As mortes e ressurreições do Cinema Novo na crítica dos anos setenta

June 4, 2017 | Autor: Margarida Adamatti | Categoria: Cinema Novo, Imprensa, Crítica Cinematográfica
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As mortes e ressurreições do Cinema Novo na crítica dos anos setenta Margarida Maria Adamatti 1 Resumo: Em meados da década de setenta, a imprensa debate se o Cinema Novo tinha mesmo morrido. Da inexistência de um marco final consensual, surge uma suspeita sobre sua continuidade a cada novo lançamento dos veteranos do movimento. Se o Cinema Novo nunca foi uma escola com uma estética única e bem definida, e se os cinemanovistas continuavam a produzir filmes com preocupações comuns ao Cinema Novo, qual foi o critério da crítica para entender o discurso dos cineastas? O estudo feito aqui busca pensar a morte do Cinema Novo como construção discursiva da crítica de cinema. Lançamos mão de um estudo historiográfico comparativo via análise de conteúdo para entender as motivações das mortes e ressurreições do Cinema Novo na imprensa. Palavras-chave: Cinema Novo, crítica de cinema, política cinematográfica.

Quando falamos em Cinema Novo brasileiro, logo nos vêem a mente os anos sessenta e filmes-símbolo como Deus e o Diabo na terra do sol, Terra em Transe, Porto das Caixas, Os Fuzis, O Desafio, O Padre e a Moça, Macunaíma, etc. Mas, e os anos setenta? Houve uma continuidade do Cinema Novo enquanto “grupo” naquela década? O movimento teria morrido no final dos anos sessenta, junto com a repressão ferrenha do regime militar? Ele teria sobrevivido nos anos setenta, quando a fragmentação entre os cineastas caracteriza o quadro do cinema brasileiro? Se há um consenso entre os pesquisadores de que não se pode mais falar em Cinema Novo a partir do início dos anos setenta, o quadro não era tão claro assim para a crítica naqueles anos. Especialmente na primeira metade dos anos setenta, a imprensa se perguntava se o Cinema Novo tinha mesmo morrido. A dúvida nascia porque os veteranos do movimento continuavam a produzir e davam declarações flutuantes sobre a continuidade do Cinema Novo. Naqueles anos eram lançados Como era gostoso o meu francês, A casa assassinada, São Bernardo, Toda nudez será castigada, Os inconfidentes, Joana, a francesa, etc. Quando o debate sobre a morte do Cinema Novo surgia na imprensa, os jornais não buscavam as provas do atestado de óbito. Ao se perguntar: O Cinema Novo está morto?, não se trata de um único questionamento da imprensa, mas de uma série de indagações que permaneceram alguns anos em pauta. Analisamos nesse artigo se a imprensa brasileira percebia in loco o fim do movimento e quais eram os sentidos que a palavra Cinema Novo possuía naquele momento. O que significava para os críticos o fim do Cinema Novo? Qual era o significado político da morte desta vanguarda? Em termos de periodização, os pesquisadores concordam que o Cinema Novo só existiu mesmo até o início dos anos setenta. Johnson e Stam (1982) chegam até a colocar como data limite o ano de 1972. A implosão do grupo não esgotaria a continuidade do movimento porque os diretores continuavam sua obra em trajetórias individuais, diferente do projeto coletivo dos anos sessenta. A verdade é que o Cinema Novo nunca foi uma escola com estética conjunta ou homogênea (Stam, Johnson, 1 Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Mestre em Ciência da Comunicação pela mesma instituição. Formada em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero. 35

