As intermitências da prisão. Revista Panóptica, v. 4, n. 2 (2009)

June 3, 2017 | Autor: Pedro Brocco | Categoria: Filosofia do Direito, Ética e Filosofia Moral
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Revista Eletrônica Acadêmica de Direito

Law E-journal

PANÓPTICA

As intermitências da prisão

The intermittency of the prison

Pedro Dalla Bernardina Brocco Bacharelando da Faculdade de Direito de Vitória.

Resumo: O trabalho se propõe a mostrar algumas imagens das prisões a partir de recortes históricos, dos discursos e enunciados que aí são encontrados. Ver-se-á que o surgimento da prisão tal como a conhecemos deu-se de uma forma descontínua e intermitente, mas, por outro lado, de maneira precisa, calculada e estratégica. O objetivo é colocar para o leitor não tanto o que se deve fazer para que se reforme o sistema prisional, retirando dele o máximo de eficiência em punir ou maior respeito aos direitos humanos, mas situar, na própria formação deste sistema, seus objetivos, seus jogos, seus discursos. No curto percurso da história das punições aqui abordado, do século XVII ao XX, será mostrado que o humanismo, a eficiência em corrigir, a obediência e a vigilância estarão todos relacionados em locais precisos, que trabalharão juntos em uma rede múltipla e complexa que constituirá o sistema carcerário, simbolizado, sobretudo, pelas prisões.

Palavras-chave: punição; vigilância; normalização.

1 INTRODUÇÃO

A prisão como forma punitiva hegemônica é um fenômeno global de não mais de dois séculos: sabe-se que ele desempenha um papel central na atividade de punir e corrigir os criminosos. Sabe-se também que ela é, ainda, o principal instrumento utilizado pelo Direito

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Penal para realizar os seus objetivos de defender a sociedade, prevenir o crime e corrigir o criminoso. Porém, é notória a crise pela qual passa a instituição carcerária no Brasil. A criminalidade aumenta, os presídios permanecem cheios, uma divisão cada vez mais latente se forma entre cidade e favela, asfalto e morro, “cidadão de bem” e bandido. Este trabalho procurará mostrar de onde a prisão tirou o seu fundamento e quais são os seus verdadeiros objetivos. Veremos que ela não cessa de dar-se como solução a problemas que a acossam sistematicamente já há algum tempo. A primeira tarefa que se faz necessária é reconstituir o momento da passagem da punição à vigilância na história da repressão. O método utilizado será o histórico-analítico, e como base teórica serão utilizados os escritos de Michel Foucault, mais precisamente sua obra Vigiar e Punir. Seus trabalhos, apesar de terem um foco maior na Europa, não serão um empecilho para serem pontos de referência para países como o Brasil, visto terem as prisões tomado forma global e generalizada no mundo ocidental a partir do século XIX e estarem até hoje produzindo efeitos.

2 DA PUNIÇÃO À VIGILÂNCIA

A cena punitiva característica para crimes de regicídio na primeira metade do século XVIII é aquela narrada no início de Vigiar e Punir 1, relativa ao suplício de Robert-François Damiens, executado em 1757 por ter atacado o rei da França com uma faca: o corpo que sobe ao cadafalso e é exposto em suas agruras e sofrimentos; a situação-exemplo do exercício do poder do soberano sobre o seu oposto, o corpo supliciado, mutilado, estraçalhado: ali onde aparece a verdade do crime, quem o cometeu, quem se vinga através do verdugo.

Este ritual de maceração e suplícios possuía como objetivo menos mostrar por qual motivo as leis são aplicadas, mas quais são os inimigos e as forças ameaçadoras; procura renovar o poder soberano em manifestações singulares, eventuais e descontínuas – renovação de um poder que acontece nos rituais que ostentam uma realidade de superpoder. Por isso era necessário que os suplícios acontecessem em lugares públicos e aparecessem em sua forma mais cruel aos olhos ávidos dos espectadores, que, de antemão, esperavam o seu provável, sangrento e teatral desfecho.

1

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

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O suplício penal, contudo, não consistia em qualquer punição corporal ou na manifestação de uma justiça sem controle: era a produção diferenciada e calculada de sofrimentos, através de rituais organizados para a marcação das vítimas(ou pacientes) e para a manifestação do poder punitivo. Um poder que exatamente nos “excessos” dos suplícios se investe e se aloja: são nos suplícios aparentemente desmesurados que se investe toda a economia do poder.

O corpo do criminoso, no interior dessas práticas, não cessa de aparecer. Logo após a conclusão do processo criminal – que, curiosamente, era secreto –, e concluída a culpa, o corpo é submetido, à luz do dia, ao castigo público, a levar a verdade do crime que cometeu. É exposto, mostrado, passeado; serve como suporte público de um processo que ficara até então obscurecido. Ao mesmo tempo, o corpo fala, atesta a culpa, passeia pelas ruas e cruzamentos com cartazes pendurados nas costas, no peito ou na cabeça “para lembrar a sentença”. Em seguida, o documento de condenação é lido à porta das igrejas e ao pé do patíbulo, diante do qual o condenado reconhece solenemente seu crime: o corpo que complementa as atividades dos magistrados, até então à sombra, que age como um “parceiro” na acusação, no desdobramento da condenação.

O apelo indeclinável à confissão do crime continua, sob os olhos do público, no suplício. Ali, diz Foucault 2, se cada um dos atores desempenha bem seu papel, a cerimônia penal tem a eficácia de uma longa confissão pública. O corpo fica ainda “preso” ao seu suplício depois de executado: o cadáver é exposto no local do crime ou num dos cruzamentos mais próximos.

Houve ainda, de forma muito rica, a utilização de suplícios “simbólicos”, nos quais a forma de execução faz lembrar a natureza do crime: corta-se a língua dos blasfemadores, queimamse os impuros, corta-se o punho que roubou, ostenta-se junto ao corpo o objeto usado para cometer o crime, etc. É esta velha jurisprudência que, segundo Vico, “foi toda uma poética” 3.

A crueldade da punição terrena é o prelúdio da punição futura; também, por outro lado, esboça a promessa do perdão eterno. O “quanto” o supliciado poderá agüentar pode ser a prova de sua inocência ou de sua beatitude, do erro ou acerto dos juízes e da compatibilidade

2 3

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 39. Ibid, p.39

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entre o julgamento dos homens e o de Deus: daí a curiosidade popular em torno do cadafalso – ali o supliciado será julgado em seus últimos atos.

Da tortura à execução, portanto, o corpo produz e reproduz a verdade do crime. Através do jogo de rituais e de provas, confessa o acontecimento do crime, mostra que o leva inscrito em si e sobre si, através das práticas ostensivas dos castigos.

O corpo várias vezes supliciado sintesa a realidade dos fatos e a verdade da informação, dos atos de processo e do discurso do criminoso, do crime e da punição. Peça essencial, conseqüentemente, numa liturgia penal em que deve constituir o parceiro de um processo organizado em torno de direitos formidáveis do soberano, do inquérito e do segredo. (FOUCAULT, 1987, p.41) O suplício judiciário deve ser entendido como uma forma de defesa contra o ataque direto ao soberano: ataque pessoal, pois a lei emana de sua vontade; ataque “físico”, pois a força da lei é a força do príncipe. Neste ínterim é que possui funcionamento o castigo corporal – em torno da soberania, onde as leis são feitas a partir do núcleo maciço do poder régio – que antes de tudo rechaça os ataques ao ordenamento jurídico que simboliza o soberano. O corpo do rei, aqui, não é simplesmente uma metáfora, mas uma realidade política.

