As medidas Socioeducativas e os Jovens Infratores: construindo a contradição no cotidiano da \"escola\"

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Apresentação Neste volume 3 encontraremos parte do relatório final da pesquisa Metacognição em Sala de Aula: um estudo sobre os processos de construção do conhecimento na perspectiva do jovem infrator no Estado do Rio de Janeiro. Esta pesquisa é o Sub Programa 2, projeto 1 do termo do programa de cooperação técnica UERJ/DEGASE publicado no D.O. do Estado do Rio de Janeiro em 10 de setembro de 1998, p. 32, ano XXIV, n.º 168, parte 4, sob o título de "Pró-Adolescente", SR3/UERJ. Foi coordenada pela Profª Dra. Carmen Lúcia Guimarães de Mattos “As Medidas Socioeducativas e jovens infratores: construindo acontradição no cotidiano da ‘escola’ ” é o título atribuido a uma coletânea de 5 textos dedicados às análises do contexto socioeducacional numa dimensão crítica onde as injustiças sociais manifestas nas relações contraditórias existentes na sociedade são reproduzidas no cotidiano das escolas estudadas construindo novos modos de interação que por processos de confrontamento diários acabam por perpetuarem as mesmas condições existentes na sociedade, impedindo algumas vezes, a resocialização desejável pela medida aplicada pelo Poder Judiciário aos jovens em conflito com a lei.

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Histórico Esta coletâna foi escrita no contexto da pesquisa como uma forma de ampliar nossa visão sobre os relatos e experiências obtidos no trabalho de coleta de dados no interior das escolas do DEGASE. A nossa falta de conhecimento em relação ao cotidiano dos jovens e seus “intrutores, professores, agentes” e a nossa familiaridade com o ambiente escolar nos fez refletir sobre o quanto desconheciamos “aquele tipo de escola”. Precisávamos encontrar algo familiar naquele ambiente estranho que em nada se assemelhava a escola que buscávamos, ao mesmo tempo que percebiámos a dignidade imposta pelas rotinas diárias daqueles agentes sociais construindo o que a lei determinou chamar de medidas socioeducativas. Esses textos foram um meio de catarse, ajudando-nos a avançar do estágio da denúncia para a alegria do anúncio de uma nova proposta pedagógica. Construimos o texto 1 através de uma mediação dilética entre a realidade e as representações desta realidade de forma a entender o significado dos objetos e valores em relação ao sujeito e ao seu espaço físico existencial temporário. O texto 2, chamado DILEMA ÉTICO: fatores ligados à violência, aborda a idéia de “tendência à violência” ou “delinqüência juvenil” baseando-se nas recentes pesquisas sociológicas sobre violência.

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1 Texto

A justificação estética do mundo: imagens de vidas sem liberdade

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos Universidade do Estado do Rio de Janeiro –UERJ

Maria Luiza Süssekind Veríssimo Mestranda em Ciências Sociais – UFRRJ

“Os jovens da periferia, descritos por François Dubet em La Galère (Dubet, 1987), vivem ao contrário, em exterioridade completa. A esfera do privado Ihes parece completamente estranha. A existência deles é feita de iniciativas fracassadas e de andanças sempre recomeçadas. Eles não estão isolados, mas multiplicam os encontros efêmeros e os contactos esporádicos. Em certo sentido, eles têm mais relações que o pequeno burguês perfeitamente integrado que vai de sua casa ao seu trabalho e vice-versa. Entretanto, o ativismo dos jovens não leva a nada. Seu percurso contempla um tipo de nomadismo imóvel traduzido por uma palavra do seu vocabulário, que exprime bem esta agitação sem objeto, la glande1. Glander significa andar sem rumo na superficie das coisas, não se ocupar de nada, deslocar-se sem rumo… …. Isto por uma razão de fundo: os traços constitutivos essenciais das situações de ‘exclusão’ não se encontram nas situações em si mesmas”.

(Pág: 16,

17 e 19, CASTEL, 1997) 2

1

Significa glândula, porém as tradutoras de Castel correspondem essa gíria à expressão “ coçar o saco”. Robert. WANDERLEY, Luiz E. W. Mariangela, WANDERLEY-BELFIORE Desigualdade e a questão social. São Paulo: EDUC, 1997. 2

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RESUMO Neste texto apresentamos resultados da pesquisa Metacognição3 em sala de aula: um estudo sobre os processos de construção do conhecimento na perspectiva do jovem infrator no Estado do Rio de Janeiro4 Investigamos, durante um ano, o entendimento que o jovem inserido no “Sistema de atendimento ao adolescente infrator no Estado do Rio de Janeiro” tem sobre seu próprio processo de construção do conhecimento e facilitação na solução de tarefas acadêmicas. Pretendemos descrever as estratégias metacognitivas utilizadas por esses jovens dentro do seu ambiente natural, isto é, locais onde existem a promoção de atividades “entendidas como acadêmicas” - oficinas pedagógicas, cursos, treinamento profissional. Discutimos em particular como o imaginário social representado pelas adolescentes em conflito com a lei nas tarefas

pedagógicas, refletem

uma visão estética distorcida e caótica da

realidade e das relações pessoais. Colagens em um mural feito pelas meninas representam através de imagens disformes

suas identidades, reforçando a

natureza excludente das práticas pedagógicas oferecidas como medidas sócioeducativas. Concluímos, que a maneira excludente como estas medidas são cumpridas podem influir negativamente na construção da auto-imagem da adolescente limitando sua possibilidade de reconstrução de uma vida cotidiana “regular”, incentivando a “marginalização” e reproduzindo a delinqüência.

Chegamos à Instituição, dia 20 de novembro de 1998, entrando, uma parte da equipe conversava com um funcionário (Mauro5) do setor pedagógico do Educandário Santos Dummont (EDS), unidade do DEGASE que atende exclusivamente a meninas em conflito com a lei. Numa sala, ao fundo do imenso pátio onde se localiza o setor pedagógico da escola, a outra parte da equipe de pesquisa encaminhava-se para as salas de aula e oficinas. Mauro tentava saciar nossa curiosidade explicando a forma peculiar com que as meninas enroscavam-se umas às outras pelo chão de cimento da quadra de esportes 3

A expressão metacognição Metacognição significa a maneira como nós pensamos sobre nossos pensamentos, conhecendo “o que nós conhecemos” e “como nós conhecemos”. É como se fosse um trabalho de gerência executiva de uma organização, um trabalho de pensar e regerenciar o pensamento. Habilidades metacognitivas são necessárias quando respostas habituais não alcançam sucesso. 4 Esta pesquisa é parte da “Construção de Planos de Ações Sócio-educativas e de Cooperação Técnica UERJ/DEGASE” (Departamento Geral de Ações Sócio-educativas) viabilizado no “ Projeto de Excelência” da Secretaria de Justiça e Interior do Estado do Rio de Janeiro. 5 Nome fictício.

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coberta. Podíamos visualizar pela porta da minúscula sala de aula, meninas reunidas em grupos de três ou quatro, deitadas umas sobre as outras formando uma escultura disforme, um conjunto de membros que lembrava uma rosca humana, conversavam e cantavam… Mauro sorria levemente demonstrando satisfação com este tipo de atividade. – “Esta é a forma de evidenciar a paz desta instituição e transmitir segurança, que é a nossa meta”. Para Mauro, esta demonstração de harmonia entre as internas era o fator diferencial entre o ESD e as outras instituições do sistema DEGASE. Um dos grupos de pesquisadores retornou à sala em que conversávamos chamandonos para observarmos as imagens de um mural feito pelas alunas. Este nos oferecia estas, entre outras imagens:

Figura 1

Mural “aniversariantes do mês de novembro” na ESD. O funcionário explicou a seu modo as idéias implícitas àquelas colagens. Era um trabalho de arte realizado na aula de uma professora. A tarefa fora realizada no sentido de comemorar os aniversários do mês. Logo, todos os meses, elas realizam esta mesma tarefa para comemoração. Mauro comentou sobre a professora ser uma pessoa muito comprometida com a solução dos problemas das meninas. Afixado na parede externa da varanda utilizada pelas três salas, dentre as cinco que foram instaladas improvisadamente pela direção da unidade neste prédio, estava o cartaz que nos deteve a atenção. Solicitados pela equipe, os desenhos nos foram

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dados com o assentimento do funcionário, da professora e sobretudo das alunas que finalizavam a tarefa. O imaginário visual e a sociedade marginal

Ao analisarmos esta cena somos levados a refletir sobre o conceito artístico de obra-prima. Cézanne, concentrado nas implicações que a forma tem na obra de arte, tornou maçãs, insignificantes e cotidianas, representações de toda a força viva da matéria. Uma “natureza morta” é em si, portanto em suas formas, uma

condição. É uma possibilidade de vida. Seguindo a linha de argumentação de Maffesolli, tomada a partir de Shapiro6 tratamos a arte como um fenômeno estético amplo e presente em todo o imaginário visual de uma sociedade. "É só enquanto fenômeno estético que a existência e o mundo eternamente justificam-se”7. Maffesolli também apoia-se em Nietzsche, e na visão de mundo hegeliana, para defender a existência de uma ilusão indispensável do corpo, como um conjunto de padrões estéticos e eróticos generalizados, funcionando como fator de união/ coesão social. A morte da arte, ou sua dissolução no caldo social, generalizada no conjunto da existência social, é uma característica da sociedade revelada pela filosofia que explica a própria pós-modernidade. “0 objeto coditiano só nos interessa aqui porque é uma modulação da forma. Ora, sabe-se que a forma partilhada funda sociedade, que tem uma função erótica, se entendemos essa palavra no seu sentido mais simples - o que leva à agregação. É nesse sentido que preciso alargar a concepção da arte…. …0 que quer dizer que o homem é produto da estética, ele é participante de um “genius" coletivo que o ultrapassa de longe. É tomado pelas formas, como num banho matricial que o modela e faz dele o que ele é. Assim, para tomar só uma das modulações dessa estética, a das imagens, o homem é menos criador de imagens, que forjado por elas. É arrastado para o que A. Artaud chamava magnetismo ardente das imagens.”

Outra interpretação da mesma cena

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Artistas, médicos, pedagogos, psiquiatras observaram as colagens do mural. Comparamos suas análises às interpretações feitas pelas próprias alunas.

Havíamos ficado surpresos ao ouvir delas que estas colagens não tinham nenhum significado ou que representavam a personificação das próprias alunas. Mais surpresos ainda, ao ouvir dos professores e do funcionário do setor pedagógico que isto 6

Shapiro, M. Style, artiste e société. Paris, Gallimard, 1982; Les pommes de Cézanne. 7 Nietzsche . , La naissance de la tragédie. "Oeuvres complétes", Paris, Gallimard, 1977, vol. 1, p. 143-144. 8 Maffesoli, M No fundo as aparências, Ed. Vozes, Rio de Janeiro, 1996, pág. 149, 150, 151.

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representava o “próprio estado mental delas – eram crianças grandes”.

Dos

profissionais citados anteriormente, absolutamente ignorantes do contexto daquela tarefa pedagógica, recebemos

e familiarizados com este padrão de representação visual,

impressões de que tratavam-se de trabalhos típicos de portadores de

disfunções sexuais e distúrbios de personalidade. Tais representações são, portanto, para estes profissionais, comuns em hospitais psiquiátricos e particularmente em locais onde grupos com graves problemas comportamentais manifestam-se

sobre a sua

própria imagem. Isto é, a auto-identificação. Estes desenhos nos sugerem um “caos identitário” que transparece aqui como em diversos outros momentos do processo de análise dos dados coletados. “A responsabilização e punição dos adolescentes infratores é, nesse sentido, não um direito dos adultos e do Estado, mas um dever. Um dever em relação aos próprios infratores. Como dever, está limitado pelo direito do adolescentes ao pleno desenvolvimento da sua personalidade. Assim, a responsabilização legal se torna um dever do Estado de buscar, por intermédio da aplicação da lei, possibilitar à criança o desenvolvimento de um super-ego capaz de reprimir os impulsos de destruição e inseri-la num convívio social pacífico. A possibilidade que o Estado e os adultos têm de suprir e corrigir suas próprias falhas e omissões que impedem um adequado desenvolvimento da personalidade da criança e do adolescente, levandoos a cometer atos infracionais” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA9).

