«As Notícias do Descobrimento do Brasil», ed., in Maria Aparecida Ribeiro, A carta de Caminha e Seus Ecos, Coimbra, Angelus Novus, 2003, pp. 198-245.

May 26, 2017 | Autor: Pedro Serra | Categoria: Travel Literature, Literatura brasileira, Literatura Portuguesa
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AS NOTÍCIAS DO DESCOBRIMENTO DO BRASIL PEDRO SERRA, ED. Carta de Pêro Vaz de Caminha O texto da Carta enviada a D. Manuel por Pêro Vaz de Caminha sobre o «achamento da Terra Nova», conheceu, a partir dos inícios do século XIX até aos nossos dias, inúmeras edições. Trata-se de uma fortuna editorial notável. Respigo algumas das mais conhecidas edições: Rio de Janeiro (1817; reed. 1845), Lisboa (1826), São Luís do Maranhão (1853), Lisboa (1892), Pará (1896; reed. Lisboa, 1900), Pernambuco (1900), Lisboa (1900), Rio de Janeiro (1910), Lisboa (1922), Porto (1923), Lisboa (1940), Rio de Janeiro (1943), São Paulo (1946), Lisboa (1964), Rio de Janeiro (1965), Lisboa (1968), Lisboa (1971), Lisboa (1974), Lisboa (1983), Pádua (1984), São Paulo (1985), Lisboa (1987), Nantes (1995), Lisboa (1998), Rio de Janeiro (1999), Lisboa (1999), Lisboa (2000), e um extenso etcetera. Entre muitos outros editores, contam-se nomes destacados como D. Carolina de Michaëlis1 ou Jaime Cortesão2. A fixação do texto, na presente edição, não envereda pela estrita edição paleográfica − em muitos casos acompanhada da reprodução fac-similar do ms. autógrafo que se encontra no Arquivo Nacional Torre do Tombo (cota: ANTT Gaveta 8, Maço 2, nº 8, Casa Forte) − nem pela edição modernizadora que desrespeita a sua identidade linguística3. A leitura do manuscrito faz-se, pois, seguindo 1 Carta de Pêro Vaz de Caminha, actualizada e anotada por D. Carolina Michäelis de Vasconcelos, in História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol. II, Porto, Litografia Nacional, 1923. 2 A Carta de Pêro Vaz de Caminha, com um estudo de Jaime Cortesão, Rio de Janeiro, Livros de Portugal Ltda., 1943. 3 Um bom exemplo de edição que inclui leitura paleográfica e actualizadora é a da responsabilidade de Sílvio Castro, intitulada La lettera di Pero Vaz de Caminha sulla scoperta del Brasile, Pádua, Universitá di Padova - Pubblicazioni della sezione di portoghese dell'Istituto di lingue e letterature romanze, 1984. É de lamentar que a modernização adultere o texto original, de forma muito semelhante à que se descreve, mais adiante, a respeito das edições de 1974, 1987 e 1998. Outros exemplos de modernização que desfigura a língua do ms. são: A Carta de Pero Vaz de Caminha, prefácio de Joaquim Veríssimo Serrão, estudos de Manuela Mendonça e Margarida Garcez Ventura, Lisboa, Mar de Letras Editora, 1999; e em A Carta de Pêro Vaz de Caminha, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2000, que segue a leitura paleográfica de Eduardo Borges Nunes e a actualização ortográfica de Manuel Viegas Guerreiro.

critérios ecdóticos, de modo a conciliar a necessidade de aproximação do documento ao leitor de hoje, sem deixar de atender as exigências de um público que queira ter o texto como objecto de estudo e reflexão linguística. Algumas das edições portuguesas acessíveis no mercado seguem, de um ponto de vista filológico, critérios de fixação discutíveis. Tomem-se, como exemplos, as edições de 1974, 1987 e 1998. A primeira, intitulada Carta a El-Rei Dom Manuel sobre o Achamento do Brasil (1 de Maio de 1500), foi editada pela Imprensa Nacional-Casa da Moeda e contém uma leitura actualizadora de M. Viegas Guerreiro, assim como uma leitura paleográfica de Eduardo Nunes. A segunda, introduzida e anotada por Maria Paula Caetano e Neves Águas, com chancela da editora Europa-América, tem por título Carta de Pêro Vaz de Caminha a El-Rei D. Manuel sobre o Achamento do Brasil. A terceira, por último, dada à estampa por ocasião da Expo 98, segue a lição de 1987, e foi igualmente anotada por Maria Paula Caetano e Neves Águas. A presente edição fixa o texto a partir do ms. autógrafo, conservando, ao contrário destas três edições, rasgos linguísticos epocais que podem ser resumidos nos seguintes pontos: • Formas como ũa, algũa ou a vacilação nenhũa/nhũa e nenhum/nhum, foram respeitadas; • Casos como antre, atá, ca, casi, coma/come, esto, pera, per, todo (tudo), ou as vacilações depois/ despois, pela/pola, foram preservados; • Formas com ditongos resultantes da vocalização de consoantes implosivas latinas, como fruito, luitavam ou trautou, são mantidas; • A alternância na nasalização dos verbos tēr/ter e vĩr/vir foi igualmente respeitada; • Formas verbais morfológicas como fezemos, acodiram, poseram, jouveram, trouveram ou esteveram, são conservadas; • As formas contraídas ambolos e todolos, substituídas nas referidas edições por ambos os e todos os, são conservadas; • Mantêm-se, ainda, formas como leixarei, contrairo, béspera, cantidade, premeiramente, encaxado, trosquia, çarrada, avangelho, estâmego, concrusão, enformação, escândolo, detreminado, giolho, mai, carpenteiros, farramenta, sartão, castinheiros, simprezidade, precissão, vertuoso, acrecentamento, etc. • Por último, merece uma menção especial o adj. indef. senhos, ignorado nas referidas edições, e que a presente edição preserva. Vejamos um exemplo. O passo «Traziam ambos os beiços

de baixo furados e metidos por eles senhos ossos d’osso brancos de compridão dũa mão travessa e de grossura dum fuso d’algodão e agudo na ponta coma furador.» é lido de forma díspar. Na edição de 1974 temos: «Traziam ambos os beiços de baixo furados e metido por eles um osso branco de comprimento duma mão travessa e de grossura dum fuso d'algodão e agudo na ponta como furador» (p. 38). Por seu turno, na edição de 1987, seguida, como já referi, em 1998, podemos ler: «Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros [sic], do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como furador» (p. 65). Assim, a presente leitura do ms. autógrafo da Carta de Pêro Vaz de Caminha, dentro dos objectivos e parâmetros já enunciados, é feita em função dos seguintes critérios: • Substituição dos grafemas que já não existem no actual sistema gráfico; • Desdobramento de abreviaturas; • Modernização da pontuação; • Actualização do texto segundo as regras actuais da acentuação; • Simplificação das consoantes dobradas; • Introdução de hifenação; • Regularização do uso das grafias i, j, u e v; • Substituição de y por i e de & por e; • Regularização do emprego de h segundo o uso moderno; • Modernização do uso de g e j; • Supressão do dígrafo th; • Actualização da grafia do ditongo nasal -ão, em casos do tipo acharão e fezerão, por acharam e fezeram; • Modernização da grafia da semivogal velar -u nos ditongos decrescentes, como em naaos, ou pareceo, grafados nesta edição naus e pareceu; • Actualização da grafia da semivogal -i em ditongos procedentes da terminação latina -ALES, como taes ou quaes, grafados tais e quais; • Conservação de formas do tipo fea, chea, candeas, etc.; • Preservação da forma tem na terceira pessoa do plural.

Por último, em nota-de-rodapé, procede-se ao esclarecimento de vocabulário menos frequente ou caído em desuso, de modo a que uma leitura fluente do texto não seja prejudicada4. Carta de Mestre João A presente fixação da Carta de Mestre João toma por base o ms. que se encontra no Arquivo Navional / Torre do Tombo, conhecido como Corpo Cronológico, Parte III, maço 2, nº 2. Seguimos os critérios gerais já definidos para a Carta de Pêro Vaz de Caminha. Contudo, dadas as especificidades do texto, impõem–se algumas considerações prévias. A tradição impressa desta missiva, datada de 1 de Maio de 1500, tem oscilado entre a leitura paleográfica – acompanhada quase sempre pelo respectivo fac–símile – e/ou a modernização pura e simples do texto não respeitando rasgos linguísticos epocais. Veja–se, por exemplo, a edição incluída no volume História da Colonização Portuguesa do Brasil. Edição Monumental Comemorativa do Primeiro Centenário da Independência do Brasil, publicado em 19235. Temos, aí, a leitura paleográfica levada a cabo por António Baião, então director da Torre do Tombo6, seguida de uma «versão em linguagem actual» da responsabilidade de Luciano Pereira da Silva7. Varnhagem, que encontrou o ms. na Torre do Tombo e o publicou pela primeira vez na Revista do Instituto Historico e Geografico do Rio de Janeiro8, em 1843, optou, também, pela fixação

4 Foi utilizado, para tanto, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (10ª ed., edição revista, muito aumentada e actualizada segundo as regras do novo acordo ortográfico lusobrasileiro de 10 de Agosto de 1945 por Augusto Moreno, Cardoso Júnior e José Pedro Machado, Lisboa, Editorial Confluência, 1949-1959) de António Morais e Silva (abrev. por Morais). Revelou-se particularmente útil o Vocabulário da Carta de Pero Vaz de Caminha (Instituto Nacional do Livro - Ministério da Educação e Cultura, 1964), da responsabilidade de Sílvio Batista Pereira (abrev. por Pereira). Refiram-se, ainda, os comentários filológicos levados a cabo por D. Carolina de Michaëlis (op. cit., ed. cit), Jaime Cortesão (op. cit., ed. cit.) e Maria Beatriz Nizza da Silva (em A Carta de Pêro Vaz de Caminha, estudo crítico de J. F. de Almeida Prado, texto e glossário de Maria Beatriz Nizza da Silva, Rio de Janeiro, Agir Ed., 1965). 5 Direcção e coordenação literária de Carlos Malheiro Dias, direcção cartográfica do Conselheiro Ernesto de Vasconcellos, direcção artística de Roque Gameiro, Porto, Litografia Nacional, MCMXXIII. 6 Ibidem, p. 104. 7 Ibidem, p. 105. 8 Cfr. Revista do Instituto Historico e Geografico do Brasil, tomo V, 3ª ed., 1885, pp. 364–366 (edição aqui utilizada). Na 1ª ed. (1843) encontra–se no tomo V, p. 342.