A partir da segunda metade do século XVIII, porém, surgem as grandes teorias da reforma penal. Cresce em toda parte o protesto contra os suplícios levado a cabo por filósofos, teóricos do direito, magistrados e legisladores das assembléias. Reivindicam penas moderadas, proporcionais aos delitos e que respeitem a humanidade: é que mesmo no pior dos assassinos pode ser encontrada a centelha da “humanidade” – conceito universal e irredutível, prelúdio da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Doravante, a noção de humanidade surge como limite de direito, fronteira do poder legítimo de punir. A própria punição, aliás, deve ficar menos vinculada à vingança ilimitada do soberano: surge o homem-medida do poder.

Este homem-limite ocupa um lugar precípuo, estratégico, na economia do poder que começa a se formar; o eixo se desloca do carrasco, aquele que agia em nome do rei e executava o inimigo, para esta nova e lírica figura do homem, digno de castigos “humanos”, mais suaves e não opressivos.

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O funcionamento desta nova economia do poder é fenômeno complexo e digno de diversas abordagens. Em primeiro lugar, talvez viu-se que a crueldade ilimitada das antigas penas fosse um desafio lançado pelo soberano aos seus súditos que, acostumados a ver jorrar sangue, poderiam aceitá-lo um dia através de vinganças igualmente sangrentas. Nas cerimônias públicas de maceração percebia-se também o choque entre o poderio armado da justiça e a massa amedrontada, ameaçada, mas não menos encolerizada.

É certo também que o crime sofreu uma mudança de finalidades ou objetivos: desde o fim do século XVII notou-se uma diminuição considerável de crimes de sangue em detrimento de delitos contra a propriedade – o roubo e a vigarice tornaram-se mais comuns que os assassinatos, os ferimentos a golpes. A criminalidade, com efeito, antes ocasional e difusa, freqüente nas classes pobres, dá lugar àquela limitada e hábil. Os criminosos do século XVIII são aqueles “velhacos, espertos, matreiros que calculam” 4. Um movimento global desloca a ilegalidade do ataque aos corpos para o desvio dos bens. Nota-se, neste período, o surgimento do aparelho policial destinado a impedir o crescimento de uma criminalidade organizada e vigiar o corpo social. Deve-se juntar, ao conjunto de precauções que levou ao surgimento do aparelho policial, a crença de uma criminalidade crescente e ameaçadora. A polícia nasce, portanto, da necessidade de proteção dessa nova forma material da fortuna: a polícia de Londres surgiu e se firmou a partir da demanda de proteção e vigilância de docas, entrepostos, armazéns, estoques, etc. Seu chefe-geral, Colquhoun, era, até então, um comerciante.

A criminalidade sofre mudanças influenciadas pela modificação da produção de riquezas e sua valorização, maior importância dada à propriedade e suas relações e policiamento mais estreito da população, com técnicas mais apuradas de descoberta, captura e coleta de informações: afinamento das práticas punitivas a partir de um deslocamento das ilegalidades.

Talvez venha à tona a seguinte questão: a mudança das punições atende mesmo ao respeito à humanidade dos condenados, ou simplesmente corresponde à necessidade que emerge com a nova criminalidade? Decerto vigiar o comportamento cotidiano das pessoas, sua identidade e seus gestos mais banais torna-se politicamente mais útil do que manifestações descontínuas e ilimitadas de poder.

4

Ibid, p. 65.

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Sobre isso, talvez os reformadores estejam de acordo: antes de criticar as práticas cruéis e arcaicas ou a arbitrariedade da justiça, estão eles criticando uma justiça que ora comete excessos, ora sutilezas; uma justiça lacunosa e incerta, dependente diretamente das vontades dos magistrados amarrados ao superpoder do soberano. O verdadeiro motivo desta reforma ampla e global é estabelecer e consolidar a nova economia do poder de castigar, assegurar uma melhor distribuição, fazer com que não fique concentrado demais em determinados pontos nem partilhado entre instâncias que se opõem, que possa ser exercido por circuitos homogêneos e em toda parte, de forma contínua e calculada.

O movimento da reforma foi articulado, se observada a quantidade de militantes – de filósofos a magistrados inseridos no mecanismo penal – marchando em direção aos mesmos objetivos. Beccaria escrevia em favor do fim das acusações secretas e dos interrogatórios sugestivos, práticas comuns da instrução penal na Idade Média, quando a luz deveria incidir nas execuções e nos rituais que as sucediam e as ultrapassavam. As acusações públicas, escreve Beccaria, citando Montesquieu, estão de acordo com o espírito do governo republicano, no qual o cuidado do bem geral deve ser a primeira paixão dos cidadãos 5.

Há um esforço que aponta para uma tenacidade das vontades, sob os princípios republicanos e contratualistas, onde os súditos devessem celebrar o contrato de cidadania, formando assim uma nação digna de honras e zelos dos mais apaixonados. Parece que toda uma conjectura de conservação e aumento dos poderes individuais figura por trás das teorias contratualistas; aos cidadãos cabe construir, conservar e gerir a nação, porém sem abrir mão do conceito de soberania, próprio das monarquias absolutistas. O poder, antes agindo “no” corpo social, agudizando-se quando necessário, sofre um deslocamento, e passa a ser exercido mais “sobre” o corpo social, no sentido da continuidade e da permanência de uma vigilância contínua e da formação, acúmulo e circulação de todo um saber acerca deste mesmo corpo.

Para ilustrar este momento, possui grande utilidade a célebre obra de Rembrandt intitulada “A Lição de Anatomia do Dr. Tulp”, ainda da primeira metade do século XVII, que mostra a nascente medicina moderna, com seus especialistas, realizando estudos sobre um corpo cujo antebraço esquerdo apresenta um profundo corte longitudinal. Curiosamente, este corpo

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BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006, p.34.

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examinado era de um criminoso condenado à morte. Ora, aqui há uma grande mudança no mecanismo penal: de alguma forma, foi politicamente mais útil usar o corpo do criminoso para perscrutá-lo, examiná-lo, dissecá-lo, ao invés daquela exposição pública e a atuação esmagadora do poder punitivo. Um saber sobre o “homem” começa a se formar, não exatamente para tirá-lo das garras do poder desumano do déspota, em nome da “humanidade”, mas para cumprir a nova exigência de seu funcionamento: a de classificar, analisar os gestos, as personalidades, estabelecer o corpo doente e o são; um poder que “cria” o homem para sobre ele agir. O corpo, agora, em nome do qual o poder funcionará, será o da sociedade; funcionamento de uma proteção, segundo Foucault, quase médica: em lugar dos rituais de restauração da integridade do monarca, aplicam-se receitas, terapêuticas como a eliminação dos doentes, controle dos contagiosos, exclusão dos “degenerados”. Para coroar o edifício do contrato social e ao mesmo tempo disseminar a certeza e a segurança inerentes a este pacto, são promulgadas as codificações, as constituições das nascentes repúblicas, etc. Os códigos penais atendem aos objetivos que dizem respeito às especificações ideais de cada crime e sua correlata punição.

De forma exaustiva, faz-se a cobertura de todo o campo de ilegalidades que se pretende reduzir, qualificando infrações e estabelecendo penas, de forma a extinguir qualquer expectativa de impunidade. A certeza da não-impunidade e da aplicação inexorável das leis passa a ser a pedra de toque dos mecanismos penais: agora, mais importante do que a ação direta sobre o corpo, como forma de prevenir e exemplificar, está o uso de representações acerca dos corpos apenados – o medo causado nos espíritos dos que não cometeram a falta, aliado a um sofrimento mínimo no corpo do infrator.

