As mobilidades no Espaço e no Tempo

May 27, 2017 | Autor: Alberto Vieira | Categoria: Mobility/Mobilities, Emigration Research, Historia Da Madeira
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N E W S L E T T E R

49 novembro 2016

Colóquio das Mobilidades

As mobilidades no Espaço e no Tempo 10 - 11 novembro 2016

Nos dias 10 e 11 de novembro de 2016, terá lugar, no auditório do CEHA, o Colóquio das Mobilidades, sob o tema “As Mobilidades no Espaço e no Tempo”. Como já tem vindo a acontecer, ao longo dos últimos anos, este colóquio debruçar-se-á sobre o percurso migratório que se desdobra em diferentes fases - a intenção de partir, os preparativos da partida, a viagem, os primeiros momentos, a inserção e fixação no país de acolhimento e, por último, o (não) regresso. Este ano, mais centrado neste Brasil, os trabalhos proporcionarão diálogos multidisciplinares entre especialistas de Portugal e do Brasil, em que o espaço e o tempo serão as principais linhas orientadoras. Todas as sessões são ABERTAS AO PÚBLICO E TÊM ENTRADA LIVRE.

outubro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

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p r o

g

r a

10 novembro Manhã 9.00h – Sessão de Abertura 9.30h – Alberto Vieira: A irmã mais velha na Terra dos Esquecidos 10.00h – 10.30h – Coffee break 10.30h – 12.30h – Painel – Graça Alves: Terra do nunca (mais) – Octávio Carmo: Os que nunca regressaram – Luís Miguel Jardim: Recrutamento de madeirenses para o Brasil (séc. XVIII): contributos avulsos – Silvia Ferreira: Memórias Presentes da Emigração Madeirense para o Brasil no século XX 12.30h – Almoço

novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

m

a

11 novembro Tarde 14.00h – 14.30h – Henrique Rodrigues:  O apoio invisível e os silêncios da emigração do século XIX, abordagem à epistolografia 14.30h -15.30h – Painel – Marcela Paula: Entre Mar e Continente: as representações dos ilhéus de si mesmos e dos portugueses, através dos textos literários de Lusofonia – Cláudia Neves: Luzia – do cosmopolitismo da Madeira à vagabundagem pelo mundo – Luisa Antunes: Espaços de encontro altântico: lusofonia, um facto ou um valor? 15.30h – 16.00h – Coffee break 16.00h – 16.30h – Dalila Teles Veras: Emigração, memória e as tarefas da Poesia 16.30h – 18.00h Painel – Fernanda Castro: A viagem no feminino: a Madeira aos olhos de Emília de Sousa Costa – Ana Gandum: Lembranças, Souvenirs, Recuerdos: Fotografia e Migrações Portuguesas para o Brasil – Elina Baptista: O emigrante na obra de Eça de Queirós- de Português a Brasileiro – José Xavier: Interculturalidade: unidos pela diversidade – experiências de aprendizagem com formandos dos cursos de Educação e Formação de Adultos de nível básico. 18.00h – 18.30h- Maria Sardinha: Os Madeirenses em S. Paulo. A fazenda Santa Maria.

Manhã 9.00h – 9.30h – Lélia Nunes: Ilhéus no Sul Brasil 9.30h – 10.00h – Coffee break 10.00h – 11.30h Painel – Lorena Rodrigues: Mudanças linguísticas no português em espaço lusófono – Dannytza Gomes e Maria Freitas: Mobilidade Estudantil entre Brasil e Portugal: língua portuguesa e interação – Naidea Nunes: Da oralidade à escrita: a transcrição grafemática ou ortográfica de memórias/histórias de vida de mobilidades Madeira/Brasil – Idalina Milagres: Mobile Learning (m-learning) – ferramenta de promoção e conservação do português língua de herança (lh)? 11.30h – 12.00h – Maria Izilda Matos: Experiências, presenças e memórias: Mulheres e/imigrantes madeirenses em S. Paulo 12.00h – 13.30h Painel – Teresa Norton Dias: O espaço e o tempo em “Masurca Fogo” de Pina Bausch – Cristina Trindade: Cristianismo e mobilidade – dos conceitos à missionação – Fabio Scetti: A viagem de ilha a ilha: os madeirenses da “comunidade portuguesa” de Montreal – Emanuel Janes: A emigração para o Brasil nas décadas de 30 e 40 13.30h – Almoço

Tarde 14.30h – 15.00h – Nelly Freitas: Escrever a história da mobilidade madeirense no Brasil: as cartas do arquivo regional da Madeira, 1893-1925 15.00h – 16.00h –Painel – Cláudia Faria: O peso das coisas perdidas (sobre encontros com passaportes devolvidos) – Pablo Sabater: El viaje del Telémaco: la odiesea de la emigración clandestina canaria hacia América – Rita Rodrigues: «Domingos Nunes Teixeira “mancebo (…) natural que dixo ser de la ciudad del funchal de la ysla de la madera (…)”» 16.00h – 16.30h ­– Coffee break 16.30h – 17.00h – Maria Beatriz Rocha Trindade: Brasil no Quadro das Migrações Portuguesas – Memória e Visibilidade

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A “irmã mais velha” na “terra dos esquecidos” Em termos historiográficos, o Brasil sempre manifestou uma especial deferência pela ilha da Madeira, definindo esta histórica relação como familiar, colocando a ilha como se fosse a sua “irmã mais velha”, que começou a desbravar o oceano e espaço atlântico, lançando as bases da nova sociedade e economia, cuja presença e herança, o Brasil ainda mantém.

novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

E é disso que testemunham alguns autores brasileiros, como Gilberto Freire com certo carinho. Diz ele: A irmã mais velha do Brasil é o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã que se estremou em termos de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus homens,… Concorreram para transformar rápida e solidamente em nova Lusitânia. (Gilberto Freire, Aventura e Rotina, 2ªed., 1952, pp 440-446, 448-449) Este olhar de lá parece, então, ter perdurado no imaginário brasileiro até aos inícios do século XIX. Em ambas as margens oceânicas persiste este relacionamento, que implica partilha familiar, institucional, humana, económica, cultural, religiosa e espiritual, cujas evidências se perpetuaram no tempo, na documentação e na memória coletiva das populações. Há uma familiaridade que não pode ser apagada da memória e da História e que, por esse motivo, resiste no tempo, a todas as tormentas e espoliações. Depois, é a ilha que lança esse olhar e caminho de aproximação oceânica e traça uma rota atlântica de mobilidade humana, que atua de novo como

elemento catalisador dos de cá, nem sempre de forma positiva. Para muitos da ilha que aí chegam é o deslumbramento com este “paraíso”, pela beleza, dimensão e riqueza. A ilha fica para trás e quase se perde entrando no registo dos madeirenses que ficam na ilha, como a “terra dos esquecidos” ou “cemitério dos portugueses”. É esta forma diferente de ver e olhar, dos de cá e dos de lá, que pretendemos reproduzir, em forma de apontamento, para consolidar a ideia de uma via oceânica, nos dois sentidos, com ponto de chegada e de partida. O Brasil é, assim, uma referência fundamental no percurso histórico do arquipélago e para quase todos os madeirenses, a sua memória nunca se apagou. Nesta interação social, que acontece ao longo da História até ao momento presente, tivemos um constante movimento de pessoas, produtos, conhecimentos, técnicas, usos e tradições. Esta mútua partilha, habitualmente ignorada, atesta, de novo, a existência de uma cultura e civilização atlântica que abraça as ilhas e as duas margens do oceano e que tem o seu ponto de partida na ilha

da Madeira no século XV. É nesta articulação da ilha, como primeira etapa desta civilização atlântica, com as suas implicações sociais, mas também institucionais, tecnológicas e mentais, que queremos realçar esta ponte, que sempre existiu, entre a Madeira e o Brasil. E foi da ligação desta irmã mais velha que tivemos agricultores, funcionários, técnicos especializados na construção de engenhos e no fabrico do açúcar, que se esmeraram e contribuíram para toda essa riqueza e imortalizar o solo brasileiro com paraíso. Desde princípios do século XVI que a presença de naturais da Madeira, espalhados por todo o território é evidente. Da maioria não ficou registo na documentação, nem da partida, nem da concretização do seu sonho em solo brasileiro. Para o século XVIII, há um registo dos que ambicionavam partir rumo a este destino, mas não sabemos mais nada deles. De entre estes, podemos salientar o caso de Henrique de Betencourt de Berenguer, que a 16 de novembro de 1746, foi admitido, a seu pedido, nesta emigração, saindo para Santa Catarina toda a sua família composta de 10 filhos, 1 primo e 19 criados.

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E assim tivemos diversos heróis com o nome registado na documentação e anais da História, como… JOÃO FERNANDES VIEIRA (1613-1681), Libertador de Pernambuco da ocupação holandesa; MANUEL DIAS DE ANDRADE e FRANCISCO DE FIGUEIROA, outros dos heróis das guerras de restauração em Pernambuco; JERÓNIMO DE ORNELAS MENEZES E VASCONCELOS (C. 1691-1771) o fundador da atual cidade de Porto Alegre, capital do Estado de Porto Alegre; O Padre MARCELINO DE SOUSA E ABREU, filho de madeirenses, residentes em Santos, que foi um dos promotores da criação da irmandade do Senhor dos Passos fundada em 1765 em Florianópolis; JOAQUIM ANTÓNIO DE OLIVEIRA ÁLVARES, [17761835]. Oficial da armada, bacharel em Matemática e Filosofia pela Universidade de Coimbra. A partir de 1804, encontra-se no Brasil, onde foi Ministro da Guerra; FRANCISCO JUSTINO GONÇALVES DE ANDRADE, [1821-1902], doutor em Direito pela Universidade de S. Paulo no Brasil, foi diretor da Faculdade de Direito desta universidade e um dos elementos da comissão responsável da revisão do Código Civil do Brasil. E outros mais figuram já nesta lista…. O Brasil continuou a ser historicamente um destino preferido dos portugueses. Para a Madeira, este vínculo manteve-se ainda, de forma muito estreita, até aos dias de hoje. Fomos dos primeiros povoadores desta terra abençoada, nos alvores do século XVI, como colonos e soldados a assegurar a soberania do território, de Norte e a Sul. Com a abolição da escravatura, estivemos, de novo, ligados ao processo de mutação da atividade laboral que acompanhou, por exemplo, a afirmação das plantações cafeeiras e canaviais no planalto paulista. Vários grupos de madeirenses foram contratados novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

para servir no Brasil, com particular destaque para o Rio de Janeiro e Santos, as duas principais portas de entrada, destes  na segunda metade do século XIX. Para o planalto paulista, os dados apontam no sentido de um grupo de cerca de   colonos, mas outros mais se espalharam no país. Idênticas facilidades concedidas pelo governo brasileiro durante a Segunda Guerra Mundial permitiram também que muitos mais madeirenses acorressem a Santos e ao Rio de Janeiro, em busca de trabalho e meios de sobrevivência, levando, na arca, alguns bordados e, nas mãos, a sabedoria desta arte. Graças ao incentivo do cônsul brasileiro, o Dr. Perilo Gomes, e à política de portas abertas decretada pelo governo brasileiro, a Madeira contribuiu com 5797, de um total de 9111 emigrantes madeirenses que saíram da ilha entre 1939 e 1945. A escalada da emigração continuou, na última década do século XIX e princípios do XX, mantendo-se os países de destino, com especial destaque o Brasil e Estados Unidos. A grande depressão dos anos trinta levou ao encerramento das portas de alguns, enquanto se abriram outros novos, como a África do Sul, e reabriu-se, em 1939, o Brasil. As duas guerras mundiais (1914-18, 1939-45) provocaram nova leva de emigrantes. O Brasil continuou a ser um dos destinos preferenciais da maioria dos madeirenses, mas as possibilidades de opção alargaram - se a outros mercados recetivos de mão-de-obra. Hoje, na memória coletiva dos madeirenses, persiste a imagem do Brasil como “terra dos esquecidos” ou “cemitério dos portugueses”, querendo dizer, a terra para onde se vai e quase nunca se volta, esquecendo-se os que ficaram. “A verdade é que o Brasil traz sempre consigo o resto, ou não fosse a terra dos esquecidos. Quem embarcasse para lá que não pensasse em arranjar namorada. Nenhuma rapariga queria um rapaz que lhe falasse em Terras de Vera Cruz. «Seu Mariano», in ALVES, Graça e FARIA, Cláudia, Não me esquece, Funchal, 2017 (no prelo). E, ainda hoje a memória de muitos e a tradição fazem jus a esta ideia, que continua imaculada

