As múltiplas identidades de Patrício, um bretão-romano na Irlanda

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As múltiplas identidades de Patrício, um bretão-romano na Irlanda DOMINIQUE VIEIRA COELHO DOS SANTOS* “São” Patrício, o padroeiro dos irlandeses, na verdade é um bretão romano nascido por volta dos últimos anos do quarto século ou início do quinto. Ele era filho do diácono Calpornius e neto do sacerdote Potitus, que viveu em uma vila romana chamada Bannavem Taburniae. Em algum ponto de sua vida, Patrício foi capturado por piratas irlandeses e se tornou um escravo na Irlanda, onde passou a pastorear ovelhas todos os dias. Depois de alguns anos servindo seu senhor irlandês, ele finalmente escapou. Todavia, após passar um tempo com seus familiares na Bretanha, decidiu voltar e evangelizar os povos da Irlanda. Durante sua jornada, ele enfrentou algumas adversidades, como, por exemplo, ter um homem chamado Coroticus raptando e matando alguns cristãos para os quais ele tinha pregado e ter sido acusado de ir para Irlanda para enriquecer. Patrício escreveu dois textos reagindo a estas dificuldades. Confessio e Epistola ad Milites Corotici são documentos peculiares, neles podemos ler um ex-escravo falando de sua escravidão. Patrício considerava a Irlanda os confins da terra e acreditava também que estava vivendo os últimos dias, por isso, seus textos foram escritos para resolver problemas específicos de seu tempo e não para que ficassem para gerações futuras. Patrício viveu em um contexto multicultural, por causa disso, diversos conflitos de identidade emergem de seus escritos, especialmente os que se relacionam com a romanitas. Desta forma, seus textos podem nos ajudar a compreender os processos de construção de identidades na Britannia. Independente de falarmos de manipulação, adaptação, reinterpretação ou invenção de identidades no Império Romano e suas fronteiras, o fato é que Patrício escreve sobre si mesmo ora como um romano de nobre posição (Confessio, 56), ora como um irlandês (Epistola, 16). Em seus escritos ainda aparece a identidade do cristão, que para ele tem mais valor do que qualquer outra. Assim, representar-se como bretão, bretãoromano, romano, irlandês, bretão-romano-irlandês, ou como cristão, sendo a pupila dos olhos de Deus (Confessio, 29), depende da ocasião. Todavia, sem jamais negar sua identidade romana. O objetivo deste trabalho é discutir estes diferentes aspectos das identidades de Patrício.

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* Profº Drº de História Antiga e Medieval da FURB- Universidade de Blumenau. Coordenador do Laboratório Blumenauense de Estudos Antigos e Medievais. Diferentemente de outros trabalhos, nos quais a Confessio recebe atenção especial e funciona como uma espécie de documento protagonista da narrativa (Santos, 2005, 2008, 2009, 2013), aqui o procedimento se inverte, consideramos os escritos de Patrício obedecendo a ordem cronológica da composição dos mesmos e damos prioridade para a Epistola, que é o texto no qual Patrício se inclui entre os irlandeses, lançando mão da Confessio somente quando necessário. Tal abordagem nos permite uma ótica distinta sobre a maneira como as questões identitárias aparecem nos documentos patricianos. Patrício escreveu a Epistola ad Milites Corotici para advertir alguém que estava prejudicando sua missão na Irlanda. Ele tinha acabado de batizar um grande número de pessoas, aparentemente irlandeses convertidos, quando Coroticus os atacou. Muitos cristãos foram mortos e outros vendidos como escravos. Patrício ficou muito indignado diante desta situação e escreveu a carta para punir Coroticus com a excomunhão. A Confessio foi escrita depois, já em algum momento próximo ao fim de sua vida, e nesta obra Patrício se preocupa o tempo inteiro em defender-se das acusações de que tinha ido para Irlanda enriquecer as custas dos irlandeses. Nestas duas obras, Patrício se representa de várias formas, dependendo do momento. Todavia, ele jamais abandonou sua identidade romana. Ao contrário, ele fez várias combinações a partir da mesma, enfatizando um aspecto ou outro de forma circunstancial. Patrício soube muito bem como fazer uso do fato de ter crescido em um lugar multicultural. No Brasil, é comum ouvir, principalmente em congressos e seminários de estudos “célticos”, que a Irlanda nunca fez parte do Império Romano. Sem dúvida, esta ênfase é dada para apontar a Irlanda como uma espécie de “reduto da celticidade”, interpretação adquirida de algumas obras gerais sobre os celtas traduzidas para o português, como é o caso de “Os Celtas”, de T.G. Powell (1965). Tal ponto de vista se apóia no fato do imperador Adriano ter construído uma fortificação no norte do território que corresponde a atual Inglaterra para proteger a província da Britannia de possíveis ataques inimigos. A fortificação, conhecida como “muralha de Adriano”, de certa maneira separava a província de seus vizinhos, considerados bárbaros, e marcava o limite último do mundo romano na região. Isto significa que a Hibernia, nome latino da Irlanda, nunca foi anexada como província ao Império