paleográfica9. Recentemente, ainda, no volume Os Primeiros 14 Documentos Relativos à Armada de Pedro Álvares Cabral 10, os editores, Joaquim Romero Magalhães e Susana Münch Miranda, enveredaram por uma exemplar leitura diplomática11. A leitura paleográfica permite obviar certos escolhos que se colocam a uma fixação que actualize a ortografia e não deixe de respeitar a identidade linguística do texto. Os escolhos prendem–se com a língua em que foi escrita a Carta. Isto porque ocorrem, no original, tanto formas em castelhano como em português. Eis algumas formas castelhanas: beso, reales, manos, ellos, el, escrivieron, ayer, yo, isla, pierna, mucho, ninguna, yerran, de las, de la, etc. Como formas claramente em português temos: vosa, vosas (ambas com s alto), adiante, chaga, boa, terra, sul ou até. Diante destes exemplos, a questão que se coloca é a de saber para que língua fazer a modernização de tudo o que é possível modernizar. Os casos acabados de referir, na verdade, pedem uma solução de compromisso: as formas claramente em castelhano modernizadas para o espanhol actual (por exemplo, tan byen grafada agora también); as formas claramente em português actualizadas para o português actual (assim, vosa grafada agora vossa). Contudo, deparamos com casos menos claros. Como actualizar as formas do ms. como señor (senhor ou señor?), quanto (quanto ou cuanto?), & (e ou y?), etc.? Ou, ainda, por que critério de acentuação optar em formas como mi (mi ou mí?), que grrado (que grado ou qué grado?)? E como fazer em relação à hifenação de formas como tomarse (tomar–se ou tomarse?) ou rregirse (regir–se ou regirse?), entre outras? Estamos perante um texto escrito em castelhano que, todavia, não deixa de apresentar formas claramente portuguesas, ainda que em número bastante inferior12. É, pois, necessário, fazer as possíveis 9 Contudo, nem sempre correcta. Formas como bacherel, grrados, napamundi, entre outras, foram incorrectamente transcritas, ao tratar-se de uma edição paleográfica, como bacharel, grados ou mapamundi. 10 Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses – Instituto dos Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, 1999. 11 Cfr. ibidem, pp. 91–93. Veja–se, ainda, os critérios de transcrição seguidos (pp. 27–28). 12 Em nota à modernização feita pelo Dr. Luciano Pereira da Silva, incluída no volume História da Colonização Portuguesa do Brasil (ed. cit.), lemos o seguinte comentário: «A palavra cosadura, que se lê na carta, é portuguesismo, como a palavra chaga, entre outras» (p. 105, n. 2). Seguindo a orientação já aqui esboçada, estabelecemos os critérios fixação assumindo que se trata de um texto em castelhano com lusismos. O verbete «Mestre João» da Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (vol. XIV, Lisboa-Rio de Janeiro, Editorial Enciclopédia, s.d.) apresenta o texto como tendo sido escrito em castelhano: «Bacharel em Artes e Medicina, físico e cirurgião de D. Manuel, viveu no séc. XV-XVI. Foi autor

modernizações, prioritariamente, para o espanhol actual, regularizando todavia, escrupulosamente, para o português de hoje, todas aquelas formas que, passíveis de actualização, se encontram no original claramente em português. Note–se, por outro lado, que esta opção é a que permite mantermo–nos mais fiéis à feição ortográfica do manuscrito. Assim sendo, a presente leitura do ms. da Carta de Mestre João, dentro dos objectivos e parâmetros fundamentalmente conservadores já enunciados, é feita em função dos seguintes critérios gerais: • Substituição dos grafemas que já não existem no actual sistema gráfico; • Desdobramento de abreviaturas; • Modernização da pontuação; • Actualização do texto segundo as regras actuais da acentuação em espanhol, ou em português caso se justifique (cfr. até); • Simplificação de vogais e consoantes dobradas, exceptuando–se, como é óbvio, o caso do grafema – ll – do espanhol, em casos como ellos ou allegando; • Actualização de grafias etimológicas ou pseudo– etimológicas como em puncto ou magnifiesto; • Não introdução de hifenação; • Regularização do uso das grafias i, j, u e v. As formas do ms. desconsertauan, jusgauan e auian, contudo, são grafadas, respectivamente desconcertavan, juzgavan e havían (em espanhol de hoje teríamos –aban e –abían), por poder tratar-se de lusismos fonéticos; • Substituição & por y; • Regularização do emprego de h segundo o uso moderno; • Modernização do uso de g e j; • Regularização do uso de maiúsculas e minúsculas segundo critérios actuais; • Colocação entre [ ] das palavras ou letras acrescentadas ao texto original.

da carta em que se relatam as observações astronómicas feitas em terras do Brasil, no dia da chegada da armada de Pedro Álvares Cabral, a que pertenceu. A carta, escrita em espanhol, com data de 1-V-1500, foi publicada numa colecção intitulada Alguns documentos da Comissão Colombina, p. 122. Possivelmente é o astrólogo de D. Manuel que por carta régia de 22-X-1513 teve 12000 reais de tença nos armazéns da Índia. (cf. Braancamp Freire, Crítica e História. Estudos, vol. I, p. 249) (p. 274, cols. 1 e 2).

Por último, em nota–de–rodapé, para além de adicionais comentários à transcrição levada a cabo, procede–se ao esclarecimento de vocabulário menos frequente ou caído em desuso, de modo a assistir uma leitura fluente do texto13. Relação do Piloto Anónimo Como é sabido, desconhece-se quem é o autor da chamada «Relação do Piloto Anónimo», ainda que tudo indique tratar-se de um membro da tripulação da armada de Pedro Álvares Cabral. Acresce, ainda, que a «versão» pioneira que se conserva desse hipotético e perdido «original» em português, se encontra redigida em dialecto veneziano, sendo Giovanni Matteo Cretico, núncio de Veneza em Lisboa em data próxima à viagem de Cabral, o seu autor provável. Esta «tradução», verdadeiro testemunho da «racionalidade» da diplomacia coeva, seria publicada por Fracanzano de Montalboddo nos Paesi nuovamente retrovati, em 150714. Trata-se, pois, da editio princeps da «Relação». Por outro lado, a primeira vez que o texto foi «restaurado» para o português data já do século XIX. A tarefa foi levada a cabo pelo académico Sebastião Francisco de Mendo Trigoso de Aragão Morato, que intitulou a sua «retradução» «Navegação do capitão Pedro Álvares Cabral, escrita por um piloto português, traduzida da língua portuguesa para a italiana e novamente do italiano para português»15. Em 1812, o tradutor português utilizou, para tanto, não a lição incluída nos já referidos Paesi nuovamente retrovati, que por certo desconhecia; fê-lo, sim, a partir de uma outra versão italiana publicada por Giovanni Battista Ramusio em Navigationi et Viaggi,

13 Foi utilizado, para tanto, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (ed. cit.) de António Morais e Silva (abrev. por Morais), e o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (5 vols., 3ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1977) de José Pedro Machado (abrev. por Machado). Revelou–se particularmente útil, ainda, o Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico (6 vols., Madrid, Editorial Gredos, 1991) de J. Corominas e J. A. Pascual (abrev. por Corominas). 14 Há notícia, entretanto, de quatro cópias manuscritas desta versão da «Relação». Cfr. William B. Greenlee, A Viagem de Pedro Álvares Cabral, Porto, Livraria Civilização, 1951, p. 150. Três pertence ao acervo da Biblioteca Marciana de Veneza; uma quarta pertence à colecção Sneyd. 15 In Collecção de Noticias para a Historia e Geographia das Nações Ultramarinas, que Vivem nos Domínios Portugueses que lhe são Vizinhos, tomo II, nº3, Lisboa, Academia Real das Ciências de Lisboa, 1812.

em Veneza em 155016. Seja como for, o texto publicado por Sebastião F. de M. T. de Aragão Morato, na Collecção de Noticias para a Historia e Geographia das Nações Ultramarinas, tem um indiscutível significado «simbólico», pois com ele se restituía a «Relação do Piloto Anónimo» à língua do presumível «original». Opto por apresentar o texto nas suas versões italiana e portuguesa, seguindo de resto o hábito, manifesto, por exemplo, no volume História da Colonização Portuguesa do Brasil, a que tenho vindo a fazer referência. Todavia, não procedo, como aí, à reprodução fac-similada do texto em italiano que consta dos capítulos dos Paesi de Montalboddo17. A leitura que apresento desta lição, porque escrita em dialecto veneziano, é rigorosamente diplomática18. Quanto à primeira versão portuguesa, de 1812, é fixada dentro do espírito já enunciado para a Carta de Pero Vaz de Caminha e a Carta de Mestre João. Tratando-se de um texto do século XIX, claro está, solicita diferente tipo de intervenção19. Assim, como critérios mais específicos, temos: • Simplificação das consoantes dobradas; • Actualização de formas como quaes ou náos, grafadas quais e naus, respectivamente; • Regularização do uso de h; • Regularização do uso de s e z; • A ortografia das desinências verbais como em erão ou andavão é actualizada para eram e andavam, respectivamente; • Modernização da acentuação segundo as normas actuais; • Introdução da hifenação; 16 Vol. I, pp. 132-138. Entre as versões de Montalboddo e Ramusio há diferenças. A versão de Ramuzio é uma retradução para o italiano de uma versão em latim do texto: «a narrativa do pilôto apareceu pela primeira vez adicionada às narrações de Cadamosto, traduzidas para latim por Archangelo Madrignano na primeira década do século XVI e impressas em Milão, de onde Gryneo a reproduziu na colecção de viagens Novus Orbis Regionum ac Insularum, editada em Paris, em 1532. Dezoito anos depois, Ramuzio retraduzira-a na colectânea De Navigationi et Viaggi» (História da Colonização Portuguesa do Brasil, ed. cit., p. 108). 17 O impresso tem sido reproduzido em fac-símile em diferentes lugares (cfr. Os Três Únicos Testemunhos do Descobrimento do Brasil, edição de Paulo Roberto Pereira, Rio de Janeiro, Lacerda Editores, 1999). Utilizámos aquele que se encontra na História da Colonização Portuguesa do Brasil, ed. cit., pp. 113-117. 18 Na transcrição limito-me a: (i) desdobrar as abreviaturas, colocadas em itálico; (ii) introduzir espaços entre formas unidas no texto impresso; (iii) substituir os grafemas não utilizados nos nossos dias. 19 Utilizo a leitura paleográfica incluída na História da Colonização Portuguesa do Brasil, ed. cit., pp. 113-117.

• Regularização da pontuação segundo as normas actuais. Em nota–de–rodapé, para além de adicionais comentários respeitantes à transcrição levada a cabo, procede–se ao esclarecimento de vocabulário menos frequente ou caído em desuso, de modo a assistir uma leitura fluente do texto20. O cotejo da fixação paleográfica da versão italiana com a fixação - dentro dos critérios modernizadores enunciados - da primeira versão portuguesa permite, entretanto, constatar distâncias textuais entre ambas. São divergências que se explicam pelo textofonte que serviu de base àquela tradução portuguesa, isto é, o texto que se encontra nas Navegationi et Viaggi de Ramusio. Registe-se, neste sentido, que uma nova tradução para português, esta sim a partir da versão publicada nos Paesi de Montalboddo, acaba de ser publicada, sendo da responsabilidade de José Manuel Garcia21. As opções e critérios aqui seguidos visam adequar-se à reconhecida importância das lições que tomo por base: (i) a versão de 1507 incluída nos Paesi de Montalboddo, em virtude de este se tratar do «primeiro livro em que aparece descrito o descobrimento do Brasil»22; (ii) a tradução de 1812, da responsabilidade de Sebastião F. de M. T. de Aragão Morato, por deter o valor histórico-documental de ser a primeira vez que o texto circula em português.

20 Foi utilizado, para tanto, o Grande Dicionário da Língua Portuguesa (ed. cit.) de António Morais e Silva (abrev. por Morais), e o Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (5 vols., 3ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1977) de José Pedro Machado (abrev. por Machado). Revelou–se particularmente útil, ainda, o Diccionario crítico etimológico castellano e hispánico (6 vols., Madrid, Editorial Gredos, 1991) de J. Corominas e J. A. Pascual (abrev. por Corominas). 21 Cfr. O Descobrimento do Brasil nos Textos de 1500 a 1571, organização de José Manuel Garcia, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2000, pp. 13-16. 22 História da Colonização do Brasil, ed. cit., p. 109.

