As Misericórdias em Portugal: exemplos singulares de integração urbana

July 21, 2017 | Autor: Francisco Queiroz | Categoria: Misericórdias, História Da Arquitetura E Do Urbanismo
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A Misericórdia de Vila Real e as Misericórdias no Mundo de Expressão Portuguesa

O CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade é um centro de investigação com vocação inter-universitária, criado em 1990 pela Universidade do Porto e pela Fundação Eng.º António de Almeida, instalado num edifício autónomo da Universidade do Porto. Considerado como unidade de investigação desde 1996, no âmbito da FCT – Fundação para a Ciência e a Tecnologia, agrega investigadores de várias Universidades e outras instituições de ensino superior, públicas e privadas, de diferentes regiões do País, contando, ao presente, com mais de 300 associados, dos quais 120 doutorados. Na última avaliação internacional (2008), o Centro recebeu a classificação de “Muito Bom”, a mais elevada na área de História. A sua investigação, embora tendo como tronco comum a História, desenvolve-se numa perspectiva multidisciplinar, recebendo importantes contributos da Sociologia, Psicologia, Economia, Relações Internacionais, Património Cultural, Demografia e Prospectiva, apoiando a realização de estudos, propiciando a discussão e debate dos resultados de investigação em seminários internacionais, e promovendo a edição de obras de carácter científico e de uma revista, População e Sociedade, submetida ao processo de arbitragem científica (peer review). Para além dos seus próprios projectos, o CEPESE desenvolve projectos de investigação em colaboração com outros Centros e Universidades, nacionais e estrangeiros, com alguns dos quais mantém protocolos de colaboração, privilegiando desta forma a internacionalização da sua actividade científica. O CEPESE apoia a investigação dos seus membros, convida especialistas externos nas áreas de investigação referidas, mantém um sítio na Internet (www. cepese.pt), onde fornece informação actualizada sobre a sua actividade, notícias, working papers, a edição digital da sua revista, além de uma newsletter e de uma página no Facebook, e dispõe de uma biblioteca especializada, informatizada e pesquisável online, aberta aos associados, investigadores e a alunos de mestrado e doutoramento. O CEPESE presta ainda apoio científico e financeiro à investigação de jovens licenciados que pretendam efectuar cursos de mestrado e doutoramento, apoio que se traduz no acesso livre à biblioteca, na concessão de estágios, nas acções de formação e metodologia do trabalho científico que desenvolve e na disponibilização de bolsas de iniciação à investigação.

Coordenação Natália Marinho Ferreira-Alves

As misericórdias, enquanto instituições de assistência que surgiram em Portugal na viragem do século XV para o século XVI e que rapidamente se difundiram pelo mundo de expressão portuguesa, têm a sua origem nas confrarias de caridade medievais que floresceram em toda a cristandade, dedicando-se à prática das obras ou actos de misericórdia, de forma a atenuar o sofrimento e a miséria alheia. Obedecendo aos mesmos princípios doutrinários e a objectivos comuns – o exercício da caridade para salvação das almas –, a verdade é que os factores explicativos da origem de cada uma das misericórdias, sob o ponto de vista social, económico, cultural e religioso, são muito distintos, o que explica a configuração, identidade e a diferente cronologia de cada uma delas. A Misericórdia de Vila Real, de origem manuelina, tem desempenhado ao longo dos tempos uma função social digna do maior realce, detentora de um património histórico que a tornam um exemplo paradigmático no contexto trasmontano, sendo uma das mais antigas e importantes de todas quantas surgiram na região. Passou a dispor de um Hospital próprio em finais de Setecentos, que não mais parou de se expandir, e que esteve na origem do actual Hospital Distrital de Vila Real. Mais recentemente, a Misericórdia de Vila Real desenvolveu novas valências no campo da acção social. Em 2009, a Misericórdia de Vila Real apresentou à CCDRN – Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte um Projecto de Investigação intitulado A Santa Casa da Misericórdia de Vila Real. História e Património, o qual veio a ser desenvolvido pelo CEPESE – Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade. No seu âmbito, realizou-se um Seminário Internacional, em Setembro de 2010, subordinado ao tema A Misericórdia de Vila Real e as Misericórdias no Mundo de Expressão Portuguesa, o qual está na origem da publicação que agora se edita. No âmbito deste Projecto, está ainda prevista a edição de um livro em grande formato com a História da Misericórdia de Vila Real, desde a sua fundação até aos nossos dias, de forma a conhecer-se as suas origens, estrutura, organização, e a acção humanitária, religiosa e de beneficência que desenvolveu; o catálogo-inventário de todo o património móvel e imóvel da Misericórdia; e a criação de um portal na Internet, com diversas funcionalidades e conteúdos.



