As Novas Fronteiras do Direito

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Descrição do Produto

Coordenação Geral Ana Paula Teixeira Delgado Cleyson de Moraes Mello Nívea Maria Dutra Pacheco Coordenação Acadêmica Guilherme Sandoval Góes João Eduardo de Alves Pereira Vanderlei Martins

As Novas Fronteiras do Direito Estudos Interdisciplinares em Homenagem ao Professor Francisco de Assis Maciel Tavares

Apresentação Sergio Cavalieri Filho

Autores Abel Rafael Soares Alexandre Ribeiro da Silva Ana Paula Teixeira Delgado Aparecida Alves Franco Brener Duque Belozi Carina Barbosa Gouvêa Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira Cleyson de Moraes Mello Danielle Riegermann Ramos Damião David Ferreira Lopes Santos Déborah de Paula Iennaco de Rezende Elmo Gomes de Souza Eron Dino Leite Pereira Evandro Pereira Guimarães Ferreira Gomes Fábio da Costa Pascoal Fernando Chaim Guedes Farage Guilherme Sandoval Góes Hamerson Castilho do Nascimento Ingrid Luziê Muniz dos Santos José Flávio Barroso Madaleno

Jorge Marcos Barreto Mothé Júlia Mara Rodrigues Pimentel Larissa Toledo Costa de Assis Leonardo Granthom Ludmila Roberto Moraes Luis Carlos de Araujo Maria de Fátima Alves São Pedro Maria Célia Ferreira de Rezende Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira Márcia Sleiman Rodrigues Nívea Corcino Locatelli Braga Nívea Maria Dutra Pacheco Roberta Maria Costa Santos Ruchester Marreiros Barbosa Sergio Leonardo Molisani Monteiro Sonia Regina Vieira Fernandes Thainá Guedes de Brito Vanderlei Martins Wellington Trotta William Albuquerque Filho

Editar Juiz de Fora-MG 2015

Conselho Editorial Prof. Dr. Bruno Lacerda (Membro Externo – UFJF – MG) Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello Profa. Dra. Elena de Carvalho Gomes (Membro Externo - UFMG) Profa. Elizabeth Santos Cupello (Membro Externo – AVL) Prof. Mario Pellegrini Cupello (Membro Externo – ICVRP) Profa. Ms. Marcia Ignácio R M Mello (Membro Externo - Colégio Pedro II) Prof. Dr. Nuno M. M. S. Coelho (Membro Externo - USP) Profa. Dra. Núria Belloso Martín (Membro Externo – Univ. Burgos - Espanha) Profa. Ms. Patrícia Ignácio da Rosa (Membro Externo IBC) Profa. Dra. Theresa Calvet de Magalhães Prof. Dr. Vanderlei Martins (Membro Externo - UERJ) Coordenação Geral Profa. Ms. Ana Paula Teixeira Delgado Prof. Dr. Cleyson de Moraes Mello Profa. Ms. Nívea Maria Dutra Pacheco Coordenação Acadêmica Prof. Dr. Guilherme Sandoval Góes Prof. Dr. João Eduardo de Alves Pereira Prof. Dr. Vanderlei Martins Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)

As Novas Fronteiras do Direito Estudos Interdisciplinares em Homenagem ao Professor Francisco de Assis Maciel Tavares, Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2015. 1. Direito – Fundamentos – Brasil. ISBN: 978-85-7851-085-5

A editora e os coordenadores desta obra não se responsabilizam por informações e opiniões contidas nos artigos científicos, que são de inteira responsabilidade dos seus autores.

Quão preciosa é, ó Deus, a tua benignidade, pelo que os filhos dos homens se abrigam à sombra das tuas asas. Eles se fartarão da gordura da tua casa, e os farás beber da corrente das tuas delícias; Porque em ti está o manancial da vida; na tua luz veremos a luz. (Salmos 36: 7-9)

Francisco de Assis Maciel Tavares

Possui graduação em direito pela Universidade Gama Filho (1984) e mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (1994). Atualmente é professor titular da Universidade Estácio de Sá, da graduação e da Pósgraduação. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Constitucional, Ciência Política, Teoria Jurídica do Estado e Direito Internacional Púbico. Professor da EAD da Universidade Estácio de Sá, ministrando na graduação a disciplina de Direitos Humanos. Advogado militante.

Coordenação Geral da obra Ana Paula Teixeira Delgado Doutoranda em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá com início em 2012. Possui graduação em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1995) e Mestrado em Direito pela Universidade Gama Filho (2000) realizado com Bolsa da CAPES. Coordenadora Nacional da Pós-graduação em Direito da Universidade Estácio de Sá. Professora da Graduação e Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá. Professora da Faculdade Mackenzie RJ. Professora do Curso de Pós-graduação da AVM Faculdades Integradas. Professora convidada da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro. Professora do Vega Curso Jurídico. Foi Coordenadora e conteudista das disciplinas do Curso de Pós-graduação à distância em Direito Constitucional da Universidade Estácio de Sá. Foi Coordenadora do Curso de Direito da Universidade Estácio de Sá (Unidade Rebouças) Cleyson de Moraes Mello Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; atualmente é professor universitário (graduação e Pós-graduação). É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC - Juiz de Fora MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença - FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do direito, direito civil, filosofia do direito, fundamento do direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. Nívea Maria Dutra Pacheco Mestre em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2007). Pós-graduada pela universidade Estacio de Sá em Direito Civil e Processual Civil (2001) e em Docência do Ensino Superior (2006). Graduação em Direito pela Faculdades Integradas Metodista Bennett (1998). Professora de Direito na Graduação e professora de Pós-graduação em Processo Civil, Coordenadora e advogadaorientadora do Núcleo de Prática Jurídica da Universidade Estácio de Sá, Mediadora. Presidente da Comissão de Defesa do Consumidor da OAB/Nova Friburgo, Conselheira da ESA da OAB/Nova Friburgo. Tem experiência na área Cível, com ênfase em Direito Civil, Processual Civil, Família e Previdenciário,

atuando principalmente nos seguintes temas: Acesso à Justiça, Juizados Especiais Cíveis estaduais e federais, Resolução Alternativa de Conflitos (Mediação), Responsabilidade Civil, Família e Previdenciário.

Coordenação Acadêmica da Obra Guilherme Sandoval Góes Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ, Coordenador do Curso de Direito do Campus Tom Jobim da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Professor de Direito Constitucional e Eleitoral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Professor Convidado do Curso de Pós-graduação do Direito da Criança e do Adolescente da UERJ. Chefe da Divisão de Geopolítica e Relações Internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG). João Eduardo de Alves Pereira Geógrafo, com o registro 2007131366, CREA-RJ. Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1986), Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1992) e Doutor em Engenharia de Produção pela Coppe/Universidade Federal do Rio de Janeiro (2002). CREARJ. É Professor-Adjunto nas disciplinas Economia Política, Geografia Política e Economia do Petróleo da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É Professor-conteudista e responsável pela disciplina Geografia da População Brasileira do Curso de Licenciatura em Geografia (EAD) do Consórcio CEDERJ-UERJ-UAB. Na mesma instituição, é Professor dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Direito e colaborador do Curso de Mestrado em Geografia. É Professor do Centro de Ensino Superior de Valença (CESVA), da Fundação Educacional Dom André Arcoverde (FAA) nos Cursos de Administração e Direito. Na mesma instituição foi coordenador do curso de Economia entre 2010 e 2012. É Professor da Universidade Estácio de Sá no Curso de Direito, tendo lecionando também nos cursos de Administração, Marketing, Relações Internacionais, História, Turismo e Politécnico de Petróleo e Gás. É Professor da Universidade Castelo Branco (desde 2010) com regência atualmente na disciplina Empreendedorismo para cursos de graduação à distância (EAD) do Núcleo Integrador. Tem sólida experiência docente no ensino básico, tendo sido Professor da rede de ensino particular e por concurso público do Colégio Naval, Angra dos Reis, RJ. São de seu interesse estudos e pesquisas nas seguintes áreas: Economia Política, Economia do Petróleo, Geografia Econômica e Desenvolvimento Regional; Direito Econômico e da Economia; Geopolítica e Direito Internacional, Educação e Cidadania. Foi Chefe de Gabinete da Reitoria da UERJ entre 1997 e 1999 e entre 2008 e 2010. Foi eleito Vice-Diretor da Faculdade de Direito para o período 2012-2016. Foi Coordenador-Adjunto do MBA em Direito e Negócios do Petróleo, Gás e Energia da UERJ em parceria com o Instituto Brasileiro do Petróleo e do Gás Natural (IBP). Tem participações em várias bancas de concursos vestibulares e de concursos públicos. Além de

exames nacionais, como o SAEB. Tem atuado como examinador de provas de formação geral do ENADE (2011-2012-2013). Foi membro do Conselho Municipal de Educação do Rio de Janeiro (1999-2000) e da Rede de Tecnologia do Rio de Janeiro. Vanderlei Martins Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991), Doutorado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1995), Coordenador Acadêmico do PPDIR/ Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Coordenador Executivo e Membro do Conselho Editorial do Caderno de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999), Professor Adjunto da UNESA (1999/2008),  Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/ SUESC (2000/2012), Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/Campus Silva Jardim (2000), atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas.

Autores Abel Rafael Soares

Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Alexandre Ribeiro da Silva

Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC, Campus de Juiz de Fora e também mestrando no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pósgraduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI). É advogado e professor de literatura e português. Possui Pós-graduação em Direito Processual pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), graduação em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (2009) e graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010). Ana Paula Teixeira Delgado Doutoranda em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Mestre em Direito pela Universidade Gama Filho. Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Advogada e Professora da Universidade Estácio de Sá, da Faculdade Mackenzie/RJ e da AVM-Faculdades Integradas. Aparecida Alves Franco

Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Brener Duque Belozi Advogado; Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Pós-graduado em Direito Empresarial e Econômico pela UFJF; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC; Professor de Processo Civil e Direito do Consumidor na FACSUM-JF – Faculdade do Sudeste Mineiro; Professororientador do Núcleo de Prática Jurídica da FACSUM-JF. Carina Barbosa Gouvêa

É membro da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente OAB/ RJ; Doutoranda em Direito pela UNESA; Mestre em Direito pela UNESA; Pesquisadora Acadêmica do Grupo “Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional”; Professora da Pós-graduação em Direito Militar; Professora de Direito Constitucional, Direito Eleitoral e Internacional Penal; Pós-graduada em Direito do Estado e em Direito Militar, com MBA Executivo Empresarial em Gestão Pública e Responsabilidade Fiscal; Advogada; E-mail: .

Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira

Bacharel em Comunicação Social – FACHA; Bacharel, Licenciada, Especialista e Mestre em Filosofia/UERJ; Bacharel em Direito – UNESA; Advogada e Professora de Filosofia do Direito pela UNESA. Cleyson de Moraes Mello

Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; atualmente é professor universitário (Graduação e Pós-graduação). É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC - Juiz de Fora MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença - FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do direito, direito civil, filosofia do direito, fundamento do direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. Danielle Riegermann Ramos Damião

Doutoranda em Função Social do Direito - FADISP (2015); Mestrado em Direito pela Universidade de Marília (2012); Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (2003); Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002); Autora de cinco obras, sendo que quatro são em coautoria. Atualmente é professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN) e da Faculdade São Luís. É membro dos conselhos editoriais das revistas “Direito e Liberdade” e da “Atualidades Jurídicas”. Acumula vasta experiência na docência superior (graduação e Pós-graduação). Assessora Jurídica da FUNEP - Fundação de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão. É advogada e consultora jurídica. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial, Civil e do Trabalho. David Ferreira Lopes Santos

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Doutor em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2009);Mestre em Sistemas de Gestão pela Universidade Federal Fluminense (2004); Especialista em Controladoria e Finanças pela Universidade Federal Fluminense (2002) e Graduado em Administração de Empresas pela Universidade do Grande Rio (Câmpus Silva Jardim-RJ) (2001). Atua como professor assistente doutor da UNESP - Jaboticabal/SP no Departamento de Economia Rural. Possui experiência profissional no mercado financeiro e na

indústria de petróleo e gás natural. Déborah de Paula Iennaco de Rezende

Advogada; Mestranda no programa de mestrado em Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e efetivação dos Direitos Humanos no contexto Social e Político contemporâneo”. Pós-graduanda em Direito Trabalhista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - IEC PUCMG. Graduada no curso de Direito pelo Instituto Vianna Júnior. Elmo Gomes de Souza

Juiz Federal Titular do Juizado Especial Federal de Nova Friburgo e Professor da Universidade Cândido Mendes – Campus Nova Friburgo. Eron Dino Leite Pereira

Advogado inscrito na OAB-MG; Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho; Pós-graduado em Direito Previdenciário; Formação em Docência de Ensino Superior; MBA Executivo em Petróleo e Gás; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais. Evandro Pereira Guimarães Ferreira Gomes

Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Diretor Jurídico do “Instituto para o Avanço Científico dos Países do Sul” (The Institute for the Scientific Advancement of the South). Advogado. Fábio da Costa Pascoal

Especializando do Curso de Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá, Graduado em Direito pelo Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos. Fernando Chaim Guedes Farage

Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC de Juiz de Fora-MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora-MG. Advogado. Guilherme Sandoval Góes

Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ; Coordenador do Curso de Direito do Campus Tom Jobim da Universidade Estácio de Sá (UNESA); Professor de Direito Constitucional e Eleitoral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ); Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME); Professor Convidado do Curso de Pós-graduação do Direito da Criança e do Adolescente da UERJ; Chefe da Divisão de Geopolítica e Relações Internacionais da Escola

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Superior de Guerra (ESG). Hamerson Castilho do Nascimento

Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC – Juiz de Fora - MG; Pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá; Pós-graduado em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela Universidade Estácio de Sá; Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá; Professor de Direito do Consumidor, Responsabilidade Civil e História do Direito Brasileiro na graduação da Universidade Estácio de Sá; Advogado atuante inscrito na OAB/RJ. Ingrid Luziê Muniz dos Santos

Graduanda em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Jorge Marcos Barreto Mothé

Bacharel em Direito. Publicitário; jornalista pela Universidade da Cidade, UNIVERCIDADE. José Flávio Barroso Madaleno

Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de Direito pela Faculdade Doctum de Manhuaçu, titular da cadeira de Direito Empresarial. Júlia Mara Rodrigues Pimentel

Mestranda em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Ciências Penais pelas Faculdades Integradas de Caratinga; Especialista em Direito Público e em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhanguera-Uniderp. Advogada e Conselheira da “OAB Mulher” da 54ª Subseção da OAB. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade Doctum de Manhuaçu e Professora da Rede Doctum de Ensino. Larissa Toledo Costa de Assis

Mestranda em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC); Pós-graduada em Direito Econômico e Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Leonardo Granthom Advogado especialista em Direito Empresarial e Econômico pela UFJF; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Unipac – Universidade Presidente Antônio Carlos; Professor em Processo Civil, Direito de Família e Professor orientador do Núcleo de Prática Jurídica pela faculdade de Ciências Gerenciais de Manhuaçu/MG.

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Ludmila Roberto Moraes

Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá. Graduanda em Direito pela Universidade Estácio de Sá campus Nova Friburgo. Especialista em Odontologia do Trabalho pela Associação Brasileira de Odontologia – ABO/RJ; Especialista em Saúde da Família pela Escola Nacional de Saúde Pública ENSP/FIOCRUZ; Graduada em Odontologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF/Campus Niterói. CirurgiãDentista e Servidora Pública dos Municípios de Nova Friburgo/RJ e Cabo Frio /RJ. Luis Carlos de Araujo

Procurador de Justiça Aposentado do Estado do Rio de Janeiro; Professor titular da disciplina de Processo Civil na Universidade Estácio de Sá, Pós-graduação na Estácio em 2012; Professor de Processo Civil, Direito Empresarial e Técnicas de Sentença na Escola da Magistratura de 1985 até 2005. Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Estácio de Sá de 1995/1998; Diretor Geral do Campus João Uchoa de 1999/2001; Coordenador das Disciplinas de Processo Civil de 2001 até 2009 na Universidade Estácio de Sá, Coordenador Nacional das Disciplinas de Processo Civil e Direito Empresarial de 2009/2011 na Universidade Estácio de Sá. Autor de diversas obras de Processo Civil. Márcia Sleiman Rodrigues

Doutora em Direito pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Docente da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Estácio de Sá.  Coordenadora de Avaliação da Universidade Estácio de Sá. Maria Célia Ferreira de Rezende

Mestre em Direito pela UNESA-RJ; Pós-graduada em Direito Tributário, pela Fundação Getúlio Vargas, RJ; Pós-graduada em Direito do Trabalho pela UNESA-RJ; Professora Adjunta da UNESA do Curso de Pós-graduação no Curso de Direito; Professora da UNESA dos Cursos de Graduação Presencial e EAD; Professora Convidada da EMERJ-Escola da Magistratura do RJ; Membro Integrante da Banca para ingresso na OAB-RJ- 2004-2006, Palestrante e Advogada. Maria de Fátima Alves São Pedro

Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre

em Gestão Ambiental pela Universidade Estácio de Sá. Especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá. Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação Lato Sensu da Universidade Estácio de Sá e Docente da Pós-graduação Lato Sensu da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ. Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira

Jornalista e advogada. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010) e graduação em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior (2013). Atualmente é Mestranda no programa “Hermenêutica e Direitos Fundamentais”, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e Efetivação dos Direitos Humanos nos Contextos Social e Político Contemporâneos”, na Universidade Presidente Antônio Carlos. É também mestranda no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pós-graduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI). Desenvolve pesquisas na área de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Direito Constitucional e Teoria da Comunicação (Agenda-Setting Theory). Nívea Corcino Locatelli Braga

Mestranda pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada pela Universidade Estácio de Sá em Processo Civil Contemporâneo. Pós-graduada pela Universidade Estácio de Sá em Docência do Ensino Superior. Pós-graduada pela Uniderp em Direito e Processo do Trabalho. Graduação em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Atualmente é Coordenadora e Professora da Pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá. Integrante da Equipe Editorial e Avaliadora da Littera Docente & Discente em Revista. Professora da Graduação em Direito. Advogada-orientadora do Núcleo de Prática Jurídica Setorial da Universidade Estácio de Sá com experiência e atuação na área Cível, com ênfase em Direito Civil e Processual Civil. Experiência e atuação em Direito e Processo do Trabalho, mormente no tocante à terceirização no setor privado e no setor público. Nívea Maria Dutra Pacheco Mestre em Direito pela UNESA; Professora de Processo Civil da UNESA (Pós-graduação e Graduação); Professora de Prática Jurídica da UNESA (Graduação); Advogada; Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UNESA campus Nova Friburgo; Presidente da Comissão de Direito do

Consumidor da 9ª Subseção da OAB/NF. Roberta Maria Costa Santos Advogada. Pós-graduada em Direito Empresarial pela PUC/RJ. Mestranda (Bolsista CAPES) na UNESA com sanduiche na Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected] Ruchester Marreiros Barbosa Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro. Doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de Zamora, Argentina. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Processo Penal da EMERJ; Professor de Direito Penal e Processual Penal da graduação e Pós-graduação da UNESA/RJ; professor de Penal e Processo Penal da Pós-graduação da Universidade Cândido Mendes; professor conteudista do site  www.atualidadesdodireito.com.br  dos professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Professor concursado da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos artigos jurídicos e científicos. Membro Titular da Association Internationale de Droit Pénal, Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais; Membro da Law Enforcement  Law Enforcement Against Prohibition. Palestrante e Conferencista. email: [email protected]. Sergio Leonardo Molisani Monteiro Advogado Especialista e Mestrando; Professor de Direito no IPTAN – São João Del Rei. Sonia Regina Vieira Fernandes Advogada e Professora de Direito Constitucional; Mestre em Direito. Thainá Guedes de Brito Advogada; Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá; Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Vanderlei Martins

Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/ UFRJ (1985); Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991); Doutorado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1995). Coordenador Acadêmico do PPDIR/Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999); Coordenador Executivo e Membro do Conselho Editorial do Cadernos de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999); Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999); Professor Adjunto da UNESA (1999/2008);  Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/ SUESC (2000/2012); Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/

Campus Silva Jardim (2000); atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas. Wellington Trotta

Graduado em Direito e Filosofia; Mestre em Ciência Política – UFRJ; Doutor em Filosofia – UFRJ e possui Pós-Doc pela UFRJ. É Professor de Filosofia do Direito pela UNESA. William Albuquerque Filho

Mestrando em Direito (Hermenêutica e Direitos Fundamentais)Universidade Presidente Antônio Carlos, UNIPAC-JF.

Sumário Apresentação

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Prof. Sergio Cavalieri Filho

Palavras da Coordenação

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Ana Paula Teixeira Delgado, Cleyson de Moraes Mello, Nívea Maria Dutra Pacheco, Guilherme Sandoval Góes João Eduardo de Alves Pereira e Vanderlei Martins

A filosofia e o surgimento de nova consciência. O pensamento jurídico-político: I

25

Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira e Wellington Trotta

As novas fronteiras da eficácia dos direitos sociais

41

Guilherme Sandoval Góes e Márcia Sleiman Rodrigues

A Questão da Verdade: Investigações em Heidegger

53

Cleyson de Moraes Mello

Modernidade e Universidade

65

Vanderlei Martins

O direito ambiental em busca de caminhos alternativos

79

Maria de Fátima Alves São Pedro

Aplicação do Direito em Tempos de Pós-positivismo: ruptura ou continuidade de velhos paradigmas?