[Carta de Pêro Vaz de Caminha]

Senhor, Posto que o Capitão-mor desta vossa frota e assi os outros capitães escrevam a Vossa Alteza a nova do achamento desta vossa terra nova, que se ora nesta navegação achou, não leixarei também de dar disso minha conta a Vossa Alteza, assi como eu milhor puder, ainda que pera o bem contar e falar o saiba pior que todos fazer. Pero tome Vossa Alteza minha inorância por boa vontade, a qual, bem certo, crea que por afremosentar nem afear haja aqui de poer mais ca aquilo que vi e me pareceu. Da marinhagem e singraduras23 do caminho não darei aqui conta a Vossa Alteza porque o não saberei fazer e os pilotos devem ter esse cuidado. E, portanto, Senhor, do que hei-de falar começo e digo que a partida de Belém, como Vossa Alteza sabe, foi segunda-feira, 9 de Março. E sábado, 14 do dito mês, antre as 8 e 9 horas nos achámos antre as Canárias mais perto da Grã Canária. E ali andámos todo aquele dia em calma, à vista delas, obra de24 três ou quatro léguas. E domingo, 22 do dito mês, às 10 horas, pouco mais ou menos, houvemos vista das ilhas do Cabo Verde, scilicet25, da ilha de São Nicolau segundo dito de Pêro Escolar, piloto. E a noute seguinte, à segunda-feira, [quando] lhe amanheceu, se perdeu da frota Vasco d’Ataíde com a sua nau sem i haver tempo forte nem contrairo pera poder ser. Fez o Capitão suas deligências pera o achar, a ũas e a outras partes, e não pareceu26 mais. E assi seguimos nosso caminho per este mar, de longo, atá terça-feira d’oitavas de Páscoa27, que foram 21 dias d’Abril, que topámos alguns sinais de terra sendo da dita ilha, segundo os pilotos deziam, obra de 660 ou 670 léguas, os quais eram muita cantidade

singraduras] navegação diária de um navio. obra de] cerca de. 25 scilicet] Vocábulo latino que significa isto é, a saber. 26 pareceu] apareceu. 27 oitavas de Páscoa] os oito dias da Páscoa. 23 24

d’ervas compridas a que os mareantes chamam botelho28 e assi outras a que também chamam rabo d’asno29. E à quarta-feira seguinte, pola manhã, topámos aves a que chamam fura-buxos30. E neste dia, a horas de béspera31, houvemos vista de terra, scilicet, premeiramente dum grande monte, mui alto e redondo, e d’outras serras mais baixas ao sul dele e de terra chã com grandes arvoredos, ao qual monte alto o Capitão pôs nome o Monte Pascoal, e à terra a Terra da Vera Cruz. Mandou lançar o prumo32, acharam 25 braças, e ao sol-posto, obra de 6 léguas de terra, surgimos âncoras33 em 19 braças. Ancoragem limpa. Ali jouvemos34 toda aquela noute. E à quinta-feira, pola manhã, fezemos vela e seguimos direitos à terra e os navios pequenos diante indo por 17, 16, 15, 14, 13, 12, 10 e 9 braças atá mea légua de terra onde todos lançámos âncoras em direito da boca dum rio. E chegaríamos a esta ancoragem às 10 horas, pouco mais ou menos. E dali houvemos vista d’homens que andavam pela praia, obra de 7 ou 8, segundo os navios pequenos disseram, por chegarem primeiro. Ali lançámos os batéis e esquifes35 fora e vieram logo todolos capitães das naus a esta nau do Capitão-mor e ali falaram. E o Capitão mandou no batel, em terra, Nicolau Coelho pera ver aquele rio. E, tanto que ele começou pera lá d’ir, acodiram pela praia homens, quando dous, quando três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, eram ali 18 ou 20 homens, pardos, todos nus sem nhũa cousa que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijos36 pera o batel e Nicolau Coelho lhes fez sinal que posessem37 os arcos. E eles os poseram. Ali não pôde deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, polo mar quebrar na costa. Somente deu-lhes um barrete vermelho e ũa carapuça de linho, que levava na cabeça, e um sombreiro38 preto. E um deles lhe deu um sombreiro de penas d’aves, compridas, com ũa copazinha pequena de penas vermelhas e pardas, botelho] alga, sargaço. Cf. Cortesão, op. cit., pp. 282-284. rabo d’asno] nome de planta aquática. 30 fura-buxos] ave aquática da família dos Procelariídeos. 31 béspera] var. de véspera. 32 lançar o prumo] para medir a profundidade. 33 surgimos âncoras] fundear, lançar âncoras. 34 jouvemos] ficámos. Jouver = jazer. 35 esquifes] pequena embarcação. 36 rijos] com decisão. 37 posessem] depusessem. 38 sombreiro] chapéu de aba larga. 28 29

coma de papagaio, e outro lhe deu um ramal39 grande de continhas brancas, miúdas, que querem parecer d’aljaveira40, as quais peças creo que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder deles haver mais fala, por azo do mar. A noute seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiros, que fez caçar41 as naus e especialmente a capitana. E à sexta, pola manhã, às 8 horas, pouco mais ou menos, per conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer vela. E fomos de longo da costa, com os batéis e esquifes amarrados per popa, contra o norte, pera ver se achávamos algũa abrigada e bom pouso onde jouvéssemos pera tomar água e lenha, não por nos já minguar, mas por nos acertarmos aqui. E quando fezemos vela seriam já na praia assentados junto com o rio obra de 60 ou 70 homens, que se juntaram ali poucos e poucos. Fomos de longo, e mandou o Capitão aos navios pequenos que fossem mais chegados à terra e que, se achassem pouso seguro pera as naus, que amainassem. E, sendo nós pela costa, obra de 10 léguas donde nos levantámos, acharam os ditos navios pequenos um arrecife com um porto dentro, muito bom e muito seguro, com ũa mui larga entrada42. E meteram-se dentro e amainaram. E as naus arribaram sobr’eles. E um pouco ante sol-posto amainaram obra d’ũa légua do arrecife e ancoraram-se em 11 braças. E sendo Afonso Lopes, nosso piloto, em um daqueles navios pequenos per mandado do Capitão, por ser homem vivo e destro pera isso, meteu-se logo no esquife a sondar o porto dentro e tomou em ũa almadia43 dous daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos. E um deles trazia um arco e 6 ou 7 setas e na praia andavam muitos com seus arcos e setas e não lhe aproveitaram. Trouve-os logo, já de noute, ao Capitão, onde foram recebidos com muito prazer e festa. A feição deles é serem pardos, maneira d’avermelhados, de bons rostros e bons narizes, bem feitos. Andam nus sem nenhũa cubertura, nem estimam nhũa cousa cobrir nem mostrar suas vergonhas. E estão acerca disso com tanta inocência como tem em mostrar o rostro. Traziam ambos os beiços de baixo furados e metidos por eles senhos44 ossos d’osso brancos de compridão45 dũa mão ramal] colar. aljaveira] molusco tropical. 41 caçar] desviar, sair do rumo. 42 larga entrada] Baía Cabrália. 43 almadia] embarcação indígena. 44 senhos] adj. indef., exprime relação distributiva 'um a cada um' (Joseph Huber, Gramática do Português Antigo, Lisboa, F.C.G., 1986, p. 199). 45 compridão] tamanho de um objecto. 39 40

travessa e de grossura dum fuso d’algodão e agudo na ponta coma furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço e o que lhe fica antre o beiço e os dentes é feito coma roque d’enxadrez. E em tal maneira o trazem ali encaxado, que lhes não dá paixão, nem lhes torva a fala, nem comer, nem beber. Os cabelos seus são corredios e andavam trosquiados de trosquia alta mais que de sobre-pentem46, de boa grandura e rapados atá per cima das orelhas. E um deles trazia per baixo da solapa, de fonte a fonte pera detrás, ũa maneira de cabeleira de penas d’ave amarela, que seria de compridão dum coto, mui basta e mui çarrada47 que lhe cobria o toutuço48 e as orelhas, a qual andava pegada nos cabelos, pena e pena, com ũa confeição branda coma cera e não no era. De maneira que andava a cabeleira mui redonda e mui basta e mui igual, que não fazia míngua mais lavagem pera a levantar. O Capitão, quando eles vieram, estava assentado em ũa cadeira e ũa alcatifa aos pés por estrado, e bem vestido, com um colar d’ouro mui grande ao pescoço. E Sancho de Toar e Simão de Miranda e Nicolau Coelho e Aires Correa e nós outros, que aqui na nau com ele imos, assentados no chão per essa alcatifa. Acenderam tochas e entraram e não fezeram nenhũa menção de cortesia nem de falar ao Capitão nem a ninguém. Pero um deles pôs olho no colar do Capitão e começou d’acenar com a mão pera a terra e despois pera o colar, como que nos dezia que havia em terra ouro. E também viu um castiçal de prata e assi mesmo acenava pera a terra e então pera o castiçal, como que havia também prata. Mostraram-lhes um papagaio pardo que aqui o Capitão traz, tomaram-no logo na mão e acenaram pera a terra como que os havia i. Mostraram-lhes um carneiro, não fezeram dele menção. Mostraram-lhes ũa galinha, casi haviam medo dela e não lhe queriam poer a mão e despois a tomaram coma espantados. Deram-lhes ali de comer pão e pescado cozido, confeitos, 49 fartéis , mel e figos passados. Não quiseram comer daquilo casi nada. E algũa cousa se a provavam lançavam-na logo fora. Trouveram-lhes vinho per ũa taça, poseram-lhe assi a boca tamalavez50 e não gostaram dele nada nem o quiseram mais. Trouveram-lhes água per ũa albarrada51, tomaram dela senhos bocados e não beberam. Somente lavaram as bocas e lançaram fora. sobre-pentem] sobre-pente. çarrada] apretada, cerrada. 48 toutuço] toutiço. 49 fartéis] bolos feitos de massa doce, envoltos em farinha. Cf. Morais, vol. V, s.u. Fartel. 50 tamalavez] com dificuldade. 51 albarrada] recipiente para beber água, de metal ou barro. 46 47

Viu um deles ũas contas de rosairo brancas. Acenou que lhas dessem e folgou muito com elas e lançou-as ao pescoço e despois tirou-as e embrulhou-as no braço. E acenava pera a terra e então pera as contas e pera o colar do Capitão, como que dariam ouro por aquilo. Isto tomávamo[s] nós assi polo desejarmos. Mas se ele queria dizer que levaria as contas e mais o colar, isto não queríamo[s] nós entender, porque lho não havíamos de dar. E despois tornou as contas a quem lhas deu. E então estiraram-se assi de costas na alcatifa, a dormir, sem tēr nenhũa maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não eram fanadas52 e as cabeleiras delas bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou poer às cabeças senhos coxis e o da cabeleira procurava assaz pola não quebrar. E lançaram-lhes um manto em cima e eles consentiram e jouveram e dormiram. Ao sábado, pola manhã, mandou o Capitão fazer vela e fomos demandar a entrada, a qual era mui larga e alta de 6, 7 braças. E entraram todalas naus dentro e ancoraram-se em 5, 6 braças, a qual ancoragem dentro é tão grande e tão fremosa e tão segura que podem jazer dentro nela mais de 200 navios e naus. E tanto que as naus foram pousadas e ancoradas, vieram os capitães todos a esta nau do Capitão-mor. E, daqui, mandou o Capitão a Nicolau Coelho e Bertolameu Diis que fossem em terra e levassem aqueles dous homens e os leixassem ir com seu arco e setas, aos quais mandou dar senhas camisas novas, e senhas carapuças vermelhas, e dous rosairos de contas brancas d’osso que eles levavam nos braços, e senhos cascavéis, e senhas campainhas. E mandou com eles pera ficar lá um mancebo degradado, criado de Dom João Telo, a que chamam Afonso Ribeiro, pera andar lá com eles e saber de seu viver e maneira. E a mim mandou que fosse com Nicolau Coelho. Fomos assi de frecha direitos à praia. Ali acudiram logo obra de 200 homens, todos nus, e com arcos e setas nas mãos. Aqueles que nós levávamos acenaram-lhes que se afastassem e pusessem os arcos e eles os puseram. E não se afastavam muito. Abasta que poseram seus arcos e, então, sairam os que nós levávamos e o mancebo degradado com eles, os quais, assi como saíram, não pararam mais nem esperava um por outro senão a quem mais correria. E passaram um rio que per i corre d’água doce de muita água que lhes dava pela braga53. E outros muitos com eles. E foram assi correndo além do rio antre ũas moutas de palmas, onde estavam outros, e ali pararam. 52 53

fanadas] circuncidadas. braga] calças; fig. coxa. Cf. Pereira, s.u. bragas.

