

613

698

Marketing e Exposições

100

93

94

101

115

125

Comércio de Obras de Arte

14

17

19

22

25

28

Serviços de Design

85

78

100

109

101

119

Excursões, Bem-estar e Recreação

103

100

103

99

106

111

Outros Serviços Auxiliares

114

130

126

136

169

160

Total indústrias criativas

1025

1070

1149

1229

1409

1529

Porcentagem de todos os funcionários (%)

10.87

10.91

11.51

11.91

13.17

13.81

Fonte: Agência de Estatísticas de Beijing, 2008-2013.

Tabela 2. Valor agregado das indústrias criativas em Beijing (em bilhões de RMB) 2007

2008

2009

2010

2011

2012

Cultural e Artístico

3,88

4,27

4,88

5,37

6,8

7,6

Jornalismo e Publicações

14,22

15,37

15,98

17,18

19,19

20,83

Radiodifusão, TV e Filme

10,27

12,01

12,45

13,86

15,4

17,76

Software, Rede e Serviços Computacionais

48,34

70,31

71,05

84,71

104,22

119,03

Marketing e Exposições

6,49

11,22

9,85

12,74

15,9

16,86

Comércio de Obras de Arte

1,38

2,05

3,09

4,3

5,64

5,92

Serviços de Design

4,92

5,28

7,64

8,42

9,06

9,74

Excursões, Bem-estar e Recreação

5,02

5,84

6,07

6,95

7,86

8,34

Outros Serviços Auxiliares

6,31

8,29

17,98

16,24

14,92

14,44

Total indústrias criativas

100,83

134,64

148,99

169,77

198,99

220,52

Porcentagem (%)

10,24

12,11

12,26

12,03

12,24

12,33

Fonte: Agência de Estatísticas de Beijing, 2008-2013.

O DISTRITO DE ARTE 798

249

3.2. Estrutura industrial na região metropolitana e localização dos serviços e da indústria nas regiões intrametropolitanas

Na geografia urbana e econômica há diversos estudos sobre a descentralização da indústria metropolitana nos países desenvolvidos (SCOTT, 1982; DUNFORD, 1977). Na primeira metade do século XX, houve uma descentralização em larga escala das indústrias de capital intensivo. As áreas centrais altamente acessíveis continuaram a abrigar conglomerados de mão de obra intensiva, junto de atividades de serviço de alto nível. Conforme os locais foram sendo abandonados, zonas desocupadas e danificadas passaram a ser destinadas a fins diversos. As teorias existentes reconhecem que as zonas industriais intrametropolitanas devem ser entendidas levando-se em consideração sua interação com (1) as características estruturais e a restruturação ou a evolução/dinâmica interna das atividades industriais ou dos serviços; (2) as características do espaço urbano, em constante evolução, e (3) seus impactos recíprocos. Muitas empresas culturais tendem a se reunir e a compartilhar instalações culturais e outras infraestruturas, de forma a reduzir os custos de transação e a aumentar o acesso aos mercados, a informações/transbordamento de conhecimento e ao trabalho especializado (MARKUSEN, 2006; LIU, HAN et al., 2013). Porém, as indústrias criativas são relativamente versáteis, com baixo capital e com flexibilidade na demanda de insumos materiais (LIU, HAN et al., 2013), respondendo ao aumento de custos e a regulações rigorosas. A concentração de pessoas e empresas criativas aumenta a escassez de instalações, os aluguéis e aumenta o ruído e a perturbação, levando a remanejamentos e a mudanças no uso da terra. Mudanças na estrutura industrial e no uso na terra caminharam lado a lado com a globalização e aumentaram a interdependência internacional observada na inserção de valores e organizações externas em praticamente todos os países. Essas influências externas são vetores significativos de mudanças estruturais e no uso da terra. Seu impacto varia com o grau de abertura das diferentes economias e com sua atratividade para os mercados

250

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

domésticos. No caso das indústrias criativas urbanas chinesas, tais fatores externos incluem não apenas o mercado de arte internacional, empresas e organizações internacionais, mas indivíduos criativos globalmente móveis. A cultura ocidental também passou a desempenhar um papel cada vez mais relevante devido à pressão intensa de líderes políticos ocidentais e de organizações internacionais para que os governos chineses criassem novos sistemas institucionais mais abertos às indústrias culturais e aos valores ocidentais. A dinâmica das atividades econômicas e do uso da terra depende também de fatores históricos e de diversas outras trajetórias. Em alguns casos, envolvem “acidentes históricos” (KRUGMAN, 1991) e eventos fortuitos que apenas podem ser decifrados por meio da análise de casos específicos e que, ainda assim, disparam um conjunto de outros eventos mais facilmente conceitualizados, com todos eles se desdobrando em múltiplas escalas. 3.3. Indústrias, serviços e uso da terra nas cidades

Uma importante limitação das teorias acima mencionadas sobre a estrutura industrial metropolitana e sobre a localização industrial intrametropolitana é o fato de não prestarem a atenção suficiente na relação entre o desenvolvimento industrial e os fatores que influenciam o uso da terra nas cidades/regiões. Esses fatores incluem a oferta de terra; espaços especificamente projetados, com múltiplas funções ou adaptáveis; e redes de comunicação. Esses locais têm suas próprias características e estilos arquitetônicos intrínsecos conferidos por seus criadores e usuário. Ainda assim, eles também ocupam posições específicas e oscilantes na divisão social e econômica do espaço urbano que determinam sua relativa atratividade para diferentes tipos de atividade econômica. Uma segunda limitação são os possíveis usuários do local, classificados por sua capacidade de pagar custos que, no caso de distritos de arte, incluem artistas desvalidos, em um extremo, e galerias e empresas endinheiradas, no outro.

O DISTRITO DE ARTE 798

251

3.4. O contexto institucional chinês e a dinâmica do uso da terra e da localização industrial

Modelos gerais dos fatores que influenciam a localização industrial e o uso da terra são condicionados, entretanto, pelo papel dos atores do mercado, pelos preços e custos do terreno. Na China, o custo da terra é importante, mas os mecanismos do mercado estão sujeitos a controles e regulações institucionais substanciais, ao passo que o próprio Estado assume um papel ativo e muito significante na alocação de recursos e no desenvolvimento econômico. No período de reforma, a descentralização da China deu poderes para que os governos subnacionais participassem diretamente da promoção e do planejamento do processo de desenvolvimento, além de participarem como reformadores e investidores/empreendedores, e na formulação de políticas; assumindo um papel que ia muito além da disponibilização de bens públicos. Inicialmente, a distribuição da terra controlada pelo Estado contribuiu significativamente para o desenvolvimento industrial em localizações centrais. A Lei de Gerenciamento da Terra de 1987 separou os direitos de uso dos direitos de propriedade da terra, inaugurando um novo mercado para a transferência dos direitos de uso para usuários comerciais para períodos de 40 a 70 anos, introduzindo mecanismos de comercialização baseados no preço e permitindo que os direitos de uso do terreno pudessem vir a ser transferidos (LIN e HO, 2005). A Lei de Planejamento do Uso da Terra de 1987 formalizou o sistema de planejamento fundiário. Em meados da década de 1980, a descentralização fiscal e administrativa viu a promoção do desenvolvimento econômico se tornar uma das principais prioridades do governo local. Essas reformas deram aos governos locais a capacidade e o incentivo para alugar terras, construir infraestrutura e atrair investimentos com o objetivo de incrementar a receita governamental: foram criadas áreas para desenvolvimento nos subúrbios e centros de crescimento estratégico, novas infraestruturas de transporte aumentaram a acessibilidade da áreas suburbanas, investimentos em imóveis alteraram a distribuição da força de trabalho, a anexação administrativa converteu municípios adjacentes em

252

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

distritos urbanos, nas áreas centrais, demolições, remanejamentos e reformas levaram a aumentos significativos no custo da terra. O crescente “corporativismo governamental local” (OI, 1992) ou o “estado desenvolvimentista local” (BLECHER, 1991) levou a uma busca incessante do Estado por novas oportunidades de crescimento. A competição entre as autoridades locais é intensa. O sistema de avaliação de desempenho das autoridades governamentais baseado no PIB reforçou essas tendências. O novo regime dos direitos de propriedade da terra também teve implicações significativas para as empresas estatais urbanas (ou SOEs, sigla em inglês para state-owned enterprises) que mantinham terras concedidas gratuitamente antes de 1987. As empresas que já haviam sido remanejadas podiam vender o direito de uso da terra de locais abandonados ou, mediante autorização do governo, empreender projetos imobiliários. Empresas que faliam ou que eram obrigadas a se remanejar por causa do desenvolvimento econômico ou por motivos ambientais mantinham os direitos de uso da terra de oficinas ou armazéns abandonados. Esses locais desertos abriam uma ampla gama de possibilidades para mudanças de rumo no desenvolvimento regional (LIU et al. 2014), e alguns gerentes com a cabeça mais aberta aproveitaram a oportunidade para alugar essas antigas instalações industriais – com planta livre, amplas janelas e pé direito alto – a preços baixos para artistas de diferentes tipos, atraídos pelas condições de trabalho.

4. A transição de Beijing de uma cidade industrial para uma cidade criativa Após o Partido Comunista tomar o poder, em 1949, muitas cidades grandes chinesas, incluindo Beijing, deixaram de ser “cidades de consumidores” capitalistas e passaram a ser “cidades produtivas” capitalistas (LO, 1987; WEI e YU 2006). Já que o núcleo urbano densamente povoado de Beijing estava fisicamente lotado de instituições administrativas nacionais, sobretudo na área dentro da Segunda Estrada Circular, grandes empresas manufatureiras foram

253

O DISTRITO DE ARTE 798

construídas na década de 1950 na área entre o local hoje conhecido como Terceira Estrada e Segunda Estrada (ver Figura 1). Desse modo, muitas pequenas fábricas foram construídas dentro da área urbana. Figura 1. Parques industriais criativos localizados em antigas zonas industriais, na área urbana de Beijing

Núcleo Urbano Centro Rio Ferrovia Estrada

Lago Áreas verdes e esportivas Escritórios e residências Fábrica e armazem

Fonte: Criado por Liu et al. (2013) e Comissão de Planejamento Urbano de Beijing (2006)

Até o meio da década de 1980, as SOEs obtinham terra por meio de canais administrativos, gratuitamente, e normalmente ocupavam amplas áreas. Nenhuma zona industrial era apenas o local onde ocorria a produção. As fábricas também construíam escolas, pequenas instalações comerciais, comunidades residenciais dentro e em torno dos locais de produção para serem utilizados por seus funcionários. Um complexo industrial normalmente emprega entre

254

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

três mil e 100 mil pessoas. Entretanto, a combinação de áreas residenciais e de trabalho acabava gerando diversos problemas, incluindo a falta de espaço para a expansão da produção, e as condições ambientais apresentavam risco à saúde dos residentes e dos trabalhadores. Com a reforma que ocorreu após 1978 e com a inauguração de diversos complexos industriais, o governo de Beijing foi confrontado com problemas de restruturação urbana e industrial cada vez mais graves. Em 1982, Beijing foi redefinido como um centro político e cultural nacional e, no Plano Diretor de 1992, como uma “cidade internacional moderna”. Sua posição de centro econômico nacional foi implementada, e indústrias leves e empresas poluentes tiveram que deixar a cidade para abrir espaço para serviços refinados e indústrias de alta tecnologia. A consequente descentralização industrial gerou uma grande quantidade de áreas industriais livres: aproximadamente 60 ha foram disponibilizados entre 1985 e 1997 graças ao remanejamento industrial; e 70% dos quais estava localizado no centro urbano (FENG et al., 2008). O remanejamento industrial foi posteriormente acelerado para atender às exigências dos “Jogos Olímpicos Ecologicamente Corretos de Beijing”. Entre 1999 e 2005, mais de 150 unidades industriais foram removidas, e a proporção de terrenos industriais na área construída dentro da Quarta Estrada Circular diminuiu de 8,74% para 6,6%, liberando 900 ha de terreno industrial (FENG et al., 2008). Essa área industrial desativada foi um ativo importante para promoção das indústrias criativas: muitas opções de transporte, aluguéis baratos, ambiente tranquilo, prédios históricos atraentes, com pés direitos altos, amplas janelas, plantas livres e com estilos arquitetônicos únicos. Isso atendia às necessidades dos artistas, permitindo que algumas das antigas zonas industriais capitalizassem esses ativos. O Distrito de Arte 798 é o caso em questão: sendo a maior comunidade de arte contemporânea desenvolvida no espaço de um antigo complexo industrial militar, serviu de modelo na transformação de Beijing de uma cidade industrial nacional para uma metrópole criativa global em ascensão.

255

O DISTRITO DE ARTE 798

5. O exemplo do Distrito de Arte 798 O Distrito de Arte 798 está localizado no nordeste de Beijing (Figura 1), na zona industrial abandonada da Fábrica 798, um dos estabelecimentos do complexo Fábrica 798 Anexa, localizado aproximadamente a 10 km do norte da maior área diplomática de Beijing (área das embaixadas, em Sanlitun), e a 20 km ao sudeste do Aeroporto Internacional de Beijing. A área principal cobre aproximadamente 600 mil m2, com fronteiras informalmente definidas em Jiuxianqiao North Road (ao norte), Jiuxianqiao Street (oeste), Wanhong Road (sul) e Jiuxianqiao East Road (leste) (Figura 2). Figura 2. O Distrito de Arte 798

Estrada Jiuxianqiao

Estrada Jiuxianqiao Leste

Estrada Jiuxianqiao Norte

Estrada Wanhong Cartografia: Liang Lu

256

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

5.1. De um complexo industrial militar e estatal prestigioso a uma área industrial problemática

O complexo da fábrica foi estabelecido no início da década de 1950 para a produção de componentes eletrônicos militares, com o apoio da antiga República Democrática Alemã. O maior projeto de colaboração com a Alemanha Socialista era a parceria entre as repúblicas socialistas soviéticas e uma visão maoísta do desenvolvimento industrial urbano em um estado socialista avançado (Figura 3). O complexo era administrado por uma agência governamental central responsável pela indústria de eletrônicos. Após dez anos de operação, ele foi dividido em seis estabelecimentos (706, 707, 751, 761, 797 e 798). A Fábrica 798 era o maior dentre eles, em área geográfica. Figura 3. O Distrito de Arte 798 na década de 1980

No final da década de 1980 e no início da década de 1990, a concorrência do sudeste da China e internacional levaram a um lento declínio na produção e a uma enorme diminuição na demanda por mão de obra. No início da década de 1990, o número de pessoas trabalhando na Fábrica 798 havia diminuído de um recorde histórico de 20 mil para apenas 4 mil. No ano 2000, seis fábricas foram reorganizadas e incorporadas ao Grupo Seven-Star de Ciência e Tecnologia de Huadian (Grupo Seven-Star), uma agência imobiliária com a função de supervisionar o distrito e de encontrar locatários para os prédios abandonados.

O DISTRITO DE ARTE 798

257

5.2. Primeiras transformações espontâneas realizadas por artistas pioneiros de vanguarda

Com o término da produção, a transformação das áreas industriais desocupadas em distritos criativos foi feita por artistas pioneiros, sobretudo aqueles que haviam estudado na Academia Central de Belas Artes da China (CAFA). O distrito de arte Yuanmingyuan foi o primeiro a surgir, em meados da década de 1980, tendo existido até 1995. O CAFA foi transferido do distrito comercial central da cidade (Wangfujing) para uma área perto do complexo industrial (LIU, HAN et al., 2013) no final da década de 1990. Entre 1995 e 2001, um campus “temporário” do CAFR foi estabelecido em um dos locais de trabalho da Fábrica 798. Posteriormente, o CAFA foi transferido por inteiro para uma antiga região agricultora perto do complexo industrial desocupado. Impressionados pela disponibilidade de espaços amplos de trabalho e pelos preços baixos, um escultor do CAFA, Sui Jianguo, alugou uma oficina em ruínas no complexo de fábricas inativo e abriu seu ateliê em 1997. Aluguéis baratos, somados às amplas instalações das fábricas, um tanto singulares, projetadas com o estilo Bauhaus por arquitetos da Alemanha Oriental no início da década de 1950 – com um estilo simples, sem decoração, com tetos curvos sustentados por arcos, fachadas suaves, formas cúbicas, plantas livres e janelas de vidro que permitiam a entrada de muita luz natural – tornavam o lugar adequado para artistas (ver Figura 4). O acesso aos meios de transporte também era melhor do que nos distritos de arte na periferia de Beijing. Notícias sobre as qualidades do lugar se espalharam rapidamente, no boca a boca. O local também oferecia um novo “refúgio” para os artistas profissionais de Yuanmingyuan. O distrito de arte de Yuanmingyuan surgiu no meio da década de 1980 perto das ruínas do Palácio de Verão da Dinastia Ming, e foi o primeiro endereço dos pintores independentes sem afiliação institucional oficial e sem um hukou3 em Beijing (LIU, HAN et al., 2013). Ainda que ele tenha atraído crescenHukou: O controle da mobilidade do trabalho na China é uma estratégia que os governos têm adotado desde os antigos regimes, como o da dinastia Qing (1644 a 1911). Após a Revo3

258

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

te atenção da mídia internacional, escandalizados com o frequente contato de artistas não tradicionais com o mundo ocidental, com o trabalho de vanguarda ocidental e com as reflexões irônicas da arte sobre a história e a sociedade contemporânea chinesa, as autoridades locais o fecharam oficialmente em 1995 e 2013. O estilo de vida boêmio “depravado” da crescente população de artistas e investidores, e os ocasionais conflitos, ruídos e perturbações que afetavam a área e as universidades próximas também contribuíram para esse desdobramento e levaram alguns artistas a organizarem ateliês no Distrito de Arte 798. Figura 4. Instalações fabris no estilo Bauhaus e equipamentos de produção desativados

lução de 1949, um sistema similar foi estabelecido no país. Denominado Hukou, este sistema tem dois objetivos principais: 1) desencorajar a movimentação dos habitantes do campo para as cidades; 2) ajudar o governo a alocar a força de trabalho geograficamente. O controle sobre a mobilidade humana mudou ao longo do tempo e assumiu diferentes faces desde a era Mao (1949 – 1979) até. a abertura econômica e permanece até hoje. O processo de industrialização acelerado teve como um de seus resultados um grande número de migrantes ilegais nas cidades. O controle sobre a mobilidade do trabalho foi essencial para o desenvolvimento econômico alcançado pela China.

O DISTRITO DE ARTE 798

259

A transição bem-sucedida de uma zona industrial abandonada para um distrito de arte internacionalmente conhecido deveu-se em parte a dois empreendimentos artísticos estrangeiros. Em 2002, um editor de arte nascido nos Estados Unidos, colecionador de obras de arte contemporâneas chinesas, Robert Bernell, abriu a Timezone 8 e recomendou o complexo para artistas ocidentais. Essa foi a primeira empresa dedicada às artes de propriedade de um estrangeiro na área, em uma cantina desocupada da Fábrica 798, com 120 m2. Sua livraria e editora valeu-se de contratos com editoras em todo o mundo para tornar-se uma importante editora mundial de livros de arte chineses. A Tokyo Gallery foi a primeira galeria de propriedade estrangeira no distrito. Ela foi fundada pelo artista de vanguarda mundialmente conhecido Yukihito Tabata, na década de 1950, em Tóquio, como uma galeria de arte profissional que promovia a arte contemporânea asiática no cenário internacional. No início, exibia obras de vanguarda de outros países asiáticos, tendo começado com artistas coreanos na década de 1970, e com artistas chineses na década de 1990. Por acreditar que a China se tornaria o centro do mercado asiático, Yukihito Tabata abriu a Beijing Tokyo Art Projects (BTAP) em 2002. A criação dessas duas empresas de arte; além de uma boa localização geográfica, de aluguéis baratos, da arquitetura urbana e de um ambiente de trabalho tranquilo, da proximidade com o CAFA e da propaganda boca-aboca; atraiu um número cada vez maior de artistas e designers, sobretudo artistas de vanguarda chineses que haviam tido a experiência de trabalhar em ambientes amplos no exterior. Em 2003, havia 18 ateliês e 6 galerias (Tabela 3), envolvendo pintura, fotografia, obras de arte e artes performáticas. 5.3. A luta pela existência de um mercado de arte

Em 2002, com a intenção de aumentar a renda com aluguéis, o Grupo Seven -Star buscou remover os equipamentos industriais originais, (re)desenvolver a indústria de eletrônicos e construir prédios de escritórios para que o lugar se tornasse parte na Zona de Alta Tecnologia de Beijing (LIU et al., 2013). Para chamar a atenção do público sobre as dificuldades que poderiam vir a enfrentar, os artistas de vanguarda organizaram diversas atividades

260

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

para protestar a favor desse distrito de arte em ascensão. As mais relevantes foram o Movimento de Reconstrução 798 e a organização do Festival de Arte, que ocorreu durante o surto de pneumonia atípica, quando nenhum outro evento social estava sendo realizado. O objetivo era reavivar a memória coletiva da área da fábrica, pedir a conservação do complexo que o Grupo Seven-Star queria demolir e redefinir a antiga zona industrial como um distrito de arte. Entretanto, o Grupo Seven-Star argumentou com veemência que os artistas não tinham direito de exigir participação no novo desenvolvimento da zona industrial, já que eram apenas locatários temporários, de acordo com as leis de uso da terra urbana na China. Desse modo, em 2004, o Grupo Seven-Star anunciou que os artistas não podiam mais alugar espaços na zona industrial. Nesse cenário, apenas dois ateliês foram estabelecidos em 2004-2005 (Tabela 3). Tabela 3. Número de estabelecimentos, 2003-2013.

2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013

Ateliês

Galerias

Design, Marketing, Mídias e Livrarias

Cafés e Restaurantes

Butiques

Total

18 38 40 51 59 43 25 22 22 20 19

6 11 19 87 103 153 168 159 175 171 172

10 16 31 39 51 61 70 100 121 123 197

2 5 6 12 14 22 38 48 51 54 59

2 5 7 14 23 24 64 72 89 125 129

38 75 103 203 250 303 365 401 458 493 576

Fonte: dados fornecidos pelo Escritório de Construção e Gerenciamento do Distrito de Arte 798.

Essas campanhas populares foram apoiadas pela mídia e pelos políticos estrangeiros. Em 2003, três revistas americanas (revistas Time, Newsweek e Fortune) intervieram a favor do distrito de artes com alegações que soavam

O DISTRITO DE ARTE 798

261

um tanto exageradas. Desde 2004, líderes políticos estrangeiros visitaram o local, dentre eles o antigo chanceler alemão, Gerhard Schroeder (em 2004); o presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso (em 2007), o ex-presidente da França, Jacques Chirac (em 2007), e o presidente da frança, Nicolas Sarkozy (em 2007). Este fato aumentou o reconhecimento internacional do distrito de arte e conscientizou o governo chinês do seu valor político. Xiangqun Li, deputado da Câmara Municipal de Beijing, professor da Escola de Belas Artes em Tsinghua University e artista de vanguarda, participou ativamente da luta contra a demolição da zona industrial. Além de contribuir na organização do Reconstrução 798 e no Festival de Arte, ele lançou mão dos seus contatos pessoais com autoridades do governo local e central e com professores universitários proeminentes na área de arquitetura e planejamento urbano para enviar um relatório para a assembleia legislativa de Beijing pedindo que o governo interrompesse imediatamente a demolição e tomasse medidas efetivas para a preservação do patrimônio cultural e arquitetônico local. Essas campanhas populares chamaram a atenção do Governo Municipal de Beijing (GMP) que, em 2005, após uma longa avaliação, definiu a Fábrica 798 como parte do patrimônio arquitetônico. Em 2006, a zona industrial foi categorizada como um dos 30 distritos industriais destinados às industrias culturais e criativas oficialmente reconhecidos (TANG e HUANG, 2013). Em 2007, o GMP formulou documentos oficiais apoiando o desenvolvimento de indústrias criativas e culturais por meio da conservação e do uso do patrimônio industrial de Beijing. E, ainda mais importante, na ocasião dos Jogos Olímpicos de 2008, o GMP concluiu que a área dedicada à arte de vanguarda chinesa, localizada em um complexo industrial com mais de 50 anos de história, era um bom exemplo da crescente abertura cultural da China, e transformou a Fábrica 798 em um símbolo do branding da cidade e para a divulgação local (ZIELKE e WAIBEL, 2014). Uma vez assegurada a conservação, empresas ligadas à arte multiplicaram-se rapidamente, passando de 19, em 2005, para 87, em 2006, ao passo que o número de ateliês passou de 40 para 51 (Tabela 3).