É necessário um código que explicite crimes e penas, e que nenhum crime escape ao olhar dos encarregados de fazer a justiça – antes da severidade é preciso vigilância. Surge a idéia de que o instrumento de justiça seja acompanhado por um órgão de vigilância que lhe esteja submetido, que tenha o objetivo de impedir crimes e prender seus autores – a atuação conjunta entre polícia e justiça. A polícia que garantirá a “ação da sociedade sobre cada indivíduo”, e a justiça, os “direitos dos indivíduos contra a sociedade”. A polícia que antes poderia ser encontrada na guarda-real, agora é aquela que atua na vigilância de bens, armazéns, entrepostos comerciais e no nascente “policiamento social”.

O corpo dos

condenados, antes coisas do rei, instâncias de aplicação do poder real e das marcas-vinditas, torna-se um bem social, objeto de utilidade apropriado pela coletividade.

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Aí surge um problema essencial: o mesmo castigo não tem a mesma força para todos. O rico não se importa tanto em pagar multas e a infâmia não incomoda a quem já está exposto. Se dois homens cometem o mesmo crime, é necessário estabelecer o mais culpado, o mais nocivo para a sociedade.

Tal tarefa só será possível com o exame da personalidade do infrator. Na verdade, no final do século XVIII, não se pode falar, ainda, em exames psicológicos. De qualquer maneira, observa-se o nascimento das individualizações da pena, a partir de características intrínsecas ao apenado. A criminalidade começa a ocupar o lugar do crime como objeto da intervenção penal.

A prisão figurava como um tipo de pena possível, correlata ao tipo de crime, ou como condição para a execução de certas penas, como o trabalho forçado. Todavia, não cobria todo o campo das penalidades: isto iria contra a posição de muitos reformadores, preocupados em responder às especificidades dos crimes. A idéia de reclusão penal, como mostra Foucault, é explicitamente criticada por muitos reformadores, porque

(...) é desprovida de efeito sobre o público. Porque é inútil à sociedade, até nociva: é cara, mantém os condenados na ociosidade, multiplica-lhes os vícios. Porque é difícil controlar o cumprimento de uma pena dessas e corre-se o risco de expor os detentos à arbitrariedade de seus guardiães. Porque o trabalho de privar um homem de sua liberdade e vigia-lo na prisão é um exercício de tirania.” (FOUCAULT, 1987, p.95)

O posicionamento dos reformadores se opunha às arbitrariedades de punir do soberano; o edifício punitivo das sociedades deveria ser um “livro aberto”, inteligível e acessível a todos, algo como um léxico dos crimes e dos castigos correspondentes. As penas seriam mais educativas do que aflitivas e amedrontadoras: o tempo seria o verdadeiro operador da pena e peça importante em sua economia. O castigo deveria durar o suficiente para mostrar os sinais da punição aos cidadãos e requalificar o infrator como sujeito de direitos; deveria agir sugerindo algo de utilidade pública, a retribuição àquele que lesou a coletividade. Enfim, deveria parecer natural e útil – porque presente nos códigos, porque defensor da sociedade.

Agora todo o processo punitivo seria colocado à luz. Que não haja interrogatórios secretos, torturas, arbitrariedades; que os magistrados ajam de acordo com os códigos. Que as penas

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correspondam aos atos, e todos possam vê-la acontecer; que sejam utilizadas as técnicas de pena-efeito, pena-representação, pena-sinal e discurso. Ora, a prisão é incompatível com estas técnicas. Ela é a “escuridão, a violência e a suspeita.” 6 Representa o lugar onde o olho do cidadão não consegue penetrar.

As instituições coercitivas fechadas e impenetráveis certamente não figuravam nos planos dos reformadores enquanto locais adequados para a aplicação das penas. Estas deveriam estar presentes e visíveis em todo o espaço social, agindo no interior de uma cidade punitiva. O objetivo seria o de difundir o jogo social de sinais de castigo, com penas que “naturalmente” derivariam dos crimes; espetáculos quase teatrais, a fim de anular o crime e a criminalidade, fazer circular os significados, requalificar o infrator como sujeito de direitos no interior do pacto social.

O que se observou, porém, foi algo completamente diferente. Em pouco tempo a detenção se tornou a principal forma de castigo. Em pouco mais de vinte anos, uma rede de edifícios fechados, complexos e hierarquizados foi erguida por toda a Europa.

...o princípio tão claramente formulado na Constituinte, de penas específicas, ajustadas, eficazes, que formassem, em cada caso, uma lição para todos, tornou-se a lei de detenção para qualquer infração pouco importante. (FOUCAULT, 1987, p.96)

Assiste-se à homogeneização das penas. Mas, afinal, o que levou à adoção da prisão como forma essencial de castigo? O edifício visto com maus olhos pelos reformadores, o calabouço cerrado e obscuro agora aparece como a forma material e simbólica do poder de punir; a punição fica à sombra, entremuros, – uma atividade que envolve o infrator e os aparelhos institucionais coercitivos – onde a sociedade possui pouca ou nenhuma presença.

A respeito de alguns grandes modelos de encarceramento, principalmente na Inglaterra e nos Estados Unidos, que surgiram antes deste súbito deslocamento, o problema deve ser conduzido da seguinte forma: como estes modelos se difundiram e lograram aceitação de maneira tão geral?

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FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 95

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O mais antigo dos modelos é o Rasphuis de Amsterdam, aberto em 1596. Destinado inicialmente a mendigos e jovens malfeitores, seu funcionamento obedecia aos princípios do trabalho obrigatório, sistemas de obrigações e proibições, horário estrito, vigilância contínua, exortações e leituras espirituais: jogo de meios para “atrair para o bem” e “desviar do mal”. A duração das penas poderia ser reduzida pela administração, de acordo com o comportamento do prisioneiro.

Este é o modelo que basicamente será seguido pelas penitenciárias inglesas, porém com ênfase ao isolamento. Sob esta condição, o condenado se livraria das más influências e descobriria em sua própria consciência o caminho da virtude. Tem-se aí um aparelho para modificar os indivíduos denominado “reformatório”, com a grande finalidade de transformar a alma, os gestos e o comportamento.

O modelo da Filadélfia retomava o inglês, porém com traços específicos. A prisão de Walnut Street apresenta estes traços, além de desenvolver o que estava virtualmente presente nos outros modelos. Por exemplo, o princípio da não-publicidade das penas: se a condenação e o que a motivou devem ser conhecidos, a execução da pena realiza-se em segredo. Além disso, a administração penitenciária possui um papel específico na modificação dos espíritos(não bastando simplesmente a solidão e as exortações religiosas): a transformação do comportamento é acompanhada por uma formação de saber sobre os indivíduos. Uma série de informações sobre as circunstâncias do crime cometido, resumos de interrogatórios e relatórios sobre o comportamento dos condenados são recebidos pela administração que os renova e analisa continuamente, repartindo-os e classificando-os.

Todos estes modelos institucionais, teoricamente, possuem convergências com as teorias imaginadas pelos reformadores, no sentido de se evitar que o crime recomece, bloquear sua repetição. A grande diferença, todavia, encontra-se na maneira de acesso e apossamento do indivíduo, nos instrumentos de transformação, na tecnologia das penas. O ponto de aplicação da pena não é a representação; é o corpo, o tempo, são os gestos e as atividades de todos os dias 7. Quanto aos instrumentos utilizados: não mais sinais, mas formas de coerção, repetições, exercícios.

7

Ibid, p. 106.