A contradição de papéis e conflito individual de interesses e atitudes de cada pessoa, ou, da instituição em si, é assustadoramente revelador do quanto excludente o sistema de internação de menores é. Lembramos em que medida este sistema excludente tem seu molde na própria sociedade. Geremek reitera; e, em seu capítulo sobre a exclusão medieval explica o processo de marginalização, e, como esta palavra remete não só ao processo social como à atitude individual sendo

referente, originalmente e

simbolicamente à noção de espaço. Este, percebido socialmente de maneira dicotómica, o “dentro e fora”, o “centro e periferia”, o “bom e mau”, a “ordem e desordem”. “O que nos preocupa na análise destas duas punições, banimento e excomunicação, não é seu aspecto institucional mas, seu papel no processo de marginalização. Ambos 9 Brasil. Ministério da Justiça. Departamento da Criança e do Adolescente. Políticas públicas e estratégias de atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. Brasília: Ministério da Justiça, 1998, Coleção Garantia de Direitos, Série Subsídios, v.2, p. 30.

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encontram-se na origem de uma situação modelo que melhor ilustra a noção de marginalidade na vida social. Durante a Idade Média o significado destas duas punições tem, além das sofridas, modificações muito profundas: acontecimentos convencionais, elas tem perdido, em grande parte, seu papel inicial de instrumento de exclusão social. O banido era percebido como um indivíduo cuja existência diferenciava-o essencialmente daquela sociedade ordenada. Os medievais não tardaram portanto a adotar uma visão igualmente inversa: o modo de vida que testemunhasse um relaxamento dos laços com a comunidade atentaria para si mesmo a adoção da desconfiança social, ou mesmo expor-se-ia à repressão judiciária.” (Trad. 10

Livre: Geremek, B. pag.386)

Sobre a construção social da realidade, Berger e Luckmann discutem o processo de construção de papéis sociais encaminhando nossa análise para a identificação dos atores sociais como individuação e exteriorização de um conjunto de padrões e condutas objetivadas na sociedade. Estabelecendo ou reestabelecendo distância entre estes padrões e condutas, ou seja, os atos de alguém, é como se esta pessoa estivesse refletindo sobre sua conduta depois do ato. A distância entre o ator e sua ação pode ser retida na consciência e projetada como futuro conjunto de ações. Deste modo, ambas situações, tanto a ação autêntica como o papel que interpreta, são apreendidos não como unívoca e individual, mas como tipos de indivíduos. Por definição estes tipos são intercambiáveis. Não nos referimos aqui a conceito de múltiplas personalidades11 e sim a uma mesma personalidade que escolhe determinado “tipo” para agir conforme a situação que se lhe apresenta. Afirmamos pois, a existência de um estoque de conhecimentos coletivos objetivados num contexto povoado por tipos / atores sociais. Todo ser humano constrói padrões e condutas a partir de seu “eu”. Este “eu” só existe na medida que pertence e troca com um grupo social sendo representado e representando simbolicamente.

10 Geremek, B. Le Marginal, in: L’Homme Médiéval, UH,ED.SEUIL.:Paris 1989, pág 386. Texto Original: “Ce qui nous préoccupe dans I'analyse de ces deux peines, bannissement et excommunication, ce n'est pas leur aspect institutionnel, mais leur rôle dans le processus de marginalisation. Toutes les deux se trouvent à l'origine d'une situation modéle qui illustre le mieux la notion de marginalité dans la vie sociale. (Dans le courant du Moyen Age, la signification de ces deux punitions a d'ailleurs subi des changements très profonds: devenues conventionnelles, elles ont perdu en grande partie leur rôle initial d'instruments d'exclusion sociale.) Le banni était perçu comme un individu dont I’existence différait essentiellement de celle d'une société organisée. Les médiévaux ne tardèrent pourtant pas à adopter également une vision inverse: le mode de vie qui témoignait d'un relâchement des liens avec la communauté attirait de celui qui I'avait adopté la méfiance sociale, ou même l'exposait à la répression judiciaire.” 11 Múltiplas personalidades – Conceito emprestado da psicologia que indica multiplicidade no self de alguma pessoa, nada tem em comum com “caos indentitário”. Significa, segundo Doron e Parot, a existência de duas personalidades, do,latim persona, em um único indivíduo. Doron, R. & Parot, F. Dicionário de Psicologia. Editora Ática: São Paulo, 1998.

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Segundo Volpi12,, as medidas sócio-educativas devem garantir ao adolescente condições de superação desta exclusão. Isto aparece de forma muito evidente no aspecto jurídico da reconstrução desta identidade. Legalmente, o adolescente em conflito com a lei tem o direito a uma “nova existência” após sua vida institucional como se nunca tivesse passado por ela. Seu passado em conflito com a lei é apagado ao completar maioridade. Este fato, é tomado não apenas como direito civil mas como uma vantagem para o funcionamento do sistema social marginal, favorecendo o aliciamento de menores entre as gangues e tornando o menor um “exército reserva”13 das atividades ilícitas organizadas. Considerações finais

O imaginário visual da condição de privação de liberdade expressa no quadro 1, foi tomada aqui como uma interpretação estética do mundo explicitada por meninas “mulheres” na condição de infratoras. Mulheres de

traficantes que muitas vezes, foram presas para proteger os parceiros, ou por precocemente utilizarem meios ilícitos para atenderem às suas exigências individuais: de alimentar a fome ou de usar cocaína. Meninas que amadureceram na contradição da vida bandida do mundo do adulto. Ilustração mórbida da existência humana, as colagens refletem a contradição do sistema institucional de menores revelando seu caráter antipedagógico e alienado e a ausência de um perfil identitário que aja socioeducativamente sobre os valores sociais necessários ao delinqüente para sua ressocialização. Descrevemos, de modo breve o cotidiano institucional em suas “conformidades” retratando, de maneira “pictórica”, as relações contraditórias vividas por meninas no pátio da instituição e as interpretações

funcionário do setor pedagógico, cujas

declarações nos induzem a duas possibilidades: despreparo técnico e, ou,

o

descompromisso político com a educação na esfera da instituição visitada. Contradições entre o possível e o real. As comparações com instituições de saúde nos remetem à questões sobre a natureza “sócio-educativa” do ESD quando confrontamos com a fala de sua diretora que diz ser o processo educacional local “um blefe”. Isto é, sua inexistência flagrante nos lembra o fazer de conta que vivemos nas escolas de um modo geral, mas que se acentua quando os clientes são “menos” merecedores de escolhas educacionais bem sucedidas. Num sistema educacional cada vez mais meritocrático que vivemos no Brasil nesse final de século, os que merecem menos, 12 VOLPI, M O Adolescente e o ato infracional, Crez Editora, 1997, pág. 21 13 MARX,K. O Capital COMPLETAR

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quase sempre não tem direito a nada – a simulação do nada – que seria o blefe – o quase. Finalmente, não poderíamos deixar de comentar a questão da identidade, refletida tanto nas imagens, quanto no cotidiano institucional. A preocupação e zelo com a “formação” de uma nova identidade e a ausência de elementos provedores de “modelo” dos quais dependem essa mudança, facilita o que chamamos de “caos identitário”, processo que nos pareceu ser vivenciado por muito dos menores que entrevistamos no DEGASE, mas que se revelou mais acentuado no EDS onde meninas transmutam-se em meninos para

protegerem-se

ou

perpetrarem

violências

contra

suas

colegas.

Numa

demonstração de força a transformação da identidade servem duplamente para impor autoridade junto aos colegas e para estabelecerem uma simetria de força com os profissionais revelando-se, no dizer da direção, como “um dos maiores problemas da casa” meninas – meninos num grupo particular viviam em quartos/cela particulares e recebiam atendimento às suas demandas diretamente da direção. Falar sobre a contradição do âmbito do sistema do atendimento ao menor implica em revelar sua própria agonia existencial como instituição sócio-educativa. Se a sociedade não dá conta de sócio-educar seus alunos regulares livrando-os das barbáries que veteranos impõem a novatos violentando e matando como forma de confraternização, imaginemos o que significa sócio-educação no DEGASE?

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2 Texto

DILEMA ÉTICO: fatores ligados à violência Carmen Lúcia Guimarães de Mattos Universidade do Estado do Rio de Janeiro –UERJ

Maria Luiza Süssekind Veríssimo Mestranda em Ciências Sociais – UFRRJ

RESUMO Neste texto apresentamos resultados da pesquisa Metacognição14 em sala de aula: um estudo sobre os processos de construção do conhecimento na perspectiva do jovem infrator no Estado do Rio de Janeiro15 Investigamos, durante um ano, o entendimento que o jovem inserido no “Sistema de atendimento ao adolescente infrator no Estado do Rio de Janeiro” tem sobre seu próprio processo de construção do conhecimento e facilitação na solução de tarefas acadêmicas. Pretendemos descrever as estratégias metacognitivas utilizadas por esses jovens dentro do seu ambiente natural, isto é, locais onde existem a promoção de atividades “entendidas como acadêmicas” - oficinas pedagógicas, cursos, treinamento profissional. Discute, em particular, a idéia de “tendência à violência” ou “delinqüência juvenil” alicerçado nos últimos resultados de pesquisas publicados por GIBBS16 e na abordagem fenomenológica desta categoria, 14 A expressão metacognição é relativamente recente na área de educação. No entanto, é crescente no momento atual o interesse no estudo dessa categoria de conhecimento que envolve outros estudos sobre a conscientização relacionando este processo aos estudos sobre a função do cérebro. As velhas relações entre corpo e alma, razão e consciência, cérebro e mente, pensamento e ação perpassam o âmago dos recentes estudos em metacognição que despontam por suas características interdisciplinares, pois que são encontrados tanto nos mais recentes estudos filosóficos sobre redes neurais e inteligência artificial, quanto nos mais clássicos estudos psicossociológicos sobre o comportamento humano, como a construção coletiva do conhecimento. Metacognição significa a maneira como nós pensamos sobre nossos pensamentos, conhecendo “o que nós conhecemos” e “como nós conhecemos”. É como se fosse um trabalho de gerência executiva de uma organização, um trabalho de pensar e regerenciar o pensamento. Habilidades metacognitivas são necessárias quando respostas habituais não alcançam sucesso. 15 Esta pesquisa é parte da “Construção de Planos de Ações Sócio-educativas e de Cooperação Técnica UERJ/DEGASE”(Departamento Geral de Ações Sócio-educativas) viabilizado no “ Projeto de Excelência” da Secretaria de Justiça e Interior do Estado do Rio de Janeiro. 16 16 Este texto é baseado na análise e recolhimento de informacões de GIBBS, W.W., “Trends in behavioral Science – Seeking the criminal element” in: Scientific American, Março 1995.

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violência, de NEVES17. A pesquisa realizou-se de acordo com os processos microanalíticos de pesquisa etnográfica crítica de sala de aula. A etnografia como método de investigação científica destaca-se de outros métodos qualitativos por preocupar-se com uma análise holística ou dialética da cultura, isto é, a cultura não é vista como um mero reflexo de forças estruturais da sociedade, mas como um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e a ação humana. O “objeto” de pesquisa, agora “sujeito”, é considerado como uma “agência humana” imprescindível no ato de fazer sentido das contradições sociais.