89

Ana Paula Teixeira Delgado

Justiça restaurativa para a criança e o adolescente: uma justiça que humaniza o processo “socioeducativo”

97

Carina Barbosa Gouvêa

A regulamentação das contratações da Petrobras: uma abordagem jurídica e empresarial Danielle Riegermann Ramos Damião e David Ferreira Lopes Santos

109

O princípio da duração razoável do processo e sua aplicação no Código de Processo Civil

127

Luis Carlos de Araujo

A individualização do homem e a dignidade da pessoa humana 139 Nívea Corcino Locatelli Braga

Juizado Especial Cível e Democracia Participativa. A importância da participação de uma Instituição de Ensino Jurídico como instrumento de acesso à justiça

149

Sonia Regina Vieira Fernandes

Audiência de Custódia (Garantia) e o Sistema da Dupla Cautelaridade Como Direito Humano Fundamental

161

Ruchester Marreiros Barbosa

Os direitos fundamentais e o direito processual, sob a visão da função social do poder judiciário

181

Nívea Maria Dutra Pacheco

Presunção absoluta ou relativa? Análise acerca da dependência econômica para recebimento da pensão por morte 195 Elmo Gomes de Souza

Sentenças Aditivas: uma realidade necessária no estado democrático de direito

205

Evandro Pereira Guimarães Ferreira Gomes, Abel Rafael Soares, Aparecida Alves Franco e Ingrid Luziê Muniz dos Santos

Os direitos fundamentais e o assédio moral nas relações humanas 221 Maria Célia Ferreira de Rezende

A importância da autocomposição e heterocomposição como meios propícios (alternativos) à solução de conflitos e sua repercussão na modernidade

231

Fernando Chaim Guedes Farage

O Ativismo Judiciário e o desvelar do Direito segundo Heidegger 243 Alexandre Ribeiro da Silva e Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira

Dignidade da pessoa humana e o direito à eutanásia

255

Hamerson Castilho do Nascimento

A justiça distributiva de Aristóteles: uma análise de sua aplicação nas decisões judiciais trabalhistas

267

Larissa Toledo Costa de Assis

Arbitragem: Meio alternativo ou adequado para solução de conflitos?

277

Thainá Guedes de Brito

Das provas no direito e processo civil – avanço ou estagnação? Fragilidade ou constitucionalidade? Necessidade de uniformização 287 Fábio da Costa Pascoal

Controle social da administração pública: direito fundamental ao acesso à informação

299

William Albuquerque Filho

Dignidade da pessoa humana: a matéria-prima dos direitos fundamentais 313 Júlia Mara Rodrigues Pimentel

O princípio da dignidade e os animais não humanos: algumas reflexões

331

Roberta Maria Costa Santos

Liberdade de expressão - direitos fundamentais - e poder empregatício

341

José Flávio Barroso Madaleno

Dano moral: a dignidade do trabalhador versus o enriquecimento sem causa Déborah de Paula Iennaco de Rezende

357

Livre iniciativa versus prevenção dos riscos contra acidente de trabalho

369

Eron Dino Leite Pereira

A necessária releitura do direito do acesso à justiça e política do consenso

383

Brener Duque Belozi

Pensamento filosófico de Robert Alexy

393

Sergio Leonardo Molisani Monteiro

Sopesamento entre o direito de expressão e o direito da personalidade no ordenamento vigente

405

Leonardo Granthom

Dano social: ativismo judicial ou justiça social?

415

Princípios Éticos e Morais no novo CPC

431

Ludmila Roberto Moraes

Jorge Marcos Barreto Mothé

Apresentação Felicito os autores desta obra pela oportuna, merecida e justa homenagem que prestam ao Professor Francisco de Assis Maciel Tavares. O título da obra – As Novas Fronteiras do Direito – tem tudo a ver com o perfil do homenageado. Quem, como eu, acompanha a carreira acadêmica do homenageado desde o seu ingresso no corpo docente da UNESA pode testemunhar sobre a sua diuturna e profícua atuação na verdadeira oficina do direito – a sala de aula – em prol da ampliação das suas fronteiras. Com efeito, Direito e Justiça são conceitos que se entrelaçam ao ponto de serem considerados uma só coisa pela consciência social. Fala-se no Direito com o sentido de Justiça e vice-versa. Sabemos todos, entretanto, que nem sempre andam juntos. Nem tudo que é direito é justo e nem tudo que é justo é direito. Isso acontece porque a ideia de Justiça é mais ampla; engloba valores inerentes ao ser humano e transcendentais, como a liberdade, a igualdade e fraternidade, a dignidade, a honestidade, a moralidade, a segurança, enfim, tudo aquilo que tem sido chamado de direito natural desde a antiguidade. O Direito, por seu turno, é uma invenção humana, um fenômeno histórico e cultural concebido como técnica para a pacificação social e a realização da justiça. Enquanto a Justiça é um sistema aberto de valores, em constante mutação, o Direito é o conjunto de princípios e regras destinado a realizála. E nem sempre o Direito alcança esse desiderato, quer por não ter acompanhado as transformações sociais, quer por incapacidade daqueles que o conceberam, e quer, ainda, por falta de disposição política para implementá-lo, podendo, por isso, tornar-se um direito injusto. Em suma, o jurídico se compõe de fato, norma e valor indissociavelmente, de sorte que se os operadores do direito não tiverem essa visão tridimensional do direito não estarão aptos a concebê-lo, a ensinálo e muito menos a aplicá-lo de forma a realizar a verdadeira justiça. A ideia de que o direito é norma, nada mais do que a norma, ardorosamente defendida por Kelsen, há muito está ultrapassada, tanto é assim que há norma expressa determinando ao juiz atender, na aplicação da lei, aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum. É aqui que se revela o talento dos verdadeiros artífices do Direito. São aqueles que, tendo sensibilidade para perceberem os anseios da Justiça, empenham-se em ajustar o Direito a essas exigências, antes mesmo do

legislador, idealizando na sala de aula novas fórmulas jurídicas. Buscam a realização da Justiça quando ainda não é ela encontrada na lei. O direito brasileiro, principalmente a partir da Constituição de 1988, passou por uma verdadeira revolução, ampliou as suas fronteiras em todas as área graças a essa nova visão dos doutrinadores e mestres do direito que aceitaram os desafios desses novos tempos. É o caso do Professor Francisco de Assis Maciel Tavares, destinatário desta homenagem. Com sua apurada sensibilidade didática, profundo conhecimento jurídico, vasta visão social do direito, vigorosa argumentação doutrinária e serenidade de ensinamentos, o Professor Francisco se dedica já por quase três décadas, diuturnamente, ao sagrado sacerdócio de transmitir aos seus alunos uma visão do Direito Justo, com o que muito tem contribuído para a ampliação de suas fronteiras. Com os autores desta obra, associo-me à justa homenagem ao meu colega e dileto amigo, Professor Francisco.

Prof. Sergio Cavalieri Filho

Palavras da Coordenação É com grande satisfação que apresentamos à comunidade jurídica brasileira a obra As Novas Fronteiras do Direito: Estudos em Homenagem ao Professor Francisco de Assis Maciel Tavares. A produção jusfilosófica que conforma esta obra coletiva tem como autores renomados juristas nacionais, bem como integrantes dos corpos docente e discente de diversas Instituições de Ensino Superior. A edição desta obra expressa a preocupação dos Coordenadores no sentido de oferecer um espaço para a discussão e o diálogo interdisciplinares, fato que permite ao leitor o contato com diferentes saberes e diferentes posições doutrinárias. Nessa linha, é importante salientar que os artigos agora publicados têm como finalidade homenagear o ilustre Professor Francisco de Assis Maciel Tavares. Convidamos todos à leitura. Rio de Janeiro, maio de 2015.

Coordenação Geral Ana Paula Teixeira Delgado Cleyson de Moraes Mello Nívea Maria Dutra Pacheco Coordenação Acadêmica Guilherme Sandoval Góes João Eduardo de Alves Pereira Vanderlei Martins

A filosofia e o surgimento de nova consciência. O pensamento jurídico-político: I Clara Maria Cavalcante Brum de Oliveira1 Wellington Trotta2 Resumo: O presente trabalho tem por fim investigar os olhares contempladores dos filósofos pré-socráticos e sofistas, cada um segundo seus critérios de análise. O artigo está estruturado em quatro tópicos. No tópico 1, - O Surgimento da filosofia na Grécia Antiga, preocupou-se em apresentar os elementos que ensejam o nascimento da filosofia na Grécia Antiga e não no Egito, por exemplo. No tópico 2 - A pólis grega e a formação de uma nova consciência, ressaltou-se a cidade grega como espaço da vida política, cuja ausência dos palácios e templos marcam a ideia, mesmo que incipiente, de esfera pública. Nesse sentido, o espírito grego colaborou na busca de soluções objetivas, por isso o tópico 3, denominado de Os filósofos pré-socráticos e o pensamento político, analisou o papel crucial que esses filósofos tiveram na construção da identidade do grego antigo e sua contribuição no que concerne ao pensamento político. O tópico 4, O sentido de justo no período pré-socrático, estuda o sentido de justiça que impregna a Grécia antiga, isto é, o equilíbrio, a proporção. Assim, relacionase o ideal kosmo tanto na cidade como na esfera da natureza. Palavras-chave: Pré-socráticos; Sofistas; Justiça; Democracia; Tribunal. Abstract This study aims to investigate the looks contemplate the pre-Socratic philosophers and sophists, each according to his analysis criteria. The paper is organized into four topics. In the topic 1 - The Emergence of philosophy in ancient Greece, was concerned to present the elements that lead the birth of philosophy in ancient Greece and not in Egypt, for example. In the topic 2 - The Greek polis and the formation of a new consciousness, emphasis was placed on the Greek city as a space of political life, the absence of the palaces and temples dot the idea, even if incipient, public sphere. In this sense, the Greek spirit helped in the search for objective solutions, so the topic 3, called the Pre-Socratic philosophers and political thought, examined the crucial role that these philosophers had in the building of the ancient Greek and its contribution to As regards the political thought. The topic 4, the sense of fair in the pre-Socratic period, studies the sense of justice that permeates the ancient Greece, that is, balance, proportion. Thus, the ideal Kosmo relates in the city and in the sphere of nature. Keywords: Pre-Socratics; Sophists; justice; democracy; court. 1 Bacharel em Comunicação Social – FACHA; Bacharel, Licenciada, Especialista e Mestre em Filosofia/UERJ; Bacharel em Direito – UNESA; Advogada e Professora de Filosofia do Direito pela UNESA. 2 Graduado em Direito e Filosofia, Mestre em Ciência Política – UFRJ, Doutor em Filosofia – UFRJ e possui Pós-Doc pela UFRJ. É Professor de Filosofia do Direito pela UNESA.