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na escrita e memória. Uma quadra popular refere: Se fores para o Brasil,/Chega lá, jura bandeira,/ Que o Brasil é a sepultura/Dos rapazes da Madeira (GONÇALVES, Ernesto, «Dois diálogos e algumas cantigas da tradição oral do povo madeirense», in AAVV, Das Artes e da História da Madeira, ano XIX, vol. IX, n.º 39, 116.) Depois, numa entrevista atual, de alguém que esteve no Brasil, os testemunhos repetem-se: Não se sentia emigrante. Era chamado de Portuga. Era uma maneira de se expressar. Era simpático. O costume Brasileiro é igual ao nosso, mas é melhor. Era a terra dos esquecidos. Os maridos iam, e arrumavam outras moças e perdiam-se por lá. Eram elas, a brasileira é doce, tanto no falar. Mesmo sendo pobres, eram doces no tratar. Completamente diferente das madeirenses. Por isso, eram montes de homens que se perdiam por lá. (CEHA, Arquivo das Memórias: Augusto, entrevista n.º 46, realizada a 123/2/2016).

novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

E, a partir da História Oral, conseguimos resgatar outra História e heróis até agora anónimos do panteão de madeirenses, ilustrados e reconhecidos, no Brasil. São muitos, alguns ainda sem nome, mas outros conseguimos já identificar e resgatar o seu protagonismo para a História. E assim temos novos registos e memórias de uma vida nessa sociedade onde a “árvore das patacas” só sorri aos que trabalham e dão muito do seu esforço para a construção de um mundo melhor para si e os seus, que seja a negação do outro “mundo” que deixaram na ilha. Desta lista de entrevistados fazem parte, no presente momento: – os que foram: Marcos Teixeira, Maria Gomes Pereira, Maria Vieira Sardinha, Augusto António Sousa, José da Silva Mariano, Maria Zélia Mariano, Emanuel Câmara, João Fernando de Sousa, Artur Antonino Rodrigues, Manuel de Jesus Agrela, Maria de Lurdes Olival, Dalila Teles Veras.

– os que se lembram deles: Maria José Ascensão, Umberto Xavier Gomes, Maria Teresa Valério, Gumercinda Barros, Encarnação Sardinha, Manuel da Costa. A partir das Histórias de vida destes heróis desconhecidos será possível compor uma outra História da mobilidade dos naturais da ilha, agora sim madeirenses que, desde meados do século XX, chegaram ao Brasil. Alberto Vieira | CEHA

A partir da História Oral, conseguimos resgatar outra História e heróis até agora anónimos do panteão de madeirenses, ilustrados e reconhecidos, no Brasil. São muitos, alguns ainda sem nome, mas outros conseguimos já identificar e resgatar o seu protagonismo para a História. E assim temos novos registos e memórias de uma vida nessa sociedade onde a “árvore das patacas” só sorri aos que trabalham e dão muito do seu esforço para a construção de um mundo melhor para si e os seus, que seja a negação do outro “mundo” que deixaram na ilha.

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Contar os madeirenses a caminho do Brasil

EMIGRAÇÃO PARA O BRASIL. 1515/1986 1515 - 1799 A Estatística nem sempre se torna uma realidade no quadro do passado histórico, tendo em conta as inúmeras limitações que oferece a documentação. Ademais, só figuram nos registos aqueles que saíram de forma oficial, com autorização ou passaporte, pois os que saíram, de forma clandestina, nunca são registados e documentados de qualquer forma. Daí, como entender a necessidade permanente de contabilizar e dizer quantos partiram? No caso do Brasil, a ligação dos madeirenses é assinalada desde muito cedo e nunca saberemos quantos foram fascinados por este miragem da riqueza e território, que se perde na linha do horizonte. As ligações institucionais e tecnológicas, ligadas à produção de açúcar, favoreceram o primeiro movimento do século XVI. Mas, na centúria seguinte, foi o serviço

de defesa do território e de expulsão de intrusos franceses e holandeses que fez singrar este movimento, fundamentalmente, de soldados, que teve o seu ápice nas décadas de trinta e quarenta. O processo culmina em Guararapes, no ano de 1648 e 1649, mas outras levas de soldados continuarão a ser mobilizados para o norte ou o sul. Passado um século, volta-se a precisar do contributo humano insular, mas desta vez pretende-se colonos para ocupar as cobiçadas terras do sul, como Santa Catarina e Portalegre. É relevante o contributo madeirense que ainda não está devidamente contabilizado e valorizado. Já nos séculos XIX e XX, são outras as motivações que impelem a esta mobilidade e que fazem de algumas regiões brasileiras, como Santos, Niterói (…), uma extensão brasileira da ilha.

novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Mas, Santos, pela presença do mar, pela dificuldade de transpor a muralha até o interior, será um dos assentos prediletos dos madeirenses, nomeadamente no século XX. No morro (São Bento, Pacheco e Nova Cintra), donde se visualiza de forma clara a baía, surgiu uma das mais importantes “ilhas” do madeirense, a “Nona ilha”, que se afirma como uma nova freguesia, à moda da periferia funchalense, enquanto no planalto paulista surgiram em múltiplas fazendas, por autorização dos proprietários, diversos poios. Os dados numéricos, ainda que possam ser por demais evidentes, nunca se aproximam desta realidade do movimento dos naturais da ilha, desde o século XV até a atualidade. Contar e enumerar os esparsos dados e números é apenas um exercício académico. Alberto Vieira | CEHA

Anos

Total geral do país

Madeira

Total geral do país

Anos

Madeira

1515

??

??







..



1698

??

1531

??

??



… ??

??

…..



… ?? …



..



1744

1544

??

??

..

1545

??

??

1748

??

61



..



1749

??

409

1576

??

400

1750

??

2000(?)

..





1751

??

??

1583

??

??













1754

??

500

1632

??

100







1756

??

520*

??

1633 …









..

1647

??

??

1774

??

200







1648

??

??

..





1694

??

??

*

O navio naufragou no litoral da Baía, na foz do rio Joanes, na freguesia de Santo Amaro do Ipitanga

6

1900 - 1986 Anos

1828

Madeira

Anos

??

1859

Total geral do país ??

Anos

Total geral do país

Madeira

Anos

Total geral do país

Madeira

13761

186

1935

6905

 ??

1970

1669

16

1901

14489

723

1936

10470

?? 

1971

1200

45

1902

15003

658

1937

11613

?? 

1972

1158

75

1903

14517

377

1938

9314

?? 

1973

890

23

1904

21449

633

1939

16322

?? 

1974

729

 ??

1905

24815

1198

1940

12260

?? 

1975

1553

1

1906

26147

988

1941

5891

14

1976

837

30

1907

31482

695

1942

1926

6

1977

557

?? 

1908

36362

1151

1943

498

69

1978

3765

?? 

1909

30580

839

1944

335

713

1979

216

?? 

1910

31274

985

1945

1186

1130

1980

230

?? 

1911

48196

1448

1946

6747

713

1981

228

?? 

1912

74853

2046

Madeira

1947

10347

1112

1982

171

?? 

1913

26216

1510

1948

8039

1077

1983

197

?? 

82

1914

29481

217

1949

11206

2227

1984

121

?? 

114318

56

1800 - 1899 Total geral do país

Madeira

1900

Imigrantes europeus posando para fotografia no pátio central da Hospedaria dos Imigrantes de São Paulo, ca. 1890

Anos

Total geral do país













1915

1950

13806

1077

1985

136

?? 

1835

??

4

1866

??

1

1916

10002

39

1951

27724

2227

1986

91

1

6934

11

1952

??

5075







1836

??

22

1867

??

14

1917

1837

??

56







1918

6100

16

1953

??

3293

1838

??

29

1885

5488

??

1919

21218

737

1954

??

2790

1839

??

4

1886

4335

1568

1920

33641

?? 

1955

18486

1708

1840

??

9

1887

6744

751 

1921

13829

1242

1956

16814

1705

1553

1922

25621

779

1957

19931

1573

1841

??

39

1888

1842

??

148

1889

7560

431

1923

22270

558

1958

19829

1705

1843

??

128

1890

13566

1008 

1924

14960

927

1959

16400

1379

1844

??

425

1891

11455

1241 

1925

13280

460

1960

12451

1429

1845

??

116

1892

17312

1341

1926

31327

717

1961

16037

1491

1997

1927

21142

1238

1962

13555

1377

6873



1893

26130

??

7

1894

25773

349

1928

27703

374

1963

11281

1164

??

307

1895

40390

1608

1929

29775

89

1964

4929

219

11822

53





1851 1852 1853

??

496

1896

23998

787 

1930

1965

3051

191

1854

??

143

1897

17793

548 

1931

2538

152

1966

2607

201

3957

190

1967

3271

105

586

1898

20131

509

1932





1899

13348

199

1933

7196

210

1968

3512

46

??

228

1934

5512

 ??

1969

2537

18

1855

??

…. 1858

novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Obs.: Estes dados estatísticos oficiais da emigração para o BRASIL foram compilados por Jorge Ramos e Alberto Vieira, no âmbito do projeto “Nona Ilha”. FONTE: Informação Estatística; Agostinho Cardoso, O Fenómeno Económico-Social da Emigração Madeirense, Coimbra, 1968; Maria Santos, 1999, Os Madeirenses na colonização do Brasil, Funchal, CEHA; FREITAS, Nelly de, 2014, Des vignes aux caféiers: Étude socioéconomique et statistique sur l’émigration de l’archipel de Madère vers São Paulo à la fin du xixe siècle.], Funchal, Colecção TESES, n.º 14, Centro de Estudos de História do Atlântico, 2014.

