As leituras misóginas do jovem Fernando Pessoa

June 3, 2017 | Autor: José Barreto | Categoria: Feminism, Fernando Pessoa, Antifeminism, Misogyny, Antiféminisme
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José Barreto

As leituras misóginas do jovem Fernando Pessoa Texto revisto e aumentado do capítulo “As leituras” do livro Misoginia e Anti-feminismo em Fernando Pessoa, Lisboa: Ática, 20111, pp. 97-121.

I Que papel podem ter tido as leituras de Fernando Pessoa na formação da sua atitude misógina e das suas teses antifeministas ou, inversamente, que reflexo tiveram essas suas opiniões na escolha das suas leituras? A biblioteca particular de Pessoa, ou o que dela até nós chegou1, fornece várias pistas. Max Nordau (de quem Pessoa leu pelo menos seis obras e muitas vezes citou), Cesare Lombroso, Herbert Spencer, Gustave Le Bon e outros autores que Pessoa estudou aprofundadamente, embora não acriticamente, desenvolveram diversas teses “científicas” supremacistas, algumas das quais já aqui referidas. Nordau, se bem que apoiante do sufrágio feminino 2, notabilizou-se pelas suas sentenças misóginas e patriarcais, declarando a mulher, como acima vimos, “inimiga do progresso” e “o mais firme sustentáculo da reacção”, sustentando a inadequação da mulher para o ensino superior e a sua incapacidade para o génio e a originalidade. Em Paradoxes (1886), defendeu que 80 % das mulheres que se destacavam da mediania eram casos patológicos e os restantes 20 % casos de “inversão intelectual do sexo”. Nordau não foi propriamente um cientista, mas um publicista que declarava fundar-se nos mais recentes resultados da ciência. Muito controverso já no seu tempo, baseou-se 1

Veja-se: Jerónimo Pizarro, António Cardiello e Patricio Ferrari, A Biblioteca Particular de Fernando Pessoa, Alfragide: D. Quixote, 2010. 2

George L Mosse, “Nordau, Liberalism and the New Jew”, Journal of Contemporary History, Vol. 27, No. 4 (October 1992), pp. 568 e 578.

nas teorias da degenerescência psicofisiológica de Morel e Lombroso, crescentemente desacreditadas nas primeiras décadas do século XX, e aplicou-as à crítica da arte, da literatura e da filosofia.3 Foi um divulgador de estereótipos sobre as mulheres, bem resumidos na sua convicção de que “se se conhece uma, conhecem-se todas, com poucas excepções”.4 Nordau partilhou a teoria de degenerescência da mulher moderna de Lombroso (cuja obra Pessoa conheceu bem, nomeadamente via Nordau), segundo a qual a emancipação feminina, descrita como uma masculinização da mulher, era considerada como uma regressão a um estádio anterior do processo de evolução biológica dos sexos, o qual deveria normalmente tender, segundo as teses evolucionistas, para uma maior diferenciação, logo, para uma crescente “feminilização” da mulher. O amargo celibatário Spencer, que fora em jovem defensor da igualdade de direitos das mulheres, embora pensasse que o trabalho intelectual tornava a mulher inapta para a maternidade e até menos fértil (Principles of Biology, 1864), assumiria mais tarde uma posição contrária ao sufrágio feminino. 5 Le Bon, defensor da tese da crescente diferenciação e desigualdade de inteligência entre o homem e a mulher, celebrizou-se pela afirmação, no seu estudo Recherches anatomiques et mathématiques sur la loi des variations du volume du crâne (1879), de que as dimensões médias do crânio da mulher parisiense a aproximavam mais do gorila do que dos homens desenvolvidos. Em La civilisation des arabes (1884), Le Bon elogiou o estatuto social e jurídico da mulher sob o Islão, que julgava “bem mais favorável que o da mulher europeia”. Thomas Carlyle, um dos autores favoritos da adolescência de Pessoa, é usualmente considerado um escritor misógino. 3

Veja-se, por exemplo, Steven E. Aschheim, “Max Nordau, Friedrich Nietzsche and Degeneration”, Journal of Contemporary History, Vol. 28, No. 4 (October 1993), pp. 643-657. 4

Max Nordau, Paradoxes (Chicago: L. Schick, 1886), p. 49.

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T. S. Gray, “Herbert Spencer on Women: A Study in Personal and Political Disillusion”, em John Offer, Herbert Spencer: Critical Assessments, vol. 4 (New York: Routledge, 2000), pp. 255-272.

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Poderiam citar-se exemplos idênticos entre os autores mais lidos por Pessoa, mas chamam especial atenção quatro obras marcadamente misóginas e supremacistas que Fernando Pessoa tinha na sua biblioteca:



Paul Julius Moebius, La inferioridad mental de la mujer, tradução, prólogo e notas de Carmen de Burgos Seguí (Valencia: Sempere, ca. 1906)6;



Roberto Nóvoa Santos, La indigencia espiritual del sexo femenino: Las pruebas anatómicas, fisiológicas y psicológicas de la pobreza mental de la mujer. Su explicación biológica (Valencia: Sempere, 1908);



Thomas William Hodgson Crosland, Lovely Woman (London: Stanley Paul & Co, 1908);



S/autor, The Celibate's Apology by a Misogynist (London: Watts & Co., 1914).

O facto de quatro obras como estas se encontrarem numa biblioteca particular não prova a misoginia do seu proprietário. Todavia, as anotações de Pessoa, com perto de 20 anos de idade, nas margens dos livros de Moebius e de Crosland são eloquentes, não deixando dúvida acerca da sua concordância com os autores. Essas notas estão, aliás, basicamente de acordo com os textos que Pessoa escreveu sobre a questão feminina.

O autor de La inferioridad mental de la mujer, Paul Julius Moebius (ou Möbius), foi um neuropsiquiatra alemão, nascido em 1853 e morto em 1907, cujo nome ficou ligado a contributos no domínio da neuropatologia, nomeadamente a “síndrome de Moebius”. 6

A obra da biblioteca de Pessoa está truncada, apenas conservando as primeiras 160 páginas. O volume completo contava 239 páginas, incluindo, a partir da p. 161, onze artigos da autoria da tradutora Carmen de Burgos, uma feminista moderada. Estes cinco cadernos finais foram eliminados do exemplar, presumivelmente por Pessoa.

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Ficou igualmente célebre como autor deste livro pouco científico, preconceituoso e insultuoso para as mulheres, a começar pelo título original, Über den physiologischen Schwachsinn des Weibes (1900), literalmente: “Sobre a imbecilidade fisiológica da mulher”. O livro teve nove edições alemãs até 1908 e várias traduções na primeira década do século. Além dos estudos clínicos que lhe granjearam nome, Moebius, que também estudou filosofia e teologia, teorizou sobre degenerescência, sobre as manifestações desta na arte e nos artistas e cultivou um género aventureiro, a patografia de homens de génio, encarados como doentes, como Rousseau, Schopenhauer, Goethe e Nietzsche.

A obra de Moebius, na tradução espanhola (ca. 1906) que Pessoa leu.

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No exemplar que possuía de La inferioridad mental de la mujer, o jovem Pessoa destacou a lápis numerosas passagens, fez algumas observações e distribuíu aplausos ao autor: “well expressed”, “well hit”, “note”, “good”, “exact”, “true”, “admirably true”. Em nenhum ponto do livro expressou Fernando Pessoa dúvida ou discordância, excepto relativamente a comentários críticos feitos pela tradutora, a feminista moderada Carmen de Burgos, em notas de rodapé (pp. 50, 58 e 63). As passagens do livro que Pessoa destaca e elogia são elucidativas. Fá-lo quando Moebius defende a semelhança do cérebro feminino com o cérebro de “homens pouco desenvolvidos (um negro, por exemplo)” (p. 37-38); quando afirma estar completamente demonstrado que na mulher estão menos desenvolvidas desde o nascimento certas porções do cérebro de enorme importância para a vida psíquica (p. 38); quando defende que o homem, se empreender qualquer trabalho anteriormente feito por mulheres, produz a breve trecho melhores obras (p. 40); quando afirma que a mulher é muito mais dominada pelo instinto do que o homem, comparando o mecanismo do instinto a uma “inteligência que nos é estranha” e que “presidisse às nossas acções” (pp. 40-41); quando afirma que a mulher, como o animal, se caracteriza pela falta de opinião própria, por um rígido conservadorismo e pelo ódio à novidade (Pessoa destaca e anota em espanhol: “lo mismo de Nordau”, p. 42); quando opina que a mulher, nos países em que ela “teima em seguir cursos superiores”, sobressai apenas pela sua aptidão para “aprender de memória as matérias que lhe ensinam” (p. 48); quando sustenta a incapacidade feminina para criar ou inventar novos métodos (p. 49); quando afirma que as mulheres, apesar de tocarem e cantarem muito bem, não se destacam como compositoras (Pessoa comenta: “true, and no one hinders them from composing”, p. 51); quando afirma que, quando raramente um talento feminino se destaca na pintura, denota características de “hermafroditismo psíquico” (p. 51); quando defende que as poucas romancistas e as ainda mais raras