262

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

5.4. Como a Fábrica 798 tornou-se uma área refinada voltada para o consumo de luxo

Ainda que a batalha contra a demolição tenha sido “bem-sucedida”, o impacto individual dos artistas nos processos de tomada de decisão foi reduzido. O Grupo Seven-Star criou a “Diretoria de Construção & Gerenciamento”, responsável pelo desenvolvimento e pela comercialização da área. Os termos para a locação de novos espaços foram reduzidos para apenas um ou dois anos, ao mesmo tempo em que galerias de alto nível chegavam. O turismo aumentou, e um número cada vez maior de cafés, restaurantes e butiques foi criado (Figura 5), alterando a personalidade do distrito (REN e SUN, 2012). Figura 5. Grandes bares e restaurantes na Fábrica 798

Desde a aprovação oficial, em 2006, os aluguéis não pararam de aumentar, forçando os artistas a buscar novos espaços em outras localidades (ZIELKE e WAIBEL, 2014). Até 2002, os artistas pagavam menos de um yuan (¥) por m2 por dia para salas pequenas (normalmente menores de 500 m2). Robert Bernell pagava apenas ¥ 0,65 por m2 por dia. Entretanto, com a chegada de um número cada vez maior de artistas e galerias, após a criação da Tokyo Gallery, em 2002, os aluguéis começaram a subir rapidamente. Em 2006, os aluguéis chegaram a cerca de ¥ 2 por m2 por dia. Dois anos depois, apesar da crise financeira, que teve impactos negativos graves no mercado de arte contemporânea na China, os preços médios dos aluguéis chegaram

O DISTRITO DE ARTE 798

263

a ¥ 2-3 por m 2 por dia. Além disso, após diversas sublocações, o aluguel de algumas salas chegou a ¥ 4-5 por m 2 por dia (CHI, 2014). Em 2013, o aluguel médio ultrapassou ¥ 6 por m2 por dia (entrevista com dono de galeria, novembro 2013). Muitos ateliês e galerias de arte foram obrigados a se retirar, sobretudo os menores. Como disse um dono de galeria que se mudou para a área antes de 2005: O aluguel subiu rápido demais nos últimos tempos, muitas lojas e instituições de arte se mudaram para outros parques criativos, e muitos espaços trocaram de dono com frequência. Eu sei que, em alguns lugares, o aluguel hoje chega a ¥ 8 por m 2 por dia. É caro demais para a gente. Se eu não tivesse alugado esta sala ainda em 2004 e se meu contrato não fosse de 10 anos, também seria difícil, para mim, continuar na Fábrica 798. Mas o meu contrato está acabando. Preciso procurar um endereço novo no ano que vem. (Entrevista, novembro de 2013)

Alguns artistas se mudaram e levaram consigo seus ateliês, já que a área mudou com a chegada de novos administradores e por causa do barulho gerado pelo número cada vez maior de visitantes. Com isso, vieram as galerias estrangeiras refinadas. Antes de 2005, havia aproximadamente 20 galerias (Tabela 3), sobretudo de países asiáticos, especialmente Japão, Coreia e Taiwan. Essas galerias estrangeiras ocupavam menos de 800 m 2. A maior delas (Galeria Art Seasons, de Singapura) ocupava 764 m2. Dois anos depois, a situação tinha mudado. Em 2008, o número de galerias chegou a 153, enquanto que o número de ateliês continuou o mesmo (43) (Tabela 3). Diferentemente das primeiras galerias, algumas das novas alugavam áreas muito amplas. O Ullens Center for Contemporary Art (UCCA), uma instituição de arte sem fins lucrativos fundada pelos colecionadores belgas Guy e Myriam Ullens, fundado em 2007, alugou uma área de 5000 m2. O UCCA ficou conhecido globalmente, uma vez que centenas de curadores de museus de arte, colecionadores e artistas de todo o mundo foram convidados para a

264

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

cerimônia de abertura. Após a chegada do UCCA, outras galerias proeminentes chegaram ao local, incluindo, por exemplo, a Gallery Artside (2007, Coreia), a Pace Gallery (2008, Estados Unidos), o White Space Beijing (2008, Itália) e Artlinkart (2008, Espanha). A galeria Artlinkart ocupava 4.000 m 2, e a Pace Gallery, 3.000 m2. Além disso, as grandes galerias se tornaram negócios heterogêneos. Por exemplo, o UCCA reunia um espaço para exposição, um cinema, arquivos audiovisuais, salas de leitura multimídia, salas de trabalho, salas de livros ilustrados, um auditório para palestras acadêmicas, um museu, um café e uma loja de arte. Figura 6. Usos não artísticos no Distrito de Arte: Turistas passam por baixo da ponte com propagandas (em cima, à esquerda), Fashion Week chinesa (em cima, à direita), shows organizados pela Mercedes-Benz (abaixo, à esquerda) e o centro asiático de P&D da Audi (abaixo, à direita).

O DISTRITO DE ARTE 798

265

Devido à retração no mercado de arte internacional durante a crise financeira, algumas galerias, sobretudo coreanas, deixaram o local. Apenas em 2009, pelo menos oito galerias se retiraram, incluindo uma galeria estrangeira internacionalmente conhecida inaugurada por um colecionador alemão em 2004, a White Space Beijing. Muitas galerias tiveram o mesmo destino. Entretanto, o número cada vez maior de visitantes e a popularidade do distrito o tornaram atrativo para empresas multinacionais, incluindo três empresas automobilísticas alemães (Mercedes-Benz, Audi AG e Bavarian Motor Works), que utilizaram o espaço adjacente disponível (751 D-Park) para a promoção de vendas (Figura 6 – ZIELKE e WAIBEL, 2014). A Audi AG criou um centro de pesquisa e desenvolvimento (P&D) voltado para o mercado asiático, sobretudo para consumidores chineses. O centro ocupa mais de 8 mil m2 e emprega aproximadamente 600 pessoas. Na mesma época, a Qihoo 360 Technology, uma empresa chinesa líder em programas antivírus e segurança de internet, ocupou dois prédios inteiros.

6. Considerações finais Este artigo explorou as interconexões entre atores translocais que operam em múltiplas escalas geográficas e a transformação de Beijing de uma cidade industrial para uma metrópole global, por meio da análise do surgimento e da transformação do Distrito de Arte 798. Casos microscópicos podem ser utilizados para entender a complexidade desse processo. A transformação do Distrito de Arte 798 de uma zona industrial para um parque criativo foi causada sobretudo por fatores externos que ocorriam em múltiplas escalas, incluindo forças globais, relações entre o Estado e o mercado, políticas de uso da terra, a operação dos mercados de arte e o sistema de governo chinês. Esta pesquisa demonstra que: (1) zonas industriais desativadas com a mudança das indústrias para outras áreas criaram condições adequadas

266

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

para as indústrias criativas, atraídas inicialmente pelos aluguéis baratos, pelo ambiente tranquilo e pelo estilo arquitetônico peculiar de alguns prédios históricos; (2) artistas de vanguarda desempenharam um papel essencial no início da nova onda de desenvolvimento desse complexo industrial, mas, com o aumento do número de galerias proeminentes e com o surgimento de butiques, eles tiveram que se mudar para espaços de trabalhos mais baratos; (3) investidores, galerias proeminentes e corporações multinacionais influenciaram cada vez mais o destino do desenvolvimento do Distrito de Arte 798. Na China, esse processo de transformação foi mais rápido e, em algumas instâncias, mais complexo do que em outros países. A velocidade da descentralização industrial promovida pelo Estado (LIU et al., 2014; GAO, LIU e DUNFORD, 2014) e as particularidades do sistema de propriedade de terra ajudam a explicar essas características. Mesmo depois de se remanejarem, as SOEs mantiveram os direitos de uso e tinham interesse em maximizar os aluguéis e o custo do terreno, mas o governo chinês quis e foi capaz de incentivar as indústrias criativas, por se dar conta de seu impacto na competitividade da cidade. A evolução subsequente do local, tornando-se uma área refinada voltada para o consumo de luxo é, entretanto, similar ao que ocorre nos países ocidentais. No caso de Beijing, atores estrangeiros desempenharam papéis importantes em praticamente todas as fases de transição no uso da terra (incluindo os dois primeiros empreendimentos artísticos, as grandes galerias estrangeiras e as empresas automobilísticas estrangeiras). O caso de Beijing indica, finalmente, que pesquisadores interessados em estudos sobre espaços intrametropolitanos e suas alterações e sobre a evolução dos distritos industriais deveriam ficar mais atentos à reutilização das zonas industriais desativadas e à interação das forças que operam em múltiplas escalas geográficas. Para aprofundar essa análise das múltiplas influências na mudança da geografia dos espaços urbanos e dos fatores que, juntos, operam em escalas múltiplas, são necessários estudos de casos adicionais.

O DISTRITO DE ARTE 798

267

Referências BELL, D. The Coming of Post-Industrial Society. London: Heineman, 1974. BEIJING INSTITUTE OF URBAN PLANNING COMMITTEE. Beijing City Planning and Design History (1949-2005). Beijing: Beijing Institute of Urban Planning Committee, 2006. BEIJING STATISTICAL BUREAU. Beijing Statistics Yearbook. Beijing: China Statistics Press, 2005-2013. BLECHER, M. Development state, entrepreneurial state: the political economy of socialist reform in Xinju municipality and Guanghan county. In: WHITE, Gordon (Ed.). The Chinese state in the era of economic reform. New York: M. E. Sharpe, p. 180-198, 1991. CHI, H P. An Art District development research: Beijing 798 Art District as a case. Unpulished Master Thesis. College of Humanities, China Central Academy of Fine Arts, 2014. (em chinês) CURRIER, J. Art and power in the new China: An exploration of Beijing’s 798 district and its implications for contemporary urbanism. Town Planning Review, 79 (2-3), p. 237-265. DUNFORD, M. The restructuring of industrial space. International Journal of Urban and Regional Research, 1 (3), p. 510-520, 1977. FENG, J.; ZHOU, Y. X. e WU F. L. New Trends of Suburbanization in Beijing since 1990: From Government-led to Market-oriented. Regional Studies, 42(1), p. 83-99, 2008. GAO, B. Y.; LIU W. D. e DUNFORD, M. State land policy, land markets and geographies of manufacturing: the case of Beijing, China. Land Use Policy, 36, 1-12, 2014. GERSHUNY, J. Post-industrial society: the myth of the service economy. Futures, 9(2), p. 103-114, 1977.

268

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

HSING Y, T. The Great Urban Transformation: Politics and Property in China. New York: Oxford University Press, 2010. HUANG, R. Beijing 798: Reflections on a “Factory” of Art. Chengdu: Sichuan Fine Arts Publishing House, 2008. KEANE, M. Creative industries in China: four perspectives on social transformation. International Journal of Cultural Policy, 15(4), p. 431-443, 2009. _______. The Capital Complex: Beijing’s New Creative Clusters. In: KONG L. L.; O’CONNOR, J. (Eds.). Creative Economies, Creative Cities: Asian-European Perspectives. Nova York: Springer, 2009, p. 77-95. _______. China’s New Creative Clusters: Governance, Human Capital and Investment. London: Routledge, 2011. KRUGMAN, P. Some chaotic thoughts on regional dynamics. 1999. Disponível em: . Acesso em: 29 de maio de 2014. LANDRY, C. The creative city: A toolkit for urban innovators. London: Earthscan, 2000. LI, S. M.; CHENG, H. H.; WANG J. Making a cultural cluster in China: A study of Dafen Oil Painting Village, ShenzhenOriginal Research Article. Habitat International, 41, p. 156-164, 2014. LIN, G. C.; HO, S. P. The state, land system, and land development processes in contemporary China. Annals of the Association of American Geographers, 95(2), p. 411-436, 2005. LIU, X.; HAN, S. S.; O’CONNOR, K. Art villages in metropolitan Beijing: A study of the location dynamics. Habitat International, 40, p. 176-183, 2013. LIU, Y.; VAN OORT, F.; GEERTMAN, S.; LIN, Y. L. Institutional determinants of brownfield formation in Chinese cities and urban villages. Habitat International, 44, p. 72-78, 2014.

O DISTRITO DE ARTE 798

269

LIU Z. G.; DUNFORD M. Rejuvenating old industries in new contexts: The traditional Chinese medicine cluster in Tonghua, China. Zeitschrift fur Wirtschaftsgeographie, 56(3:) p. 185-202, 2012. LO, C. P. Socialist ideology and urban strategies in China. Urban Geography, 8(5), p. 440-458, 1987. MARKUSEN, A. Urban development and the politics of a creative class: evidence from a study of artists. Environment and Planning A, 38(10), 1921, 2006. OI, J. C. Fiscal reform and the economic foundations of local state corporatism in China. World Politics, 45(1), p. 99-126, 1992. PHELPS, N. Suburbs for nations? Some interdisciplinary connections on the suburban economy. Cities, 27 (2), p. 68-76, 2010. _______; OZAWA, T. Contrasts in agglomeration: proto-industrial, industrial and post-industrial forms compared. Progress in Human Geography, 27, p. 583-604, 2003. REN, X.; SUN, M. Artistic urbanization: creative industries and creative control in Beijing. International Journal of Urban and Regional Research, 36(3), p. 504-521, 2012. SCOTT, A. Locational Patterns and Dynamics of Industrial Activity in the Modern Metropolis. Urban Studies, 19(2), p. 111-142, 1982. SHIN, H. B. Urban conservation and revalorization of dilapidated historic quarters: the case of Nanluoguxiang in Beijing. Cities, 27(1), p. S43-S54, 2010. SUN, M. (The Production of Art Districts and Urban Transformation in Beijing. Ph.D Dissertation. Department of Urban Planning and Policy, University of Illinois at Chicago, 2010. TANG, Y.; Huang H. The Creative City Construction under the Model of Government-led Cluster Development. Modern Urban Research, 11, p. 15-20, 2013. (em chinês)

270

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

WANG, J. “Art in capital”: shaping distinctiveness in a culture-led urban regeneration project in Red Town, Shanghai. Cities, 26, p. 318-330, 2009. _______. Evolution of Cultural Clusters in China: Comparative Study of Beijing and Shanghai. Architectoni.ca, 2, p. 148-159, 2012. WEI, Y. D.; YU, D. State policy and the globalization of Beijing: emerging themes. Habitat International ,30(3), p. 377-395, 2006. WEN, W. Scenes, quarters and clusters: New experiments in the formation and governance of creative places in China. Unpublished Ph.D Disseration. Creative Industries Faculty, Queensland University of Technology, 2012. XIONG, P. Y. New Opportunities from Old Foundations: 798 Art Zone a Case of Industrial Heritage Tourism. Unpulihsed Master Thesis. Geography Department, University of Waterloo, 2009. YUSUF, S.; NABESHIMA, K. Creative industries in east Asia. Cities, 22(2), p. 109-122, 2005. ZHENG, J. “Creative Industry Clusters” and the “Entrepreneurial City” of Shanghai. Urban Studies, 48(16), p. 3561-3582, 2011. ZHONG, S. Industrial restructuring and the formation of creative industry clusters: The case of shanghai’s inner city. Unpublished Ph.D. dissertation. The Faculty of Graduate Studies, University of British Columbia, 2010. ZIELKE, P.; WAIBEL, M. Comparative urban governance of developing creative spaces in China. Habitat International, 41, p. 99-107, 2014.

Aspectos jurídicos e políticos das disputas no Mar da China Meridional Alexandre Pereira da Silva

1. Introdução Ainda que as controvérsias em torno do Mar da China Meridional possam retroagir a décadas anteriores – especialmente aos anos 1970, quando alguns Estados costeiros começaram um processo de ocupação das ilhas e de outras características físicas das Ilhas Spratly –, as disputas atuais tiveram seu momento de ignição em maio de 2009, quando o Vietnã e a Malásia submeteram à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC), nos termos do artigo 76.8 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), propostas de plataformas continentais estendidas além das 200 milhas marítimas. As submissões foram seguidas por uma sucessão de notas verbais dos Estados costeiros da região que ajudam a entender o que está no centro da disputa: o mapa produzido pela China, em que consta uma linha de nove traços praticamente encerrando toda a área do Mar da China Meridional. O mapa com os nove traços foi anexado à primeira nota diplomática enviada pela China ao Secretário-Geral das Nações Unidas em decorrência dos pleitos malaio-vietnamitas. A partir desse momento, algumas questões surgiram, como: qual seria a função desses nove traços? Qual seu fundamento jurídico? Quais seriam os objetivos chineses com essa linha: reivindicar todas as ilhas e outras características insulares dentro desse espaço, apenas suas zonas marítimas ou ambas? Outra questão a ser considerada quanto à argumentação chinesa são os alegados “direitos históricos” sobre o Mar da China Meridional. Antes, no entanto, de serem enfrentados esses questionamentos em torno da linha de nove traços, bem como das reivindicações dos demais Estados

272

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

costeiros do Mar da China Meridional, é preciso apresentar, ainda que brevemente, alguns aspectos da CNUDM que são fundamentais para a compreensão do que está em jogo nas disputas no Leste Asiático.

2. O Mar da China Meridional e a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar: o cenário e o marco jurídico das controvérsias O Mar da China Meridional (South China Sea) é um mar semifechado localizado no Sudeste Asiático, com uma área de cerca de 3,5 milhões de km², que conecta os oceanos Pacífico (leste) e Índico (sul). A região abrange os limites marítimos de seis Estados: Brunei Darussalam, China, Filipinas, Indonésia, Malásia e Vietnã, além de Taiwan.1 Desses sete atores regionais, somente a Indonésia não tem reivindicações na área. Os seis Estados são membros da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM). Taiwan, por não ser amplamente reconhecido como Estado, não pode se tornar parte da CNUDM; no entanto, em 1998, adotou legislação interna (SONG; ZOU, 2000, p. 304) reivindicando zonas marítimas tais como as previstas na CNUDM.(BECKMAN, 2013, p. 142). A CNUDM, instrumento internacional que governa as relações sobre espaços marítimos e outros aspectos ligados ao direito do mar, foi concluída em 1982, mas entrou em vigor internacionalmente somente em 1994. A CNUDM possibilita que os Estados costeiros estabeleçam zonas marítimas a partir da sua faixa litorânea, ou seja, reconhece um dos princípios mais antigos do direito do mar, o de que a “terra domina o mar” (land dominates the sea). Em outras palavras, os títulos jurídicos sobre as zonas marítimas – tais como mar territorial, zona econômica exclusiva e plataforma continental – Singapura também pode ser considerado um Estado costeiro, já que uma de suas ilhas (Pedra Branca) está localizada neste mar. Além disso, se o golfo da Tailândia for considerado um braço do Mar da China Meridional, então, o Camboja e a Tailândia podem ser qualificados com Estados litorâneos desse mar. No entanto, como esses Estados não têm reivindicações territoriais e marítimas na região, não serão considerados ao longo do presente texto.

1

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

273

são gerados a partir dos títulos territoriais. Assim, o Estado costeiro pode fixar seu mar territorial em até 12 milhas marítimas a partir de suas linhas de base, pode estabelecer uma zona econômica exclusiva de até 200 milhas marítimas (ou 188 milhas marítimas a partir do limite exterior do seu mar territorial) e uma plataforma continental – que compreende o leito e o subsolo marinho – de até 200 milhas marítimas das linhas de base a partir das quais se mede a largura do mar territorial. Entretanto, a CNUDM não versa sobre aspectos concernentes à soberania de territórios terrestres e ilhas.2 As disputas sobre o Mar da China Meridional estão concentradas em quatro regiões, entre as quais se sobressaem as contendas envolvendo as ilhas Spratly e Paracel; as demais são as ilhas Pratas e Macclesfield Bank. O conjunto de Ilhas Spratly está localizado no leste do Mar da China Meridional e é composto por mais de 140 ilhotas, rochedos, recifes e bancos de areia, espalhados por cerca de 410.000 km².3 Boa parte dessas características físicas está parcialmente ou completamente submersa. Outras, entretanto, estão permanentemente acima do nível do mar. Nas Ilhas Spratly, as treze maiores das 140 características somam menos de 1,7 km²; o restante está completamente coberto de água ou acima do nível do mar apenas na maré baixa. Na sua totalidade, o conjunto das Spratly é reivindicado pela China, Taiwan e Vietnã. No entanto, existem reivindicações sobre determinadas características insulares feitas pelas Filipinas (grupo de ilhas Kalayaan, que é parte das Spratly), Malásia (que ocupa três ilhas no sul das Spratly) e Brunei Darussalam (um rochedo que se encontra no limite das 200 milhas marítimas do seu litoral). A ilha de Itu Aba, a maior das Spratly e a única com fonte de água natural, é ocupada por Taiwan. Outras são ocupadas pela China, Filipinas e Vietnã, que são, de fato, os três Estados costeiros mais ativos nas controvérsias. Vide, em especial, as partes II (mar territorial e zona contígua, artigos 2-33), V (zona econômica exclusiva, artigos 55-75) e VI (plataforma continental, artigos 76-85). 3 Os números das características insulares tanto em torno da região das Paracel como das Spratly variam consideravelmente. No caso das Spratly, muitos autores indicam que o número seria de 230, podendo chegar a mais de 400 características físicas (ilhotas, rochedos, recifes, atóis, bancos de areia, baixios). Nas Paracel, a variação é menor, entre 20 a 35 características. 2

274

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Já as Ilhas Paracel consistem em aproximadamente trinta e cinco ilhotas, baixios, bancos de areia e recifes em uma área de cerca de 15.000 km². A maior de suas ilhas é a Ilha Woody, com uma área de 2,1 km². As Paracel situam-se em uma posição equidistante de 150 milhas marítimas entre a ilha chinesa de Hainan e a costa do Vietnã. As Paracel na sua totalidade são reivindicadas pela China, Taiwan e Vietnã. Em 1974, a China expulsou as tropas do Vietnã do Sul que estavam nas Paracel e, desde então, as ilhas estão ocupadas exclusivamente pela China, que rejeita que haja disputa sobre a sobre a soberania do arquipélago. No entanto, as ilhas vêm se provando uma constante fonte de tensão entre a China e o Vietnã, especialmente quando há apreensão de barcos pesqueiros vietnamitas na região.4 Por fim, as Ilhas Pratas e Macclesfield Bank são duas zonas na parte norte do Mar da China Meridional reivindicadas somente pela China e por Taiwan. As Pratas estão a cerca de 200 milhas marítimas de Hong Kong e são ocupadas por Taiwan, enquanto Macclesfield Bank, localizado ao sul das Pratas, é um grande atol que fica completamente submerso mesmo na maré-baixa.5 Um elemento que contribui para acirrar as disputas no Mar da China Meridional é a presença de centenas de ilhas, ilhotas, rochedos, baixios a descoberto, atóis, bancos de areia e outras características físicas, tanto nas Spratly como nas Paracel. Nesse contexto, é importante destacar a significativa diferença jurídica que existe entre as ilhas e os rochedos, nos termos da CNUDM. De acordo com o artigo 121.1 da CNUDM, ilha é “uma formação natural de terra, rodeada de água, que fica a descoberto na preia-mar”. Existem, portanto, quatro características a serem preenchidas para que uma ilha seja considerada como tal em termos jurídicos: “formação natural”, “área de terra”, “rodeada de água” e “que fica a descoberto na preia-mar” (maré alta ou maré cheia). Beckman, op. cit., p. 144. Ibidem. Scaraborough Shoal é outro ponto reivindicado pela China, Filipinas e Taiwan. Trata-se de um grande atol com uma lagoa cercado por recifes, com uma área de cerca de 150 km². Grande parte dos recifes fica completamente submersa ou acima do nível da água somente na maré baixa, mas esse ponto insular possui uma série de pequenos rochedos que permanecem acima do nível da água na maré alta. 4

5

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

275

O critério da “formação natural” serve para desqualificar qualquer pleito sobre ilhas artificiais, tais como as construídas em baixos a descoberto ou em recifes. O segundo critério (“área de terra”) pode parecer bastante óbvio, mas em algumas circunstâncias muito peculiares esse aspecto insular pode se mostrar problemático. O terceiro requisito (“rodeada de água”) é incontroverso; afinal, se for ligada ao território do Estado, por exemplo, por um braço de terra, será considerada parte integrante do território estatal continental. Por fim, quanto à condição fundamental de “que fica a descoberto na preia-mar”, existe uma relação especial entre essa característica e os níveis das marés para diferenciar as ilhas (acima da maré alta), os baixios a descoberto (acima na maré baixa, mas abaixo na maré alta) e as demais características não insulares (submersas na maré baixa) (SCHOFIELD, 2009, p. 24). Na continuação, o artigo 121.3 da CNUDM ressalva que os rochedos – que também são uma formação natural, de terra, cercada de água e acima na maré alta – que “não se prestam à habitação humana ou à vida econômica não devem ter zona econômica exclusiva nem plataforma continental”. Clive Schofield, geólogo australiano, ilustra bem a dimensão potencial da questão envolvida: uma ilha isolada, sem qualquer vizinho marítimo no raio de 400 milhas marítimas, pode reivindicar 431.014 km² de mar territorial, zona econômica exclusiva e plataforma continental. Caso seja um rochedo, portanto, impossibilitado de possuir ZEE e plataforma continental, poderá reivindicar somente 1.550 km² de mar territorial. As outras características físicas – recifes, bancos de areias, atóis, baixios a descoberto – não geram por si próprias zonas marítimas.6 Dois elementos ainda precisam ser agregados para entender o contexto atual das disputas no Mar da China Meridional. Primeiramente, a importância estratégica das linhas comerciais, que ligam o Oceano Índico ao Nordeste Asiático, incluindo-se os portos da China, Coreia do Sul, Japão e Rússia. Por ano, cerca de US$ 5,3 trilhões de dólares em mercadorias (algo em torno de um quarto do comércio global de mercadorias) cruzam esse mar; além disso, um terço do comércio global de petróleo e mais da metade do comércio de gás 6

Ibidem, p. 25.

276

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

natural liquefeito passam pelo Mar da China Meridional. Nesse sentido, o domínio sobre as Spratly permite o controle direto ou indireto sobre o trânsito marítimo do Estreito de Malacca para o Japão, de Singapura para Hong Kong e de Guangzhou para Manila (ZOU, 2015, p. 627). Em segundo lugar, os recursos naturais da região: o considerável potencial pesqueiro e, em especial, as ricas reservas de petróleo e gás natural. Números da US Energy Information Administration estimam que o Mar da China Meridional possua algo em torno de 11 bilhões de barris de petróleo e 190 trilhões de pés cúbicos de gás natural, entre reservas provadas e prováveis. Além disso, para o US Geological Survey, devem ser adicionados a esses números 12 bilhões de barris de petróleo e 160 trilhões de pés cúbicos de gás natural que poderiam ser ainda descobertos na região (LIN; GERTNER, 2015, p. 5).

3. A origem das disputas atuais: as notas verbais Nos termos do artigo 76 da CNUDM, quando o bordo exterior da margem continental estiver além das 200 milhas marítimas, o Estado costeiro pode estender sua plataforma continental além do limite inicial das 200 milhas marítimas, em princípio, até 350 milhas marítimas. No entanto, essa extensão não se dá por um simples ato unilateral do Estado, mas deve ser realizada mediante uma submissão à Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC) – um órgão técnico criado pela CNUDM –, que irá examinar a existência de fatores geológicos e geomorfológicos que permitam a expansão da plataforma continental além das 200 milhas marítimas. Como foi pontuado anteriormente, a origem mais recente das disputas em torno do Mar da China Meridional deve-se à submissão conjunta feita pela Malásia e pelo Vietnã, em 6 de maio de 2009, por uma plataforma continental estendida na parte sul dessa região e à submissão independente do Vietnã sobre um trecho no norte do Mar da China Meridional, realizada no dia seguinte, ambas encaminhadas à CLPC.