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TERRA DO NUNCA (MAIS)

O Brasil era uma espécie de Terra do Nunca (e o jogo será feito com o espaço mítico criado por James Barrie, par ao Peter Pan) e exercia um verdadeiro fascínio sobre os madeirenses. Uma conversa entre duas personagens de Canga (1975:291) de Horácio Bento de Gouveia mostram este sonho:

No princípio, era assim:

- Francisco, alembrei-me, agora cando acordei, da nossa fazenda! - Há-de sê nossa, há-de. O nosso Antóino há-de ir pao Brasil. - Nã chego a ter essa alegria!

o Brasil era o lugar de todas as magias, da riqueza fácil, o sonho de todos os madeirenses que sonhavam com um mundo maior do que o seu poio, com uma terra sem donos e sem fomes, com um futuro mais fácil de se viver.

Trata-se de literatura, sim, mas na vida real, tudo se passa da mesma maneira. Pede-se dinheiro para embarcar para o Brasil, vende-se tudo, inventa-se coragem, guarda-se a vida inteira num baú e parte-se, para a terra da fantasia. Na maioria das vezes, vai o homem. Prepara o lugar para mandar chamar o resto da família. Nos primeiros tempos, escreve. Ainda envia alguma remessa para assegurar aos seus que está vivo e bem. Aos pou-

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cos, porém, vão espaçando as notícias e vão prolongando os silêncios. A Terra do Nunca vai-se transformando, assim, na Terra do Nunca Mais. Sítio da Camacha, 1 de Maio de 1930 Meu querido Joaquim, marido do meu coração É com o coração cheio de saudades que te escrevo esta cartinha, desejando que te vá encontrar de saúde (…) Eu vou pedir à Nossa Senhora da conceição, na nossa igreja, para que te acompanhe sempre, e a Nosso Senhor Jesus Cristo também, para que nunca te esqueças da tua mulher, que sente muitas saudades de ti. Eu, cá por ti, esperarei até à morte… (SILVA, 2010:73) Nem sempre é assim. Nem sempre vale a pena a espera. Nos livros e nas histó-

rias contadas – e temos histórias para contar – há homens - são, sobretudo, homens – cujo rasto se perde, que não regressam, que nunca mais dão notícias. A partir de determinada altura, não há rapaz solteiro com pretensões de Brasil que encontre noiva para casar. Ir para o Brasil é quase o mesmo que ir para a guerra: Se fores para o Brasil, Chega lá, jura bandeira, Que o Brasil é a sepultura Dos rapazes da Madeira GONÇALVES, in AAVV, Das Artes e da História da Madeira, ano XIX, vol. IX, n.º 39, p. 115. O que tem o Brasil que outros países não têm? Por que motivo se diz que ele é a “Terra dos Esquecidos”? Estas perguntas fazem parte do guião de entrevista realizada no âmbito do Projeto “Memória das Gentes que fazem a His-

tória, Nona Ilha” aos “brasileiros”, assim chamados os que foram para o Brasil e retornaram. - A brasileira é feiticeira… (Augusto Sousa) - há tudo no Brasil e as raparigas eram especiais, diferentes das daqui (Emanuel Câmara) - as fazendas são enormes, têm capangas armados. Os portugueses eram escravizados, estavam sempre a dever dinheiro. (Artur Rodrigues) O Brasil é terra de se viver bem. Lá .“o que se leva desta vida é o que se come, o que se bebe, o que se brinca, ai, ai!”, canta o povo. Regressar, para quê? Que outros motivos que fazem deste país “a terra dos esquecidos”, “a terra do encanto”, “ o cemitério dos portugueses”, a terra do “Nunca mais”. Graça Alves | CEHA

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Alguns testemunhos sobre a emigração para o Brasil O fenómeno da emigração madeirense provocou aceso debate na imprensa local, surgindo uma corrente de opinião desfavorável à política de emigração que fazia depender a solução para esta saída no encontrar de soluções internas para a crise que se debatia a ilha. Uma das formas de desincentivar a emigração estava na divulgação dos testemunhos de alguns dos que foram conduzidos por tão aliciadoras propostas. Daí a publicação destas cartas.

Meu querido Pai Rio de Janeiro 12 d’Outubro de 1851 Aqui chegámos com 54 dias de viagem; vivos mas muito fracos, principalmente Gregoria, porque desde o dia em que embarcámos até chegarmos á Ilha de S. Vicente no dia 9 d’Agosto, qual infeliz terra fomos arribados com falta de comer e nada achámos senão um barril de semilhas muito inferiores, este foi o único tempo que ela passou melhor. Lá estivemos 24 horas ancorados. A respeito de fruta nem uma folha verde, pão muito caro, vinho pelo mesmo conseguinte, em fim, se não aportasse lá o Paquete era a terra mais desgraçada do mundo! A Alfândega é do tamanho novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

da venda de João Augusto, e não é tão sortida, lá vendem-se sapatos, etc. etc. Começámos de novo a nossa viagem. Nós fomos muito infelizes na nossa derrota em todo o sentido. Durante a viagem falta de comer, e pela mesma maneira falta d’água. Nós tivemos a agua a ração, e além disso podre, e por fim nem podre nos davam. Não se passou um só dia que se não brigasse a bordo, por causa do comer que era feito com agua podre, e esse pouco, e para o levar era preciso uma colher de vinagre, e dali a pouco era lançado no mar! Enfim, foi uma viagem de atribulação para todos nós passageiros. Até que chegámos a esta terra onde me acho até Deus querer que eu viva no seio da minha família. Nesta terra para se ganhar alguma cousa é necessário trabalhar muito de dia e até ás 10 horas da noite, e os Domingos e Dias Santos; porque as

despesas são muitas. Por um quarto de casa em que só cabe a cama e uma cadeira e sem ter cozinha nem despejos nenhuns, pedem oito mil reis cada mes. A respeito das felicidades desta terra não é o que se julga; porque as febres têm feito fugir daqui os homens do maior negócio e muito mais a falta de escravatura; pois os homens que tinham navios para a Costa têm-se retirado todos; porque quando se toma uma embarcação, o dono tem de perder tudo e pagar uma multa muito grande. É por isto que aqui tem cansado o negócio. Quanto aos rapazes que vieram comigo para cá, os que pretenderam ser caixeiros estão aprendendo a ofícios, outros voltam para a Madeira; porque o Rio não serve para eles. Aqui é necessário que o homem se trate muito sério e não se meta em bebidas de qualidade alguma; porque a pessoa que se habitua a tal vício, fica desacreditada, e até os negros fazem escarno

dela. Saibam que o Brasil é uma terra de muito luxo e de muita censura não se vestindo à moda do país. Enfim, é o que eu não julgava. Isto que eu aqui digo é a realidade. Recomende-me a todas as pessoas do meu conhecimento etc. Manoel Joaquim Teixeira. [Extracto duma Carta do Rio de Janeiro, publ. In O Progressista, nº.23, pp.2-3]

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Meu Prezado Pai

Rio de Janeiro 14 de Maio de 1852

Aqui cheguei a este porto a 16 d’Abril com 42 dias de viagem, sofrível quanto à saúde, e não muito bem quanto a tratamento, por tudo ser contrário ao que o Sr. C(...)J (...)O(...) nos prometera. Nós fomos todos divididos em ranchos, e o meu coube a ter de 8 pessoas todas da Cidade, bom foi alguns deles terem trazido algum comer melhor que repartimos uns com outros. Quanto ao que o navio deu quase tudo foi ordinário, veio muito comer bom, mas foi para negócio: vieram algumas pessoas que aí andavam fartos de fome, esses dirão que foram bem tratados. O sobrinho do C(...), o Capitão de Bandeira da escravatura branca, o seu colega Q(...) que foi o despenseiro, e foi o que andou induzindo os miseráveis da Ribeira Brava, Campanário e Estreito que aqui vieram, estes dois falsos, perto do Rio de Janeiro, para nos engrazar, ofereceram chá e manteiga ao nosso rancho, e a mais algumas famílias da cidade, temerosos que mandássemos dizer para a Madeira o mau tratamento que tivemos, e que poderiam ser mais acreditadas as nossas cartas, andavam com as orelhas baixas a pedir por muito favor a nós todos que mandássemos dizer para a Madeira que fomos muito bem tratados, e que ainda que não tivéssemos ocupação logo, que disséssemos estar todos com seus empregos, porém, foi pedido que bem poucos aprovaram, porque aconteceu tudo ao contrário. Há quase um mês que chegámos, e ainda estão 42 pessoas para se empregarem, as que não pagaram a passagem, ou não foram recomendadas, têm-se empregado sem considerar os contactos que fazem, e ao depois é que se arrependem; há tal que tem ido servir casas para todo o serviço, e ganha a 120 reis cada um dia, outros têm partido para o interior, que nunca mais se saberá d’elles. Estes 42 desgraçados que ainda se acham sem ocupação, querem saber aonde os depositarão. Foi em um lugar chamado Calumbi em um telheiro que estava servindo de guardar cavalos de carroças! E eles mesmos é que o limparão com suas mãos. Dos novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

que vieram na Barca já tem morrido seis pessoas, uma viúva, um homem chamado António Coelho do Estreito, um filho do Morgado, do Santa Luzia, um rapaz de 14 anos, outro por nome João Pinto Correia do Estrito, e António Lacerda, Chapeleiro, estes são dos que ficarão na Cidade; porque quanto aos que foram para o Campo nós não sabemos dar relação deles; além destes a filha do Breciano, e o filho do Cristóvão Alfaiate, e João Higino, esses por lá o hão-de saber. Da Madeira tem morrido 33 pessoas quase todos que eu conhecia, não digo os homens para não ocupar mais papel, todos eles mortos pelas Febres que perseguem o Brasil. Só quem está aqui é que se aflige mais em ver desaparecerem tantos miseráveis, que se calcula perto de 300 pessoas por dia, que morrem só nos Hospitais. Estas calamidades perseguem mais os estrangeiros recém-chegados; andamos sempre a saber uns dos outros para ver qual terá a mesma sorte! Quem tem a febre, o mais que pode durar são 3 dias. A Divina Providência fará o que for de sua melhor vontade. O brigue Duas Annas chegou a 5 deste mês, o Governo mandou os passageiros para uma Ilha que está no meio do Rio chamada das Cobras para ver se não morriam muitos, porque a ilha é mais arejada. Não há quem console esta gente do arrependimento que tiveram em vir para aqui, quase todos escrevemos e pedimos como humanos que não venha para aqui ninguém nestas ocasiões, porque serão quase todos vítimas; porém debalde será falar porque essa brutal gente, como aqui lhes chamam, não crê senão naqueles que andam embolsando contos de reis com eles mesmos, porque os andam vendendo aqui como negros escravos! Não é mentira o que para aí mandarão dizer que os escravos negros eram mais bem tratados do que os brancos. Foram buscar a bordo raparigas para servirem negros que são criados de senhora. Tratam os ilhéus como a gente mais miserável do mundo! Para aí vai uma barca e um brigue buscar mais escravos, e dizem que querem trazer mais raparigas do que homens, porque tem mais valia, e se forem bonitas, ainda melhor, porque há mais pessoas que as querem para suas casas, por pouco tempo, e estas