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...horários, distribuição do tempo, movimentos obrigatórios, atividades regulares, meditação solitária, trabalho em comum, silêncio, aplicação, respeito, bons hábitos. E finalmente, o que se procura reconstituir nessa técnica de correção não é tanto o sujeito de direito, que se encontra preso aos interesses fundamentais do pacto social: é o sujeito obediente, o indivíduo sujeito a hábitos, regras, ordens, uma autoridade que se exerce continuamente sobre ele e em torno dele(...) (FOUCAULT, 1987, p.106)

Nos dois casos o que se visa é a formação de indivíduos submissos, sem dúvidas. Mas a penalidade de coerção, exercida secretamente, entre o punido e o que pune, exclui a dimensão do espetáculo. Além disso, os corpos confinados ficam submetidos ao pleno emprego do tempo, aquisição de hábitos e limitações diversas.

Entre a cidade punitiva e a instituição coercitiva, a última torna-se hegemônica. A verdade é que Foucault detecta, no fim do século XVIII, três maneiras de organizar o poder de punir. A primeira é o cerimonial de soberania do direito monárquico, que marcava o corpo do condenado através de rituais de vingança, espalhando o terror sobre os espectadores: um poder descontínuo e “acima das leis”. O projeto dos juristas reformadores traz a punição como um processo de requalificação dos indivíduos como sujeitos de direito. Utiliza sinais, conjunto codificado de representações, que devem circular e obter aceitação quase universal. No projeto da instituição carcerária que se elabora, a punição obedece a técnicas de coerção sobre os indivíduos, utilizando procedimentos de treinamento do corpo, com implementação de hábitos deixados como traços deste treinamento meticuloso. “O soberano e sua força, o corpo social, o aparelho administrativo”; “a cerimônia, a representação, o exercício”; “o inimigo vencido, o sujeito de direito em vias de requalificação, o indivíduo submetido a uma coerção imediata” 8. Modalidades de acordo com as quais se exerce o poder de punir; três tecnologias de poder.

O problema que se coloca: como foi possível que o terceiro modelo tenha vencido? Por que o modelo coercitivo, corporal, solitário e secreto do poder de punir substitui o modelo representativo, cênico, significante, público e coletivo?

Nessa época ocorria uma reviravolta discreta e subterrânea nas técnicas de sujeição. Era dada cada vez mais atenção ao corpo passível de treinamento, manipulação, modelação, obediência e rápido em suas respostas. Um corpo capaz de multiplicar as forças, se tornar eficiente, hábil, “militarizado”. 8

Ibid, p. 108.

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O exército, as fábricas, os hospitais, as escolas e as prisões começavam a adotar e difundir essas técnicas que, cada vez mais, revestiam e colonizavam o aparelho judiciário e os órgãos estatais: eis o poder disciplinar.

Que fique claro: a invenção e adoção desta nova anatomia política ou física do poder não deve ser entendida como tendo surgimento súbito e localizado, senão como conseqüência de uma série de processos de origens diferentes e localizações esparsas, mas que se apóiam uns nos outros, se recordam, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência, até o esboço de um método geral. O início de práticas disciplinares nas escolas, por exemplo, remonta às influências jesuíticas, com a fixação dos corpos e distribuição em um espaço bem definido, vigilância dos gestos e comportamentos, etc. Práticas disciplinares bem rústicas, é verdade, e mais voltadas para o ideal ascético do que para a eficiência e produção em série de um conhecimento qualquer.

Inicialmente, as práticas disciplinares agiam no interior de instituições bem definidas, com o fim de distribuir os indivíduos no espaço, controlar suas atividades(horários, gestos, presenças, ausências, eficiência, etc.), fixá-los a uma aparelhagem de produção(de bens, de conhecimento, de aptidões corporais, etc.), articular e adequar suas forças. Aqui uma característica das disciplinas: a composição das forças que passa, obrigatoriamente, por uma decomposição. A fábrica, o quartel, a escola ou a prisão fabricam individualidades: do “todo” de suas engrenagens retiram as peças componentes elementares, instâncias de intervenção do poder disciplinar. São os indivíduos que são vigiados por um olhar hierárquico e submetidos a sanções normalizadoras, assim como ao exame, procedimento que une os dois anteriores: o objetivo é qualificar, comparar, reprimir certos comportamentos e produzir novos.

A atenção aos detalhes, aos menores gestos, aos atos incompatíveis e sua devida punição constitui uma infrapenalidade própria destas instituições, fazendo funcionar em seu interior pequenos mecanismos penais que preenchem um espaço vazio deixado pelas leis.

Aqui surge novamente a imagem do presídio de Walnut Street, que tinha por função corrigir, modelar, moralizar os indivíduos. Para isso, isolava-os em celas individuais, obrigava-os à rotina do trabalho e das exortações religiosas, punindo qualquer tipo de comportamento

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inadequado. Concomitantemente, ocorre toda uma formação

de saber sobre as

individualidades constantemente examinadas.

Walnut Street, porém, ilustra a fase das disciplinas fechadas, destinadas a uma espécie de “quarentena” social, tentativa de trancar, demarcar e fixar para evitar contágios: aquele modelo descrito por Foucault da cidade acometida pela peste 9. Este tipo de práticas disciplinares fechadas é também localizável nas fábricas-convento e nos colégios com regime de internato.

A generalização dos mecanismos disciplinares e a formação de um tipo de sociedade disciplinar só acontecerá com o surgimento das técnicas componentes do panoptismo. O Panóptico de Bentham 10 é mais do que um edifício ideal: possui no idealismo arquitetural a representação de um diagrama do poder que, com a maior economia possível e o menor esforço, se intensifica, através da vigilância contínua, ininterrupta e anônima. Importa “aumentar a produção, desenvolver a economia, espalhar a instrução, elevar o nível da moral pública; fazer crescer e multiplicar” 11.

O panoptismo inaugura a possibilidade de exercício do poder de forma contínua nos alicerces da sociedade, de modo leve, quase imperceptível, até seu mais fino grão. Se opõe aos grandes e suntuosos rituais violentos e descontínuos do exercício do poder real. Faz aparecer não o corpo do rei, mas os corpos irregulares com seus detalhes, suas forças, seus movimentos: poder que analisa distribuições, desvios, séries, anormalidades, e cria instrumentos para tornar visível, classificar, comparar, diferenciar. Na famosa jaula transparente e circular, com sua torre alta, potente e sábia, será talvez o caso para Bentham de projetar uma instituição perfeita; mas também importa mostrar como se pode “destrancar” as disciplinas e faze-las funcionar de maneira difusa, múltipla, polivalente no corpo social inteiro. Essas disciplinas que a era clássica elabora em locais precisos e relativamente fechados – casernas, colégios, grandes oficinas – e cuja utilização global só fora imaginada na escala limitada e provisória de uma cidade em estado de peste, Bentham sonha fazer delas uma rede de dispositivos que estariam em toda parte e sempre alertas, percorrendo a sociedade sem lacuna nem interrupção. O arranjo panóptico (...) programa, ao 9

Ibid, p. 162. Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre com largas janelas que se abrem para a face interna do anel; a construção periférica se divide em celas, que atravessam, em profundidade, toda a espessura da construção. A cela possui duas aberturas: uma voltada para as janelas da torre e outra para o exterior, permitindo que a luz a atravesse de lado a lado, deixando à mostra a silhueta do ocupante. “Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um escolar.” 11 Ibid, p.172. 10

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nível de um mecanismo elementar e facilmente transferível, o funcionamento de base de uma sociedade toda atravessada e penetrada por mecanismos disciplinares.” (FOUCAULT, 1987, p.172)

Mecanismo elementar e facilmente transferível, pois o olhar do vigia pode ser o de qualquer um, de todos e de ninguém; o professor, a família, os amigos; importa fazer com que os indivíduos se sintam vigiados e o poder não precise recorrer à força para obrigar o condenado ao bom comportamento, o operário ao trabalho e à eficiência, o estudante à aplicação.