E, naquilo, foi o degradado com um homem que, logo ao sair do batel o agasalhou e levou-o atá lá. E logo o tornaram a nós. E, com ele, vieram os outros que nós levámos os quais vinham já nus e sem carapuças. E então se começaram de chegar muitos. E entravam pela beira do mar pera os batéis atá que mais não podiam. E traziam cabaços d’água e tomavam alguns barris que nós levávamos e enchia[m]-nos d’água e trazia[m]-nos aos batéis. Não que eles de todo chegassem a bordo do batel, mas, junto com ele lançavam-no da mão e nós tomávamo-los. E pediam que lhes dessem algũa cousa. Levava Nicolau Coelho cascavéis e manilhas54 e [a] uns dava um cascavel e a outros ũa manilha. De maneira que, com aquela encarna55, casi nos queriam dar a mão. Davam-nos daqueles arcos e setas por sombreiros e carapuças de linho, e por qualquer cousa que lhes homem [queria]56 dar. Dali se partiram os outros dous mancebos, que não os vimos mais. Andavam ali muitos deles ou casi a maior parte que todos traziam aqueles bicos d’osso nos beiços. E alguns, que andavam sem eles, traziam os beiços furados e nos buracos traziam uns espelhos de pau que pareciam espelhos57 de borracha58. E alguns deles traziam três daqueles bicos, scilicet, um na metade e os dous nos cabos. E andavam i outros quartejados59 de cores, scilicet, deles ametade da sua própria cor e ametade de tintura negra maneira d’azulada e outros quartejados d’escaques60. Ali andavam antr’eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis, com cabelos muito pretos, compridos, pelas espáduas e suas vergonhas tão altas e tão çarradinhas e tão limpas das cabeleiras que de as nós muito bem olharmos não tínhamos nhũa vergonha. Ali, por então, não ouve mais fala nem entendimento com eles por a berberia61 deles ser tamanha que se não entendia nem ouvia ninguém. Acenámos-lhe que se fossem e assi o fezeram e passaram-se além do rio. E saíram três ou quatro homens nossos dos batéis e encheram não sei quantos barris d’água que nós levávamos. E tornámo-nos às naus. E, em nós assi vindo, acenaram-nos que tornássemos. Tornámos e eles mandaram o degradado e não quiseram manilhas] adornos com forma de argola. encarna] engodo. 56 queria] No ms. queriam. 57 espelhos] tampas de recipiente para vinho chamado 'borracha'. 58 borracha] recipiente de couro para o vinho. 59 quartejados] pintados em quartos, i.e., aos quadrados. 60 escaques] cada uma das casas do tabuleiro de xadrez. 61 berberia] algazarra. 54 55

que ficasse lá com eles, o qual levava ũa bacia pequena e duas ou três carapuças vermelhas pera dar lá ao Senhor, se o i houvesse. Não curaram de lhe tomar nada e assi o mandaram com tudo. E então Bertolameu Diis o fez outra vez tornar, que lhes desse aquilo. E ele tornou e deu aquilo em vista de nós àquele que o da primeira agasalhou. E então veo-se e trouvemo-lo. Este que o agasalhou era já de dias62 e andava todo, por louçainha63, cheo de penas pegadas pelo corpo que parecia assetado coma São Sabastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas e outros de vermelhas e outros de verdes. E ũa daquelas moças era toda tinta, de fundo a cima, daquela tintura, a qual, certo, era tão bem feita e tão redonda. E sua vergonha, que ela não tinha, tão graciosa, que a muitas molheres de nossa terra, vendolhe tais feições, fezera vergonha por não terem a sua com’ela. Nhum deles não era fanado, mas todos assi coma nós. E com isto nos tornámos e eles foram-se. À tarde saiu o Capitão-mor em seu batel com todos nós outros e com os outros capitães das naus em seus batéis a folgar pela baía, a carão64 da praia, mas ninguém saiu em terra polo Capitão não querer, sem embargo de ninguém nela estar. Somente saiu ele com todos em um ilhéu grande que na baía está, que de baixa-mar fica mui vazio, pero é de todas partes cercado d’água que não pode ninguém ir a ele sem barco ou a nado. Ali folgou ele e todos nós outros bem ũa hora e mea. E pescaram, i andando marinheiros com um chinchorro65, e mataram pescado miúdo não muito. E, então, volvemo-nos às naus já bem noute. Ao domingo de Pascoela, pola manhã, detreminou o Capitão d’ir ouvir missa e pregação naquele ilhéu. E mandou a todolos capitães que se corregessem66 nos batéis e fossem com ele. E assi foi feito. Mandou naquele ilhéu armar um esperável67 e dentro nele alevantar altar mui bem corregido e ali com todos nós outros fez dizer missa, a qual disse o padre frei Anrique em voz entoada e oficiada com aquela mesma voz pelos outros padres e sacerdotes que ali todos eram. A qual missa, segundo meu parecer, foi ouvida per todos com muito prazer e devação. Ali era com o Capitão a bandeira de Cristo,

era já de dias] era já pessoa de idade. por louçainha] por vaidade. 64 a carão] diante de. 65 chinchorro] pequena rede de pesca. 66 se corregessem] se abastecessem. 67 esperável] dossel de leito. Cf. Cortesão, op. cit., p. 316-318. 62 63

com que saiu de Belém, a qual esteve sempre alta, à parte do Avangelho. Acabada a missa, desvestiu-se o padre e pose-se68 em ũa cadeira alta e nós todos lançados per essa area69. E pregou ũa solene e proveitosa pregação da estória do Avangelho. E, em fim dela, trautou de nossa vinda e do achamento desta terra, conformando-se com o sinal da cruz, so70 cuja obediência vĩmos, a qual veo muito a prepósito e fez muita devação. Enquanto estevemos à missa e à pregação, seriam na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como os d’ontem, com seus arcos e setas, os quais andavam folgando e olhando-nos, e assentaramse. E, despois d’acabada a missa, assentados nós à pregação, alevantaram-se muitos deles e tangeram corno ou vozina71 e começaram a saltar e dançar um pedaço. E alguns deles se metiam em almadias, duas ou três, que i tinham, as quais não são feitas como as que eu já vi. Somente são três traves atadas juntas. E ali se metiam 4 ou 5, ou esses que queriam, não se afastando casi nada da terra senão quanto podiam tomar pé. Acabada a pregação, moveu o Capitão e todos pera os batéis, com nossa bandeira alta. E embarcámos e fomos assi todos contra terra pera passarmos ao longo per ond’eles estavam, indo Bertolameu Diis em seu esquife per mandado do Capitão diante com um pau dũa almadia, que lhes o mar levara, pera lho dar, e nós todos obra de tiro de pedra72, trás dele. Como73 eles viram o esquife de Bertolameu Diis, chegaram-se logo todos à água, metendo-se nela atá onde mais podiam. Acenaramlhes que posessem os arcos e muitos deles os iam logo poer em terra e outros os não punham. Andava i um que falava muito aos outros que se afastassem, mas não já que m’a mim parecesse que lhe tinham acatamento nem medo. Este, que os assi andava afastando, trazia seu arco e setas e andava tinto de tintura vermelha pelos peitos e espáduas e pelos quadris, coxas e pernas atá baixo. E os vazios74 com a barriga e estâmego era da sua própia cor e a tintura era assi vermelha que a

pose-se] pôs-se. area] areia. 70 so] sob. 71 vozina] buzina. 72 tiro de pedra] unidade para medir a distância. 73 Como] assim que, logo que. 74 vazios] partes laterais do ventre, sob as costelas. 68 69

água lha não comia nem desfazia. Ante, quando saía d’água, era mais vermelho. Saiu um homem do esquife de Bertolameu Diis. E andava antr’eles sem eles entenderem nada nele quanto a pera lhe fazerem mal, senão quanto lhe davam cabaços d’água. E acenavam aos do esquife que saíssem em terra. Com isto se volveu Bertolameu Diis ao Capitão e viemo-nos às naus a comer, tangendo trombetas e gaitas, sem lhes dar mais apressão e eles tornaram-se a assentar na praia e assi por então ficaram. Neste ilhéu, onde fomos ouvir missa e pregação, espraia muito a água e descobre muita area e muito cascalhau75. Foram alguns, em nós i estando, buscar marisco e não no acharam. E acharam alguns camarões grossos e curtos, antre os quais vinha um muito grande camarão e muito grosso, que em nenhum tempo o vi tamanho. Também acharam cascas de bergões76 e d’amêijeas77 mas não toparam com nhũa peça inteira. E, tanto que comemos, vieram logo todolos capitães a esta nau per mandado do Capitão-mor, com os quais se ele apartou e eu na companhia. E preguntou assi a todos se nos parecia ser bem mandar a nova do achamento desta terra a Vossa Alteza pelo navio dos mantimentos, pera a milhor mandar descobrir e saber dela mais do que agora nós podíamos saber, por irmos de nossa viagem. E, antre muitas falas que no caso se fezeram, foi per todos, ou a maior parte, dito que seria muito bem. E nisto concrudiram. E, tanto que a concrusão foi tomada, preguntou mais se seria bom tomar aqui per força um par destes homens pera os mandar a Vossa Alteza e leixar aqui por eles outros dous destes degradados. A esto acordaram que não era necessário tomar per força homens, porque géral78 costume era dos que assi levavam per força pera algũa parte dizerem que há i tudo o que lhe preguntam, e que milhor e muito milhor enformação da terra dariam dous homens destes degradados que aqui leixassem do que eles dariam, se os levassem por ser gente que ninguém entende. Nem eles tão cedo aprenderiam a falar pera o saberem tão bem dizer que muito milhor o estoutros não digam, quando cá Vossa Alteza mandar. E que, portanto, não curassem aqui de per força tomar ninguém nem fazer escândolo, pera os de todo mais amansar e apaceficar, senão

cascalhau] cascalho. bergões] berbigões. 77 amêijeas] amêijoas. 78 géral] No ms. geeral. 75 76

somente leixar aqui os dous degradados, quando daqui partíssemos. E assi, por milhor parecer a todos, ficou detreminado. Acabado isto, disse o Capitão que fôssemos nos batéis em terra e ver-s’-ia79 bem o rio quejando era80, e também pera folgarmos. Fomos todos nos batéis em terra, armados, e a bandeira connosco. Eles andavam ali na praia, à boca do rio, onde nós íamos. E, ante81 que chegássemos, do ensino que dantes tinham, poseram todos os arcos e acenavam que saíssemos. E, tanto que os batéis poseram as proas em terra, passaram-se logo todos além do rio, o qual não é mais ancho82 que um jogo de mancal83. E, tanto que desembarcámos, alguns dos nossos passaram logo o rio e foram antr’eles. E alguns aguardavam e outros se afastavam, pero era a cousa de maneira que todos andavam mesturados. Eles davam desses arcos com suas setas por sombreiros e carapuças de linho e por qualquer cousa que lhes davam. Passaram além tantos dos nossos e andavam assi mesturados com eles, que eles se esquivavam e afastavam-se e iam-se deles pera cima onde outros estavam. E, então, o Capitão feze-se tomar ao colo de dous homens e passou o rio e fez tornar todos. A gente que ali era não seria mais ca aquela que soía. E, tanto que o Capitão fez tornar todos, vieram alguns deles a ele não polo conhecerem por Senhor, cá me parece que não entendem nem tomavam disso conhecimento, mas porque a gente nossa passava já pera aquém do rio. Ali falavam e traziam muitos arcos e continhas daquelas já ditas e resgatavam por qualquer cousa, em tal maneira que trouveram dali pera as naus muitos arcos e setas e contas. E então tornou-se o Capitão aquém do rio e logo acodiram muitos à beira dele. Ali veríeis galantes, pintados de preto e vermelho e quartejados, assi pelos corpos como pelas pernas, que certo pareciam assi bem. Também andavam antr’eles 4 ou 5 molheres moças, assi nuas que não pareciam mal, antre as quais andava ũa com ũa coxa, do giolho84 atá o quadril e a nádega, toda tinta daquela tintura preta, e o al85 todo da sua própria cor. Outra trazia ambolos86 giolhos com as ver-s’-ia] ver-se-ia. quejando era] de que feição era. 81 ante] antes. 82 ancho] largo. 83 jogo de mancal] Refª. ao espaço (8-10 m.) onde se joga o jogo da malha. Cf. Pereira, s.u. mancal. 84 giolho] joelho. 85 e o al] e o resto. 86 ambolos] ambos os. 79 80