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

277

A partir desse momento, China, Filipinas, Indonésia, Malásia e Vietnã enviaram notas diplomáticas ao Secretário-Geral das Nações Unidas protestando quanto às reivindicações submetidas à CLPC, ou contra as manifestações dos demais Estados costeiros. A manifestação estatal por meio de nota verbal (note verbale) tem dois objetivos. O primeiro, de caráter político, é posicionar o Estado – nem sempre de maneira clara – dentro do cenário da controvérsia, identificando quais são os interesses mais importantes para ele na questão. Outro objetivo é de caráter jurídico, consistindo em evitar que um eventual silêncio possa ser entendido como aquiescência ou concordância com o que foi levantado por outra parte envolvida na disputa. Em outras palavras, ao tomar conhecimento da nota verbal de um país que possa atingir seus interesses, o Estado deve reagir diplomaticamente para que no futuro não seja alegado contra si que houve um reconhecimento tácito sobre determinado ponto em litígio. 3.1. A 1ª nota verbal da China: o protesto e o mapa com a linha dos nove traços

No dia 7 de maio de 2009, a Missão Permanente da China nas Nações Unidas enviou uma nota verbal ao Secretário-Geral da Organização, opondo-se tanto à submissão conjunta da Malásia e do Vietnã como à submissão independente do Vietnã.7 Segundo a nota verbal: A China tem soberania indiscutível sobre as ilhas e as águas adjacentes no Mar da China Meridional, e goza de direitos de soberania e jurisdição sobre as águas relevantes bem como sobre seu leito e subsolo marinho. A posição exposta é sistematicamente defendida pelo governo chinês e é amplamente conhecida pela comunidade internacional. A mencionada submissão feita pela República Socialista do Vietnã fere de maneira grave a soberania, A rigor, no dia 7 de maio de 2009, a China emitiu duas notas verbais, a CML/17/2009 e a CML/18/2009. Ambas têm o mesmo teor, inclusive com a inclusão do mapa nas duas notas verbais. A única diferença entre elas é que a primeira é dirigida à submissão conjunta malaiovietnamita (6 de maio de 2009), e a segunda é endereçada à submissão isolada do Vietnã (7 de maio de 2009). 7

278

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

direitos de soberania e jurisdição chinesa no Mar da China Meridional.8 [Tradução do autor]

No entanto, o aspecto mais interessante dessa nota verbal é o mapa anexado do Mar da China Meridional. Nesse mapa é possível visualizar, além das ilhas da região – Paracel (Xisha Qundao), Spratly (Nansha Qundao), Pratas (Dongsha Qundao) e Macclesfield Bank (Zhongsha Qundao) –, uma linha com nove traços que praticamente engloba todo o Mar da China Meridional, sobre a qual, entretanto, não se faz qualquer menção na respectiva nota verbal. 3.2. A 1ª nota verbal do Vietnã: réplica à China

No dia posterior à nota chinesa, o Vietnã enviou sua nota verbal, refutando enfaticamente o posicionamento chinês sobre o Mar da China Meridional: Os arquipélagos de Hoang Sa (Paracel) e Truong Sa (Spratly) são parte do território vietnamita. O Vietnã tem soberania indiscutível sobre esses arquipélagos. A reivindicação chinesa sobre as ilhas e águas adjacentes no Mar Oriental (Mar da China Meridional) como manifestado no mapa anexado às Notas Verbais CML/17/2009 e CML/18/2009 não tem base jurídica, histórica ou factual; portanto, é nula e vazia.9 [Tradução do autor]

3.3. A 1ª nota verbal da Malásia: réplica à China

Ainda no mês de maio de 2009, a Malásia também respondeu à nota da China. Adotando termos mais jurídicos e sem qualquer menção de soberania sobre qualquer ilha ou outra característica insular, a nota verbal malaia ressaltou que a submissão conjunta com o Vietnã não prejudica a delimitação das plataformas continentais entre Estados com costas opostas ou adjacentes, nos Disponível em: . 9 Disponível em: . 8

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

279

termos previstos na CNUDM e nas Regras de Procedimento da CLPC. Ao encerrar, a nota lembra ainda que informou seu posicionamento à China previamente à sua submissão à CLPC.10 3.4. A 1ª nota verbal das Filipinas: réplica à Malásia e ao Vietnã

A primeira nota verbal das Filipinas11, dirigida ao Secretário-Geral da ONU em agosto de 2009, contestava as duas submissões encaminhadas em maio daquele ano à Comissão de Limites da Plataforma Continental. No entendimento das Filipinas, as duas reivindicações recaíam sobre áreas sob disputa. Dessa forma, invocando o Anexo II da CNUDM, que versa sobre a CLPC, e o Anexo I das Regras de Procedimento da CLPC, em especial os pontos 1 e 5(a), as Filipinas solicitavam que a Comissão de Limites não examinasse os pleitos enquanto as partes envolvidas na questão não discutissem e resolvessem as controvérsias nessas áreas.12

Disponível em: . 11 Assim como fizera a China, as Filipinas optaram por emitir duas notas verbais simultâneas e praticamente idênticas, a nota verbal n. 818, relativa à submissão isolada do Vietnã e a de n. 819 relacionada ao pleito conjunto da Malásia e do Vietnã, nesta com um acréscimo importante, mencionando uma das áreas em disputa: “[...] controversy arising from the territorial claims on some of the islands in the area including North Borneo”. Disponível em: . 12 Regulamento Interno da Comissão de Limites da Plataforma Continental (CLPC/40/Rev.1), Anexo I (Submissões em caso de disputa entre Estados com costas opostas ou adjacentes ou em outros casos de disputas de terra ou marítimas não resolvidas). “1. A Comissão reconhece que a competência sobre as matérias referentes a disputas que podem surgir em relação ao estabelecimento dos limites exteriores da plataforma continental é dos Estados.” “5(a) Em casos em que existe uma disputa de terra ou marítima, a Comissão não deve considerar e qualificar uma submissão apresentada por qualquer dos Estados envolvidos na disputa. Contudo, a Comissão pode considerar uma ou mais submissões nas áreas sob disputa com consentimento prévio dado por todos os Estados que são partes em tal disputa.”. 10

280

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

3.5. A 2ª nota verbal do Vietnã: réplica às Filipinas

Menos de dez dias depois da nota verbal filipina, o Vietnã enviou sua segunda nota verbal. Por meio desta, a missão permanente vietnamita nas Nações Unidas afirma que as submissões do País à CLPC não prejudicam as questões relativas à definição de limites marítimos com os Estados de costas opostas ou adjacentes, bem como com outros Estados em que haja disputas territoriais e marítimas. A nota conclui reafirmando que o Vietnã tem soberania indiscutível sobre as Spratly e as Paracel.13 3.6. A 2ª nota verbal da Malásia: réplica às Filipinas

Dias depois da nota do Vietnã de agosto de 2009, a Malásia respondeu à nota verbal das Filipinas. A parte inicial da nota diplomática malaia reitera os argumentos e dispositivos legais mencionados na nota verbal de maio. Todavia, a parte final da nota verbal trata de rejeitar qualquer reivindicação das Filipinas sobre Bornéu Norte, que consta da nota verbal n. 819 das Filipinas. Segundo a réplica, “a Malásia nunca reconheceu a reivindicação das Filipinas sobre o estado malaio de Sabah, antigamente conhecido como Bornéu Norte”, acrescentando que o pleito sobre essa região “claramente, não tem base no direito internacional”.14 [Tradução do autor] 3.7. A 1ª nota verbal da Indonésia: réplica à China

Em outubro de 2010, a Indonésia também emitiu sua nota diplomática como reação à nota da China de maio de 2009. Ainda que registrando a título preliminar que o País não tem qualquer reivindicação territorial no Mar da China MeNos termos da nota verbal n. 240HC-2009, de 18 de agosto de 2009: “O Vietnã gostaria de aproveitar essa oportunidade para reafirmar sua posição consistente de que o Vietnã tem soberania indisputável sobre os arquipélagos de Hoang Sa (Paracel) e Truong Sa (Spratly)”. Disponível em: . 14 Disponível em: . 13

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

281

ridional, mas que acompanha de perto os debates em torno do mapa da linha dos nove pontos tracejados, a nota consigna que “até o momento, não há nenhuma explicação clara sobre os fundamentos jurídicos, o método de delineação e o status das linhas tracejadas. Parece que as linhas tracejadas podem ser zonas marítimas de várias pequenas características que são disputadas nas águas do Mar da China Meridional”. A nota da Indonésia conclui que “o assim chamado ‘mapa da linha dos nove traços’ [...] claramente não tem base jurídica internacional e significa uma perturbação à CNUDM de 1982”.15 [Tradução do autor] 3.8. A 2ª nota verbal das Filipinas: réplica à China

Em abril de 2011, quase dois anos depois da primeira nota verbal da China, as Filipinas também resolveram protestar contra a China, em especial no que tange aos nove pontos da linha tracejada. A nota verbal das Filipinas foi, no entanto, muito mais incisiva do que as anteriores. O governo de Manila centrou-se em rejeitar três pontos específicos. Primeiramente, afirmou que o grupo de ilhas de Kalayaan (Kalayaan Group of Islands) é em sua totalidade parte integrante do País, o qual exerce soberania e jurisdição sobre as características geológicas de Kalayaan. Como foi mencionado, algumas dessas características insulares – atóis, baixios, bancos de areia – estão inseridas dentro das Spratly. Em segundo lugar, o Estado entende que, com base no princípio jurídico de que “a terra domina o mar”, amplamente reconhecido pelo direito do mar, e no artigo 121 da CNUDM (regime das ilhas), as Filipinas têm direito às águas adjacentes a essas características geológicas. Finalmente, rejeitou de maneira enfática qualquer reivindicação da China apoiada no mapa da linha dos nove traços, por entender que a reivindicação não tem qualquer embasamento no direito internacional, em especial na CNUDM.16 Disponível em:. 16 Disponível em: . 15

282

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

3.9. A 2ª nota verbal da China: réplica às Filipinas

A resposta da China à manifestação das Filipinas veio por meio da nota verbal (CML/8/2011) de 14 de abril de 2011. Além de reafirmar que o País tem soberania indiscutível sobre as ilhas e as águas adjacentes no Mar da China Meridional, e que, portanto, goza de direitos de soberania e jurisdição sobre as águas, bem como sobre o leito e o subsolo marinho, a China contestou os três pontos expostos pelas Filipinas. Inicialmente, afirmou que o grupo de ilhas de Kalayaan compõe as ilhas chinesas de Nansha (Spratly), e que até 1970 as Filipinas nunca fizeram qualquer tipo de reivindicação sobre as ilhas Nansha ou quaisquer de seus componentes. Para os chineses, a partir de 1970, as Filipinas iniciaram um processo de invasão e ocupação de ilhas e recifes nelas contidos, fazendo reivindicações territoriais que sempre foram veementemente contestadas pela China. Além disso, a China sustentou que as Filipinas não podem invocar ocupações ilegais para reivindicar zonas marítimas, com base no princípio jurídico de que “a terra domina o mar”. Por fim, sem mencionar explicitamente a linha dos nove traços, a China asseverou que “desde os anos 1930, o governo chinês vem dando publicidade em diversas oportunidades do âmbito geográfico das ilhas chinesas de Nansha e aos nomes de seus componentes”.17 [Tradução do autor] 3.10. A 3ª nota verbal do Vietnã: réplica às Filipinas e à China

Ambas as notas verbais das Filipinas e da China de abril de 2011 foram rebatidas pela nota verbal do Vietnã n. 77/HC-2011, de maio desse ano, em termos semelhantes às suas anteriores manifestações, ou seja, reafirmando que os arquipélagos de Hoang Sa (Paracel) e Truong Sa (Spratly) são partes integrantes Disponível em: .

17

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

283

do território do País e que tal reivindicação conta com suficientes evidências históricas e fundamentos jurídicos.18 3.11. A nota de protesto de Taiwan

Como as Nações Unidas não reconhecem Taiwan como um Estado independente, este não pode registrar seu protesto no âmbito das atividades da Comissão de Limites da Plataforma Continental, mas o Ministério das Relações Exteriores de Taiwan formulou a seguinte declaração em 12 de maio de 2009: O governo da República da China reitera que as ilhas Diaoyutai, ilhas Nansha (Spratly), ilhas Shisha (Paracel), ilhas Chungsha (Macclesfield Bank) e ilhas Tungsha (Pratas), bem como suas águas ao redor, são territórios e águas inerentes da República da China, baseado em indiscutíveis títulos soberanos justificados por circunstâncias históricas, geográficas e jurídicas. Sob o direito internacional, a República da China goza de todos os direitos e interesses sobre todas as ilhas mencionadas, bem como sobre suas águas ao redor e do leito e subsolo marinho (REPUBLIC OF CHINA [TAIWAN], 2009). [Tradução do autor]

Como apontado por Robert Beckman, a ausência de Taiwan nos encontros e discussões em torno do Mar da China Meridional não parece ser um problema. Em primeiro lugar porque todos os demais Estados costeiros da região adotam a política de “uma só China” (one-China policy) e, em segundo lugar, como visto na manifestação acima, a posição de Taiwan segue a mesma defendida pela China continental. Assim, os outros Estados reivindicantes parecem deixar que os governos de Beijing e Taipei definam qual é o papel a ser exercido por Taiwan nas negociações em torno da soberania e disputas marítimas no Mar da China Meridional.19 Disponível em: . 19 Beckman, op. cit., p. 162-163. 18

284

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

4. O mapa da linha de nove traços e os “direitos históricos” sobre o Mar da China Meridional Como visto acima, a controvérsia que se iniciou com as submissões da Malásia e do Vietnã à CLPC logo se transformou em uma acirrada troca de notas verbais ao longo dos dois anos seguintes. Algumas delas mencionam o mapa que a China juntou à sua primeira nota verbal com a famosa linha dos nove traços (nine-dash line)20, e que acabou por acirrar o debate em torno do Mar da China Meridional. O mapa com uma linha tracejada, no entanto, não foi criado nessa oportunidade, mas retroage, pelo menos, ao término da Segunda Guerra Mundial. Jinming Li e Dexia Li apontam as origens da linha tracejada no “Mapa das ilhas chinesas no Mar da China Meridional”, publicado em 1935, e no “Mapa do domínio chinês no Mar da China Meridional”, publicado em 1936 (LI; LI, 2003, p. 289).21 Já Keyuan Zou e Xinchang Liu acreditam que a primeira aparição da linha no mapa deu-se em dezembro de 1914, em uma mapa do cartógrafo chinês Hu Jinjie, que incluía, entretanto, somente as Paracel e as Pratas, mas que em 1935 o comitê encarregado de examinar os mapas territoriais e aquáticos publicou o nome de 132 ilhotas e recifes nos quatro arquipélagos do Mar da China Meridional (ZOU; LIU, 2015, p. 62). Já Jianming Shen indica que a China descobriu as ilhas no Mar da China Meridional e que diversos livros e outros registros históricos contêm referências milenares ao conhecimento que os chineses tinham da região (SHEN, 202, p. 128-129). O fato inconteste é que, com o fim das hostilidades bélicas e como previsto na Declaração do Cairo (1943) e de Potsdam (1945), a China retomou o controle sobre as Spratly e as Paracel, que estavam sob a posse do Japão.22 Outras expressões em inglês que aparecem de maneira recorrente referindo-se a essa linha são: nine dotted-line, nine dashed-line, tongue-shaped line e U-shaped line. 21 Respectivamente, The Map of Chinese Islands in the South China Sea (Zhongguo nanhai daoyu tu) e The Map of Chinese Domain in the South China Sea (Haijiang nan zan hou zi zhongguo quantu). 22 Na Declaração do Cairo, de 1943, assinada por Roosevelt, Churchill e Chiang Kai-shek ficou 20

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

285

A maioria dos autores, chineses ou não, indica que a primeira vez em que a linha tracejada no mapa do Mar da China Meridional teria sido colocada foi em 1947, quando a República da China – ou seja, ainda antes da formação da República Popular da China em 1949 – fez circular internamente um mapa, não com nove, mas com onze traços. Nesse sentido, a principal motivação da inserção da linha tracejada parece ter sido a de declarar a soberania chinesa sobre todas as ilhas e outras características insulares que se encontravam dentro da linha (GAO; JIA, 2013, p. 102-103). Posteriormente, em 1953, dois desses traços foram suprimidos, permanecendo os atuais nove.23 Nesse mesmo ano, a nova linha começou a aparecer de maneira constante nos atlas impressos na China continental. Em 4 de setembro de 1958 – poucos meses após o término da I Conferência das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, realizada em Genebra –, a China, que não foi convidada a participar, aprovou sua Declaração de Mar Territorial, reivindicando soberania territorial sobre grande parte das ilhas da região do Mar da China Meridional, em especial sobre as ilhas Spratly (Nansha), Paracel (Xisha), Pratas (Dongsha) e Macclesfield Bank (Zhongsha).24 registrado que: “O Japão deve perder todas as ilhas do Pacífico que tomou ou ocupou desde o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, e todos os territórios que o Japão roubou da China, tal como Manchúria, Formosa, e Pescadores, que devem ser devolvidas à República da China. O Japão será também expulso de todos os outros territórios que tomou por violência ou por ganância”. Posteriormente, em 8 de setembro de 1951, foi assinado um tratado de paz entre o Japão e as potências aliadas, conhecido como Tratado de San Francisco. No artigo 2º (f) consta que: “O Japão renuncia a todo direito, título e indenização sobre as Ilhas Spratly e Ilhas Paracel”. Nem a República da China (Taiwan) nem a República Popular da China assinaram esse tratado. O tratado de paz entre a República da China e o Japão foi assinado em 28 de abril de 1952, em Taipei. 23 Os dois traços que foram suprimidos englobavam a região do golfo de Tonkin, nos limites marítimos da China com o Vietnã. Nessa época, os dois países eram politicamente muito próximos, além de ambos possuírem um mar territorial de apenas três milhas marítimas, o que teria contribuído na redução dos traços. No entanto, alguns mapas atuais, produzidos por autoridades governamentais chinesas, apresentam dez pontos tracejados: além dos nove tradicionais, um décimo ponto no Mar da China Oriental (East China Sea), inserindo também a área de Taiwan. 24 Nos termos do ponto 1 da Declaração de 1958: “A extensão do mar territorial da República Popular da China será de doze milhas náuticas. Esta disposição aplica-se a todos os territórios da República Popular da China, incluindo a China continental e as suas ilhas costeiras, assim como Taiwan e suas ilhas circundantes, as Ilhas Penghu, as Ilhas Dongsha, as Ilhas Xisha, as Ilhas Zhongsha, as Ilhas Nansha e todas as outras ilhas pertencentes a China, que são separadas do continente e suas ilhas costeiras em alto mar”. Disponível em: .

286

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Posteriormente, em fevereiro de 1992, antecipando-se à ratificação da CNUDM, a China promulgou a lei sobre Mar Territorial e Zona Contígua, em que ratificou suas reivindicações sobre grande parte das ilhas da região, incluídas as mencionadas em 1958.25 No momento do depósito do instrumento de ratificação da CNUDM, em junho de 1996, junto ao Secretário-Geral da ONU, a China fez a seguinte declaração, que consta no ponto 3: “A República Popular da China reafirma sua soberania sobre todos os arquipélagos e ilhas listados no artigo 2º da lei sobre Mar Territorial e Zona Contígua que foi promulgado em 25 de fevereiro de 1992”.26 Mais recentemente, em junho de 1996, foi promulgada a lei sobre a Zona Econômica Exclusiva e a Plataforma Continental, constando que os dispositivos dessa lei não afetam os direitos históricos da China.27 Para Zighuo Gao e Bing Bing Jia, a linha dos nove traços tem amparo no direito internacional, incluindo-se o direito consuetudinário sobre descoberta, ocupação e títulos históricos, bem como na própria CNUDM. Segundo Gao e Jia, depois de décadas de evolução, a linha dos nove traços tornou-se sinônimo de uma reivindicação de soberania sobre os grupos de ilhas que sempre pertenceram à China, além de ser uma reivindicação adicional de direitos históricos sobre pesca, navegação e outras atividades marítimas nas ilhas e nas águas adjacentes.28 Para os autores, a linha dos nove traços não contradiz o previsto na CNUDM, mas o complementa na medida em que o próprio preâmbulo estipula que “as matérias não reguladas pela presente Convenção continuarão a ser regidas pelas normas e princípios do direito internacional geral”. Assim, no entenLaw on the Territorial Sea and Contiguous Zone. Dispõe em seu artigo 2.2: “A área territorial da RPC inclui sua área continental e suas ilhas costeiras, Taiwan e as diversas ilhas afiliadas, incluindo as ilhas Diaoyu, as Ilhas Penghu, as Ilha Dongsha, as Ilhas Xisha, as Ilhas Nansha (Spratly), e outras ilhas pertencentes à República Popular da China”. 1992. Disponível em: . 26 Disponível em: . 27 Exclusive Economic Zone and Continental Shelf Act. “Article 14 - The provisions of this Act shall not affect the historical rights of the People’s Republic of China”. 1998. Disponível em:. 28 GAO; JIA, op. cit., p. 108-110. 25

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

287

dimento de Gao e Jia, e compartilhado por outros, as disputas em torno do Mar da China Meridional não podem ficar limitadas à simples interpretação e aplicação da CNUDM, mas também devem ser consideradas outras fontes, como o costume internacional, que continua exercendo um papel importante em questões sobre direito do mar.29 No entendimento oficial da China, desde a declaração da linha dos nove pontos tracejados, em nenhum momento a comunidade internacional teria expressado sua contrariedade. Nenhum dos Estados costeiros do Mar da China Meridional teria apresentado protestos diplomáticos – o que na interpretação de alguns juristas chineses configuraria a aquiescência, de pelo menos cinquenta anos, em relação ao mapa com os nove traços. Masahiro Miyoshi contrapõe-se a esse raciocínio jurídico. Ainda que reconheçam que mapas possam ter validade jurídica, o fato é que os tribunais internacionais dão reduzido valor probatório a eles, salvo quando têm intrínseco valor jurídico, por exemplo, quando partes integrantes de um tratado. Sobre as reivindicações em torno da linha tracejada no Mar da China Meridional, Miyoshi entende que a eventual falta de protesto poderia ser interpretada com aquiescência, tolerância ou mero silêncio; no entanto, essa interpretação somente seria possível se os demais Estados realmente tivessem tomado conhecimento das reivindicações, ou seja, se fosse notório que a China tivesse reivindicado a soberania e/ou o exercício soberano sobre a área marítima reivindicada. Nesse sentido, o autor contesta que a reivindicação do mapa dos nove traços baseada em títulos históricos preencha esses requisitos e que, portanto, o silêncio dos Estados costeiros, no caso concreto, não pode ser entendido com uma anuência tácita (MIYOSHI, 2012, p. 4-7). A alegação de “direitos históricos” sobre o Mar da China Meridional é outra questão-chave na controvérsia recente. Em apoio a suas reivindicações, a China vem alegando que possui “direitos históricos” na região – expressão que não consta da CNUDM –, mas que procura se associar aos termos “águas históricas” e “títulos históricos” reconhecidos pela CNUDM e pelo direito internacional. 29

Ibidem.

288

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Segundo Wu Shicun, presidente do Instituto Nacional de Estudos para o Mar da China Meridional, a linha dos nove traços é baseada em três fatores: “Soberania + CNUDM + Direitos Históricos”. Segundo essa teoria, a China tem soberania sobre todas as características insulares que estão localizadas dentro da linha, além de gozar de direitos soberanos e jurisdição, nos termos previstos na CNUDM, sobre zona econômica exclusiva e plataforma continental de certas características que preenchem os requisitos do artigo 121 (regime de ilhas). Além disso, a China também possuiria direitos históricos dentro dessa linha, como pesca, direitos de navegação e exploração de outros recursos do mar.30 A expressão “direitos históricos” apareceu pela primeira vez no artigo 14 da lei chinesa sobre Zona Econômica Exclusiva e Plataforma Continental: “Os dispositivos dessa lei não prejudicam os direitos históricos da República Popular da China”. Para Zou e Liu, ainda que ressalvando que a expressão “direitos históricos” seja um conceito abstrato, a prática internacional reconhece em alguns casos específicos que direitos históricos poderiam ser considerados, por exemplo, na delimitação das zonas econômicas exclusivas, delimitação das plataformas continentais, distribuição de recursos pesqueiros, gerenciamento da proteção do meio ambiente marinho, utilização de recursos minerais, entre outros. Para os autores, “sob a moldura atual do direito internacional, os fatores que originam os direitos históricos devem ser incluídos no processo de resolução da disputa. É importante notar que os direitos históricos não contradizem dispositivos da CNUDM e são confirmados pelo direito internacional”. Por outro lado, entendem os autores, isso não retiraria da China o ônus da prova de demonstrar a existência de direitos históricos e de que tais direitos possibilitam a consolidação de suas reivindicações, de maneira a convencer a comunidade internacional dos seus argumentos.31

30 31

ZOU; LIU, op. cit., p. 63. Ibidem, p. 69-70.

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

289

Contrapondo-se a essa ideia, Florian Dupuy e Pierre-Marie Dupuy sugerem que a vagueza da terminologia empregada pela China estaria sendo utilizada como um elemento de estratégia política. O mapa com a linha dos nove traços seria intrinsicamente ambíguo. As notas verbais enviadas pela China ao Secretário-Geral da ONU também iriam nesse mesmo sentido. Para os autores, mesmo considerando que a continuada menção aos direitos históricos seja direcionada às suas reivindicações soberanas, o sentido e a relevância jurídica atribuída pelos chineses aos “direitos históricos” continuam obscuros. O mesmo seria em relação ao mapa anexado à primeira nota verbal, cuja finalidade de servir como uma prova ou como um elemento gráfico das reivindicações chinesas não fica clara (DUPUY; DUPUY, 2013, p. 131).