A grande tecnologia do indivíduo surge na mesma época que outras – econômicas, industriais, militares, agronômicas – e, de certo modo, fica à sombra delas, porém seguramente não devido à sua importância. É ela que no século XIX fará nascer as ciências humanas.

Agora podemos responder àquela pergunta feita anteriormente: por que a tecnologia de poder preocupada com o treinamento do corpo, com a sua apropriação e submissão no interior das prisões substituiu subitamente o projeto dos juristas reformadores?

Devido à formação e consolidação da sociedade disciplinar, que passa dos modelos disciplinares fechados, de “quarentena”, à forma generalizada e difusa do panoptismo. Foucault, citando Julius 12, explica a construção de um novo tipo de sociedade sobre as bases dos princípios panópticos. Se na Antigüidade constituíram-se civilizações do espetáculo – tornar acessível a multidões a inspeção de um pequeno número de objetos – com suas formas arquiteturais próprias(templos, anfiteatros, circos), a Idade Moderna coloca o problema inverso – proporcionar a um pequeno número, ou mesmo a um só, a visão instantânea de uma grande multidão.

Daí a incompatibilidade entre as novas técnicas penais e a cidade punitiva, teatral, com uma miríade de significações produzindo significados educativos e moralizantes para os cidadãos, a punição-sinal, a pena que de certa forma reproduz o crime e o anula: o cidadão disciplinar encerra-se em sua individualidade, preso em mecanismos de normalização e de exames constantes e ininterruptos. Ele vai sendo, aos poucos, moldado, talhado, uniformizado. Num sistema científico-disciplinar, as atenções destinadas às individualidades com “desvios” são

12

N. H. Julius. Leçons sur les prisons, trad. Francesa, 1831, vol. I, p. 384-386 in FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 178.

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antes para corrigi-las no interior de instituições bem definidas do que para incidir sobre elas algum tipo de violência pública. A “observação” prolonga naturalmente uma justiça invadida por métodos disciplinares e pelos processos de exame. Acaso devemos nos admirar que a prisão celular, com suas cronologias marcadas, seu trabalho obrigatório, suas instâncias de vigilância e de notação, com seus mestres de normalidade, que retomam e multiplicam as funções do juiz, se tenha tornado o instrumento moderno da penalidade? Devemos ainda nos admirar que a prisão se pareça com as fábricas, com as escolas, com os quartéis, com os hospitais, e todos se pareçam com as prisões? (FOUCAULT, 1987, p.187)

Logo surgirá, sistematicamente, um conjunto de técnicas penitenciárias operando em prisões enquanto instituições transformadoras, corretivas, normalizadoras.

2 IDADE DAS PRISÕES

A prisão como pena por excelência veia a fixar-se nos códigos no fim do século XVIII e início do XIX. Havia, porém, antes da prisão-penalidade e fora do aparelho judiciário o que se pode chamar de forma-prisão, resultante dos processos de divisão, fixação, distribuição e classificação dos indivíduos num espaço bem definido, dotado de visibilidade sem lacunas, com o intuito de extrair deles o máximo de forças e de tempo, num jogo de treinamento contínuo e comportamentos codificados. A instituição-prisão: o aparelho destinado a tornar os indivíduos dóceis e úteis, através do minucioso treinamento dos corpos, à proporção que forma sobre eles um conjunto de registros e notações, um saber que se acumula. O momento em que a prisão se transforma na pena principal simboliza o acesso à “humanidade”, a emergência da “pena das sociedades civilizadas”.

O novo capítulo da história penal institui o castigo transformador, severo, disciplinador, no interior de edifícios que reproduzem, de maneira mais acentuada, todos os mecanismos disciplinares encontrados na sociedade. Penas mais silenciosas, mais “humanas”, que combinam a privação de liberdade com a transformação dos indivíduos.

Diferentemente das escolas, do exército ou das oficinas, que requerem uma certa especialização, a prisão absorve a totalidade do indivíduo: suas habilidades para o trabalho, suas inclinações morais, seu corpo e sua saúde, sua capacidade intelectual; enfim, age como

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um dispositivo “onidisciplinar”. Uma disciplina que funciona sem interrupções e pausas, até o fim da pena, ou da completa transformação do infrator. Ora, a prisão, se tiver como principal finalidade a “transformação” dos indivíduos, e não servir como moeda de troca entre infração e pena, exercerá um papel diverso de ser uma simples privação de liberdade. Ela agirá mesmo como instrumento modulador da pena; seus administradores formarão relatórios e notações sobre cada indivíduo, a fim de requantificar as penas, formar opiniões contrárias ou favoráveis que serão levadas aos juízes, etc. A prisão trabalhará ajustando-se à transformação “útil” do preso no decorrer da pena – um tempo com meta prefixada. 13

Há no interior da prisão uma série de possíveis acontecimentos destinados a fazer arrefecer ou recrudescer a pena, modulando-a de acordo com o desenrolar dela mesma e do sujeito punido, objeto de controle e disciplina. Mais do que uma privação pura e simples de liberdade, ocorre uma verdadeira “recodificação da existência” 14, bem diferente dos mecanismos de representações idealizados pelos reformadores penais.

Alguns princípios alicerçam esse “reformatório” tornado pena: o isolamento, tanto em relação ao mundo exterior quanto aos outros presos, para que não se forme uma população solidária e homogênea; o trabalho necessário e obrigatório, visto pelo legislador como forte agente da transformação carcerária; o arbítrio dos “agentes de disciplina”, que deveriam classificar os indivíduos, diagnosticar sua normalidade e adequação, julgá-los de acordo com o seu comportamento – enfim exercer uma função corretiva que foge à competência do juiz de direito.

Quanto ao emprego do isolamento, duas imagens, dois sistemas norte-americanos de encarceramento: o de Auburn e o da Filadélfia.

No modelo de Auburn, o isolamento acontecia durante a noite, em celas individuais; durante o dia, trabalho e refeições em comum, mas em absoluto silêncio(os detentos poderiam somente falar com os guardas mediante permissão e em voz baixa). Os condenados são obrigados a participar de atividades em comum, a relacionar-se sem comunicar-se muito bem(embora corporalmente, e em gestos), ao passo que são prevenidos a contagiar-se moralmente por uma vigilância ativa e pela regra do absoluto silêncio: 13 14

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 205 Ibid, p. 199.

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A prisão deve ser um microcosmo de uma sociedade perfeita onde os indivíduos estão isolados em sua existência moral, mas onde sua reunião se efetua num enquadramento hierárquico estrito, sem relacionamento lateral, só se podendo fazer comunicação no sentido vertical. Vantagem do sistema auburniano, segundo seus partidários: é uma repetição da própria sociedade.” (FOUCAULT, 1987, p. 200)

O jogo do isolamento em suas reuniões sem comunicação, o controle ininterrupto e o treinamento para atividades úteis e resignadas devolvem ao indivíduo “hábitos de sociabilidade”.

O modelo da Filadélfia, ao contrário, prescrevia o isolamento absoluto, fazendo com que o preso “entrasse em contato com sua própria consciência”. O que agirá sobre ele não será o respeito a um pacto específico e receio de punição pela quebra deste, mas o trabalho de sua própria consciência e o afastamento social – razão pela qual, talvez, este modelo não tenha estado de acordo com outro princípio fundamental da transformação carcerária: o trabalho.