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poetisas que se fazem notar “caminham sempre por caminhos já trilhados” e denotam nos seus trabalhos o cunho das obras masculinas (Pessoa concorda e exemplifica à margem, p. 52: “Elisabeth Barrett Browning! Christina Rossetti!”, cujos respectivos marido e irmão foram poetas admirados por Pessoa); quando afirma que a mulher é astuta e dissimulada e que essas facetas se revelam na sua actividade sexual, em que instintivamente dissimula as suas necessidades, ao ponto de “o aperfeiçoamento desse método constituir um complemento essencial de uma mulher bem educada”, pois “nada mais néscio que a pretensão de proibir a mentira à mulher” (pp. 54-55). Numerosas outras afirmações de Moebius sobre a primordial vocação da mulher para a maternidade, com necessária exclusão de outros horizontes que a masculinizariam, são também sublinhadas ou destacadas por Pessoa: na espécie humana, a necessidade de cuidar da infância é causa especialmente diferenciadora dos dois sexos (p. 56); “se queremos que a mulher cumpra bem os seus deveres maternais, é necessário que não possua um cérebro masculino” (p. 58); “se se pudesse conseguir que as faculdades femininas alcançassem um desenvolvimento igual às do homem, veríamos atrofiarem-se os seus órgãos maternos e deparar-nos-íamos com um repugnante e inútil andrógino” (p. 58); uma excepcional actividade mental faria da mulher uma doente (p. 58); “à medida que se difunde a civilização, diminui a procriação; quanto maiores são as escolas, mais difíceis são os partos e mais escassa a produção de leite materno, em suma, mais inadaptada se torna a mulher às suas funções maternais” (p. 59). Uma passagem em que Moebius aborda a importância para a mulher da busca do homem é também destacada à margem por Pessoa, que glosará esse tema no texto “Porque é que as mulheres se detestam tanto umas às outras?” (ver aqui Apêndice 1). Diz Moebius: “Todo o destino da vida da mulher depende de que a jovem encontre o homem que lhe convém. Todas as suas forças se dirigem a esse momento, verdadeiro ponto culminante da sua vida, e

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todas as suas faculdades mentais se acham concentradas para esse fim” (p. 69). Num parágrafo inteiramente destacado e elogiado à margem por Pessoa com um “well hit”, Moebius apela aos médicos para que, partindo duma “clara noção do cérebro, isto é, do estado mental da mulher”, compreendam bem “o significado e o valor da sua deficiência mental” e “ponham em acção todo o seu poder para combater, no interesse do género humano, as tendências contra-natura dos feministas”, pois que “é a saúde da grande massa que está comprometida pela perversão da mulher moderna” (p. 61). Enfim, sobre as mulheres maduras, Moebius diz que não tardam a apresentar um declínio visível ao fim de poucos partos, decaindo não só fisicamente como mentalmente. A tese é essencial a Moebius para excluir que a mulher, mesmo depois de cumprida a função da maternidade, possa competir com o homem. Esse declínio mental da mulher madura, segundo afirma, escapa por vezes à observação menos atenta, “porque as qualidades de sentimento das mulheres permanecem inalteráveis e na vida comum, em geral, não se exige nada da mulher do ponto de vista intelectual” (Pessoa comenta: “exact”, p. 73). Ora essa “debilidade mental adquirida” pelas mulheres maduras, que a velhice torna feias, estaria plenamente confirmada pelo facto de elas serem “unanimemente consideradas supersticiosas, cobardes e, sobretudo, dotadas de pouca mente, loquazes, litigiosas e maledicentes” (à margem, Pessoa comenta: “admirably true”, p. 77), razão pela qual o povo lhes chama “velhas bruxas” (p. 78).

Roberto Nóvoa Santos (1885-1933), um médico natural da Corunha, foi professor de Patologia na Universidade de Santiago e catedrático na Universidade de Madrid, escritor e político republicano, sendo também dado como antropólogo e até filósofo. Tinha 23 anos quando, em 1908, escreveu o seu primeiro livro, La indigencia espiritual del sexo femenino. A obra nem sempre consta hoje das biografias apologéticas de

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Roberto Nóvoa, que o dão como grande figura médica da Espanha do primeiro terço do século XX. Uma bibliografia consultada esclarece todavia, em jeito de atenuante, que La indigencia espiritual del sexo femenino teria sido “escrita depois de um desengano amoroso”. O livro inclui uma parte final literária que faz luz sobre essa possível motivação do livro: é o relato de uma conversa à beira-mar (facto vivido, alegadamente não ficcionado) entre o próprio Roberto Nóvoa e uma presumível beldade do Norte da Europa. Nesse diálogo se confrontam, sem conciliação, as respectivas posições sobre as capacidades e potencialidades do género feminino. Em 1931, Roberto Nóvoa Santos foi eleito deputado às Cortes Constituintes da Segunda República, onde apenas interveio uma vez, para se opor ao sufrágio feminino. 7 Entre as numerosas obras deste patologista com alguma inclinação mórbida no campo da psicologia, há a considerar outros títulos exóticos: El instinto de la muerte (1927), La inmortalidad y los origenes del sexo (1931) e Patografia de Santa Teresa de Jesús y el instinto de la muerte (1932). No livro La mujer, nuestro sexto sentido y otros esbozos (1929), Roberto Nóvoa retoma no texto “La posición biológica de la mujer” as teses do livro escrito vinte anos antes e, de certo modo, amplia-as. Trata-se de uma conferência proferida em Havana em 1928, refundida e ampliada com comentários do autor às reacções por parte de várias mulheres cubanas, indignadas com as teses do conferencista.

Ao livro La indigencia espiritual del sexo femenino de Roberto Nóvoa pode ter ido o jovem Pessoa beber ideias como a da permanente infantilização feminina (a mulher e a criança possuiriam “idêntica estruturação psíquica”), a da incapacidade feminina para o trabalho intelectual, a da psique histeróide da mulher e, sobretudo, a da inversão sexual 7

Nerea Aresti, Médicos, donjuanes y mujeres modernas: Los ideales de feminidad y masculinidad en el primer tercio del siglo XX (Bilbao: Universidad del País Vasco, 2001), p. 219.

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espiritual de certas mulheres inteligentes e criadoras, que teriam “espírito de macho”, bem como a ideia da degenerescência das mulheres que se destacam na sociedade ou na cultura, o que se deveria às suas qualidades ditas “masculinas”. Veja-se a teoria de Pessoa, expressa aqui no texto do Apêndice 1, sobre as mulheres poetisas (dá o exemplo de Safo) que, pelo facto de escreverem versos, se tornariam ipso facto “invertidas” e “psiquicamente homens”. Contrariamente a Pessoa, porém, Roberto Nóvoa aceitava sem grande dificuldade que a mulher tivesse alma, até porque, segundo escreveu, os animais também a tinham...