1982). Seria mais um cinema crítico com liberdade de invenção. Para seus integrantes, ele seria “novo” por fazer parte de um largo processo de transformação da sociedade brasileira, que alcançou o cinema para estudar profundamente as relações sociais. A partir de 1970, segundo Ismail Xavier (2001: 80), existem apenas trajetórias individuais. Depois disso não se pode mais falar de Cinema Novo, por causa da fragmentação do grupo. O cinema brasileiro posterior a 1972-73 não facilita a tarefa de mapeamento ou a busca por estéticas conjuntas. Para Xavier, o movimento cinemanovista era “antes uma sigla para identificar um grupo de pressão, aliás hegemônico junto a Embrafilme 2 , do que uma estética”. Da inexistência de um marco final consensual, surgia na imprensa brasileira uma suspeita sobre a sobrevida do Cinema Novo. Filmes como São Bernardo de Leon Hirszman e Toda nudez será castigada de Arnaldo Jabor, ambos de 1972, ainda são considerados pela historiografia como pertencentes ao Cinema Novo, mas não foram percebidos pelos críticos como parte do movimento. Portanto, essas datas-limite demonstram a dificuldade real do período em mapear cronologicamente a continuidade do movimento. O termo Cinema Novo na imprensa do período resvala em diferentes significações: descreve ao mesmo tempo continuidade do movimento, presença conjunta dos cinemanovistas ou dos filmes no quadro de produção e uma forma homogênea de análise da sociedade. O primeiro a decretar a morte do Cinema Novo teria sido Carlos Diegues (Cf. Johnson, Stam, 1982) numa entrevista publicada na revista Cahiers du Cinéma em 1970 3. Contudo, as declarações de morte e ressurreição não pararam por aí. Por exemplo, em 1975, um jornal tradicional como o Jornal do Brasil compôs três grandes reportagens sobre o assunto 4. Nas entrevistas, os cinemanovistas repetiram quase em coro que o Cinema Novo continuava vivo. Como de costume, a declaração mais polêmica foi a de Glauber Rocha: “O Cinema Novo existe porque estou dando essa entrevista, porque ele está sendo discutido, como é que um processo pode estar morto, se a imprensa se ocupa dele, e muito, como tem acontecido nos últimos tempos? O Cinema Novo existirá sempre que existir algum cineasta filmando dentro do processo criativo revolucionário.”

Glauber defende que o Cinema Novo não morreu porque os cineastas continuam trabalhando. As crises do movimento existem desde as origens. Desde sempre, o Cinema Novo esteve sempre “morrendo e ressuscitando”, numa morte antecipada por críticos e cineastas. A definição de Cinema Novo de Glauber Rocha é muito indicativa do momento político dos cinemanovistas. Num período em que o grupo aproxima-se da Embrafilme, Glauber não explica mais o Cinema Novo como a estética da fome (Rocha, 2004), mas como uma “tática” e “estratégia” para alcançar a distribuição e comercialização. Foi o mesmo Jornal do Brasil quem esclareceu aos leitores a importância política do debate sobre a morte do Cinema Novo no segundo artigo desta série de reportagens 5: “A questão de saber se o documento que hoje se espera do Cinema Novo é um atestado de óbito ou uma carteira de trabalho não é tão bizantina quanto à primeira vista parece. Se ele é declarado morto, isto significa, na prática, que a seus integrantes, enquanto tal, será negado o direito, a voz e voto na condução dos negócios cinematográficos do país. Batendo o pé, gritando que está vivo, acenando com os seus atestados de residência e de sanidade, o Cinema Novo está reclamando esse direito. E

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A Empresa Brasileira de Filmes era uma companhia de economia mista, cujo principal acionista era o Estado. Foi criada em 1969 e foi liquidada no governo Collor. 3 Diegues, Carlos. Entretien avec Carlos Diegues. Entrevista concedida a Jacques Aumont, Eduardo de Gregório e Sylvie Pierre. Cahiers du Cinéma. n. 225, p. 44-55, nov./dez. 1970. 4 Pontes, M.; Cabrol, Arlette; Silveira, Emilia; Alencar, Miriam; Couri, Norma; Gropper, Symona. As muitas mortes e ressurreições do Cinema Novo. Jornal do Brasil. Caderno B. 10 dez. 1975, p. 8. O segundo artigo é Um órfão de público (e um público órfão de cinema). Jornal do Brasil. Caderno B. 11 dez. 1975. E o terceiro Um doente à espera do remédio milagroso. Jornal do Brasil. Caderno B. 12 dez. 1975. p 8. 5 Um órfão de público (e um público órfão de cinema). Jornal do Brasil. Caderno B. 11 dez. 1975. 36

valorizando o seu papel na vida cultural da nação, está não apenas reclamando a sua participação, mas também querendo provar a sua autoridade para intervir nas decisões.”