Título A Misericórdia de Vila Real e as Misericórdias no Mundo de Expressão Portuguesa Coordenação Natália Marinho FERREIRA-ALVES Edição CEPESE - Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade Rua do Campo Alegre, 1055 – 4169-004 Porto Telef.: 22 609 53 47 Fax: 22 543 23 68 E-mail: [email protected] www.cepese.pt



Capa mpfxdesign



Concepção gráfica



Impressão e acabamentos



Tiragem 500 exemplares Depósito legal 329733/11 ISBN 978-989-8434-05-0

As Misericórdias em Portugal: exemplos singulares de integração urbana José Francisco Ferreira Queiroz

Foram de vária ordem, os problemas urbanísticos levantados pela edificação das misericórdias em Portugal. A questão é tão vasta e interessante que, por si só, poderia dar origem a várias dissertações académicas. Iremos seguidamente focar alguns exemplos mais invulgares e interessantes de integração urbana das misericórdias1. Comecemos pelo caso do Porto. Se foi D. Manuel I quem aqui fundou a Misericórdia, em 1499, esta esteve sediada numa capela do claustro da catedral, durante muito tempo. Apesar de ter sido comum tal situação provisória, nas mais antigas misericórdias (e mesmo em outras de fundação tardia), numa cidade como o Porto, era realmente necessário um edifício condigno para sediar a Irmandade da Misericórdia, até por emancipação face à tutela episcopal2. As doações de benfeitores, geralmente por morte, iam aumentando. Em meados do século XVI, a Misericórdia do Porto tinha já rendimentos suficientes para iniciar a obra da sua igreja. Porém, as obras de edificação durariam quase vinte anos. A escolha da Rua Nova de Santa Catarina das Flores, no seu trecho inicial, poderia ter tido relação com a nobreza daquele eixo viário (loteado no reinado de D. Manuel I) e com a proximidade ao Largo de S. Domingos, que era um dos centros administrativos da cidade e o seu centro geométrico, à época. Contudo, o local onde a igreja se colocou, juntamente com a necessária casa do despacho, foi obtido por doação da viúva do abastado Fernão Camelo, que tinha tido ali umas casas, as quais ocupavam sete chãos3. É certo que o local era realmente quase o ideal para localizar a sede da irmandade: havia espaço para a igreja e casa do despacho e suficiente frente de rua, num eixo bastante cobiçado. Dizemos “quase” ideal, pois o fundo do logradouro confinava com o morro granítico da Vitória e um eventual desaterro para 1

O presente trabalho complementa a comunicação de Ana Margarida Portela Domingues, “As Misericórdias em Portugal: problemas urbanísticos e soluções recorrentes”, publicada neste mesmo volume. Contudo, atendendo à complexidade do tema, vários dos exemplos mais interessantes de misericórdias portuguesas, do ponto de vista urbanístico, não são aqui sequer mencionados, perspectivando-se o seu tratamento numa publicação específica. 2 Afonso, 2009: 139. 3 VILA, 1993: 115.