“”Violência” – palavra e coisa – sendo um corpo único, tende(m) a identificar a palavra a uma das definições possíveis, a uma das coisas possíveis. Assim o processo de coisificação – de reificação – não se encerra ao mesclar, ao indiscriminar língua e objeto; o processo caminha, em sua volúpia de unicidade, para a escolha de uma definição (no) singular que passa a ser vista não como uma, mas como única, a única. No caso em questão, há uma escolha clara do imaginário 18

social: a violência é um mal e deve ser eliminada.” (NEVES, 1998)

Certa vez, no ESD, comentou o CP com uma das pesquisadoras que “as meninas estavam muito agitadas”. Estavam brigando entre si devido à chegada de algumas alunas durante a madrugada. Questionado sobre o porquê da entrada das novatas ter causado modificações nas atitudes, segundo ele sempre pacíficas, note-se que havia entrada e saída regular de adolescentes, “ - Chegaramrespondeu: umas meninas ontem com o

homossexualismo muito arraigado. Chegaram a brigar com pedaços de pau. São bastante masculinizadas nas roupas e cortes de cabelo, mas todas aprendem atividades muito femininas como cozinhar, pintar, fazer bonecos, bordar, fazer crochê.” Embora haja um consenso entre os cientistas sociais sobre o conceito de violência, não vemos o mesmo panorama quando tratamos de suas origens, seu papel na teia social, ou fatores socioculturais que impliquem num perfil de uma sociedade, grupo ou indivíduo violentos. Há um dilema ético presente hoje nos encaminhamentos científicos

17 NEVES, L.F.B. A Construção do Discurso Científico, Implicações sócio-culturais, EdUERJ, Riode Janeiro, 1998. 18 NEVES, L.F.B. A Construção do Discurso Científico, Implicações sócio-culturais, EdUERJ, Riode Janeiro, 1998, p.93, grifo nosso.

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e debates acerca da procura dos fatores que possam “determinar” a formação de criminosos. Biólogos, geneticistas, criminalistas, juristas e sociólogos, entre outros, vêm buscando explicar em conjunto, supondo a interação entre os diferenciados fatores. Sem dúvida, persiste a noção de que procurando junto a características demográficas, como idade, raça e nível sócio-econômico ligado a fatores da personalidade, história, psicologia e ambiente individuais, encontraremos grupos em situação de risco tanto para si quanto para a sociedade. Não pretendemos definir se o sistema punitivo a atitudes individuais e violentas numa sociedade deve ser baseado na ciência jurídica e política ou numa abordagem médicocurativa mas, apresentá-lo como aparece para os cientistas, para a sociedade e, sobretudo, para os adolescentes em conflito com a lei atendidos pelo sistema DEGASE. O Dr. Yudofsky, catedrático em psiquiatria no Baylor College of Medicine e editor do Jornal de Neuropsiquiatria e Ciências Clínicas, acredita que em no máximo dez anos poderemos diagnosticar aquelas pessoas que teriam propensão mental à violência. Assim, segundo ele, poder-se-ia alterar um modelo social de justiça, baseado no crime e na punição, por um tipo de sociedade que conceba a justiça como um procedimento mais médico e científico, do tipo, prevenção/ diagnose/ tratamento. Lembrando téoricos que definem formas atuais de operacão da justiça como sendo ainda calcadas em conceitos prémodernos de justiça (HELLER,1999), tornanamos propostas como a de Yudofsky bastante atraentes, mas, vejamos outras implicações. Existe, obviamente, um lado ruim na investigação e, principalmente, na divulgação destes tipos de estudos, podem gerar preconceito e sensação de poder, quando não contribuem, ainda pior, para sensacionalismos e oportunismos. Tanto na comunidade científica como na sociedade em geral. Nos anos 1930, por exemplo, surgiu e esteve em moda a idéia de que havia uma hereditariedade ligando os assassinos aos doentes mentais. Isto provocou a esterilização legal e compulsória em manicômios de 27 estados americanos. Em fins dos anos sessenta, uma pesquisa revelaria e causaria grande impacto com a descoberta de que criminosos violentos possuiam um cromossomo “y” extra. Breakefield, geneticista no Hospital Geral de Massachusetts, lembra este terrível episódio da história em que a ciência viu-se ajudando a selecionar bebês. Ao contrário,

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estudos subsequentes revelaram que homens “xyy” não são usualmente agressivos, de acordo com pontuações dos testes de QI.19 Um olhar mais atento sobre os massmedia nos trará certas ilustrações para esta relação entre masculinidade e (tendência à) violência. Mike Tyson, indivíduo de infância e adolescência marcadas por fenômenos de violência, tornou-se herói e representativo da bravura americana como lutador. Por duas vezes, ultrapassou os limites aceitos pela sociedade para suas atitudes violentas, que eram “ lutar com bravura, ganhar, e (até) matar no ringue”. Na primeira, foi preso por usar sua superioridade física (uma violência) contra uma mulher num quarto de hotel para persuadí-la a fazer sexo, foi julgado, preso e indenizou a vítima da tentativa de estupro; Na segunda, perdeu uma luta ao morder a orelha do adversário em pleno ringue televisionado para milhões de espectadores. Simultaneamente era procesado por agressão à recente esposa. Perdeu a bravura, ficou apenas “violento”. Foi então massacrado pela mesma mídia que o heroicizara. Enquanto isso, nos cinemas, filmes infantis e juvenis continuam produzindo “Rambos” e “Robocops” para alimentarem, nesta mesma sociedade que quer extirpar a violência, as idéias que correspondem força, bravura e virilidade à atitudes de violência20. Culturalmente falando, homens são mais violentos que mulheres. Deuses sacrificam seus próprios filhos, como Chronos. Falando em DEGASE, no ESD, mulheres tornamse “meninas-menino”, nas palavras do CP desta unidade da instituição, para ampliarem os espaços de negociação, protegendo-se ou agredindo a seus pares e ao corpo técnico com atitudes masculinas e violentas. Como na cena abaixo, ocorrida no IPS, o discurso da pedagoga e do menino concordam e corroboram com o imaginário social presente no ESD, atitudes violentas estão ligadas ao fator masculino. Isto não só é falso do ponto de vista científico como gera grande preconceito em relação ao homossexualismo e lesbianismo usualmente manifestos nas ditas unidades do sistema, vulgarmente denominado de “DEGAYSE”. Segundo psicólogos e psiquiatras existe, com maior frequência em unidades de privação de liberdade, quartéis e manicômios, o fenômeno do homossexualismo circunstancial.

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Sobre os testes de Quoeficiente de Inteligência … Um “bichinha” é um “mulherzinha”, atitudes masculinas são listadas em filmes, por exemplo a comédia “gay” “Será que ele é ?” ( tradução brasileira para “In or Out ?”) em que coçar os testículos ao invés de arrumar o cabelo denota masculinidade, como não sacudir-se com música e usar roupas casualmente desarrumadas.

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A Pedagoga nos recebeu no corredor interno do Instituto e nos encaminhou à sala do Diretor para apresentar à equipe os procedimento de segurança. Deveríamos tomar cuidado com: pontas de lápis, recados cifrados, barbantes e escovas de dentes, pois todos poderiam ser usados como armas pelos internos. Cada aluno carregava no pescoço um cordão de barbante com uma escova de dentes, com o cabo cortado pela metade. Ao passar pelo pátio ouvimos um adolescente que comentava: - “O maluco lá no pátio falou que quando sair daqui vai matar prá caralho”. Estudos de Moffitt, da Universidade de Wisconsin, e de Forgatch, do Centro de Conhecimento Social do Oregon, apresentados em encontro da Sociedade Americana de Criminologia mostraram que populações de machos em foco têm níveis percentuais constantes de criminosos, em torno de 6%, e segundo Forgatch, aqueles que são presos aos 14 anos têm cerca de 20 vezes mais chance de reincidência do que aqueles que não estiveram presos nesta faixa etária. Outra estatística apresenta um estudo psicológico da população carcerária e, conclui, que cerca de 45% sofre de “attention deficit disorder”. Dr. Mc Callon, médico da Penitenciária de Buena Vista, Novo México – EUA, apoia-se neste dado para afirmar: - “Eles trazem uma herança familiar, não aprenderam valores morais.” “Pra ser alguém na vida tem que aprender alguma coisa. Sem ninguém me perturbar, me deixando calma e tranqüila, porque eu sou muito nervosa. O pedagogo conversa tanto comigo, eu quero mudar, mas sempre tem alguém para me incomodar. Eu sei que eu mudei 50%”. Guardado espaço para as particularidades, é impressionante como as palavras do médico da penitenciária e da aluna em privação de liberdade do ESD têm sentidos complementares. No quadro nacional e estendendo-nos um pouco ao sistema de encarceramento, em geral, somos manchetes de noticiários internacionais por situações individuais e institucionais de desrespeito aos Direitos Humanos (torturas, chacinas, rebeliões, fugas). Com ênfase apenas na publicidade e não na credibilidade lemos regularmente resultados de pesquisas que envolvem grupos reduzidos dentro do universo dos jovens em conflito com a lei, ou ainda, notícias sobre suas prisões e mortes sem darem voz a suas famílias, a eles mesmos.

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Akers, diretor do Centro de Estudos de Criminologia e Lei da Universidade da Califórnia, acredita que os cientistas encontraram os fatores de risco mais intimamente associados à delinquência. O uso de drogas encabeça a lista, seguido de disfunção familiar, más companias, problemas de comportamento na infância, performance escolar ruim, supervisão e disciplina familiar inconsistentes, separação dos pais, e pobreza. Este pesquisador levanta a possibilidade de existirem quase 50% de “falsos positivos”, o que impede a utilização do método na identificação de futuros criminosos, servindo melhor como informação para programas de prevenção. Lipsey, da Universidade de Vanderbilt, analisou, recentemente, a redução de reincidência em 500 programas para delinquentes. Em todos eles houve um grau de 45% de reincidência comparados aos 50% que foram reencarcerados quando não participantes de programas. Ele declara que a via convencional é errada e não funciona. Concorda, segundo Gibbs, com Forgatch e Tolan, da Universidade de Illinois, mostrando a crescente e comprovada eficácia na redução de comportamentos antisociais desempenhada pela participação da família, uma das intervenções mais consistentes. A recuperação de alcoólicos também tem sido estudada e encaminhada no sentido de mostrar o fundamental papel desempenhado pela família neste processo. Muitos pesquisadores ficam frustrados quando, segundo Tolan, concordam sobre a eficiência relativa e a existência de poucas avaliações cuidadosas sobre programas de recuperação. Controversos programas como o “basquete da meia-noite” e outros de atividades extra-escolares receberam enormes verbas, enquanto os republicanos votam por mais construções de presídios. Tolan diz que os programas podem funcionar ou não mas “prender crianças não reduzirá a criminalidade e pode, eventualmente, tornar o problema pior”. Há no Brasil, poucos defensores desta tese, a maior parte dos juristas acredita na privacão da liberdade em casos determinados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA. Porém, nas dependências do DEGASE pudemos observar alguns discursos de alunos e técnicos que dão mais consistência a estas citações. “DOIS FUNDAMENTOS PARA A AUTORIDADE DA LEI Diversos sao os fatores que contribuem para a formação de uma sociedade onde os cidadãos respeitem a lei e os direitos dos seus concidadãos. Para o pensamento democrático moderno, o respeito ao direito está diretamente relacionado com a legitimidade desse mesmo direito.

Na medida em que o indivíduo, enquanto

cidadão, é responsável pela produção do direito, por intermédio de sua participação na formação da vontade da comunidade, este tenderá a respeitá-lo, pois estará, na

23

realidade, respeitando sua própria vontade.

Esta a idéia de autonomia, de

autogoverno, que nos chega por intermédio de Rousseau e Kant. Muito embora esse esquema seja constantemente utilizado para justificar a obrigação de respeito ao direito e à autoridade pública, trata-se de uma formulaição que dificilmente explica a conduta de crianças e adolescentes, que sequer tiveram a oportunidade de participar da formulação das leis às quais devem obediência. Uma segunda tentativa de se buscar explicar o respeito ao direito é o medo da coerção. De acordo com Hobbes é por medo que os individuos transferem ao Estado todo o poder de estabelecer normas e de aplicá-las, inclusive por intermédio da força. Alcançando o Estado o monopólio dos rneios de violência, os individuos respeitariam as regras impostas pelo soberano, pois caso contrário seriam sancionados.

Evidente que a coerção desempenba um papel relevante na

pacificação social. Esse esquema de obediência, no entanto, é tremendamente limitado.

Para funcionar exigiria a organização de um Estado constantemente

vigilante, totalitário e perverso.

Neste sentido, para se compreender o

funcionamento do estado.” MINISTÉRIO DA JUSTIÇA

21

A falência da sociologia em demonstrar conclusivamente formas efetivas de contrôle da violência gerou impaciência, outras áres da ciência buscaram causas e soluções sempre encarando-a como fenômeno individual. Fishbein, professora de criminologia da Universidade de Baltimore, admite o papel dos fatores sociológicos mas, define-os inábeis na tentativa de explicar o porquê de um indivíduo tornar-se violento e outro não.

