As Matérias-Primas da Comunicação: minha fala na Compós 2016

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6/24/2016

As Matérias­Primas da Comunicação: minha fala na Compós 2016 | Mídias Canibais

24 DE JUNHO DE 2016  /  0 COMMENTS  /  EDIT

AS MATÉRIAS­PRIMAS DA COMUNICAÇÃO: MINHA FALA NA COMPÓS 2016 Fala realizada no GT Epistemologia da Comunicação, no XXV Encontro Anual da Compós, eveneto realizado na Universidade Federal de Goiás entre os dias 7 e 10 de junho de 2016. O artigo completo encontra­se nos anais do evento e também disponível no meu perfil no academia.edu. Bom dia. O que eu vou apresentar hoje é a evolução do meu projeto de doutoramento na UFRGS. Ano passado, meu primeiro ano na UFRGS, eu estava pesquisando Comunicação e Afecção a partir de Espinosa, quando duas coisas me chamaram atenção. Primeiro, o acidente da Samarco em Mariana, com o despejo de toneladas de detritos de minérios, que alterou profundamente todo o ecossistema da região. Segundo, em uma disciplina na pós­graduação dedicada ao estudo das Materialidades da Comunicação, comecei a perceber que muitos dos pontos de vista debatidos partiam da análise de dispositivos materiais e tecnológicos já dados, mas raramente se indagavam como aqueles dispositivos eram feitos, ou ainda de quê – componentes minerais e químicos – eram feitos. No aftermath do desastre de Mariana, foram veiculados relatos jornalísticos sobre a dimensão de extração de minérios ainda em ativa no Brasil. Não muito longe de lá é retirado da terra o nióbio, cujas principais reservas estão no país. O nióbio é uma das matérias­primas necessárias para o fabrico dos microprocessadores que usamos hoje https://midiascanibais.net/2016/06/24/as­materias­primas­da­comunicacao­minha­fala­na­compos­2016/

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em quase tudo – e cada vez de forma mais ubíqua, como na Internet das Coisas. Para se produzir um único microchip de duas gramas são necessários 60 elementos diferentes, ou cerca 1,3 quilos de materiais e de combustíveis fósseis, sendo 99% dos ingredientes descartados ao longo da produção. Ademais, “36% de todo ferro, 25% do cobalto, 15% do paládio, 15% da prata, 9% do ouro, 2% do cobre, e 1% de alumínio vão anualmente para tecnologias midiáticas” (PARIKKA, 2015, p.34). Logo, o que me parece importante é: se falamos tanto na materialidade da comunicação, como é que não atentamos para as matérias­primas da comunicação. Parece­me que existe uma interdependência entre nossa cultura midiática e a Terra enquanto natureza, meio­ambiente e recursos naturais que é um ponto cego na pesquisa em Comunicação, não apenas no Brasil. Lá fora, Jussi Parikka têm chamado à atenção para essa dimensão, ainda que seu foco seja distinto do meu. Foi utilizando um livro recente dele, Geology of Media, que eu tentei articular uma proposta de pesquisa que poderia levar em conta essa dimensão material. Creio que esse tipo de proposta possa se beneficiar de uma atualização das Três Ecologias de Guattari, a interrelação entre o meio ambiente, as relações sociais e a subjetividade humana. No artigo, eu dividi a reflexão em três estratos que se atravessam transversamente, são eles: geofísico, focando na ontologia das matérias e como elas entram em relação umas com as outras nos aparatos sociotécnicos mais utilizados para se comunicar; geopolítico, procurando as articulações que as cadeias produtivas de matérias primas e econômicas de produção industrial tecnomidiática operam, deixando rastros no trabalho e nas posições estratégicas das nações; geológico, tendo a Terra como matéria cujos dados são minados e significados nos domínios humanos. Devemos pensar o lado geofísico através do que Levi Bryant chama de https://midiascanibais.net/2016/06/24/as­materias­primas­da­comunicacao­minha­fala­na­compos­2016/