curvas assi tintas e também os colos dos pés. E suas vergonhas tão nuas e com tanta inocência descubertas que não havia i nenhũa vergonha. Também andava i outra molher moça com um menino ou menina no colo, atado com um pano não sei de quê aos peitos, que lhe não parecia senão as perninhas, mas as pernas da mai87 e o al não trazia nenhum pano. E despois moveu o Capitão pera cima, ao longo do rio, que anda sempre a carão da praia, e ali esperou um velho que trazia na mão ũa pá d’almadia. Falou, estando o Capitão com ele perante nós todos, sem o nunca ninguém entender nem ele a nós, quanta[s] cousas que lh’homem preguntava d’ouro, que nós desejávamos saber se o havia na terra. Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furado um grão dedo polegar. E trazia metido no furado ũa pedra verde, roim, que çarrava per fora aquele buraco. E o Capitão lha fez tirar e ele não sei que diabo falava e ia com ela pera a boca do Capitão pera lha meter. Estevemos sobr’isso um pouco rindo e então enfadouse o Capitão e leixou-o. E um dos nossos deu-lhe pola pedra um sombreiro velho, não por ela valer algũa cousa, mas por mostra. E despois a houve o Capitão, creo pera com as outras cousas a mandar a Vossa Alteza. Andámos per i vendo a ribeira, a qual é de muita água e muito boa. Ao longo dela há muitas palmas não muito altas, em que há muito bons palmitos. Colhemos e comemos deles muitos. Então tornou-se o Capitão pera baixo, pera a boca do rio, onde desembarcámos. E além do rio andavam muitos deles, dançando e folgando uns ante outros sem se tomarem pelas mãos e faziam-no bem. Passou-se então além do rio Diego Diis, almoxarife que foi de Sacavém, que é homem gracioso e de prazer, e levou consigo um gaiteiro nosso com sua gaita, e meteu-se com eles a dançar tomando-os pelas mãos e eles folgavam e riam e andavam com ele mui bem ao som da gaita. Despois de dançarem fez-lhe ali andando no chão muitas voltas ligeiras e salto real88, de que se eles espantavam e riam e folgavam muito. E, conquanto os com aquilo muito segurou e afagou, tomavam logo ũa esquiveza coma monteses e foram-se pera cima. E então o Capitão passou o rio com todos nós outros e fomos pela praia, de longo, indo os batéis assi a carão de terra. E fomos atá ũa lagoa grande d’água doce que está junto com a praia, porque toda 87 88

mai] mãe. salto real] salto mortal.

aquela ribeira do mar é apaulada89 per cima e sai a água per muitos lugares. E, depois de passarmos o rio, foram uns 7 ou 8 deles andar antre os marinheiros que se recolhiam aos batéis. E levaram dali um tubarão que Bertolameu Diis matou e levava-lho e lançou-o na praia. Abasta que atá aqui, como quer que se eles em algũa parte amansassem, logo dũa mão pera a outra se esquivavam coma pardais de cevadoiro e homem não lhes ousa de falar rijo por se mais não esquivarem. E todo se passa como eles querem polos bem amansar. Ao velho, com que o Capitão falou, deu ũa carapuça vermelha e com toda a fala que com ele passou e com a carapuça que lhe deu, tanto que se espedio que começou de passar o rio, foi-se logo recatando e não quis mais tornar do rio pera aquém. Os outros dous que o Capitão teve nas naus, a que deu o que já dito é, nunca aqui mais pareceram, de que tiro ser gente bestial e de pouco saber e por isso são assi esquivos. Eles, porém, contudo, andam muito bem curados e muito limpos e naquilo me parece ainda mais que são coma aves ou alimárias monteses que lhes faz o ar milhor pena e milhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos e tão gordos e tão fremosos, que não pode mais ser. E isto me faz presumir que não tem casas nem moradas em que se colham. E o ar a que se criam, os faz tais. Nem nós ainda atá agora não vimos nenhũas casas nem maneira delas. Mandou o Capitão àquele degradado, Afonso Ribeiro, que se fosse outra vez com eles, o qual se foi e andou lá um bom pedaço. E à tarde tornou-se, que o fezeram vĩr e não o quiseram lá consentir. E deram-lhe arcos e setas e não lhe tomaram nenhũa cousa do seu. Ante disse ele que lhe tomara um deles ũas continhas amarelas que ele levava e fogia com elas e ele se queixou e os outros foram logo após ele e lhas tomaram e tornaram-lhas a dar. E então mandaram-no vĩr. Disse ele que não vira lá antre eles senão ũas choupaninhas de rama verde e de feitos90 muito grandes coma d’Antre Doiro e Minho. E assi nos tornámos às naus já casi noute a dormir. À segunda-feira, depois de comer, saímos todos em terra a tomar água. Ali vieram então muitos, mas não tantos coma as outras vezes. E traziam já muito poucos arcos e esteveram assi um pouco afastados de nós. E despois, poucos e poucos, mesturaram-se connosco e abraçavam-nos e folgavam e alguns deles se esquivavam logo. 89 90

apaulada] pantanosa, encharcada. feitos] fetos.

Ali davam alguns arcos por folhas de papel e por algũa carapucinha velha e por qualquer cousa. E em tal maneira se passou a cousa, que bem 20 ou 30 pessoas das nossas se foram com eles, onde outros muitos deles estavam com moças e molheres e trouveram de lá muitos arcos e barretes de penas d’aves, deles verdes e deles amarelos, de que creo que o Capitão há-de mandar amostra a Vossa Alteza. E, segundo deziam esses que lá foram, folgavam com eles. Neste dia os vimos de mais perto e mais à nossa vontade, por andarmos todos casi mesturados, e ali deles andavam daquelas tinturas quartejados, outros de metades, outros de tanta feição, coma em panos d’armar e todos com os beiços furados e muitos com os ossos neles e deles sem ossos. Traziam alguns deles uns ouriços verdes d’árvores que, na cor, queriam parecer de castinheiros, senão quanto eram mais e mais pequenos. E aqueles eram cheos d’uns grãos vermelhos pequenos, que, esmagando-os antre os dedos fazia tintura muito vermelha, da que eles andavam tintos. E, quanto se mais molhavam, tanto mais vermelhos ficavam. Todos andam rapados atá cima das orelhas, e assi as sobrancelhas e pestanas. Trazem todos as testas, de fonte a fonte, tintas da tintura preta que parece ũa fita preta, ancha de dous dedos. E o Capitão mandou àquele degradado Afonso Ribeiro e a outros dous degradados que fossem andar lá antr’eles e assi a Diego Diis, por ser homem ledo, com que eles folgavam. E aos degradados mandou que ficassem lá esta noute. Foram-se lá todos e andaram antr’eles e, segundo eles deziam, foram bem ũa légua e meia a ũa povoração91 de casas, em que haveria 9 ou 10 casas, as quais deziam que eram tão compridas cada ũa come esta nau capitana. E eram de madeira, e das ilhargas de távoas, e cubertas de palha, de razoada altura e todas em ũa só casa sem nenhum repartimento. Tinham de dentro muitos esteos e d’esteo a esteo ũa rede, atada pelos cabos em cada esteo, altas, em que dormiam, e, debaixo, pera se aquentarem, faziam seus fogos. E tinha cada casa duas portas pequenas, ũa em um cabo e outra no outro. E deziam que, em cada casa, se colhiam 30 ou 40 pessoas e que assi os achavam e que lhes davam de comer daquela vianda que eles tinham, scilicet, muito inhame e outras sementes, que na terra há, que eles comem. E, como foi tarde, fezeram-nos logo todos tornar e não quiseram que lá ficasse nhum. E ainda, segundo eles deziam, queriamse vĩr com eles. 91

povoração] povoação.

Resgataram lá por cascavéis e por outras cousinhas de pouco valor, que levavam papagaios vermelhos muito grandes e fremosos e dous verdes, pequeninos, e carapuças de penas verdes e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz fremoso, segundo Vossa Alteza todas estas cousas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar, segundo ele disse. E, com isto, vieram. E nós tornámo-nos às naus. À terça-feira, depois de comer, fomos em terra dar guarda de lenha e lavar roupa. Estavam na praia, quando chegámos, obra de 60 ou 70 sem arcos e sem nada. Tanto que chegámos, vieram-se logo pera nós, sem se esquivarem. E depois acodiram muitos, que seriam bem 200, todos sem arcos. E mesturaram-se todos tanto connosco, que nos ajudavam deles a acarretar lenha e meter nos batéis e luitavam com os nossos e tomavam muito prazer. E, enquanto nós fazíamos a lenha, faziam dous carpenteiros ũa grande cruz d’um pau que se ontem pera isso cortou. Muitos deles vinham ali estar com os carpenteiros e creo que o faziam mais por verem a farramenta de ferro, com que a faziam, que por verem a cruz, porque eles não tem cousa que de ferro seja e cortam sua madeira e paus com pedras feitas coma cunhas, metidas em um pau, antre duas talas mui bem atadas, e per tal maneira, que andam fortes, segundo os homens, que ontem a suas casas [foram], deziam, porque lhas viram lá. Era já a conversação deles connosco tanta, que casi nos torvavam ao que havíamos de fazer. E o Capitão mandou a dous degradados e a Diego Diis que fossem lá à aldea e a outras, se houvessem delas novas e que, em toda maneira, não se viessem a dormir às naus, ainda que os eles mandassem. E assi se foram. Enquanto andávamos nessa mata a cortar a lenha, atravessavam alguns papagaios per essas árvores, deles verdes e outros pardos, grandes e pequenos, de maneira que me parece que haverá nesta terra muitos, pero eu não veria mais que atá 9 ou 10. Outras aves, então, não vimos. Somente algũas pombas seixas92 e pareceram-me maiores, em boa cantidade, c’as de Portugal. Alguns deziam que viram rolas, mas eu não as vi, mas segundo os arvoredos são mui muitos e grandes e d’infindas maneiras não dovido que per esse sartão hajam muitas aves. E acerca da noute nos volvemos pera as naus com nossa lenha. 92

seixas] pombas bravas.

Eu creo, Senhor, que não dei ainda aqui conta a Vossa Alteza da feição de seus arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos e as setas compridas e os ferros delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá per alguns, que creo que o Capitão a Ela há-d’enviar. À quarta-feira não fomos em terra, porque o Capitão andou todo o dia no navio dos mantimentos a despejá-lo e fazer levar às naus isso que cada ũa podia levar. Eles acodiram à praia muitos, segundo das naus vimos, que seriam obra de 300, segundo Sancho de Toar, que lá foi, disse. Diego Diis e Afonso Ribeiro, o degradado, a que o Capitão ontem mandou que, em toda maneira, lá dormissem, volveram-se já de noute, por eles não quererem que lá dormissem. E trouveram papagaios verdes e outras aves pretas, casi como pegas, senão quanto tinham o bico branco e os rabos curtos. E quando se Sancho de Toar recolheu à nau, queriam-se vĩr com ele alguns, mas ele não quis senão dous mancebos despostos93 e homens de prol. Mandou-os essa noute mui bem pensar e curar. E comeram toda vianda que lhes deram. E mandou-lhes fazer cama de lençóis, segundo ele disse. E dormiram e folgaram aquela noute. E assi não foi mais este dia que pera escrever seja. À quinta-feira, derradeiro d’Abril, comemos logo casi pola manhã e fomos em terra por mais lenha e água. E, em querendo o Capitão sair desta nau, chegou Sancho de Toar com seus dous hóspedes. E, por ele não ter ainda comido, poseram-lhe toalhas e veolhe vianda e comeu. Os hóspedes assentaram-nos em senhas cadeiras e de todo o que lhes deram comeram mui bem, especialmente lacão94 cozido, frio, e arroz. Não lhes deram vinho, por Sancho de Toar dizer que o não bebiam bem. Acabado o comer, metemo-nos todos no batel e eles connosco. Deu um gromete a um deles ũa armadura95 grande do porco montês96, bem revolta97 e, tanto que a tomou, meteu-a logo no beiço. E, porque se lho não queria tēr, deram-lhe ũa pequena de cera vermelha e ele corregeu-lhe detrás seu aderenço98 para se tēr e meteua no beiço assi revolta pera cima. E vinha tão contente com ela, como se tevera ũa grande jóia. E, tanto que saímos em terra, foi-se logo com ela, que não pareceu i mais. despostos] de boa presença ou figura. Cf. Morais, vol. III, s.u. Disposto. lacão] presunto. 95 armadura] presa do javali. 96 porco montês] javali. 97 revolta] curvada. 98 aderenço] adereço, adorno. 93 94