4. Solução das controvérsias: meios político e jurídico A Carta das Nações Unidas, no artigo 33.1, dispõe que “as partes em uma controvérsia, que possa vir a constituir uma ameaça à paz e à segurança internacionais, procurarão, antes de tudo, chegar a uma solução por negociação, inquérito, mediação, conciliação, arbitragem, solução judicial, recurso a entidades ou acordos regionais, ou a qualquer outro meio pacífico à sua escolha”. Dessa forma, o direito internacional prevê uma série de meios para que os Estados possam resolver de maneira pacífica suas disputas. No caso concreto do Mar da China Meridional, dois desses caminhos se destacam: a solução por via política, por meio de uma organização regional, e a solução judicial – o recurso aos mecanismos de solução de controvérsia previstos na CNUDM. 4.1. O papel da ASEAN nas disputas no Mar da China Meridional

A ASEAN (Association of Southeast Asian Nations) foi criada em 1967, contando com cinco Estados originários: Singapura, Filipinas, Indonésia, Malásia e Tailândia, sendo que outros cinco se uniram posteriormente: Brunei Darussalam, Camboja, Laos, Mianmar e Vietnã. A sede do secretariado da organi-

290

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

zação regional fica em Jacarta. A China não é membro da organização, mas em 2002 assinou um acordo para a criação de uma Área de Livre Comércio entre a ASEAN e a China, em vigor desde janeiro de 2010. Por pressão de alguns de seus Estados-membros, a organização adotou em 1992 a “Declaração da ASEAN sobre o Mar da China Meridional”, em que enfatiza a necessidade de resolver todas as questões relativas à soberania e jurisdição na área por meios pacíficos e conclama todas as partes interessadas a criarem um clima positivo para a solução de todas as disputas.32 Em 1997 foi assinada uma declaração conjunta entre os chefes de Estado e de governo dos Estados-membros da ASEAN e o presidente da China, em que as “partes interessadas concordaram em resolver suas disputas no Mar da China Meridional através de consultas amigáveis nos termos universalmente reconhecidos, incluindo-se a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar”.33 Em novembro de 2002, os membros da ASEAN e a China assinaram a “Declaração de Conduta das Partes no Mar da China Meridional”, por meio da qual, entre outros pontos, as partes reafirmaram o compromisso com os propósitos e os princípios da Carta da ONU, com a CNUDM e com outros princípios de direito internacional; além disso, ratificaram o respeito ao compromisso com a liberdade de navegação e sobrevoo no Mar da China Meridional.34 Em 2012, para celebrar os dez anos da assinatura da Declaração de Conduta das Partes, a ASEAN organizou um workshop em Phnom Penh. Um dos objetivos do encontro era celebrar um “Código de Conduta sobre o Mar da China Meridional”, proposta que consta na declaração de 1992. Enquanto alguns membros da ASEAN estavam ansiosos por adotar o “Código de Conduta” o mais brevemente possível, a China adotou uma postura mais cautelosa. Mesmo apoiando a Declaração de Conduta das Partes, o País deixou claro que a declaração é somente um mecanismo para a cooperaASEAN Declaration on the South China Sea. 1992. Disponível em: . 33 Disponível em: . 34 Declaration on the Conduct of Parties in the South China Sea. 2002. Disponível em: . 32

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

291

ção funcional e gerenciamento de crises, e não um mecanismo de resolução de disputas no Mar da China Meridional.35 Um dos receios seria que o Código de Conduta poderia proibir algumas atividades que a China vem conduzindo com frequência na região, como exercícios navais de rotina e o patrulhamento pela sua guarda costeira de alguns dos pontos mais disputados. Autoridades chinesas, no entanto, indicam que a razão de ainda não ter sido celebrado um código de conduta entre a China e os Estados-membros da ASEAN é a “interferência exterior”, ou seja, a influência que os Estados Unidos exercem sobre alguns dos membros da organização. A China tem repetidamente denunciado o envolvimento dos Estados Unidos nas questões em torno do Mar da China Meridional, seja nas reuniões da ASEAN ou em outros fóruns internacionais.36 4.2. A solução arbitral: Filipinas vs. China

A Parte XV da CNUDM estabeleceu um complexo sistema de solução de controvérsias referentes à sua interpretação ou aplicação e criou procedimentos facultativos e obrigatórios para a resolução de litígios. Os negociadores da CNUDM entenderam que um mecanismo eficaz para a solução de disputas era fundamental para equilibrar os delicados compromissos inseridos na Convenção para garantir que ela seria interpretada tanto de maneira consistente, como justa.37 A Parte XV divide-se em três seções. A Seção 1 (artigos 279-285) traz os mecanismos de solução de disputas já conhecidos no direito internacional, isto é, os Estados-partes da Convenção devem resolver suas controvérsias por meios pacíficos (artigo 2.3 da Carta das Nações Unidas) e possibilita que eles escolham qual desses meios será utilizado (artigo 33.1 da Carta da ONU). ZOU; LIU, op. cit., p. 639-640. TIEZZI, Shannon. Why China Isn’t Interested in a South China Sea Code of Conduct. Disponível em: . 37 RAO, Patibandla Chandrasekhara. “Law of the Sea, Settlement of Disputes”. Max Planck Encyclopedia of Public International Law. Disponível em: . 35

36

292

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

A CNUDM não estipula a preferência de um meio em detrimento dos demais. A Seção 2 (artigos 286-296) preceitua que, quando a controvérsia não tiver sido solucionada, a disputa pode ser submetida a pedido de qualquer das partes envolvidas aos procedimentos compulsórios conducentes a decisões obrigatórias, que são: Tribunal Internacional do Direito do Mar, Corte Internacional de Justiça, Arbitragem nos termos do Anexo VII e Arbitragem especial nos termos do Anexo VIII, a menos que a disputa recaia em exceções especiais. A Seção 3 (artigos 297-299) dispõe sobre essas exceções especiais – algumas automáticas, outras opcionais. Parte dessas exceções pode ser submetida ao mecanismo obrigatório do procedimento de conciliação nos termos da Seção 2 do Anexo V da Convenção (“conciliação obrigatória”), conduzindo a recomendações não obrigatórias para as partes, enquanto outra parte dessas exceções é terminantemente excluída dos procedimentos compulsórios (adjudicação, arbitragem ou conciliação), ainda que tais disputas continuem submetidas à Seção 1. Considera-se que os Estados aceitaram esses procedimentos compulsórios ao tornarem-se parte da CNUDM (YWW, 2014, p. 664). Utilizando-se das possibilidades elencadas na Parte XV da CNUDM, em 22 de janeiro de 2013, as Filipinas decidiram abrir uma nova frente de discussão sobre o Mar da China Meridional ao apresentarem ao governo de Beijing uma notificação diplomática, sob as regras inscritas no artigo 287 e no Anexo VII da CNUDM, ou seja, a criação do procedimento arbitral previsto na Convenção. As reivindicações das Filipinas podem ser resumidas em dois aspectos centrais: i) que a Corte Arbitral declare com relação às áreas marítimas (mar territorial, zona contígua, zona econômica exclusiva e plataforma continental) tanto os direitos da China como os das Filipinas, nos termos previstos pela CNUDM, no “mar Filipino Ocidental”38; e ii) que a Corte Arbitral declare que as reivindicações marítimas da China baseadas na linha dos nove traços violam e são contrárias às regras previstas na CNUDM. Sob essa segunda Como se lê nas notas verbais, existe também uma disputa terminológica na região: a China utilizando-se da expressão amplamente reconhecida, ou seja, “Mar da China Meridional” (South China Sea), o Vietnã usou a expressão “Mar Oriental” (East Sea), e as Filipinas cunharam o termo “Mar Filipino Ocidental” (West Philippine Sea). 38

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

293

reivindicação, está ainda abrangido o reconhecimento de que a China não dispõe de “direitos históricos” sobre as águas, o leito e o subsolo marinho que estão inseridos na linha dos nove traços que estejam além dos limites dispostos na CNUDM. Decorrido pouco mais de um mês, em 19 de fevereiro de 2013, a China apresentou uma nota diplomática em que descreveu a “posição da China sobre as questões em torno do Mar da China Meridional”, além de rejeitar e devolver a notificação das Filipinas. Em 1º de agosto de 2013, a China enviou também uma nota verbal à Corte Permanente de Arbitragem (CPA), reiterando sua posição de que “não aceita a arbitragem iniciada pelas Filipinas”. Além disso, em dezembro de 2014, a China publicou o “Documento da República Popular da China com relação ao tema da jurisdição na arbitragem no Mar da China Meridional iniciada pela República das Filipinas”39, ratificando sua posição de que a Corte Arbitral não tem jurisdição para considerar as questões suscitadas pelas Filipinas. Registrou, ainda, de maneira clara, que o documento não pode ser considerado uma aceitação ou uma participação da China na mencionada arbitragem. A posição da China pode ser sintetizada em três pontos: i.

a essência do objeto da arbitragem é a soberania territorial de várias características insulares no Mar da China Meridional, questão que está além do escopo da CNUDM, já que o sistema de controvérsia previsto é somente sobre “interpretação ou aplicação da Convenção”;

ii. China e Filipinas acordaram, através de instrumentos bilaterais e da Declaração de Conduta das Partes no Mar da China Meridional, em resolver suas disputas através de negociações e que ao iniciar de maneira unilateral a arbitragem as Filipinas violam compromissos de direito internacional; iii. mesmo que fosse admitido que o objeto da arbitragem recaísse sobre a interpretação ou aplicação da CNUDM, este consistiria, em última anáPosition Paper of the Government of the People’s Republic of China on the Matter of Jurisdiction in the South China Sea Arbitration Initiated by the Republic of the Philippines. Disponível em: . 39

294

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

lise, na delimitação marítima entre os dois países e, consequentemente, recairia sobre a declaração feita pela China em 200640, depositada junto à ONU, nos termos da CNUDM, que exclui questões de delimitação marítima da arbitragem obrigatória e outros procedimentos obrigatórios de resolução de disputas. A situação concreta é que, em 29 de outubro de 2015, a Corte Arbitral confirmou que tem jurisdição sobre grande parte das questões levantadas pelas Filipinas e irá elaborar um laudo arbitral definitivo e irrecorrível. Para a Corte Arbitral, o não comparecimento da China aos procedimentos de arbitragem não a exclui como parte na ação, com os consequentes direitos e obrigações, incluindo-se a obrigação de cumprir qualquer decisão sua.41 Lembra, ainda, que, nos termos do artigo 296.1 da CNUDM: “Qualquer decisão proferida por uma corte ou tribunal com jurisdição nos termos da presente seção (Parte XV, Seção 2) será definitiva e deverá ser cumprida por todas as partes na controvérsia”. A Corte Arbitral embasa-se, ainda, no artigo 11 do Anexo VII: “O laudo deve ser definitivo e inapelável [...] Deve ser acatado pelas partes na controvérsia”. Dessa forma, a Corte Arbitral registrou que “[...] apesar de sua não participação nos procedimentos, a China é parte na arbitragem e está vinculada sob o direito internacional por qualquer laudo apresentado por essa corte”.42 A controvérsia jurídica de se a corte arbitral, criada nos termos dos relevantes artigos da CNUDM, tem ou não jurisdição sobre a questão, é das mais polêmicas, mas foge ao escopo desse artigo. O laudo arbitral deve ser conhecido no segundo semestre de 2016. Em 25 de agosto de 2006, a China depositou junto ao Secretário-Geral da ONU a seguinte declaração, em conformidade com o artigo 298 da CNUDM: “O Governo da República Popular da China rejeita todos os procedimentos previstos na Seção 2 da parte XV da Convenção referentes a todas as categorias de controvérsias mencionadas no parágrafo 1 (a) (b) e (c) de o artigo 298 da Convenção”. Disponível em: . 41 PCA Case n. 2013-19. Arbitral Tribunal Constituted under Annex VII to the 1982 United Nations Convention on the Law of the Sea between the Republic of Philippines and the People’s Republic of China. Award on Jurisdiction and Admissibility. 29 October 2015. 42 Idem. 40

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

295

5. Considerações finais O Mar da China Meridional está situado em uma região estratégica e encontra-se no centro de disputas entre alguns de seus Estados costeiros, com destaque para a China, as Filipinas e o Vietnã. As controvérsias não são propriamente uma novidade nessa parte do Leste Asiático, mas a importância das rotas comerciais que cruzam esse mar, além do considerável potencial para exploração de recursos minerais, acentuam os interesses dos Estados diretamente envolvidos e também de importantes atores não regionais, como os Estados Unidos. As atuais disputas originadas a partir dos pleitos da Malásia e do Vietnã a plataformas continentais estendidas em maio de 2009 provocaram uma sucessão de notas verbais entre os Estados costeiros, inclusive daqueles que não têm reivindicações territoriais na área. A mais importante dessas notas diplomáticas certamente foi a primeira nota enviada pela China em que consta o mapa com a linha dos nove traços, que provocou a reação de quase todos os outros atores envolvidos. A ausência de uma completa explicação sobre quais são as reivindicações chinesas embasadas no mapa dos nove traços tornou o debate jurídico-político ainda mais acentuado. Além disso, a China vem frequentemente repetindo que possui direitos históricos sobre a região do Mar da China Meridional. A alegação de direitos históricos também não ajuda a esclarecer quais são os pontos-chave das reivindicações chinesas, mas aponta, de maneira mais clara, que para a China as disputas em torno do Mar da China Meridional não passam exclusivamente pela interpretação e aplicação da CNUDM, mas também por outras fontes, como o costume internacional e os títulos históricos. A aparente contradição entre o desenho sugerido pela linha dos nove traços e os dispositivos da CNUDM levou as Filipinas a iniciarem um processo de solução de disputas na esfera da Corte Arbitral prevista na CNUDM, abrindo, dessa maneira, uma nova frente de debate. Em termos políticos, a China entende que a nova via iniciada pelas Filipinas ocorreu em um momen-

296

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

to em que o diálogo na ASEAN ainda estava em aberto e que só não avançou por causa de interferências externas à região. Mecanismos de solução pacífica das controvérsias internacionais existem, como os apontados acima; entretanto, com a negativa por parte da China de se submeter à jurisdição da Corte Arbitral a partir de suas reiteradas declarações no sentido de que esta não tem jurisdição sobre a questão, as tensões foram potencializadas. A isso acrescenta-se o fato de que a argumentação foi rejeitada pela Corte Arbitral, que decidiu prosseguir na análise do caso; o receio atual é de que o laudo arbitral, definitivo e irrecorrível, poderá agravar ainda mais as divergências na região.

Referências BECKMAN, Robert. The UN Convention on the Law of the Sea and the Maritime Disputes in the South China Sea. American Journal of International Law, 107(1), p. 142-163, 2013. DUPUY, Florian; DUPUY, Pierre-Marie. A Legal Analysis of China`s Historic Rights Claim in the South China Sea. American Journal of International Law, 107(1), p. 124-141, 2013. GAO, Zhiguo; JIA, Bing Bing. The Nine-Dash Line in the South China Sea: History, Status, and Implications. American Journal of International Law, 107(1), p. 98-124, 2013. LI, Jinming; LI, Dexia. The Dotted Line on the Chinese Map of the South China Sea: A Note. Ocean Development & International Law, 34(3-4), p. 287295, 2003. LIN, Kun-Chin; GERTNER, Andrés Villar. Maritime Security in the Asia Pacifc: China and the Emerging Order in the East and South China Seas. London: The Royal Institute of International Affairs/Chatham House, 2015.

ASPECTOS JURÍDICOS E POLÍTICOS DAS DISPUTAS NO MAR DA CHINA MERIDIONAL

297

MIYOSHI, Masahiro. China’s “U-Shaped Line” Claim in the South China Sea: Any Validity Under International Law?. Ocean Development & International Law, 43(1), p. 1-17, 2012. RAO, Patibandla Chandrasekhara. Law of the Sea, Settlement of Disputes. Max Planck Encyclopedia of Public International Law. Disponível em: . REPUBLIC OF CHINA [TAIWAN]. Ministry of Foreign Affairs, Declaration of the Republic of China on the Outer Limits of Its Continental Shelf, n.3, 12 de maio de 2009. Disponível em: . SCHOFIELD, Clive. The Trouble with Islands: The Definition and Role of Islands and Rocks in Maritime Boundary Delimitation. In: HONG, Seoung-Yong; VAN DYKE, Jon. Maritime Boundary Disputes, Settlement Process, and the Law of the Sea. Leiden: Martinus Nijhoff, p. 19-37, 2009. SHEN, Jianming. China’s Sovereignty over the South China Sea Islands: A Historical Perspective. Chinese Journal of International Law, 1, p. 94-157, 2002. SONG, Yann-Huei; ZOU, Keyuan. Maritime Legislation on Mainland China and Taiwan: Developments, Comparison, Implications, and Potential Challenges for the United States. Ocean Development & International Law, 31, p. 303-345, 2000. TIEZZI, Shannon. Why China Isn’t Interested in a South China Sea Code of Conduct. Disponível em: . YEE, Sienho. The South China Sea Arbitration (The Philippines v. China): Potential Jurisdictional Obstacles or Objections. Chinese Journal of International Law, 13, p. 663-739, 2014.

298

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

ZOU, Keyuan. The South China Sea. In: ROTHWELL, Donald; ELFERINK, Alex Oude; SCOTT, Karen; STEPHENS, Tim. The Oxford Handbook of the Law of the Sea. Oxford: Oxford University Press, p. 626-646, 2015. _______; LIU, Xinchang. The Legal Status of the U-shaped Line in the South China Sea and Its Legal Implications for Sovereignty, Sovereign Rights and Maritime Jurisdiction. Chinese Journal of International Law, 14, p. 57-77, 2015.

Investidores institucionais, microfinanciamento e objetivos de desenvolvimento sustentável Alicia Girón1

Os Investidores Institucionais, as Instituições Microfinanceiras (MFIs) e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS)2 devem estar comprometidos com o fomento do crescimento e do desenvolvimento econômicos, com uma visão feminina e de sustentabilidade, nos países que compõem a região (APEC)3. Um dos desafios a serem alcançados é a igualdade de gênero com uma maior participação das mulheres no mercado de trabalho. Isso será alcançado se cada vez mais mulheres estiverem inseridas, com um trabalho digno e bem-remunerado, com microcréditos sem taxas de juros predatórias para seus negócios, que as permita alcançar o empoderamento econômico. O principal objetivo deste trabalho é demonstrar as altas taxas de juros dos microcréditos em países da APEC e a relação destas com os fluxos de capital dos investidores institucionais. Com isso, conclui-se que é necessária uma regulação financeira significativa por parte dos bancos centrais dos países que constituem a APEC. Para que seja possível cumprir a Agenda de Desenvolvimento Sustentável e alcançar os desafios estabelecidos nos ODS são necessárias políticas públicas adequadas, expressas em um maior financiamento viabilizado pelo aumento da reserva orçamentária.

A autora agradece à Andrea Reyes, bolsista do Consejo Nacional de Ciencia y Tecnología; a Carlos Gachuz, por reunir o material para este trabalho, e a Libertad Figueroa, pela tradução do inglês para o espanhol. 2 ODS é a sigla de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Sustainable Development Goals ou SDG, em inglês), da Agenda para o Desenvolvimento das Nações Unidas referente aos anos de 2015 a 2030. 3 Asia-Pacific Economic Cooperation (APEC) significa, em português, Cooperação Econômica Ásia-Pacífico. Entretanto, na versão em português, utilizaremos a sigla em inglês.

1

302

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

1. Introdução Um dos principais objetivos deste trabalho é sustentar que as altas taxas de juros cobradas pelas microfinanceiras não ajudam a promover o empoderamento econômico das mulheres, o objetivo cinco dos ODS, cuja relação com o resto dos objetivos é fundamental para o cumprimento da Agenda 2015-2030. Ao nos aprofundarmos na questão do microfinanciamento e das taxas de juros decorrentes dos microcréditos, abordaremos também o tema da maior canalização dos créditos a mulheres. Para tanto, são necessárias políticas públicas que promovam uma regulação mais eficiente das microfinanceiras. O Global Gender Gap Report, publicado pelo Foro Mundial em Davos, demonstra a importância das políticas públicas na diminuição do Gender Gap Index4 (GGI). Além disso, o relatório da Mackenzie5 enfatiza a necessidade de reduzir as atividades não remuneradas realizadas especificamente por mulheres, com o propósito de levá-las para a economia formal, aumentando o acesso à seguridade social pela força de trabalho feminina. O Wage Gender Gap (WGG) e o GGI são duas ferramentas que demonstram a geração de crescimento e de desenvolvimento econômico levando em conta as desigualdades. Portanto, a regulação das taxas de juros nos círculos financeiros internacionais, microcréditos mais baratos e a conversão do trabalho não remunerado em remunerado são o caminho para que os ODS sejam alcançados. O Global Gender Gap Index examina as desigualdades entre homens e mulheres em quatro aspectos fundamentais (subíndices): participação e oportunidade econômica, educação, saúde e sobrevivência, e empoderamento econômico. Esse índice encontra-se no Gender Gap Report do Foro Mundial Econômico de Davos. 5 Mackenzie (2016): “Consideramos um ‘cenário potencial’ no qual as mulheres participem na economia de forma idêntica aos homens, e concluímos que isso poderia somar US$ 28 bilhões, ou 26%, ao PIB mundial em 2025, em comparação com um cenário de negócios habitual. O impacto é mais ou menos equivalente ao tamanho atual da economia dos Estados Unidos e da China juntos. Analisamos também um cenário alternativo que chamamos de ‘melhor na região’, no qual todos os países ajustam-se à taxa de melhora do país que tenha o melhor comportamento em sua região. Isso acrescentaria até US$ 12 bilhões ao PIB anual de 2025, que é equivalente ao PIB da Alemanha, do Japão e do Reino Unido juntos, ou duas vezes a probabilidade de crescimento do PIB, considerando a contribuição das trabalhadoras entre 2014 e 2015, em um cenário habitual de negócios”. 4

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

303

Serão primeiro demonstradas as altas taxas de juros dos microcréditos por meio da análise das instituições microfinanceiras nos países da APEC; em seguida, serão ressaltados os processos de desregulação e liberalização financeira durante a década de 1990 e o ímpeto para novas reformas, de acordo com os últimos relatórios do Fundo Monetário Internacional (FMI). Este trabalho sustenta a hipótese de que o crédito é a principal ferramenta para a promoção do desenvolvimento sustentável e que, por isso, devemos levar em conta o papel desempenhado pelos bancos centrais antes e depois da Grande Crise de 2008.

2. Desregulação financeira e fortalecimento das microfinanceiras Após a desregulação e a liberalização dos circuitos financeiros e das reformas econômicas na década de 1990, as MFIs estreitaram sua relação com os mercados financeiros. Isso é afirmado por dois motivos. Em primeiro lugar, pela indefinição dos bancos de desenvolvimento em uma grande maioria de países frente à desregulação e à liberalização dos sistemas financeiros nacionais. Em segundo lugar, pelo fortalecimento dos Investidores Institucionais para canalizar fluxos de capitais a instituições que garantam maiores taxas de rentabilidade. Esses dois elementos geram uma relação de causalidade entre os Investidores Institucionais e as MFIs. Para nos aprofundarmos no tema da relação entre as MFIs e os mercados financeiros, é importante observarmos a canalização dos fundos ou movimentações financeiras por parte dos Investidores Institucionais, principalmente fundos de pensão ou fundos de grandes bancos para diferentes microfinanceiras. Parte dos fluxos de capital está voltada para a obtenção de uma maior rentabilidade desses fundos, desde a década de 1990. A partir da Grande Crise, em 2008, muitas MFIs entraram em crise devido ao aumento dos créditos inadimplentes e saíram do mercado. Outras, porém, foram beneficiadas pela queda das taxas de juros que, de forma geral, tenderam a cair a

304

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

partir de Lehman Brothers, em 2008. Muitas delas são mais rentáveis do que o banco comercial tradicional, devido aos altos juros acumulados, principalmente de setores de baixa-renda. Na América Latina, os bancos de desenvolvimento perderam a força ou até mesmo desapareceram, no contexto do Consenso de Washington, devido a decisões de mercado, mas sobretudo por causa da crise da dívida externa na década de 1980 e da crise bancária durante a segunda metade da década de 1990. As MFIs se disseminaram no mundo inteiro, mas especialmente em duas regiões específicas: na Ásia Meridional e na América Latina. As MFIs, com seus pequenos microcréditos, substituíram os bancos de desenvolvimento na promoção do empoderamento econômico dos pobres. Elas formaram um governo paralelo (LAMIA, 2011) frente ao desaparecimento dos bancos de desenvolvimento e dos bancos públicos que possuíam cada vez menos crédito devido ao aumento da inadimplência e estavam à beira da falência. A desregulação e a liberalização econômica, financeira e comercial aprofundaram políticas de câmbio que, em muitos países, fomentaram a importação de produtos semelhantes aos produzidos por empresários nacionais, com a intenção de tornar mais competitivos os diferentes setores. Ao abrir as economias para a concorrência, empurraram muitos pequenos, médios e grandes empresários à falência. A tal cenário, somaram-se as crises econômicas e financeiras que inviabilizaram diversos projetos produtivos. Diante do desemprego resultante das recorrentes crises da década de 1990, os microcréditos foram o modo de fomentar o desenvolvimento de pequenas e médias empresas. Mesmo após a Grande Crise, o lucro das microfinanceiras continuou a crescer, ainda que muitas tenham falido durante a depressão e a recessão. Quem substituiu o financiamento dos projetos de infraestrutura, ante o enfraquecimento dos bancos de desenvolvimento? As Parcerias Público-Privadas (PPPs) vieram a inserir-se como a nova fórmula para muitos projetos de infraestrutura. Porém, para os pequenos empresários, o microcrédito foi substituído pelo banco de desenvolvimento e pelo banco privado. Ao mesmo tempo, o emprego está envolvido na cadeia global de valor, uma vez que as famílias têm uma relação estreita com o ambiente macroeco-

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

305

nômico por meio dos circuitos financeiros. Mas há também a fragilidade e o enfraquecimento da economia depois da Grande Crise e da Grande Recessão. “Argumenta-se, frequentemente, que a interconexão do sistema financeiro global, que se intensificou significativamente antes da crise financeira global, foi um fator decisivo para sua gravidade.” Como observou Dudley, presidente do Federal Reserve (Fed, ou seja, o Sistema de Reserva Federal americano) de Nova Iorque, ao mencionar que o fracasso das instituições financeiras causa externalidades negativas no sistema financeiro, e que tais externalidades tornam-se “desproporcionalmente altas no caso de empresas grandes, complexas e interconectadas” (DUDLEY, 2012). Um ano depois, Ben Bernanke, presidente do Conselho de Governadores do Fed, argumentou que a interconexão foi uma dentre as muitas vulnerabilidades “com o potencial de amplificar o choque ao sistema financeiro” (BERNANKE, 2013). Ou seja, não se observou nem o processo de internacionalização do capital financeiro nem a globalização financeira após o processo de desregulação e liberalização financeira que se sucedeu ao encerramento de Bretton Woods. Ao inserir a análise no contexto dos circuitos financeiros em espaços globais, estabelece-se a relação entre os fluxos de capital dos investidores institucionais para instituições mais rentáveis, como as microfinanceiras. Essa hipótese explica como as mudanças e transições de sistemas financeiros regulados para sistemas financeiros desregulados permeiam cada vez mais o comportamento das microfinanceiras.