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prolongamento da capela-mor – ficando a igreja perpendicular à rua – resultaria dispendioso. Por outro lado, era problemática a desejada relação visual com o orgânico largo de S. Domingos. José Ferrão Afonso sustenta que pode ter sido essa a razão da planta da igreja se posicionar ligeiramente oblíqua face ao alinhamento da rua, precisamente no enfiamento do largo4. Essa falta de esquadria do corpo da igreja, face ao alinhamento da rua, quase não se nota hoje, dada a galilé com frontaria barroca que foi acrescentada à igreja, a qual subverteu a imagem inicial de uma igreja com fachada recuada e, provavelmente, mais modesta em cércea e em ornatos. No Porto, o recuo do alinhamento, com alguns degraus à mistura, serviria para distinguir a igreja da misericórdia das restantes casas, incluindo a própria casa do despacho. Esta foi, aliás, uma opção muitas vezes seguida em misericórdias que se encaixavam em quarteirões onde existiam casas em banda e onde, o facto de estar contígua a casa do despacho, poderia até ser um obstáculo à emancipação visual da fachada da igreja. Em Moncorvo, essa opção de recuo é evidente, não só por questões estéticas, mas também por questões funcionais, como ainda irá ser abordado mais adiante. De facto, a igreja da misericórdia e casa do despacho foram edificadas junto ao principal eixo intramuros, embora em zona de ruas estreitas e já algo divorciada do centro cívico da vila, que era então o rossio a sul do castelo e fora de portas. O tratamento dado ao complexo da misericórdia, com o uso da cantaria, claramente o diferenciava das demais construções. Porém, poderia ter sido feito um recuo da igreja e de todos os seus anexos à face da rua, o que não sucedeu. Curiosamente, também não foi somente a fachada da igreja a recuar. Esta opção parece evidenciar, não a intenção de destacar a igreja, mas a de estabelecer um diálogo entre a casa do despacho e a fachada da igreja, criando também um pequeno largo, como será explicitado mais adiante. Simultaneamente, atendendo ao posicionamento da igreja face aos seus anexos – que não estão somente de um dos lados, mas que também não procuram a simetria com a fachada do templo – parece ter havido intenção em recriar um “fondale”, passivamente (isto é, não por efeito da abertura de uma rua, mas pelo posicionamento face ao enfiamento da mesma). Este pano de fundo é acanhado, pois é necessário penetrar no tecido medieval e olhar por uma travessa, para ter a imagem perspéctica da igreja, ainda por cima perturbada pela escada e alpendre da casa da roda dos expostos. No caso de Braga, apesar de ser cidade mais esclarecida, ainda mais imperfeito é o “fondale”, ao ponto de se poder questionar se foi mesmo propositado ou uma mera coincidência, face ao local escolhido para implantação da Igreja da Misericórdia, que não poderia ser muito diferente daquele onde está, dada a intenção em manter tal instituição debaixo do controlo do arquiepiscopado e o descabimento de demolir partes da catedral para a encaixar ali. Além do mais, e como bem refere José Ferrão Afonso5, havia vantagens em colocar a igreja no gaveto, com dois portais de entrada, de modo a aproximar-se também dos que acediam à catedral através do claustro. 4 5

Afonso, 2009: 137-139. Veja-se, a propósito, Afonso, 2009: 135-137.

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E para rematar este tópico dos panos de fundo à maneira italiana, mencionemos o projecto, não concretizado, para usar a fachada feérica da Igreja da Misericórdia do Porto como “fondale” da nova Rua de S. João, concebido pelo cônsul britânico John Whitehead, em 1774. De certo modo, a dita igreja permaneceu até hoje com uma fachada demasiado impressiva para a envolvente que tem. Seguramente que a opção pela localização da Misericórdia naquele local, já de si condicionada pelo referido legado, condicionou a imagem urbana da igreja. Em suma, foi relativamente comum o recuo dos alçados das misericórdias face ao alinhamento das ruas, nos casos em que estas igrejas – quase sempre por contingências de legados ou pela necessidade de ocupar um espaço central disponível no centro do núcleo urbano – edificaram-se a meio de ruas com casas em banda. Como estas ruas eram geralmente de origem medieval e já estreitas para os padrões da Época Moderna, o recuo do alçado da igreja era quase imprescindível. Mesmo assim, no Porto, a Rua das Flores era uma rua nova e larga, para a época. Ainda mais comum, nas Misericórdias, foi o posicionamento das igrejas em pódio, com três ou mais degraus em frente da porta principal. No Porto, isso pode ser verificado, até porque o terreno o permitia com facilidade. Porém, em Braga e, sobretudo, em Guimarães, onde o terreno não se proporcionava a isso6, estas pequenas escadas, ainda que curtas ou mutiladas no seu desenho – para não prejudicar os percursos pedonais nos eixos preexistentes onde se implantaram – apresentam características mais assumidas. Ambas as igrejas da misericórdia encontram-se alinhadas com os demais edifícios contíguos, mas a soleira posiciona-se a uma cota superior, como forma de conferir dignidade e aparato à igreja, destacando-a também dos seus anexos, quando estes se localizavam à face da rua. Claro que esta opção só era admissível e só resultava bem se houvesse um mínimo de espaço em frente. Aveiro é um outro exemplo. Casos houve em que foi necessário adoptar ambas as soluções: degraus (onde o terreno não o favorecia propriamente) e recuo da fachada. Isso sucedeu em Santarém, onde, mesmo assim, o resultado urbanístico não foi perfeito, apesar da beleza da igreja, ou, sobretudo, por causa disso. Mesmo recuando e alteando, optando-se por uma fachada pouco vertical – como foi habitual nas igrejas das misericórdias anteriores ao barroco tardio – não se obteve em Santarém o desafogo que valorizasse o lavor da fachada. A análise a um qualquer mapa actual do quarteirão onde se implantou a Misericórdia de Santarém, permite evidenciar como a igreja e casa do despacho tiveram de se encaixar no cadastro preexistente. Certamente que isso condicionou a planta e, por conseguinte, também o facto de existir um portal lateral voltado para um pátio, ao qual se acedia a partir de um outro portal, no enfiamento da Travessa das Frigideiras. Estamos perante mais um “fondale” planeado, ou simplesmente o resultado da adaptação possível à malha preexistente? Seja como for, a dita travessa era muito acanhada e, portanto, não conferia suficiente dignidade a esta entrada lateral. 6