Exemplar de Pessoa do livro La Indigencia Espiritual del Sexo Femenino (1908)

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Da autoria do jornalista, poeta, panfletista e autor satírico Thomas W. H. Crosland, Pessoa possuía na sua biblioteca três obras, entre as quais o referido Lovely Woman (um título sarcástico), em edição de 1908. Do mesmo autor, Pessoa tinha também The Unspeakble Scot, um libelo xenófobo contra os escoceses de Londres, e The First Stone, um ataque selvagem a Oscar Wilde e ao seu De Profundis. Crosland, um desinibido cultor avant la lettre do politicamente incorrecto, de que soube tirar fortes proventos, foi também o secreto redactor das memórias de Alfred Douglas, amante arrependido de Wilde. Em Lovely Woman, um best seller misógino que escandalizou o público feminino britânico em 1903, Crosland apelava a que a mulher moderna fosse “relegada para a sua esfera natural”, que se afastasse da esfera política e que a “impertinência” feminista fosse castigada com a retirada de privilégios, deferências e liberdades que anteriormente tinham sido generosamente concedidas às mulheres. Crosland trata sucintamente as mulheres como “o inimigo” e, aliando a misoginia à xenofobia, compara-as aos escoceses, que seriam tão pouco fiáveis como elas em matéria de negócios. As mulheres da classe média suburbana, que ele retrata como pouco castas, avessas à maternidade, obcecadas com o conforto material e gastadoras impenitentes, estariam a pôr em perigo a raça britânica, assim ameaçada de “suicídio”. O livro foi considerado por um juiz, em 1904, no processo que Crosland moveu a um crítico da sua obra, como “um dos mais revoltantes libelos contra o género feminino em Inglaterra”. 8

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Recensão sem título, New York Times de 13 de Fevereiro de 1904, secção “Review of Books”, p. 97.

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Capa do exemplar Pessoa de Lovely Woman, de Thomas W.. H. Crosland (1908)

Pessoa apreciou muito positivamente este livro, destacando numerosas passagens e inscrevendo à margem comentários concordantes. Entre as frases destacadas está a afirmação de Crosland de que “a chamada emancipação da mulher” tendia a “criar o que, à falta de melhor termo, se poderia chamar o terceiro sexo” (p. 25); que a mulher teria invadido as fábricas e os escritórios britânicos “não por ser competente, nem sequer tão competente como o homem, mas simplesmente por ser mais barata” (p. 26); que o “terceiro sexo” (isto é, a mulher trabalhadora e independente) não sobreviveria no futuro, por tal se opor às “leis do universo” e porque “fora do matrimónio o único lugar

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da mulher é numa loja de roupa para bebés” (p. 30); que a mulher não admite que tenha imperfeições físicas e que espera do homem que a encare “como se não existissem dentes postiços” (p. 34); que a ideia de que o tempo gasto a namorar ajuda o homem e a mulher a compreenderem-se melhor é totalmente errada, “porque na mulher não há nada para ser compreendido” (algo que Pessoa repetirá num dos seus escritos, aqui reproduzido no Apêndice 2) e porque “no homem há muito pouco que uma mulher seja capaz de compreender” (p. 41); que “do ponto de vista de um homem, o mais aterrador quando se tem uma mulher é não poder casar-se com outra” (p. 43); que “quando as mulheres de um país conseguem alcançar o que julgam ser os seus direitos, o país começa a decair” (p. 76), um tema caro a Pessoa, como se constatou nos seus escritos; que um homem de vários talentos pode fazer coisas admiráveis e ilimitadas quando jovem, desde que “se afaste dele as mulheres” (p. 78); que enquanto “as realizações de um homem tendem uniformemente para o desenvolvimento da sua virilidade, as de uma mulher levam à destruição da sua feminilidade” (p. 78, com a nota à margem de Pessoa: “excellent”); que “um homem que pensa que tem uma beleza de mulher deveria meditar se isso se deve à mulher ou à roupa” (p. 100); que, por fracos oradores que sejam certos homens públicos, uma figura pública feminina fica sempre a milhas dele nesse campo (p. 111); que, contrariamente às donas de casa que deixam as criadas ter ascendente sobre elas, “um homem nunca toleraria tal estado de coisas em qualquer estabelecimento ou organização por ele dirigido” (p. 119); que o espancamento do marido pela mulher se estaria a tornar corrente em Inglaterra, não sendo para espantar que “a mulher, se desenvolver a sua musculatura, mais tarde ou mais cedo bata no marido” (p. 138); que “a única propriedade com algum valor que uma mulher pode possuir é um bom marido” (p. 157). No capítulo “Women Writers”, Crosland arrasa uma longa lista de escritoras britânicas contemporâneas, defendendo a ideia da

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manifesta inferioridade feminina no campo das letras, partilhada por Pessoa, como vimos. No capítulo intitulado “Shakespeare”, defende a ideia, igualmente expressa em escritos de Pessoa, de que o culto da mulher atingiu no grande poeta inglês a sua mais alta expressão na literatura, descrevendo o sucesso de Romeu e Julieta como o “tiro de misericórdia na independência do homem” (p. 67). A maior “maldade feminina” residia, para Crosland, na fuga da mulher moderna ao seu dever primordial, a maternidade (pp. 126-127, apoiado pelo comentário à margem de Pessoa: “just and true” – ver aqui a imagem seguinte). “Enquanto antigamente as mulheres eram respeitadas por serem castas ou mães de filhos, agora mostram tendência para não serem nem uma coisa nem outra” (p. 127, com destaque à margem de Pessoa). Num hino à mulher anónima, o anjo do lar cujo centro de interesse eram os filhos e o marido à volta da lareira, alternando apenas com “um pouco de igreja e umas poucas leituras de autores inócuos”, perfazendo uma vida vulgar de labutas, pequenas alegrias e pequenos desgostos, Crosland declara que nem toda a sabedoria do mundo poderia significar para uma mulher um destino melhor, mais nobre ou mais satisfatório do que esse (p. 156, com destaque de Pessoa). No final, Crosland evoca a situação do marido de uma figura pública feminina que tem de assistir a “uma assembleia de fêmeas esfusiantes, aplaudindo e saudando o discurso indigesto de outra fêmea, a sua amada esposa”. A humilhação de ficar “para sempre conhecido como o marido da figura pública Sra. Fulana de Tal” seria uma experiência só suportável por “cavalheiros que o merecem” (p. 197, com sublinhado de Pessoa).

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Passagem destacada de Lovely Woman, p. 126, com comentário de Pessoa: “just and true”.

O anónimo autor do panfleto The Celibate's Apology by a Misogynist (dos poucos autores misóginos que reconhece expressamente essa sua qualidade, embora anonimamente), tê-lo-á escrito a pedido de amigos, na sua maioria casados, membros de um pequeno clube de Londres. Fustiga aí as mulheres  as antigas e, sobretudo, as modernas, pelos seus inúmeros defeitos. Tem o cuidado de dizer por vezes: “a maioria das mulheres” ou “geralmente as mulheres”. Não se funda o autor, aparentemente, em 14

nenhum determinismo biológico. Vai pondo as culpas no excesso de sentimentalismo, futilidade, inveja, ciúme, vaidade, susceptibilidade, sociabilidade, conservadorismo, conformismo, religiosidade, intolerância, insatisfação, extravagância, histeria, etc., das mulheres “em geral”. O autor abstém-se de sugerir vias positivas de regeneração feminina e também não assume o encargo de reflectir sobre qual o papel que a mulher tem ou poderia ter na sociedade. Termina o livro declarando que, se as mulheres vitorianas já o tinham feito fugir do casamento, as modernas, as da época georgiana, sempre a exigir mais direitos e a cumprir menos deveres, mais o levavam a preferir a vida de celibatário. Sem espírito nem originalidade, o livro documenta as queixas em relação às mulheres por parte dum burguês austero e misógino do princípio do século XX. Pessoa não destacou nenhuma passagem do texto. Do rosário de queixas do autor destacam-se aqui algumas, ilustrativas da mentalidade em causa: a primeira grande característica da maioria das mulheres é a tontice (mental silliness); as mulheres não produziram nada que se veja em música, política, poesia, filosofia ou arquitectura; as mulheres só excelem como actrizes, dançarinas e cantoras, por causa da sua grande vaidade e excessiva sociabilidade; a necessidade de amor das mulheres é maior do que a dos homens; querem monopolizar os afectos de quem amam, são ciumentas dos amigos do marido e estragam os filhos com mimos; valorizam mais as aparências externas do que as qualidades de cabeça e carácter; a necessidade de religião nas mulheres desaparece quando estão sexualmente satisfeitas; as mulheres formam a maioria dos frequentadores das igrejas, adoram decorar altares e costurar coisas para quermesses, mas muitas vezes estão apenas enamoradas do clérigo local; são quezilentas, fastidiosas e insaciáveis; amargam a vida dos maridos e incitam-nos a brigar uns com os outros; fecham os olhos às realidades que não lhes agradam; são esquisitas com comidas, cheiros e sujidade; quando têm poder, são tirânicas e cruéis; não tentam convencer

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senão com lágrimas e repetição de argumentos; são crédulas, temerosas, reverentes e complacentes, ou, pelo menos, são-no mais que o homem; são destituídas da faculdade de auto-crítica e são escravas das modas, por mais absurdas, tais como a maquilhagem, os saltos altos e os brincos das orelhas e do nariz. Sobre a mulher americana, esta afirmação extraordinária: “Nowhere in the world are the males working so hard and the women doing so little useful work as in America”.