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endologia dos meios de comunicação. Se ecologia é a interação entre elementos exteriores a um indivíduo, endologia é a interação entre os elementos internos. Para pensar junto de Latour, a montagem de uma rede sociotécnica exige o que ele chama detradução para fazer casar um elemento com o outro. Eu chamo de trabalho: foi preciso que cientistas, desenhistas, programadores tentassem com as tendências e os afectos de matérias primas para que conseguissem produzir uma bateria de lítio, por exemplo, cuja autonomia é de muitas horas. Há um trabalho que fica oculto se pensarmos a tecnologia como determinante ou determinada pelas relações sociais. Por exemplo, no primeiro caso: é a capacidade das baterias terem muito tempo de autonomia que faz nossas comunidades seremalways on; no segundo caso: o celular que caracteriza a comunicação ubíqua é expressão do desejo humano de estar sempre em contato com outros seres humanos. Do ponto de vista endológico, material e das matérias­primas, não é nem um, nem outro: só podemos utilizar de forma ubíqua a internet em nossos smartphones com os materiais certos disponíveis e agenciados; estudados por cientistas, que testaram com os elementos, sem um desígnio, uma teleologia em suas ações. Logo, é o agenciamento entre disponibilidade de matéria­prima, desenvolvimento tecnológico e significação sociocultural que explica a adoção ou não de determinadas tecnologias e seu impacto na sociabilidade, no nosso caso, na comunicação. Mais interessante, para uma perspectiva da história da mídia, estaríamos adentrando uma espécie de história alternativa. A história da comunicação não seria mais social, mas (al)química: Niepce, Daguerre e Talbot experimentaram com estanho, iodetos, lactatos e nitratos de prata, ciclos de carbono, nitratos de urânio e cloretos de ouro até que a fotografia pudesse nascer. Do lado geopolítico, há de se atacar a seguinte noção neoliberal: a https://midiascanibais.net/2016/06/24/as­materias­primas­da­comunicacao­minha­fala­na­compos­2016/

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passagem de um trabalho de chão de fábrica para um trabalho “imaterial”, onde o “cognitariado” constrói uma “indústria criativa”, participando do “capitalismo criativo.” A ideia é de Hardt e Negri, para quem o grosso dos trabalhadores, então o proletariado, foi substituído pela força de trabalho intelectual, imaterial e comunicativa. Apesar de um efeito crítico interessante, o de fazer um publicitário se reconhecer como um peão com seu trabalho expropriado pelo patrão, os termos propostos pelos autores acabou “pegando” mais como uma justificativa para o gap entre o preço de produção de produtos como o iPhone e o de venda, onde atrela­se o “valor de marca.” Atentar para as matérias­ primas necessárias para fabricar esses aparelhos pode nos ajudar a ver novamente o lastro material que nossa cultura digital, supostamente descorporificada, possui. Um mapeamento da cadeia produtiva da Apple, por exemplo, começaria com o cobalto extraído de minas congolesas por crianças (como noticiado pela Aliança Internacional) e passaria pela Foxconn, empresa que ganhou os noticiários em 2010 após um surto de suicídio entre seus trabalhadores. Acontece nas plantas da Foxconn um hibridismo entre o orgânico e o inorgânico, entre o proletariado fabril e o capitalismo cognitivo high­tech: a poeira do alumínio, fruto do polimento dos iPhones com o intuito de acrescentar valor estético ao aparelho (eles brilham!), se acumula no pulmão dos trabalhadores chineses. Esse acúmulo dos materiais midiáticos no corpo do proletariado não é novo: no início do século passado, as telas de cinema eram feitas de algodão e igualmente se acumulavam nos pulmões dos trabalhadores, a chamada síndrome do pulmão marrom. Mesmo em uma fábrica ultramoderna como a da Intel não se está livre de doenças: a quantidade de material químico utilizado e descartado no processamento de um microchip é responsável por uma gama de problemas, do câncer a defeitos de nascimento – ironicamente, as trabalhadoras da Intel utilizam um traje de contenção hermeticamente https://midiascanibais.net/2016/06/24/as­materias­primas­da­comunicacao­minha­fala­na­compos­2016/