2 Romano. Por isso, a tese de que a Irlanda era um mundo sem os romanos, um “país céltico par excellence”. De fato, a Irlanda nunca foi uma província romana, diferentemente da Inglaterra. Todavia, não podemos negar a existência de conecções hiberno-latinas, nem mesmo a possibilidade de expedições romanas à Irlanda. Pesquisadores de várias áreas do saber tem encontrado indícios suficientes para sustentar estas hipóteses. Em sua obra Roman Ireland, por exemplo, o historiador italiano Vittorio di Martino mostrou que objetos romanos foram utilizados em território irlandês em uma escala muito maior que antes admitida e que os romanos contribuiram de forma relevante para arte irlandesa. De igual modo, o autor argumenta ainda que o comércio e a língua latina, mesmo em tempos pré-patricianos, tiveram papéis fundamentais no mundo irlandês (Di Martino, 2003). A partir de uma breve consulta à historiografia recente, o leitor poderá perceber que a mesma tese encontra ressonância na obra de outros autores, como é o caso de Philip Freeman, que em sua obra Ireland and the Classical World, a partir de indícios linguísticos, filológicos, literários e arqueológicos, defende que irlandeses, gregos e romanos mantinham amplos contatos de gêneros variados muito antes do século V (Freeman, 2001). Muitas cidades na Britannia formaram-se a partir das uillae celtas da Idade do Ferro, transformadas pelos romanos em fortificações. As uillae da Britannia deste período se conectavam com as cidades e formavam com elas um sistema econômico (Hughes, 2005). Assim, ficavam próximas delas ou, então, das estradas que serviam como rotas de alimentos. Parece que o lugar onde Patrício nasceu era um destes pequenos vilarejos. No entanto, um pouco privilegiado, pois servia como um centro comercial e agrícola na região (Freeman, 2004). Durante este período da história, os ataques de piratas irlandeses e de diversos saqueadores eram frequentes nas costas do mar da Britannia. As pessoas mais capturadas eram as que trabalhavam nos campos, distante da proteção das cidades fortificadas. Foi em uma incursão desta natureza que Patrício foi raptado, segundo ele diz, “com milhares de pessoas” (Confessio, 1). Não temos condições de saber de que forma isso ocorreu, como foi, muito menos qual o tipo de embarcação teria levado Patrício para a Irlanda (Thompson, 1986), mas o fato é que este tipo de rapto de pessoas, que depois eram vendidas nos mercados de escravos, era algo comum na região, Patrício foi só mais um caso de alguém vítima destes