Aqui a definição de Cinema Novo resvala em seu sentido político sem recear. Está em discussão a necessidade e urgência de participação dos cinemanovistas na política cultural do regime. Esta série de reportagens do JB prefere o tom informativo e se baseia nos depoimentos dos veteranos do Cinema Novo. Como consequência, acaba por aderir às declarações dos cinemanovistas. É interessante observar também como as matérias sobre a morte e ressurreição do Cinema Novo não comentam as mudanças discursivas dos cinemanovistas. O livro Revolução do Cinema Novo de Glauber Rocha (2004) está cheio delas, porque durante os anos setenta, o cineasta tentou mais de uma vez ressuscitar discursivamente o movimento. Nas reviravoltas discursivas dos cinemanovistas na imprensa é possível identificar o significado político do grupo; afinal as declarações sempre aparecem em conjunto em alguns momentos importantes. Por exemplo, em 1973, eles ressuscitavam indiretamente o movimento no Manifesto Luz & Ação 6. No texto conjunto 7 dos veteranos constrói-se a ideia de continuidade da ação cinemanovista. Portanto, o Manifesto vinha para provar que o grupo continuava coeso e na ativa. O Manifesto parece ter sido a principal motivação da discussão sobre a ressurreição do Cinema Novo na imprensa. Não se trata aqui de afirmar somente que o artigo tenha pautado um debate nos jornais sobre a existência ou não do Cinema Novo, mas com certeza sua existência influenciou os veículos. O Manifesto revela o verdadeiro motivo da polêmica sobre a sobrevida do Cinema Novo. Em grande parte, ele se baseou nos depoimentos dos cinemanovistas. Ambos constroem ao longo dos anos um mito de continuidade e morte do Cinema Novo. Para os cineastas, o tema possibilitava uma estratégia de divulgação do grupo e de sua presença junto à política cultural. Essa construção não teria sido possível sem o auxílio dos críticos. Portanto, o estudo feito aqui vê a morte do Cinema Novo como construção discursiva da crítica de cinema e tem por objetivo entender suas motivações. Nesse sentido o Cinema Novo nasceu também graças à ação dos articulistas. A partir destas afirmações sobre o papel dos críticos para o surgimento do Cinema Novo, analisamos sua participação para enterrar o movimento nos anos setenta do ponto de vista discursivo no imaginário do público. Tomamos como estudo de caso o jornal alternativo Opinião (1972-1977) por se tratar de um jornal de resistência ao regime militar. Seu interesse pelo Cinema Novo significava uma busca por um cinema político de análise da sociedade e de enfrentamento ao regime autoritário. Trata-se do jornal de base política mais importante da imprensa alternativa (Cf. Kucinski, 1991). A discussão sobre o Cinema Novo em Opinião é feita por um articulista em especial: Jean-Claude Bernardet, o mesmo crítico que se alinhou ao movimento logo em seu surgimento. Naquele momento, ele já era o principal pensador do Cinema Novo. Em 1967, o crítico publicou o livro Brasil em tempo de cinema, que se tornou um clássico de referência para pensar a produção dos anos sessenta, especialmente a dos cinemanovistas. Bernardet (1978), inclusive, declara que mudou sua maneira de escrever e de pensar o cinema brasileiro, por influência do Cinema Novo. Os filmes importantes passaram a ser os que retratavam a realidade brasileira, revelando a miséria. Dez anos depois do surgimento do movimento, o crítico dedicava um grande espaço no jornal Opinião a pensar a produção dos cinemanovistas. 6 O Manifesto integral está disponível em Autran, Arthur. Documentos para a história do cinema brasileiro. 2006. Pasta F71 (81) (04) * A957d da Cinemateca Brasileira. Manifesto Luz & Ação. Arte em Revista. n. 1, p. 5-9 jan./mar. 1979. Publicação do Centro de Estudos de Arte Contemporânea. 7 Assinaram o documento Carlos Diegues, Glauber Rocha, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, Miguel Farias, Nelson Pereira dos Santos, Walter Lima Jr. 37