Em Braga, existe um ligeiro declive, sim, mas no sentido nascente-poente.

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Em Santarém, tal como em Moncorvo, as dependências anexas à igreja da misericórdia alinham parcialmente com os demais edifícios da rua, mas, junto à igreja, recuam e dialogam com a fachada desta, através de uma sacada de canto (fig. 1). Estas sacadas, típicas da arquitectura renascença, surgem em algumas outras misericórdias, em posição semelhante, salvaguardando as devidas diferenças de implantação. Almendra, e Melo, são dois exemplos.

Fig. 1 Misericórdia de Santarém

Porém, na perspectiva urbanística, não nos interessa tanto o tipo de sacada – fortemente ligado à época em que a casa do despacho foi erguida e ao gosto estético dos encomendadores e dos artistas. A questão fulcral é a da função e a do posicionamento. Assim, a mesma função e o mesmo posicionamento poderiam surgir numa varanda com arcos, como em Coruche. Insistimos que estas opções arquitectónicas eram consequência da própria acção das misericórdias, mas não de todas, ou as referidas opções seriam verdadeiramente recorrentes, e até transversais às várias épocas em que foram sendo erigidas as igrejas das misericórdias. Procurando problematizar um pouco mais esta questão, ainda que de forma provisória, convém referir que as misericórdias frequentemente encarregavam-se de rituais quaresmais, nomeadamente da procissão dos Passos e das procissões da Semana Santa, em particular. A figura de Cristo Morto, por exemplo, era recorrente nas igrejas das misericórdias, posicionando-se geralmente sob o altar principal, com o grupo escultórico da lamentação, mais ou menos elaborado; posicionando-se em outro qualquer altar da igreja, numa versão mais simples, acompanhado de Nossa Senhora das Dores; ou surgindo na versão da “pietá”. Uma vez que muitas misericórdias albergavam imagens que saíam à rua durante a procissão dos Passos – para além das inevitáveis e típicas bandeiras pintadas com temas da Paixão e Morte de Cristo – é comum encontrar o Senhor dos Passos (ou

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dos Aflitos), em igrejas das misericórdias, assim como o Senhor da Cana Verde e Cristo preso à coluna. Apesar destas imagens poderem ser também encontradas em capelas do Calvário propositadamente construídas, estas últimas eram geralmente pequenas e concebidas como remate da encenação da Via Dolorosa, que se processava no exterior das mesmas. Por conseguinte, não só foram várias as misericórdias às quais se adossou um dos passos da Via Sacra (casos de Mértola, Oleiros, Almodôvar, Pederneira – este, infelizmente tapado há poucos anos – Salvaterra de Magos, Algodres, Proença-a-Velha ou Alfaiates), como houve muitas misericórdias com altar do Senhor dos Passos e até mesmo algumas com capela anexa, destacada da nave, inteiramente dedicada a essa invocação (Santiago do Cacém, ou álvaro, por exemplo). Em Bragança, esta capela do Senhor dos Passos mereceu mesmo um tratamento próprio a partir do exterior, sendo um exemplo muito interessante de busca de simetria, apesar das ligeiras diferenças, que fazem com que seja possível distinguir a igreja, da capela: menor alteamento do portal e, aquando do azulejamento, colocação de uma tabela com as armas da Misericórdia, o que retirou um pouco da imagem de simetria pretendida no século XVIII (fig. 2).