Numa sala de aula do IPS, observamos a professora que conversava com os alunos sobre suas histórias de vida. Fatos idênticos que repetiam-se com nomes diferentes. Como o aluno “y” que: - “Tem 16 anos, tá há 5 anos no tráfico. Já é a terceira vez que ele veio parar aqui.” E, consultando sua agenda, como fazia a cada menino, constatou “estudou até a 4ª série.” Comentou: -“ Fazemos peças de teatro, psicodrama, porque os alunos são muito agressivos.” Neste momento, um dos alunos concordou: - “Tem que aceitar o que é ruim, às vezes o que é ruim parece bom, tráfico, dinheiro, mulher e revólver …”

21 Políticas públicas e estratégias de atendimento socioeducativo ao adolescente em conflito com a lei. Brasília: Ministério da Justiça, 1998, Coleção Garantia de Direitos, Série Subsídios, v.2, p. 27.

23

Em outra linha de trabalho mas tocando exatamente a questão, estudos de psicólogos como Kagan, de Harvard, fornecem subsídios indicando a inibição como característica de personalidade ligada a atitudes violentas. Outros estudos mostram que variações nos níveis de hormônios como a testosterona, serotonina e norepinefrina podem ser disfunções metabólicas e têm, deste modo, profunda influência nos graus de “stress” e nas

funções

neurotransmissoras,

gerando

comportamentos

anti-sociais.

Simultaneamente, biólogos e, mais especificamente, “shark behaviorists” declaram que tubarões da espécie “galha branca oceânico” possuem níveis de testosterona consideralvelmente superiores aos outras espécies de tubarões e, surpreendentemente, tão altos que equivalem aos de elefantes adultos. Os “galha branca” são responsáveis pela maior parte dos ataques a homens, particularmente em casos de surfistas e náufragos, sendo considerados uma das mais agressivas e curiosas espécies de tubarões. Kagan 22 descobriu que aumentando níveis de serotonina no cérebro podemos reduzir o grau de violência. Inadequadamente, o jornal Chicago Tribune publicava em seguida que quando declina o nível de serotonina no sangue os impulsos agressivos são indomáveis. De certo, não contribuiu o jornal para uma melhora no grau de informação do senso comum sobre as causas da violência. Goldman, Chefe de Neurogenética no Instituto Nacional de Abuso do Álcool e Alcolismo, coordena uma caça aos genes do cérebro ligados à produção de serotonina. E adverte “ teremos que entender muito mais sobre genética, origens ambientais e desenvolvimento da personalidade e doenças mentais” antes de usar os resultados de seus estudos. Encontramos, em uma das dependências do DEGASE, uma lista de medicamentos23 que, segundo respondeu-nos o diretor, deveriam ser usados para “acalmar” os adolescentes, pois alguns apresentariam “problemas nos nervos”. Yudofsky, menos circunspecto, acredita estarmos frente a uma revolução em que a medicina genética poderá identificar quem tem maiores tendências a cometer violências. Para ele, pais e professores devem observar desde cedo quando crianças respondem agressiva ou hiperativamente a certas situações provocadas, sendo ou não necessário conduzi-las a testes neurológicos que indicarão tratamentos psíquicos e/ou químicos. Reconhece hoje uma grande oportunidade para que a indústria química

22 23

Jornal de Educação e Justiça Criminal, 1993. Em anexo. FALAR COM ADRIANA

23

passe a pesquisar e desenvolver cada vez mais drogas de tratamento da “agressão”, como desenvolveu-se com a “depressão”. “Uma geração futura vai reconceituar, sem trivialidades, a tendência criminal como uma desordem.”(RAINE, 1993)24

Este modelo tem perigos e pode falhar facilmente. Gibbs pergunta: “Quando este comportamento antisocial tornar-se intolerável, o tratamento será compulsório e indefinido, necessariamente?” Questiona-se aqui, se, reexaminando o exemplo hipotético de Raine em que modelos teóricos de predição são eficazes frente a programas de intervenção biológica, social ou cognitiva, que não o são, não concluiremos que alguns adolescentes são incorrigíveis mesmo antes de terem entrado em conflito com a lei? Persiste um dilema de abordagem privilegiando ora o indivíduo e como atendê-lo na sua particular delinquência, ora fatores coletivos e causas sociocognitivas. 25 Educadores também viram na exclusão escolar importante causa de delinquência, vinculando-a muitas vezes a fatores culturais. Akers sublinha este dilema ético que se interpõe entre as descobertas da ciência e seus resultados, quando dizemos a um adolescente: - “Você não fez nada mas, fatores biológicos, sociais, cognitivos, etc nos levam a crer que você é um potencial perigo para a sociedade e para si mesmo e portanto deve fazer isso…”. Afirma que há uma clara diferença ética mas, a linha tênue dividindo esta questão ainda não foi transposta pelas pessoas, especialmente políticos. Segundo NEVES26, a violência, como um fenômeno sociológico, está presente em toda a história da humanidade e, se pensarmos em enredos míticos e arquétipos fundamentais das civilizações, ocidental e oriental, a violência pode ser vista como “tema, aspecto ou ponto decisivo”. Assim, encontramos situações de violência explícitamente descritas como fundadoras da história, psicanálise, economia, teoria da linguagem, entre outros. Para John Locke, por exemplo, a vida social seria impensável sem a violência e o medo. Estamos frente a uma linha de pensamento que não se preocupa em ver a qualidade (no sentido ético) desta violência constituinte, criadora de 24 Raine, A. The Psichopathology of Crime, Academic Press, 1993. 25 Em textos como “Contradição” e “Cultura da Pobreza” levantamos mais apropriadamente a questão da exclusão social e implicações destas intervenções biológica, social e cognitiva. 26 NEVES, op. cit., p.94 -98 23

positividade histórica, mas chama atenção para a existência de fenômenos violentos na história da humanidade como parte de sua estrutura, imanente. O autor ainda reitera que acostumamo-nos a tratar o fenômeno como algo oposto à estrutura, embora no caso da violência, este fenômeno exerça o paradoxo de ser instauradora de longas durações. O dilema ético sobre o qual escolhemos trabalhar questiona esta aspiração de “paz” encontrada nas sociedades pósmodernas. Se estamos buscando viver numa sociedade sem violências e violentos, devemos extirpar esta violência na sociedade ou nos indivíduos? Se a violência é constitutiva das estruturas sóciohistóricas e individuais, psicológicas, extirpá-la é mesmo possível? Enquanto contavam utilizando desenhos ou redações, em sala de aula, histórias dos crimes que os levaram à privação de liberdade, no IPS, a pedido da professora, um dos alunos fez sua confissão de culpa: -“Perdão é ótimo, eu queria ser perdoado para sair daqui, parei de estudar na quinta série, trabalhava numa farmácia. Quando assaltei pensei que o velho fosse reagir, matei logo! Eu perdôo e quero ser perdoado, se eu fosse o juiz eu perdoaria. Eu perdôo os canas, eles sobem o morro atirando e batendo. Quando a polícia te pega você se dá mal. Mas no tráfico, é pior, o salário desemprego é uma bala na cabeça” Embora prestasse atenção na fala do aluno acima, a professora olhava os desenhos que mostravam favelas e revólveres em meio à pipas e parabólicas cobertas por nuvens e sóis infantis. Disse, de repente : -“Você não vai falar do seu trabalho.” Um aluno retrucou no fundo da sala, diante de seu dedo indicador, um sussurrado por quê. Ela respondeu: “ Porque você escreveu aqui no desenho : PAZ, JUSTIÇA E LIBERDADE27” e, isso, não pode.”

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ZALUAR, HELLER HELLER LOCKE DICIONÁRIO DE PSICOLOGIA HARVE

27 “PAZ, JUSTIÇA E LIBERDADE” é o lema do Comando Vermelho, um dos grupos líderes do crime organizado do Rio de Janeiro. Responsável por grandes assaltos, desmonte de carros, sequestro, tráfico e todos os crimes que derivam deste ciclo. Formado nas prisões na década de 70 teve forte influência de alguns presos políticos em seu início, preservando somente as palavras do lema. Mas, significando o quê?

23

3 Texto

Instituição e Autoridade, o pai perante a lei : Dura lex, sed lex

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ Maria Luiza Süssekind Veríssimo Mestranda em Ciências Sociais - UFRRJ

Resumo Neste texto apresentamos resultados da pesquisa Metacognição28 em sala de aula: um estudo sobre os processos de construção do conhecimento na perspectiva do jovem infrator no Estado do Rio de Janeiro29. Investigamos durante um ano o entendimento que o jovem infrator tem sobre seu próprio processo de construção do conhecimento. A pesquisa utilizou procedimentos etnográficos na intensão de relatar numa lente mais ampliada as contradições cotidianas e ideológico-estruturais no contexto das “escolas” do DEGASE. Observamos e entrevistamos os adolescentes de modo a entender as construções mentais que utilizam em seu cotidiano e suas formas de aprendizagem. Encontramos neste estudo características da instituição que nos fizeram acreditar que as contradições vivenciadas pelos menores em nível institucional constituemse em importantes fatores para estudo dos processos de aprendizagem.

Aprender é uma capacidade inerente à experiência humana, processos intencionais de instrução, no entanto, nem sempre têm sucesso. Este aprendizado intencional dependerá, entre muitos fatores que não estão em 28

A expressão metacognição é relativamente recente na área de educação. No entanto, é crescente no momento atual o interesse no estudo dessa categoria de conhecimento que envolve outros estudos sobre a conscientização relacionando este processo aos estudos sobre a função do cérebro. As velhas relações entre corpo e alma, razão e consciência, cérebro e mente, pensamento e ação perpassam o âmago dos recentes estudos em metacognição que despontam por suas características interdisciplinares, pois que são encontrados tanto nos mais recentes estudos filosóficos sobre redes neurais e inteligência artificial, quanto nos mais clássicos estudos psicossociológicos sobre o comportamento humano, como a construção coletiva do conhecimento. Metacognição significa a maneira como nós pensamos sobre nossos pensamentos, conhecendo “o que nós conhecemos” e “como nós conhecemos”. É como se fosse um trabalho de gerência executiva de uma organização, um trabalho de pensar e regerenciar o pensamento. Habilidades metacognitivas são necessárias quando respostas habituais não alcançam sucesso. 29

Esta pesquisa é parte da “Construção de Planos de Ações Sócio-educativas e de Cooperação Técnica UERJ/DEGASE” (Departamento Geral de Ações Sócio-educativas) viabilizado no “Projeto de Excelência” da Secretaria de Justiça e Interior do Estado do Rio de Janeiro.

23

questão aqui, da “aceitação” por parte do aluno da autoridade do professor. Esta credibilidade, autoridade, legitima-se através do próprio trabalho e da crença na utilidade daquilo que se aprende. Particularmente, o aluno deve acreditar que sua relação com a autoridade escolar lhe trará benefícios. Observando durante um ano, nas dependências das unidades de privação de liberdade,

cerca

de

400

adolescentes

em

cumprimento

de

medidas

socioeducativas percebemos que esta relação de credibilidade entre aluno e professor está respaldada pela relação deste aluno com a instituição. Não obstante, voz da instituição socioeducativa, o professor é revelador em seu discurso e prática de uma característica basal do sistema: a contraditoriedade. Neste trabalho, mostraremos como a instituição, em seu caráter contraditório, e a autoridade, cuja credibilidade não se coloca em benefícios escolares, influenciam os jovens em conflito com a lei criando espaços de negociação entre grupos e indivíduos. Instituição, descrita pela ciência política como a estrutura organizacional de grupos e/ou espaços sociais e tomada filosoficamente em sua natureza total e contraditória, reproduz, reflete e recria papéis sociais. Deparamo-nos, de imediato, com uma confusão de papéis na qual uma prisão nomeia-se escola, a serviço de um sistema judicial e brinca de escola em seu interior com o aval do sistema estadual de educação. Por exemplo, a Escola João Luiz Alves, assim estampada em seu portão principal em letras garrafais, sobre o muro altíssimo, abriga em seu interior a Escola Estadual Candeias, mas é notoriamente aclamada, quase diariamente, no Jornal Nacional como “presídio de menores”, conhecido como “mansão”. Em outro exemplo, encontramos no diálogo entre uma pedagoga do DEGASE e a Subcoordenadora, pelo DEGASE, do Convênio DEGASE/UERJ. A Pedagoga apresentava-se à equipe de pesquisa, no momento de nossa entrada no ESD. Esta apresentação era uma atividade costumeira da pesquisa, sempre que entravamos em alguma instituição. Ela disse “ Eu sou J. Professor II de 1ª a 4ª série. O ESD é maravilhoso. São 28 meninas e gosto muito. Trabalhei no Santos Dumont de 1994 a 1996. Depois fui para a Escola Estadual Candeia no JLA e, agora, estou no Santos Dumont de novo.”