3. Investidores institucionais e o comportamento das microfinanceiras A estreita relação existente entre os mercados financeiros e as famílias, por meio do crédito, expressa-se através da relação entre os fluxos de capital dos Investidores Institucionais e as MFIs. Neste capítulo, busca-se demonstrar as tendências mundiais das MFIs nas diferentes regiões. A quantidade de microfinanceiras, a margem de lucros, o ROA (Retorno sobre Ativos), o ROE

306

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

(Retorno sobre o Patrimônio Líquido), serão melhor especificados a seguir, destacando o percentual por gênero. Em primeiro lugar, para analisar as MFIs na região da APEC é importante ter um panorama geral, que pode ser visto na Tabela 1. As MFIs, por região, apresentam o panorama descrito a seguir e encontram-se distribuídas da seguinte forma: América Latina (208), Ásia Meridional (187), África (122), Ásia Oriental e Pacífico (70), Europa Oriental e Ásia Central (64) e Oriente Médio e África Setentrional (22). A partir dessas regiões, podemos observar que o maior volume de ativos encontra-se na região da América Latina (1), da Ásia Meridional (2), da Europa Oriental e da Ásia Centra (3), da África (4), da Ásia Oriental e do Pacífico (5) e do Oriente Médio e da África Setentrional (6). Ao observar a porcentagem dos créditos por gênero, obtemos os seguintes dados: Ásia Oriental e Pacífico (64,16%), América Latina e Caribe (64,09%), Ásia Meridional (60,17%), Oriente Médio e África Setentrional (59,81%), África (47,16%), Europa Oriental e Ásia Central (4,04%). É importante notar a margem de lucro das microfinanceiras que, por ser alta, dificulta o desenvolvimento econômico das regiões: Oriente Médio e África Setentrional (21,86%), Ásia Meridional (15,54%), Ásia Oriental e Pacífico (7,55%), América Latina e Caribe (5,64%), África (2,08%), e Europa Oriental e Ásia Central (-5,84%). Tabela 1. Instituições microfinanceiras 2015 Número de Instituições Microfinanceiras África

Mulheres Margem de tomadoras de lucro % financiamento % 2,08% 47,16%

Patrimônio (US$)

ROE (%)

ROA (%)

122

$ 9.588.460.472

-1,16%

0,31%

Ásia Oriental e Pacífico

70

$ 8.921.815.344

8,09%

1,89%

7,55%

64,16%

Europa Oriental e Ásia Central

64

$ 11.397.122.753

-8,20%

0,49%

-5,84%

45,04%

América Latina e Caribe

208

$ 49.310.909.445

1,79%

0,79%

5,64%

64,09%

Oriente Médio e África Setentrional

22

$ 1.884.205.102

11,10%

6,06%

21,86%

59,81%

Ásia Meridional

187

$1 3.894.725.193

22,51%

4,56%

15,54%

60,17%

Total

673

$ 94.997.238.309

5,53%

1,83%

6,40%

56,68%

Fonte: Dados de Mixmarket:

307

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

A seguir, serão analisadas as principais microfinanceiras de 11 países membros da APEC: Chile, China, Indonésia, Malásia, México, Nova Guiné, Peru, Filipinas, Rússia, Tailândia e Vietnã. Dentre eles, destacam-se quatro países. Peru é aquele com o maior número de microfinanceiras e com a maior quantidade de ativos que, juntos, representam aproximadamente 20 bilhões de dólares. O México vem a seguir, com um total de ativos de cerca de 6,5 bilhões de dólares e, finalmente, o Chile e a China, que possuem um nível similar de ativos. O Gráfico 1 demonstra que, ao somar o total de ativos desses países, o Peru concentra 60% deste montante, seguido pelo México, com 20%. Em terceiro e quarto lugar, encontram-se o Chile e a China, com 5,77% e 5,53% do total de ativos, respectivamente. Ou seja, esses quatro países concentram mais do que 90% do total de ativos desse grupo de 11 países. Gráfico 1. APEC: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%) Indonésia 1% Rússia 1% Malásia 1%

Nova Guiné 0% Tailândia 0%

Vietnã 0%

Filipinas 3% China 6% Chile 6%

México 20% Peru 62%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket.

308

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Os dados disponíveis nos permitem observar que diversas microfinanceiras possuem uma carteira predominantemente feminina. Podemos distinguir dois grupos, o primeiro formado por Chile, Indonésia, Malásia, México, Peru, Filipinas e Tailândia, que concede mais do que 60% do total de seus créditos a mulheres; e um segundo grupo, formado pela Rússia e pela China, onde menos de 40% do total de créditos são destinados a mulheres. Gráfico 2. APEC: Microfinanceiras e porcentagem de mulheres tomadoras de fianaciamento 2015 1,2 100,0%

1

100,0%

100,0% 87,0%

83,7% 0,8

67,6%

67,2%

0,6 40,6%

0,4 25,7% 0,2 0

Chile

China

Indonésia Indonesia Malásia Malasia

México México

Peru Perú

Filipinas

Rússia Rusia

Tailândia Tailandia

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket.

Chile

No Chile, a maior microfinanceira é o Banco Estado, que concentra 96,42% do total de ativos, somando US$ 1.853.233.915,00. Essa microfinanceira realiza também a emissão de títulos de renda fixa na Bolsa de Comércio de Santiago. A participação das mulheres no microfinanciamento no Chile é relativamente alta em comparação com os outros países da APEC. A média dos microcréditos destinados a mulheres gira em torno de 68%, sendo o Fondo Esperanza a microfinanceira que concede a maior porcentagem de seus créditos a mulheres (84,5%). Há uma série de instituições internacionais que apoiam o desen-

309

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

volvimento do setor microempresarial. Tais instituições incluem a Fundação Ford, o BID, o Conselho Mundial das Cooperativas de Crédito, a Confederação Alemã das Cooperativas de Crédito, entre outros. Gráfico 3. Chile: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%) 3%

1%

0%

BancoEstado Fondo Esperanza Emprende Microfinanzas FINAM

96%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

Gráfico 4. Chile: Principais microfinanceiras, porcentagem de mulheres tomadoras de financiamento 2015 90%

84,46%

83,58%

80% 70%

62,62%

60% 50% 40%

39,62%

30% 20% 10% 0% BancoEstado

Fondo Esperanza

Emprende Microfinanzas

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

FINAM

310

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

China

A China ocupa o quarto lugar em valor total de ativos dentro da APEC. O mercado de microcrédito na China está dominado pela Fullerton Fund Management.6 Essa empresa concentra 67,03% do total de ativos; seguida pela China Foundation for Poverty Alleviation (CFPA), uma organização que abarca 23,61% do total de ativos e que é apoiada pelas Nações Unidas e por outras organizações tais como o Mercy Corps. Juntas, essas duas empresas (quatro microfinanceiras) concentram pouco mais de 90% do total de ativos. Fullerton Fund Management é uma empresa da Temasek Holdings, uma companhia com sede em Singapura e é regulada pela Autoridade Monetária de Singapura. Na China, a participação das mulheres no microfinanciamento é relativamente baixa em comparação à de outros países da APEC: o crédito concedido a mulheres gira em torno de 25% do total. Gráfico 5. China: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%) MicroCred - Sichuan 3%

Xinjiang MCC 1%

MicroCred - Nanchong 5%

Fullerton SC 25% Fullerton HB 19%

Fullerton CQ 23%

CFPA 24%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

6

A Fullerton Fund Management inclui Fullerton SC, Fullerton CQ e Fullerton HB.

311

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

Indonésia

Na Indonésia, praticamente 85% do total de ativos pertencem ao MBK Ventura, uma instituição regulada pela Autoridade de Serviços Financeiros da Indonésia (FSA) e licenciada como uma instituição financeira não bancária. Vale ressaltar que o MBK Ventura concede 100% dos microcréditos a mulheres. O MBK Ventura é financiado pelos seguintes bancos: Bank Syariah Mandiri, Indonésia (BSM); Bank Santander and Chartered, Indonésia (SCB); Bank Muamalat Indonésia, Indonésia (BMI); Bank BNP-Paribas, Indonésia (BNPP); Bank Negara Indonésia, Indonésia (BNI) e Bank Jabar Banten Syariah, Indonésia (BJB Syariah). Gráfico 6. Indonésia: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%) 2% 2% 11%

MBK Ventura Bina Artha PT BPR Dana Mandiri Bogor PT Dana Mandiri Sejahtera

85%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

312

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Malásia

Na Malásia, a Amanah Ikhtiar Malaysia (AIM) é a maior e mais antiga instituição microfinanceira, fundada em 1987, e se desenvolveu muito rapidamente a partir da Crise Asiática, em 1998. A AIM conta com ativos no valor de US$ 461.031.355,00 e concede 100% de seus empréstimos a mulheres. México

O México ocupa o segundo lugar em total de ativos da APEC, pouco mais de US$ 6,5 bilhões. No México, a principal instituição microfinanceira em termos de valor de ativos é o Compartamos Banco, com 48,65% do total de ativos. O Compartamos Banco é uma instituição da Gentera, uma empresa líder em inclusão financeira no México. De acordo com jornais como El Economista, El Financeiro e a Bolsa Mexicana de Valores (BMV), o Compartamos Banco realiza a emissão pública de títulos de longo prazo (Certificados Bursátiles Bancarios, em espanhol) no mercado de dívida local. O segundo lugar é ocupado pela Caja Popular Mexicana, com 30,04% do total, seguida pela Libertad Servicios Financieros. Três das 18 empresas concentram mais do que 89% do total de ativos. Ou seja, o setor de microfinanciamento é altamente concentrado no México. No país, os microcréditos concedidos a mulheres representam pouco mais do que 80% do total, o que é alto em comparação aos outros países da APEC. A Caja Popular Mexicana está associada à Aliança Cooperativa Internacional (ACI), ao World Council of Credit Unions (WOCCU), à Confederação Latino-Americana de Cooperativas de Economia e Crédito (COLAC), à International Raiffeisen Union (IRU) e à Confederación de Cooperativas de Ahorro y Préstamo de México (CONCAMEX). De acordo com os relatórios da Comisión Nacional Bancaria y de Valores (CNBV) do México, a Caja Popular Mexicana concede créditos coletivos para projetos produtivos que vão desde mil até 30 mil pesos, a uma taxa mensal de 2,28%. A Libertad Servicios Financieros foi investigada por lavagem de dinheiro, mas o resultado da investigação foi favorável à empresa. De acordo com sua página de internet oficial,

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

313

a instituição oferece diversos tipos de crédito que vão desde US$  269,00 a US$ 4.033,00. As taxas de juros variam dependendo do crédito, mas vão de 15% a 72% fixos, ao ano. Gráfico 7. México: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%) FinComún 1% Te Creemos 1% Bienestar 2% Outras 3% Apoyo Económico 2% CAME 2%

Libertad Servicios Financieros 10%

Caja Popular Mexicana 30%

Compartamos Banco 49%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

Papua-Nova Guiné

O Nationwide Microbank Limited é um projeto de microfinanças cofinanciado pelo Asian Development Bank, pela Australian Aid e pelo Governo de Papua-Nova Guiné. Ele é licenciado e regulado pelo Banco Central de PapuaNova Guiné. O valor de seus ativos soma US$ 23.142.195,00. Peru

O Peru, além de ser o país com mais ativos dentre os países da APEC (US$ 19,8 bilhões), também conta com uma ampla oferta de instituições microfinanceiras (47 instituições). O MiBanco é a microfinanceira com o maior valor de ativos tanto no Peru quanto na APEC (US$ 3,2 bilhões). Em segundo lugar en-

314

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

contra-se a Crediscotia, com pouco mais de US$ 2,3 milhões em ativos. Entretanto, o tamanho das instituições microfinanceiras peruanas é extremamente desigual. Apenas as cinco maiores instituições concentram pouco mais de 50% do total de ativos. As outras 42 instituições, juntas, apenas se equiparam a esse valor. Em média, as microfinanceiras peruanas concedem mais do que 67% do total de seus microcréditos a mulheres. O MiBanco pertence à empresa Edpyme Edyficar, tendo o CARE Perú como acionista majoritário. A CrediScotia Financiera pertence ao Grupo Scotiabank Perú que, por sua vez, é parte de The Bank of Nova Scotia (o Grupo Scotiabank), um banco internacional com sede em Toronto, no Canadá. Ela é a instituição financeira do grupo Scotiabank Perú, especializada no segmento de microempresas e bancos de varejo. CMAC é uma abreviação que significa Cajas Municipales de Ahorro y Crédito, ou seja, são órgãos semelhantes a Caixas Econômicas municipais. Em 1980, com o objetivo de fomentar a economia local e apoiar as atividades produtivas, novas atribuições e responsabilidades foram concedidas às municipalidades, devido ao importante papel que desempenham na promoção do desenvolvimento regional. Gráfico 8. CMACs no Peru: Distribuição de ativos 2015 (%) CMCP Lima 3%

CMAC Maynas 3%

CMAC Del Santa 1% CMAC Paita 1%

CMAC Tacna 5% CMAC Ica 5%

CMAC Piura 17%

CMAC Trujillo 11%

CMAC Sullana 15%

CMAC Cusco 13% CMAC Arequipa 13% CMAC Huancayo 13%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

315

Filipinas

As quatro maiores instituições financeiras das Filipinas são o CARD Bank, o 1st Valley Bank, o CARD NGO e o ASA Philippines. Os quatro são bancos rurais e, juntos, representam 57,13% de todos os ativos das Filipinas. O CARD é uma instituição que compreende, ao mesmo tempo, uma ONG e um banco. Entre seus sócios estão as seguintes instituições: People’s Credit and Finance Corporation (PCFC), Filipinas; Philippine National Bank (PNB), Filipinas; Philippine Postal Savings Bank, Filipinas; Bank of the Philippine Islands (BPI), Filipinas; BPI Globe Banko, Filipinas; Land Bank of the Philippines (LBP), Filipinas; China Bank Savings (CBS), Filipinas. A ASA Philippines outorga 100% dos seus microcréditos a mulheres. Gráfico 9. Filipinas: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%) Paglaum Multi-Purpose Cooperative 2% KMBI 1% Outras 3% RB Camalig 2% Bangko Mabuhay 3% Pagasa 4%

CARD Bank 17%

TSPI 4% NWTF 5% 1st Valley Bank 15% ASKI 5% Bangko Kabayan 6% GM Bank of Luzon 8%

CARD NGO 13%

ASA Philippines 12%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

Rússia

O Liski Fund é a maior instituição microfinanceira da Rússia. Essa MFIs soma 54,23% de todos os ativos, com pouco mais de US$ 208 milhões. O Liski

316

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Fund e o FORUS representam cerca de 75% do valor total dos ativos das 24 microfinanceiras da Rússia. O Forus é financiado por organizações como a International Finance Corporation e o Citi Group. Gráfico 10. Rússia: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%)

Bryanskiy Fond APMB 2% Mikrozaymov 2% CITY SBERKASSA 2%

SBS 1% VRFSBS 1% Outras 4%

Garantee Agency of Nizhniy Novgorod 3% FFECC 4%

FINCA - Russia 7% Liski Fund 54% FORUS 20%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

Vietnã

No Vietnã, a TYM é a instituição microfinanceira que possui a maior parte dos ativos totais, com 85,85%, ou seja, US$ 48.962.990,00. Ela oferece empréstimo de US$ 52,00 a US$ 1.300,00; com uma taxa de juros de 1% ao mês. As organizações que financiam a TYM são: Belgian Development Agency, PNB Paribas, International Finance Corporation, International Labour Organization, USAID, entre outras.

317

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

Gráfico 11. Vietnã: Microfinanceiras e distribuição de ativos 2015 (%)

14%

TYM M7MFI

86%

Fonte: Elaboração própria com dados do Mixmarket:

Nas MFIs analisadas na região Ásia-Pacífico destacam-se os microcréditos canalizados para as mulheres.

4. Microcrédito, mulheres e os objetivos de desenvolvimento sustentável A partir do estudo da canalização dos fluxos de capital através das microfinanceiras na zona dos países que formam a APEC, observou-se que muitos dos créditos são canalizados em maior proporção para as mulheres. Ao relacionar a necessidade de conceber os ODS como uma agenda que passa pelas políticas públicas, pela redução da pobreza e pela construção de um modelo econômico de desenvolvimento sustentável para a sociedade; o microcrédito, as taxas de juros e o empoderamento econômico das mulheres devem ser objeto de estudo prioritário, observando sua relação com o financiamento do desenvolvimento para cumprimento da Agenda 2015-2030. O aprofundamento do estudo é importante porque é por meio de políticas públicas que os

318

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

países da APEC respondem a um cenário internacional de crise, austeridade e recessão. A regulação das taxas de juros, assim como a necessidade de bancos de desenvolvimento, ficam sujeitas às políticas monetárias, fiscal e financeira desenvolvidas pelos bancos centrais. O eixo central da Agenda 2015-2030 é o empoderamento das mulheres, correspondente ao quinto ponto, e também relacionado com os outros 16 pontos. Diferentemente dos Desafios do Milênio 2000-2015, nos quais o empoderamento econômico das mulheres relacionava-se com o microcrédito e com a redução da pobreza, na agenda atual, o ponto 5 relaciona-se com o resto dos ODS. Além disso, os ODS estão implícitos nos discursos do FMI e do Banco Mundial (BM), assim como nos discursos de bancos regionais. Na reunião de primavera do FMI, tanto o World Economic Outlook como o Global Financial Stability Report levaram a público seus relatórios sobre os ODS. Em ambos os relatórios, as perspectivas são sombrias. Um deles afirma que “o enfraquecimento da recuperação global e as preocupações acerca da habilidade dos políticos de apresentarem uma resposta política rápida e adequada obscureceram as perspectivas econômicas. Como resultado, os riscos para o sistema global e financeiro aumentaram substancialmente. Nesse contexto conturbado, as políticas fiscais devem estar preparadas para responder prontamente com vistas a apoiar o crescimento e reduzir as vulnerabilidades” (Fiscal Monitor, 2016). “Os riscos fiscais aumentaram em quase todas as partes, em economias desenvolvidas, em mercados emergentes e em economias em desenvolvimento. O Fiscal Monitor sugere que “(…) esses objetivos podem ser alcançados por meio da implementação de reformas estruturais voltadas para o crescimento, uma melhor mobilização dos recursos e aprimorando-se a eficiência dos gastos. É necessária uma combinação de reformas estruturais com uma política monetária e fiscal que apoie o aumento da produção real e potencial” (FISCAL MONETARY, 2016, p. 109). As políticas públicas não deveriam dizer respeito unicamente aos Estados, pois, ao transcender os setores público e privado, tornam-se o caminho para o futuro das sociedades, para que possam optar por um desenvolvimento sustentável. As políticas públicas são o núcleo dos objetivos de desenvolvi-

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

319

mento sustentável. Elas estão no centro deste debate e são o foco de todas as tentativas de reduzir qualquer desigualdade entre homens e mulheres. A crise econômica cobrou seu preço nas políticas públicas. “(...) Elas foram afetadas pela constante redução dos gastos públicos relacionados à saúde, moradia e educação, que – somados à privatização – afetam profundamente as mulheres e a necessidade que têm de se tornarem mais ativas dentro do mercado de trabalho, mesmo que essa participação signifique enfrentar condições precárias de trabalho, trabalhar na economia informal ou aceitar trabalhos mal remunerados. Por um lado, a canalização de fundos provenientes do Estado, por meio de políticas públicas, está no centro dos interesses macroeconômicos. Isso ocorre a ponto de o desenvolvimento das políticas monetária, fiscal e financeira corresponder aos interesses dos investidores institucionais internacionais, que atuam dentro do Sistema financeiro sombra (SFS) e trabalham através dos circuitos financeiros internacionais. Por outro lado, a transferência de capital ao SFS gera impacto na taxa de desemprego e reduz os salários, com marcantes consequências para as mulheres e para o aumento da desigualdade salarial entre homens e mulheres” (GIRÓN e CORREA, 2016, p. 472). Em meio a esse contexto, o que os governos da APEC devem fazer é alcançar os ODS como parte de seus projetos públicos. Os governos devem reduzir o GGI com um aumento dos recursos voltados para a educação, aprimorando escolas com tecnologias avançadas, serviços de saúde etc. para melhorar a capacitação das crianças. Entretanto, para o empoderamento econômico das mulheres a partir de sua inclusão no mercado de trabalho, é importante que as políticas públicas contribuam cada vez mais com o gasto social. Qualquer esforço concreto para promover a igualdade de gênero requer recursos; assim como os compromissos globais de desenvolvimento (tais como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), que não podem ser alcançados sem a destinação de recursos para a desigualdade de gênero, componente essencial das desigualdades de desenvolvimento gerais que o mundo procura abordar. (MCKINSEY, 2015, p. 94, Tradução da autora)

320

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Para alcançar os ODS, o Monitor Fiscal do FMI afirma que (...) em outros mercados emergentes e economias em desenvolvimento, os principais desafios são a criação de uma reserva orçamentária para responder à crescente demanda por serviços públicos, para melhorar a prestação de serviços de saúde e educação e para desenvolver a infraestrutura. Esses objetivos podem ser alcançados com a implementação de reformas estruturais voltadas para o crescimento, com uma melhor mobilização dos recursos, e com uma otimização do gasto. A capacitação na área de mobilização de recursos também é essencial para a concretização dos ODS. Em alguns países importadores de petróleo com grandes subsídios para os combustíveis, os lucros inesperados provenientes dos altos preços do petróleo poderiam ser utilizados para financiar reformas que fomentem o crescimento. (Fiscal Monitor, 2016, p. x)

Citando Lehman Brothers (2008), ( ) o rápido crescimento do setor financeiro pode, por si só, apresentar riscos. Ainda que os mercados financeiros asiáticos tenham demonstrado uma notável resistência durante a crise financeira mundial de 2008, eles estão se tornando cada vez maiores, mais complexos e interconectados. Ao mesmo tempo, as reformas regulatórias globais estão criando objetivos nacionais e internacionais para mercados e para reguladores. A implementação dessa agenda está influenciando as estruturas de mercado e de fluidez, os produtos e os fluxos financeiros, o tamanho dos bancos e dos bancos sombra, as redes de segurança financeira e o quadro de resolução. A Ásia precisará se adaptar, agir sobre esses fatores e estar pronta para manejar os riscos emergentes. (SAHAY et. al., 2015, p. 5, Tradução da autora).

Mais adiante, Sahay menciona que

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

321

(...) o modelo simples de negócio e aversão ao risco foi uma força dentro da crise financeira global, já que limita a exposição do sistema bancário asiático para os empréstimos subprime e a securitização que aflige as economias avançadas. Ao mesmo tempo, o domínio dos bancos veio à custa dos mercados de ações e de títulos em países subdesenvolvidos, na maioria dos países. Além disso, a curta duração dos passivos dos bancos limita sua capacidade de financiar investimentos de longo prazo, como projetos de infraestrutura. (SAHAY et al., 2015, p. 6, Tradução da autora)

A relação entre os investidores institucionais e as MFIs nas regiões da APEC deve ser vista como um ponto importante na negociação da Agenda 2015-2013, assim como nas negociações que permeiam os interesses da região nas suas próximas reuniões anuais, nas quais a regulação por parte dos bancos centrais deve ser mais precisa em relação ao financiamento da Agenda e ao controle das taxas de juros.

5. Considerações finais Os recursos necessários para promover o caminho até o desenvolvimento sustentável não cairão de um helicóptero, lançando mão da metáfora de Milton Friedman. Os recursos devem vir dos bancos centrais, responsáveis por manejar as taxas de juros, mas também por decidir a política monetária e fiscal que, no futuro, devem contribuir para a existência de bancos públicos e investidores dispostos a desenvolver uma infraestrutura pública que melhore as condições do desenvolvimento sustentável. Para uma melhora dos indicadores, entre os quais destaca-se a desigualdade de gênero mundial, são necessários investimentos maiores e melhores em educação, por meio de escolas com melhores professores, com água, eletricidade, acesso à internet. Investimentos que permitam que os estudantes utilizem a tecnologia de ponta e o conhecimento para a mobilização e comercialização de nossos produtos, para a criação de um futuro melhor. Todo esse trabalho deve ser realizado com

322

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

o objetivo de empoderar as mulheres tanto na área rural quanto na urbana. Empoderamento econômico das mulheres significa oferecer oportunidades de educação, saúde, tecnologia e moradia, com o objetivo de aprimorar sua capacitação para o mercado de trabalho.