Fig. 2 Misericórdia de Bragança

No Fundão, ou em Alvito, podemos também encontrar igrejas da misericórdia lado a lado com capelas. Porém, estas correspondem a preexistências. No caso de Alvito, trata-se da Capela de Nossa Senhora das Candeias. Apesar de conter o altar do Senhor dos Passos, a capela tem fundação anterior e supõe-se que pertenceu a

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uma antiga albergaria, ao lado da qual se estabeleceu a Misericórdia. No caso do Fundão, trata-se da Capela de S. Miguel. De qualquer forma, em Alvito, a capela contígua tem um tratamento de menor aparato, ainda que com similitude estética. Já no Fundão, essa tentativa de harmonização das fachadas não é óbvia. Mesmo assim, note-se a existência do púlpito. Os púlpitos exteriores foram sobretudo usados como complemento às capelas dos calvários, que eram geralmente muito pequenas. Nesse contexto, a pregação era dirigida a grandes massas e feita no exterior. Portanto, em certos casos, houve necessidade de colocar púlpitos em frente às igrejas de algumas misericórdias (assim como também podemos encontrar púlpitos exteriores em capelas ou igrejas exíguas, às quais fora acrescentado amplo alpendre, para permitir que todos assistissem aos ofícios religiosos). Ora, retomando o exemplo de Moncorvo, verifica-se que também ali existiu púlpito exterior, o qual posicionava-se logo abaixo do portal de canto da casa do despacho7. Por conseguinte, é de deduzir que o pequeno largo, formado pelo recuo da igreja da misericórdia, servisse também para parte da encenação da Via Sacra (além de ponto de paragem de pessoas, como o denunciam os poiais em frente ao edifício). Embora ainda não nos tenhamos verdadeiramente dedicado a esta questão, é possível que alguma misericórdia portuguesa tenha mesmo servido de enquadramento para a própria encenação do Calvário. Em Torres Novas, por exemplo, vê-se hoje um cruzeiro de calvário no terreiro da Misericórdia. Lembramos, porém, que várias estruturas semelhantes foram deslocadas do local original, sobretudo em zonas urbanas. Daí, também, a necessidade de mais estudos monográficos sólidos. É sabido que os calvários ficavam normalmente situados fora do núcleo urbano, em posições elevadas, sobre maciços rochosos. Contudo, a regra não era rígida e, além disso, em vários núcleos urbanos existiam vias sacras com percursos mais pequenos, por vezes somente em volta de uma igreja – que poderia ser a da Misericórdia – com as cruzes de marcação dos passos insculpidas ou aplicadas nas próprias paredes exteriores. Ora, tomando o caso de Marialva como exemplo, dado que, já em finais do século XVIII, não havia moradores na área intramuros, a Igreja da Misericórdia – hoje, conhecida precisamente como Capela do Senhor dos Passos – poderia ter sido opção para a encenação do calvário, atendendo também à sua implantação em maciço rochoso, logo abaixo do castelo, ainda que erguida junto de uma igreja paroquial, com a qual não possui relação visual evidente (até porque aquela, de origem medieval, está orientada canonicamente e a Misericórdia volta-se para o principal ponto de afluência de pessoas). Mas mesmo quando não havia púlpito na fachada da misericórdia, poderia realizar-se, em frente a ela, alguma parte da procissão dos Passos. Quando encontramos passos, na fachada destas igrejas, é de supor isso mesmo. Ora, em alguns casos, existia igualmente um portal de sacada, rasgado a partir do corpo arquitectónico da casa do despacho, ou a partir do coro alto da igreja (que tinha também, muitas vezes, ligação directa à 7

Infelizmente, uma intervenção do século XX rasgou de novo o portal de canto, mas retirou o púlpito.