infelizes quase sempre mandam dizer que estão bem para não morrer de vergonha das suas desgraças assim como já aconteceu a algumas que vieram nesta barca. Algumas famílias que vieram na barca e se acham no depósito, não tem querido deixar suas filhas ir para casas estranhas, e separarem-se para lugares longes, por estarem bem aconselhadas; porém os dois avarentos, Navarra que é o dono dos escravos, e o capitão de bandeira tem-nos ameaçado com a cadeia, e querem que eles paguem a despesa que estão fazendo durante o tempo que estão sem ocupação, e tem-se apresentado contas a muitos deles, de oitenta, noventa, e cem mil reis, que, dizem eles, não saberem como se aumenta assim tanto dinheiro. Alguns d’eles dizem ser verdade ter pedido algum dinheiro adiantado, porém que não é semelhante quantia. Veio uma pobre viúva com 5 filhas que lhe lançaram em conta um tostão que esse generoso Sr. C(...) lhe dera no seu escritório, e lhe dissera muito compadecido que fosse matar a fome a seus filhinhos. Andam por dinheiro como lobos atrás d’ovelhas! Obrigam a pagar passagens a crianças, que talvez não têm 10 anos, ao preço de sessenta mil reis, estas e muitas outras acções se tem praticado com esta pobre gente, e não há justiça na terra que castigue estes ambiciosos que só querem embolsar dinheiro com as desgraças dos miseráveis! Não importa, há uma Divina Providência que está vendo tudo, e a seu tempo fará justiça a esses homens que vivem no mundo sem humanidade. Não posso ser mais extenso porque o paquete está a sair, só o que eu estimo é que tenham todos saúde, e me recomendem a todos os meus amigos e conhecidos. Sou obediente filho que deseja a vida, saúde e felicidade á minha estimadíssima família. João José Basilio Pereira [O Progressista, nº. 45, p.4]

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Notas sobre o apoio invisível e os silêncios da emigração oitocentista Uma abordagem epistolográfica

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A carta de gente importante ou anónima, privada ou pública permite-nos conhecer os seus actores. Quando os interlocutores se enquadram em contextos de mobilidade, a escrita assume-se como uma necessidade e uma obrigação, criando correntes que ligam directamente emissor e receptor e grupos familiares e de amigos, os que acedem ao conteúdo da epístola, a quem eram endereçados cumprimentos e outras mensagens. A epístola era o elo de ligação entre quem se encontrava separado pelo Oceano, o refúgio privilegiado da amizade, dos afectos, da troca de opiniões e favores, dando autenticidade às ligações epistolares. Como documento histórico único, está inscrita num tempo e espaço social e proporciona abordagens à vida privada, mas também no quadro das mentalidades e das emoções. O emigrante, ao embarcar, assumia o compromisso de sustentar relações de amizade, de comunicação com a família, saber do outro e partilhar vivências, alimentando vínculos de sociabilidade, mas também partilhando intimidades, momentos de solidão e de encontro, dando nota sobre a saúde e sua existência. A missiva, depois de circulada e entregue ao destinatário, era lida e via terminado o papel de mensageira, podendo dar-se por finalizada a sua função, mas outras razões ditaram a conservação destas cartas, autênticos arquivos da memória do autor, que vê arquivada a própria vida. Pela via da correspondência, reforçavam-

se os laços de solidariedade, apoiavamse os emigrantes, quebravam-se os silêncios, mas também se silenciavam actos e divulgavam acontecimentos. Os apoios mais desejados, no momento da morte de algum familiar, amigo, ou conhecido, cujo luto está marcado por um sofrimento adiado pelo correio, raramente são visíveis nestas epístolas da emigração. Em alguns casos a mensagem de condolências é breve, mas muito sentida por quem as partilha. A morte longe do seio familiar era uma realidade cujo presságio era anunciado pela falta de carta, levando algumas mulheres e pensarem que o seu marido ou filho tinha falecido. O melhor apoio e gesto de caridade dos emigrantes, quando se fenecia longe de casa, era proporcionar os melhores cuidados nos últimos momentos da vida e um funeral digno e bem participado. Sem mais comentários, para não retirarmos palavras e sentido ao gesto de um grupo de colegas e amigos emigrantes na Baía a meados de oitocentos, deixamos o excerto da cópia da carta, endereçada para o procurador, para que o destinatário desse a conhecer o acto vital de um conterrâneo, divulgando-o junto dos pais, mas também realçando gastos de funeral e dando-os a conhecer a toda a comunidade de origem, dando projecção aos gestos invisíveis. Henrique Rodrigues

«para … dizer ao Sr. António Vieitas Lima que aqui se me apresentou em nossa cassa seu filho José, no dia 13 de Abril pelas cinco horas da tarde. Perguntando-lhe em navio tinha vindo, disse-me que no vapor D. Maria, de obrigação, e que tinha fugido de bordo que não queria seguir mais nele e que a dito vapor já tinha largado, (como de fato tinha). Eu que não tinha em que o empregasse senão em nosso serviço, foi trabalhar cinco dias e depois foi para bordo de um patacho português César e ao fim de poucos dias entra-me outra vez pela porta dentro, e vinha doente. No dia 25 de Abril às 8 horas, mandei logo chamar um médico receitou-lhe e me disse que estava muito doente. Logo no dia seguinte lançou gómito preto e chamei logo o cirurgião ou doutor e logo disse-me que morria, como de fato morreu em meus braços e de meus primos, às 6,30 horas da manhã do dia 29 do mesmo mês. Foi sepultado no mesmo dia em a freguesia de Nossa Senhora do Pilar, em a campa número dois. Teve quatro padres e mais de quarenta convidados com tochas missa de corpo presente enfim, foi tratado e sepultado como se fosse meu parente. A despesa foi feita por nós todos Joaquim do Gago, meu mano, Manoel do Maís, seu irmão Manoel do Grandeiro, isto é: a despesa do enterro, que andou em perto de trinta mil réis fora a despesa de botica e médico que andou em sete mil réis, que isso eu dei de fora aparte. Enfim, não lhe faltou nada. Tomou Sacramento da extremaunção e confessou-se. Se lhe parecer, mostre esta à família dele» Bahia 1 de Maio 1855.

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O peso das coisas perdidas (sobre encontros com passaportes devolvidos) Steedman, em jeito provocatório, defende que “the historian goes to the archive to be at home as well as to be alone”.

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É solitário, portanto, este escavar/resgatar da história contida na documentação. É assim que nos habituamos a pensar na pesquisa/ investigação histórica e a imagem do Arquivo, enquanto espaço de sapiência, é necessariamente um local silencioso, soturno e impessoal. Todavia, e nos tempos que correm, este imaginário tem sido posto em causa, já que, e como refere, Maria Tamboukou é possível traçar “paths of a narrative sensibility within the archive”.

Estamos convencidos de que o Memória das Gentes que fazem a Historia, enquanto projeto focado na recolha e preservação de histórias de vida, quer através de entrevistas, quer através de consulta de arquivos privados, se enquadra neste novo paradigma dos estudos sociais, procurando assim trazer “body, mind and spirit” para a linha da frente. Hoje, uma simples visita ao arquivo, a consulta de um fundo e até uma entrevista rotineira, não só

adquirem “ vida própria” como poderão ser uma “eruption” [Farbe] à qual o investigador deverá corresponder. É que uma vez que os arquivos afinal não contêm nada [Steedam], é com os nadas que encontramos que temos de (re)contruir a história … o passado, o presente e o futuro, procurando assim um maior sentido para a nossa vida. Cláudia Faria

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Ao longo dos últimos anos, os formandos do Curso EFA da Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos da Tore – Câmara de Lobos, têm realizado um conjunto de atividade relacionadas com a Interculturalidade, a Cidadania ativa e as Migrações / Mobilidades. Este trabalho tem sido desenvolvido de forma interdisciplinar, e faz parte daquilo que se designa de Tema de Vida.

Interculturalidade: unidos pela diversidade – experiências de aprendizagem com formandos dos cursos de Educação e Formação de Adultos de nível básico.

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Segundo o Referencial de Competências Chave, da Educação e Formação de Adultos, a base de coerência entre as quatro áreas de competênciaschave (Matemática para a Vida, Tecnologias da Educação e Informação, Linguagem e Comunicação e Cidadania e Empregabilidade), incluindo a   formação tecnológica,  é assegurada por um conjunto de temas de vida que representam  temáticas de natureza transversal significativas para os formandos de cada grupo. Os temas propostos pelo referencial são: Saúde, Consumo, Paz e Democracia, Ambiente e Ecologia, Multiculturalismo, Igualdade de Oportunidade, Defesa e preservação do património, Atividades económicas, Educação Rodoviária, Estética e Arte e Lazer e Tempo Livre. A partir dos temas de vida será então possível criar dinâmicas de formação centradas em atividades integradoras, uma vez que aquelas temáticas convocam competências dispersas em muitos domínios e áreas do saber. Trata-se de explorar o potencial de cada tema no sentido de verificar as competências que, dentro de uma área ou componente de formação, podem colaborar na realização de uma tarefa complexa, que implica percorrer o caminho entre um desafio até às etapas e formas para o resolver. Ao longo do ano letivo de 2015/2016 os cursos EFA do ensino básico, da Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos da Torre decidiram que todos os trabalhos do Tema de Vida tivessem como tema aglutinador Multiculturalidade / Interculturalidade, tal como já tinha sido feito em anos anteriores e desta forma

irem também ao encontro do um projeto europeu ao abrigo do Programa Erasmus +,  Ação Chave 1Mobilidade Individual para fins de Aprendizagem/ Mobilidade de Pessoal da Educação de Adultos, implementado na referida escola. Este  projeto denominado    RIFIA  (Projeto de Reflexão para a Intervenção na Formação e Integração de  Adultos), tem como objetivo principal a frequência de atividades formativas  a nível europeu que permitam  auxiliar o corpo  docente ligado à formação de adultos do referido estabelecimento de  ensino e melhorar as suas práticas letivas e a sua relação com os aprendentes adultos numa perspetiva intercultural e  de integração europeia. De referir que todos grupos realizaram vários trabalhos nas diferentes Áreas de Competência Chave e nas sessões de Mediação e Aprender com Autonomia, que posteriormente foram apresentados no âmbito da Apresentação Pública conjunta, que decorreu no dia 8 de junho de 2016, no Auditório da Casa da Cultura de Câmara de Lobos. Todos os grupos apresentaram trabalhos de grande qualidade, contudo é oportuno destacar alguns dos trabalhos apresentados, nomeadamente um vídeo criado pelos formandos do curso B2 sobre o Racismo; o tratamento estatístico de um questionário alusivo às competências interculturais (criado pelo Conselho da Europa) e um roteiro apresentado no programa prezi sobre os principais espaços religiosos no Funchal. Depois de os diferentes grupos apresentarem os trabalhos elaborados ao longo do ano de forma separada (cada grupo teve aproximadamente 45 minutos para fazer a sua apresentação), no final foi apresentada uma atividade trabalhada com os três grupos de formação na Área de Competência Língua Estrangeira, Inglês. Os formandos visualizaram um vídeo sketch do jornal The Guardian online relacionado com a convenção europeia de direitos humanos. Com base nesse vídeo realizaram a recolha do vocabulário relacionado e elaboraram cartazes para a apresentação pública,Tajinaste, apelando tolerância ao planta deàaltitude do monteeTeide