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selado, que protege o chip contra as sujeiras de seus corpos. Ao invés de um “cognitariado”, a cultura digital é sustentada pelo trabalho exaustivo na mineração, nas linhas de montagem de eletrônicos e nos lixões. É o hardwork que possibilita a ubiquidade da cultura do hardware: o termo “desmaterializado” não significa apenas “sem matéria”, mas refere­se a um modo de materialização em que a infraestrutura dos meios de produção torna­se imperceptível ou efêmera (GABRYS, 2011). No terceiro estrato, a geologia, passamos à medialidade da Terra. Somos a primeira cultura, como diz Kittler, capaz de predizer relâmpagos, de ouvir a melodia das placas tectônicas, de simular eventos naturais antes mesmo que aconteçam. Para Kittler, a passagem da antiguidade à modernidade, em três estágios, é justamente essa midiatização da Terra: os antigos experimentavam eventos naturais como acontecimentos que rompiam surpreendentemente a ordem das coisas; a primeira modernidade, com suas ciências geológicas e astronômicas, transformou o ar, a luz, a terra, o tempo e as estrelas em mídias, com registros codificados capazes de serem decodificados; a modernidade tardia foi além, fez dos eventos naturais modelos estocados na memória dos computadores, capazes de serem pré­ditos e, às vezes, simuláveis. Conhecemos a Terra, mas este conhecimento é sempre mediado. Nossas relações com a Terra são mediadas através das tecnologias e técnicas de visualização, sonorização, cálculo, mapeamento, predição, simulação, etc.: é através das e nas mídias que agarramos a Terra enquanto objeto cognitivo, prático, com relações afetivas. A interdependência entre circuito terrestre e midiático fica evidente no uso extensivo que a cultura digital faz dos recursos naturais convertidos em energia para máquinas, e a ausência deste ponto de vista nas narrativas do Antropoceno. Segundo o Digital Power Group, a “nuvem https://midiascanibais.net/2016/06/24/as­materias­primas­da­comunicacao­minha­fala­na­compos­2016/

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digital” consome um décimo de toda a energia gerada no planeta, o equivalente à soma da produção de força na Alemanha e no Japão. Potencial que deve aumentar conforme a rede for se espalhando por mais eletrodomésticos, a chamada “Internet das coisas”. Como comparação, cada servidor (data center) pode consumir quantidade de energia equivalente à de 180 mil casas; e o tráfego de dados consome mais que o dobro da energia utilizada em todo tráfego aéreo mundial. Logo, nossa tecnocultura também tem um impacto ambiental que precisa ser levado em consideração, por exemplo, nas políticas públicas e comerciais. Com o que hoje temos chamado de Antropoceno, a era em que o humano é um agente geológico, começamos a compreender que a Terra não é um depósito infinito de recursos materiais que podem ser retirados a nosso bel prazer. Sejamos francos: está hoje em questão “a maneira de viver daqui em diante sobre esse planeta” (GUATTARI, 1990, p.8). Nós já sabemos, e estamos estudando, o alto impacto político e cultural da midiatização… porém precisamos urgentemente estudar também o alto impacto ambiental dela. Desta discussão a Comunicação não tem o direito de continuar a se esquivar. Obrigado. Referências: BRYANT, Levy R. A Logic of Multiplicities: Deleuze, Immanece, and Onticology. In: Analecta Hermeneutica, v.3, 2011. ISSN 1918­7351, pp.1­19. GABRYS, Jennifer. Digital Rubbish: a natural history of electronics. Ann Arbor, EUA: University of Michigan Press, 2011. GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. Campinas, SP: Papirus, 1990. HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Império. Rio de Janeiro: Record, 2001. https://midiascanibais.net/2016/06/24/as­materias­primas­da­comunicacao­minha­fala­na­compos­2016/

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KITTLER, 2011. Lightning and Series: event and thunder. In: Theory, Culture & Society. vol. 23 (7­8), pp.63­74. DOI: 10.1177/0263276406069883. PARIKKA, Jussi. A Geology of Media. Minneapolis, EUA: University of Minnesota Press, 2015.

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