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casa do despacho), de onde se recriava a cena do Ecce Homo8. Em Algodres, assim como em outros locais (especialmente na Beira Interior), ficou conhecida como a “varanda de Pilatos”, posicionando-se logo acima de um dos passos. Em Alfaiates, onde a misericórdia ocupou uma igreja paroquial medieval, existe também um passo adossado à fachada principal. Por cima – e evidenciando claramente como a arquitectura da igreja paroquial preexistente não se adequava à função da misericórdia do período barroco – foram rasgadas duas sacadas. Atendendo à sua configuração e ao facto de corresponderem a portas, não se destinavam propriamente a iluminar melhor a igreja, mas sim a permitir que, do interior, fosse criada interacção com o exterior. Portanto, é de supor que, também aqui, se recriasse o Ecce Homo, podendo a existência de duas sacadas, e não apenas uma, ser simplesmente para criar simetria. Porém, pode-se igualmente admitir que as duas sacadas servissem a própria irmandade, aquando de eventos que decorressem no espaço público, ainda para mais, estando a igreja posicionada no centro cívico da vila. No Sabugal, também na Igreja da Misericórdia (antiga paroquial) foi rasgada uma abertura, desta feita sem sacada. Demasiado pequena para que alguém se apresentasse de corpo inteiro perante quem estava no adro, seria de supor que tal abertura destinou-se apenas a melhor iluminar a igreja. Porém, o facto de não estar simétrica na fachada, assim como a inscrição que ela contém, podem indiciar que, a partir do coro, a janela servia ainda para algum tipo de interacção entre representantes da Misericórdia e o povo, aquando de determinados eventos exteriores. E se, no caso do Sabugal, pode até nem ter sido assim, foi-o certamente em muitos outros casos. Apesar das janelas generosas, portais (com ou sem sacada) e varandas terem sido muito comuns nas fachadas das igrejas das misericórdias portuguesas, e nas do mundo português (caso da Igreja da Misericórdia da Ilha de Moçambique), elas não constituíram regra. Além do mais, parece que foram mais comuns num barroco avançado, quer em fachadas de igrejas de misericórdia erguidas de raiz (Viseu, Guarda), quer em transformações induzidas em igrejas de misericórdia mais antigas. Seja como for, apesar de poderem surgir em vários outros tipos de igrejas do período barroco (quando o valor da iluminação foi mais tido em conta do que na época anterior), parece-nos que são características quase indentitárias do fenómeno das misericórdias, pois prendem-se com a existência de uma mesa administrativa, composta de leigos, a qual não só se apresentava nos ofícios religiosos em tribuna própria – quase sempre em posição altaneira face aos demais fiéis, como também poderia apresentar-se do mesmo modo quando os eventos decorriam no exterior da igreja. Não será por isso que, por exemplo, na Misericórdia da Azambuja, estão os dois portais de sacada posicionados no alçado lateral (a partir do coro e abertos para a estrada) e não no axial, por onde se entra para a igreja? Seguindo o mesmo raciocínio, podemos também supor que construções religiosas barrocas, mandadas erigir e/ou administradas por outros tipos de confrarias e irmandades, sobretudo quando posicionadas em frente a espaços públicos privilegiados, 8

NOÉ, 2006: 206.

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tivessem também, muito frequentemente, portais a partir do coro alto. É o caso da Capela de Santo António de S. Pedro do Sul (hoje pertencente à Misericórdia)9. Nesse sentido, e também por outras razões, o posterior entaipamento de vãos, sobretudo em igrejas de misericórdias, constituiu uma opção manifestamente errada, ainda que tais vãos possam não corresponder ao projecto inicial da respectiva fachada. Por vezes – e tendo também em conta vários casos brasileiros do período colonial – estes vãos das igrejas da misericórdia, destinados sobretudo a ver e a ser visto, eram mais simples e funcionais. Outras vezes, eram trabalhados e criavam um jogo de simetria na fachada. Em outros casos, ainda, mantinham a simetria e acentuavam-lhe o eixo. O caso de Salvador da Baía, com os seus dois registos horizontais de fenestração na fachada da igreja, já se afasta um pouco do habitual em Portugal, assumindo maiores semelhanças com outras soluções brasileiras de complexos hospital-igreja. Portanto, aquela que consideramos ser uma característica típica das igrejas da misericórdia erguidas ou reformadas no período barroco, parece ter assumido contornos diferentes do outro lado do Atlântico, onde as fachadas de algumas igrejas das santas casas – se ignorarmos os campanários e alguns remates mais recortados – não se diferenciam assim tanto das dos hospitais contíguos. No caso português, a menor escala, o carácter chão, aliados à inclusão de janelas de guilhotina e à ausência de campanário, quase sugerem um aspecto civil a algumas fachadas de igrejas da misericórdia, como a da Batalha, ou a de Porto de Mós. De facto, uma das características mais marcantes das misericórdias portuguesas, sobretudo daquelas que foram edificadas antes de Setecentos10, é o pudor na monumentalização da sineira e/ou a sua colocação em zona escondida do público. As soluções foram muitas e algumas bastante interessantes: Em Rio Maior, quase não se vê o campanário, posicionado num alçado lateral. Em Manteigas, praticamente só existe o sino, passando despercebido no telhado da igreja. Quase o mesmo sucede em Mirandela, embora se apresentem dois sinos. Em Freixo de Espada-à-Cinta, embora posicionado no eixo da fachada, também mal se distingue o campanário da mole granítica. Em Évora, ou em Ponte de Lima, é necessária igualmente alguma perspicácia para descobrir o respectivo campanário. Quando surgem torres, muitas vezes elas estão também posicionadas mais atrás face à igreja, como em Tavira, ou em Mangualde.