3 ataques. Foi desta maneira que acabou indo parar em terras irlandesas, do outro lado do mar. R.P.C. Hanson (1968: p. 1-4) diz que este é “o período clássico da pirataria irlandesa”. Há evidências de que as igrejas da Irlanda e aquelas espalhadas pela região que corresponde as atuais Escócia, País de Gales e Inglaterra dialogavam entre si. Ao que parece, primeiro o Cristianismo chegou à Britannia e, logo a seguir, a Irlanda trilhou o mesmo caminho. Patrício devia ter referências da Irlanda, é possível que conhecesse algo da Ilha antes de ter sido raptado e levado para lá. Ou seja, o intercâmbio entre estas duas sociedades, possui, então, referências muito mais antigas e profundas do que costuma-se admitir 1 e fornece o contexto no qual a cristianização da Irlanda deve ser compreendida 2 . Por isso, afirmar que a Britannia e a Irlanda do século V eram mundos muitos distintos, pois a primeira era romana e a segunda não (Santos, 2013: p. 80), pode ser um exagero, uma concentração apenas nas diferenças, ignorando as semelhanças. Assim, ao invés de pensar em isolamento, ultimamente tenho preferido pensar no mar da Irlanda como um possibilitador de trocas culturais, políticas, econômicas e religiosas, cumprindo uma função muito parecida com a que o Mediterrâneo desempenhava para gregos, romanos e dezenas de outros povos. Patrício nasceu, cresceu e foi educado dentro de uma cultura bretã e romana, cercado por diversos convívios culturais típicos de uma localidade que era a fronteira última do Império Romano do Ocidente, o que significava relacionamentos de natureza diversa com inúmeros grupos, como os britânicos, pictos, francos, irlandeses, cristãos galo-romanos etc. Patrício aprendeu bretão, seu idioma materno, e o latim, língua da província romana da Britannia, sendo educado também de acordo com os fundamentos da religião cristã deste 1

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4 lugar específico do mundo. Patrício leu em latim não somente Agostinho, mas também Cipriano, Sulpício Severo, o irlandês Secundinus, conhecido como Sechnall em alguns textos, e também Inocêncio I. Conhecia os principais textos da tradição judáico-cristã. Os documentos escritos por Patrício nos fornecem condições para uma melhor compreensão do processo de formação de identidades no Império Romano, bem como exemplos de como era o cânone bíblico da Britannia do século IV-V (Hanson, 1968; Santos e Gonçalves, 2008), evidências para o estudo da língua latina naquela região e, são os únicos textos que temos para a compreensão da vida social, econômica, política e cultural da Irlanda do século V. Para muitos, exatamente por este motivo, Patrício é o marco inicial da História da Irlanda (O’Rahilly, 1957; Ó CRÓINÍN, 1995 e outros). Por isso é problemático classificar e dividir a História da Irlanda usando as formas “História Antiga” e “História Medieval”, tão familiares a nós no Brasil, mas que quando aplicadas de forma acrítica à História da Irlanda geram inúmeros problemas. As opções mais frequentes na historiografia irlandesa são: “Prehistoric and Early Ireland”, “Early Christian Ireland”, “Ireland under the Vikings” e “Ireland under the Normans”, conforme discutido recentemente (Farrell e Santos, 2011). A maior parte da vida de Patrício teve lugar na Irlanda, mas em nenhum dos seus escritos ele se refere à Ilha como seu lar, sua casa. Sua vivência lá é sempre conflituosa. A idéia que Patrício sustenta quando escreve a Coroticus é de que a Irlanda é um lugar de Bárbaros (Epistola 1), totalmente sem Deus e que precisa de seu auxílio para ser evangelizada (Epistola 5) e o último lugar do mundo conhecido, a Irlanda é para Patrício os confins da terra (Epistola 6). Um irlandês é sempre um bárbaro, mas existe a possibilidade de superação desta condição por meio do Cristianismo. Isto fica explícito quando Patrício se refere a Coroticus e aqueles que partilham de suas idéias como “condidadãos do demônio” (Epistola 3). Assim, os Pictos, por exemplo, por comprarem os cristãos que Coroticus vendia como escravos, são considerados “abomináveis” e os “mais indignos” (Epistola 15). Já os irlandeses que acreditam em Cristo estão sob a lei de Deus e são “concidadãos do céu”. Patrício até se inclui entre eles. Patrício precisa, então, elaborar outra estrutura, que permita separar estas duas categorias, que possa fazer com que haja uma desasociação entre irlandicidade e barbárie. Patrício vai construindo uma identidade para si mesmo e para os cristãos irlandeses que ele está representando. Assim, no discurso de Patrício, é somente por meio do cristianismo, que o