A filosofia e o surgimento de nova consciência. O pensamento jurídico-político: I

Introdução Segundo Platão, no diálogo Eutidemo (288-290d), a Filosofia do termo grego Φιλοσοφíα é o uso do saber em proveito do homem. Neste ponto, assinala o célebre filósofo que não teria utilidade alguma poder transformar as pedras em ouro se não tiver capacidade para valer-se desse nobre metal. Nesse mesmo sentido, oportuniza a advertência segundo a qual de nada serviria um saber a quem não sabe servir-se dele. A Filosofia se desenha, portanto, como a colidência entre o fazer e o saber valer-se daquilo que se faz. Platão pretende, com isso, enfatizar que a Filosofia é a posse ou aquisição de um saber, mas este em benefício do homem. Certamente se encontrarão inúmeras definições para Filosofia forjadas em épocas diversas sob diferentes pontos de vista. Todavia, guardam um núcleo comum: a concepção de uma sabedoria prática. Conforme Kant, representante do Iluminismo alemão, filosofia é uma ciência da relação de todo conhecimento com a finalidade essencial da razão humana. Para este autor, “o filósofo não é um artista da razão humana, mas o legislador da razão humana” (1994, p. 661). Segundo Hegel, filosofia é um saber conceituante, um saber que possibilita o pensar, a capacidade de conceber (HEGEL, 1992. p. 23 e 1995, 39-59). Na verdade, tais definições não se distanciam da mensagem platônica e, assim, esse conhecimento, ora visto como desvelação, ora como busca ou aquisição, é um privilégio dos seres racionais. Pode-se, a partir de Chauí, definir Filosofia como “a busca pela fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e práticas” (1997, p. 72). Tratase de um saber que se volta às origens, às causas, à forma e ao conteúdo dos universos ético, político, artístico e culturais. O seu olhar observa com cuidado as transformações históricas e a consciência em suas várias modalidades como imaginação, percepção, memória, linguagem, inteligência, experiência, reflexão, comportamento, vontade, desejo, paixões; busca compreender as ideias ou significados gerais: realidade, mundo, natureza, cultura, história, subjetividade, objetividade, diferença, repetição, semelhança, conflito, contradição etc. O sentido filosófico pretende propiciar um distanciamento seguro do senso comum, das crenças, sentimentos, prejuízos e preconceitos. Nesse caso, a distância do mundo cotidiano auxilia a interrogar e não aceitar as coisas passivamente, ou seja, sem investigar as suas fontes e legitimidade. A Filosofia desconfia do senso comum para problematizar “o que é”, “como é” e “por que é” – caracterizando um pensamento crítico. Assim, pode-se considerar que refletir significa tomar distância das coisas para poder enxergar novos ângulos, experimentar a realidade em diversos sabores (LORIERI, 2004, p. 17), porquanto a reflexão filosófica é radical, isso porque investiga a raiz, a origem de tudo o que existe (MARX, 1993, p. 86). A Filosofia é um pensamento sistemático, o que significa dizer que não é mera opinião, muito pelo contrário, na verdade a Filosofia segue uma lógica enquanto coerência de enunciados precisos e rigorosos, para operar com conceitos ou ideias obtidos por procedimentos de pura racionalização.

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Nesse caso, a Filosofia na condição de saber, exige fundamentação racional do que é enunciado e pensado, e deve formar um conjunto coerente de ideias racionalmente examinadas e demonstráveis. Esse é o seu rigor e justifica a impossibilidade de muitas ideias não serem consideradas ideias filosóficas. Conclui-se, provisoriamente, que o saber filosófico é uma profunda refutação à opinião, conhecida como senso comum. O valor da Filosofia repousa, portanto, na possibilidade de fundamentação ou justificação do trabalho científico ao indagar “o que é o homem?”, por exemplo. Pode-se estudar a Filosofia sob o aspecto temático ou compreendê-la a partir de seu acontecer histórico, ou seja, a história da Filosofia observando períodos históricos que exprimem e manifestam os problemas e as questões que, em cada época, os homens colocaram para si mesmos. Será possível também perceber que as transformações no modo do conhecer ampliaram os campos de investigação do filósofo. Como o objetivo deste estudo visa investigar o sentido de justo no período pré-socrático, organizou-se em quatro tópicos e uma conclusão, privilegiando a reflexão no lugar da mera descrição. No tópico 1, O Surgimento da filosofia na Grécia Antiga, preocupou-se em apresentar os elementos que ensejam o nascimento da filosofia na Grécia Antiga e não no Egito, por exemplo. No tópico 2, A pólis grega e a formação de uma nova consciência, ressaltou-se a cidade grega como espaço da vida política, cuja ausência dos palácios e templos marcam a ideia, mesmo que incipiente, de esfera pública. Nesse sentido, o espírito grego colaborou na busca de soluções objetivas, por isso o tópico 3, denominado de Os filósofos pré-socráticos e o pensamento político, analisou o papel crucial que esses filósofos tiveram na construção da identidade do grego antigo e sua contribuição no que concerne ao pensamento político. O tópico 4, O sentido de justo no período pré-socrático, estuda o sentido de justiça que impregna a Grécia antiga, isto é, o equilíbrio, a proporção. Assim, relaciona-se o ideal do kosmo tanto na cidade como na esfera da natureza.

O Surgimento da filosofia na Grécia Antiga Segundo José Américo M. Pessanha (Col. Os pensadores, volume I), as razões que conduziram o homem grego a fazer filosofia permanecem ainda como um problema aberto. O que teria fundamentado esse novo saber? Por que na Grécia, por volta do séc. VII a.C., surgiu uma nova mentalidade diante do real? Quais os fatores que se entrecruzaram e propiciaram esse fenômeno em uma cultura tão antiga? Sabe-se que na Grécia do séc. VI a C., Pitágoras denominouse “Filo-sophos” por ser amante do saber e não de “sophos” (sábio). Costuma-se lembrar, de uma narrativa atribuída a Pitágoras, segundo a qual esse filósofo teria dito aos seus discípulos que três tipos de pessoas participavam dos jogos olímpicos na Grécia, a saber: as que trabalhavam no comércio, com interesses voltados ao lucro; as que buscavam disputar os torneios, os atletas e artistas e aqueles que, sem interesse algum, buscavam compreender o significado das

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coisas e contemplando a realidade, desinteressadamente. Este último é o filósofo, aquele que ama o saber. Essa teria sido a origem da palavra Filosofia e da ideia de filósofo, contada por Marilena Chauí. O que a tradição literária afirma é que a Filosofia foi um fenômeno específico do povo grego e teve continuidade com os povos dominados por ele. O seu momento inicial estaria na própria curiosidade humana (perplexidade), no instante em que algo desperta admiração e exige uma explicação sobre a origem do mundo, dos povos e dos fenômenos da natureza sem recorrer aos mitos ou explicações religiosas. Vale esclarecer que a palavra mito do grego mythos e do latim mythus, aponta, além da acepção geral de narrativa, para três significados distintos, a saber: 1 - forma atenuada de intelectualidade; 2 - forma autônoma de pensamento ou de vida; 3 - instrumento de controle social. Para o pensamento grego, mito significava um discurso ou narrativa considerada verdadeira para seus ouvintes; havia uma relação de confiabilidade entre a pessoa do narrador e os ouvintes, ou melhor, uma crença na autoridade do narrador, chamado de poeta-rapsodo. Os gregos acreditavam que ele fora escolhido pelos deuses e que se tornara o transmissor de suas mensagens, carregadas de valores compartilhados pelo grupo (CHAUÍ, 2001). Assim, palavra proferida pelo poeta, o mito, ganhava uma aura de autoridade, portanto algo inquestionável e incontestável, constituindo-se no ponto central de uma educação ainda por via da oralidade. Sendo assim, a narrativa sobre a origem do mundo foi denominada como genealogia e esta poderá ser considerada uma cosmologia ou teogonia. Será cosmologia quando tratar do nascimento e da organização do mundo, pois gonia vem do verbo gennao e do substantivo genos, assumindo a ideia de geração, nascimento a partir da concepção sexual e do parto. Cosmo quer dizer mundo ordenado. Já teogonia é composta de gonia e theos que significa em grego, seres divinos, deuses. Será teogonia quando a narrativa tratar da origem dos deuses. Por isso que se diz que a Filosofia é vista como uma cosmologia, ou seja, uma explicação racional sobre a origem do mundo e sobre as causas das transformações das coisas (CHAUÍ, 2001). A narrativa mítica foi marcada por profunda formulação de valores cujo fim era a formação humana através de explicações pedagógicas sobre a vida, os procedimentos de determinado grupo social, capaz de instituir e fortalecer os laços integrativos entre os homens. O mito grego carregava na sonoridade de suas palavras, oráculos dos deuses, as façanhas dos heróis como formação moral dos homens: a supremacia do valor helênico como forma de manter sua identidade ante a pluralidade de outros povos (CHAUÍ, 2001). A autoridade do mito sucumbe diante dessa nova explicação que não resulta de uma pessoa física com poderes místicos, como no caso dos poetasrapsodos, mas do poder da razão. A mitologia e suas figuras sobreviveram enquanto se mantiveram vivas na vida cotidiana. Memória, oralidade e tradição foram os componentes indispensáveis para a sua sobrevivência. Assim, a explicação filosófica, que era apenas uma explicação de pessoas que buscavam o

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conhecimento racional, se desenvolveu paulatinamente e permaneceu por muito tempo concomitante às explicações mitológicas que povoavam o imaginário desse mundo antigo. E essa relação permanece até hoje: temos nossos mitos integrativos (CHAUÍ, 2001). No pensamento de Platão e Aristóteles podemos perceber que o mito se contrapõe à verdade ou narrativa verdadeira, embora ao mesmo tempo guarde a verossimilhança que, em certos pontos é a única validade a que o discurso é capaz de aspirar e passar a exprimir o que se pode encontrar de melhor e de mais verdadeiro. Em outras palavras, pode-se dizer que a relação da cultura grega com o mito é muito delicada, uma vez que o mito é visto em alguns momentos como oposto à verdade e, em outros é forma aproximativa do conhecimento verdadeiro. Assim, o advento do pensamento filosófico marcou o aparecimento de uma indagação que passa a rejeitar narrativas mitológicas ou mágicas. No entanto, não se pode negar a íntima relação da mitologia grega com a história da civilização grega, por isso o relato mítico não resulta necessariamente da invenção individual, mas da transmissão de uma cultura por várias gerações e da memória de um povo, o que ressalta a sua dignidade e importância. A Filosofia é, portanto, um fenômeno cultural grego que surgiu no momento de estabilização da sociedade com a consolidação das cidades-estados (polis); um progressivo enriquecimento do comércio e invenção da moeda; expansão marítima que propiciou o surgimento de uma classe mercantil politicamente forte; a invenção do calendário; a própria invenção da política como ideia ética (CHAUÍ, 2001). Na verdade, não há consenso sobre a origem da Filosofia na Grécia antiga, porque muitos estudiosos entendem que os povos do oriente já sistematizavam doutrinas filosóficas antes dos filósofos gregos. Todavia, o que se observa frequentemente é que não se configurou em tais culturas o que ocorreu na Grécia, ou seja, o processo de laicização do saber. Esse processo apresentou características marcantes como, por exemplo, a noção de physis, a ideia de causalidade interpretada a partir de termos naturais, o conceito de arché, a concepção de cosmo racionalmente ordenado, o logos como possibilidade de se explicar o mundo, o caráter crítico capaz de operar profundas mudanças no homem e tantos outros conceitos como política e liberdade (CHAUÍ, 2001). Segundo esforços de notáveis estudiosos da cultura clássica, pode-se afirmar que a civilização e a cultura gregas vivenciaram um ambiente completamente original. Por isso, é interessante observar que foram os romanos que criaram o sentido atual do termo “gregos” como versão depreciativa da palavra “Graeci”. O que a história relata é que os gregos se denominavam “helenos”, aqueles que habitam a Hélade. A Hélade, num sentido cultural e não necessariamente político, se estendia desde o estreito de Gibraltar até a atual Geórgia, na extremidade do mar Negro. Definiam-se assim por uma ancestralidade e língua comuns – falava-se o grego. Aqueles que não falavam o grego eram chamados bárbaros, porque tais línguas balbuciavam sons ininteligíveis como um “bar-bar” (HATZFELD, 1965).