O facto das misericórdias estarem normalmente associadas às casas do despacho, levou a que vários campanários se desenvolvessem precisamente na interface entre os dois corpos arquitectónicos, dando origem quase a uma tipologia, que pode ser verificada em Ponte da Barca, em Ferreira Alentejo, em Azurara, no pequeno complexo da Misericórdia de Alvorge, em Alcantarilha, entre outros edifícios de misericórdias. 9

Em frente a esta capela, a confraria da mesma invocação organizava uma grande festa anual. Cf. A.N.T.T., Memórias Paroquiais, 1758, S. Pedro do Sul. 10 As torres, nas Misericórdias, são geralmente do século XVIII ou posteriores. Ver NOÉ, 2006: 202.

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Solução inversa, com a casa do despacho entre a igreja e sineira, sendo esta já uma torre de relativa imponência, pode ser observada em Vila Nova de Anços. E se, neste caso, as aberturas do corpo anexo à igreja não são rasgadas em forma de portais, a preocupação em estabelecer uma relação de cumplicidade entre o interior e o exterior é patente, podendo ser mais facilmente deduzida no caso das misericórdias de Miranda do Douro (com a sineira no coroamento da fachada da igreja), Colares (com a sineira nas traseiras), Cabeço de Vide, Arouca – já com sacada, e precisamente na torre (ainda que do outro lado da torre fique um edifício administrativo não pertencente à misericórdia), ou Chaves – onde o campanário se posiciona numa das extremidades do complexo da Misericórdia. É bom lembrar que, por todo o mundo português (caso de Goa), as misericórdias procuraram instalar-se – e muitas vezes conseguiram-no – nas zonas mais centrais, também mais cobiçadas, sobretudo atendendo ao factor das esmolas. Ora, as sineiras teriam de ser discretas, ou posicionadas nas traseiras, evitando os conflitos com os poderes religiosos instituídos11. Isto claro, sobretudo numa fase inicial. As misericórdias também foram conquistando o seu espaço. Em Vila Flor, por exemplo, a Misericórdia recorreu de uma imposição da paróquia de que, em certas alturas, não deveria tanger o seu sino, tendo ganho o pleito12. O posicionamento subalterno das misericórdias face a outros poderes religiosos e o pudor no levantar de grandes torres sineiras, podem ser também observados no Louriçal, onde o complexo da misericórdia perde, claramente, face ao complexo do convento, cuja portaria se situa mesmo em frente. A torre sineira quase só se vislumbra das traseiras. Esta misericórdia possui escadaria exterior de dois lanços, terminando em alpendre, no acesso à casa do despacho (fig. 3).

Fig. 3 Misericórdia do Louriçal 11 12

MOREIRA, 2000: 148. GODOLFIM, 1897: 132.

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José Francisco Ferreira Queiroz