Tido como obrigação e necessidade, o trabalho penal foi intensamente criticado, principalmente por jornais operários, devido ao fato de supostamente fazer baixar os salários “livres” e aumentar o desemprego. Contudo, com sua parca extensão e seu fraco rendimento, não é capaz de gerar efeitos gerais sobre a economia; não “é como atividade de produção que ele é intrinsecamente útil, mas pelos efeitos que gera na mecânica humana” 15.

É antes o mecanismo que transforma um prisioneiro violento, agitado e imprevisível numa máquina regular. Se tiver efeitos econômicos, é gerando peças adequadas às normas gerais da sociedade industrial. O trabalho pelo qual o condenado atende a suas próprias necessidades requalifica o ladrão em operário dócil. 16 Ensina também a lidar com a poupança, a previdência, o cálculo do futuro. De forma igualmente útil, permite avaliar no detento o seu zelo e como anda o seu progresso de regeneração. O trabalho penal escamoteia a função essencial do exercício: é, antes de uma livre cessão da força de trabalho, uma técnica de correção.

15 16

Ibid, p.203. Ibid, p.204.

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Quanto ao terceiro princípio da prisão “recodificadora da existência” e talvez o mais importante: a entrada em cena de diversos agentes retificadores da pena, sobre os quais a instância judiciária não exerce influência direta. Eles que irão gerir e individualizar a aplicação da pena, diagnosticando, caracterizando e classificando os detentos: uma nova arbitrariedade do poder de punir. O julgamento não é mais puramente criminal, mas, também, “penitenciário”. A autonomia das prisões talvez resida no fato de ela ter sido, desde o início, a encarregada de exercer um papel positivo na transformação a todo custo dos privados de liberdade:

E para essa operação o aparelho carcerário recorreu a três grandes esquemas: o esquema político-moral do isolamento individual e da hierarquia; o modelo econômico da força aplicada a um trabalho obrigatório; o modelo técnico-médico da cura e da normalização. A cela, a oficina, o hospital. A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas de tipo disciplinar. E esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico, é a isso, em suma, que se chama o “penitenciário”. (FOUCAULT, 1987, p.208)

A atividade do juiz, agora, presa no interior de intrincadas relações de saber, amarra as duas pontas do mecanismo punitivo: privação de liberdade e condução ao edifício penitenciário, dentro do qual ocorrerá a vigilância, observação, transformação e normalização do infrator: a função peremptória da pena – eis o juiz “assaltado pelo desejo da prisão” e trabalhando em função dela(e não o contrário).

Logo o projeto arquitetural panóptico aparecerá na maioria dos projetos de prisão, por volta de 1830-1840, projetando a utopia benthamiana de isolamento e transparência, vigilância e observação, segurança e saber, na época da “humanização” dos códigos e suavização das penas.

A prisão panóptica, local privilegiado da vigilância ininterrupta, é também uma sistema de individualização e documentação permanente: é preciso saber quem é o detento, como aplicar a ele uma operação penitenciária que o tornará útil para a sociedade. O indivíduo a conhecer: não exatamente o infrator, ao qual foi aplicada a pena judicial, mas o objeto da tecnologia corretiva que ele agora se transforma ao entrar no aparelho penitenciário. Surge, então, a figura do delinqüente.

O que caracteriza o delinqüente é a sua vida, sua história, e não apenas um ato praticado, do qual se encarregará o castigo legal. A técnica punitiva penitenciária se apropriará e tentará

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modificar esta vida cheia de “desvios”: de certa forma, é uma vida já “anormal” independentemente da ocorrência do crime. A partir daí “uma causalidade psicológica vai, acompanhando

a

determinação

jurídica

da

responsabilidade,

confundir-lhe

os

efeitos.”(FOUCAULT, 1987, p.211). Entramos então no que Foucault chama “dédalo criminológico”, do qual estamos bem longe de sair hoje em dia:

Qualquer causa que, como determinação, só pode diminuir a responsabilidade, marca o autor da infração com uma criminalidade mais temível e que exige medidas penitenciárias mais estritas. À medida que a biografia do criminoso acompanha na prática penal a análise das circunstâncias, quando se trata de medir o crime, vemos os discursos penal e psiquiátrico confundirem suas fronteiras; e aí, em seu ponto de junção, forma-se aquela noção de indivíduo “perigoso” que permite estabelecer uma rede de causalidade na escala de uma biografia inteira e estabelecer um veredicto de punição-correção. (FOUCAULT, 1987, p.211)

O delinqüente, além de ter cometido o ato, está “amarrado” ao delito por um “feixe de fios complexos”(instinto, tendências, pulsões, temperamento). A técnica penitenciária agirá nessa afinidade entre criminoso e crime, mais do que sobre a relação de autoria deste.

Com a objetivação da delinqüência, surge a possibilidade de um conhecimento positivo: “etnografia” do crime e tipologia sistemática dos delinqüentes, realizadas por Ferri, Lombroso, Garofalo, entre outros. Cria-se uma tipologia onde o criminoso aparece, ao mesmo tempo, como elemento natural e desviante; a delinqüência é analisada como o sinal e o efeito de um desvio patológico da espécie humana, ou como grandes formas teratológicas (Lombroso).

Se o objeto da justiça é o infrator, o do aparelho penitenciário é o delinqüente: este ser marcado – não mais no corpo, como nos suplícios, mas na positividade de um saber – definido, classificado, patologizado, que entrará, por isso, num circuito intrincado que o levará novamente e repetidas vezes ao crime e diante de um tribunal, deixando-o perpetuamente estigmatizado. Mas [a prisão] os fabrica [também] no outro sentido de que ela introduziu no jogo da lei e da infração, do juiz e do infrator, do condenado e do carrasco, a realidade incorpórea da delinqüência que os liga uns aos outros e, há um século e meio, os pega todos juntos na mesma armadilha. (FOUCAULT, 1987, p. 213)

Prisão, portanto, que vigia e sujeita, classifica, aprisiona “o criminoso fora do crime”, o perturbado, o anormal; prisão que também observa e individualiza, objetiva e delinqüente

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como manifestação global da criminalidade: o sujeito-objeto de um campo fértil para o conhecimento positivo – psicologia, psiquiatria, criminologia. Que o castigo se exerça como terapêutica e a sentença judiciária procure cada vez mais se inscrever entre os discursos destes saberes.

2.1 GESTÃO DAS ILEGALIDADES

Um saber que aparece como efeito e, de certa forma, ao mesmo tempo em que práticas de poder que se investem no corpo preso e sujeitado. Um poder-saber que, nessa instância sujeitada, produz uma individualidade anormal e patologizada. O homem delinqüente, minuciosamente produzido nas prisões e objetivado em sua anormalidade, em seu desvio, em sua vida miserável que o arrastou para o crime, doravante encontra-se preso num discurso que fornece ao direito penal um “horizonte de verdades” para a sua atuação. De igual maneira, encontra-se preso à sua condição de delinqüente, que automaticamente fará dele um indivíduo “perigoso” e inclinado à reincidência.

Surge então o que pode ser chamado “paradoxo da prisão”: é certo que elas nasceram com uma determinada intenção de prevenção e repressão do crime, transformando moralmente o infrator sob sua custódia. Desde o começo, a prisão foi concebida para agir sobre os indivíduos com precisão, assim como a escola, o quartel e o hospital. Por outro lado, desde 1820 se constata que a prisão, longe de transformar os criminosos, serve para fabricar novos criminosos e impedir que estes saiam da criminalidade.

Hesitaríamos em enxergar nas prisões um estrondoso fracasso? Um instrumento cruel e iníquo, que deixa traços tão permanentes e vivos quanto os suplícios? Sim, se se considerar que ela falhou em seu objetivo “ortopédico”, retificador. Contudo, o fato de se falar exaustivamente, nesses últimos dois séculos, nas prisões e em suas reformas, e na construção de novas prisões – não é isto prova de um grande sucesso? Em que medida a produção da delinqüência tornou-se útil e foi utilizada?