Andariam na praia, quando saímos, 8 ou 10 deles e d’i a pouco começaram de vĩr. E parece-me que vĩriam, este dia, à praia 400 ou 450. Traziam alguns deles arcos e setas e todolos deram por carapuças e por qualquer cousa que lhes davam. Comiam connosco do que lhes dávamos e bebiam alguns deles vinho e outros o não podiam beber, mas parece-me que, se lho avezarem, que o beberam de boa vontade. Andavam todos tão despostos e tão bem feitos e galantes com suas tinturas, que pareciam bem. Acarretavam dessa lenha quanta podiam, com mui boas vontades, e levavam-na aos batéis. E andavam já mais mansos e seguros antre nós do que nós andávamos antr’eles. Foi o Capitão com alguns de nós um pedaço per este arvoredo atá ũa ribeira grande e de muita água que, a nosso parecer, era esta mesma que vem tēr à praia em que nós tomámos água. Ali jouvemos um pedaço bebendo e folgando ao longo dela, antr’esse arvoredo, que é tanto e tamanho e tão basto e de tantas prumagens, que lhe não pode homem dar conto. Há antr’ele muitas palmas de que colhemos muitos e bons palmitos. Quando saímos do batel, disse o Capitão que seria bom irmos dereitos à cruz, que estava encostada a ũa árvore, junto com o rio, pera se poer de manhã, que é sexta-feira, e que nos poséssemos todos em giolhos e a beijássemos, pera eles verem o acatamento que lhe tínhamos. E assi o fezemos. E esses 10 ou 12 que i estavam acenaramlhes que fezesem assi e foram logo todos beijá-la. Parece-me gente de tal inocência que, se os homem entendesse e eles a nós, que seriam logo cristãos porque eles não tem nem entendem em nenhũa crença, segundo parece. E, portanto, se os degradados que aqui hão-de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não dovido, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, fazerem-se cristãos e crerem na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa simprezidade e empremar-se-á99 ligeiramente neles qualquer crunho100 que lhes quiserem dar. E logo lhes Nosso Senhor deu bons corpos e bons rostros coma a bons homens. E ele, que nos per aqui trouve, creo que não foi sem causa. E, portanto, Vossa Alteza, pois tanto deseja acrecentar na santa fé católica, deve entender em sua salvação. E prazerá a Deus que, com pouco trabalho, será assi. Eles não lavram, nem criam, nem há aqui boi nem vaca, nem cabra, nem ovelha, nem galinha nem outra nhũa alimária, que custumada seja ao viver dos homens. Nem comem se não dess’inhame 99

empremar-se-á] imprimir-se-á, gravar-se-á. crunho] cunho.

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que aqui há muito e dessa semente e frutos que a terra e as árvores de si lançam. E com isto andam tais e tão rijos e tão nédios, que o não somos nós tanto com quanto trigo e legumes comemos. Enquanto ali, este dia, andaram sempre ao som dum tambori101 nosso, dançaram e bailharam com os nossos, em maneira que são muito mais nossos amigos que nós seus. Se lhes homem acenava se queriam vĩr às naus, faziam-se logo prestes pera isso em tal maneira que, se os homem todos quisera convidar, todos vieram. Porém não trouvemos esta noute às naus senão 4 ou 5, scilicet, o Capitão-mor, dous, e Simão de Miranda, um, que trazia já por paje, e Aires Gomes, outro, assi paje. Os que o Capitão trouve era um deles um dos seus hóspedes que à primeira, quando aqui chegámos, lhe trouveram, o qual veo hoje aqui vestido na sua camisa, e com ele um seu irmão, os quais foram esta noute mui bem agasalhados assi de vianda como de cama, de colchões e lençóis polos mais amansar. E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pola manhã, saímos em terra com nossa bandeira e fomos desembarcar acima do rio, contra o sul, onde nos pareceu que seria milhor chantar102 a cruz pera ser milhor vista. E ali assinou o Capitão onde fezessem a cova pera a chantar. E, enquanto a ficaram fazendo, ele com todos nós outros fomos pola [cruz] mais abaixo do rio onde ela estava. Trouvemo-la dali com esses relegiosos e sacerdotes diante, cantando maneira de precissão. Eram já i alguns deles, obra de 70 ou 80 e, quando nos assi viram vĩr, alguns deles se foram meter debaixo dela a ajudar-nos. Passámos o rio ao longo da praia e fomo-la poer onde havia de ser, que será do rio obra de dous tiros de besta103. Ali andando nisto, vĩriam bem 150 ou mais. Chentada a cruz com as armas e devisa de Vossa Alteza, que lhe primeiro pregaram, armaram altar ao pé dela. Ali disse missa o padre frei Anrique, a qual foi cantada e ofeciada per esses já ditos. Ali esteveram connosco a ela obra de 50 ou 60 deles, assentados todos em giolhos, assi coma nós. E, quando veo ao avangelho, que nos erguemos todos em pé, com as mãos levantadas, eles se levantaram connosco e alçaram as mãos, estando assi atá ser acabado. E então tornaram-se a assentar coma nós. E, quando levantaram a Deus, que nos posemos em giolhos, eles se poseram todos assi coma nós estávamos, com as mãos levantadas e em tal tambori] instrumento de percussão. chantar] colocar. 103 tiros de besta] unidade de medida. 1 tiro de besta = 140-150 m. 101 102

maneira assessegados, que certefico a Vossa Alteza que nos fez muita devação. Esteveram assi connosco atá acabada a comunhão. E, depois da comunhão, comungaram esses relegiosos e sacerdotes e o Capitão com alguns de nós outros. Alguns deles, por o sol ser grande, em nós estando comungando, alevantaram-se e outros esteveram e ficaram. Um deles, homem de 50 ou 55 anos, ficou ali com aqueles que ficaram. Aquele, em nós assim estando, ajuntava aqueles que ali ficaram e ainda chamava outros. Este, andando assi antr’eles, falando-lhes, acenou com o dedo pera o altar e depois mostrou o dedo pera o céu, coma que lhes dizia algũa cousa de bem. E nós assi o tomámos. Acabada a missa, tirou o padre a vestimenta de cima104 e ficou na alva105 e assi se sobio junto, com o altar, em ũa cadeira e ali nos pregou do Avanjelho e dos Apóstolos, cujo dia hoje é, trautando, enfim da pregação deste vosso prosseguimento tão santo e vertuoso, que nos causou mais devação. Esses, que à pregação sempre esteveram, estavam, assi coma nós, olhando pera ele. E aquele que digo chamava alguns que viessem pera ali. Alguns vinham e outros iam-se. E, acabada a pregação, trazia Nicolau Coelho muitas cruzes d’estanho com cruçufiços106, que lhe ficaram ainda da outra vinda. E houveram por bem que lançassem a cada um sua ao pescoço. Pola qual cousa se assentou o padre frei Anrique ao pé da cruz e ali, a um e um lançava sua, atada em um fio ao pescoço, fazendo-lha primeiro beijar e alevantar as mãos. Vinham a isso muitos e lançaram-nas todas, que seriam obra de 40 ou 50. E isto acabado, era já bem ũa hora depois de meo-dia, viemos às naus a comer, onde o Capitão trouve consigo aquele mesmo que fez aos outros aquela mostrança pera o altar e pera o céu e um seu irmão com ele. Ao qual fez muita honra, e deu-lhe ũa camisa mourisca e ao outro ũa camisa destoutras. E, segundo o que a mim e a todos pareceu, esta gente não lhes falece outra cousa, pera ser toda cristã, ca entenderem-nos. Porque assi tomavam aquilo que nos viam fazer coma nós mesmos. Per onde pareceu a todos que nenhũa idolatria nem adoração tem. E bem creo que, se Vossa Alteza aqui mandar, quem mais antr’eles de vagar ande, que todos serão tornados ao desejo de Vossa Alteza. E pera isso se alguém vier, não leixe logo de vĩr clérigo pera os bautizar, porque já

vestimenta de cima] estola e casula. alva] túnica branca. 106 cruçufiço] var. de crucifixo. 104 105

então terão mais conhecimento de nossa fé pelos dous degradados que aqui antr’eles ficam, os quais ambos hoje também comungaram. Antre todos estes que hoje vieram não veo mais que ũa molher moça, a qual esteve sempre à missa. À qual deram um pano com que se cobrisse e poseram-lho d’arredor de si. Pero ao assentar não fazia memória de o muito estender pera se cobrir. Assi, Senhor, que a inocência desta gente é tal, que a d’Adão não seria mais quanta em vergonha. Ora veja Vossa Alteza quem em tal inocência vive, ensinando-lhes o que pera sua salvação pertence, se se converterão ou não. Acabado isto fomos assi perante eles beijar a cruz e espedimonos e viemos comer. Creo, Senhor, que com estes dous degradados que aqui ficam, ficam mais dous grometes, que esta noute se sairam desta nau no esquife, em terra fogidos. Os quais não vieram mais. E cremos que ficarão aqui, porque de manhã, prazendo a Deus, fazemos daqui nossa partida. Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos atá outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem 20 ou 25 léguas per costa. Traz ao longo do mar, em algũas partes, grandes barreiras, delas vermelhas e delas brancas, e a terra, per cima, toda chã e muito chea de grandes arvoredos. De ponta a ponta é toda praia parma107 muito chã e muito fremosa. Pelo sartão nos pareceu do mar muito grande, porque a estender olhos não podíamos ver se não terra e arvoredos, que nos parecia mui longa terra. Nela atá agora não podemos saber que haja ouro, nem prata, nem nenhũa cousa de metal, nem de ferro. Nem lho vimos. Pero a terra, em si é de muito bons ares, assi frios e temperados coma os d’Antre Doiro e Minho, porque neste tempo d’agora assi os achávamos coma os de lá. Águas são muitas, infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo per bem das águas que tem. Pero o milhor fruito que nela se pode fazer me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que i não houvesse mais ca tēr aqui esta pousada pera esta navegação de Calecut, abastaria quanto mais desposição pera se nela comprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, scilicet, acrecentamento da nossa santa fé.

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parma] lisa.

E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza do que nesta vossa terra vi. E, se algum pouco alonguei, Ela me perdoe, ca o desejo que tinha de vos tudo dizer mo fez assi poer pelo miúdo. E, pois que, Senhor, é certo que assi neste carrego que levo, como em outra qualquer cousa que de vosso serviço for, Vossa Alteza há-de ser de mim muito bem servida. A Ela peço que, por me fazer singular mercê, mande vĩr da ilha de São Tomé Jorge d’Osoiro, meu genro, o que dela receberei em muita mercê. Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro, da vossa ilha de Vera Cruz, hoje, sextafeira, primeiro dia de Maio de 1500. Pêro Vaz de Caminha

[Carta de Mestre João] Señor O bacherel mestre João, físico y cirurgiano de Vossa Alteza, beso vossas reales manos. Señor, porque de todo lo acá pasado largamente escrivieron108 a Vossa Alteza, así Arias Correa como todos los otros, solamente escreviré dos puntos. Señor, ayer, segunda feria, que fueron 27 de abril, descendimos en terra yo y el piloto do Capitán mor y el piloto de Sancho de Tovar, y tomamos el altura del sol al mediodía y fallamos109 56 grados, y la sombra era septentrional, por lo cual, segund110 las reglas del estrolabio111, juzgamos ser afastados de la equinocial por 17 grados, y por consiguiente tener el altura del Polo Antártico en 17 grados, segund que es manifiesto en el esfera. Y esto es cuanto a lo uno, por lo cual sabrá Vossa Alteza que todos los pilotos van adiante de mí. En tanto que Pero Escolar va adiante 150 leguas y otros más y otros menos. Pero quién dice la verdad non112 se puede certificar fasta113 que en boa hora alleguemos