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A pólis grega e a formação de uma nova consciência Antes do advento da polis, a Grécia já apresentava uma vida social intensa. Um dos poetas mais importantes, Homero, autor dos famosos poemas Ilíada e Odisseia que narram as guerras troianas (1260 a 1250 a.C.) e as aventuras de Ulisses, desvela em suas narrativas o entrecruzamento de história, ficção, lenda, mitos e deuses, que segundo pesquisadores exprimem traços da cultura dórica (HATZFELD, 1965). Os dórios oriundos do norte, séculos após as guerras troianas, construíram uma sociedade marcadamente aristocrática que paulatinamente se transformou no que se denomina civilização grega. Segundo muitos historiadores, Homero é considerado o pai da cultura grega por ter sido a sua obra fundamental para a manutenção das tradições. Além de Homero, o pensamento de Hesíodo foi igualmente importante, porquanto marcou uma nova fase da cultura grega. Em sua obra denominada Teogonia, descreveu a criação do mundo, dos deuses e a organização do Olimpo. Em Os trabalhos e os dias narrou o célebre mito das cinco idades da humanidade (HATZFELD, 1965). Por volta do séc. VIII a.C., com a invenção da moeda cunhada, a região vivenciou um renascimento das relações comerciais que resultou na ruína das antigas linhagens tribais e no surgimento de pequenas cidades de agricultores e artesãos. Lentamente se formou uma nova organização sócio-política que, segundo Vernant, destacou a supremacia da razão. Logo, a palavra, o discurso e a razão ganharam grande relevo nessa nova organização social. O discurso tornou-se condição fundamental para a participação nos assuntos públicos. Tal mudança, alinhada à revolução política, ensejou o desenvolvimento do pensamento humano. As discussões políticas, a elaboração das leis, deixaram de ser privilégio da aristocracia, propiciando reflexão racional sobre o poder, legitimidade e leis (HATZFELD, 1965; JAEGER, 1989). A palavra polis, do plural póleis, é de origem grega que expressa a ideia de cidade-estado autogovernada por um espírito que procura ir além das formas privadas de organização do espaço público. Cada polis tinha suas próprias leis de cidadania, cunhagem de moedas, costumes, festivais, ritos etc. Segundo Jaeger, a polis desenhou um novo momento para os gregos, uma nova forma de convivência humana: “A polis é o centro principal a partir do qual se organiza historicamente o período mais importante da evolução grega. Situa-se, por isso, no centro de todas as considerações históricas” (JAEGER, 1989, p. 73). O termo polis propiciou o aparecimento de palavras como político, política e, consequentemente, a ideia de justiça. Com a palavra polis surgiu também o direito de cada cidadão emitir, na esfera pública, o seu pensamento para um possível debate. E valorizou o humano, a discussão, a força do melhor argumento, enfim o próprio desenvolvimento do discurso. Assim, o interesse pela justiça se desenvolveu na vida da polis como um grande valor, semelhante em intensidade à força exercida pelo ideal cavalheiresco dos primeiros estágios da cultura grega aristocrática. A ideia do homem justo assumiu novo locus no pensamento

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grego, isso porque aquele que se determina pela lei cumpre o seu dever. Jaeger acrescenta que a pólis introduziu uma verdadeira mudança no pensamento: “o ideal antigo e livre da arete heroica dos heróis homéricos converte-se em rigoroso dever para com o Estado, ao qual todos os cidadãos sem exceção estão submetidos, tal como são obrigados a respeitar a fronteira entre o próprio e o alheio” (1989, p. 94). Nesse momento, com a mudança das formas de vida, surgiu um novo espírito centrado na vida pública, e a literatura que testemunha a ideia de justiça como fundamento da sociedade humana estende-se desde os tempos primitivos da epopeia, ou seja, do séc. VIII até o séc. VI a.C. Conforme explicação de Jaeger, nos tempos homéricos: Toda manifestação do direito ficou sem discussão na mão dos nobres que administravam a justiça segundo a tradição, sem leis escritas. Contudo, o aumento da oposição entre os nobres e os cidadãos livres, a qual deve ter surgido em consequência do enriquecimento dos cidadãos alheios à nobreza, gerou facilmente o abuso político da magistratura e levou o povo a exigir leis escritas (1989, p. 91).

A reclamação universal pela justiça já figura claramente em Hesíodo e, é através deste poeta, que a palavra direito, dike, se converte no lema da luta entre as classes então existentes. Não temos fonte sobre a história da codificação do direito grego, mas sabe-se ao menos que ao ser escrito assumia o caráter de universalidade. Já em Homero temos o direito como Themis que etimologicamente significa lei. Segundo a narrativa homérica, Zeus ofertava aos reis o cetro e themis. Esta última seria o símbolo da grandeza cavalheiresca dos primitivos reis e nobres homéricos. Na prática, significava que os nobres dos tempos patriarcais julgavam de acordo com a lei procedente de Zeus. As normas que constituíam as leis de Zeus fundamentavam-se no direito consuetudinário e no próprio saber do homem daquela época (HATZFELD, 1965; JAEGER, 1989).

Os Filósofos pré-Socráticos e o pensamento político Comumente tem-se por filósofos pré-socráticos aqueles pensadores que viveram antes de Sócrates (470-399 a.C.), que se tornou marco histórico na Filosofia por inaugurar a reflexão ético-política, diferentemente daqueles que dissertavam sobre o problema da causa primeira na natureza. As suas obras perderam-se na Antiguidade, restando apenas fragmentos e uma extensa doxografia disponível, que apresenta citações e passagens desses pensadores como fonte para o conhecimento do primeiro momento do pensamento filosófico como reflexão racional (HATZFELD, 1965; JAEGER, 1989). Estudiosos relatam que duas escolas dividiram-se em duas concepções filosóficas diferentes. A Escola Jônica interessada na physis, ou seja, Filosofia da Natureza, também chamada de Escola de Mileto cujos expoentes foram Tales, Anaximandro, Anaxímenes e Heráclito de Éfeso. A outra é a Escola Italiana que

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apresentou uma visão de mundo mais abstrata, prenunciando o surgimento da lógica e da metafísica, marcada pelos filósofos Pitágoras, Parmênides, Zenão e Melisso de Samos, entre outros (HATZFELD, 1965; JAEGER, 1989; REALE, 1994). Num segundo momento dessa fase pré-socrática destacam-se os pensadores Empédocles de Agrigento, Anaxágoras de Clazômena e a Escola Atomista, denominados pluralistas e ecléticos, para mencionar os pré-socráticos mais conhecidos. Para interesse de um maior aprofundamento no tema sugere-se a obra do filósofo Gerd Bornheim (1997). Quando se pensa na Grécia Antiga, pensa-se em uma região que compreende o conjunto de várias cidades autônomas entre si. Sabe-se que o berço da Filosofia teria sido a polis de Mileto, situada na região da Jônia, litoral ocidental da Ásia menor, próspera do ponto de vista econômico-comercial. Nessa cidade encontram-se três pensadores pré-socráticos de grande importância: Tales, Anaximandro e Anaxímenes. Esses primeiros filósofos, denominados filósofos da physis, tinham por objetivo construir uma explicação racional e sistemática do universo, tendo por modelo a matemática, pois percebiam a existência de leis gerais e permanentes a reger os fenômenos naturais. Tais pensadores buscavam a matéria-prima, a arché, existente em todos os seres. Seria, portanto, a busca pelo princípio originário, ou substancial de todas as coisas (HATZFELD, 1965; JAEGER, 1989; REALE, 1994). Segundo Pitágoras de Samos, a essência de todas as coisas residia nos números que representavam a ordem e a harmonia. A arché teria uma estrutura matemática que configuraria a origem do finito-infinito, par-ímpar, multiplicidade-unidade etc, enfim, para Pitágoras, ao fim e a ao cabo, a diferença entre os seres repousava sobre os números. Suas contribuições foram numerosas, além da matemática, as concepções da imortalidade da alma, reencarnação, o rigor moral etc. Pitágoras não deixou obra escrita, porém, conforme Porfírio, o que Pitágoras dizia a seus discípulos ninguém: Pode saber com segurança, pois nem o silêncio era causal entre eles. Contudo, eram especialmente conhecidas, conforme o juízo de todos, as seguintes doutrinas: 1) a que afirma ser a alma imortal; 2) que transmigra de uma a outra espécie de animal; 3) que dentro de certos períodos, o que já aconteceu uma vez, torna a acontecer, e nada é absolutamente novo, e 4) que é necessário julgar que todos os seres animados estão unidos por laços de parentesco. De fato, parece ter sido Pitágoras quem introduziu por primeira vez estas crenças na Grécia (BORNHEIM, 1997, p.48).

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Heráclito de Éfeso foi considerado representante do pensamento dialético. Heráclito concebeu o mundo como dinâmico, em inesgotável transformação. Sua escola filosófica foi denominada de mobilista, pois para ele a vida era fluxo constante, impulsionado pela luta de forças contrárias. Acreditava que a luta dos contrários seria o princípio de todas as coisas e por meio dessa luta o mundo se modifica e evolui. Entendeu que o fogo era a arché. Dentre os 126 fragmentos

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existentes como de sua autoria, destaca-se: “Não se pode entrar duas vezes no mesmo rio. Dispersa-se e reúne-se; avança e se retira” (BORNHEIM, 1997, p. 41). Parmênides de Eléia foi um grande opositor de Heráclito. Acreditava que o ser era eterno, único, imóvel e ilimitado. Essa era a ótica da razão, da essência, a via a ser buscada pela filosofia. Por outro lado, a ótica da aparência, da doxa, não desvela a verdade, mas em função do movimento ou vir-a-ser da realidade denota apenas uma aparência enganosa. Parmênides afirmou que: “o ser é; o não-ser não é”. Pensava que o mundo é o lugar das aparências, o mundo da ilusão e que, somente pela razão, no plano lógico, compreendemos a essência da realidade. Para Parmênides “o ser é e o não-ser não é”. Diz-nos um dos seus fragmentos: “Necessário é dizer e pensar que só o ser é; pois o ser é, e o nada, ao contrário, nada é. Pois pensar e ser é o mesmo” (BORNHEIM 1997, p. 55). Uma das grandes contribuições dos estudos de Parmênides e, consequentemente, de Zenão de Eléia, está no campo da reflexão de uma linguagem fundamentada no argumento lógico. Embora a problemática parmenídica pareça, a primeira vista, eminentemente ontológica, o pano de fundo de sua problemática passa pelo rigor dos enunciados, que, por sua vez, implica a mais profunda abstração, o que nos leva admitir Parmênides como aquele filósofo que inaugura, de certa forma, o pensamento metafísico. Empédocles de Agrigento tentou conciliar as ideias de Parmênides com o pensamento de Heráclito, ou seja, conciliar a ideia de essência imutável obtida pela razão com a ideia de movimento, o vir-a-ser, captado pelos sentidos. Acreditou que o elemento primordial era constituído por quatro elementos: o fogo, a terra, a água e o ar. Tais elementos seriam misturados de modos diversos a partir de dois princípios universais, a saber: de um lado, o amor, personificando a ideia de força de atração ou harmonização das coisas; de outro, o ódio, responsável pela desagregação ou separação das coisas. Em um dos seus fragmentos menciona: “não há nascimento para nenhuma das coisas mortais, como não há fim na morte funesta, mas somente composição e dissociação dos elementos compostos: nascimento não é mais do que um nome usado pelos homens” (BORNHEIM 1997, p. 69). O leitor convirá que está claro que a Filosofia desde o seu nascedouro apresentou posturas bem definidas quanto ao seu conteúdo, método e objeto de análise, focalizando a realidade para compreender o verdadeiro sentido de todas as coisas a partir de uma explicação racional sobre a realidade pelo puro desejo de conferir outro significado a todas as coisas e a si mesmo, na medida em que realiza a reflexão. Os antigos compreenderam esse movimento porquanto está radicado na própria natureza humana.