Bernardet já pensava desde os anos sessenta o ato crítico como forma de intervenção política; como crítica participativa. Ele continuava a defender em Opinião os filmes que revelassem a realidade brasileira e a miséria do país. Esse viés de análise não mudou nos anos setenta porque Bernardet não identificou nenhum ramo do cinema interessado em analisar a sociedade, exceto os veteranos cinemanovistas. O crítico toma por base São Bernardo para pensar se o Cinema Novo tinha mesmo morrido. Analisando a censura ao filme de Leon Hirszman, Carlos Murao (pseudônimo de Bernardet) comenta que o Cinema Novo e o Cinema Marginal foram os únicos a fazer uma análise da sociedade. A aposta crítica de Jean-Claude Bernardet é a de que “agora parece que o Cinema Novo” não morreu porque surge um “bloco homogêneo” de filmes. O crítico não toma São Bernardo como indicativo do cinema brasileiro no ano de 1972, mas como obra de exceção, porque ele não vê na filmografia nacional um viés crítico. Cinema Novo significa um conjunto de filmes homogêneos que realizam uma análise da sociedade. As afirmações de Bernardet não podem ser tomadas de forma alguma como estanques. Por escrever durante o lançamento dos filmes e pelo tom ensaístico sempre presente, ele altera suas formulações conforme o ângulo de abordagem. Por exemplo, Bernardet (1978: 136) escreve um artigo em 1974 para o livro Kino und Kampf in Latinamerika: “Tem-se falado muito na morte do Cinema Novo. Se morte houve, é provável que tenha havido, ela é a ruptura povo/cinema”. Neste texto, ele refere-se ao Cinema Novo como se ele continuasse a existir, observando suas principais dificuldades. A postura indica que para ele os sentidos da continuidade do Cinema Novo variavam. O estudo feito aqui não prova que a fabricação da morte e ressurreição do Cinema Novo tenha sido uma criação exclusiva dos cinemanovistas, engendrada pelo Manifesto Luz & Ação e pelas declarações do grupo na imprensa. A crítica de cinema também tem o seu papel. Observando as declarações dos cinemanovistas na imprensa e no Manifesto, comprovamos que eles estavam articulados num discurso conjunto. Quando o grupo declara que o Cinema Novo tinha morrido, todos concordam. Quando ressuscitam o movimento, a trupe segue junto. Há uma estratégia bastante coesa que revela a existência deles não só como grupo de pressão junto à Embrafilme, mas como conjunto uníssono nos principais pontos. Por outro lado, talvez por causa da aproximação com o Estado autoritário, os veteranos do movimento tentem se balizar perante o público. Daí se explica a tão grande repetição de ressurreições cinemanovistas como forma de provar a existência de uma produção crítica ao sistema. A estratégia é útil também para negar a união com o Estado autoritário e revelar a existência de um grupo unido, possibilitando o diálogo com os leitores. Bibliografia Augusto, Sérgio. Lado B. Rio de Janeiro: Record, 2002. Bernardet, Jean-Claude. Brasil em tempo de cinema. São Paulo: Cia das Letras, 2007. _____________. Trajetória Crítica. São Paulo: Polis, 1978. GERBER, raquel. O mito da civilização Atlântica: Glauber Rocha. Cinema, política e a estética do inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1982. Kucinski, Bernardo. Jornalistas e revolucionários – nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Editora Página Aberta, 1991. 38

Paranagua, Paulo. “Cinema Novo”. IN: RAMOS, Fernão; Miranda, Luis Felipe (Org.). Enciclopédia do cinema brasileiro. São Paulo: Editora do Senac, 2000. Paranagua, Paulo (org.). Le cinéma bresilien: 1970-1980. Locarno: Festival International du Film, 1983. RAMOS, Fernão. História do cinema brasileiro. São Paulo: Art Editores, 1987. Ramos, José Mario Ortiz. Cinema, estado e lutas culturais (anos 50/60/70). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. Rocha, Glauber. Revolução do Cinema Novo. São Paulo: Cosac & Naif, 2004. STAM, Robert; Johnson, Randall. Brazilian Cinema. London: Associated University Presses, 1982. Viany, Alex. O processo do Cinema Novo. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999. Xavier, Ismail. Cinema brasileiro moderno. São Paulo: Paz e Terra, 2001. XAVIER, Ismail; Bernardet, Jean Claude; Pereira, Miguel. O desafio do cinema – a Política do Estado e a Política dos Autores. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1985.

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