Exemplar de Pessoa de The Celibate’s Apology, by a Misogynist (1914)

Outro livro da biblioteca de Pessoa é o romance Miss Malevolent (London: Greening and Co, 1900), um volume da Greening's Colonial Library, provavelmente lido pelo 16

adolescente Pessoa ainda em Durban. O autor era Cyril Ranger Gull (1876-1923), jornalista e prolífico autor de bestsellers, incluindo romances fantásticos. Que o jovem Pessoa estimava esta obra e o seu autor, prova-o um seu projecto de “obras a traduzir” para português, elaborado em 1909, de que constavam Ranger Gull (com três romances: The Hypocrite, The Cigarette Smoker e este Miss Malevolent), F. Anstey (Vice Versa), Dickens (The Pickwick Papers), W. W. Jacobs (os romances A Master of Craft e At Sunwich Port), Edgar Poe (um livro de “contos de raciocínio” e dois outros de contos) e Stevenson (Dr. Jekyll and Mr. Hyde).9 O romance Miss Malevolent tem como protagonista Kitty Nugent, uma mulher mentirosa e sem escrúpulos – malévola, como sublinha o redundante título. Não se trata de uma “história edificante” sobre a perfídia feminina, mas antes de uma peça de combate contra o catolicismo, pois Kitty é uma católica romana e essa sua qualidade está sempre presente na narrativa. No prefácio, o autor, anglicano e mação, não esconde o alvo: “O catolicismo romano tem um efeito surpreendentemente pernicioso sobre certos temperamentos”. A malévola Kitty é um desses temperamentos. Apaixonada por Gilbert, um pintor de fé protestante e recémcasado, Kitty tece uma intriga para arredar do seu caminho, pelo ciúme, a mulher do artista. Enquanto procede assim, Kitty é (mal) aconselhada pelo seu director espiritual católico, padre Sundius. No fim, Kitty é desmascarada por Gilbert e, em desespero, resolve matar-se. Numa tentativa de se vingar, deixa um bilhete em que insinua ter tido relações com Gilbert, mas uma tia da suicida queima-o, frustrando tal intenção. O ponto do livro (realçado por sublinhados de Pessoa nas páginas 113-114) está em que Kitty buscava na religião e no seu director espiritual católico a “consciência tranquila” para “pecar sem pecado”. Com efeito, o padre tinha o poder de, com “algumas palavras mágicas”, absolver os seus pecados, porque cometidos no aparente interesse da Igreja 9

BNP/E3, 144M-24r-v.

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católica. Como a maioria dos clérigos obrigados ao celibato, o padre Sundius faria todos os esforços para controlar e dominar as almas alheias, numa alegada compensação pela sua falta de vida varonil. Interessado, além disso, na conversão da mulher de Gilbert ao catolicismo, o padre cedera aos vis planos de Kitty sem se interrogar demasiado sobre a sua legitimidade. Não se engana, porém, a Deus com uma absolvição mágica: “Os fiéis da Igreja Romana têm uma medíocre opinião da perspicácia do Todo-Poderoso!” Embora não se trate de uma obra de intenção tipicamente misógina, a protagonista incarna o mal através duma imagem estereotipada da mulher católica  ou seja, as mulheres que povoavam o país (e a família) de Pessoa. O projecto de traduzir este romance português parece relacionar-se primordialmente com as ideias anti-católicas de Pessoa, mas também com a sua concepção do catolicismo como religião da plebe e das mulheres.

II De sentido bem diferente, ilustrando o outro lado das leituras − e do “esclarecimento” − de Pessoa acerca do problema feminino, é o romance de Sarah Grand, The Heavenly Twins, que Pessoa possuía na sua biblioteca em edição de 1901. Sarah Grand (de seu nome Frances Clarke) foi uma escritora feminista fundadora da corrente New Woman e este romance de 1893 − o primeiro publicado sob o pseudónimo com que se celebrizou − o que lhe granjeou maior êxito. The Heavenly Twins foi o primeiro romance a abordar directamente a questão das doenças sexualmente transmissíveis. Nele Sarah Grand denuncia a hipocrisia e a duplicidade moral da sociedade vitoriana, que olhava indulgentemente a promiscuidade masculina, mas condenava a mulher por conduta idêntica. Uma das realidades centrais do romance é a então endémica sífilis, resultado, segundo Grand, dessa promiscuidade masculina, e da qual a sociedade, a medicina e a 18

Igreja eram cúmplices, ao apontarem as prostitutas como foco patogénico. Ao contrário, Grand aponta o dedo ao comportamento promíscuo masculino antes e depois do casamento e ao double standard moral, de que as esposas e filhos inocentes seriam, por contágio, as vítimas mortais. Apesar da crítica de que a instituição do casamento é objecto, Sarah Grand, também considerada uma purista social ou higienista, acreditava que a felicidade feminina e a força da nação britânica dependiam da escolha de um bom marido e do casamento de nubentes castos, que garantiriam ao Império filhos fortes e bem educados. É plausível que Pessoa tenha lido este livro na adolescência, antes de 1906. Os seus planos de 1906 e 1913 de escrever uma sátira a defender a criação de “lupanares masculinos”, a que acima se fez referência, podem ter sido inspirados pela leitura deste livro. O exemplar conservado na biblioteca de Pessoa não contém anotações.

De George Gissing, a biblioteca de Pessoa conserva apenas dois romances, entre os quais The Odd Women (London: Thomas Nelson &Sons, 1893). Apesar de autor masculino, Gissing é por vezes incluído, tal como Thomas Hardy e George Bernard Shaw, na corrente literária New Woman. 10 Se os seus romances de “realismo social” revelam grande atenção pelos problemas existenciais e sociais das mulheres, patenteando a não-hostilidade e até a aprovação do autor pelo feminismo, Gissing também granjeou, paradoxalmente, fama de misógino (foi um marido violento) e até uma imagem de antifeminista, que sobressai dos seus escritos políticos e da sua correspondência. 11 O elitista Gissing, auto-proclamado aristocrata, por via da sua

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Carolyn C. Nelson (ed.), A New Woman Reader: Fiction, Articles, and Drama of the 1890s (Peterborough: Broadview Press, 2001), p. xii. 11

Ver o capítulo “George Gissing and the Ineducable Masses” em John Carey, The Intellectuals and the Masses: Pride and Prejudice among the Literary Intelligentsia 1880-1939 (New York: St. Martin’s Press, 1993) , pp. 93-117.

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condição de artista, e defensor de uma “aristocracia do espírito e das maneiras”, era extremamente céptico em relação à instrução das massas e, muito especialmente, à educação das mulheres das classes médias e baixas, que considerava ineducáveis. O desprezo de Gissing pela plebe, pela difusão da escolaridade e pela força niveladora social da educação não escapou ao jovem Pessoa, que a este respeito escreveu por volta de 1910 um texto intitulado “A função dissolvente da educação”. Nele Pessoa cita personagens masculinos de um dos mais famosos romances de Gissing, New Grub Street (não presente na sua biblioteca), homens que a educação transformara em seres inadaptados à vida ou em elementos politicamente “anti-sociais”.12 As mulheres são uma presença constante nas obras de Gissing e o tema da emancipação feminina inspirou vários livros seus, entre os quais The Odd Women, em que aborda o tema do feminismo com aparente simpatia, embora críticas oriundas do meio feminista o considerem simplesmente oportunista. As protagonistas de The Odd Women são cinco “mulheres singulares”, ou seja, odd no duplo sentido de não terem um par e de destoarem do tipo ideal feminino da era vitoriana. São três irmãs órfãs, que vivem sem homem e têm de trabalhar duramente, e duas militantes feministas, sem problemas financeiros, que ajudam mulheres solteiras a procurar trabalho, todas elas interrogandose sobre as vantagens e desvantagens da emancipação feminina. Embora The Odd Women tenha sido variamente rotulado como uma obra feminista e antifeminista, uma autora considera que, independentemente da ideologia subjacente do autor, o romance é uma exposição objectiva e realista das questões que interessavam ao movimento feminista. 13

12

BNP/E3, 108B-47r. Inédito. A sobrecapa de New Grub Street, manuscrita no verso por Pessoa, encontra-se na sua biblioteca (agradeço a Patrício Ferrari esta informação). 13

Dorothy Zaborszky, “Victorian feminism and Gissing's The Odd Women”, Women’s Studies International Forum (5) 1985, pp. 489-496.