O sentido de justo no período pré-Socrático Para estudiosos como Jaeger (1989) e Rodolfo Mondolfo (1968), a preocupação dos primeiros filósofos teria sido com o universo, ou seja, os présocráticos inauguraram o pensamento filosófico quando iniciaram um estudo

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racional sobre o homem, a vida e a Natureza. Outros estudiosos do pensamento grego revisaram essa tese e concluíram que certa reflexão acerca do mundo dos homens teria precedido à reflexão sobre o mundo físico. Destarte, Truyol y Serra apresenta, nesse sentido, o seguinte argumento: Isto é verdade se tivermos em conta a primitiva concepção helênica do mundo e da vida em sua totalidade, ou seja, incluindo as teogonias míticas. Efectivamente, estas, fundadas num politeísmo antropomórfico, concebem os problemas cósmicos como problemas humanos, o que traz consigo a personificação dos elementos e das forças naturais e a apreensão das suas relações segundo a natureza das relações entre os homens (1985, p. 85-86).

A filosofia do mundo natural precisou trabalhar com categorias nascidas da experiência da vida humana, de uma forma ou de outra expressa na literatura disponível à época, a mitologia. São categorias cuja origem é social: a noção de lei, por exemplo. A imagem da comunidade foi útil para a representação da Natureza. O enigma que perturbava o espírito dos pensadores pré-socráticos era o movimento, a mudança, o que justificou a necessidade de buscar um elemento primordial que permanecesse sempre o mesmo. O homem de então vivia em uma comunidade autárquica e sagrada, espécie de microcosmo. Cada cidade, guardando sua autonomia, apresentava não só peculiaridades jurídico-política, como também dispunha de proteção particular por parte de seus deuses, baseando-se em normas e regulamentações tradicionais de fundamento religioso – nomos (TRUYOL Y SERRA, 1985) Para o preciso entendimento do sentido de justiça construído pelos gregos, é necessário compreender a sua relação com o cosmos. A cultura grega compreendia o universo como um ente organizado e animado. Havia a concepção de uma ordem cósmica, uma estrutura ordenada do universo que é perfeita e divina.2 Nessa ordem e harmonia há o movimento regular dos planetas, a dinâmica da vida em sua mais completa perfeição, a própria existência dos seres até o mais ínfimo dos insetos. Cada membro desse imenso Ser está perfeitamente colocado em seu lugar em harmonia com os outros. Essa estrutura revela o logos, ou seja, a lógica que permite e sustém a harmonia entre os seres. Esse cosmos é justo, harmônico, lógico e racional porque podemos compreender seu movimento (TRUYOL Y SERRA, 1985). Nesse sentido, esclarece Luc Ferry que: Se compreendermos bem os Antigos, o que queriam dizer não tem nada de absurdo: ao afirmar o caráter divino do universo todo, eles exprimiam sua convicção de que uma ordem “lógica” operava por trás do caos aparente das coisas, e que a razão humana poderia trazê-lo à luz (2007, 41).

Trata-se da mesma ideia que será transportada para a dimensão moral do homem. Os gregos viveram sob o imperativo de imitar a perfeição da Natureza

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2 A ideia de divino não se relaciona com aquela dada pelo cristão, mas com o significado de perfeição.

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enquanto justa e boa na vida na polis anunciando uma teoria do justo que desvela a necessidade de uma conduta que respeite essa harmonia, dando a cada um, o que lhe pertence, conforme o seu lugar natural no cosmos. Esse é o modelo de beleza para alcançar a felicidade e a vida boa (FERRY, 2007. p. 41-43). Sob essa ótica, podemos entender por nomos a ideia de ordem da polis, ou seja, as regras morais e os preceitos jurídicos indistintamente misturados. O cuidado com os valores culturais de todas as polis garantia uma convivência pacífica. Não fica difícil perceber que a ideia de justiça significava garantir essa convivência harmônica a partir de uma repressão a tudo que pudesse comprometer a ordem estabelecida. Esse sentido seria alargado diante das novas necessidades que a vida comunitária exigia: estabilidade visando soluções políticas diante de conflitos resolvidos belicamente. Truyol y Serra (1985) aponta, numa visão contrária, que Anaximandro teria deslocado a ideia de justiça da polis para o universo 3 constituído como uma grande polis, ou seja, uma grande comunidade sujeita a uma lei ordenadora, invariável, afirmando a existência de uma justiça cósmica de caráter imanente que preside a geração e a dissolução dos seres particulares. Para este autor, ideias semelhantes seriam usadas mais tarde por Parmênides de Eléia e Empédocles de Agrigento nos poemas que cada qual escreveu, ambos intitulados Acerca da Natureza. Parmênides teria personificado a Justiça nas deusas Themis e Dike entre o dia e a noite, entre a verdade e a opinião. A justiça aparece no seu poema como um princípio estático que assegura a imutabilidade do ser que ele afirma com vigor: “o ser é e o não-ser não é”. Empédocles usa a ideia de justiça para tentar uma explicação do universo; o amor e o ódio como forças originais fazem e desfazem as coisas; a lei estende-se sem alteração (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968). Sabe-se que Pitágoras e Heráclito apresentaram considerações mais explícitas sobre a vida social. Com Pitágoras ganha relevo a preocupação ética e religiosa, crescendo o interesse pela vida sócio-individual, tendo a Filosofia como especulação possível de uma purificação interior. Pitágoras antecipa, também, a relação entre Filosofia e política, cabendo aos seus discípulos, os pitagóricos, os primeiros a organizar uma teoria da justiça no interior de sua doutrina dos números. Desse modo, concebeu os números como essência das coisas e expressão de harmonia e regularidade no sentido específico de totalidade ordenada. Essa harmonia, transposta para a esfera humana, assume o sentido de uma correlação de condutas (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968). Os pitagóricos formularam uma definição de justiça como “aquilo que alguém sofre por algo” – a justiça como uma relação aritmética de igualdade entre dois termos. Esta igualdade aparece como elemento essencial da justiça. Simbolizavam a justiça nos números 4 e 9, porque a multiplicação de um número par (2) por ele mesmo daria 4; a multiplicação de um número ímpar (3) por ele mesmo alcançaria 3 Esta ideia estaria presente no único fragmento existente da obra Sobre a Natureza. Cf. Bornheim, 1997.

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o número 9. A justiça nessa concepção funda-se na ordem natural presidida pelo número (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968). Heráclito associa justiça à ordem universal. Como concebeu a realidade em perpétuo devir; afirmou, ainda que o devir nasce dos contrastes e que este surge da luta, logo o sentido de justiça é luta. Todavia, esse perpétuo fluir é presidido por uma lei eterna e universal, o logos, por sua vez o responsável pela harmonia invisível entre os opostos. Essa unidade realizada pelo logos manifesta-se no fogo, que Heráclito evoca das Erínias, personagens mitológicas servidoras de Dike, que, segundo a narrativa mítica, forçavam o Sol a voltar à órbita se por acaso se afastasse. Assim, por analogia, o logos estaria oferecendo ao homem a norma para a ação correta. Todos os homens participam dessa ordem, embora nem todos a revelem em sua conduta. Essa lei única e divina alimenta a lei humana, conferindo o seu sentido de sagrado e justificando qualquer sacrifício em seu nome. Importa perceber que a moralidade, tanto para os pitagóricos como para Heráclito, fundamenta-se numa lei natural (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968). É preciso ressaltar que na fase pré-socrática se afigurou um suposto direito natural cosmológico de cunho panteísta. Essa filosofia natural pré-socrática conferiu validade à concepção helênica de justo percebida em Hesíodo e Homero. Sabe-se ainda que a ideia de igualdade na reciprocidade, apresentada na narrativa hesiódica, superou o sentido de autoridade expresso nos poemas homéricos na condição de sentido da justiça. Esse predomínio da concepção de Hesíodo aconteceu por ocasião de profundas transformações políticas, econômicas e sociais nos sécs. VII e VI a.C., conduzindo as codificações legais pela liderança de Sólon, legislador e poeta, assinalando em suas Elegias, o conceito de eunomia, ou seja, a ordem equilibrada fundada na justiça. Sólon observou a necessidade de homogeneidade social que excluiria as desigualdades excessivas. A cidade deve ser comum a todos e todos devem se interessar por sua conservação. Sólon fustigou a hybris como a máxima negação da ordem (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968; BORNHEIM, 1997). No âmbito literário, os poetas trágicos como Eurípides, Ésquilo e Sófocles foram os herdeiros dessa concepção de justiça pré-socrática. A lei representa o equilíbrio e a hybris a desmedida. A negação da lei deve ser resolvida com uma sanção conforme o princípio que conhecemos pelo nome de talião: “quem praticou a violência sofrerá violência”. 4 Resgatar o equilíbrio entre o crime e o castigo é função da polis cuja ideia de retribuição está fundada na mais antiga tradição e configura uma legalidade cósmica que para os homens assumia o caráter de férreo destino. Sófocles acrescenta um problema novo: o do antagonismo entre as leis humanas e as leis divinas. Este conflito constitui o núcleo dramático da tragédia Antígona. Este conflito conduz-nos, de certo modo, à filosofia jurídica da sofística, todavia reconheça e enfatize o caráter sagrado das leis não escritas5 (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968; BORNHEIM, 1997).

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4 ÉSQUILO, Agamenon. 5 Chamamos atenção para um ponto interessante: a figura do coro na tragédia Antígona apresenta certo vestígio da antropologia sofística que exalta o homem e suas obras, embora apresente a advertência que a obra humana também poderá gerar um grande mal.