Referências BANCOESTADO. BancoEstado realizó exitosa colocación de Bonos Bancarios. Chile, 2014. Disponível em: . Acesso em: em 31 de maio de 2016. BERNANKE, Ben S. Monitoring the Financial System. In: 49th Annual Conference on Bank Structure and Competition. Chicago, IL, 10 de maio de 2013. Disponível em: . DUDLEY, William. Solving the too big to fail problem, Remarks at the Clearing House’s. In: Second Annual Business Meeting and Conference. New York City, 12 de novembro de 2012. ELSON, Diane. International Financial Architecture: A view from the kitchen. Politica Femina, 2002a. Disponível em: . ______. Macroeconomics and Macroeconomic Policy from a Gender Perspective. Public Hearing of Study Commission titled “Globalisation of the World Economy-Challenges and Responses”, Deutscher Bundestag, 18 de fevereiro, 2002b. Disponível em: . GIRÓN, Alicia; CORREA, Eugenia. “Post-Crisis Gender Gaps: Women Workers and Employment Precariousness”. Journal of Economic Issues, 50(2), junho 2016.

INVESTIDORES INSTITUCIONAIS, MICROFINANCIAMENTO E OBJETIVOS…

323

HALE, Galina; KAPAN, Tümer e MINOIU, Camelia. “Crisis Transmission through the Global Banking Network”. International Monetary Fund, Working Paper, Research Department, abril 2016. INTERNATIONAL MONETARY FUND (IMF). Fiscal Monitor: Acting Now, Acting Together. Washington: April, 2016. LAMIA, Karim. Microfinance and its Discontents: Women in Debt in Bangladesh. Minneapolis, EUA: University of Minnesota, 2011. LIBERTAD SERVICIOS FINANCIEROS. Disponível em: . Acesso em: 3 de junho de 2016. MCKINSEY GLOBAL INSTITUTE. The Power or Parity: How Advancing Women’s Equality can Add $trillion to Global Growth. Nova York: McKinsey & Company, 2016. MEJOR TRATO. Disponível em: . Acesso em: 3 de junho de 2016. MIBANCO. Memoria Anual 2014. Lima, Peru, 2014. Disponível em: . Acesso em: 2 de junho de 2016. SAHAY, Ratna; SCHIFF, Jerald; LIM, Cheng Hoon; SUMI, Chikahisa e WALSH, James P. The Future of Asian Finance. Washington, D.C.: International Monetary Fund, 2015. SHCP. Notas de Prensa Sociedades Cooperativas de ahorro y préstamo correspondientes al mes de agosto 2015. Disponível em: . Acesso em: 1 de junho de 2016. TRIODOS BANK. Results. Disponível em: . Acesso em: 31 de maio de 2016. WORLD ECONOMIC FORUM. The Global Gender Gap Report. WEF, 2015.

Banco dos BRICS: uma via alternativa às instituições de Bretton Woods? Marcos Costa Lima Joyce Helena Ferreira da Silva

1. Introdução Quando iniciamos a escrever este artigo, estava e ainda está em processo um Golpe de Estado no Brasil. A tentativa de impedir uma presidente legitimamente eleita, Dilma Rousseff, com mais de 54.500.000 de votos, foi oficialmente iniciada quando, em 17 de abril de 2016, a Câmara dos Deputados autorizou a abertura do processo de impeachment da presidente. A princípio, políticos e partidos de direita e centro-direita (muito embora com nomes pomposos, como Partido Socialista Brasileiro e Partido da Social Democracia Brasileira) alardeavam que havia improbidade administrativa da presidente, no que foram impulsionados quase que integralmente por uma mídia conservadora, de jornais e TVs que são controlados por poucas famílias no Brasil. Como afirma o jornalista Leudson Coelho (2013), o marco regulatório da mídia não é aceito por empresários e políticos que detêm o monopólio dos meios de comunicação. O termo “regulatório”, diz ele, tem uma carga pesada para esta elite, que se defende dizendo que pode promover a censura aos meios de comunicação. Sabe-se que as concessões de rádio e TV aconteceram principalmente durante a ditadura civil-militar instalada em 1964, onde a classe empresarial e política mantinham laços de interesses com os militares. A opinião pública mais esclarecida sabe que, quando se fala em democratizar os meios de comunicação, em nenhum momento se visa limitar e ferir a liberdade de imprensa, que é um dos pilares para manter a nossa democracia representativa, por permitir a ampla participação da sociedade civil e acesso a

326

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

informações e notícias de qualidade e que não sejam instrumentalizadas seja por este ou aquele partido e grupo político. A menção à mídia brasileira se justifica aqui porque, com o passar dos meses, foram surgindo novos elementos e fatos, comprovados em gravações, de políticos do alto escalão do governo interino, que deixavam a nu o processo golpista e, sobretudo, que havia uma manobra política travestida de legal que acusava a presidente de improbidade administrativa. A 13 de julho de 20161, o Jornal Folha de São Paulo noticiava que o procurador do Ministério Público Federal no Distrito federal, Ivan Cláudio Marx, havia arquivado o procedimento criminal que apurava as chamadas “pedaladas fiscais” do governo no BNDES, atrasos nos pagamentos de valores devidos ao Banco por entender que não configurava crime. De fato, sabe-se que o que tentavam era inviabilizar o prosseguimento da Operação Lava a Jato2 , que terminaria por atingi-los. Entedemos que o Golpe foi arquitetado por uma larga maioria de congressistas, apoiados por parte significativa do judiciário, envolvendo mesmo personagens da Corte Suprema – STF, que desde o início do processo já detinham informações suficientes sobre a trama e com o apoio declarado da mídia impressa e televisiva, capitaneados pela Rede Globo. Mas o que liga toda esta narrativa ao artigo que estava sendo construído é que o governo interino deu início a uma completa mudança de rumo no País, não aguardando mesmo o final da votação do impeachment no senado da república, que deve ser concluída provavelmente em 15 de agosto deste ano. A começar pelo ataque ao cerne das políticas sociais que foram a marca dos governos petistas – políticas sociais de distribuição de renda via transferências governamentais, fundamentais para reduzir a pobreza no País. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/07/1789850-pedalada-no-bndesnao-foi-crime-diz-procurador-do-ministerio-publico-federal.shtml. Acesso em 14 de julho de 2016. 2 É uma investigação em andamento pela Polícia Federal do Brasil, que deflagrou sua fase ostensiva em 17 de março de 2014, cumprindo mais de cem mandados de busca e apreensão, de prisão temporária, de prisão preventiva e de condução coercitiva, visando apurar um esquema de lavagem de dinheiro suspeito de movimentar mais de R$ 10 bilhões de reais, podendo ser superior a R$ 40 bilhões, dos quais R$ 10 bilhões em propinas, envolvendo partidos políticos e iminentes lideranças políticas do país. A Polícia Federal a considera a maior investigação de corrupção da história jamais havida no Brasil. 1.

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

327

Fernando Rugitsky (Portal Vermelho, 2016), professor da FEA/USP, em relação às medidas apresentadas pelo governo provisório de Michel Temer, afirma que estas vão na contramão de políticas de bem-estar, ressaltando que, nos últimos anos, especialmente durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, houve uma redução da desigualdade salarial no país, mas não da desigualdade total. Nesse sentido, ele apontou os limites das políticas implementadas pelo Partido dos Trabalhadores e defendeu que é preciso uma mudança na estrutura produtiva para solucionar a questão. Segundo ele, contudo, a proposta de Michel Temer não só não resolve esse problema, como o aprofunda, uma vez que acabar com o financiamento da educação e da saúde públicas, que atendem a mais de três quartos da população brasileira, significará “aumentar ainda mais o fosso que separa os mais ricos dos mais pobres”.  “Você cria esse teto, você inviabiliza a universalização da educação e saúde, impõe uma reforma da previdência superprofunda e o próximo passo vai ser privatizar e começar a cobrar por serviços públicos”, criticou, citando a plataforma de Temer. Para o economista, os defensores desse projeto tentam vendê-lo como parte do combate às desigualdades. A ideia seria a de que é preciso, por exemplo, cobrar mensalidade nas universidades hoje públicas, uma vez que elas atendem à elite que tem dinheiro e pode pagar. “O problema é que, quanto mais focalizado for o gasto público nas pessoas mais pobres, mais você corrói a legitimidade do sistema tributário. Porque você cria aquele argumento, comum no Brasil, de que “eu estou pagando tudo isso, mas não recebo nada em troca”. Claro, porque você focalizou o gasto público para as pessoas que não pagam imposto direto, embora paguem muitos tributos indiretos”, disse. Isso aprofundaria ainda mais os problemas fiscais do Estado, pressionando para baixo a carga tributária e diminuindo a capacidade do Estado de gerar redistribuição. E afirmou que os países que conseguem a melhor distribuição de renda com o fundo público – tanto com o sistema tributário quanto com os gastos públicos – são os que têm gastos menos focalizados, mais universalizados, “para permitir que haja legitimidade do sistema tributário”.  Mas não foi apenas a direção da política social do governo Dilma que está sendo radicalmente alterada. No plano da política externa as mudanças

328

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

têm sido dramáticas. O chanceler interino, José Serra, que, no passado, foi um economista ligado ao pensamento progressista da CEPAL e muito próximo à professora Maria da Conceição Tavares, com quem escreveu em 1970 o ensaio “Além da Estagnação”, que desenvolve uma crítica à tese da estagnação secular, defendida então por Celso Furtado. Pois bem, o chanceler interino atacou duramente as políticas até então desenvolvidas pelo Itamaraty, que trouxeram grande prestígio internacional ao País, notadamente as iniciativas para a América do Sul – Mercosul e Unasul. É sabida a sua antipatia pelo Mercosul e seu interesse de tornar o Brasil parceiro preferencial dos países do 1º Mundo, preferencialmente dos Estados Unidos e da Europa, em detrimento das relações com os nossos vizinhos. Uma pequena demonstração, registrada pelo ex-chanceler Celso Amorim, desta antipatia pelo Sul por parte de José Serra, deu-se já nas suas primeiras ações, tendo proferido, com palavras duras, acusações segundo as quais os governos de países da nossa região estariam empenhados em “propagar falsidades”, num misto de arrogância e prepotência. Diz Amorim (2016) que em “matéria comercial, o afã em aderir a mega-acordos regionais do tipo da TPP (a Parceria Transpacífico3) denota total ignorância das cláusulas, que cerceiam possibilidades de políticas soberanas (no campo industrial, ambiental e de saúde, entre outros)”.  Com relação ao continente africano – onde o Brasil além de manter fortes relações e levando-se em conta a importância estratégica deste continente para a segurança do Atlântico Sul – já foi propalado que ficará em segundo plano, sob a ótica de um pragmatismo imediatista, com a justificativa de que o país gasta excessivamente com países sem expressão. Parceria Transpacífico é um acordo de livre-comércio estabelecido entre doze países banhados pelo Oceano Pacífico, assinado em 5 de outubro de 2015, após sete anos de negociações. O acordo é semelhante ao Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento (TTIP), proposto entre os Estados Unidos e a União Europeia. A Parceria Transpacífico é uma expansão do Acordo de Parceria Econômica Estratégica Transpacífico (TPSEP, também referido como P4), que foi assinado por Brunei, Chile, Nova Zelândia e Singapura em 2005. A partir de 2008, outros países aderiram à discussão para um acordo mais amplo: Austrália, Canadá, Japão, Malásia, México, Peru, Estados Unidos e Vietnã, elevando o número total de países que participam das negociações para doze. 3

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

329

Finalmente uma articulação virtuosa com a China, a Índia, a Rússia e a África do Sul, que culminou com a criação de um grupo que embora ainda não se constitua enquanto bloco econômico, nem ser uma associação de comércio formal, como no caso da União Europeia, forma uma aliança que trabalha no sentido de um aumento crescente de poder econômico e uma maior influência geopolítica dos cinco países. Desde 2009, os líderes do grupo têm realizado cúpulas anuais que culminaram na criação de um Novo Banco de Desenvolvimento (NBD), também referido como Banco de Desenvolvimento do BRICS ou simplesmente Banco do BRICS, que é um banco de desenvolvimento multilateral, operado pelos Estados do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) como uma alternativa ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 15 de julho de 2014, durante a sexta cúpula do BRICS, em Fortaleza, no Ceará, os presidentes de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul assinaram um acordo oficializando a criação do banco, cujo principal objetivo é financiar projetos de infraestrutura e desenvolvimento, com grande foco em projetos ambientais em países pobres e emergentes. O acordo foi firmado pela presidente do Brasil, Dilma Rousseff, pelo novo primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, pelos presidentes da Rússia, Vladimir Putin, da China, Xi Jinping, e da África do Sul, Jacob Zuma. Temos, portanto, um retorno a um modelo neoliberal que mostrou, não apenas na região, mas em escala internacional, o desastre que provocou seja com relação à ampliação das desigualdades econômicas e sociais, mas também com relação ao grave problema do meio ambiente em escala planetária (COSTA LIMA e SILVA, 2016; KLEIN, 2014). O banco, e o próprio projeto dos BRICS, como analisaremos posteriormente, está configurado para promover uma maior cooperação financeira e de desenvolvimento entre os cinco mercados emergentes. A sede da instituição será em Xangai, China, e o primeiro chefe-executivo será indiano. Na cúpula de 2015, na Rússia, os países anunciaram os funcionários de alto nível do banco. O fato é que, com a aproximação preferencial agora com os Estados Unidos da América, fica muito incerta a participação do Brasil neste projeto vir-

330

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

tuoso. E não se trata de especulação, quando sabemos que o ministro interino do Itamaraty apresentou, em 2015, o PROJETO DE LEI DO SENADO nº 131, de 2015, que tem por ementa: “Altera a Lei nº 12.351, de 22 de dezembro de 2010, que estabelece a participação mínima da Petrobras no consórcio de exploração do pré-sal e a obrigatoriedade de que ela seja responsável pela “condução e execução, direta ou indireta, de todas as atividades de exploração, avaliação, desenvolvimento, produção e desativação das instalações de exploração e produção”. O projeto foi aprovado em fevereiro de 2016, pelo senado, alterando as regras de exploração de petróleo do pré-sal. A proposta retira da Petrobras a exclusividade das atividades no pré-sal e acaba com a obrigação de a estatal participar com pelo menos 30% dos investimentos em todos os consórcios de exploração da camada. A aprovação do texto significaria entregar o présal ao capital estrangeiro em um momento de desvalorização dos barris do petróleo, tratando-se de uma medida de desnacionalização da maior estatal do País, que tem uma história de êxito tecnológico e que vem de uma tradição varguista do “Petróleo é Nosso”. Concluindo essa introdução, que nos pareceu indispensável para não apenas sinalizar o grave momento que vive o país, mas para chamar atenção sobre a mudança drástica nas políticas implementadas pelo governo interino e que lançam uma nuvem sombria sobre as conquistas e direitos conquistados pelos governos do PT, sobre o futuro não apenas dos BRICS, mas do que será a política externa brasileira. Trata-se, como analisou o cientista político César Guimarães4 recentemente, que o objetivo do Golpe de Estado estaria em implantar um estado de exceção, que chama de “capitalismo integral, autoritarismo funcional”.

GUIMARÃES, César. “Criminalização golpista e resistência”, 2016. Texto enviado por e-mail. 4

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

331

2. Acumulação de capital no contexto da financeirização: um panorama geral O processo de acumulação de capital, dentro da dinâmica de financeirização da economia internacional na era neoliberal, encontrou sustentação a partir de um conjunto de instituições internacionais que respaldaram as modificações ocorridas no sistema econômico mundial a partir do pós-Segunda Guerra. Com a projeção da hegemonia norte-americana e a consolidação e supremacia das instituições de Bretton Woods, a inserção dos países periféricos no contexto da finança mundializada foi marcadamente subalterna, assinalada por uma participação dependente das grandes praças financeiras do capitalismo central. Os acontecimentos das últimas quatro décadas de predomínio neoliberal estiveram calcados, portanto, nestes dois aspectos destacados por Chesnais (2005, p. 20): i) no “reaparecimento e na consolidação de uma forma específica de acumulação de capital” a qual “conserva a forma dinheiro e pretende se valorizar pela via das aplicações financeiras nos mercados especializados (a forma resumida D-D’ salientada por Marx)”; e ii) na “elaboração e execução de políticas de liberalização, de desregulamentação e de privatização”. Esse processo de financeirização produziu um incremento na polarização da riqueza tanto intra quanto interpaíses, com o aumento do poder de grupos oligárquicos que perfazem as grandes corporações internacionais industriais, comerciais e de serviços que passaram a subordinar interesses políticos coletivos a interesses econômicos particulares. Desta forma, no contexto de globalização financeira, os pontos de tensão parecem menos focalizados “entre o ‘Norte’ e o ‘Sul’ do que por rivalidades entre frações diferentes de um mesmo capital, concentrado e internacionalizado” (CHESNAIS, 2005, p. 23). Como diz em livro posterior, a crise financeira que estamos assistindo e sofrendo representa o colapso do crédito com o rápido aumento do desemprego a partir do outono de 2008 e revelou a extensão da superprodução inutilizável que apareceu em diversos setores, em indústrias e países específicos. A superprodução tomou a forma de habitações vazias, condomínios abando-

332

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

nados ainda em construção, residências secundárias e escritórios encalhados, um setor da construção civil em marcha lenta, e mesmo em uma situação de profunda depressão. Mas também no setor automobilístico a crise é aguda. Chesnais então retoma o seu argumento: “Em uma economia tão altamente liberalizada e globalizada como a de hoje, é no nível global que a extensão da sobreacumulação e da superprodução deve ser apreciada” (CHESNAIS, 2011, p.73). Desta forma, dentro de um bloco de poder hegemônico, frações de classe ligadas às finanças internacionais passaram a cooptar as instituições e os processos de decisão política a seu favor, pressionando por uma política econômica que favoreça o segmento bancário-financeiro, como ocorre no caso brasileiro. Desta forma, o processo de liberalização financeira, solidificado a partir da consolidação neoliberal na década de 1980, produziu distorções de grande relevo: Esse mundo das finanças mais acessível aos usuários e mais sofisticado para os profissionais foi marcado por todo tipo de distorção: inclinação persistente em subavaliar os riscos, corrupção e fraudes em larga escala, conflitos de interesses, indulgência das autoridades públicas. Longe de se conformar ao ideal de eficácia e transparência ao qual almeja, a liberalização financeira mostrou, entre uma crise e outra, sua incapacidade de autorregulação. (AGLIETTA, 2004, p. 10, grifo nosso)

O gráfico a seguir revela que as taxas de crescimento dos cinco principais países da OCDE apresentaram queda a partir dos anos 1980, à exceção dos Estados Unidos, que, no final da década de 1990, teve um crescimento econômico fundamentado nos investimentos em tecnologia da informação, processo que se esgotaria a partir de 2001, com a quebra da Nasdaq:

333

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

Gráfico 1. Taxas de crescimento nos cinco principais países da OCDE (%) 12 10 8 6 4 2 0 1960-1973 EUA

1973-1979 Japão

1980-1990 Alemanha

1991-1995 França

1996-1999 Reino Unido

Fonte: Elaboração própria. AGLIETTA, 2004, p. 13.

Assim sendo, “a neoliberalização significou a ‘financialização’ de tudo”, o que “aprofundou o domínio das finanças sobre todas as outras áreas da economia, assim como o aparato de Estado”. Isto acentuou, principalmente nos países centrais, um deslocamento de poder da produção para as finanças (HARVEY, 2012, p. 41). O gráfico 1, com as taxas de crescimento dos cinco principais países da OCDE, apontou apenas um dos indicadores de que o neoliberalismo/financeirização produziu alguns efeitos negativos para a economia mundial. Mantendo em relevo o caso dos Estados Unidos, houve, entre meados dos anos 1970 e início dos anos 1990, uma redução significativa dos impostos corporativos. Segundo Harvey (2012, p. 35), na faixa mais alta de impostos corporativos, a diminuição no período assinalado foi de 70% para 28%. Na esteira desta ascensão dos segmentos financeiros veio um crescimento considerável da desigualdade social no país. Como demonstrado por Stiglitz (2012, p. 21), os ganhos auferidos por um CEO nos Estados Unidos é 200 vezes maior do que os ganhos de um trabalhador. Após a crise de 2008, o setor financeiro conseguiu recuperar a lucrativi-

334

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

dade rapidamente, enquanto os trabalhadores, cuja riqueza está materializada nas casas, obtiveram perdas significativas com a queda dos preços, como efeito da crise do subprime (STIGLITZ, 2012). No caso da China, ocorreu um movimento bastante particular. Estando à parte do Consenso de Washington e, portanto, com trajetória diferente dos países da América Latina, da Europa Central e da Rússia, submetidos às regras do FMI, o governo chinês promoveu uma inserção financeira diferente do padrão neoliberal estabelecido a partir do final dos anos 1970. Primeiro, a partir de uma configuração de poder com controle centralizado e autoritário, os chineses praticaram uma transição diferenciada para uma economia de mercado. É possível destacar, por exemplo, o papel de um sistema bancário majoritariamente estatal, o qual começa a se expandir a partir de 1985. Com a ampliação do processo de reforma e abertura, ocorrido no início da década de 1990, houve incremento do Investimento Estrangeiro Direto e, no mesmo período, uma ampliação da quantidade de bancos estatais. Em 1993, a quantidade de bancos passou de “60.785 a 143.796 e o número de empregados foi de 973.355 a 1.893.957”, o volume de depósitos aumentou de “427,3 bilhões de yuans (51,6 bilhões de dólares) a 2,3 trilhões, enquanto o volume total de empréstimos passou de 590,9 bilhões de yuans a 2,6 trilhões” (LIU, 2002 apud HARVEY, 2012, p. 144). No que diz respeito à criação de bolhas, destaca-se a alocação ineficiente de recursos e a gigantesca capacidade ociosa criada, principalmente no mercado imobiliário e no setor de construção, na concepção de investimentos sem lastro na relação custo-benefício, a fim de manter os altos níveis de investimento, arranjo este que produziu uma grande pressão sobre o mercado imobiliário chinês. Para alguns países em desenvolvimento, a inserção financeira ocorreu de forma diversa. Seguindo a subdivisão feita por Camara e Salama (2005, p. 202), pode-se particularizar dois grandes períodos do processo de financeirização nos países em desenvolvimento, a saber: 1970-1981 e 1990-2000. A primeira etapa é marcada por um controle cambial no sistema internacional, bem como por flutuações das principais divisas, o que tornou o financiamento externo mais acessível.

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

335

Os empréstimos bancários representaram mais de dois terços de todo o financiamento externo, durante a fase de reciclagem dos petrodólares nos anos 1970. Em especial, no caso latino-americano, esse acesso ao crédito internacional serviu para dar seguimento aos processos de industrialização por substituição de importações. Entretanto, as duas crises do petróleo e a subsequente elevação da taxa de juros estiveram na gênese da conhecida “crise de dívida”, que penitenciou os países da América Latina durante toda a década de 1980 e parte dos anos 1990. Entre 1990 e 2000, a inserção financeira, para os países em desenvolvimento, se dá através de fluxos privados, majoritariamente, a partir de investimentos diretos e investimentos em carteira (CAMARA; SALAMA, 2005). A crise da dívida nos países latino-americanos resultou em redução do acesso ao crédito e em uma intervenção direta do Fundo Monetário Internacional, com a conhecida “carta de intenção”. Este recurso significou a interferência direta de uma instituição internacional na política econômica dos países, que passavam a adotar políticas de austeridade a fim de obter divisas suficientes para honrar seus pagamentos. Este cenário começa a ser modificado a partir da consolidação da economia chinesa, o que se deu com grande impacto, principalmente a partir dos anos 2000. Ao ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, a China, tendo como âncora o seu forte crescimento econômico e sua importância geopolítica, abriu espaço para os países do Sul em um sistema internacional fortemente dominado pelas potências do capitalismo central. Ao estabelecer relações comerciais com os países da América Latina, a China impõe uma horizontalidade que, até então, ocorria numa escala regional, com proporções e dinamismo reduzidos. Sendo a região grande produtora de matérias-primas, os países latino-americanos ingressaram em um ciclo de crescimento que veio como parte do efeito-China. Especialmente a partir da intensificação da relação com o Brasil, potência do subcontinente, foi possível ampliar, no bojo do crescimento econômico, as discussões políticas e o questionamento com relação ao alinhamento das instituições internacionais. É assim que a China se coloca no cenário internacional de forma contraditória

336

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

como forte e frágil, transitando entre o centro e a periferia, sendo um player que se impõe diante das grandes potências estabelecidas e, ao mesmo tempo, vocaliza as demandas dos países em desenvolvimento: A China exulta, pois pertence a um foro onde a sua pujança econômica e geopolítica – eterna justificativa para um G-2 que só existe na mente de alguns pundits de relações internacionais – é parcialmente esquecida: transforma-se em pobre e heroico país em desenvolvimento, a discutir com um punhado de irmãos nessa condição – particularmente a Índia e o Brasil – formidáveis problemas de megaurbanização, níveis mínimos de segurança alimentar, êxodo rural-urbano e a sempre presente redução da pobreza junto à da desigualdade. (FLÔRES, 2015, p. 144)

Atualmente, a China é grande polo de financiamento no sistema internacional, tendo uma ampla cesta de instituições, como o Banco do Povo da China, o Banco de Desenvolvimento da China e o EximBank, cujas linhas de crédito atendem a projetos de infraestrutura em todo o mundo, sendo negociados através de relações intergovernamentais, com ampliação de parcerias comerciais. O país asiático participa também de instituições multilaterais, como o Banco Asiático de Desenvolvimento e o Banco Africano de Desenvolvimento, além do Novo Banco de Desenvolvimento, criado no âmbito dos BRICS (ABDENUR; FOLLY, 2015). É nesta direção que os países dos BRICS aparecem como importante contraponto às potências hegemônicas. Em suas iniciativas, ainda incipientes de institucionalização, inauguram uma nova etapa que reforça a horizontalidade, dão visibilidade às demandas do Sul global e colocam alternativas às organizações historicamente ligadas aos interesses dos países centrais. Dentro deste quadro de institucionalização e de inserção financeira dos países periféricos, o Banco dos BRICS surge como ponto marcante deste novo panorama, apesar de alguns elementos de insuficiência, conforme será demonstrado na próxima seção.