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Pessoa tinha na sua biblioteca, de Frederick A. Wright, Feminism in Greek Literature from Homer to Aristotle (London: Routledge, 1923), que leu, pois, já na sua fase de plena maturidade. A tese de Wright é a de que o mundo grego antigo pereceu por uma causa principal, o “baixo ideal em relação ao mundo feminino e a degradação da mulher, espelhada na literatura e na vida social”. A situação das mulheres era idêntica à dos escravos, e essas “duas feridas abertas, nunca saradas, resultaram na decadência de Atenas e, depois, na da Grécia.” Que terá pensado desta obra Pessoa, ele que era um grande admirador da civilização helénica e que um dia escreveu, como atrás vimos, que “nas alegrias e sabores da vida não há lugar para a mulher, como os gregos da Antiguidade sabiam até às últimas consequências, tendo criado a pederastia como uma instituição de prazer social”? O exemplar de Pessoa não apresenta marginálias nem sublinhados, mas o interesse pela obra deve ter sido exíguo, pois várias folhas ao longo do volume se encontram por abrir.

O livro de Nicolas Perron (1798-1876), Femmes arabes: avant et depuis l'islamisme (Paris: Librairie Nouvelle, 1858), tenta mostrar como o Islão provocou historicamente a degradação total do papel social e cultural da mulher árabe em relação ao passado pagão. O autor verte lágrimas de europeu pela situação da mulher no mundo árabe, denunciando também a incultura masculina: “Quando não há estudo nem instrução no salão dos homens, como pode havê-los no harém?” Perron declara que a mulher árabe “degenerou grandemente em relação a há 12 ou 15 séculos atrás”. Sob o Islão, sustenta Perron, a mulher “não tardou a perder a situação intelectual e moral da árabe pagã”. Não se sabe, diz Perron, se nos países muçulmanos “ainda haverá mulheres capazes de ler”. As mulheres muçulmanas estariam reduzidas a serem apenas sexo, “le beau sexe”, enquanto os homens são por ele apodados de “vilain sexe”. Isto porque, segundo

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defende no final, os homens muçulmanos crêem na perenidade da guerra, ideia que domina inteiramente o seu espírito. E não se trataria de uma guerra sábia e inteligente, mas de uma guerra dominada por instintos primitivos e brutais: “Ser muçulmano e matar; não ser muçulmano e ser feito escravo ou morto. Sem este princípio, não há islamismo”. A aparente razão da leitura deste livro por Pessoa terá sido o seu interesse pela cultura e religião árabes do paganismo pré-islâmico. Por volta de 1916-1917, o heterónimo António Mora abordava nos seus escritos o tema da mitologia dos árabes no tempo do paganismo, isto é, “anteriormente ao endurecimento monoteísta que sofreram com o maometanismo”.14

Num outro livro da biblioteca de Pessoa, Essays in sociology, de John M. Robertson (London: A. and H. B. Bonner, 1904), há um ensaio intitulado “The Possibilities of Women” (vol. II, pp. 50-71). Neste escrito o prolífico escritor, político liberal radical e grande figura do livre-pensamento britânico, John Mackinnon Robertson − um dos autores mais lidos e estimados por Pessoa15 − debate as capacidades da mulher tanto para a arte e literatura como para as profissões de médicas, lojistas, etc. Robertson, um discípulo do líder secularista Charles Bradlaugh e colaborador de Annie Besant (dois dos pioneiros na defesa do controlo da natalidade em Inglaterra), foi também um especialista da história do cristianismo e um destacado defensor do comércio livre. Defende neste ensaio que “em geral, os homens tendem a subestimar as possibilidades das mulheres do mesmo modo que as nações tendem a desdenhar-se umas às outras” − uma curiosa antecipação ao duplo sentido que a palavra chauvinismo viria ter, com a consagração da expressão male chauvinism pelo movimento feminista dos anos 60 do 14

Fernando Pessoa, Sensacionismo e Outros Ismos, op. cit., p. 224.

15

Vd. J. Barreto, “Fernando Pessoa racionalista, livre-pensador e individualista: a influência liberal inglesa”, em Steffen Dix e Jerónimo Pizarro (orgs.) A Arca de Pessoa (Lisboa: ICS, 2007), pp. 109-127, e J. Barreto, “Robertson, John M.”, em F. Cabral Martins (coord.), Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português (Lisboa: Caminho, 2008), pp. 735-737.

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século XX. Robertson tenta desmontar todos os argumentos que sustentavam a inferioridade feminina, sobretudo no plano intelectual e artístico. Desde o tempo de Shakespeare ou da rainha Isabel, defende, muitas artes e profissões anteriormente nas mãos de homens (representar, cantar, tocar instrumentos, desenhar, pintar, escrever) tinham sido assimiladas e exercidas por mulheres com grau idêntico de excelência, especialmente na representação teatral. Não estariam, porém, ainda criadas todas as condições, que poderiam “exigir várias gerações de vida mais livre”, para a mulher atingir os níveis mais altos numa arte como a poesia. Em todo o caso, como o movimento New Woman mostrava, havia na viragem do século XIX para o século XX um número sempre crescente de praticantes femininas nas artes e nas letras. Bastaria, para Robertson, que a mulher tivesse liberdade e idênticas condições de independência económica para, em tão largo número como os homens e em competição com eles, realizar as mesmas actividades com êxito idêntico. Se nenhum músico inglês escrevera até ao século XX uma grande sinfonia ou uma grande ópera, argumenta Robertson, isso não provava em definitivo que os ingleses fossem incapazes de o fazer. E quanto à alegada inferioridade física da mulher ou à sua predestinação para a procriação, Robertson nota, por um lado, que grandes escritores e artistas britânicos foram de fraca constituição física, doentes dos nervos e até inválidos (como Pope) e, por outro, que também havia muitos homens que não contribuíam para a reprodução, não sendo precisas mais mulheres do que homens para procriar. Conclui afirmando que as possibilidades intelectuais das mulheres são praticamente as mesmas do homem, “certas inferioridades sendo compensadas, no cômputo geral, por certas superioridades”. Não há, nesta obra, notas à margem nem sublinhados de Pessoa. Tendo lido grande parte da vasta obra de Robertson e sido notoriamente influenciado pelas suas concepções liberais e teses históricas, Pessoa não acompanhava, decerto, o seu mestre livre-pensador nas

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ideias sobre o género feminino e a emancipação da mulher. Como vimos, Pessoa lamentou que os pensadores “racionalistas humanitários” tivessem adoptado uma posição contrária à sujeição da mulher.

Por fim, refira-se um livro que não se encontra na biblioteca de Pessoa, mas que ele afirmou ter lido, o romance de H. G. Wells Ann Veronica (1909). O tema é a new woman, o feminismo, a sexualidade feminina e o amor na sociedade pós-vitoriana (o subtítulo é A Modern Love Story). A heroína, Ann Veronica Stanley, uma rapariga obstinada e independente, decide ser uma pessoa de parte inteira: trabalhar, amar e, acima de tudo, viver. Afasta-se da família e das obrigações e convenções sociais do seu tempo. O casamento e a maternidade são por ela rejeitados como fim único da mulher e o mundo masculino suscita-lhe hostilidade. Enveredando por uma via de estudos e de descoberta pessoal, mergulha no mundo desconhecido das suffragettes, da Fabian Society e do amor livre. Quando decide namorar o seu professor Capes, um homem casado, confronta-se com o real significado da recém-descoberta liberdade. O amor faz Ann Veronica reconciliar-se com a ideia do casamento e da maternidade. Casa-se com o professor divorciado e torna-se então, voluntariamente, numa mulher devotada ao marido e desejosa de ser mãe, abandonando a atitude rebelde e o feminismo. O romance Ann Veronica causou sensação quando da sua publicação em 1909, tendo sido condenado na imprensa e nos púlpitos como literatura venenosa, devido à abordagem pioneira da sexualidade feminina e à avalização da relação adúltera da aluna com o professor, ao arrepio da moral vitoriana e dos estereótipos vigentes sobre a mulher. Acresce o facto picante de o próprio H. G. Wells ter abandonado a primeira mulher para se casar com uma aluna. Fernando Pessoa, no texto “Things thought out during the night 2 to 3 February 1917” (vd. aqui Apêndice 3), tece algumas considerações a propósito expressamente deste romance e de outras obras de alegado “baixo romantismo”, produto 24