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Heródoto de Halicarnasso transpôs para o âmbito da história a concepção de justiça oferecida pela tradição. Trata-se de uma concepção religiosa de justiça em que os deuses, ansiosos por justiça, procuram manter os homens longe da demasia e dos excessos do orgulho, longe da desmedida. Esse pensador, considerado “pai da história”, apresenta um novo problema: a diversidade das convicções e instituições humanas, ou seja, a relatividade dos costumes, a não universalidade das leis entre as polis, o que de certa forma conduz à problemática sofística ordem (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968; BORNHEIM, 1997). Segundo Aristóteles (Metafísica), Demócrito foi o último dos présocráticos, ou filósofos da physis. A importância de mencioná-lo separado dos demais é que ele inaugura o que denominamos de período sistemático da filosofia helênica que, por sua vez, culminará no pensamento de Platão e Aristóteles. Um estudo sobre os fragmentos de Demócrito permite perceber que sua reflexão ética apresenta aspectos independentes de sua filosofia natural (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968; BORNHEIM, 1997). Sabe-se que Demócrito professou um materialismo mecanicista que considerava os átomos móveis no vazio, elementos últimos da realidade. A tradição atribui a Leucipo a inspiração deste pensamento que a rigor despoja o universo de qualquer concepção divina. Sua ética apresenta um hedonismo esclarecido, pois concebia a felicidade na moderação, na preeminência da alma sobre os sentidos, cuja meta era a eutimia que significava um estado de alma sereno e alegre, de tranquilidade e equilíbrio. O seu individualismo se refletia na esfera da família ao combater o casamento e a paternidade, visto acreditar que tais coisas perturbavam o espírito. Essa concepção não se estendia ao âmbito político, pois compreendia que a prosperidade do indivíduo ligava-se à vida na polis. Daí preocupar-se com questões sobre o bom governo e normas. Demócrito inclina-se a uma aristocracia vinculada ao conceito de sabedoria: em seu modo de ver os melhores deveriam governar (JAEGER, 1989; HATZFELD, 1965; MONDOLFO, 1968; BORNHEIM, 1997).

Considerações Finais Em Filosofia é possível seguir muitos caminhos. Como se observou na Introdução deste breve estudo, intencionou-se tão somente apresentar um trabalho propedêutico que pudesse oferecer uma exposição clara e oportuna, capaz de configurar um apoio útil para posteriores estudos em Filosofia, em especial Filosofia do Direito. Nesse sentido, ressaltou-se alguns autores e doutrinas essenciais para o estudo jurídico-político, porque direta ou indiretamente, influenciaram a construção dos fundamentos do Direito. Por quê? Porque conceberam a ideia de leis naturais, construíram a tese segundo a qual os seres humanos são portadores de direito (ainda que no mundo antigo seja uma norma objetiva), investigaram a legitimidade do poder, a concepção de universalidade e ordem

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presentes na concepção de cosmo e tantos outras. Neste horizonte, pode-se dizer que a Filosofia como fundamentação racional encontra no advento da pólis grega um espaço novo e propício para o seu desenvolvimento; para o nascimento da política que pressupõe a laicização do poder, para a construção da esfera pública, da liberdade dos antigos e etc. Os filósofos naturalistas inauguraram portanto a discussão sobre o justo utilizando as categorias que estavam habitando as mentes de tais homens na vida em sociedade. Ocorre que não nos enganar em afirmar que é preciso abandonar determinados pensadores ou que suas teses não encontrariam ecos em nossa atualidade. Talvez, seja possível afirmar que uma determinada teoria científica seja falsa ou esteja superada, porque é refutada por outra mais complexa – o critério da falseabilidade. Todavia, as teorias filosóficas, desde os pré-socráticos até hoje continuam oferecendo elementos que enriquecem nossa inteligência e nossa reflexão sobre os institutos jurídicos. Nada poderá substituí-la, nem religião, ou qualquer ciência. Desse modo, pode-se dizer que a Filosofia é tão importante para o Direito, quanto a matemática o é para Engenharia. A Filosofia, portanto, nos ensina a pensar e pensar é o oposto de servir. Significa educar o pensamento para reflexão, aperfeiçoar o gosto e, também, formar o caráter para a reabilitação de valores perdidos pelo frenético mundo do ter - individualista. Ler Filosofia é, sem dúvida, nos dizeres de Olgária Matos, na obra Discretas Esperanças, a prática mais nobre da educação humanista, provedora de paciência e consciência quando revisitam nossos medos, esperanças e, sobretudo, quando nos oferecem a assimilação de sentimentos éticos. Filosofar é pensar os caminhos do próprio pensamento como exercício da memória que permanece viva. Significa permitir que o Direito compreenda seus próprios passos, revisite seus institutos de maneira crítica e criativa para que possa fazer sentido no mundo da vida. Agora, é preciso ter tempo. Tempo para afastar-se do ritmo frenético da vida moderna que não abre espaço para reflexão, ou pior, preenchem nossas horas vagas com futilidades engraçadas, situações aversivas, valorizando vidas infames, neutralizando e despolitizando nossa própria liberdade. É preciso recordar Platão quando nos adverte sobre os prisioneiros em sua Alegoria da Caverna, ou Heráclito que nos lembra que uma oportunidade perdida no tempo estará perdida para sempre. De nada servirá um saber (Filosofia) ou uma ciência (Direito) a quem não sabe servir-se dela.

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As novas fronteiras da eficácia dos direitos sociais Guilherme Sandoval Góes1 Márcia Sleiman Rodrigues2

Resumo O papel da Constituição no Brasil vem sofrendo transformações paradigmáticas a partir do fenômeno do ativismo judicial sob os influxos do pós-positivismo. Neste novo contexto dogmático, o presente trabalho analisa as bases teóricas das decisões judiciais referentes aos direitos de segunda dimensão, notadamente os direitos sociais, de modo a verificar como elas foram construídas. Portanto, pode-se dizer que a perspectiva do presente artigo é analisar as novas fronteiras da eficácia dos direitos sociais tendo como fundamento as fórmulas hermenêuticas do neoconstitucionalismo e suas lógicas superadoras do velho exegetismo positivista. Palavras-chave: Análise da eficácia dos direitos fundamentais; Jusfundamentalidade material dos direitos sociais; Ativismo judicial. Abstract The role of the Constitution in Brazil has undergone a paradigmatic transformation from the phenomenon of judicial ativism under the new rules of the pós-positivism. In this new dogmatic context, this article aims to look into the theoretic basis of the judicial decisions to measure the effectiveness of the second-dimension human rights, notably the social rights, in a way to verify how they were built. Therefore, it can be said that the expectation of this article is to analyze the new frontiers of the effectiveness of social human rights, grounded in formulas of hermeneutics and the overcoming logics of old positivist exegetism. Keywords: STF; Fundamentals rights effectiveness analysis; Material jusfundamentality of social rights; Judicial ativism.

Introdução A questão da efetividade dos direitos sociais é, sem nenhuma dúvida, um dos grandes temas do direito constitucional hodierno. Com efeito, é forte 1 Doutor e Mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro UERJ, Coordenador do Curso de Direito do Campus Tom Jobim da Universidade Estácio de Sá (UNESA), Professor de Direito Constitucional e Eleitoral da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), Professor Emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (ECEME), Professor Convidado do Curso de Pós-graduação do Direito da Criança e do Adolescente da UERJ. Chefe da Divisão de Geopolítica e Relações Internacionais da Escola Superior de Guerra (ESG). 2 Doutora em Direito pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Mestre em Direito pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu da Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Cândido Mendes. Docente da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro e da Universidade Estácio de Sá.  Coordenadora de Avaliação da Universidade Estácio de Sá.

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a argumentação de que a efetividade dos direitos constitucionais sociais é dependente dos recursos financeiros do Estado, tendo em vista sua natureza de prestações estatais positivas. É a chamada cláusula da reserva do possível. Além da falta de recursos financeiros do Estado, o texto aberto das normas constitucionais garantidoras de direitos sociais também dificulta a sua efetividade, na medida em que exige a participação de exegeta pós-positivista, cuja tarefa passa a ser a busca de plena efetividade dos direitos sociais, a partir de fórmulas hermenêuticas avançadas do neoconstitucionalismo. Isto significa dizer, por outras palavras, que a força normativa dos direitos sociais fica na dependência de interpretação pós-positiva de juízes progressistas que fazem o direito avançar na direção da plena efetividade dos princípios jurídicos e, não, apenas das regras jurídicas. Ou seja, juízes positivistas acostumados com a aplicação mecânica da lei (pensamento silogístico-subsuntivo-dedutivo) não concretizam direitos sociais no caso concreto, mediante a ponderação de valores. Nesse sentido, a postura positivista reduz e compromete a eficácia jurídica dos direitos sociais, gestando a doutrina minoritária que tenta desqualificar os direitos sociais como verdadeiros direitos fundamentais. Esta é a razão pela qual se professa a expansão das fronteiras hermenêuticas da eficácia dos direitos sociais com espeque na dogmática pós-positivista. Não há outro caminho a trilhar. A dificuldade de chegar-se à plena efetividade dos direitos sociais não minimiza a necessidade de se buscar a normatividade possível, vale dizer a normatividade do seu núcleo essencial. É nesse sentido que o presente artigo almeja estudar esses dois grandes obstáculos da nova dogmática dos direitos fundamentais, quais sejam o conceito de “reserva do possível fática” e o conceito de “reserva do possível jurídica”. Tais óbices enfraquecem a plena efetividade dos direitos sociais, especialmente nestes tempos de globalização neoliberal que busca retomar a engenharia constitucional anterior à Constituição de Weimar de 1919 (Estado mínimo, negativo e absenteísta), daí sua designação de Estado constitucional préweimariano. No entanto, impende destacar, desde logo, que tais obstáculos enfraquecem a efetividade dos direitos sociais, mas, não a retira de modo absoluto, como veremos a seguir. A normatividade do conteúdo jurídico mínimo traçará os parâmetros de atuação hermenêutica de juízes e tribunais na tarefa de concretização dos direitos sociais.