5 irlandês é capaz de superar sua condição de barbárie e se tornar concidadão dos romanos, por ser filho do mesmo Deus. Na Epistola, o bárbaro é o outro, o estrangeiro, aquele que não pertence ao mesmo grupo, e, sobretudo, o termo passa a ser aplicado para aquele que não é cristão. Mesmo Coroticus sendo um bretão romano, ele é designado como “concidadão do demônio e hostil”, pelo fato de perseguir os cristãos irlandeses. Patrício diz que todo aquele que pratica o mal é um “co-cidadão das trevas”, não tendo nenhuma relação com ele e nem com os “santos romanos”. Agora, para Patrício, a divisão mais importante não é mais entre romano e bárbaro, mas sim entre “cristão e não cristão”, “filho de Deus e filho do diabo”, referência constante em toda a Epistola. É com base nesta nova conceituação que Coroticus será julgado. Assim, quando a Epistola é analisada em detalhes, é possível perceber que há nela uma pluralidade discursiva. De acordo com a abordagem, Patrício muda também a maneira de formular as frases. Como vimos, em alguns momentos, Patrício se dirige especialmente a Coroticus e seus homens: “eu não falo aos meus condidadãos, nem aos concidadãos dos santos romanos, mas as concidadãos dos demônios” (Epistola, 2); em outros, sua fala é direcionada para os cristãos irlandeses: “por esta razão me aflijo por vós” (Epistola, 17), “então vós reinareis” (Epistola 18). Parece que a afirmação de Thomas-Charles Edwards (2000: p. 218-219) sobre a Confessio vale de igual modo para a Epistola, ela foi endereçada para Coroticus, mas não deixou de contemplar também os seguidores de Patrício. Assim, da mesma maneira que estes discípulos aparecem como o “uos” do texto da Confessio (48, 51 e 53), eles também se fazem presentes de igual modo nos trechos da Epistola supramencionados. Ou seja, Patrício escreve aos soldados de Coroticus, esperando que o líder deles leia sua carta, mas, ao mesmo tempo, há trechos do documento em que Patrício escreve diretamente aos seus discípulos, possivelmente um conforto aos que foram capturados, mas também uma maneira retórica de tentar sensibilizar algum cristão que tenha poder suficiente para fazer qualquer tipo de intervenção. É neste contexto que Patrício diz: “talvez eles não acreditem que recebemos um e o mesmo batismo e o mesmo Deus pai” (Epistola 16); e ainda: “para eles é indigno que sejamos irlandeses” (Epistola 16). Para Coroticus não havia problema algum em perseguir estas pessoas e vendê-las no mercado de escravos.

6 Possivelmente, ele não fazia isso pelo fato de serem cristãos, mas sim irlandeses, ou seja, bárbaros perigosos. Para ele, mesmo depois de batizado, um irlandês nunca poderia ser considerado no mesmo nível de um cidadão romano. É possível inferir que Patrício também pensava desta maneira, só mudou seu ponto de vista após ter sido escravo durante tanto tempo na Irlanda, aprendendo o idioma e os costumes dos irlandeses. Sabemos que Patrício encontrou na Irlanda uma sociedade dividida em inúmeros pequenso reinos denominados, em gaélico irlandês antigo, pelo termo túath. Cada um destes territórios era governado por um rei, uma espécie de chefe de clã no comando de uma comunidade local, liderando algumas famílias de criadores de gado. Uma túath era uma destas comunidades, por vezes, envolvendo também numerosos grupos de vizinhos. Thomas-Charles Edwards (2000, P. 102) afirma que as pessoas ligadas à Igreja e também os poetas tinham autorização para mover-se entre as fronterias destes territórios, assim, um sacerdote continuava no exercício de seus poderes mesmo estando em outro reino, Patrício, por exemplo, possivelmente fez uso desta autorização quando se locomovia em território irlandês (Confessio, 41; 51; 52). Thomas-Charles Edwards (2000, p. 271) refere-se ainda à túath como “uma comunidade de vivos e de mortos”, esperava-se de um homem, exceto os monges, que fosse enterrado junto de seus ancestrais, por exemplo. A medida que a sociedade irlandesa vai se desenvolvendo, a túath vai sofrendo alterações, ao invés de contar com um druída, por exemplo, o sacerdote cristão toma-lhe o lugar. No entanto, o caráter de comunidade permanece. Como bem sintetiza Daniel Binchy: “Uma túath sem um escriba, uma igreja, um poeta, e um rei não é uma túath”3. Patrício parecia saber muito bem como esta sociedade funcionava, pois sabia como agir em determinadas situações específicas, como, por exemplo, quando estava diante dos reis irlandeses, com os quais poderia conversar no idioma irlandês. Patrício não foi enviado pela Igreja. Foi para Irlanda por sua decisão e se podemos considerar que sua missão teve sucesso, em grande parte, isso se deve ao conhecimento prévio que tinha da cultura irlandesa. Apesar disso, não podemos ignorar o fato de que Patrício era filho de pai decurião. J. B. Bury (1905), explica que tal cargo, em uma província romana nos dias de Calpurnius, era 3