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respeito pelos direitos humanos. As equipas pedagógicas fizeram um balanço da Apresentação Pública deste curso, salientando que os formandos demonstraram muito empenho e que os trabalhos apresentados agradaram amplamente ao público presente, desde formadores, formandos e alguns familiares destes. Os objetivos propostos foram amplamente atingidos, dada a qualidade dos trabalhos apresentados e a coordenação das diferentes tarefas entre os formandos dos diferentes cursos. Em suma, o Tema de Vida trabalhado pelos diferentes grupos teve um balanço extremamente positivo, onde se destaca o trabalho interdisciplinar de todas as Áreas de Competência Chave que trabalharam em articulação com a Mediação para que o resultado final fosse o esperado. Os formandos realizaram também um balanço muito positivo, referindo que foi uma temática muito interessante de trabalhar, devido à sua pertinência e atualidade e devido ao facto de ter implicado trabalho de grupo nas diferentes sessões de formação e espirito de equipa. Para todos os formandos e formadores foi uma experiência enriquecedora e os formandos ficaram a conhecer muito melhor os diferentes preconceitos e estereótipos, a matriz cultural da nossa ilha e as diferentes religiões. É oportuno referir que todos os formandos demostraram interesse nas subtemáticas escolhidas, participaram ativamente nas atividades, estiveram sempre disponíveis para trabalhar e partilhar experiências e saberes e por sua vez mostraram-se abertos ao diálogo intercultural. Com estas experiências os formandos constataram também a riqueza cultural da nossa região, a importância de todos aqueles que escolheram a ilha para residir, a problemática do diálogo inter-religioso e a salvaguarda dos principais direitos dos cidadãos. Verificouse igualmente que a diferença nem sempre é respeitada, havendo no nosso mundo muitas injustiças e concluíram que nem sempre olhamos para o outro como gostamos que o outro olhe para nós. Assim, os cursos EFA (Educação e formação de novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

Adultos) fazem suas, as dinâmicas e os processos da cidadania ativa. Enquanto formadores / educadores, cabe-nos uma maior responsabilidade em transmitir, incutir, sensibilizar, alertar e levar os formandos a incorporar estas questões da cidadania, e particularmente da cidadania ativa e da cidadania europeia, bem como, das questões que daqui derivam, nomeadamente as questões da diversidade cultural, dos preconceitos e estereótipos e do diálogo inter-religioso, como também da livre circulação pelo espaço europeu e dos direitos e deveres consignados nos principais tratados europeus. Esperamos que depois do trabalho desenvolvido, todos nós posámos olhar o outro, não como algo diferente, mas como um ser igual a nós e por conseguinte devemos passar a aproveitar as diferenças para nos enriquecermos mutuamente enquanto cidadãos. Para concluir, podemos afirmar que no final de todo este projeto, os nossos formandos serão cidadãos mais tolerantes, mais participativos e mais ativos na nossa sociedade. José Xavier Dias – Professor e Coordenador dos Cursos de Educação e Formação de Adultos da Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos da Torre – Câmara de Lobos Referências Bibliográficas: DIAS, José X. (2012). Cidadania ativa: as migrações – Uma experiência de aprendizagem com formandos dos cursos de Educação e Formação de Adultos da Escola Básica do 2.º e 3.º Ciclos da Torre. In, Anuário do CEHA, Funchal, CEHA, pp. 363-369. Spier, Peter (1991) Gente. Queluz: Ed. Impala Referencial de Competências Chave “Educação e Formação de Adultos, 2006. Direcção-Geral de Formação Vocacional (DGFV)”. Revista Diversidades, N.º 39, 2013. Direção Regional da Educação, Funchal.

O espaço e o tempo em “Masurca Fogo” de Pina Bausch Falávamos de interpretação. Against Interpretation and other essays, de Susan Sontag era a obra recomendada por um conhecido, para contrariar o meu entusiasmo pela interpretação de Masurca Fogo. “Lisboa foi apenas mais um local. Ela faz e depois resulta aquilo que é” afirmava, como se a capital portuguesa passasse despercebida numa peça de quase três horas, assinada por Pina Bausch. O processo de investigação que acompanha a construção de uma ideia não é linear e todas as pessoas que nele colaboram são importantes, sobretudo as que procuram a desconstrução do nosso raciocínio. Por vezes, o entusiasmo com que nos envolvemos no processo pode trair a nossa lucidez e reduzir-nos o leque de possibilidades, que o trabalho nos proporciona. Masurca Fogo é a peça que, em 1998, Pina Bausch criou, a convite da equipa de programação do Festival dos 100 dias, para a Expo’98. Estreada em Wuppertal, a 4 de abril de 1998, foi só a 10 de maio daquele ano que o público de Lisboa assistiu a uma das 42 peças que compõem, em 2016, o repertório do Tanztheater Wuppertal Pina Bausch. Apresentada já em 26 cidades diferentes, Masurca Fogo marcou uma nova fase, na produção de uma das grandes coreógrafas de teatro-dança do século XX. António Laginha, conceituado crítico de dança português escrevia assim para o diário Correio da Manhã, sobre o espetáculo

que vira: …[Masurca Fogo] resultou num daqueles fenómenos que além de uma reflexão estética, seguramente, mereceria um estudo antropológico aprofundado. […] Nunca Bausch terá abordado (sem preocupações de ilustração, como sempre se afirma) uma cidade com tanta “ligeireza”, o que, aliás, deixou frustrados os que “curtem as barras pesadas” de outrora. […] Um certo clima de despreocupada melancolia substituiu a violência e a crueldade da vida, bordejada pela espuma de um mar libertador e puro. (Correio da Manhã, 13.05.1998: 35) Criada a partir de uma residência artística de três semanas, naquela cidade, mostranos um espaço onde não faltam a paisagem marítima, a sonoridade mestiça e o retrato social. Construída a partir de um processo colaborativo e intercultural, mostra-nos uma narrativa, onde a livre associação identitária e a memória afetiva nos transportam ao universo de cada um e a um período da História de Portugal, a que o público não fica indiferente. Uma reflexão sobre o espaço e o tempo, em Masurca Fogo, constitui-se no desafio partilhado neste colóquio, que esperamos contribua para um profícuo debate sobre a mobilidade e identidade nas artes performativas. Teresa Norton Dias

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A busca por novas territorialidades: um olhar através das perspectivas dos migrantes forçados O corpo em trânsito foge, desenraizado, violentado, gasto, discriminado. Mas o seu pensamento e experiência através de sua cultura permitem criar novas formas de sobrevivência a partir da vontade e de novas formas de estar no mundo. Pablo Blanco, 2011, tradução nossa.

ABM, CMFUN, Cx. 1840

Recrutamento de madeirenses para o Brasil (séc. XVIII): contributos avulsos Ilações, na linha das investigações levadas a cabo por Maria de Lourdes Ferraz e Maria Licínia dos Santos, a partir de uma de duas caixas de documentos avulsos, que integram o fundo documental da Câmara Municipal do Funchal, do Arquivo Regional da Madeira. No respetivo inventário constam como «documentos não tratados» e, apesar de a sua existência ser conhecida por poucos, nunca foram até hoje objeto de qualquer pesquisa. Contêm requerimentos de certidões de batismo para «assentar praça para os estados do Brasil na forma da provisão de Sua Majestade», datados sobretudo de julho e agosto de 1751. A comunicação propõe abordar a sua eventual relação com os dois «Livros de matrículas de casais e mais pessoas que voluntariamente quisessem embarcar para o estado do Brasil» (agosto de 1747 a julho de 1751, e que integram o mesmo fundo documental), a intenção de emigrar e fazer uma breve caraterização em função da proveniência, sexo, idade e composição dos agregados a que dizem respeito os requerimentos. Luís Miguel Jardim novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

As migrações forçadas definem algo muito mais contundente que um movimento, ou a mobilidade das pessoas de um lugar para outro, que mais do que migrar, se (des)locam em uma constante busca por um refúgio ou por uma humanidade que ficou perdida. Esse sentimento não se faz só presente durante esse percurso, mas persiste, acompanhando os refugiados, ou outros migrantes forçados, em seu

caminho de incertezas nos diferentes locais de chegada, onde muitas vezes a sua busca por refúgio é interrompida pelas circunstâncias impostas através de sua contenção, ao serem, por exemplo, confinados em campos de refugiados, onde o tempo se reverte em espera, em sua incompletude de jornada, como a sensação de estar sempre em movimento ou deslocado. Além de rotas, setas de sentidos ou lugares percorridos, essa experiência evidencia uma complexidade percebida através das perspectivas desses migrantes, que transformadas em legenda, expõe uma cartografia de sentidos. O seu movimento segue o compasso da resistência, com suas subjetividades em trânsito, agora em busca de novas territorialidades.

Um “desvio de olhar” revela seus protagonismos e potencialidades, apesar dos desafios encontrados. No momento de sua fuga leva-se o que está ao seu alcance ou o que possui maior importância (Figura 1). Em alguns casos só a vida. As recordações do que um dia foi o seu lar, o território detentor de grande simbolismo, são levadas apenas em suas memórias. Apesar dos poucos pertences, os migrantes forçados levam também suas vivências e singularidades. As mochilas e malas que carregam simbolizam apenas, uma parte de sua história, mas não conseguem dar uma exata dimensão dessas geografias. Daniela Silva (Brasil)

Poucos pertences, muitas histórias...

Fonte: Foto do projeto What’s in my Bag? do International Rescue Committee realizado com refugiados em Lesbos (2015). Disponível em: . Acesso em: 23 set. 2015.

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MANUEL DA SILVA SÉ Um madeirense de sucesso no Brasil, emigrado em 1939

Escrever a história da mobilidade madeirense no Brasil: as cartas do arquivo regional da Madeira, 1893-1925 Entre os milhões de Europeus que atravessaram o Atlântico no contexto das migrações de massa de meados do século xix até os anos 1930, quase dois milhões eram portugueses1. Originários do Continente, dos Açores e da Madeira, atravessaram o Atlântico, rumando sobretudo ao Brasil, país com o qual partilhavam a história, a língua, os costumes. Esses deslocamentos e o distanciamento com a terra natal e as pessoas amadas incentivaram, numa população pouca letrada, a necessidade de escrever e ler e, assim, levaram à circulação de inúmeras cartas: cartas pessoais, privadas e cartas de chamada. 1

PENA PIRES, Rui (Coord.); MACHADO, Fernando Luis; PEIXOTO, João; VAZ, Maria João. Portugal: Atlas das migrações internacionais. Lisboa: Tinta-de-china edições, 2010, p. 22.