23

A Sub-coordenadora interpelou: “A J. faz parte do grupo de professores da Secretaria de Educação que passou para a SEJINT (Secretaria Estadual de Justiça e Interior). É da Escola que funciona no Santos Dumont, a Escola Estadual Luiza Mahin”. 1 O Insttituto Padre Severino, por sua vez, abriga em seu interior o Colégio Estadual Padre José Leôncio, que não vimos vestígios e é conhecido popularmente como “delegacia de menores da Ilha”. Contradição de discursos, de funções e de instituições. Na voz do seu diretor, anteriormente ligado ao DESIPE, a JLA utiliza a escola como forma de punição. Entende que para a classe menos favorecida da sociedade, -”A escola tem esta função mesmo”. Como concluiu Hopkins (1966) “ Os estudos de organizações formais tendem a se enquadrar em dois grupos: aquele em que o sistema de autoridade é visto como uma estrutura de poder e aquele no qual ele é visto como um processo de comunicação. 0 presente estudo tentou mostrar que essa distinção é inútil e desnecessária. Os principais teoristas de cada uma dessas perspectivas, Weber e Barnard, concordam em suas idéias sobre a natureza de sistemas burocratizados de autoridade, e suas explicações da efetividade desses sistemas se apoiam mutuamente ao invés se excluirem. Ambos desenvolvem uma concepção de autoridade burocrática construída em torno da importante tautologia de que toda comunicação imperativa é imperativa e é uma comunicação.” (p.72) Nesta citação, Hopkins fundamenta a afirmação de que a voz da autoridade institucional é a voz da própria instituição, não importando se esta autoridade é estabelecida pelo poder pelo discurso ou pelo saber técnico (Weber,1966)30 De fato, no DEGASE, a autoridade pode ser vista tanto quanto estrutura de poder quanto como processo de comunicação.

30

Hopkins, T.K. “O conceito de Sistema de autoridades”, in: Sociologia da Burocracia: textos básicos de Ciências Sociais Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1966.

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Orientadas pelo paradigma, escola-punição, as atividades pedagógicas do JLA, caracteristicamente alienadas quanto ao seu papel sócio-educador misturam-se a uma forma de tortura simbólica de retorno aquilo que a escola deveria ter dado e não deu: treinamento motor, contenção dos corpos numa cadeira – contrôle disciplinar, entre outras práticas. Presente em todas as

unidades do sistema, a contradição do papel

socioeducativo impresso no ECA com a aplicação das medidas alicerçadas no Código Penal e as práticas de cumprimento das medidas situam-se em nossa observação com uma verdadeira “Torre de Babel”, onde o menor nada mais é do que uma vítima do sistema servindo de Exemplo (lido como categoria filosófica). A sociedade mostrará ao menor e a ela mesma a importância da punição e do punido para continuar existindo como sociedade mesma, com suas regras e valores. De acordo com Davis e Moore, as sociedades criam certos tipos de “recompensas” que se tornam parte da ordem social justificando as injustiças sociais.31 Trabalhamos nesta argumentação, usando a teoria política do jurista alemão Carl Schmith sobre o “inimigo interno”, na qual o legislador nazista justifica a exclusão social a partir do papel ordenador que tem a sua punição, Exemplo. Podemos também ilustrar sua versão “tupiniquim”

dada ainda no século

passado pelo Intendente das Minas Gerais: "Os vadios são o ódio de todas as nações civilizadas, e contra eles se tem muitas vezes legislado; porém, as regras comuns relativas a este ponto não podem ser aplicáveis em toda a sua extensão ao território de Minas, porque estes vadios, que em outra parte seriam prejudiciais, seriam ali úteis." Coelho, J.T. (1734)32

31

DAVIS, K. & MOORE, W.F.Some Principles of Stratification, in: American Sociological Review, X, nø2, Abril 1945, p.242 - 249.

32

Mello e Souza, L. Os Desclassificados do Ouro; A Pobreza Mineira no Século XVIII, Ed Graal, Rio de Janeiro, 2ºedição, 1986, p.51.

23

John Locke escreve: "Transgredindo a Lei da Natureza, o Ofensor se declara viver por outra Regra, em vez de pela Razão e Igualdade comum ... cada homem sob esse aspecto ... pode restringir ou, se é necessário, destruir coisas nocivas, e assim pode trazer o mal a qualquer um que tenha transgredido aquela Lei, como pode fazê-lo arrepender-se, e assim detê-lo, e, através de seu Exemplo, impedir outros de fazer o mesmo." (pag.219) Tratamos aqui, segundo Heller

33

de conceitos pré-modernos de justiça, pois a

ética-política moderna não coloca a punição como centro do problema político, descrevem Rousseau, Hobbes e Hegel. A escola, destarte, confunde-se com a instituição, enquanto a autoridade escolar confunde-se com a autoridade institucional. Temos uma escola que é uma prisão e professores que são disciplinadores, informantes e vigilantes. Obviamente, teremos aqui uma sala de aula e atividades pedagógicas que não se apresentam em sua essência mas, também contraditoriamente, assumem o papel legitimador da autoridade e da instituição. “O que que a gente quis enfatizar aqui ? Não é a realidade deles. É uma situação tradicional. Começa até pela raça: eles são brancos (personagens das figuras), os filhos são bonitos, tem objetos caros. Aqui, o menino tem um bicho de pelúcia. Aparentemente não tem problemas... tem uma situação de equilíbrio. A gente vê aqui a união da familia rezando... orações, fartura. Será que eles têm família constituída, comendo com garfo, faca, copos, mesa limpa, higiênica, sorrisos, cadeiras... ? Será que existe esse ambiente ? – ela franzia a boca e balançava a cabeça sinalizando que não – “A casa dessas pessoas (alunos) é uma total sujeira, não tem hora prá nada, come com a mão... A gente vê aqui na hora do almoço, é uma falta de educação pra comer. Isso pra família não é importante. Mas como é que vai cuidar da higiene, unhas limpas? Não tem água. A pessoa ser pobre não é sinônimo de imundice. É que ela vai deixando prá lá: não lavam os pés, não ligam mais... Eles (alunos) não lavam. Outro dia o menino colocou o pé na cadeira, eu bati na perna dele e mandei ele abaixar. Uns são melhorzinhos, agora uns... A gente passa 33

HELLER, Agnes e FEHÉR, F. A condição política pós-moderna.. Ed.Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, , 1998.

23

como deve sentar, mostra a contradição e como mais ou menos deveria ser.” (Fala de uma professora do Criam sobre os alunos em conversa com a pesquisadora) Os CRIAM’s têm suas especificidades, classificados pelo discurso oficial do DEGASE, aprendemos que alguns são “proibidos” como o de Caxias, outros são favoritos, como o de São Gonçalo, o da “Penha” é interessante. Há também uma nova versão destas instituições, o CAI da Baixada, congrega todos estes adjetivos e faz sua fama: - “Vocês não podem deixar de visitar o CAI da Baixada. Em meio à interdição e o favoritismo, visitamos aqueles cujas equipes técnicas mostraram-se dispostas a receber-nos, sem contudo atinarmos para as “propagandas” do sistema. Um destes, tido como “um dos melhores”, foi palco de situação similar ao contexto temporal que estamos trabalhando. Recebera novos funcionários advindos de concurso público. Esta equipe técnica esmerou-se em mostrar o melhor de si, ao ser revelado pelo Diretor o interesse dos pesquisadores em conhecê-los e ao seu trabalho. Prepararam aulas e material pedagógico para “passar uma boa impressão”. Ao final de uma das visitas, a Pedagoga analisou o material utilizado na aula, fornecendo-o à pesquisadora e auxiliando-nos por demais na compreensão de seus objetivos. Um dos materiais apresentados sugeria comparações entre as representações da instituição família, podemos observar a ilustração abaixo que servia como tema da aula. Não identificamos com precisão o significado nem tampouco o objetivo pedagógico desta atividade. Foto 2 34

Figura 1

34

Uma entre fotos tiradas pela Equipe responsável pelo “Escritório de Cidadania” da UERJ com copia autorizada, para fins de pesquisa e estudo. Legenda: “Sem instalações, os adolescentes urinam em garrafas, que ficam expostas nas janelas.”

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Merecido destaque têm a vinheta35, a figura e a foto por resumirem, em seus conteúdos, as contradições de ideologias institucionais e institucionalizadas em todas as unidades do DEGASE. Como se estivéssemos em pleno medievo, a instituição e a autoridade prendem-se ao discurso dicotômico do “bom”, “certo”, “limpo”, etc… Remodeladora do novo “eu”, tematizada por Berger, Luckmann e encontrada também em Goffman.36 A vontade de anular um “eu” defeituoso”, substituindo-o por um “eu” “melhor” ou, “socialmente aceitável”, está claramente presente. O fracasso neste processo de reconstrução de “eus” reforça o processo de exclusão, fazendo do “marginal” culpado e autótrofo da sociedade. Ressaltando as contradicões entre a realidade do adolescente infrator e o modelo ideal de família, este discurso afirma a inexistência/impossibilidade deste modelo existir em suas vidas. Determinando, contraditoriamente, que a via de inclusão é comprovacão de exclusão. - P: “Vocês vão olhar pra figura e dizer, escrever o que acontece na sua família e o que você acha de diferente em relação a sua família” - A1: “ Ah, é muito chato...” - P: “ Sua família é assim ?” - A2: “Não.” - P2: “Esse é o objetivo, esse quadro vem mostrar o contrário da família de vocês”.

Não se discute aqui a intenção institucional sob o aspecto do sistema jurídico, pois partimos também da idéia de que apenas a socioeducação pode incluir este adolescente na sociedade. Contudo, seria impossível fechar os olhos a mais esta contradição de papéis reificada pelo discurso institucional, no qual “o bom é o branco” frente a alunos negros ou mestiços, em sua maioria absoluta. Apresentando variadas imagens como na figura 2 acima, professores de um CRIAM buscavam estimular com visões de famílias a auto-estima dos alunos, perguntando se eles tinham mesas, pais, copos ou avós como nos desenhos. A família “boa, feliz, branca, limpa e bonita, com avós e pais” coisifica no aluno, 35

Vinheta, do francês “vignette”, refere-se a uma pequena ilustração intracontextual utilizada para relatar uma instância de interação social em forma de narrativa, de modo a garantir que uma interferência breve ou afirmação possa ser substanciada pelo narrador.

36

Verificar texto MATTOS & VERÍSSIMO “Contradição” para melhor explicar estas referências.