do que chama a “histeria” de Wells (vimos como o romantismo e a histeria são sistematicamente conotados por Pessoa com o mundo feminino). Pessoa acusa-o de sacralizar a sexualidade, de fazer a “apoteose dos instintos”, quando, na realidade, a civilização assentaria na “moderação dos instintos”, dando como exemplo a necessária inibição da “tendência assassina” que qualquer homem possa sentir. Deixando de lado o romance de Wells, Pessoa passa a uma análise sumaríssima da “revolta da mulher” em geral, que designa como “um dos mais tristes sintomas de decadência” da sociedade. A mulher estaria talhada pela Natureza para os papéis sociais que o Kaiser Guilherme II apontara na fórmula KKK, Kinder, Küche, Kirche: crianças, cozinha, Igreja. Fora disso, “nada que uma mulher tenha feito se pode dizer que fosse verdadeiramente indispensável”. E dá como exemplo a literatura, onde a inferioridade feminina seria “manifesta”, embora isso, na sua opinião, não fosse o resultado de nenhuma “sujeição”. Em relação ao tema concreto do sufrágio feminino, ponto muito debatido no capítulo “The Suffragettes” do livro de Wells, Pessoa afirma que a mulher não deveria ocupar-se de assuntos políticos, mas acaba por conceder que, tendo as mulheres sido colocadas pelas “circunstâncias da civilização” moderna em igualdade com o homem em muitas funções, não se poderia fechar os olhos a essa realidade e, por isso, o melhor seria conceder-lhes o direito de voto. No mesmo ano de 1917 em que Pessoa assim discorreu sobre a “revolta da mulher” e Ann Veronica, Álvaro de Campos, no Ultimatum, dava “mandado de despejo” ao autor do romance:

Fora tu, H. G. Wells, ideativo de gesso, saca-rolhas de papelão para a garrafa da Complexidade!

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APÊNDICES Textos de Fernando Pessoa transcritos integralmente dos originais do seu espólio

Apêndice 1 [Porque é que as mulheres se detestam tanto umas às outras?] [ca. 1913]

 Porque é que as mulheres se detestam tanto umas às outras? = Porque se conhecem umas às outras.  Sim? E o homens  detestam-se menos ou não se conhecem uns aos outros? = Não é bem isso. Não é nem uma coisa nem outra. Os homens não se detestam uns aos outros em geral, nem se conhecem uns aos outros. O que eles têm, no giro da sua vida, a distingui-los das mulheres, é uma maior complexidade e abundância de interesses. O único interesse da mulher  à parte excepções doentias  é o homem. Por isso a única faculdade fundamental em acção na mulher é a que capta e enreda o homem. Daí um extraordinário desenvolvimento dessa faculdade, fazendo-a dominar toda a alma feminina. Daí a semelhança real e fundamental de todas as almas femininas. Daí o facto das mulheres se conhecerem umas às outras sem necessidade alguma de se estudarem para isso. A consciência que cada mulher tem de si própria é um estudo completo de toda a psicologia feminina.  Com o homem isso não acontece? E o fim do homem na vida não será a mulher? = Nunca. Raras vezes, pelo menos. O fim do homem elementar ou primitivo nunca é a mulher; é o prazer. É a mulher incidentalmente, porque o dá. Pode, para o homem civilizado, não ser a mulher. Há milhares de cousas que pode ser: máquinas, guerra, literatura, ...muita cousa.  Uma mulher não poderá ter interesses que não se liguem com o homem? = Sãmente, não pode. Deixe-me, antes de lhe falar nisso, explicar-me melhor. Os interesses fundamentais duma mulher natural  da mulher em geral, portanto  concentram-se todos no homem. Num tipo de mulher a obscura necessidade de ter filhos pode ser a necessidade ou interesse predominante. Noutro tipo de mulher a necessidade mais abstracta de ter uma casa sua pode ser o interesse predominante. Noutro tipo de mulher a necessidade de gozar a vida pura e simplesmente pode ser o interesse predominante. Noutros tipos de mulher o interesse predominante pode ser a 26

posse, meramente posse, do homem, ou a necessidade de riqueza que determinado casamento ou mancebia pode dar, ou a necessidade de posição social que pode advir do mesmo modo. Mas todas estas cousas têm isto de comum  que o centro delas, o meio natural da mulher as obter, é o homem. Em qualquer dos casos a captação do homem é a necessidade primeira e feroz.  Que absurdo! Quantas mulheres há que... = Não há. Há mulheres a quem a necessidade de ganhar a vida, por exemplo, progressivamente afasta do caminho natural. Mas isso é um caso como o da profissão militar no homem, profissão que a constituição das sociedades força a existir e que impõe ao indivíduo humano, naturalmente egoísta, cobarde e jouisseur, a necessidade de arriscar a vida e a integridade do seu corpo. São anomalias que as circunstâncias sociais criam. Não falemos delas. O que não existe na mulher normal é o que existe no homem normal  a divisão de interesses, a dispersão de interesses por várias cousas que têm, é verdade[,] um centro comum, mas esse não é a mulher, como seria de esperar se as actividades mentais dos dois sexos fossem correlativas  não é a mulher mas o próprio homem, ele próprio, através do prazer que dá a si-próprio ou da busca do meio (como o dinheiro ou a posição social) que lhe pode dar esse prazer.  O homem então é fundamentalmente egoísta? = Fundamentalmente. O homem só vive para si próprio e só a si-próprio se busca.  A mulher é altruísta? O homem busca-se a si-próprio, a mulher ao homem... portanto... = Não é isso. O homem busca o prazer. A mulher busca o homem. Mais do que ao prazer ou a outra cousa qualquer que o dê, a mulher busca o homem, simplesmente o homem. (Assim toda a sociedade trabalha para o homem; o homem para si, a mulher para o homem, porque procurar captá-lo envolve procurar dar-lhe prazer, e isso é trabalhar para ele).  A sua teoria é brutal. = Toda a teoria que tem a desvantagem de corresponder aos factos é brutal. O único facto fundamental da vida das sociedades é este: o homem é a célula social. A mulher é uma qualquer matéria necessária à vida dessa célula.  Que noção fica tendo da família quem defenda essa sua teoria? = Esta: a família é uma sociedade comercial que pode ser feita  consoante o contracto mais ou menos tácito e implícito  para uma variedade de fins, para todos dos quais são necessários um indivíduo macho e um indivíduo fêmea cooperando. O fim pode ser ter filhos, aquilo a que se chama continuar a espécie. Pode ser dar-se prazer mutuamente e mais nada. Pode ser dar-se um conforto mútuo, porque em troca do trabalho que daria ao homem andar à busca de prazer sexual (para o que pode não ter tempo), trabalho esse 27