Bem guardadas há décadas nas caixas do Arquivo regional da Madeira, as cartas de chamada dos imigrantes madeirenses no Brasil eram exigidas tanto pelas autoridades brasileiras como portugueses porque comprovavam um vínculo existente com uma pessoa instalada no território brasileiro. Portanto, depois de lidas e relidas, a pessoa chamada levava a carta recebida ao Governo Civil do Funchal para pedir o passaporte e seguir rumo ao Brasil para reencontrar os seus pais, filhos ou esposos. Após um trabalho minucioso de busca de tal documentação nos processos de passaportes no Arquivo madeirense, foram recolhidas

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dezenas de cartas de chamadas. Cada uma delas sendo repletas de informações cativantes para qualquer leitor e muito úteis para que um pesquisador possa examinar as trajetórias dos imigrantes madeirenses e, seus esforços tanto para reorganizar suas vidas no Brasil como para manter os laços rompidos com a terra de partida. Assim, apresentaremos essas cartas e, veremos que permitem conhecer o perfil dos chamantes e das pessoas chamadas, escutar as vozes dos ausentes e revelar um universo mais íntimo e privado das famílias e do cotidiano dos madeirenses no Brasil. Nelly de Freitas (PUC/FAPESP)

Manuel Sé foi um madeirense radicado no Brasil desde 1939, ano em que, como outros madeirenses procurou a sorte nas paragens longínquas das terras de Vera Cruz. Manuel da Silva Sé nasceu no sítio da Vargem, freguesia e concelho da Calheta, aos cinco dias de Setembro de 1915. Viveu os primeiros anos na sua terra natal e depois em 1939, com apenas 24 anos de idade, e num período difícil para a Madeira e para o mundo, pois estávamos perante as agruras da 2ª Guerra Mundial, decidiu emigrar para o Brasil, aproveitando as facilidades concedidas pelo Governo português. Chegado ao Brasil, (S. Paulo) recomeça a sua vida integrando-se no comércio paulista através de uma simples mercearia, como ele sempre referia, acabando nos mais sofisticados supermercados e centros comerciais e empresariais. Entretanto casou com Maria dos Anjos da Silva, natural da Guarda, de quem teve oito filhos que sempre o ajudaram nos seus negócios. Em S. Paulo foi dos madeirenses mais conhecidos e bem-sucedidos, pois partindo do nada constituiu um grande império comercial que dignificou o seu nome, as empresas Sé, que se compunham de Sé S.A. Comércio e Importação (os famosos supermercados SÉ de S. Paulo), Tivoli S.A. Administração de Bens e Participações e Sé Agropecuária e Florestal Lda. À data da sua morte, em 1996, a empresa que dirigia detinha 17 supermercados no Estado de São Paulo, 9 na capital e as outras espalhadas pelo interior deste Estado, empregando cerca de 3 700 pessoas. Era um empresário muito ouvido e estimado entre a comunidade madeirense em São Paulo, Manuel da Silva Sé era um homem de grande carácter, um grande gestor de recursos

humanos, um grande sabedor da vida, um homem íntegro na verdadeira acepção da palavra. Homem de um grande coração e de uma grande simplicidade que, apesar de ser proprietário de um império comercial, não sabia o que era a arrogância. Foi o responsável pelo bem-estar de muitas famílias de madeirenses, especialmente da sua terra que muito amava, a Calheta, que visitava quase todos os anos, que ele ajudou a emigrar para o seu país de adopção, dando-lhes emprego nas suas empresas, proporcionando a sua realização pessoal e profissional e se não fora a sua ajuda seriam hoje simples agricultores na sua terra, com todas as vicissitudes dessa profissão muitas vezes tão nefastas, como são o alcoolismo, o envelhecimento precoce, a doença, entre outras. Manuel Sé morreu a 12 de Janeiro de 1996, com 80 anos de idade. Era um benemérito, que contribuiu para obras de solidariedade e beneficência, sendo inclusivamente o primeiro presidente da Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência. Fez parte dos órgãos sociais da Casa da Madeira em S. Paulo. Foi membro do Rotary Club de S. Paulo e agraciado com várias comendas concedidas pelos Governos Português e Brasileiro, como a da Ordem do Infante, a de Comendador de Soberana, da Ordem de Fraternidade Universal, da Ordem da Solidariedade e Cruz de Nóbrega (Padre Manuel da Nóbrega). Infelizmente a Madeira não lhe prestou ainda a devida homenagem. Achamos que está na hora de o fazer, nem que seja atribuindo o seu nome a uma rua, perpetuando-o na memória colectiva. Emanuel Janes

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Da oralidade à escrita: a transcrição grafemática ou ortográfica de memórias/histórias de vida de mobilidades Madeira/Brasil Partimos de relatos de memórias das histórias de vida de mobilidades Madeira/Brasil e de um relato de quem ficou com os filhos à espera do marido que foi para o Brasil e que sabe verdadeiramente, no corpo e na alma, o que significa a denominação ”terra dos esquecidos”, para apresentarmos as principais questões que se colocam na passagem da oralidade para a escrita, ou seja, na transcrição ortográfica ou grafemática dos materiais linguísticos e culturais recolhidos na realização das entrevistas gravadas. Como estamos a trabalhar no âmbito da história oral ou história vista de baixo, é importante dar conta de toda a riqueza expressiva do registo oral, das características da variedade do Português falado na Madeira e das interferências e empréstimos das línguas dos países de acolhimento, neste caso da norma do Português do Brasil, de uma forma rigorosa mas simples, de modo a ser facilmente compreensível, permitindo-nos enriquecer o projeto de estudo da Nona Ilha, isto é, dos madeirenses espalhados pelo mundo, do ponto de vista da língua enquanto identidade cultural no espaço e no tempo das mobilidades.

No que se refere à oralidade e à escrita, a linguagem oral ou língua falada, popular e regional, apresenta uma grande riqueza, sobretudo fonética e lexical, resultante da expressividade dos populismos da criatividade do povo (a classe social menos escolarizada da população) e dos regionalismo (vocabulário diferencial que identifica um falante como sendo de uma região). Enquanto a linguagem escrita tende a ser normativa e uniformizada, por pressupor mais tempo para ser pensada e estruturada, seguindo a norma da escola, ao contrário da espontaneidade, vivacidade e variedade que caracteriza a oralidade. No texto “O que faz a história oral diferente?”, Alessandro Portelli diznos que “As fontes orais dão-nos informações sobre o povo iletrado ou grupos sociais cuja história escrita é ou falha ou distorcida. Outro aspeto diz respeito ao conteúdo: a vida diária e a cultura material destas pessoas e grupos.” (1997, 27) . Destacamos aqui a mobilidade da Madeira para o Brasil, “terra dos esquecidos”. Por isso, recolhemos um testemunho de quem ficou esquecido na ilha, à espera do marido que “se

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O emigrante em Eça de Queiroz: entre Portugal e o Brasil, de português a brasileiro

A partilha das memórias/história de vida e do afeto da Srª Filomena da Lombada da Ponta Delgada, S. Vicente, com 97 anos de idade.

perdeu” no Brasil, deixando a mulher e três filhos com “fome envergonhada”: Munte [muito] passei, mai [mais] mau que bom. O meu maride [marido] embarcoua [embarcou] pao [para o] Brasilhe [Brasil], eu fiquei com três filhes [filhos]. Depois ele chegou lá, arranjou uma mulher, deixou-me, nunca mais me escreveu nem soube de mim nem eu soube dele. Qande [quando] eu sabia que vinha uma pessoa do Brasilhe [Brasil], eu corria dum sítio pa [para] outre [outro], a perguntar se tinham o [o tinham] viste [visto] lá. Eles diziam que não o tinham viste [visto]. Bem, o [ao] cabe [cabo] duns vinte anos, ele escreve-me… manda dezer [dizer] que quer vir s’imbora [embora] pa [para a] Madeira. Ao cabe [cabo] de vinte anos… e eu tive um filhe [filho] na hora que ele caminhou [partiu]. Ele só vie [viu] o filhe [filho] na hora do banhe [banho].

E eu fiquei com três filhes [filhos]. Ele vendeu-me duas vacas de leite e terra em sete lugares e eu fiquei só com três filhes [filhos]. Sem nada, sem pai, sem mãe, sem irmãos, sem sogra, sem ninguém. O meu travesseiro chegou a criar beloro [bolor] prete [preto] das minhas lágrimas. De dia cantava come [como] o rouxinol, pa [para] os vizinhes [vizinhos] nã [não] saber o que eu passava. De noite chorava, chorava. À hora de fazer comere [comer], acendia lume e ponha um tiçãozinho a fumigar [fumegar] pa [para] qu’os [que os] vizinhos soubesse [soubessem] que eu tava [estava] cozende [cozendo] comere [comer], pa qu’eles [para que eles] não conhecesse [conhecessem] a pobreza [em] que eu tava [estava]. Naidea Nunes /UMA

Resumo: Hesitante quanto à forma de expressão, dada a insistência da família em ganhar o pão de cada dia, o jovem Eça de Queiroz envereda pela carreira diplomática sem deixar o jornalismo e de pensar na obra de arte. A escrita tripartida do autor, correspondência consular, produção jornalística e criação literária, interseta-se no percurso de vida do escritor, dada a preocupação com a conjuntura portuguesa da segunda centúria de oitocentos. Empenhado na mudança promove e aprimora a escrita que, desde o riso à ironia, considera uma das forças civilizadoras da humanidade. Contra a sua vontade inicia a carreira consular em Havana, em vez do Brasil, tendo a possibilidade de conhecer de perto as movimentações dos migrantes, mas também de rever conceções acerca do melhor destino dos portugueses e de construir uma estética sobre o país que se baseia na ética dos valores humanos que possui e na experiência que adquiriu. Elina Baptista

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Cristianismo e Mobilidade – dos conceitos à missionação A questão das mobilidades é central em toda a história da humanidade. As constantes deslocações de indivíduos, pelas mais variadas razões: guerras, alimentação, religião, imperialismo, trabalho, foram, ao longo dos tempos, configurando e reconfigurando o espaço terrestre, num movimento infinito. Algumas das movimentações mais significativas ocorreram por motivos religiosos e são grandemente responsáveis pela atual geografia da economia, do poder, da paz e da guerra. O cristianismo pode ser pretexto para se estudarem os efeitos concretos de um dos maiores movimentos expansionistas do mundo, o que se demonstra facilmente pelo facto de, tendo nascido há cerca de 2 000 anos no Próximo Oriente, se ter transformado, na religião mais praticada na Terra, pois inclui a Europa, a América, a Oceânia, e partes da África e da Ásia, desde há cerca de 300/400 anos. O cristianismo é filho do judaísmo, o qual teve na sua génese grandes episódios de movimento, dado poder situar-se

o seu início na viagem empreendida por Abraão para as terras de Canaã. Aí ficaram os primitivos hebreus até que uma situação de grande fome se abateu sobre aquela região do globo e os forçou a deslocarem-se para o Egito onde um dos seus, José, se tinha conseguido guindar à posição de segunda figura do reino. Bem acolhidos pelo seu conterrâneo, viveram em tranquilidade e até desafogo até subir ao trono um outro faraó que, temeroso dos efeitos que uma grande quantidade de estrangeiros poderia ter sobre a sua governação, determinou a escravização dos não egípcios. Inicia-se, aqui, o período que a História de Israel conhece por cativeiro do Egito, que durou 400 anos, e marcou, como não poderia deixar de ser, entre outros aspetos da cultura das gentes, a vivência do religioso, o qual ficará tributário de um conjunto de ideias que foi beber à terra de hospedagem, as quais, mais tarde, se encarregará de divulgar à escala do planeta. Com efeito, ao Egito foram os hebreus