Trata-se de uma frase retirada do Corpus Iuris Hibernici (1123.32), a maior obra de Daniel Binchy, uma extensa coleção de seis volumes contendo o conjunto de manuscritos referentes à lei irlandesa antiga.

7 mais um fardo do que um privilégio, mas apesar das dificuldades inerentes, tinha seus benefícios. De qualquer forma, Patrício menciona este fato como uma grande honraria. Ou seja, segundo a maneira que deseja ser visto, Patrício era um nobre, ele desistiu de sua vida de regalias, próximo de seus familiares, para anunciar o evangelho de Cristo entre povos que ele considerava pagãos, inóspitos e bárbaros. Ou seja, Patrício enfatiza que ele não busca os próprios interesses, mas trabalha para atender os desígnios e vontades de Deus na Irlanda, uma nação estrangeira (Epistola 10). Ele soube muito bem invocar suas origens e retirar vantagem disso na construção de sua argumentação quando necessário. Isto é uma estratégia retórica que faz parte do meio escolhido por ele para responder aos diversos questionamentos que lhe foram feitos e se justificar perante as acusações e adversidades. Os vários momentos da vida de Patrício vinculam-se a diversos contextos nos quais o relacionamento com outros agrupamentos étnicos se fez necessário, ele sempre esteve em ambientes multiculturais. Como foi dito, quando ainda era um jovem, antes de completar 16 anos, vivia na Britannia, tendo uma educação romana, lendo os principais autores cristãos de sua época, todavia, convivendo com diversas crenças pagãs frequentes na villa em que habitava; falando latim, mas também o bretão, que é uma língua céltica do ramo britônico; e, conforme mencionado no início deste trabalho, entrando em contato com saxões, inúmeros povos da região correspondente à atual Escócia, que geralmente aparecem nos livros de História apenas como Caledonii ou Pictos, forma atribuída pelos romanos, mas que de maneira alguma é capaz de abranger todas as especificidades da região. Depois, quando já em idade adulta, viveu na Irlanda, cujo território era todo dividido entre aproximadamente 150 Tuathas diferentes, aprendeu mais um idioma, o irlandês antigo e travou novos contatos culturais, adquirindo outras perspectivas e visões de mundo. Ou seja, Patrício, este bretãoromano, que passou boa parte de sua vida na Irlanda, reunia em torno de si várias identidades. Sabemos que as identidades são sempre baseadas em representações que os grupos ou as pessoas fazem de si mesmas e dos outros. Isto significa falar em jogos de poder, principalmente o de configurar representações, uma vez que a identidade só pode ser elaborada a partir do outro, do diferente. Assim, a partir dos documentos escritos por Patrício, tanto a Epistola quanto a Confessio, temos elementos para analisar e compreender alguns dos entrelaçamentos identitários tanto na Britannia romana quanto na Irlanda do final do século

8 IV e início do V. É importante lembrar, então, que o santo padroeiro dos irlandeses, é na verdade oriundo da Britannia, ele é Patricius, filho de Calpornius e neto de Potitus, personagens importantes para compreensão da História do último limite ao norte do Império Romano.

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10 SANTOS, Dominique; GONÇALVES, Ana Teresa Marques. Os Pais da Igreja e as Obras de Patrício: Uma Análise da Cristianização da Irlanda. Praesentia (Mérida), v. 9, p. 1-15, 2008. THOMAS CHARLES EDWARDS. Early Christian Ireland. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. THOMPSON, E.A. Who was Saint Patrick? New York: St. Martin’s Press, 1986.

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