108 escrivieron] Opta–se por manter esta forma e, mais adiante, escreviré, não actualizando para escribieron e escrebiré. O Corominas (cfr. vol. II, s.u. Escrevir) regista a forma escrevir com – v – e comenta: «Tiene siempre – v – hasta el s. XVI en los textos que distinguen (Nebr., APal, etc.). La forma escrevir es muy corriente hasta el s. XVI en la lengua literaria y después en la vulgar» (p. 711, col. 1). Conservo estas formas, pois, porque podem tratarse de lusismos fonéticos. 109 fallamos] Tem, aqui, o sentido de medimos. 110 segund] Cfr. Corominas, vol. V, s.u. Seguir. Regista a forma em Nebrija. 111 estrolabio] Cfr. Morais, vol. IV, s.u. Estrolábio. O Machado, s.u. Astrolábio, regista a forma em Gil Vicente. Cfr. Corominas, vol. I, s.u. Astro. Não recolhe a forma estrolabio mas anota, contudo, deformações como estremonía e estronomía. 112 non] Cfr. Machado, vol. 4, s.u. Não. Informa-nos de que a forma continua em uso no s. XVI. No Corominas, vol. IV, s.u. No, lemos: «el uso de non se mantiene esencialmente hasta la primera mitad del s. XV (p. ej. en el Corbacho), pero después queda anticuada esta forma, aunque hay diferencias de detalle según los autores, el tono del lenguaje y el uso de frases libres o estereotipadas» (p. 231, col. 2). No ms. é utilizada maioritariamente esta forma. Há apenas uma excepção. Cfr. infra¸no texto, a forma no. 113 fasta] até. Cfr. Morais, vol. 5, s.u. Fasta1, onde a forma é dada como cast. ant. Segundo o Corominas, vol. III, s.u. Hasta, a forma hasta generaliza-se desde Nebrija.

al Cabo de Boa Esperança y allí sabremos quién va más cierto, ellos con la carta o yo con la carta y con el estrolabio. Cuanto, Señor, al sítio desta terra, mande Vossa Alteza traer un napamundi114 que tiene Pero Vaz Bisagudo, y por ahí podrá ver Vossa Alteza el sítio desta terra. Empero115 , aquel napamundi non certifica esta terra ser habitada, o no. Es napamundi antiguo y allí fallará116 Vossa Alteza escrita también la Mina. Ayer casi entendimos per aceños117 que ésta era isla, y que eran cuatro, y que de otra isla vienen aquí almadías118 a pelear con ellos y los llevan cativos. Cuanto, Señor, al otro punto, sabrá Vossa Alteza que cerca de las estrellas yo he trabajado algo de lo que he podido, pero non mucho a causa119 de una pierna que tengo muy mala, que de una coçadura120 se me há fecho121 una chaga mayor que la palma de la mano. Y también a causa de este navio ser mucho pequeño y muy cargado, que non hay lugar pera cosa ninguna, solamente mando a Vossa Alteza como están situadas las estrellas del [sul]122. Pero en qué grado está cada una non lo he podido saber. Antes me paresce123 ser imposible en la mar tomarse altura de ninguna estrella porque yo trabajé mucho en eso y, por poco que el navio embalance124, se yerran125 cuatro, o cinco

114 napamundi] mapa–múndi. Cfr. Corominas, vol. III, s.u. Mapa. Não regista a forma, contudo refere o seguinte: «En el sentido etimológico de 'paño', y con carácter hereditario, se ha conservado, en una variante disimilada *NAPPA, en el fr. nappe (ingl. nap, napkin) 'mantel'» (p. 836, col. 1). Mantemos a forma por poder indiciar um semelhante fenómeno. O Morais e o Machado não a anotam. 115 Empero] Cfr. Corominas, vol. IV, s.u. Pero. Regista empero, entre outros, em Nebrija. O Morais, vol. IV, s.u. Empero, regista a forma, do cast., em Azurara. 116 fallará] encontrará. 117 aceños] acenos, gestos. Cfr. Corominas, vol. II, s.u. Ceño II. O Morais e o Machado recolhem apenas a forma aceno. 118 almadías] canoas, como esclarece o Morais, vol. 1, s.u. Almadia. Cfr. Corominas, vol. I, s.u. Almadía. Recolhe a forma, esclarecendo: «También port. almadia ‘embarcación africana estrecha y larga, también usada en la India» (p. 182, col. 1). 119 causa] No ms. aparace sempre grafado cabsa. Trata–se de uma grafia pseudo– etimológica. 120 coçadura] acção ou efeito de coçar. O Morais, vol. 3, s.u. Coçadura, regista a forma em Camões. 121 fecho] feito. Cfr. infra, no texto, a forma Fecha. 122 Introduzo aqui sul, que falta no ms. seguramente por lapso. O Dr. Luciano Pereira da Silva (op. cit., ed. cit., p. 105, n. 4) deu conta, também, do esquecimento e procedeu à necessária correcção. 123 paresce] Segundo o Machado, vol. IV, s.u. Parecer2, a forma parescer chega ao fim do s. XVI. 124 embalance] balance. 125 yerran] erram.

grados, de guisa que se non puede fazer sinon126 en terra. Y otro tanto casi digo de las tablas de la Índia, que se non pueden tomar con ellas sinon com muy mucho trabajo. Que si Vossa Alteza supiese como desconcertavan todos en las pulgadas, reiría dello más que del estrolabio, porque desde Lisboa até as Canarias unos de otros desconcertavan en muchas pulgadas que unos decían, más que otros, tres y cuatro pulgadas. Y otro tanto desde las Canarias até as Islas de Cabo Verde, y esto resguardando todos que el tomar fuese a una misma hora, de guisa que más juzgavan cuantas pulgadas eran por la cantidad del camino que les parescia que havían andado que non el camino por las pulgadas. Tornando, Señor, al propósito, estas Guardas nunca se esconden, antes siempre andan enderedor sobre el horizonte. Y aún esto dudoso, que non sé cuál de aquellas dos más baxas127 sea el Polo Antártico, y estas estrellas principalmente las de la Cruz, son grandes casi como las del Carro. Y la estrella del Polo Antártico, o Sul, es pequeña como la del Norte y muy clara, y la estrella que está enriba de toda la Cruz es mucho pequeña. Non quiero más alargar por non importunar a Vossa Alteza, salvo que quedo rogando a Nosso Señor Jesu Cristo la128 vida y estado de Vossa Alteza acresciente como Vossa Alteza desea. Fecha129 en Vera Cruz a primero de mayo de [1]500. Pera la mar mejor es regirse por el altura del sol que non por ninguna estrella, y mejor con estrolabio que non con cuadrante nin130 con otro ningu[n]131 estrumento132. Do criado de Vossa Alteza y Vosso leal servidor

sinon] senão. No ms. sy non. baxas] No Machado, vol. I, s.u. Baixo, a forma é recolhida no s. XVI. Cfr. Morais, vol. 2, s.u. Baixar. 128 No ms. a forma la encontra–se repetida duas vezes. 129 Fecha] O Corominas, vol. III, s.u. Hacer, faz o seguinte esclarecimento: «Fecha ‘data’ no es más que la forma antigua del participio del verbo hacer, se empleaba en combinación expresa o tácita con carta, para fechar docs.» (p. 299, col. 1). Leia-se, pois, data. 130 nin] nem. Cfr. Corominas, vol. IV, s.u. No. Esclarece: «De NEC procede el castellano ni, de uso no menos general que no, con valor distinto, que no es aquí el lugar de estudiar; por simetría de non junto a no, se creó el no etimológico nin junto a ni» (p. 232, col. 1). A forma não se encontra no Morais nem no Machado. 131 ningun] No ms. ningud. Cfr. Corominas, vol. IV, s.u. No. Não recolhe a forma ningud. 132 estrumento] O Morais, vol. 4, s.u. Estrumento, regista a forma no s. XVI. Cfr. Corominas, vol. II, s.u. Construir. Anota a forma como vulgarismo. 126 127

Johannes artium e[t] medicine bachalarius133

133

No verso do fol. 1v, lê–se: a el rei noso señor; e, ainda: do mestre joham que vai ha Callecut.

[Relação do Piloto Anónimo. Versão em italiano (1507)] c.lxiii. ¶ Doue impersona Re Manuel consigno el Standardo Real al Capitaneo. In lo anno .M.ccccc. Mando il Serenissimo Re di portogallo per nome chiamato Don Manuel. Vna sua armata di naue e nauili per le parte de india: in laqual armata erano .xii. naue: e nauili de la qual armata era per capitaneo generale Pedro Aliares: cabrile fidalco: le qual naue e nauili partiron e bene apparechiate e in ordine de ogni qualmente cosa che necessario gli fusse per uno anno e mezo: de le quale xii. naue ordino che desmontasse .x. in Calichut: & quelle altre due per Arabia: temsade effecto che fusseno uon loco chiamato zaffalle per uolere contractare merchante in dcon loco: el qual loco di zaffalle trouase esser in lo camino di Calichut: & alfile altre .x. naue caueno merchantie che per dicto uiazo gii fusse necessario a li .vii. del mese di Marzo d dcon Millessimo forno pste a quello di i di de dñica andorno larghi da questa cita de doi miglia in uno loco chiamato rastello donde e una chiesia chiamata sancta Maria de Baller in lo qual loco il Serenissimo Re fu lui proprio in persona a consignar alo capitaneo il Standardo Real per la dicta armata. ¶ Item el Lunidi: che fu a .ix. zorni di Marzo parti la dicta Armata cum bon tempo per suo uiazo. ¶ Item. a di .xiiii. del dicto mese passo la dicta armata per lisola di Chanaria. ¶ Item a di .xxii. passo per lisola di capo Verde. ¶ Item a di .xxiii. se partite una naue de la cã Armata talmente che de essa mai si sentite noua sina questo di punte ne si po saper. c.lxiiii ¶ Como scorreuano le naue per fortuna. A di .xxiiii. de Aprile che fu el merchoredi in la octaua di pascha hebbe la dicta armata uista de una terra: di che hebbe gran piacere: &

ariuono a terra per uidere che tera era: la qual trouorno terra molto abundante da arbore & gente: che pali andauano per lo litto del mare e gutorno anchora in la boccha di uno fiume piccolo: e di poi di lanzatto dicte anchore il Capitaneo mando gettare uno batello al mare per lo qual mando ueder che gente erano qualle & trouorno che eran gente de colore pardo: tra il biancho el nero: & ben disposti cum capilli longhi e uano nudi come nascerono senza uergogna alcuna e chada uno di loro portaua suo arco cum frize: come homini che stauano in deffensione de dicto fiume: a la dicta armata non haueua ni uno che intendesse sua lingua e uisto cosi quelli del batello ritornono dal capitanio e in questo stante si fece nocte: in la qual nocte si fece grande fortuna. Item el di seguente per la matina alzamo anchora cum grande fortuna andauemo scorrendo la costa per la tramontana: el uento era sirocho: per uedere si trouauemo alcuno porto: per donde stare ditta armata: finalmente trouoron un porto doue gittamo anchore donde trouamo di questi annini che anauano in lor barchette peschando: e uno di nostri batelli fu donde questi tali hoi stauano & piliorno doi di loro e quili menorno al Capitaneo per sapere che zente errano e como e dicto: non se intendeano per sanella ne mancho per cenni e quella nocte il Capitaneo quall ritenni cum lui: il di sequente li mando uestiti cum una camisa e uno uestito & una beretta rossa per lo quale uestir restorno molto contenti e marauegliati dela cosa de qualli forno mostrati: di poi quili mando gittare in terra. c.lxv. ¶ Radice che ne fano pane cum sui altri costumi. Item in quello di medemo che era la octaua de pascha .a .xxvi. Aprile determino el Capitaneo magiore de al dire messa: & mando ad armare una tenda in quella spiaza donde mando ordinare uno Altare e tuti quelli de la dicta armata andorno ad al dir messa: e la predicha: doue se giontorono molti de quelli hoi ballando e cantando cum soi corni: & subito come fu dicta la messa tuti se partirno per la lor naue: e quelli hoi de la terra intraueno in mare fin sottto gli brazi cantando e facendoli piacere e festa: & da poi hacendo el capitaneo diinato tornorono in terra la giente dela dicta armata: pigliando solazo e piacere cum quelli dela terra: e comenzorno a tractare cum quelli dela armata: e dauano di quelli archi soi e frize per sognali: e fogli di charta e pezi di panno: essi tuto quello di pigliorno a piacer cum esto loro: & trouamo in questo locho uno fiume di acqua dolce: e tardi tornano a naue. Item laltro zorno determino el Capitaneo mazor di tore