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

337

3. Banco dos BRICS: Uma via alternativa às instituições de Bretton Woods? Quatro dos cincos componentes dos BRICS possuem, juntos, aproximadamente 26% do território e 40% da população mundial, sendo a taxa natural de crescimento populacional negativa apenas no caso russo (ver gráfico 2). Segundo dados do Banco Mundial (2013 apud ABDENUR; FOLLY, 2015, p. 82), a economia dos membros representa 21% do PIB mundial (ver gráfico 3), possuindo reservas de cerca de US$ 5 trilhões, sendo que, desse total, mais de 80% estão na China. Do ponto de vista geopolítico, o grupo é formado por importantes potências regionais, países cuja participação nos diversos fóruns internacionais é bastante incisiva, sendo, inclusive, dois dos seus membros componentes permanentes do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, a saber, China e Rússia. Gráfico 2. Aumento da taxa de população nos BRICS entre 2008 e 2012 por 1.000 pessoas

Brasil

Rússia

Fonte: BRICS joint statistical publication (2014, p. 24).

Índia

China

África do Sul

338

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Sobre a composição do Produto Interno Bruto de cada país, excluindo a África do Sul, por setores, é possível perceber que o Brasil está à frente apenas da Índia no que diz respeito ao tamanho da participação da indústria no PIB. Desta forma, apresentando os números individuais, o Brasil teve, em 2012, uma participação industrial de 26%, contra 68,7% do setor primário e 5,3% do terciário; a Rússia obteve 36,3% no setor industrial, 59,7% no setor primário e 4% no terciário; a Índia apresentou 56,3%, 23,8% e 19,9% nos setores primário, secundário e terciário, respectivamente, e a China com maior peso na indústria, 45,3% do PIB chinês, seguida do setor primário com 44,6% e com menor participação do setor terciário, 10,1% (BRICS, 2014). O gráfico abaixo revela a evolução do Produto Interno Bruto dos membros do BRICS no período 20072013: Gráfico 3. Produto Interno Bruto dos BRICS entre 2007 e 2013 US$ Bilhões

Brasil

Rússia

Índia

China

África do Sul

Fonte: BRICS joint statistical publication (2014, p. 46)

Os líderes dos BRICs (ainda sem a África do Sul) reuniram-se pela primeira vez quando o estabelecimento formal do grupo, em 2008, não estava

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

339

concretizado, por ocasião da Cúpula do G8. A partir deste encontro, ficou definida a organização da I Cúpula dos BRICs, já no ano seguinte, 2009. Desde então, os chefes de Estado e de Governo participam de encontros anuais, tendo sido aprovado o ingresso da África do Sul na Cúpula de Sanya, na China, em 2011, conforme o quadro abaixo: Quadro 1. Cúpulas dos BRICS: locais e datas I CÚPULA

Ecaterimburgo (Rússia)

16 de Junho de 2009

II CÚPULA

Brasília (Brasil)

15 de Abril de 2010

III CÚPULA

Sanya (China)

14 de Abril de 2011

IV CÚPULA

Nova Delhi (Índia)

28-29 de Março de 2012

V CÚPULA

Durban (África do Sul)

27 de Março de 2013

VI CÚPULA

Fortaleza/Brasília (Brasil)

15-16 de Julho de 2014

VII CÚPULA

Ufá (Rússia)

8-9 de Julho de 2015

Fonte: Elaboração própria.

Além das cúpulas anuais, os líderes dos países-membros dos BRICS reúnem-se por ocasião do G-20 Financeiro, onde pressionam por reformas nas instituições de Bretton Woods, nomeadamente, o FMI e o Banco Mundial (ITAMARATY, 2015). Desta forma, os BRICS se estabeleceram como contraponto ao arranjo padrão do sistema internacional, buscando uma horizontalização das relações dentro dessas instituições: A crise de 2008 evidenciou a necessidade de reformas das instituições de governança internacional, especialmente na esfera financeira, que refletissem a nova configuração multipolar, com a ascensão do mundo em desenvolvimento, em geral, e dos grandes emergentes, em particular. Era oportunidade, também, para que os BRICS viessem a aprofundar a cooperação entre si, uma vez que enfrentavam desafios semelhantes em suas trajetórias singulares de desenvolvimento. (DAMICO, 2015, p. 60)

340

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Em 2014, durante a VI Cúpula, foi mais uma vez discutido o desapontamento com relação à questão da reforma no Fundo Monetário Internacional, demandada desde 2010. Conforme a Declaração e o Plano de Ação de Fortaleza5: Continuamos desapontados e seriamente preocupados com a presente não implementação das reformas do Fundo Monetário Internacional (FMI) de 2010, o que impacta negativamente na legitimidade, na credibilidade e na eficácia do Fundo. O processo de reforma do FMI é baseado em compromissos de alto nível, que já reforçaram os recursos do Fundo e devem também levar à modernização de sua estrutura de governança, de modo a refletir melhor o peso crescente das economias emergentes de mercado e países em desenvolvimento na economia mundial. O Fundo deve continuar a ser uma instituição baseada em quotas. Conclamamos os membros do FMI a encontrar maneiras de implementar a 14ª Revisão Geral de Quotas, sem maiores atrasos. Reiteramos nosso apelo ao FMI para formular opções para avançar seu processo de reforma, com vistas a garantir maior voz e representação das economias de mercado emergentes e países em desenvolvimento, caso as reformas de 2010 não entrem em vigor até o final do ano. (BRICS, 2014, Tradução do autor)

No encontro de 2012, a atuação do grupo sobre a questão financeira foi mais contundente. Começava a ser estudada a possibilidade de instituição de um banco de desenvolvimento, promotor de projetos de infraestrutura não apenas para os BRICS, mas também disponibilizando crédito para outros países desenvolvidos e em desenvolvimento. A proposta aventada em 2012 se concretizaria dois anos depois, no encontro de Fortaleza, com a assinatura do Acordo Constitutivo do Novo Banco de Desenvolvimento, cujo aporte inicial foi de US$ 50 bilhões, com capital autorizado inicial de US$ 100 bilhões (DAMICO, 2015). A “Declaração e Plano de Ação de Fortaleza” está disponível em: http://brics.itamaraty.gov. br/pt_br/categoria-portugues/20-documentos/224-vi-cupula-declaracao-e-plano-de-acaode-fortaleza. Acesso em 18 de fevereiro de 2016. 5

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

341

O estabelecimento de um novo banco de desenvolvimento serve a dois propósitos: i) pode ser um vetor de influência no sistema internacional, sendo instrumento de aproximação com os diversos países em desenvolvimento; ii) aparece como tentativa de amenizar problemas históricos de infraestrutura nestes países. É a desobrigação de condicionalidades políticas, ou seja, com uma abordagem oposta à praticada pelo Consenso de Washington, o acesso ao crédito através do banco dos BRICS deve obedecer a compromissos mais horizontais, de benefício mútuo, ampliando as relações Sul-Sul em bases menos assimétricas. Desta forma, o Novo Banco de Desenvolvimento possui um grande valor simbólico, sendo um marco importante nas relações Sul-Sul. O memorando6 do encontro de Fortaleza em 2014 elenca as principais formas de cooperação do Novo Banco de Desenvolvimento, a saber: i.

Acordos, incluindo linhas de crédito, swaps de moeda e emissão de obrigações;

ii. Programas conjuntos para financiamento de projetos; iii. Compartilhamento de informações e mecanismos de acompanhamento de projetos; iv. Garantias e contragarantias para assegurar obrigações; v.

Fundos de investimentos para financiar projetos nos setores e indústrias mais centrais para as partes envolvidas;

vi. Compartilhamento de conhecimento através de consultas, conferências, mesas redondas; vii. Diálogo e reuniões regulares entre os envolvidos e o Novo Banco de Desenvolvimento (BRICS, 2014) Em termos de estrutura organizacional, o NBD foi criado com capital subscrito de US$ 50 bilhões e capital autorizado de US$ 100 bilhões, sendo que os estoques de capital podem ser aumentados a pedido do Conselho de Governadores. Destes US$ 100 bilhões, a maior contribuição foi da China, com US$

Os memorandos das cúpulas dos BRICS, bem como outros documentos e dados estatísticos estão disponíveis em: http://brics.itamaraty.gov.br/pt_br/. Acesso em 17 de fevereiro de 2016. 6

342

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

41 bilhões; Brasil, Rússia e Índia aprovisionaram, cada um deles, a quantia de US$ 18 bilhões; a África do Sul forneceu um aporte de US$ 5 bilhões. Além disso, ficou estabelecida sede em Xangai, na China, e um Centro Regional na África do Sul, sendo o primeiro Presidente do Banco um indiano, o presidente do Conselho de Governadores, russo, enquanto o diretor, brasileiro. Um elemento importante é o chamado Acordo Contingente de Reservas (ACR), cujo objetivo é a criação de barreiras contra instabilidades financeiras e ataques especulativos. Este mecanismo foi concebido como um amortecedor de possíveis flutuações bruscas nos valores das moedas, principalmente no que diz respeito à perda de divisas. Segundo o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, DIEESE (2014, p. 3), esta instabilidade financeira nos países emergentes costuma ocorrer pelos seguintes motivos: i) mudanças na política monetária dos Estados Unidos; ii) tensões diversas na geopolítica mundial; iii) oscilações nos preços das commodities; iv) aumento das taxas de juros no âmbito interno, o que atrai o hot money. Desta forma, o ACR deverá funcionar como uma reserva conjunta de dólares para fins de defesas de agitações especulativas. Nesse contexto, os cinco países do grupo possuem um objetivo comum que os torna coesos, a saber, o esforço pela implementação de estruturas de governança mais democráticas. Diante do desafio de ruptura com a ordem hegemônica vigente, os BRICS aparecem como um dos principais pontos de resistência, cujo grande tema é a proposição de uma ordem global multipolar, menos assimétrica, mais democrática e sem condicionalidades sobre políticas internas. Na tentativa de expandir sua influência, os BRICS se colocam como grande vetor de mobilização em torno das reformas nas instituições internacionais. Apesar disto, conforme destacam Abdenur e Folly (2015, p. 104), “os BRICS têm agido mais como “bloqueadores de normas” (resistindo aos princípios endossados pelas instituições do Norte) do que “empreendedores” de normas (norms entrepreneurs)”. Argumentam ainda que, ainda que sejam elencadas preocupações com questões como “desenvolvimento sustentável”, não existe uma definição vigorosa do que deve ser efetivamente posto em prática no

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

343

âmbito do Novo Banco de Desenvolvimento. Outro ponto de insuficiência registrado pelos autores diz respeito às medidas de avaliação e monitoramento dos projetos, os quais não têm ainda modelos e padrões bem-desenvolvidos. O novo banco dos BRICS aprovou os seus primeiros empréstimos, um total de US$ 811 milhões, para projetos de energias renováveis em quatro de seus países-membros. O chamado Novo Banco de Desenvolvimento (NDB), instalado desde fevereiro na cidade chinesa de Xangai, foi lançado pelo Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul como “uma alternativa ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial (BM), dominados pelos Estados Unidos (France Press, 2016). Segundo seu vice-presidente, o russo Vladimir Kazbekov, “nos próximos meses, nós enfrentaremos um grande trabalho, tendo em vista a necessidade de formar o pessoal do banco, de elaborar os primeiros projetos. É uma tarefa muito grande e séria, que precisa ser realizada para que possamos, até o final de abril [de 2016], preparar para assinatura o primeiro pacote, que conterá pelo menos um projeto de cada uma das partes”. O primeiro pacote de empréstimos aprovado pelo banco tem como denominador comum as energias renováveis e inclui projetos no Brasil, Índia, China e África do Sul, segundo informou um funcionário do banco à AFP. “Há muitos outros projetos em preparação, incluindo alguns russos. Eles estão em diferentes fases de estudo ou avaliação”. A entidade tem como objetivo financiar grandes projetos de infraestrutura e busca fortalecer a cooperação financeira entre os cinco sócios. Segundo o economista Paulo Nogueira Baptista Jr. (2016), representante brasileiro do banco dos BRICS, os projetos brasileiros estão focados em um empréstimo em dois passos com o BNDES, vinculado a três projetos na área eólica, e há outros projetos de energia limpa sendo estudados em outros países.  O projeto brasileiro, disse ele, “é um empréstimo de US$ 300 milhões ao BNDES, que será repassado a empreendimentos privados em áreas como energia eólica e solar. O projeto chinês, denominado em yuan e equivalente a US$ 81 milhões, é na área de energia solar. O sul-africano, de US$ 180 milhões, está direcionado ao financiamento de linhas de transmissão de energia elétrica. O

344

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

projeto indiano é uma linha de crédito de US$ 250 milhões ao Banco Canara, destinada a projetos nas áreas solar, eólica, geotérmica e ao financiamento de pequenas hidrelétricas. Um quinto projeto, com a Rússia, está em fase avançada de negociação”. Para ele, o Banco tem um mandato mais amplo, para mobilizar recursos para financiamento de infraestrutura, de uma maneira geral, e para o desenvolvimento sustentável. “Então vamos explorar várias outras alternativas ao longo deste ano e do próximo. O Novo Banco de Desenvolvimento é talvez um dos poucos bancos multilaterais que tem no DNA a questão da economia verde, porque faz parte do nosso mandato financiar projetos de desenvolvimento sustentável. Então esta vai ser uma grande ênfase do banco. Vamos procurar trabalhar sempre com projetos que contribuam, de maneira positiva, para esta questão crucial para o planeta que é a sustentabilidade.” Do lado do funding, o NBD também está fazendo progresso. Em janeiro deste ano, os sócios-fundadores fizeram o primeiro aporte de capital, conforme previsto no Convênio Constitutivo. A Rússia adiantou a segunda parcela do seu aporte e, assim, o NBD conta com mais capital do que o previsto, num total de US$ 1 bilhão. “Estamos, disse ele, preparando também a primeira emissão de bônus, que deve ocorrer em meados deste ano. Será um bônus verde, emitido em yuan no mercado chinês.” Então, pelos primeiros avanços concretos do NDB vem a se configurar como um banco “verde” tanto do lado do ativo quanto do lado do passivo. A questão da sustentabilidade dos projetos apoiados está sendo e continuará a ser um dos focos fundamentais do NBD, o que representa um grande alento, dada a crise ambiental que anuncia um aquecimento geral do planeta que já ultrapassa os 2º Celsius (KLEIN, NAOMI, 2015). “Estamos apenas começando”, diz Nogueira Baptista, “há uma tarefa imensa pela frente. Temos muito que aprender. Não subestimamos jamais o tamanho do desafio que este banco foi chamado a enfrentar. Afinal, é a primeira vez que um banco que tem a aspiração de ser uma instituição de escopo global está sendo construído exclusivamente por países emergentes, sem a participação de países avançados”.

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

345

Outra perspectiva do Banco é sair da esfera do dólar e poder negociar com as próprias moedas dos sócios. Para Kazbekov, o yuan renminbi, moeda da China, seria uma ótima opção para iniciar o processo. “Tendo em conta a estabilidade da moeda chinesa e do volume do mercado de dívida chinês, eu acredito que a entrada no mercado chinês para fazer empréstimos em yuans será um dos primeiros passos para garantir a criação dos fundos do Novo Banco de Desenvolvimento.” A instalação do NDB em Xangai ocorreu na esteira do estabelecimento em Pequim do BAII (Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura), inaugurado em janeiro. O BAII e o Banco Mundial concordaram na quarta-feira em cofinanciar projetos, dissipando, assim, receios de uma possível rivalidade. Mas, como foi dito por Costa Lima e Ramos (2016), o NDB é parte integrante de uma rede de bancos de desenvolvimento que a China está criando e gerenciando, que pode ser denominada Rede Chinesa de Bancos de Desenvolvimento – RCBD (RAMOS e VADELL, 2016). Essa rede envolve: (i) o China Development Bank (CDB); (ii) o China-Africa Development Bank (CADB); (iii) o China Construction Bank; (iv) o NBD; e (v) o BAIII. A situação econômica dos países do BRICS não é hoje a mesma de alguns anos atrás. Contudo, algumas evidências demonstram a importância do BRICS: desde sua primeira cúpula, as relações comerciais intra-BRICS aumentaram mais de 70% (de US$168 bilhões em 2008 para US$291 bilhões em 2014); a China hoje é o principal parceiro comercial do Brasil, da Rússia e da África do Sul, e o segundo parceiro comercial da Índia (KAUL, 2015). Além disso, e ainda mais importante neste ponto, é perceber que o BRICS, apesar de todos os problemas conjunturais, tem avançado institucionalmente, em uma relação íntima com as recentes transformações da economia política internacional. Vinha se apresentando como uma alternativa real às instituições de Breton Woods. Esta grande janela de oportunidade está ameaçada, ao menos para o Brasil, caso o Golpe seja institucionalizado.

346

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Referências ABDENUR, Erthal A.; FOLLY, M. The New Development Bank and the Institutionalization of the BRICS. Revolutions: Global Trends & Regional Issues, 3(1), p. 66-92, 2015. AGLIETTA, M. Macroeconomia financeira. Mercado financeiro, crescimento e ciclos. São Paulo: Edições Loyola, 2004. AMORIM, Celso. Guinada à direita no Itamaraty. In: BRITO, Fernando. Amorim: o Brasil volta ao cantinho do mundo de onde nunca deveria ter saído. 2016. Disponível em: http://www.tijolaco.com.br/blog/amorim-o-brasil-volta-ao-cantinhodo-mundo-de-onde-nunca-deveria-ter-saido/. Acesso em 12 de junho de 2016. BAPTISTA, Paulo Nogueira Jr. Nogueira Batista: “Sustentabilidade é o foco do Banco do Brics”. 2016. Disponível em: http://www.vermelho.org.br/noticia/276176-2. Acesso em 12 de maio de 2016. BRICS. BRICS: Joint statistical publication: Brazil, Russia, India, China, South Africa. Rio de Janeiro: IBGE, 2014. CAMARA, Mamadou; SALAMA, Pierre. “A inserção diferenciada – com efeitos paradoxais – dos países em desenvolvimento na mundialização financeira”. In: CHESNAIS, François (Org.). A Finança Mundializada. Raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 199-221. CHESNAIS, François. Les dettes illégitimes. Quand les banques font main basse sur les politiques publiques. Paris: Éditions Raison d’agir, 2011. _______. A Finança Mundializada. Raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo, 2005. COELHO, Leudson. Democratização dos meios de comunicação. Observatório da Imprensa, Ano 19, n. 911, edição 769, em 22/10/2013. Disponível em: http://observatoriodaimprensa.com.br/diretorioacademico/_ed769_democratizacao_dos_meios_de_comunicacao/. Acesso em 13 de julho de 2016.

BANCO DOS BRICS: UMA VIA ALTERNATIVA ÀS INSTITUIÇÕES DE BRETTON WOODS?

347

COSTA LIMA, Marcos; RAMOS, Leonardo. “O Fórum BRICS: Êxito ou fracasso? Notas a partir da criação do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS”. Trabalho apresentado no XVI SEFyF, Unam, Ciudad de México, 2016. Livro (Reorganización del financiamiento: Regionalización y Segmentación, no prelo. COSTA LIMA, Marcos; SILVA, Joyce Helena F. The Conservative reaction in Brazil. World Affair, Summer 2016. DAMICO, Flávio. Antecedentes: do Acrônimo de Mercado à Concertação Político-Diplomática. In: BAUMANN, Renato et al. BRICS, estudos e Documentos. Brasília: Funag, 2015. DIEESE. “BRICS, Acordo de Reservas e o novo banco de desenvolvimento: rumo à institucionalização do Bloco”. Nota Técnica nº 139, agosto 2014. FRANCE PRESS. Novo banco dos BRICS aprova seus primeiros empréstimos. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/economia/noticia/2016/04/novo-banco-dos-brics-aprova-seus-primeiros-emprestimos.html. Acesso em 16 de abril de 2016. FLÔRES, Renato G. Jr. BRICS: Abordagens a um Processo Dinâmico. In: BAUMANN, Renato et al. BRICS, estudos e Documentos. Brasília: Funag, 2015. HARVEY, D. O neoliberalismo. História e implicações. 3ª Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2012. ITAMARATY. BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. 2015. Disponível em: http://www.itamaraty.gov.br/pt-BR/politica-externa/mecanismos-inter-regionais/3672-brics. KAUL, Ajay. Brics firms discuss elements of development bank. PTI News, Press Trust of India, 08 de julho de 2015. KLEIN, Naomi. This Change everything. Capitalism vs The Climate. Canadá: Alfred A. Knopf, 2014.

348

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

RAMOS, Leonardo; VADELL, Javier. Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB) and beyond: finance, infrastructure and the seductive claws of the Chinese dragon. Congresso da International Studies Association, Atlanta, 2016. Reuters/Stringer. “BRICS em 2016”. Mundo, 28/01/2016. ROZOWYKWIAT, Joana. “Temer promove ofensiva contra política de distribuição de renda”. Portal vermelho, 12 de julho de 2016 - 18h50. STIGLITZ, Joseph S. The price of Inequality. How Today’s Divided Society Endangers Our Future. New York; London: W. W. Norton & Company, 2012. Disponível em: http://resistir.info/livros/stiglitz_the_price_of_inequ ality.pdf.

Anexo

Capítulo 3. As implicações internacionais do modelo chinês de desenvolvimento do Sul Global: consenso Asiático como network Power Javier Vadell, Leonardo Ramos e Pedro Neves Páginas 70, 71 e 72

“…a political economic practices that proposes that human well-being can best be advanced by liberating individual entrepreneurial freedoms and skills within an institutional framework characterized by strong private property rights, free markets, and free trade. The role of the state is to create and preserve an institutional framework appropriate to such practices. The state has to guarantee, for example, the quality and integrity of money. It must also set up those military, defense, police, and legal structures and functions required to secure private property rights and to guarantee, by force if need be, the proper functioning of markets. Furthermore, if markets do not exist (in areas such as land, water, education, health care, social security, or environmental pollution) then they must be created, by state action if necessary.” (HARVEY, 2005, p. 2) “…was followed because reformers literally did not know where they are going: they were reformers “without a blueprint” and merely seeking ways to ameliorate the obvious serious problems of the planned economy […] the approach to transition was starkly different in Eastern Europe and Boris Yeltsin’s Russia (and Latin America). In those countries, the predominant objective of committed reformers was to move as rapidly as feasible to a modern market economy […] reformers did not believe that their governments could correct distortions in their economy.” (NAUGHTON, 2007, p. 86)

350

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

“Chinese reformers saw unmet needs everywhere in their economies. […] Chinese reformers lowered barriers and gradually opened up their system, giving individuals and groups the opportunity to act entrepreneurially and meet markets demands. […] Foreign businesses were allowed to operate freely in special economic zones because that approach would increase investment in China and might convince foreign corporations to transfer technology to China. Such policies were seen as contributing to growth while not initially threatening the overall ability of the government to manage and direct the economy.” (NAUGHTON, 2007, p. 87) “China has grown by relaying on unique, context-specific local institutional innovations, such as ownership by the local state of township and village enterprises (TVEs), decentralization, and selective financial controls. The conventional mechanisms of growth, such as private ownership, property rights security, financial liberalization and reforms of political institutions, are not central components of China’s growth story.”(HUANG, 2008, p. 13) “...the mechanism of reciprocal control of the ‘rest’ thereby transformed the inefficiency and venality associated with government intervention in a collective good, as well as the ‘invisible hand’ of the control mechanism led by the North Atlantic market turned chaos and selfishness forms of market in a general welfare.”(AMSDEN, 2009, p. 39)

Capítulo 4. Lições do desenvolvimento econômico da China para a América Latina John Ross Página 100

“Personal income is unquestionably a basic determinant of survival and death, and more generally of the quality of life of a person. Nevertheless, income

ANEXO

351

is only one variable among many that affect our chances of enjoying life… The gross national product per head may be a good indicator of the average real income of the nation, but the actual incomes enjoyed by the people will also depend on the distributional pattern of that national income. Also, the quality of life of a person depends not only on his or her personal income, but also on various physical and social conditions… The nature of health care and the nature of medical insurance – public as well a private – are among the most important influences on life and death. So are the other social services, including basic education and the orderliness of urban living and the access to modern medical knowledge. There are, thus, many factors not included in the accounting of personal incomes that can be importantly involved in the life and death of people.” (SEN, 1998, p.6) Página 106

“Life expectancy has a significantly positive relation with GNP per head, but… the relationship works mainly through the impact of GNP on (1) the incomes specifically of the poor, and (2) public expenditure, specifically on public health. In fact, once these two variables are included in the statistical relation, the connection between GNP and life expectancy altogether vanishes. This does not, of course, imply that life expectancy is not enhanced by the growth of GNP per head, but it does indicate that the connection works through public expenditure on health care, and poverty removal.” (SEN, 1998, p. 9) Página 115

“China initiated its reform in late 1978… It fared much better than the former Soviet Union and Eastern European countries that went through the shock therapy proposed by mainstream theories. The prevailing view of many foreign scholars was that the market economy was best, the planned economy was bad, and the dual system combining the market and planned economy was worst. Mainstream [Western] theory urged socialist countries to make

352

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

the leap from a planned to a market economy in a single bound.” (LIN, 2012, p. 154) “From day one the policies [of China] elicited widespread scepticism in international academic circles. But against a wave of criticism China’s economy notched up one amazing achievement after another, producing the ‘China miracle,’ with thirty consecutive years of rapid growth.” (LIN, 2012, p. xv) Página 125