É sabido que a prisão gera reincidência; que cria um grupo solidário e hierarquizado de delinqüentes e absorve para a delinqüência os que estão em sua primeira condenação. A

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despeito de todas as críticas que possam ser feitas, o remédio é sempre o mesmo: a própria prisão. Ela sempre foi dada como sua própria solução. Foucault fará um esclarecedor jogo de imagens nas páginas 224 e 225 de Vigiar e Punir: os princípios fundamentais das prisões, presentes na reforma de 1945, já são conhecidos desde o século XIX, como as sete máximas universais da boa “condição penitenciária”. Ainda assim, são exaustivamente repetidos:

1) A detenção penal deve então ter por função essencial a transformação do comportamento do indivíduo; 2) Os detentos devem ser isolados ou pelo menos repartidos de acordo com a gravidade penal de seu ato, mas principalmente segundo sua idade, suas disposições, as técnicas de correção que se pretende utilizar para com eles, as fases de sua transformação; 3) As penas, cujo desenrolar deve poder ser modificado segundo a individualidade dos detentos(...); 4) O trabalho deve ser uma das peças essenciais da transformação e da socialização progressiva dos detentos; 5) A educação do detento é, por parte do poder público, ao mesmo tempo precaução indispensável no interesse da sociedade e uma obrigação para com o detento; 6) O regime da prisão deve ser, pelo menos em parte, controlado e assumido por um pessoal especializado que possua capacidades morais e técnicas de zelar pela boa formação dos indivíduos; 7) O encarceramento deve ser acompanhado de medidas de controle e de assistência até a readaptação definitiva do antigo detento(...) (FOUCAULT, 1987, p.224;225)

De um século ao outro, as mesmas palavras, as mesmas idéias. Em épocas completamente distintas, as mesmas formulações principiológicas são repetidas e aceitas para uma reforma até então e desde já fracassada. Qual o sentido oculto nesta manutenção do fracasso?

Neste ponto percebe-se um deslocamento no pensamento de Foucault: a prisão, e, de maneira geral, o Direito, mais do que suprimir infrações, as distingue, as distribui, as utiliza; mais do que tornar dóceis os que visam transgredir as leis, elas organizam a transgressão das leis numa tática geral das sujeições. A penalidade seria então uma maneira de gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles. (FOUCAULT, 1987, p. 226)

A penalidade, antes de reprimir as ilegalidades, as diferenciaria, faria sua “economia” geral. A prisão coloca à luz uma forma particular de ilegalidade. Organiza, marca, torna visível, cria imagens, sublinha “uma forma de ilegalidade que parece resumir simbolicamente todas as

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outras, mas que permite deixar na sombra as que se quer ou se deve tolerar”. (FOUCAULT, 1987, p.230).

Uma ilegalidade que resume simbolicamente todas as outras, mas facilmente manuseável, colonizável, dócil e rebelde ao mesmo tempo. Aqui, um episódio possa talvez ilustrar essa coexistência estratégica de docilidade e rebeldia: o caso bastante conhecido do Ônibus 174, que inclusive transformou-se em documentário 17, ocorrido em junho de 2000, no qual Sandro do Nascimento, tendo passado por duas instituições corretivas, apresentando comportamento adequado em ambas, seqüestra um ônibus, aparentemente sem motivos, mostrando-se à luz do dia em rede nacional. O aspecto trágico do caso reside, primeiramente, na morte de uma das reféns, devido à imperícia policial e, depois, no assassinato do próprio Sandro pela polícia.

Tudo havia sido planejado, meticulosamente, para que este prisioneiro-aluno exemplar se mostrasse um dia com toda a rebeldia de uma delinqüência furiosa e descontrolada. Que pudesse ser mais uma peça no jogo infame da segurança pública, que tira sua legitimidade do circuito estrategicamente montado e renovado do delinqüente reconduzido às celas, do encarceramento do mal e das imagens que daí possam surgir. Enfim a pantomima terminou em sangue, e a polícia se mostrou tão descontrolada (ou mais) quanto o bandido que deveria ser domado e neutralizado.

A prisão que fracassa ao reduzir os crimes é a mesma que conseguiu muito bem produzir a delinqüência – tipo especificado, forma política ou economicamente menos perigosa de ilegalidade. Ela que, ao objetivar a delinqüência acaba isolando-a das outras ilegalidades. “Se a oposição jurídica ocorre entre legalidade e a prática ilegal, a oposição estratégica ocorre entre as ilegalidades e a delinqüência.”(FOUCAULT, 1987, p. 230).

As vantagens de se gerir uma ilegalidade relativamente fechada e demarcada: primeiramente, o controle, a localização dos indivíduos; depois, através deste controle, utilizá-los. Além de fazer com que a delinqüência ofusque outros tipos de ilegalidades, mantendo o delinqüente nas margens da sociedade, povoando um mundo próprio e hostil, faz-se dela um excelente uso econômico – tráfico de armas e de drogas, por exemplo: práticas ilegais sobre as quais é

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Ficha Técnica: Ônibus 174. Direção: José Padilha. Produção: José Padilha e Marcos Prado. 2002. 133 minutos.

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exercido certo controle com o fim de lucrar de maneira ilícita por meio de instrumentos ilegais mas perfeitamente manejáveis.

A organização desta ilegalidade isolada, fechada, mas controlada, moldável e manuseável, só foi possível com o desenvolvimento dos controles policiais, da vigilância e fiscalização geral da população, com a justificativa de encontrar e combater a delinqüência. Esta é, de certa forma, inseparável de uma polícia que agora é encarregada de realizar o seu controle. Uma polícia diferente daquela que funcionava para vigiar estoques, armazéns e entrepostos comerciais, a partir do século XVIII, quando as ilegalidades a serem combatidas passaram a ser ligadas à propriedade. O chefe da polícia de Londres neste período, Colquhoun, era então comerciante. Quando a delinqüência passa a ser investida pelo poder, destacando-se de outras ilegalidades, surge outra imagem de polícia, a da polícia “acoplada” à delinqüência, que trabalha contra ela, mas lhe é inseparável, ou melhor, que não existiria sem ela. Em meados do século XIX, o chefe da polícia de Paris é Vidocq, ex-presidiário, que passa para o outro lado da “moeda”, o do controle da delinqüência, mas como seu profundo conhecedor.

O mecanismo polícia-prisão não é destinado a punir e extirpar toda e qualquer prática ilegal. Seu uso é especializado no controle diferencial das ilegalidades: Em relação a este, a justiça criminal desempenha o papel de caução legal e princípio de transmissão. (...) a justiça penal (...) é feita para atender à demanda cotidiana de um aparelho de controle meio mergulhado na sombra que visa engrenar uma sobre a outra polícia e delinqüência. Os juízes são os empregados, que quase não se rebelam, desse mecanismo.” (FOUCAULT, 1987, p.234)

Eis a prisão que, apesar de suas máximas norteadoras, não opera uma transformação dos indivíduos, mas coloca à luz um certo tipo, uma certa modalidade de ilegalidade. Não mais a prisão celular, mas a prisão-depósito; não mais Walnut Street, mas Carandiru.

Ao contrário do que se possa pensar, a prisão é apenas o grau último da hierarquia percorrida passo a passo, que com sutileza adestra a docilidade e produz delinqüência. É a certeza consoladora de que o preso passou dos desvios da norma, das indisciplinas de cada dia, para a própria infração, e que, por isso mesmo, encontra-se dentro da lei.