que fica eliminado pela posse a qualquer momento possível do ente do sexo oposto que existe em casa, a mulher recebe uma situação financeira fixa, que a liberta de ter de se preocupar com ganhar a vida. Esta é a relação normal e fundamental dos sexos na vida social. Para obtermos outra seria preciso eliminar o facto “vida social”, puro divertimento para raciocinadores abstractos. Desde o momento que o homem tenha que andar sempre, como na sua juventude normal, à procura do ente do sexo oposto para as relações sexuais, grande parte do seu tempo perde-se, inutiliza-se. E desde que a mulher tenha que ganhar a vida, distrai-se da sua função real na vida social, que é captar o homem. Daí as feministas. São uma degenerescência da feminidade, que deve ser olhada, não com desprezo, mas com compaixão.  Com compaixão? = Decerto. Há compensações sociais, é claro. Instintivamente, estas cousas normalizam-se relativamente falando. E assim como a instituição da prostituição substitui no homem solteiro a tranquilidade do “lar”, tirando-lhe a necessidade de perder tempo na caça sexual; assim na mulher que tem que ganhar a vida, □ Há porém aqui uma diferença. O homem que cai na vida chamada dissoluta, e nela se fixa mantém-se homem, cumpre o seu dever para consigo próprio, que é o de se dar prazer sexual, visto que tem faculdades psíquicas e físicas que o exigem. Escusa  dada a existência da prostituição  de se intranquilizar nessa caça ao prazer; pode anular uma cousa a que os moralistas chamam “as suas faculdades superiores de amoroso”, mas essas faculdades não são senão as que tendem para o sossego sexual, interpretadas através dos sonetos de Petrarca, que, aliás, teve variados bastardos. Mas a mulher que ganha a vida perde a sua qualidade fundamental de mulher. Todo o tempo que gasta a trabalhar para ganhar a vida, perde-o para o seu único fim vital e psíquico, que é captar o homem. Por isso a única profissão que não estraga a mulher é a de prostituta.  Eh? = Absolutamente. A mulher que ganha a vida “honradamente” é uma invertida. O que no homem corresponde a esse desvio feminino é a inversão sexual. É o desvio do fenómeno sexual para onde o sossego é obtido pela impossibilidade natural de realizar o fenómeno sexual. Essa impossibilidade pode ser porque as relações sexuais entre homens são realmente possíveis. Mas isso é um requinte da inversão sexual normal em determinado tipo de homem, que, por si, não é anormal. Shakespeare nos seus Sonetos, apaixonando-se por um mancebo qualquer, foi, como sempre o grande normal que ele era, o representante supremo do tipo máximo masculino, o do homem cheio de interesses e atenções para tantas cousas da vida, que não pode gastar tempo na caça ao prazer sexual normal, e por isso o substitui pelo prazer sexual dado pela amizade com outros homens levada ao requinte, visto que esses interesses da sua vida o levarão por certo a lidar mais com homens do que com mulheres.

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 Essa teoria é fantástica. Com que então, para si, a inversão sexual é de certo modo uma cousa normal? = A inversão sexual masculina; da feminina só falei por alto. Essa é anormal. A mulher não tem direito à inversão sexual. Nela é uma degenerescência...  A propósito: que papel tem na sua teoria  que explicação, quero eu dizer  a inversão sexual feminina propriamente tal? = Ah, essa? É simples. É simples e um pouco complexa, sobretudo para explicar. Primeiro, a mulher desvia-se do seu papel normal de captar o homem. 16 Feito isso, ela já está invertida, está homem. Safo, por exemplo, caindo no erro terrível e imoralíssimo de, sendo mulher, escrever versos, ficou ipso facto invertida; uma vez invertida, tornouse psiquicamente homem.  Sim, está bem. Já vejo o resto. Daí a sentir uma atracção física pela mulher, o passo é um e curto. Resta saber se essa explicação corresponde à realidade. É tão simples que deve ser falsa, e tão natural que o é com certeza. = Nenhuma explicação corresponde à realidade. Só a realidade corresponde à realidade. As nossas interpretações são bocados que extraímos da realidade; e como os extraímos de lá e eles assim ficam truncados e irreais, injectamos-lhes vida raciocinando-os. Assim recompomos a realidade. Obtemos, se v[ocê] quiser, uma realidade de uma outra espécie, correspondente à outra a seu modo. Mas correspondência absoluta não pode nem deve haver. Corresponder à realidade é ser incompreensível. Para compreender a vida temos que substituir o que lhe tiramos de real e vida pelo que lhe pomos de compreensível e intelectualmente vivo. Por isso as teorias fortemente raciocinadas e que se afastam muito da realidade não são falsas. A realidade é que é falsa.

Fonte: BNP/E3, 55-36/38r-v. Dactiloscrito de 6 páginas numeradas, em papel timbrado da firma Lavado, Pinto & Cº Ltd, uma página apresentando perpendicularmente ao texto um trecho dactiloscrito de uma carta comercial datada de 10.XII.1913, endereçada à firma de navegação Maclay & McIntyre, de Glasgow. Este texto foi uma única vez publicado integralmente, com leves diferenças, por António Pina Coelho em Os Fundamentos Filosóficos da Obra de Fernando Pessoa, Verbo, Lisboa, 1971, vol. II, p. 165 e segs. Corrigem-se aqui algumas imprecisões. Teresa Rita Lopes transcreveu apenas parte deste texto em Pessoa por conhecer, volume II, pp. 479-480. Este diálogo evoca o texto coevo BNP/E3, 7-5r a 10r, de ca. 1913, pertencente ao Livro do Desassossego, um diálogo imaginado entre um homem e uma mulher e que também usa alternadamente o travessão (−) e o travessão duplo (=) para sinalizar as falas respectivas (ver Fernando Pessoa, Livro do Desasocego, ed. Jerónimo Pizarro, op. cit., pp. 53-57).

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Sinal de redacção provisória no final do período.

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Apêndice 2 [It takes a man to be chaste]

It takes a man to be chaste. Woman cannot be chaste without severe injury to her womanhood. Man exists for many purposes, of all kinds. Woman exists only for one purpose – the continuation of the species and those cares, household and other that are its purifying atmosphere, the mother being the poetry of the wife. Man can be superior to Nature; woman must ever be it slave. The training of noble sons is the only great task of woman. Woman’s nobility culminates in creating man’s; man’s in creating God’s. This natural slavery of woman unto Sex is monthly proclaimed by Nature, by menstruation. Every month the woman is reminded that she is merely a womb, and that woman should devise a means to abolish menstruation. That is the symbol and the reminder. Only after the menopause is woman “emancipated” indeed. The institution of monastic vows for women is one of the many follies of Christianity. Female immorality is bad, but female chastity is worse – not for the women only, but also for the race. Yet a woman who from social dignity remains chaste is, if she keeps her womanhood about her, to be respected. It is amusing to see women occupied with occultism to-day, especially when something is known (and understood) of those very curious Rosicrucian speculations concerning her “corrupted” nature [...]17 Man can be chaste; should be chaste in some cases, for some purposes. No one believes Milton would have built his great mental discipline on any other basis than that strict purity of his youth. So that, very naturally, women detest chastity. If anything, they detest it in a man more than in themselves. They pardon male homosexuality far more easily than they pardon purity. That great pederast, Shakespeare, is a woman’s author, if there be one. The extraordinary fascination that most pederasts exercise on women, is explained by the addition of sensuality, depravity and resistance to woman (not being chaste). Every woman adores unnatural forms of vice; it is easier to induce a normal woman to submit to them, than a normal man, † † not considered.) Besides this the understanding of women’s motives which the /pederast/ naturally bears is one added charm. Women like those who understand them, although there is nothing in them to be understood.

17

Frase que não foi possível transcrever completamente.

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But if women detest chastity, they hardly less hate nobility of motive and a firm purpose not used for practical ends.

Fonte: BNP/E3, 15B1-82r a 83v. Manuscrito inédito de duas folhas manuscritas na frente e verso, datável da década de 1910.

[Tradução] Só um homem pode ser casto. A mulher não pode ser casta sem ofender severamente a sua feminilidade. O homem existe para várias finalidades, de todo o tipo. A mulher existe apenas para uma finalidade – a continuação da espécie e aqueles cuidados do lar e outros que constituem a sua atmosfera purificadora, sendo a maternidade a poesia da esposa. O homem pode ser superior à Natureza; a mulher deve sempre ser sua escrava. Criar filhos nobres é a única grande tarefa da mulher. A nobreza da mulher culmina na criação da do homem; a do homem na criação da de Deus. Esta escravidão natural da mulher ao Sexo é mensalmente proclamada pela Natureza, pela menstruação. Todos os meses a mulher é avisada que ela é meramente um útero e . Aqueles que querem “emancipar” a mulher deveriam arranjar uma maneira de abolir a menstruação. Esse é o símbolo e o aviso. Só após a menopausa é que a mulher é realmente “emancipada”. A instituição dos votos monásticos para mulheres é uma das muitas loucuras do Cristianismo. A imoralidade feminina é má, mas a castidade feminina é pior – não só para as mulheres, mas também para a raça. Todavia, uma mulher que por dignidade social permanece casta deve, se ela conservar a sua feminilidade, ser respeitada. É divertido ver hoje as mulheres ocuparem-se do ocultismo, especialmente desde que se conhece (e se compreende) algo daquelas curiosíssimas especulações rosicrucianas a respeito da sua natureza “corrupta” e da sua impossibilidade de se elevar [...] O homem pode ser casto; deve mesmo ser casto e em alguns casos, para certas finalidades. Ninguém acredita que Milton tenha fundado a sua grande disciplina mental em qualquer outra base que não a estrita pureza da sua juventude. Assim, muito naturalmente, as mulheres detestam a castidade. Sobretudo, detestam-na mais num homem do que nelas próprias. Elas perdoam a homossexualidade masculina muito mais facilmente do que a castidade. Esse grande pederasta, Shakespeare, é um autor de mulheres por excelência. O extraordinário fascínio que muitos pederastas exercem sobre as mulheres explica-se pela soma de sensualidade, depravação e resistência à mulher (não sendo ela casta). Toda a mulher adora formas contranaturais

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de vício; é mais fácil induzir uma mulher normal a submeter-se-lhes, do que um homem normal, exceptuando ††. Para além disso, a compreensão que o pederasta naturalmente possui das motivações femininas é um seu encanto suplementar. As mulheres gostam daqueles que as compreendem, embora nada haja nelas para ser compreendido. Mas se as mulheres detestam a castidade, pouco menos odeiam a nobreza de propósitos e uma firme determinação não usada para fins práticos.