23

negro, pobre, infeliz, infrator e, por exemplo cuja a avó faleceu, o estigma de vítima de sua contingência. Uma breve leitura das observações de Sennett e Cobb sobre uma escola regular inglesa, ilustra como certos fatores que levam à “aceitação” pelos alunos do sistema de autoridade presente na escola vista como instituição não são exclusivos do sistema DEGASE. “(…) Os professores têm um certo orgulho por isso, mas desculpamse com

os visitantes pelos arranhões nas superfícies das mesas

onde estão palavras, desenhos obscenos e iniciais que as crianças sempre parecem imprimir aos seus objetos. (…) Tudo que ocorre na 2º série, desde a preparação para a leitura até as brincadeiras, é dirigido pela professora. Ela empreende grandes esforços para que as crianças ajam “bem e apropriadamente”. O visitante que está consciente de sua própria presença nestas classes, a princípio, pensa que isto mostra a indisciplina, este constante comando e vigilância, é a resposta da professora a esta presença. No entanto, a professora relaxa e esquece a presença dele e a disciplina continua. Há uma variação entre os professores, de rude a amoroso, mas, todos, em comando na Escola Watson, agem como condutores que precisam trazer do potencial os movimentos dos “músicos” sob sua direção. Como falou o diretor: - “É estabelecendo a autoridade que nós fazemos a escola funcionar.” Na escola Watson professores restringem a liberdade das crianças porque a figura da autoridade tem que impingir medo nas crianças, É a bagunça que, na visão do professor, ameaça a ordem e a disciplina em sala de aula, mantendo o comportamento ordenado ou

desobediente, somente alguns

parecem ter “bons hábitos” ou atitudes corretas. Como explica um professor, “Eles vêm de casas de trabalhadores pobres onde os pais não entendem o valor da educação” Mesmo nas classes iniciais, notam-se poucos exemplos de comportamento indisciplinado, entre

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os seis e sete anos, um real desejo de agradar e aceitar o controle do professor e ser aceito por ele. Um incidente patético, embora extremo, chama atenção. Em meio a uma classe de preparação para a a leitura uma criança distraída em suas lições molha as calças. “O que você pode fazer com uma criança como esta?” fala desgostosa a professora. O que aconteceu é que a professora agiu de acordo com a sua expectativa sobre a criança e de um modo que esta expectativa torne-se realidade. Aqui vemos como este processo ocorre na segunda série que é normalmente dirigida por um jovem rapaz. Nesta sala de aula, estavam duas crianças. Fred e Vicent, cujas aparências eram muito diferentes das outras crianças, suas roupas era melhores, mais bem passadas e cuidadas do que as das outras crianças, eram os mais claros entre a classe em que a maioria era de origem italiana ou afroamericana. Fora da classe, o professor apontou os dois alunos em destaque como aqueles que mais se aproximavam do padrão que ele esperava para sua sala de aula. A estes meninos o professor dirigia-se com especial tom de voz. Ele nunca os premiou comparando-os a outras crianças, mas a mensagem de que eles eram os melhores e diferentes era espontâneamente assimilada. Observando as crianças brincando e trabalhando ao longo deste ano letivo, ele notou que estes dois alunos tornaram-se mais sérios e solenes com o passar dos meses. Obedientes às regras, estavam sozinhos, afastados pelas outras crianças ao final do ano.” (SENNETT & COBB,1973)37 Esta “aceitação” da autoridade e da instituição advém da necessidade e obrigatoriedade, para a maior parte da sociedade é uma “chance”, de incluir-se na teia social desempenhando um papel, isto é, ter uma identidade como ator social – cidadão. Originária de seu trabalho sobre as instituições, nos ajuda a teoria de papéis de Mead:

37 SENNETT,R. & COBB, J. “ The Hidden Injuries of Class”, Vintage Books Edition, NY,1973.

23

“Podemos ver prontamente que a construção de papéis está necessariamente correlacionada à institucionalização da conduta. Instituições

são

incorporadas

na

experiência

individual

pelo

significado dos papéis. Os papéis, objetivados linguisticamente, são um ingrediente essencial do mundo objetivamente disponível em qualquer sociedade. Agindo segundo um papel, o indivíduo participa de um mundo social. Internalizando esses papéis, o mesmo mundo torna-se subjetivamente real para ele.” Tradução Livre (Mead in: Berger & Luckmann, 1966 ) 38 Na discussão sobre os papéis sociais, o tema contradição remete a três dimensões possíveis: a primeira é a individual, psicologicamente descrita como a construção do eu e apresentada através do espelhamento das impressões que os internos têm de si mesmos e os conflitos inerentes a esta identidade; a segunda dimensão é a social, sociológica e antropologicamente descrita como a realidade institucional e seus atores. Esta realidade é construída pelas impressões que a sociedade de um modo geral tem de si mesma, na qual se inserem os tipos sociais. Impressões coletadas pelas observações, pelos discursos e especialmente pelo fazer cotidiano das pessoas, “agentes sociais“, guiam nossas reflexões remetendo-nos às bases do pensamento sociológico. Isto para explicar o fenômeno da definição de papéis e consequente exclusão nela implicita. A terceira dimensão, objeto particular deste texto, é a institucional, aqui representada sob o prisma de instituição protetora, legalmente tutora do adolescente em conflito com a lei e responsável pela construção de uma nova identidade, um novo “eu”. Identidade esta que poderá ser socialmente legitimada tornando seu ator aceito e dissociado da imagem anterior de exclusão.

38

George Herbert Mead, in: BERGER. P., & LUCKMANN, T. The Social Construction of Reality: a treatise in the sociology of knowledge. An Anchor Book, New York:1966. Pág. 74 -Texto original: “It can readily be seen that the construction of role typologies is a necessary correlate of the institutionalization of conduct. Institutions are embodied in individual experience by means of roles. The roles, objectified linguistically, are an essential ingredient of the objectively available world of any society. By playing roles, the individual participates in a social world. By internalizing these roles, the same world becomes subjectively real to him.”

23

23

4 Texto

Ambiente de Justiça: a construção de saberes formais caracterizada pela masculinidade e pela oralidade

Carmen Lúcia Guimarães de Mattos Universidade do Estado do Rio de Janeiro -UERJ Maria Luiza Süssekind Veríssimo Mestranda em Ciências Sociais – UFRRJ Cristina Cronemberger Góes39 Defensora Pública do Estado do Rio de Janeiro Resumo

Neste texto apresentamos resultados da pesquisa Metacognição40 em sala de aula: um estudo sobre os processos de construção do conhecimento na perspectiva do jovem infrator no Estado do Rio de Janeiro41. Investigamos durante um ano o entendimento que o jovem infrator tem sobre seu próprio processo de construção do conhecimento. A pesquisa utilizou procedimentos etnográficos na intensão de relatar numa lente ampliada as contradições cotidianas e ideológico-estruturais no contexto das “escolas” do DEGASE. Observamos e entrevistamos os adolescentes de modo a entender as construções mentais que utilizam em seu cotidiano e suas formas de aprendizagem. Investigamos, o entendimento que o aluno do DEGASE tem sobre seu próprio

39 Dra. Góes aceitou convite desta equipe para colaborar na Revisão bibliográfica e redação deste texto. 40 A expressão metacognição é relativamente recente na área de educação. No entanto, é crescente no momento atual o interesse no estudo dessa categoria de conhecimento que envolve outros estudos sobre a conscientização relacionando este processo aos estudos sobre a função do cérebro. As velhas relações entre corpo e alma, razão e consciência, cérebro e mente, pensamento e ação perpassam o âmago dos recentes estudos em metacognição que despontam por suas características interdisciplinares, pois que são encontrados tanto nos mais recentes estudos filosóficos sobre redes neurais e inteligência artificial, quanto nos mais clássicos estudos psicossociológicos sobre o comportamento humano, como a construção coletiva do conhecimento. Metacognição significa a maneira como nós pensamos sobre nossos pensamentos, conhecendo “o que nós conhecemos” e “como nós conhecemos”. É como se fosse um trabalho de gerência executiva de uma organização, um trabalho de pensar e regerenciar o pensamento. Habilidades metacognitivas são necessárias quando respostas habituais não alcançam sucesso.

41 Esta pesquisa é parte da “Construção de Planos de Ações Sócio-educativas e de Cooperação Técnica UERJ/DEGASE” (Departamento Geral de Ações Sócio-educativas) viabilizado no “Projeto de Excelência” da Secretaria de Justiça e Interior do Estado do Rio de Janeiro.

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processo de construção do conhecimento e facilitação na solução de tarefas acadêmicas. Pretendemos descrever as estratégias metacognitivas utilizadas por esses jovens dentro do seu ambiente natural, isto é, locais onde existem a promoção de atividades “entendidas como acadêmicas” - oficinas pedagógicas, cursos, treinamento profissional. Discute, em particular, a idéia de ambiente de justiça, contexto vivido pelos menores em conflito com a lei. Observamos a presença de noções, termos, raciocínios e expressões retiradas universo jurídico.A pesquisa realizou-se de acordo com os processos microanalíticos de pesquisa etnográfica crítica de sala de aula. A etnografia como método de investigação científica destaca-se de outros métodos qualitativos por preocupar-se com uma análise holística ou dialética da cultura, isto é, a cultura não é vista como um mero reflexo de forças estruturais da sociedade, mas como um sistema de significados mediadores entre as estruturas sociais e a ação humana. O “objeto” de pesquisa, agora “sujeito”, é considerado como uma “agência humana” imprescindível no ato de fazer sentido das contradições sociais. Em uma sala de aula do IPS, a professora conversava com os alunos enquanto eles copiavam seus próprios nomes, displicentemente. Num momento, ela perguntou a um adolescente: - “Quando é que você faz dezoito?”; Ele respondeu: - “Só no ano que vem.” Enquanto isso outro comentava : - “É, colega, dá prá roubar muito ainda !”

O direito surge da necessidade fundamental da sociedade humana de estabelecer segurança para seus componentes através de um ordenamento jurídico. Segundo o ensinamento de Durkheim “ as relações humanas são contaminadas pela violência, necessitando de normas que as regule” DURKHEIM

42

Deste modo, o Estado impõe sanções para os atos que atentem contra os bens mais importantes da vida social. Eis ai o surgimento do Direito Penal, que, segundo Magalhães de Noronha é: “o conjunto de normas jurídicas que regulam o poder punitivo do Estado, tendo em vista os fatos de natureza criminal e as medidas aplicáveis a quem os pratica.” 43

(NORONHA, )

A doutrina brasileira entende que crime é o fato típico e antijurídico. A tipicidade é, de uma maneira geral, a previsão legal de punição para a conduta do agente. Estão ainda incluídos neste conceito a ação ou omissão (dolosa ou culposa) do 42 (E. Durkhein. Las regras del método sociológico. Espanha, Morata, 1978, p.93 43

(Direito Penal, vol!, 15a ed., São Paulo, Saraiva, p.12)

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agente, o resultado e o nexo causal que deve haver entre esta ação ou omissão e este resultado. A antijuridicidade constitui-se na lesão produzida pelo comportamento humano que fere o interesse jurídico protegido. Este elemento do crime fica afastado, por exemplo, quando cometido amparado por uma causa de justificação, previstas no Código Penal, artigo 19: “estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal e exercício regular do direito”. Quanto ao elemento culpabilidade a doutrina se divide. Uma primeira corrente, defendida por Cezar Roberto Bittencourt sustenta que: “ a tipicidade, a antijuridicidade e a culpabilidade são predicados de um substantivo que é a conduta humana definida como crime”(BITTENCOURT, 1997)44

Assim, o conceito de culpabilidade integraria o próprio conceito de crime, isto é, só haveria crime se estivesse presente o elemento culpabilidade. Mas a doutrina que prevalece no Brasil, defendida pelo professor Damásio de Jesus entende que a: “culpabilidade é pressuposto da pena, não requisito ou elemento do crime” (JESUS, )45

Assim, a sanção será imposta somente quando for possível e positivo o juízo de reprovação sobre o comportamento humano. Esta diferença é relevante quando analisamos os elementos da culpabilidade. A culpabilidade é o juízo de reprovação pessoal levando em conta o autor, pela realização de um fato contrário ao Direito, embora houvesse podido atuar de modo diferente de como o fez. Ela é composta dos seguintes elementos: 1. Imputabilidade; 2. exigibilidade de conduta diversa; 3. potencial consciência da ilicitude; Neste trabalho, o que nos interessa é o elemento imputabilidade em particular, e o conhecimento sobre este, suas consequências e debates em torno, que os menores em conflito com a lei possuem. Imputar é atribuir à alguém a responsabilidade de alguma coisa. Se a imputabilidade consiste na capacidade de entender e de querer, pode estar ausente porque o indivíduo, por questão de idade, pode não ter alcançado determinado grau de desenvolvimento psíquico. O criminoso fica sendo portanto incapaz, do ponto de vista jurídico, para determinar seus atos e consequências. Fala-se então em inimputabilidade. Verificamos, entre os alunos atendidos pelo Sistema DEGASE, o domínio total da questão acima apresentada. Não discutiremos aqui se há ou não 44