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buscar alguns elementos que passaram a incorporar na sua prática tendo alguns permanecido com aquele povo, e outros transitado para um cristianismo futuro. Um deles, que ilustra a primeira das situações, é, precisamente, o ritual da circuncisão, com tradição naquela região do mediterrâneo, mas que para os hebreus passou de novidade a norma. A questão dos Mistérios, por outro lado, já virá a estar muito presente no cristianismo, e é também um conceito muito presente na civilização do Nilo, de onde irradiou não só para Israel e daí para o cristianismo futuro, como para o universo dos gregos, estando na origem das escolas iniciáticas onde estudavam sábios obrigados ao segredo. De acordo com textos que se incluem na Bíblia, o próprio Moisés teria sido iniciado numa destas escolas, conforme se infere de um excerto dos Atos dos Apóstolos, onde concretamente se afirma que “Moisés foi instruído em toda a sua sabedoria dos egípcios e era poderoso nas palavras e nas obras” (Act. 7, 22). A noção de Mistério representa, portanto,

nas duas culturas coisas diferentes, pois enquanto para a Egípcia, significa escola de iniciação ao conhecimento e obrigada à reserva do silêncio, para o cristianismo haverá de representar o que está oculto e não disponível para o entendimento de todos, mas a raiz dos conceitos está, evidentemente, próxima. Além destes aspetos, o cristianismo também ficou a dever às terras do Nilo uma forte noção de imortalidade, dado que os egípcios tinham da vida para além da morte uma conceção elaborada e segura. A par desta similitude, uma outra se apresenta relacionada com o conceito de ressurreição. Segundo a mitologia egípcia, Osíris, um deus, foi assassinado por seu irmão Seth, mas a sua esposa e irmã, Ísis conseguiu recuperar-lhe o corpo e ressuscita-lo, o que o transforma em “Grande Deus - Salvador do Além”, com poderes para fazer o mesmo pelos seus fiéis, ou seja, garantir-lhes a imortalidade (MACEDO, 2011, 62). No universo dos mortos egípcios havia, ainda, um julgamento das almas, que

decidia da forma como se processaria a sua existência na eternidade, e estes mesmos entendimentos são facilmente detetáveis na doutrina cristã. Este pequeno conjunto de exemplos explica, espera-se, a origem e a mobilidade de alguns dos conceitos que, com origem no Egito, transitaram para os hebreus e destes para os cristãos, e mostra, igualmente, como a mobilidade se faz, não só da das gentes, mas também da das ideias que, neste caso, serão mais tarde veiculadas por um abundante exército de apóstolos e missionários que assumirão ser seu dever espalhá-las pelos quatro cantos do mundo. MACEDO, António, Cristianismo Iniciático. O que nunca leu sobre o Cristianismo, Ésquilo, Lisboa, 2011. Cristina Trindade /CLEPUL / Polo Madeira

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A viagem no feminino: a Madeira aos olhos de Emília de Sousa Costa

Os que nunca regressaram

A realidade da emigração em São Roque do Faial, freguesia do Concelho de Santana, tem estado no centro do projeto “Memórias de S. Roque do FaialAs vozes dos emigrantes”, que nasceu no ano 2013. A investigação levada a cabo desde então tem dado voz a exemplos concretos de quem viveu na pele as várias etapas do “itinerário migratório”, narrando as contingências que os levaram a deixar a ilha no século XX, mormente a escassez de terrenos, as dificuldades económicas e, nalguns casos, a fome. Alguns dos testemunhos recolhidos permitem, em particular, evocar os que nunca regressaram. Não é fácil falar do não-regresso, do não-reencontro e como é que estas realidades marcam a vida concreta de quem vive noutro país. Lembramos

Boaventura de Sousa Santos, na sua “sociologia das ausências”: “Transformar objetos impossíveis em possíveis e com base neles transformar as ausências em presenças”. Sabemos que há muitos motivos para estes não-regressos, para além da impossibilidade de reunir recursos económicos para concretizar a visita à terra natal: há quem nunca quis voltar; quem perdeu raízes e deixou de querer reencontrar-se com um passado que lhe passou a parecer vazio; quem se integrou de tal forma no local de destino que passou a ter outra terra como referência identitária; quem não tinha nada para “mostrar” como prova do sucesso da emigração e ficou refém desta vergonha; quem morreu jovem ou vítima de violência e acidentes…

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A família Pernas era composta por sete filhos. Cresceram e viveram do campo, como tantas outras famílias, nos anos 40 do século XX. No meio da pobreza, os filhos foram crescendo e sonhando com um futuro melhor. Alguns primos e tios partiram para o Brasil e foi então que em 1958 a filha mais velha, Maria Natividade, decidiu partir, aos 22 anos, a bordo do navio Vera Cruz com o objetivo de ajudar os pais a criar os irmãos. Para trás ficava Elisa, que naquela época tinha apenas 11 meses. Foram necessários 50 anos um reencontro mágico, para que Clementina voltasse a abraçar aquela bebé de 11 meses que deixou na Madeira e partiria mais tarde para a Austrália. E aquele reencontro transformou-se no regresso ao calor do lar, à família, ao vazio deixado por tantos anos de ausência. O ponto de encontro, o novo lar já não estava em São Roque do Faial mas sim no Brasil. Esse país tão distante que se transformou na referência desta família. «Projeto “Memórias de S. Roque do Faial- As vozes dos emigrantes”»

Professora e escritora, Emília de Sousa Costa (1877-1959) foi uma das intelectuais mais marcantes dos finais do século XIX e primeira metade do século XX. Reconhecida essencialmente pela sua escrita de pendor feminista e pedagógico, Emília de Sousa Costa é raramente estudada, em termos literários, do ponto de vista da mobilidade/viagem. A sua obra Como eu vi o Brazil (1925) é frequentemente examinada e refletida sob a lente dos estudos de género e da educação, omitindo-se a importância e relevância do estudo da sua obra no campo da literatura de viagem. Como eu vi o Brazil remete-nos para a viagem que a escritora Emília de Sousa Costa fez ao Brasil, em 1923, cujo itinerário passa inevitavelmente pela Madeira como ponto de passagem estratégico. Neste sentido, a viagem, como arquétipo literário da cultura portuguesa, é o eixo central da obra e constitui, com recurso à Literatura, um testemunho escrito que perpetua as lembranças e impressões do viajante. Como eu vi o Brazil, como o próprio título do livro indica, trata nitidamente de uma narrativa de viagem que descreve a forma como a autora viu o Brasil pela primeira vez: as suas impressões e os seus testemunhos na presença de um mundo novo. No fundo, o diário de viagem constitui a textualização das memórias físicas e psicológicas do viajante. Na consideração destes aspetos, a escrita encontra-se, portanto,

ao serviço do viajante, que é levado pelo encantamento ou desencantamento proporcionado pela viagem e pelo desconhecido. A viagem é, inevitavelmente, a única forma de mobilidade face à insularidade. A Madeira, como ilha que é, obriga à viagem, a encontros, desencontros, partidas, passagens e chegadas. Neste sentido, a descrição da experiência de viagem pessoal de Emília de Sousa Costa, enquanto discurso de impressões sobre a Madeira e o Brasil, constrói, através da descrição própria da literatura de viagem, uma imagem natural e cultural da ilha e do país, pelo que a existência do seu diário de viagem constitui um subsídio à reconstituição da ambiência dos anos 20, do século XX, em ambos os destinos: “Surge emfim a Madeira, maravilhoso retalho do Eden, que os nossos olhos avidos espreitam num embevecimento de admiração” (Costa, 1926, 10). Fernanda de Castro

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Mobile Learning (m-learning) - ferramenta de promoção e conservação do Português língua de herança (lh)? Grupo de lusodescendentes dispersos pelo mundo – unidos pela língua que herdaram dos seus antepassados

A MOBILIDADE na atualidade precisa ser entendida, não só em termos de movimento espacial, mas também, nas formas em que tal movimento pode permitir mobilidades inter-fronteiras, movimento temporal e movimento de conhecimento. É o caso da aprendizagem de línguas. É sabido que “a linguagem adquire-se e desenvolve-se através de processos de interação com os falantes da língua de uso no seio de uma comunidade de falantes. “Ao tornar-se um falante fluente, a criança ganha a mestria do sistema linguístico do grupo de pertença (…)” (Sim-Sim, 1998: 259). Para o desenvolvimento e manutenção da competência linguística, o falante carece de imersão, num contexto social onde este entre em interação, (exposição), com outros falantes da

mesma língua. No caso das populações migrantes, o afastamento do grupo ou comunidade onde se cresceu e se aprendeu a falar compromete a manutenção do sistema linguístico materno. Muitas vezes, o contacto com a língua de origem passa a ser residual, confinado ao espaço familiar, que ainda assim, paulatinamente, vai sofrendo influências da língua falada no meio circundante. Inevitavelmente, passamos a uma situação de hibridismo linguístico, que é tanto maior, quanto menor for o conhecimento que se tenha de ambos os sistemas. Com o significativo desenvolvimento das TICS, sobretudo com o boom das tecnologias móveis, torna-se inegável uma maior proximidade entre as populações e o consequente encurtar das distâncias. A comunicação tornase muito mais célere e constante,

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transcendente a barreiras espáciotemporais. É a língua em mobilidade. Os indivíduos têm agora a possibilidade de manter contacto com os grupos de pertença, independentemente das distâncias de tempo e espaço. Afigura-se-nos interessante averiguar as potencialidades destes meios para o incremento e desenvolvimentos dos vários skills inerentes à comunicação e à consequente conservação da Língua (ou línguas) de vínculo familiar – A língua de Herança - LH. No início do IV Curso Intensivo de Verão para Lusodescendentes, da UMa, no intuito de facilitar a comunicação entre o grupo e aproveitando para entender melhor estas tecnologias móveis, criou-se um grupo na aplicação para Smartphones – WhatsApp. Pretendiase, entre outros propósitos, contribuir para entender o modo como estes

falantes, provenientes de diversos países e necessariamente imersos nos respetivos sistemas linguísticos de cada comunidade, falavam entre si, sabendo que todos detinham conhecimentos, ainda que rudimentares do Português falado em contexto familiar – Português Língua de Herança. A conclusão? Mais do que nunca se confirmou a máxima pessoana “A minha pátria é a Língua Portuguesa”. O exemplo vem associar-se a uma já considerável lista de estudos que questionam o que a aprendizagem, formal e informal, através dos dispositivos móveis tem para oferecer. Interrogamo-nos sobre se estes dispositivos terão impacto suficiente para alterar a forma como as línguas são ensinadas e aprendidas. Mobile learning ou aprendizagem em mobilidade - não é um conceito estável,

porque se encontra em constante mutação, devido à rapidez com que evoluem os meios à disposição; portanto, as suas interpretações atuais precisam ser explicitadas. Contudo, todos os estudos realizados até agora mostram uma afinidade muito expressiva entre os dispositivos de comunicação móveis e a aprendizagem. Tradicionalmente, a aprendizagem baseada na localização saía da sala de aula apenas para pequenos estágios in loco, atividades físicas, e diversas investigações em campo. A mobile learning dá-nos conta de uma aprendizagem autónoma e ao longo da vida, sem barreiras espácio-temporais, que mobiliza conhecimento, talvez até, muito para além do que a própria capacidade humana seja capaz de conseguir controlar. Idalina Camacho