As exigências da nova economia do poder tornam o direito de punir um mecanismo discreto e acoplado às técnicas disciplinares, que lhe conferem o caráter readaptativo, retificador. Nesse

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sentido, a prisão continua um processo iniciado fora dela e que a ultrapassa; um trabalho difuso na sociedade e exercido por ela, através de inúmeros mecanismos de disciplinas. Não tanto a falta quanto o ataque ao interesse comum são observados, mas o desvio, a anomalia de um indivíduo que precisa ser “ajustado” se se quiser dissipar a semente da desordem no bojo da criminalidade e da loucura. A difusão do poder normalizador “desnatura” a atuação do juiz à medida que este comece a recorrer à psiquiatria, à psicologia, à pedagogia, à criminologia para embasar a aplicação das leis e formular veredictos terapêuticos. Aqui se explica o desejo de analisar, medir, avaliar e diagnosticar dos juízes.

Esta função exercida às escuras e ainda mal estudada de “guardião da normalidade” é encontrada em outras instituições, em outras práticas, em outros saberes. Razão pela qual Foucault dirá que em nossa sociedade há juízes de normalidade por toda parte: o professorjuiz, o médico-juiz, o assistente social-juiz, o psicólogo-juiz. Cada um com sua área de atuação específica, mas fazendo reinar uma universalidade da norma; cada qual ocupando o seu espaço, para aí submeter corpos, gestos, comportamentos, desempenhos, aptidões. Deste modo, a atividade de julgar não encontra o seu lugar privilegiado, tampouco o poder de punir se diferencia do de educar ou curar. A prisão apresenta-se, assim, como o desdobramento de uma série de múltiplos procedimentos e como o recurso de recuperação na rede geral das disciplinas.

3 NOVAS IMAGENS DA PRISÃO

Contudo há, atualmente, a difusão de novas formas do direito de punir, novas lutas em torno do redirecionamento do eixo das ilegalidades – processos capazes de restringir ou modificar o funcionamento das prisões.

O surgimento das grandes ilegalidades de âmbito econômico e político( no Brasil, principalmente as ligadas ao tráfico de armas e de drogas, corrupção, ilegalidades financeiras), talvez tenha retirado um pouco o peso da delinqüência e das personalidades perigosas e desviantes que ela sustenta; por outro lado, pode-se dizer que estas grandes novas ilegalidades utilizam a mão-de-obra da delinqüência, inserindo o ladrão e o contraventor habitual em novos crimes, criando novas subjetividades que não derivam de um poder

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normalizador e de discursos médicos e criminológicos. O traficante, o falcão, o bandido-herói das favelas: uma hierarquia econômico-política localizada, combinada com uma forma própria de vida; um poder que se entrechoca com o poder carcerário de maneira cada vez mais aguda – situação pela qual, talvez, a polícia tenha adquirido características de milícias em um combate ininterrupto. A institucionalização do RDD (Regime Disciplinar Diferenciado) é uma tentativa de, ao mesmo tempo, obter em sua totalidade o isolamento e o controle. Realizado em presídios especializados, o RDD funciona em uma sociedade na qual confinamento dos corpos não implica, necessariamente, na não-presença dos indivíduos. Pode ser que haja um certo descontrole em relação à criminalidade, acentuado pelas tecnologias de comunicação que invadem os presídios e tornam inúteis os seus muros. O RDD, todavia, representa um novo regime celular de encarceramento, e retira da prisão-depósito aqueles indivíduos não tanto mais anormais, mas nocivos em um nível global. Um improvável resgate, aqui, do interesse comum e da coletividade tal qual definidos pelos reformadores penais e pelo Iluminismo.

No lado oposto a esta exasperante restrição de liberdade, há uma certa mitigação das penas, um certo pudor em encarcerar. Interditam-se determinados direitos e aplicam-se penas simbólicas: eis as penas alternativas, que fogem às pesadas estruturas arquiteturais das prisões, mas não abandonam o controle e os exames contínuos. Suas condições de aplicação são a análise da personalidade, conduta social, tempo da pena(não superior a quatro anos), a culpabilidade, a ausência de violência e grave ameaça à pessoa, a não reincidência em crimes dolosos e outras circunstâncias que indicarem a substituição em relação às penas privativas de liberdade. Ora, há todo um mecanismo para evitar que se misturem, na prisão-depósito, a delinqüência e a normalidade, para garantir uma normalidade fora da prisão mas plenamente controlável em seus atos. Evitar o agravamento das superlotações, certamente; mas também separar, graduar indiretamente os indivíduos, deixar fora da prisão as personalidades mais regulares, para que se submetam, ou, mais precisamente, se re-submetam diretamente ao controle das disciplinas e continuar a encarcerar o indisciplinado, perdido, imprevisível, nãocivilizado.

A prisão ainda funciona muito bem para separar, colocar à luz, fazer ver a delinqüência. Todavia, parece que o poder de normalização avança sólido e tenaz em uma dimensão da sociedade e aí opera uma alternativa-prisão ou, pelo menos, um controle fora dos muros da prisão; por outro lado, a prisão serve para depositar os delinqüentes que não estão em contato

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permanente com este poder normalizador – e muitas vezes se chocam contra ele –, isolar entre eles os mais perigosos e mostrá-los todos como inimigos de uma certa ordem, de um certo progresso.

4 CONCLUSÃO

Apesar de se propor a apresentar imagens da prisão, este trabalho não foi, exatamente, sobre uma prisão específica em um lugar determinado. A intenção foi analisar o papel desempenhado pelas prisões em recortes temporais, as ligações que se operam, os enunciados que emergem. Com efeito, a prisão é coadjuvante, derivada de uma função primária, que, como mostrado, é variável e diferente em cada caso: o modo como os loucos eram internados nos hospitais-gerais do século XVII e os condenados eram isolados até o momento da execução pública do suplício é completamente diferente da prisão que não ocupa mais uma função localizada e especializada, mas central e geral das punições, onde, a partir do século XIX, são internados os delinqüentes. A função de exilar, isolar, difere da de enquadrar, observar, retificar e normalizar.

Desta forma, qual o papel desempenhado pela prisão no Brasil? A duplicidade da prisão, como foi mostrada, opera uma bifurcação: em uma extremidade, as penas alternativas, ou o controle fora dos muros do presídio; na extremidade oposta, o isolamento individual total e absoluto do criminoso no RDD.

O controle além dos edifícios é uma tendência que veio se consolidando na segunda metade do século XX, com a reforma psiquiátrica e seus ataques aos manicômios, acompanhada do desenvolvimento da indústria farmacêutica, da medicalização “fora dos muros” dos hospitais, da medicina preventiva. Por outro lado, o RDD, modelo importado de práticas das autoridades italianas na luta contra a máfia, foi uma tentativa de isolar, impedir o contato do criminoso com o seu séqüito, evitando maiores prejuízos à economia. Objetivos não muito diferentes dos encontrados no Brasil, já que o objeto deste tipo de encarceramento é o tráfico de drogas e de armas, levados a cabo pelo “crime organizado”: as grandes ilegalidades políticoeconômicas. No meio das extremidades, a prisão continua funcionando e produzindo delinqüência. Exatamente aí, neste meio-termo, nesta multiplicidade, haverá a filtragem, a

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análise e o direcionamento daqueles que terão seus “direitos restringidos” e aqueles cuja liberdade será depositada, sob o discurso da ressocialização e transformação, no fundo de um aparelho formador e propagador de delinqüentes, de indivíduos que buscam no crime sua especificidade de classe marcada.

5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987.

BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martin Claret, 2006.

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