acqua e legne e tuti quelli de dicta armata forno in terra: e quelli homini di quello loco ne ueniuano aiutare le dicte legna e acqua: & alcuno di nostri andorno ala terra: donde questi homini sonno: che seria .iii. miglia discosto dal mare e baratorun papagalli: e una radice chiamata igname che e el pane loro che manzano li arabi: quelli de la armata gli dauano sognali e fogli de charta in pagamento de dicte cose: in lo qual locho stessemo .v. o uero .vi. zorni. El modo de questa zente loro sonno homini pardi: e uanno nudi senza uergognia e gli capilli loro sonno longi: e portono la barba pelata: e le palpebre de li ochi: e sopra eigli erano de penti como figure di colore bianchi e negri e azuri: e rosi portano le labra de la boccha: cioe quella da basso forata: e in gli bucchi pongono uno osso grande como chiodo: e altri portano chi una petra azurra: e verde: e longa: e calano per dicti bucchi: se donne il simel uano senza uergonia: e sonno belle donne di corpo: li capilli longi: le sue case sonno di ligname coperte de foglie e rame darbori cum molte colonne de legno: in mezo de le dicte case e de le dicte colone al muro metteno una rete de banbagio appicchata in che staua uno homo e infra una rete e laltra sanno uno foccho a modo che in una sol casa starano .xl. e .l. letti armati a modo di telari. c.lxvi. ¶ Papagalli in la terra di nouo discoperta. In questa terra non uedessemo ferro: ne mancho altro metallo: e le legne tagliano cum pietra: e hanno molti ocelli de molte sorte specialmente papagalli de molti colori: fra quelli cene de grandi come galline e altri ocelli molto belli: e de la penna de dicti ocelli fanno cappelli e berette che portano loro: la terra e molto abondante de molti arbori e molte acque e meglio: e ignames: e bombason questi lochi non uedesiemo animali alcuno: la terra e grande e non sapiamo se gli e isola o terra ferma: anci crediamo che la sia per la sua grandeza: terra ferma e ha molto bono aere & questi homini hano rete e sonno pischatori grandi & peschano de piu forte pese infra quali uedessemo un pese che pigliorno: che faria grande come una botte: e piu longo: e tondo: e teneua el capo como porcho e gli occhi picoli e non haueua denti e haueua orecchie longhe un brazo: e larghe mezo brazo da basso del corpo haueua dui busi: e la coda era longa un brazo: e altratanta larga: e non haueua piedi alcuno in alcuni lochi: haueua pelle come porcho el cuoio era grosso un deto e le sue carne eran bianche e grasse come di porcho. Item in questi zorni che stemo que determino el capitaneo a fare sapere al nostro senernissimo Re la

trouata que questa terra: e de lassar in essa dui homini banditi e giudicati ala morte che haueuamo in dicta armata a tal effecto: e subito el dicta capitaneo dispacio uno nauilio che haueuano cum loro cum uictuaglie e questo oltra le .xii. naue sopradicte: el qual nauilio porto le lettere al Re in la qual si contineua quanto haueuamo uisto e discoperto: e dispaciato il dicto nauilio el capitaneo ando in terra e mando a fare una croce molto grande di legno e la mando pintare in la spiaza e alfi come el dicto lasso doi homini banditi in lo dicto loco: li quali comenzorno a pianzere: e li homini di quella terra gli confortauano & monstrauano hauer di loro pietade. c.lxvii. ¶ Fortuna si grande che .iiii. naue perireno Item em laltro zorno che a di .ii. de Mazo de dicto anno larmata fece uela per el camino per andare ala uolta del capo di bona Speranza: el qual camino seria di colfo de mare: piu de .M.cc. leghe: che e .iiii. milia per legha e a .xii. zorni di dicto mese andando a nostro camino ne aparese una cometa uerso le parte de Arabia cum uno ragio molto longo: la qual aparese de continuo .viiii. o uero .x. nocte. item una domenica che era .xxiiii. zorni del dicto mese de Mazo andando tuta larmata gionta cum bon uento cum le uele cum arbor senza bonetta: per rispecto di una pioza che hauemo il zorno auanti: e cosi andando ne uene un uento tanto forte per dauanti e tanto subito ..............................................................................................................

[Relação do Piloto Anónimo. Versão em português (1812)] Capítulo I134 De como El-Rei de Portugal mandou uma armada de doze naus, de que era Capitão-mor Pedro Álvares Cabral, dez das quais foram a Calicut e as outras duas a Sofala, que fica na mesma derrota, a fim de contratar em mercadorias. E de como descobriram uma terra muito povoada de árvores e de gente. No no de mil e quinhentos mandou o Sereníssimo Rei de Portugal, D. Manuel, uma armada de doze naus e navios para as partes da Índia, e por seu Capitão-mor Pedro Álvares Cabral, fidalgo da sua casa, as quais partiram bem aparelhadas e providas do necessário para ano e meio de viagem. Dez destas naus levaram regimento de ir a Calicut e as duas restantes a um lugar chamado Sofala para contratar em mercadorias, ficando este porto na mesma derrota de Calicut, para onde as outras dez iam carregadas. Em um Domingo, outo de Março daquele ano, estando tudo prestes, saímos a duas milhas de distância de Lisboa a um lugar chamado Restelo, onde está o Convento de Belém. E aí foi El-Rei entregar pessoalmente ao Capitão-mor o Estandarte Real para a dita armada. No dia seguinte levantámos âncoras com vento próspero e aos quatorze do mesmo mês chegámos às Canárias. Aos vinte e dous passámos Cabo Verde e, no dia seguinte, esgarrou-se uma nau da armada por forma tal que não se soube mais dela. Aos vinte e quatro de Abril, que era uma quarta-feira do outavário da Páscoa, houvemos vista de terra. Com o que, tendo todos grandíssimo prazer, nos chegámos a ela para a reconhecer e, achandoa muito povoada de árvores e de gente que andava pela praia, lançámos âncora na embocadura de um pequeno rio. O nosso Capitão-mor mandou deitar fora um batel para ver que povos eram aqueles, e os que nele foram acharam uma gente parda, bem disposta, com cabelos compridos. Andavam todos nus sem vergonha alguma e cada um deles trazia o seu arco com frechas, como 134

Mantenho a divisão dos capítulos do tradutor.

quem estava ali para defender aquele rio. Não havia ninguém na armada que entendesse a sua linguagem, de sorte que, vendo isto os dos batéis, tornaram para Pedro Álvares. E, no entanto, se fez noute e se levantou com ela um muito rijo temporal. Na manhã seguinte escorremos com ele a costa para o norte, estando o vento sueste, até ver se achávamos algum porto aonde pudéssemos abrigar e surgir. Finalmente, achámos um aonde ancorámos e vimos daqueles mesmos homens, que andavam pescando nas suas barcas. Um dos nossos batéis foi ter aonde eles estavam e apanhou dous que trouxe ao Capitão-mor, para saber que gente eram. Porém, como dissemos, não se entendiam por falas, nem mesmo por acenos. E assim, tendo-os retido uma noute consigo, os pôs em terra no dia seguinte, com uma camisa, um vestido e um barrete vermelho, com o que ficaram muito contentes e maravilhados das cousas que lhes haviam sido mostradas. Capítulo II Como os homens daquela terra principiaram a tratar connosco. Das suas casas e dalguns peixes que ali há muito diversos dos nossos. Naquele mesmo dia, que era no outavário da Páscoa, a vinte e seis de Abril, determinou o Capitão-mor de ouvir missa. E, assim, mandou armar uma tenda naquela praia e, debaixo dela, um altar. E toda a gente da armada assistiu tanto à missa como à pregação, juntamente com muitos dos naturais, que bailavam e tangiam nos seus instrumentos. Logo que se acabou, voltámos aos navios e aqueles homens entravam no mar até aos peitos, cantando e fazendo muitas festas e folias. Depois de jantar, tornou a terra o Capitão-mor e a gente da armada para espairecer com eles. E achámos neste lugar um rio de água doce. Pela volta da tarde tornámos à naus e, no dia seguinte, determinou-se fazer aguada e tomar lenhas, pelo que todos fomos a terra e os naturais vieram connosco para ajudar-nos. Alguns dos nossos caminharam até uma povoação onde eles habitavam, cousa de três milhas distante do mar, e trouxeram de lá papagaios, e uma raiz chamada inhame, que é o pão de que ali usam, e algum arroz, dandolhe os da armada cascavéis e folhas de papel em troca do que recebiam. Estivemos neste lugar cinco ou seis dias. Os homens, como já dissemos, são baços e andam nus sem vergonha, têm os seus cabelos

grandes e a barba pelada. As pálpebras e sobrancelhas são pintadas de branco, negro, azul ou vermelho. Trazem o beiço de baixo furado e metem-lhe um osso grande como um prego. Outros trazem uma pedra azul ou verde e assobiam pelos ditos buracos. As mulheres andam igualmente nuas, são bem feitas de corpo e trazem os cabelos compridos. As suas casas são de madeira, cobertas de folhas e ramos de árvores, com muitas colunas de pau pelo meio e, entre elas e as paredes, pregam redes de algodão, nas quais pode estar um homem. E, debaixo de cada uma destas redes, fazem um fogo, de modo que numa só casa pode haver quarenta ou cinquenta leitos armados a modo de teares. Nesta terra não vimos ferro nem outro algum metal, e cortam as madeiras com uma pedra. Têm muitas aves de diversas castas, especialmente papagaios de muitas cores e, entre eles, alguns do tamanho de galinhas, e outros pássaros muito belos, das penas dos quais fazem os chapéus e barretes de que usam. A terra é muito abundante de árvores e de águas, milho, inhame e algodão. E não vimos animal algum quadrúpede. O terreno é grande, porém não podemos saber se era ilha ou terra firme, ainda que nos inclinamos a esta última opinião pelo seu tamanho. Tem muito bom ar. Os homens usam de redes e são grandes pescadores. O peixe que tiram é de diversas qualidades e, entre ele, vimos um que podia ser do tamanho de um tonel, mas sim comprido e todo redondo. A sua cabeça era do feitio da de um porco, os olhos pequenos, sem dentes, com as orelhas compridas. Pela parte inferior do corpo tinha vários buracos e a sua cauda era do tamanho de um braço. Não tinha pés, a pele era da grossura de um dedo e a sua carne gorda e branca como a de porco. Capítulo III Como o Capitão-mor mandou cartas a El-Rei de Portugal, dando-lhe parte de ter descoberto aquela nova terra. E como, por causa da tempestade, se perderam quatro naus. Da povoação de Sofala, aonde há uma mina de ouro, a qual fica junto a duas ilhas. Nos dias que aqui estivemos, determinou Pedro Álvares fazer saber ao nosso Sereníssimo Rei o descobrimento desta terra e deixar nela dous homens, condenados à morte, que trazíamos na armada para este efeito. E, assim, despachou um navio que vinha em nossa conserva carregado de mantimentos, além dos doze sobreditos, o qual trouxe a El-Rei as cartas em que se continha tudo quanto tínhamos

visto e descoberto. Despachado o navio, saiu o Capitão em terra, mandou fazer uma cruz de madeira muito grande e a plantou na praia, deixando, como já disse, os dous degredados neste mesmo lugar. Os quais começaram a chorar e foram animados pelos naturais do país, que mostravam ter piedade deles. No outro dia, que eram dous de Maio, fizemo-nos à vela, para ir demandar o Cabo da Boa Esperança, achando-nos então engolfados no mar mais de mil duzenta léguas de quatro milhas cada uma.135 ………………………………………………………………………… …...

135 Sebastião F. de M. T. de Aragão Morato interrompeu aqui a tradução, pois, como se pode constatar, o relato abandona o episódio da terra nova.

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