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O abuso ideológico mais comum da história baseia-se antes em anacronismo que em mentiras. ~ HOBSBAWN, E. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, 20

[anacronismo]…, o pior pecado do historiador. HOBSBAWN, E. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1998, 248

A propósito de mobilidades e regionalismos novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

O processo de afirmação da regionalidade em vez da naturalidade levou-nos a atropelar a História e a vê-la com outro olhar, que identifica tudo e todos com um lugar, de preferência o nosso. Caímos inevitavelmente no anacronismo temporal e espacial. Fazemos os rumos e conhecimentos históricos orbitar em torno do nosso “poio”/ região, esquecendo tudo e todos e prestando um péssimo serviço ao conhecimento historiográfico e à investigação Histórica. Por impulso da política e tradição regional somos, na perspetiva de HOBSBAWM (1998: 248), os maiores pecadores da História. E, porque não queremos que nos acusem deste pecado, aqui estamos para fazer a denúncia e propor outras formas de investigação e escrita face a esta e outras realidades. Olhamos geralmente o passado através da visão que temos do momento atual. O que implica, necessariamente, uma leitura desajustada e anacrónica da realidade que pretendemos trazer para o presente. Assim, de uma forma simplista, diferenciamos o território insular, de acordo com a atual apropriação do sistema políticoadministrativo – Madeira e Açores - e pensamos que, no passado, tudo se passava de igual forma e que as populações originárias destes territórios eram madeirenses e açorianos e não “naturais de…“ ou “moradores em…”. Esta ideia identitária de espaço é uma construção mental, que hoje faz todo o sentido, o que não acontece no passado anterior ao século XX.

Vejamos: na documentação, os madeirenses ou açorianos não são identificados como tal, mas como portugueses, naturais desta ou daquela ilha, retirando-lhe a diferenciação cultural que hoje fazemos. Por outro lado, as associações que se criam nos diversos espaços de emigração não levam o epíteto da origem local dos seus fundadores, mas sim a designação de “Portuguesa”, como sucede, por exemplo, no século XIX, nas Antilhas. Há, na verdade, uma tradição e cultura comuns, partilhada por todos e que poderá ser definida por matizes específicas, tendo, no caso da Madeira, o culto a nossa Senhora do Monte e, nos Açores, o do Senhor Santo Cristo. Diferente é a atitude dos emigrantes, a partir do século XX, que passam a identificar-se como madeirenses ou açorianos. Este olhar o passado de acordo com uma visão atual é um dos mais pesados equívocos ou “pecados” para utilizar a expressão de Eric Hobsbawm (1998: 248) - do historiador que, embora tenha sempre isto como uma recomendação fundamental da sua missão, esquece-a quase sempre, no momento fulcral. Neste quadro, parece-nos necessário refletir sobre algumas questões relacionadas com os anacronismos da historiografia madeirense e açoriana. A diferenciação de açorianos e madeirenses, como marco identitário de uma realidade cultural e histórica, com dimensão territorial diferenciada é uma criação recente e filia-se nas correntes de pensamento político-regionalista. Ora, isto

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remete-nos para o debate da naturalidade ou regionalidade dos insulares. Assim é que, antes do século XIX, falar de açorianos ou madeirenses, poderá ser considerado anacrónico, uma vez que não existe uma identidade instituída e com registo na História. Deste modo, deverá referirse, sim, a “naturais de…” ou “nascido em…”, como habitualmente refere a documentação. Esta carga identitária regional poderá, pois, condicionar muitas dificuldades e alterações no discurso histórico, quando usada para épocas passadas. Esta ideia de madeirenses ou açorianos, que apenas hoje somos, por força de uma identidade diferenciadora definida pela Geografia e construída pela Cultura, História e Política, não pode ser transportada para um passado, onde as marcas dessa diferenciação cultural não estavam definidas nem balizadas de forma institucional. Há uma matriz cultural portuguesa, é certo que com cambiantes muito diferenciadoras na atualidade em relação aos arquipélagos da Madeira e Açores, que acompanhou todo o processo de expansão e de mobilidade dos reinóis e insulares e que não pode ser negada à luz das atuais visões diferenciadoras definidas ao nível político institucional. Até século XX, os emigrantes são identificados como portugueses e reúnem-se em torno da portugalidade. As instituições, filantrópicas ou não, assumem, no seu nome essa caraterística da nacionalidade. À medida que avança a afirmação da regionalidade, surgem as casas e associações com caráter regional, mas a sua grande divulgação só começou na década de quarenta do século XX, com o Estado Novo. Ainda temos que atender que a ideia de região com uma entidade cultural própria é apenas uma ideia do século XX. Há uma corrente do pensamento político que parte da região para definir a uma identidade colada ao espaço/território, com impacto importante no pensamento político europeu de princípios do século XX. O Regionalismo surge em França, a partir de finais do século XIX e cedo se alargou até à Península Ibérica. É um movimento aberto a novembro 2016 - Memória das gentes que fazem a História

todos os sectores políticos e socioprofissionais da sociedade e que pretende defender os interesses da região, da sua diferenciação cultural através da promoção da Cultura e da História. O movimento regionalista não se firmou apenas no combate pela autonomia ou pela descentralização político-administrativa. Os seus arautos foram personalidades que se destacaram no estudo e promoção da História e da cultura regional. Neste contexto, tivemos na Madeira as comemorações do IV Centenário do Descobrimento da Madeira, que decorreu nos anos de 1922 e 1923. A construção do regionalismo procura diversos alicerces dentro do discurso científico, cultural e literário. A par da afirmação destas políticas e movimentos em prol da região, desenvolvemse os estudos locais e regionais. A História local e regional ganha evidência e diferencia-se da nacional. Constrói-se o panteão de heróis regionais. Desta forma, a promoção dos estudos literários, etnográficos e históricos foi uma realidade no primeiro quartel do século XX. Muitos dos que se evidenciaram na luta autonomista foram também vultos de relevo no panorama literário. O movimento regionalista foi uma manifestação que ganhou forma no primeiro quartel do século XX e que chegou a toda a periferia de Portugal. Foi ele a força vivificadora das regiões, da identificação e afirmação da sua cultura e valores, face a um Estado autocrático que fazia do Terreiro do Paço, em Lisboa, o seu umbigo, o centro do mundo. A região é uma forma de olhar e criar o espaço. É uma construção do discurso científico e político, que se pode materializar num espaço geográfico e que se afirma por critérios objetivos da História, Linguística, Economia, Política e Etnografia. Daqui resulta a multiplicidade das variantes do discurso do regionalismo e anti regionalismo. Atente-se a que, no debate científico e no discurso académico, a ênfase vai para o regionalismo político, literário, arquitetónico e económico. Enquanto os primeiros fazem apelo ao local, à região, no sentido restrito, aqui, este movimento, que se afirmou a partir da década de oitenta do século XX, apela à formação

de grupos regionais de países, no sentido de estabelecer políticas económicas de coordenação, que favorecem o comércio à escala regional, atuando como uma forma de coesão económicosocial dos Estados envolvidos. No campo da Literatura e da Língua, temos ainda de distinguir aquilo que se entende por regionalismos, isto é, palavras e expressões com assento e criação local, do regionalismo como produção literária, que se afirma nas diversas formas de expressão pela valorização do local e das suas formas de expressão. Paul BOIS (BOIS, Paul, 1960, Paysans de l’Ouest, des structures économiques et sociales aux options politiques depuis l’époque révolutionnaire, Paris-Haia: Mouton) afirma que a região é uma construção da História e não da Geografia. Desta forma, o regionalismo é o mecanismo histórico que está na origem e afirmação da região, entendida como um espaço simbólico, definido pelo homem, delimitado pela política e que se constrói no tempo pela sua ação diferenciadora das demais regiões que o delimitam ou com as quais se enfrenta. O discurso regional é a construção e identificação da região através da língua ou dos dialetos, dos usos, tradições e costumes que fazem a essência da regionalidade. Expressa-se no combate político, pela defesa dos interesses do espaço em questão, do esbater das barreiras da centralização através de formas políticas de administração intermédias que, em termos institucionais, se materializam em municípios, províncias, regiões autónomas ou estados federados. Desta forma, apresenta-se como uma manifestação clara contra as desigualdades da política de revolta contra o estado central e, enfim, de diabolização do centro e da metrópole. A consciência regional constrói-se e afirma-se através dos movimentos e grupos regionais, das políticas de afirmação da região através da História Regional e Local, dos congressos regionalistas, da criação literária enfocada na região, na criação de espaços culturais e museológicos. O regionalismo é o discurso da periferia, em combate com os macrocéfalos centros de decisão

e domínio. É por isso que se afirma e se exacerba em espaços ou regiões mais periféricos, afastados do centro ou isolados da demais envolvência social e política que as envolve. Daí a sua forte expressão transmontana e insular. Não será por acaso que as primeiras casas regionais aparecem como expressão desta periferia na capital. Em 1905, surgiu a casa de Trás-os-Montes e Alto Douro e, passados dois anos, a da ilha da Madeira. A presença da casa da Madeira chega até Lourenço Marques, onde teve expressão entre 1937-69. Depois, nos anos 20, a exacerbação do regionalismo gerou novas casas, contando com o apoio do madeirense José Vicente de Freitas, então presidente da Câmara de Lisboa. Cedo, o Estado Novo se apercebeu da sua importância, convertendo-as em sustentáculo do nacionalismo e unidade nacional, integrandoas no movimento corporativo, criando, em 1945, o Conselho Superior do Regionalismo Português. As casas regionais e os congressos regionais integram-se no Estado Novo unitário e convertem o discurso regionalista à ideia de unidade da nação. Não será isto uma forma disfarçada de anti regionalismo? Esta intervenção do Estado Novo reformula o regionalismo, não apenas em termos políticos e institucionais, mas também em termos da arquitetura, surgindo, como movimento arquitetónico, a casa portuguesa ou regional de Raúl Lino, com esta expressão do falso regionalismo. É certamente nas ilhas que esta expressão do regionalismo mais se torna visível. Há um discurso insular da regionalidade que se afirma pela presença do mar, pela definição clara das fronteiras que o mar traçou. E este ganhou diversas formas de expressão e reforça-se ainda mais em espaços arquipelágicos, como as Canárias e os Açores, por exemplo. ALBERTO VIEIRA DRC// CEHA -MADEIRA

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As Mobilidades no Espaço e no Tempo

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