Embora não seja uma solução totalmente invulgar, o facto da escada ter dois lanços, ainda que sem verdadeiro aparato, é uma solução interessante e aproximada às que já apresentámos, de sacadas no piso superior do alçado da igreja, no alçado do campanário ou no da casa do despacho. No Louriçal, assim como na Lousã, a irmandade acedia directamente da tribuna da igreja a uma varanda exterior, de onde poderia sair, cenograficamente, se assim fosse necessário em algum tipo de cerimónia. Isso não significa, porém, que tenha sido por tal motivo que os referidos alpendres se colocaram. Só um estudo concreto poderia, eventualmente, determinar as verdadeiras razões. São sobejamente conhecidos os casos em que estes vãos, voltados para o espaço público e prioritariamente destinados aos mesários, configuravam verdadeiras varandas cenográficas, constituindo quase duplos das tribunas que existiam no interior da maior parte das igrejas das misericórdias. Mencionemos Mangualde e Santar. O exemplo de Santar, cumulativamente, é paradigmático de como a questão da localização das misericórdias não se esgota nas tendências mais recorrentes, mencionadas no estudo que Ana Margarida Portela elaborou para este volume. As tribunas da casa do despacho voltadas para a igreja, destinavam-se a que os mesários assistissem facilmente à celebração religiosa, antes de se reunirem, como geralmente obrigava o compromisso. Porém, também serviam para assistir a qualquer ofício religioso, pelo que, a partir do século XVIII, sobretudo em construções de raiz, opta-se pelos cadeirais dentro da própria igreja13. Ora, balcões exteriores em alçados laterais da igreja, no alçado da casa do despacho e/ou do campanário, e até mesmo no do hospital, monumentais e elaborados, em articulação, mais ou menos directa, com cadeirais (nomeadamente no coro, como em Caminha), ou tribunas voltadas para o interior das igrejas; são imagem de marca das misericórdias do Alto Minho, destacando-se a de Viana do Castelo. Aqui, a ornamentação exterior não respeita a hierarquia igreja / casa do despacho, simplesmente pendendo para a extremidade do alçado que funcionava como “fondale” para quem cruzava a antiga porta da muralha, entrando no rossio do Campo do Forno. A solução adoptada articulava-se com o preexistente edifício dos paços do concelho, ajudando a formar praça regular sobre arcarias, dentro dos cânones estéticos da Renascença – programa que não viria a ter sequência no restante rossio do Campo do Forno. Em Viana do Castelo, até no pátio do hospital podemos encontrar uma colunata, ainda que sem piso superior, simulando um claustro conventual. Aqui, existiu o cemitério, com originalidades que mereciam ser ressaltadas14. Tal como em Viana do Castelo, também em Terena a Misericórdia assume protagonismo no enquadramento arquitectónico do centro cívico. Apenas a escala muda. Daí que a tribuna dos mesários seja acanhada e o vão de ligação com o exterior é uma mera janela. Em Vila Real, o espaço da tribuna dos mesários é simultaneamente um espaço aberto para a rua, através de vãos cuja função as conversadeiras esclarecem bem (fig. 4). 13 14

NOÉ, 2006: 203. Neste trabalho, não nos debruçamos sobre os cemitérios das misericórdias, questão que já abordámos com algum detalhe em QUEIROZ, 2002.

As Misericórdias em Portugal: exemplos singulares de integração urbana

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Fig. 4 Misericórdia de Vila Real, tribuna dos mesários

Esta igreja de Vila Real, assim como a de álvaro, com a qual partilha várias semelhanças de implantação, pertence a um grupo de misericórdias cujo prospecto exterior – cremos – não motivará muito os historiadores de arte à pesquisa, dada a sua contenção decorativa e a escala relativamente modesta. Contudo, são das mais interessantes do ponto de vista urbanístico. E vimos já como essa abordagem é crucial para compreendermos os pontos comuns e os pontos divergentes da arquitectura e espacialidade das misericórdias do mundo português. A este grupo seleccionado de misericórdias que constituem verdadeiras lições de história do urbanismo, podemos acrescentar a de Montemor-o-Novo, e, sobretudo as de Penela e Leiria. Estes casos são tão interessantes que tencionamos dedicar-nos a eles numa ulterior publicação.

Fontes e bibliografia AFONSO, José Ferrão, 2009 – "Regressando a Alberti. As igrejas das Misericórdia de EntreDouro-e-Minho, de Vila do Conde a Penafiel: arquitectura e paisagem urbana (1534-1622)", in As Misericórdias Quinhentistas. Penafiel: Câmara Municipal de Penafiel. A.N.T.T., Memórias Paroquiais, 1758. S. Pedro do Sul. GODOLFIM, Costa, 1897 – As Misericordias. Lisboa: Imprensa Nacional. MOREIRA, Rafael, 2000 – "As Misericórdias: um Património Artístico da Humanidade", in 500 Anos das Misericórdias Portuguesas, Solidariedade de Geração em Geração. Lisboa: Comissão para as Comemorações dos 500 Anos das Misericórdias. NOÉ, Paula, 2006 – “As igrejas de Misericórdia do Distrito de Coimbra. Ensaio de classificação tipológica”. Monumentos, n.º 25. QUEIROZ, José Francisco Ferreira, 2002 – os Cemitérios do Porto e a arte funerária oitocentista em Portugal. Consolidação da vivência romântica na perpetuação da memória (Tese de Doutoramento em História da Arte apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto, policopiado). VILA, Romero, 1993 – "Santa Catarina, na cidade do Porto e na época dos Descobrimentos", in Boletim da Associação Cultural Amigos do Porto, n.º 11.

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