“Most economies can pull two levers to bolster growth: fiscal and monetary. China has a third option. The National Development and Reform Commission can accelerate the flow of investment projects.” (ORLIK, 2012, online) Página 129

“For the first time ever, a decade of strong economic growth within the region saw employment increase and wage inequality drop, contributing to an unprecedented reduction in poverty and an increase in prosperity for all levels of society... average real incomes in Latin America have… risen by more than 25% since the turn of the millennium. And with the lowest wages increasing considerably faster than the regional average, it has been the poorest 40% who have benefitted the most.” (WORLD BANK, 2013)

Capítulo 5. Após a atual crise, qual o futuro da relação estratégica entre a América Latina e a China? Francisco Dominguez Página 137

“The economies of China and Latin America and the Caribbean […] are becoming the contemporary poles of global growth, since the industrialized eco-

ANEXO

353

nomies will be forced to adjust over the next few years to a context of slacker growth and higher unemployment. The present juncture in the international economy invites us to rethink global and regional partnership-building strategies and to afford a greater importance to South-South ties in trade, foreign direct investment (FDI) and cooperation.” (ROSALES E KUWAYAMA, 2012, p.11) “ECLAC argues that relations between China and the Latin American and Caribbean region are mature enough to sustain a leap in quality and to move towards developing strategic ties that can benefit both.” (ROSALES E KUWAYAMA, 2012, p.243) Página 149

“…the constituent agreements of the New Development Bank (NDB) – aimed at the financing of infrastructure projects and sustainable development in emerging economies and developing countries – and the Contingent Reserves Arrangement (CRA) – which has the goal of promoting mutual support amongst the BRICS members in situations of instability in the balance of payments. The initial capital subscribed to the NBD was $50 billion and the authorized capital was $100 billion. The resources allocated to the CRA, in turn, will amount to $100 billion.” (BRICS, 2016) Página 150

“The creation of the Asian Infrastructure Investment Bank (AIIB), as well as other development finance institutions (such as the BRICS’ New Development Bank and the Silk Road Fund), seems not only to herald a new era, but also to provide a valuable continuity with both the post-World War II era and the more recent past. The AIIB and the other new institutions signal a break with the past in that they are mainly South-South multilateral institutions. They use a relatively small part of the abundant foreign exchange resources and savings,

354

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

as well as the expertise, of some emerging economies, especially China, and channel them towards much needed infrastructure in other emerging and developing economies.” (GRIFFITH-JONES, 2015, p.8) Página 156

“Trade between Latin America and China has expanded in an unprecedented way over the last 15 years, but the commodity-based growth model is revealing its limits. China and Latin America have experienced an impressive trade boom since 2000, increasing trade 22-fold. Between 2001 and 2010, mining and fossil fuels exports from Latin America to China grew at an impressive 16% annually, followed by agriculture products at 12%. Today, China is the largest trading partner for Brazil, Chile and Peru. The result is stronger, though uneven, global value chain linkages between China and Latin America. Commodities accounted for 73% of the region’s exports to China (versus 41% worldwide), while technology manufactures only reached 6% (versus 42% worldwide). China’s higher reliance on consumption instead of investment is already reducing its demand for commodities, which, together with the fall of prices, is affecting Latin American commodity exporters.” (OECD/ECLAC/ CAF, 2015, p. 17) Página 158

“In 2013, commodities accounted for 73% of the region’s exports to China, compared to 41% of its worldwide sales. Low-, medium- and high-technology manufactures accounted for just 6% of the region’s exports to China, compared to 42% of its global exports. By contrast, whereas low-, medium- and high-technology manufactures accounted for 91% of Latin American imports from China in 2013, they represented 69% of its global imports.” (ECLAC, 2015, p. 21) “…embrace a second phase of shifting wealth and define a new economic model anchored in productive development policies to improve participation in

ANEXO

355

global value chains, foster economic diversification and strengthen exports of food, services and tourism.” (ECLAC, 2015, p. 21) Página 159

“Latin American and Caribbean nations must carefully consider the China-centred productive integration occurring in Asia and attempt to join the supply and value chains now being formed. To that end, they should foster Chinese investment in the region as well as outward investments by the region in China, and promote alliances between local and Chinese businesses, thus emulating the Asian production integration experience surrounding regional and subregional supply value chains. (…) the most pressing task for governments in the region is to advance an agenda that includes trade, investment, infrastructure, logistics, tourism and technological exchanges in order to foster a strategic alliance with China.” (BÁRCENA et al, 2015b, p. 31) Página 162

“Change has begun. China’s transformation introduces a number of new challenges and opportunities for the region, and they need to be incorporated in its development strategies to achieve economic growth through the broader objectives of upgrading, diversification and integration.” (ECLAC, 2015, p. 170)

Capítulo 6. Investimentos chineses na América do Sul: um desenho das preferências de destino e setores Alexandre Cesar Cunha Leite e Lohana Gabriela Simões de Oliveira Ramos Página 169

“Además de experimentar un rápido crecimiento, China también se integró mucho más en la economía global. Su participación en el comercio mundial

356

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

aumentó de menos del 1 por ciento en 1980 a casi un 8 por ciento, y en 2009 se convirtió en el exportador más grande del mundo por delante de Alemania. El creciente superávit comercial de China ha dado lugar a la acumulación de grandes reservas de divisas y ha convertido al país en un importante comprador de bonos del Tesoro de Estados Unidos.” (JENKINS, 2015, p. 13)

Capítulo 8. O Realismo Chinês de Yan Xuetong Renan Holanda Montenegro Página 208

“Professor Yan gives three reasons for rejecting the “Chinese School” project. First, people other than creators of well-known IR theories generally label them. Second, theories are rarely named after countries; it is more common for a theory to be named according to its core arguments, its creator, or the institution in which it has developed. Third, the term ‘Chinese’ is too broad to designate any theory developed within China. No theory or school of thought can represent the diversity and complexity of China’s history and tradition. It seems to me that these arguments, although reasonable, are largely semantic on the appropriateness of the ‘Chinese school’ label, rather than substantive on why the intellectual agenda itself is on the wrong track.” (FENG, 2011, p. 7) Página 212

“First, the authenticity of these works has no bearing on our ability to draw lessons from them. Even if we grant that the works of the pre-Qin masters were rewritten in the early Han Dynasty, they would still have been written more than two thousand years ago and the ideas in them reflect what people thought about interstate politics at that time or what they thought of politics in the preQin era (…) Second, the history of the Spring and Autumn and Warring States periods can provide us with many instructive examples. In fact, it is not just the relations among Chinese states in that period that were different from interna-

ANEXO

357

tional relations today, but also relations among ancient European states. Yet no one raises any doubts about taking examples from the historical experience set out in Thucydides’ History of the Peloponnesian War to interpret events in contemporary international relations.” (YAN, 2011, p. 202) Página 215

“He sees the ideas of the ruler and chief ministers as the driving force behind state conduct, and therefore the cause of chance in a state’s status is dependent on the ideas of the ruler and chief ministers. He thinks that the ruler’s ideas lead him to choose chief ministers, and this causes changes in a state’s status (…) Nevertheless, Xunzi’s analysis of the cause of conflict resembles that of a dualist. He sees both human desires and material scarcity as the roots of conflict between states (…) At the same time, he sees a class system as an intervening variable in determining the possibility of conflict between states. He holds that if there are no norms for class distinctions, then people will fight over everything.” (YAN, 2011, p. 30) Página 216

“In his analysis, the nature of the international system as a dependent variable has two variants, namely, the system of humane authority and that of hegemony. The dependent variable of international order also has two variants, namely, order and disorder. The independent variable of the nature of the state has two variants, namely, the sage king and the hegemon. Mencius’s definition of humane authority is a state ‘that practices benevolence by virtue’, whereas his definition of hegemonic state is ‘one that pretends to benevolence but uses force.” (XU, 2011, p. 162) Páginas 220

“When human nature is distorted, the relationships among people are also distorted. When human relationships are distorted, conflict will invariably

358

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

arise. Therefore, to prevent violent conflict it is necessary to respect human relationships. The distortion of human relationships is shown in the demise of rituals among people. In human relationships there are hierarchical relationships (ruler and minister, father and son) and relationships of equality (between brothers, spouses and friends). They can all be unified through the principle of benevolence and justice (…) With human relationships in order and the ritual order restored, and once the ruler has adopted the way of benevolence and justice, then a state will no longer harbor thoughts of gain against another. The more there are of this kind of kingdom then naturally the less will be of international conflict.” (XU, 2011, p. 176-177)

Capítulo 11. Aspectos jurídicos e politicos das disputas no Mar da China Meridional Alexandre Pereira da Silva Página 277

“China has indisputable sovereignty over the islands in the South China Sea and the adjacent waters, and enjoys sovereign rights and jurisdiction over the relevant waters as well as the seabed and subsoil thereof. The above position is consistently held by the Chinese Government, and is widely known by the international community. The above Submission by the Socialist Republic of Viet Nam has seriously infringed China’s sovereignty, sovereign rights and jurisdiction in the South China Sea.” Disponível em: . Página 278

“The Hoang Sa (Paracel) and Truong Sa (Spratly) archipelagoes are parts of the Viet Nan’s territory. Viet Nan has indisputable sovereignty over these archipelagoes. China’s claim over the islands and adjacent waters in the Eastern Sea (South China Sea) as manifested in the map attached with the Notes Ver-

ANEXO

359

bale CML/17/2009 and CML/18/2009 has no legal, historical or factual basis, therefore is null and void”. Disponível em: . Página 279

Nota 12 “Rules of Procedures of the Commission on the Limits of the Continental Shelf (CLCS/40/Rev.1), Annex I (Submissions in case of dispute between States with opposite or adjacent coasts or in other cases of unresolved land or Maritime disputes). “1. The Commission recognizes that the competence with the respect to matters, regarding disputes which may arise in connection with the establishment of the outer limits of the continental shelf rests with States”. “5(a) In cases where a land or Maritime dispute exists, the Commission shall not consider and qualify a submission made by any of the States concerned in the dispute. However, the Commission may consider one or more submissions in the areas under dispute with prior consent given by all States that are parties to such a dispute.” Página 280

Nota 13 “Viet Nam wishes to take this opportunity to reaffirm its consistent position that Viet Nam has indisputable sovereignty over the Hoang Sa (Paracel) and Truong Sa (Spratly) archipelagoes”. Disponível em: . Nota 14 “[...] Malaysia has never recognised the Philippines’ claim to the Malaysian state of Sabah, formerly known as North Borneo”[…] the Philippines’ claim to North Borneo clearly, has no basis under international law”. Disponível em: .

360

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Página 281

Nota 15 “Thus far, there is no clear explanation as to the legal basis, the method of drawing, and the status of those separated dotted-lines. It seems that those separated dotted lines may have been the Maritime zones of various disputed small features in the waters of South China Sea […] the so-called ‘nine-dotted-lines map’ […] clearly lacks international legal basis and it is tantamount to upset the UNCLOS 1982”. Disponível em: . Página 282

Nota 17 “[…] since 1930s, the Chinese Government has given publicity several times the geographical scope of China’s Nansha Islands and the names of its components”. Disponível em: . Página 283

“The Government of the Republic of China reiterates that the Diaoyutai Islands, Nansha Islands (Spraly Islands), Shisha Islands (Paracel Islands), Chungsha Islands (Macclesfield Islands), and Tungsha Islands (Pratas Islands) as well as their surrounding waters are the inherent territories and waters of the Republic of China based on the indisputable sovereignty titles justified by historic, geographic and international legal grounds. Under international law, the Republic of China enjoys all the rights and interests over the foregoing islands, as well as the surrounding waters and sea-bed and subsoil thereof.” (REPUBLIC OF CHINA [TAIWAN], 2009)

ANEXO

361

Página 284

Nota 22 “Japan shall be stripped for all the islands in the Pacific which she has seized or occupied since the beginning of the first World War in 1914, and that all the territories Japan has stolen from the Chinese, such as Manchuria, Formosa, and the Pescadores, shall be restored to the Republic of China. Japan will also be expelled from all other territories which she has taken by violence and greed”. [Posteriormente, em 8 de setembro de 1951, foi assinado um tratado de paz entre o Japão e as potências aliadas, conhecido como Tratado de San Francisco. No artigo 2º (f) consta que:] “Japan renounces all right, title and claim to the Spratly Islands and to the Paracel Islands”. Página 285

Nota 24 “The breadth of the territorial sea of the People’s Republic of China shall be twelve nautical miles. This provision applies to all territories of the People’s Republic of China including the Chinese mainland and its coastal islands, as well as Taiwan and its surrounding islands, the Penghu Islands, the Dongsha Islands, the Xisha Islands, the Zhongsha Islands, the Nansha Islands and all other islands belonging to China which are separated from the mainland and its coastal islands by the high seas”. Disponível em: . Página 286

Nota 25 Law on the Territorial Sea and Contiguous Zone. Dispõe em seu artigo 2.2: “The PRC’s territorial land includes the mainland and its offshore islands, Taiwan and the various affiliated islands including Diaoyu Island, Penghu

362

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Islands, Dongsha Islands, Xisha Islands, Nansha (Spratly) Islands and other islands that belong to the People’s Republic of China”. Disponível em: . Página 286

Nota 26 “The People’s Republic of China reaffirms its sovereignty over all its archipelagoes and islands as listed in article 2 of the Law of the People’s Republic of China on the Territorial Sea and Contiguous Zone which was promulgated on 25 February 1992”. Disponível em: . Página 288

Nota 31 “Under the existing framework of international law, the factors generating historic rights should be included in the process of dispute settlement. It is worth noting that historic rights do not conflict with the provisions of the LOS Convention, and are confirmed by general international law.” (ZOU; LIU, 2015, p. 69-70) Página 290

Nota 33 “The parties concerned agreed to resolve their disputes in the South China Sea through friendly consultations and negotiations in accordance with universally recognized international law, including the 1982 UN Convention on the Law of the Sea”. Disponível em: .

ANEXO

363

Página 294

Nota 40 “The Government of the People’s Republic of China does not accept any of the procedures provided for in Section 2 of Part XV of the Convention with respect to all the categories of disputes referred to in paragraph 1(a)(b) and (c) of Article 298 of the Convention”. Disponível em: . Nota 41 PCA Case n. 2013-19. Arbitral Tribunal Constituted under Annex VII to the 1982 United Nations Convention on the Law of the Sea between the Republic of Philippines and the People’s Republic of China. Award on Jurisdiction and Admissibility. 29 October 2015. Nota 42 “[…] despite its non-participation in the proceedings, China is a Party to the arbitration and is bound under international law by any awards rendered by this Tribunal”. Idem

Sobre os autores

Adriana Erthal Abdenur

(PhD Princeton, AB Harvard) é Fellow do Instituto Igarapé, no Rio de Janeiro. Pesquisa o papel das potências emergentes, inclusive os BRICS, no desenvolvimento e na segurança internacionais. É bolsista de produtividade pelo CNPq.  Publicou artigos recentes nos periódicos Cambridge Review of International Affairs, International Peacekeeping, Global Governance, Third World Quarterly, IDS Bulletin, Journal of Peacebuilding & Development, Revista Brasileira de Política Internacional, Africa Review e Georgetown Journal of International Affairs. É coautora do livro India China: Rethinking Borders and Security (2016) e co-organizadora, com Thomas G. Weiss, do livro Emerging Powers and the UN (Routledge, 2015). Alexandre Cesar Cunha Leite

Professor e pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB) e do Programa de Pós-Graduação em Gestão Pública e Cooperação Internacional da Universidade Federal da Paraíba (PGPCI/UFPB). Coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ásia Pacífico (GEPAP/UEPB/CNPq). Alexandre Pereira da Silva

Pós-doutor em Direito pela Schulich School of Law, Dalhousie University, Halifax, Canadá. Professor adjunto de Direito Internacional Público e pesquisador associado do Instituto de Estudos da Ásia (IEASIA) da Universidade Federal de Pernambuco. Visiting Fellow no China Institute of Boundary and Ocean Studies (CIBOS) da Wuhan University, Wuhan, China.

366

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Alicia Girón

Pesquisadora do Instituto de Investigaciones Económicas da Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM). A autora contou com o apoio do Seminario Universitario de Estudios Asiáticos da UNAM (SUEA-UNAM). Amit Bhaduri

Professor emérito da Jawaharlal Nehru University, Delhi. Doutor pela Universidade de Cambridge, GB, foi professor visitante do Colégio de México e das universidades de  Stanford, Viena, Linz, Bologna e Bremen. Pesquisador da UNIDO, em Viena. Suas pesquisas recentes concentram-se nos aspectos teóricos e saídas políticas associados com processos de transição econômica e globalização.  Publicou, entre outros,  The Economic Structure of Backward Agriculture (Londres e Nova York, Academic Press, 1983),  Macroeconomics: The Dynamics of Commodity Production  (Londres, Macmillan, 1986),  Unconventional Economic Essays (Delhi, Oxford University Press, 1993), The Intelligent Person’s Guide to Liberaliza-tion (Delhi, Penguin Books, 1996) (coautor), On the Border of Economic Theory and History  (Delhi, Oxford University Press, 1999). Em português, publicou o livro Desenvolvimento com dignidade: a busca do pleno emprego (DF, Thesaurus, 2006). Recebeu o Prêmio Leontief 2016.  Francisco Dominguez

Professor Sênior da Universidade de Middlesex, onde é diretor do Grupo de Pesquisa sobre Estudos Latino-Americanos; Secretário Nacional da Campanha de Solidariedade da Venezuela. Domingues foi para o Reino Unido em 1979 como refugiado político do Chile; desde então, tem atuado em questões latino-americanas, tema sobre o qual frequentemente escreve e publica. Guoping Li 

Professor na Escola de Administração Pública da Universidade de Beijing. Nasceu em 1961, na província de Heilongjiang, na China. Em 1996 terminou seu doutorado em Ciências na Universidade de Tóquio. Sua pesquisa concentra-se em geografia econômica e planejamento regional e urbano. Possui

SOBRE OS AUTORES

367

diversas publicações sobre urbanização, aglomerações urbanas e desenvolvimento regional.  Henrique Altemani de Oliveira

Pesquisador 1C do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq). É coordenador do Grupo de Estudos Ásia-Pacífico. Javier Vadell

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre as Potências Médias (GPPM). John Ross

Pesquisador Sênior do Instituto Chongyang para Estudos Financeiros, da Universidade Renmin da China, em Beijing. Foi professor visitante da Universidade de Xangai Jiaotong. É ex-diretor de Políticas Comerciais e Econômicas para o prefeito de Londres. Seu livro Yi Pan Da Chi? Zhonguo Xin Mingyun Jiexi (O grande jogo de xadrez: Uma nova perspectiva sobre o destino da China) tornou-se o livro sobre política econômica mais vendido na Amazon China. Foi premiado por suas colunas sobre o setor privado (Sina Finance), sobre o Estado (China.org.cn) e em mídias acadêmicas (Guancha.cn) na China. Desde 1992, Ross escreveu mais de 200 artigos sobre a economia chinesa e sua relação com a economia mundial, publicados em inglês, chinês, francês, espanhol, russo e português. Tem mais de 400 mil seguidores no  weibo, o equivalente chinês ao Twitter. Joyce Helena Ferreira da Silva

Graduada em Economia e mestra em Ciência Política. Atualmente, é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política pela Universidade Federal de Pernambuco. É membro do Núcleo de Estudos e Pesquisas Regionais e do Desenvolvimento (D&R-UFPE) e pesquisadora-associada do Instituto de Estudos da Ásia (IEÁSIA- UFPE). 

368

PERSPECTIVAS ASIÁTICAS

Leonardo Ramos

Professor do Departamento de Relações Internacionais da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-Minas). Coordenador do Grupo de Pesquisa sobre as Potências Médias (GPPM). Lohana Gabriela Simões de Oliveira Ramos

Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB) e membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Ásia-Pacífico (GEPAP/UEPB/CNPq). Bolsista CAPES. Marcos Costa Lima

Graduado em Philosophie politique (Universidade de Montpellier 2 Sciences et techniques); tem mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco; doutorado em Ciências Sociais pela Unicamp; pós-doutorado pela universidade Paris XIII-Villetaneuse. É professor do Departamento de Ciência Política da UFPE; coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas Regionais e do Desenvolvimento (D&R-UFPE); coordenador do Instituto de Estudos Asiáticos/UFPE; membro da diretoria do Centro Internacional Celso Furtado e da Associação Brasileira de Relações Internacionais (ABRI). Tem experiência em Ciência Política, com ênfase em política econômica internacional, atuando principalmente com Teorias do Desenvolvimento, Teoria Política Internacional, Globalização, Dinâmicas do Capitalismo, Região: Brasil, Mercosul, América do Sul, e Política Internacional Comparada. Michael Dunford 

Professor visitante no Instituto de Ciências Geográficas e Pesquisa em Recursos Naturais, da Academia Chinesa de Ciências e professor emérito na Escola de Estudos Globais da Universidade de Sussex. Especializado em Geografia Regional e Urbana/Econômica, pesquisa o aumento da desigualdade, convergência/divergência e coesão social em escala global, com foco na Eurásia ou, mais especificamente, na China e na União Europeia. Sua pesquisa atual é financiada pela Fundação Nacional de Ciências Naturais da China e é focada

SOBRE OS AUTORES

369

na ascensão da China e do modelo social chinês. Dunford publicou quase 300 artigos em jornais e capítulos de livros, dez livros e monografias. O mais recente destes foi editado por Liu Weidong e chama-se “The geographical transformation of China” (Routledge, 2015) (“A transformação geográfica da China”, em tradução livre.) Pedro Neves

Professor do Curso de Relações Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte. Membro do Grupo de Pesquisa sobre as Potências Médias (GPPM). Renan Holanda Montenegro

Mestre em Relações Internacionais (UERJ) e doutorando em Ciência Política (UFPE). Pesquisador associado do Instituto de Estudos da Ásia (UFPE). Weidong Liu

Professor de Geografia Econômica e diretor-assistente do Instituto de Ciências Geográficas e Pesquisa de Recursos Naturais, Academia Chinesa de Ciências, Beijing, China. Ymei Yin

Instituto de Turismo, Universidade Beijing Union. Uma mulher muito gentil e generosa. In memorian. Yun Hou 

Cursando seu primeiro ano de doutorado no Departamento de Estratégias e Políticas da Escola de Comércio da Universidade Nacional de Singapura. Nasceu em 1992, na província de Hunan, na China. Fez graduação e mestrado na Universidade de Beijing, sob orientação do professor Guoping Li. Zhigao Liu

Academia Chinesa de Ciências, Beijing, China. Economia do Desenvolvimento, Geografia Econômica, História Econômica.

Outro títulos da Coleção Pensamento Crítico

1. Saúde, Cidadania e Desenvolvimento Organização: Amélia Cohn O livro foi inspirado no seminário homônimo, realizado pelo Centro Celso Furtado, em maio de 2012, quando reuniu alguns dos mais importantes atores no universo da saúde no Brasil, além de duas especialistas latino-americanas: Asa Cristina Laurell e Carolina Tetelboin. Editora E-papers: www.e-papers.com.br/pensamentocritico

2. Celso Furtado e a Dimensão Cultural do Desenvolvimento Organização: Rosa Freire d’Aguiar O livro evento a respeito do tema realizado pelo Centro Celso Furtado, em novembro de 2011; e mais um seleto conjunto de artigos. Editora E-papers: www.e-papers.com.br/pensamentocritico

3. Os Boêmios Cívicos. A assessoria econômico-política de Vargas (1951-1954) Organização: Marcos Costa Lima O livro destaca a imensa contribuição à construção do Estado brasileiro moderno dada pelo grupo de intelectuais que trabalhava nas madrugadas do Palácio do Catete. Editora E-papers: www.e-papers.com.br/pensamentocritico

4. Novas Interpretações Desenvolvimentistas Organização: Inez Silvia Batista Castro Este livro reúne oito artigos que tratam da heterogeneidade regional brasileira, do atual padrão de desenvolvimento e da inserção do país no contexto internacional, reforçando o pensamento atual de Celso Furtado. Editora E-papers: www.e-papers.com.br/pensamentocritico

5. Percepções sobre desigualdade e pobreza. O que pensam os brasileiros da política social? Coord. Lena Lavinas Este livro, fruto de pesquisa financiada pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), é um denso trabalho de investigação sobre o que pensam os brasile iros acerca dos rumos da política social no país. Inicia-se uma nova parceria editorial com a Folio Digital. Livro disponível nas versões: E-pub, pdf e impressa.  www.foliodigital.com.br

Veja essas e outras informações sobre as atividades desenvolvidas pelo Centro Internacional Celso Furtado em: www.centrocelsofurtado.org.br www.bibliotecacelsofurtado.org.br www.cadernosdodesenvolvimento.org.br

Curta nossa página: www.facebook.com/centrocelsofurtado

Siga-nos: www.twitter.com/centrocfurtado

Acesse nosso canal: www.youtube.com/user/CentroCelsoFurtado1

Barry Buzan escreveu em 2010 um instigante e denso artigo sobre as possibilidades e os desafios que a China tem para manter sua ascensão pacificamente. O autor, diferentemente de Meashheimer e Fred Halliday, entende que o projeto é factível, contudo, que será muito mais difícil do que tem sido nas últimas três décadas. A China terá de pensar fortemente sobre si, sobre suas questões internas e sobre a sociedade internacional na qual é hoje um dos maiores players. Este processo, em meio a uma crise ainda sem descortino, criará fortes tensões – por exemplo, com os Estados Unidos da América e com o Japão, sem que possa repetir a sua experiência de sucesso desde 1978. O país está mais bem posicionado do que a maioria das grandes potências para se sair bem e não poderá manter uma distância confortável dos problemas hoje enfrentados pelo Ocidente. Querendo ou não, a China será demandada para uma ação internacional à altura de sua atual condição de grande potência. Neste sentido, a dimensão da paz e a afirmação categórica desta premissa podem representar um valor inestimável de superação da crise capitalista.

MARCOS COSTA LIMA Organizador

Realização:

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.