Manual de Direito Penal, parte geral. 4a ed. São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1997, p.298

45

Direito Penal, vol1. 6a ed, ed. Saraiva, p.408

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inimputabilidade, se ela é ou não positiva para o menino ou a sociedade, nem se deve ou não haver internação ou em quais casos, mas, o entendimento legal demonstrado pelos adolescentes e a utilização que fazem destes conhecimentos. O Código Penal, em seu artigo 27, estabelece que os menores de 18 anos são penalmente inimputáveis, ficando sujeitos às normas estabelecidas na legislação especial. A menoridade penal gera, portanto, presunção absoluta de inimputabilidade. Logo, para aquela corrente que entende que a culpabilidade é elemento do crime, os menores “infratores” não cometem crimes, sendo-lhes por isto impostas medidas terapêuticas; previstas no Estatuto da Criança e do Adolescente, ECA. Apesar deste entendimento vir ganhando força ultimamente, ainda prevalece a corrente que diz que um menor comete crime, já que o fato praticado por ele é típico e antijurídico, mas, ele jamais poderá ser responsabilizado na esfera penal, pois lhe falta a imputabilidade, entendimento ou vontade de cometer o crime, que é pressuposto da culpabilidade. Este menor apenas ficará sujeito às providências previstas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente. Observando durante um ano o entendimento que os alunos inseridos no sistema DEGASE têm sobre suas habilidades e capacidades, fomos colocados frente à interessante questão: um ambiente de justiça gerava altos conhecimentos. Ao contrário daquilo que poderíamos supor encontrar, uma escola, deparamo-nos com um habitat cujas regras, vocabulário e procedimentos tinham muito mais características jurídicas que pedagógicas. Para quaisquer cidadãos brasileiros, leigos, obter definições e conhecimentos sobre termos como imputabilidade,culpabilidade, pena, artigo, desacato, entre outros, seria, normalmente, necessário, recorrer a ajuda de um especialista desta área de conhecimento. Então, nos perguntamos: 4. Por que adolescentes, que estão em geral há um ou dois anos fora da escola, e portanto, sem acesso regular a conhecimentos formais, demonstram saber adquirido sobre temas, questões, vocábulos e, enfim, sobre o ordenamento jurídico? •

Como, quando e onde adquiriram estes conhecimentos? Tendo em vista que nunca frequentaram escolas de direito e não há, nem nas escolas regulares, nem nas unidades de aplicação de medidas sócio-educativas, atividades com tal fim. Em que circunstâncias, com orientação de quem e com que materiais, puderam estes alunos construir tão sólido aprendizado sobre as questões jurídicas?



Com que finalidade possuem este conhecimento? Ou, qual é a utilidade e que necessidades levam estes jovens a superarem suas dificuldades de aquisição de saberes formais, anteriormente comprovada por seus históricos escolares de reprovações, analfabetismo formal e exclusão, para alcançarem e dominarem um saber específico?

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Por que, entre os adolescentes inseridos no sistema, os saberes jurídicos pertencem exclusivamente ao universo masculino?



Se possuem capacidades deste nível , por que não ter sucesso na escola regular?



Como um saber originalmente letrado e formal pode construi-se informal e oralmente?

Sabemos que é muito comum aprender em sala de aula com a ajuda do professor, na rua com os amigos, em casa com um sábio avô. Estudantes de Direito vão à Universidade para adquirirem o saber letrado e específico que os tornará bacharéis, e portanto aptos a julgar, legislar, acusar e defender, usando o ordenamento jurídico para promover o bem social. O entendimento legal consolidado no discurso dos menores, homens, foi observado em diversas ocasiões. Conversas informais com professores e agentes, conversas entre alunos, situações informais de sala de aula, produções acadêmicas e até murais do IPS, EJLA e CRIAMs enriqueciam nossa observação e nossas suspeitas de que estes conhecimentos eram produzidos nos “corredores”, ao longo de suas breves carreiras como “marginais”, nas salas de audiência, em contatos com advogados, aleatoriamente, num “ambiente de justiça”. Ou seja, observamos a construção de conhecimentos informalmente.

Uma sala de aula observada pela equipe de pesquisa, tinha seis meninos, contavam as histórias dos crimes que os levaram à internação, no IPS, a pedido da professora. Depois, ela mandou fazerem uma atividade escrita, e sugeriu: - “ Podem se dividir em dois grupos, o grupo do 12 e o grupo do 157”. 46

Entrando no refeitório do EJLA lê-se: “ Código Penal, artigo 331: Desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela. Pena: de seis meses a dois anos”. 47 Em entrevista à pesquisadora, na EJLA, um aluno afirmava não ser bom naquela escola. Corpo esguio, olhar cabisbaixo, falando manso. Negro, tatuado, exibia várias pequenas cicatrizes nos braços. Contou que ali o que melhor se aprende é: “ ter disciplina, (…) estudei até a quinta série mas parei porque tinha que trabalhar. Aqui não tem inglês, e matemâtica é só um reforço. Nem tem que se esforçar, eu era bom em matemática e queria mostrar que era 46 Refere-se aos artigos 12 da Lei 6368/76, sobre o tráfico de drogas e ao 157 do Código Penal sobre roubo, respectivamente. Observe que as penas impostas aos alunos referem-se a estes artigos estando, no entanto, determinadas pelo ECA. 47 A medida imputada ao aluno não corresponde à pena prevista no Código Penal, o mural dá uma informação falsa.

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inteligente, mas aqui … O que eu aprendi aqui? Vou ficar mais alerta lá fora, isso eu aprendi. É minha primeira vez, fui assaltar com um colega meu, e rodei… Fiz prá ganhar respeito, tinha brigado com minha namorada e dormi na casa desse colega. De manhã, peguei meu 3848 e fomos assaltar a uma loja. O dono chamou os canas e a gente teve que sair fora. Ele, meu colega, passou na minha frente e eu nem disse nada. Ele era de maior e se eu assumisse pegava de seis meses a um ano, no máximo. Ele ia pegar de um ano a três. Como aprendi tudo isso? Eu sei disso porque a gente conversa, vocês conversam né?”

De fato, o aluno executou um perfeito raciocínio jurídico, utilizou termos corretos e vocabulário adequado, demonstrando bom domínio da ciência. Embora não tenha frequentado um curso de direito, revelou a importante influência de um “colega”, instrutor, em seu processo de aquisição de conhecimentos. Ilustra a idéia de que, usualmente, alunos menos experientes utilizam-se da ajuda dos mais experientes para aprenderem e copiarem estratégias para solução de problemas, não necessariamente sempre acadêmicos. É metacognição. “Aprender é um processo de aquisição dos valores do meio. Não há nenhuma necessidade de ensinar às crianças.” (NEIL, 1960)49

Assim, tomado por amizade, boas intenções ou ordens e instruções, o menino mostrou que sua atitude tinha um fundamento racional, social e jurídico, livrando-se inclusive do estigma de estar ali por ser um fracassado. Optou. Curiosamente, seu discurso nos leva a pensar sobre dois aspectos do conhecimento que este adolescente possui. O que gera a inimputabilidade é uma pretensa incapacidade de entender ou querer cometer um crime por um menor. Isto porque a lei presume de forma absoluta que o menor ainda não atingiu um grau de maturidade psíquica necessário para determinar suas ações. Não? Simultaneamente, percebemos outra contradição levantada por este rico testemunho. Nogueira, grande jurista, como o menino, questiona o princípio da inimputabilidade penal vigente para os menores de dezoito anos pois, a pena é imposta mesmo que sob o cunho de “medida sócio-educativa”. Quando aparentemente o menino “erra” referindo-se à sua medida como “pena", está demonstrando conhecer o cerne dos debates sobre a diferença legal entre medida sócio-educativa, para os inimputáveis, e pena, aplicada aos imputáveis. O mencionado autor defende que: “ Foi assim mantida, como não poderia deixar de ser em face do preceito constitucional, a imputabilidade penal aos dezoito anos de idade, embora o Estatuto, de maneira camuflada, tenha reduzido para doze anos completos a responsabilidade do adolescente, o qual está sujeito a medidas que são verdadeiras

48 Refere-se a uma arma calibre 38. 49 NEIL, A. S. Liberdade sem medo, SP, Ibrasa, 1972. A data acima refere-se ao original. 23

penas, como a prestação de serviços à comunidade. (…) Além desta medida, que é pena no Código Penal vigente, outras há também (Estatuto, art.112) que correspondem às medidas penais previstas ao condenado maior de dezoito anos.” (NOGUEIRA, 1988)50

Como nem sempre as leis que se fazem para o bem de todos têm resultados previsíveis, a inimputabilidade acaba sendo uma garantia de mão-de-obra barata, farta e transumante para a marginalidade e o crime organizado. Como a reincidência não é prevista pelo estatuto, esta acaba sendo fator de poder e negociações entre terceiros e alunos. Nem sempre, os mais experientes, ali, auxiliam os menos experientes na solução de tarefas escolares. A hierarquização das organizações criminais coloca o adolescente na linha de frente da polícia, para ser preso como “boi de piranha”. Se a inimputabilidade serve bem aos discursos humanitários, fica só no papel pois, a realidade presenciada por esta equipe e a visão de muitos juristas sobre as medidas sócio-educativas e suas aplicações fazem com que estes adolescentes vivam em uma realidade penal que favorece apenas ao crime organizado, apesar de poderem “dispor” de certas vantagens da lei, o ECA. Segundo o Desembargador e ex-juiz de menores Alyrio Cavallieri, em recente artigo publicado no Jornal do Brasil (Opinião), faz-se urgente e necessária uma revisão do ECA, não em artigos isoladamente, mas um reexame global da lei em seu nono aniversário. Sublinha os crescentes índices de violência, mostrando que o número de processos aumentou de 2484 em 1995 para 6004 em 1998. E, assegura que mais assustador é que este número diz respeito apenas à “criminalidade aparente”, isto é, aquela que foi oficialmente registrada pela polícia ou pelo juizado, estando excluída deste índice a criminalidade cotidiana. 51

Neste contexto, a fala final do adolescente interno no IPS, denuncia ainda outro confuso modo de utilizar seus conhecimentos sobre medidas sócio-educativas e suas aplicações. - “ Tia, se eu conseguir fazer este desenho aqui você me dá dez pontos no relatório?” Barganhando frente à dificuldade imposta pela atividade em sala de aula pela professora que respondeu: - “Por que? Agora tem que dar ponto no relatório pra vocês fazerem ?”

E do controle” da rotina , uma pedagogia usada não para libertar mas antes para inibir toda e qualquer forma de reflexão 50 NOGUERA, P.L. “Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado”, Ed. Saraiva, SP, 1988, p.150.

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5 Texto

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Auto- determinação e contingência, atitudes de satisfação e insatisfação no contexto de privação da liberdade entre adolescentes: aspectos da cultura da pobreza. Carmen Lúcia Guimarães de Mattos Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ Maria Luiza Süssekind Veríssimo Mestranda em Ciências Sociais UFRRJ

Resumo Este trabalho revela a existência de mentalidades, sensibilidades e atitudes que emergiram de uma pesquisa de campo nas dependências de unidades de privação de liberdade para crianças e adolescentes em conflito com a lei. Estas atitudes indicam presença marcante da teoria da cultura da pobreza no ideário dos alunos destas instituições sócio-educativas e determinam, neste contexto, o aparecimento de duas posturas individuais nas personalidades destes alunos: a auto-determinação, como forma de resistência e inversão da realidade social consciente ou a contingência, como uma postura de submissão à realidade social. A abordagem etnográfica crítica de pesquisa orientou os procedimentos metodológícos assim como os referenciais teóricos de Heller subsidiaram a análise dos dados.