Apêndice 3 Things thought out during the night 2 to 3 February 1917.

Quadra: Chamas aos homens volúveis Pois sejam o que tu queres É por herança; é por serem Todos filhos de mulheres How I have laughed over the hysteria of Mr. Wells in novels like “Ann Veronika”! It is the rant of the lower romanticism over again, the subject of the ranting being changed and the style, slightly more intellectual, being considerably less stable and balanced. The apotheosis of instincts is a curious thing, when all civilization rests on a moderation of instincts. An argument is easy. Mr. Wells heroes and heroines generally argue on the line that, the sexual instinct having been given us for the propagation of our species, it is in a sense sacred and should not be inhibited excessively. From the moral standpoint the argument has no value at all. The man who feels a murderous tendency may claim his right not to control it on the score that if Nature gave it him it is for some purpose – presumably for a kind of scavenging or elimination. And if it be said that the birth of a human being is useful to the species, and the death of a human being harmful, the contention can be swept aside by the reply that it is by no means certain that all births are beneficial, or all death harmful, to mankind. The revolt of woman is one of the saddest of modern symptoms of decadence; that it is inevitable and the outcome of social forces does but make the sadder. About woman’s position in social life the sane man is of the same opinion as the Kaiser when he quoted 32

the three KKK as woman’s function. Outside dealing with children, with religion, with the household and all its implications, from cooking to dressmaking, there is nothing a woman has done which we can truly say cannot be spared. The inferiority of woman in letters is a striking one. There has been no subjection in this case to motive it. There is no species of subjection which can hinder a Shelley from writing lyrical poems, though a difficult life financially may hinder him from attacking greater work. Every one is worth what he is indispensable for. Woman is indispensable on the points the Kaiser indicated. The problem, as to suffrage, is: woman, by nature and social function, should not deal with political matters; by the circumstances created by our civilization she is fatally led to do so, being placed on equality with man in many social functions. There is no solution for this problem. If you do not give women the vote, you shut your eyes to the fact that they have been given by the circumstances of our civilization as much a right to vote as any man. If you give them the vote, you violate a natural law. The problem is analogous to that which once took place with a friend of mine. This boy was very clever but had received a strict education, religious and moral. It happened that he was constitutionally a sexual invert. That being his natural sexual tendency, all happiness and satisfaction could not be obtained by him except by indulgence in his “vice”. His moral standards rebelled against this natural impulse. But he had to yield to it finally, for his nerves were going under the strain of resisting his tendency, and his very intellectual activity was being impaired. The example is chosen because it is one I had occasion to witness, and because it exactly fits the other. If it is in questionable taste to quote such matters, I only do so because the more disgusting the topic to normal people, the more impressive the instance. This boy was by some train of hereditary circumstances constituted abnormally; this abnormality involved the necessity of function which all qualities, normal or abnormal, require. If he resisted the tendency, trying to live up to a normal man’s life, he destroyed his life, weakened his intellect and debased his very morals, not to refer, of course, to the physical impossibility a normal sexual life involves for such an advanced type. If he did not resist his tendency, he damaged his moral standard. There was no solution to the problem. It seems therefore that it is better to give women the vote, not because they have a normal right to it, but because they have an abnormal right to it; not because that is moral, but because it is immoral but inevitable; not because it is for the good of mankind or the furtherance of civilization, but because the contrary is still less in that direction.

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It goes without saying that the social period in which these insoluble problems appear is a period of decadence.

Fonte: BNP/E3, 15B1-90r-v, dactiloscrito inédito de 2 páginas.

[Tradução] Coisas pensadas durante a noite de 2 para 3 de Fevereiro de 1917.

Quadra: Chamas aos homens volúveis Pois sejam o que tu queres É por herança; é por serem Todos filhos de mulheres Como eu me tenho rido da histeria do Sr. Wells em romances como “Ann Veronika”! É a velha diatribe do baixo romantismo uma vez mais, tendo mudado o tema da arenga e sendo o estilo, apesar de ligeiramente mais intelectual, consideravelmente menos estável e equilibrado. A apoteose dos instintos é uma coisa curiosa quando sabemos que toda a civilização assenta numa moderação dos instintos. Argumentar é fácil. Os heróis e heroínas do Sr. Wells geralmente argumentam na linha de que, tendo-nos sido concedido o instinto sexual para a propagação da espécie, este é num certo sentido sagrado e não deve ser excessivamente inibido. Do ponto de vista moral tal argumento não tem qualquer valor. O homem que sinta uma tendência assassina pode reivindicar o seu direito a não o controlar a pretexto de que a Natureza lho concedeu para alguma finalidade – presumivelmente para uma espécie de limpeza ou eliminação. E se se disser que o nascimento dum ser humano é útil para a espécie e a morte nociva, a objecção pode facilmente ser varrida, retorquindo que não é absolutamente certo que todos os nascimentos são benéficos ou todas as mortes nocivas. A revolta da mulher é um dos mais tristes sintomas modernos de decadência; que isso é inevitável e o resultado de forças sociais só o torna mais triste. Sobre a posição da mulher na vida social o homem são é da mesma opinião que o Kaiser quando ele citou os três KKK da função da mulher.18 Para além de se ocupar das crianças, da religião, do lar e todas as suas implicações, como a cozinha e a costura, não há nada que uma mulher tenha feito que se possa dizer que fosse verdadeiramente indispensável. A inferioridade da mulher nas letras é flagrante. Não há neste caso sujeição alguma que a possa explicar. Nenhuma espécie de sujeição pode impedir um Shelley de escrever poemas líricos, ainda que uma vida financeiramente difícil o possa impedir de atacar obras maiores. 18

Kinder, Küche, Kirche: crianças, cozinha, Igreja (nota minha – J.B.).

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Cada um vale por aquilo em que é indispensável. A mulher é indispensável nos pontos que o Kaiser indicou. O problema, quanto ao sufrágio, é este: a mulher, pela sua natureza e função social, não deveria ocupar-se de questões políticas; mas, por circunstâncias criadas pela nossa civilização, ela é fatalmente conduzida a fazê-lo, tendo sido colocada em igualdade com o homem em muitas funções sociais. Não há solução para este problema. Se não se der o voto às mulheres, está-se a fechar os olhos ao facto de as circunstâncias da civilização lhe terem concedido tanto direito a votar como a qualquer homem. Se se lhes der o voto, viola-se a lei natural. O problema é análogo ao que uma vez se deu com um amigo meu. Esse rapaz era brilhante, mas tinha tido uma educação moral e religiosa muito rigorosa. Acontece que ele era estruturalmente um invertido sexual. Sendo essa a sua tendência sexual natural, só por cedência a esse “vício” podia obter felicidade e satisfação. Os seus padrões morais rebelavam-se contra esse impulso natural. Teve, por fim, que lhe ceder, pois os seus nervos já não aguentavam mais resistir a essa tendência e a sua própria actividade intelectual estava a ser debilitada. Escolhi este exemplo porque foi algo que tive ocasião de testemunhar e porque se adequa exactamente ao outro caso. Se é de gosto duvidoso citar tais assuntos, só o faço porque quanto mais repelente é o tema para pessoas normais, mais sugestivo é o exemplo.

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