A idéia de sociedade insatisfeita busca captar a especificidade de nossa época mundial da perspectiva das necessidades ou, mais particularmente, da criação, percepção, distribuição e satisfação das necessidades. Isso sugere que a forma moderna de criação, percepção e distribuição de necessidades reforça a insatisfação, independente de alguma necessidade concreta ser ou não de fato satisfeita. (HELLER 52, 1998, pág.29) Em recentes estudos realizados nas dependências de unidades de restrição de liberdade para menores infratores, uma equipe de vinte e dois universitários, pesquisando e formando-se nas áreas de pedagogia psicologia e direito, financiados por um convênio entre a universidade e o órgão estadual que gerencia as mesmas unidades, registrou grande número de referências que nos levaram a este trabalho. Após a pesquisa de campo com duração de dez meses, 52 HELLER, Agnes e FEHÉR. A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.

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foi conduzida intensa análise e seleção de categorias fundamentadas em bibliografia de referência , evidenciando-se alguns temas. O tema apresentado a seguir contribui para uma reflexão sobre a questão das metamorfoses subjetivas do adolescente privado de liberdade, e em especial, para voltar a nossa atenção às políticas públicas e sociais que orientam o trabalho no sistema de cumprimento de medidas sócio-educacionais. Este tema, no contexto estudado, tem sua origem na observação das mentalidades, sensibilidades e atitudes que fizeram com que nos deparássemos com a linha ou escola de pensamento (LEACOCK, 1971)53 denominada teoria da

"cultura da pobreza" 54. De fácil identificação pelos observadores, esta

forma peculiar de representação social (GOFFMAN, 1967 )55 ou forma de aculturamento impregnada dos signos designativos de uma certa condição social entendida como pobreza, ou ainda, maneira de ser institucional, se expressa claramente nos conceitos formulados por Heller em recente publicação. Para a autora, os conceitos de contingência e auto-determinação tornam-se indicadores das atitudes individuais em relação a uma sociedade insatisfeita, isto é, falamos de uma sociedade que tem na frustração um dos mais importantes componentes de suas ideologias, sensibilidades, atitudes e comportamentos, tanto individual quanto coletivamente . Na dimensão individual, a insatisfação torna-se latente também no processo da individualização (DUMONT,1988) 56. Na dimensão coletiva, como nos lembra Anthony Giddens 57, uma das condições que a modernidade nos impõe é a existência de sistemas abstratos, centrais de significação e simuladores de confiança ontológica. Os sistemas abstratos impõe condições de distanciamento tempo-espaço, nos alocam em grandes áreas de segurança e existem em nosso

53 LEACOCK, Eleanor Burke The Culture of Poverty: A Critique, Ed. ERIC- nº: ED068606. 382p. Simon and Schuster, New York, N.Y. 1971 54 Cultura da pobreza ou "culture of poverty" teoria largamente empregada, especialmente na década de 70 por "scholars" norte americanos para justificar diversas formas de discriminações sociais das quais são vítimas os indivíduos em desvantagem sociais. 55 Goffman, I. Interaction Ritual: essay on face-to-face behavior. Pantheon Books, New York, 1967. 56 Louis Dumont, O individualismo, Ed.Vozes, Petrópolis, 1988. 57 GIDDENS, A. Sistemas, abstratos e a transformação da intimidade, in Conseqüências da Modernidade 2ª ed. UNESP, São Paulo, 1991 p 124.

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cotidiano contrapondo-se ao mundo tradicional. Segundo Heller, estes são " um traço conspícuo da identidade ocidental". Por contingência entende-se a condição de submissão dos desejos e expectativas de um indivíduo à sua realidade social. Individual e coletivamente somos todos lançados a uma contigência inicial pelo acaso do nascimento, porém, toda vez que vinculamos nossas projeções a esta contingência inicial estamos abrindo mão de uma possibilidade de uma transformação social e/ou individual, e nos arremessando diretamente a insatisfação crônica da sociedade além de nos estarmos distanciando da atitude de auto-determinação. Esta, implicaria em satisfazer-se com as espectativas e e desejos na sociedade possível, embora nem todas as nossas necessidades estivessem satisfeitas. Esta auto-derminação, portanto, significa manter-se processualmente e individualmente em sublimação da contingência inicial, ou ainda, nas palavras de Freire58 seria o "inédito viável", tornado possível de realização através de determinação individual, conscientização e processo de emancipação cultural . Esta tese apoia-se igualmente no pensamento de Kierkegaard59

no qual

afirma-se estar a existência humana determinada pela possibilidade. Ou seja, o ser humano determina-se em sua possibilidade e não pela sua realidade. Logo, quando abrimos mão da auto-determinação pela contingência deixamos de exercer a maior habilidade que temos por sermos humanos que é a possibilidade. Assim, a possibilidade é a capacidade inerente ao ser humano de escrever sua história ao invés de ser determinado por ela, obviamente lutando pela satisfação de suas necessidades. O tomar consciência da contingência é visto por diversos autores sob ponto de vista individual e coletivo, mas ambos foram informados, seja como história de vida ou processo histórico, pelo ideário de liberdade.

58 Freire, Paulo. Pedagogia da Esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. 59 Kierkegaard (op. Cit. Heller)

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Karl Marx 60, outro adepto da idéia da auto-determinação apesar de conceituar os sistemas sociais de maneira muito diversa de Heller, deu à ela uma amplitude sócio-política, tornando-a, a partir de uma dimensão coletiva, fator de transformação histórica: a luta de classes. Denominou-a consciência de classe. A relação do operário com a classe operária é de contingência, a necessidade e identificação com seus pares é o caminho da revolução, transformação operada individual, coletiva e socialmente. Podemos apresentar Marx e Kierkgaard como fundamentos para o pensamento de Freire e Heller, evidenciando a importância destas análises sociais que enxergam a contingência e a auto-determinação, respectivamente, como atitudes coletiva e individual, bem como suas contribuições para nossa análise. Vejamos ainda outra afimação de Heller sobre as idéias de contingência e autodeterminação, encontradas igualmente nos discursos dos adolescentes em conflito com a lei, como citaremos também a seguir: "Aristóteles ensinava que os escravos nascem, não são feitos escravos; o bramanismo sempre descartou a contingência com a teoria da reencarnação, e o cristianismo com a vontade de Deus, que atribui às pessoas seus lugares apropriados neste vale de lágrimas. Apesar dessas e de muitas outras tentativas de negá-la, a consciência

da

contingência

inicial

continuou

reaparecendo,

sobretudo entre os nascidos na extremidade inferior da hierarquia social.

'Se eu tivesse nascido X, e não Z, o que não teria

conseguido!' - esta e outras declarações semelhantes certamente muitas vezes foram feitas nas sociedades pré-modernas por indivíduos sensíveis e meditativos. Mas a consciência da contingência inicial era acompanhada, nas sociedades pre-modernas, pela consciência do fado.

'Como nasci Z, não conseguirei tudo que

poderia se tivesse nascido X'."61

60 Marx, K. O Capital V.1 São Paulo: Ed.Civilização Brasileira, 1973.

61 HELLER, Agnes e FEHÉR. Op. cit.p.31,32.

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Partindo do quadro teórico apresentado, alicerçaremos nossa análise nos conceitos de contingência, auto-determinação e cultura da pobreza descritos nas práticas e discursos dos adolescentes em conflito com a lei, com os quais passamos grande parte do último ano. Em situações de sala de aula, adolescentes e professores forneciam-nos dados que nos remetiam à concepção aristotélica de mundo, a contingência:

-“O que Deus achar melhor pra mim tá bom. O pior se eu estivesse morta.”, disse uma aluna. “Antes da aluna voltar para a sala, pediu a caneta que eu (pesquisador) estava usando perguntando-me se eu não poderia dar à ela . Eu disse não, pois como eu iria escrever? Ela não se convenceu e pediu uma caneta para a professora, que mostrou à ela com o que estava escrevendo, um “cotoco” de lápis, já que não tinha dinheiro para comprar caneta.” “Uma aluna saiu da sala reclamando e passando por todas as salas. Ela pediu ao pesquisador que anotasse em seu caderno a pobreza que a instituição estava, sem material para pintar desenhar, colar e também sem comida. Ela reclamou que os lápis quebram à toa e as canetas todas estão falhando, que já chegam nelas falhando.” -“… já extraviaram alguma letra de um dos pacotinhos”, disse a professora ao contar as letras de seu pacotinho de iniciais para uma atividade oral de Língua Portuguesa, enquanto um aluno colocou as mãos para atrás, no acento da cadeira dizendo: -“Não sei de nada.” Um aluno pediu ao professor para usar sua pasta de dentes: “Seu M. posso usar de novo?”. Foi até a pia e espelho no canto da sala e escovou os dentes com o dedo, voltou à mesa onde confeccionavam objetos artesanais sem valor de mercado e pediu 23

um cigarro a outro aluno. Este deu o cigarro, mas ponderou: “Quando tu tem tu não acende”. Numa

conversa informal com pesquisadores desta equipe, em observação

participante de uma sala de aula, expressando-se sobre os significados internos dos discursos do aluno, o professor comentou que um termo muito usado e que se constitui com produção cultural semiótica local é comarca (significa a cama de alvenaria existente nos alojamentos coletivos) . Comarca, inicialmente, é a origem geográfica do adolescente ao chegar à instituição, isto é, o local onde ocorreu o ato infracional. Os da comarca são aqueles que vieram de lugares diferentes

da

região

metropolitana.

Os

da

capital

não

pertencem,

consequentemente à comarca, tendo status superior. Nesta conversa um deles comentou ainda em relação às camas, ou comarcas: Aluno: - "Essas camas no verão esquentam e no inverno esfriam, a situação agora é boa... Agora deram um cobertor bom, grande. Antigamente, tinha um cobertor que só cobria até aqui..." (expressou-se colocando as mãos na altura do peito)

Interessante notar a questão da referência temporal - antigamente e agora tendo em vista o caráter de permanência mínima desta instituição. A temporalidade mencionada situa o menino como reincidente e familiarizado à cultura local, ou, como uma pessoa possivelmente informada sobre esta cultura. Numa atitude

de contingência, o aluno demonstra estar satisfeito com a

realidade nova dos cobertores e das camas . Em contraposição, teremos o discurso de outro aluno numa aula de sexualidade, observada pela equipe de pesquisa. Enquanto os alunos entregavam seus trabalhos ao final da tarefa, o professor observou e reclamou do estado das carteiras de uma dupla de alunos, deixadas "muito sujas" . Dizendo que nenhum material deveria ser "estragado" nem utilizado fora daquilo a que se propusera. Então,

quando questionado pelo professor a respeito do suposto uso

inadequado do material escolar, respondeu:

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Aluno : - "Quando sair daqui vou mandar dinheiro para comprar material "

Auto-determinado a superar a necessidade/realidade refletida na pobreza material da unidade de restrição de libredade, ironizou62 a cultura da pobreza manifesta pelo discurso institucional, expressa na voz do professor. Aparecendo também no diálogo entre aluno e pesquisador: -“ Você acha que é difícil mudar de vida ? - Não. É só ter força de vontade.”

Considerações Finais Os conceitos auto-determinação e contingência, identificados no cotidiano das “escolas-presídio”, repetem uma forma peculiar de proceder que, manifestada no indivíduo “ainda” em formação, consolidam formas de pensar e agir. Atitudes pré-determinadas orientam formas de vida, influindo na convivência social de modo marcadamente modelador. O adolescente norteado por atitudes de contingência, como foi evidenciado no contexto mediado pelo conceito de cultura da pobreza, orienta sua atitude de vida e convivência social acreditando em fatos como “Já que eu vou morrer antes dos 30 … Por que não fazer… “ . Pesquisas como esta evidenciam possibilidades de um trabalho mais criativo que busque a auto-determinação de adolescentes

levando-os a analisarem

criticamente o cotidiano de contingência e da sócio-determinação de modo emancipatório. Embora a sócio-determinação seja uma condição sócio-histórica do homem, para alguns estudiosos, no caso da privação de liberdade, delimita a perda de uma das maiores conquistas do homem: a possibilidade de ser livre. Sem contingência e sob a luz da determinação abrem-se atitudes de possibilidade.

62 Kiergaard, op cit. Mattos, Maciel e Mello A ironia na interação professor-aluno: de Sócrates ao século XXI - uma estratégia didática. Relatório da pequisa; Fracasso Escolar: Imagens de explicações populares sobre “dificuldades educacionais” entre jovens de área rural e urbana no Estado do Rio de Janeiro. UFF. Mec/ INEP1993.

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