O Conceito de Reserva do Possível Fática É de sabença geral que o constitucionalismo liberal - calcado na sacralização da autonomia privada - gerou um quadro de miséria humana, sem precedentes na História. Com efeito, a engenharia constitucional liberal não teve o condão de garantir a dignidade da pessoa humana, ainda que em sua expressão mínima. Nesse diapasão, é muito importante perceber que nem mesmo os indiscutíveis

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avanços trazidos pela democracia liberal (igualdade formal perante a lei, garantia dos direitos civis e políticos, limitação do arbítrio estatal mediante separação de poderes e muitos outros) foram capazes de criar as condições mínimas indispensáveis ao efetivo gozo dos direitos fundamentais garantidores de vida digna para todos os cidadãos, aí incluídos os hipossuficientes. Em consequência, uma segunda dimensão de direitos é concebida, não como mero instrumento capaz de oferecer liberdade perante o Estado. Mais do que isso, a nova segmentação de direitos é densificadora da justiça social, com caráter de estatalidade positiva, ocupando-se dos direitos sociais necessários para o exercício da verdadeira liberdade, agora assegurada pelo Estado. Por isso, o constitucionalismo dirigente de segunda dimensão tem no núcleo de suas preocupações a formulação de direitos sociais que dêem conta da realização do princípio da dignidade da pessoa humana. Dessarte, a caracterização mais dominante do constitucionalismo social é a garantia da liberdade por intermédio do Estado, tanto no que diz respeito à proteção dos hipossuficientes, quanto na garantia de vida digna para todos. Com isso, superam-se as estruturas e realidades estatais negativo-absenteístas da democracia liberal, inaugurando uma nova fase na teoria da eficácia dos direitos fundamentais. Agora no epicentro jurídico-constitucional do Estado Democrático Social de Direito encontra-se a dignidade da pessoa humana como novo eixo axiológico da dogmática dos direitos fundamentais. Entretanto, assim como o constitucionalismo liberal no primeiro pós-guerra, o dirigismo constitucional também entra em crise a partir do fim da Guerra Fria, que traz na sua esteira a poderosa engenharia constitucional neoliberal. Neste novo contexto dito pósmoderno, a força expansiva do imperialismo capitalista começa a reestruturar a saída da intervenção do Estado nas relações jurídicas privadas. Para o novo século XXI, sob a ótica neoliberal, necessário se faz a redução jurídica do Estado e, na sua esteira, a mitigação da segunda dimensão de direitos. Com o advento da queda do muro de Berlim em 1989 (divisor de águas entre o colapso do welfare state e o surgimento do Estado neoliberal pós-moderno), a efetividade dos direitos sociais até então existente entra em declínio em virtude da globalização da economia. Do ponto de vista da intervenção do Estado no domínio privado, duas mudanças de paradigma deram-lhe nova dimensão: a) o retorno à estatalidade mínima e b) o retorno ao arquétipo constitucional pré-weimariano. O primeiro paradigma traz na sua esteira a desconstrução do Estado de Bem-Estar Social (Welfare State) e o segundo a mitigação dos direitos sociais e trabalhistas. Nesse sentido, passou a ser premissa do Estado Neoliberal de Direito o reconhecimento da insuficiência de recursos financeiros estatais para atender a todas as demandas sociais constantes em uma Constituição Dirigente. Trata-se, pois, da “reserva do possível fática”, também denominada de “reserva do possível propriamente dita” e aqui interpretada como essa falta de recursos financeiros do Estado para atender todas as demandas sociais.

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No sentido hermenêutico, a efetividade ou eficácia social dos direitos sociais perde em forte medida seu prestígio, na medida em que o antigo sistema constitucional welfarista é substituído pelo novo paradigma neoliberal de corte pré-weimariano, vale explicar, mais uma vez, retorno ao estado constitucional liberal pré-Constituição de Weimar de 1919. 3 Em virtude de sua própria natureza de prestações positivas que reclamam do Estado ações afirmativas de proteção socioeconômica, a efetividade dos direitos sociais fica à mercê da reserva do possível fática, caracterizada pela dependência real dos recursos disponíveis no orçamento público. É a estatalidade mínima préweimariana que exige a saída do Estado da área social. Os parcos recursos estatais devem ser concentrados em áreas críticas como segurança pública e educação. O restante deve ser movido a talante do mercado. Portanto, a juridicidade para além do núcleo essencial dos direitos sociais é remetida para a esfera programática, cuja concretização efetiva fica subordinada ao legislador democrático ordinário, responsável pela formulação de políticas públicas em função da disponibilidade de recursos financeiros do Estado. Caberia ao legislador democrático realizar as escolhas dramáticas envolvendo o orçamento público. De tudo se vê, por conseguinte, que a reserva do possível fática estará sempre a condicionar a concretização dos direitos sociais em sua plenitude, atuando mesmo como verdadeira barreira financeira à sua eficácia social. É preciso, pois, reconhecer que o princípio da reserva do possível fática tem grande força retórico-argumentativa na defesa do Estado, o que, evidentemente, enfraquece a efetividade dos direitos sociais, dado que o orçamento público não tem condições de atender aos vultosos volumes de recursos necessários para atender a todas as demandas da sociedade. Eis aqui a razão pela qual parte da doutrina nega jusfundamentalidade material aos direitos sociais, na crença de que a realização efetiva desses direitos tem que enfrentar as limitações econômico-financeiras do Estado (reserva do possível fática). Nesse sentido, Ernst-Wolfgang Böckenförde, por exemplo, afirma que a impossibilidade econômica do Estado se apresenta como um limite necessário aos direitos fundamentais.4 Sem embargo do correto entendimento de que os direitos sociais são dependentes dos recursos financeiros do Estado, acreditamos, no entanto, que é preciso ponderar o princípio da reserva do possível fática com o princípio da dignidade da pessoa humana. É nesse diapasão que a invasão do poder judiciário no espaço discricionário das decisões legislativas será democraticamente legitimada, notadamente quando

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3 Com isso, a ordem constitucional pré-weimariana assume ares de pensamento único na sociedade pós-moderna pela implantação incontestável de uma nova era de desregulamentação, cujas consequências principais são a relativização do conceito de soberania estatal e o retorno do Estado Mínimo. 4 BÖCKENFÖRDE, Ernst-Wolfgang. Escritos sobre derechos fundamentales. Tradução Juan Luis Requejo Pagés e Ignácio Villarverde Menéndez. Nomos Verlagsgesellschaft: BadenBaden 1993. p. 65-68.

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em jogo as condições mínimas para a garantia de vida digna para todos. No dizer do Ministro Celso de Mello: Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível - não pode ser invocada, pelo Estado, com a finalidade de exonerar-se do cumprimento de suas obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.5

Portanto, muito embora a teoria da “reserva do possível fática” projete de modo coerente a ideia de que os direitos sociais - na qualidade de direitos estatais prestacionais - ficam sujeitos àquilo que a comunidade aberta de intérpretes da Constituição pode razoavelmente exigir, é induvidoso, por outro lado, que a escassez de recursos financeiros não pode ser considerada limite fático invencível no que tange à plena concretização dos direitos sociais. Refuta-se, pois, a tese de que os direitos sociais são meros comandos objetivos axiológicos (Böckenförde). Sufragar tal tese jurídica, é aceitar passivamente o esvaziamento ético da Constituição, é consentir com a neutralização dos direitos fundamentais de segunda dimensão, é negar o caráter deôntico do Direito enquanto sistema de moral com plena capacidade de moldar a realidade fática e não apenas representá-la de alguma maneira;6 é abandonar os hipossuficientes à sua própria sorte. É nesse sentido que se deve reconhecer a expansão das fronteiras hermenêuticas da eficácia dos direitos sociais: ativismo judicial benigno capaz de garantir vida digna para todos. O constitucionalismo dirigente, por si só, não é capaz de revivificar o Welfare State, derrotando o neoliberalismo garantista, cuja lógica dogmática professa a predominância do princípio da reserva do possível fática em detrimento da proteção dos hipossuficientes, da igualdade material e da dignidade da pessoa humana. De observar-se, pois, que o princípio da reserva do possível fática desafia a dogmática contemporânea dos direitos fundamentais que se vê impelida a construir fórmulas hermenêuticas avançadas com latitude científica capaz de garantir o conteúdo jurídico mínimo das normas constitucionais garantidoras de direitos sociais. 5 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF 45 - arguição de descumprimento de preceito fundamental. Requerentes: Partido da Social Democracia Brasileira – PSDB. Intimado: Presidente da República. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, DF, 29 de abril de 2004. Disponível em: . Acesso em: 29 set. 2011. 6 Na feliz síntese de Gustavo Amaral: “O direito é deôntico por essência e, como tal, visa a transformações sociais. O homicídio é previsto como crime porque existe no mundo dos fatos e porque se pretende que não mais exista, numa indisfarçável tentativa de mudança da realidade social”. AMARAL, Gustavo. Interpretação dos direitos fundamentais e o conflito entre poderes. In: TORRES, Ricardo Lobo(Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 110.

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Nesse passo, surge uma nova fronteira no âmbito da teoria da eficácia dos direitos fundamentais, cujo eixo gira em torno do ativismo judicial garantidor de direitos sociais, sem dependência de leis infraconstitucionais supervenientes. Com foco na concretização de direitos subjetivos atrelados a um núcleo essencial garantidor das condições mínimas de vida digna dos hipossuficientes, desponta a nova fronteira da eficácia dos direitos sociais. No dizer de Guilherme Sandoval Góes7, Em suma, o decisor ao enquadrar sua norma-decisão no espectro da eficácia nuclear positiva optou por garantir a efetividade do conteúdo mínimo dos direitos constitucionais, direta e imediatamente da própria norma constitucional, ou seja, a partir da incidência dos fatos portadores de juridicidade sobre o texto da norma sendo efetivamente concretizada. O conteúdo ainda que mínimo do direito foi realizado em conformidade com a vontade constitucional de assegurar às normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais (art.5 § 1º)8 a aplicação imediata. De observar-se, por conseguinte, que a eficácia nuclear positiva garante apenas a efetividade de um direito subjetivo constitucionalmente garantido em sua essência mínima, no seu valor conteudístico mínimo. Para além deste espectro normativo, já se terá que adentrar a zona de ponderabilidade com a aplicação de uma das técnicas de ponderação (...)

Portanto, é importante compreender que a dificuldade representada pela “reserva do possível fática” não pode inibir a percepção de que os direitos sociais são sim direitos subjetivos, capazes de gerar posição jusfundamental diretamente sindicável perante o poder judiciário, sem necessidade de intervenção legislativa superveniente. Atento às disparidades econômicas existentes no seio da sociedade brasileira, o direito constitucional não pode condicionar a realização dos direitos sociais à existência de recursos financeiros do Estado. Ou seja, submeter a eficácia dos direitos sociais à reserva do possível fática significa reduzir a eficácia destes direitos à zero, desqualificando-os em sua jusfundamentalidade material assegurada pela nossa Carta Ápice.9 Sob este

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7 GÓES, Guilherme Sandoval. Neoconstitucionalismo e dogmática pós-positivista. In: BARROSO, Luis Roberto. A reconstrução democrática do direito público no Brasil. Rio de Janeiro. Renovar, 2007. p. 136. 8 De certo modo, podemos dizer que o art. 5º, § 1º da CF/88 enquanto garantidor da aplicação imediata das normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais informa a dimensão positiva do núcleo essencial, ou seja, não importa se um direito constitucional foi insculpido na forma de uma norma de eficácia limitada ou norma programática, seu conteúdo mínimo tem aplicação imediata, sem necessidade de regulação por parte do legislador e sem necessidade de se fazer ponderação de valores com outras normas constitucionais. 9 Com rigor, no âmbito do neoconstitucionalismo, não pode prevalecer a tese da insuficiência financeira do Estado como justificativa de impedir a criação jurisprudencial do direito. Não se pode olvidar que a norma constitucional tem por escopo moldar a realidade, e, não, apenas regulamentá-la. Não faria nenhum sentido hermenêutico negar ao poder judiciário a possibilidade de concretizar os direitos sociais em determinados casos concretos. Muito embora os juízes não sejam eleitos pelo povo, o fato é que sua atuação garantirá a efetividade dos direitos sociais, cuja omissão inconstitucional do legislador democrático pode mesmo chegar a ponto de esvaziá-los completamente.

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prisma, a postura dogmaticamente avançada de juízes e tribunais deve ser dotada de elasticidade normativa material suficiente para realizar o sentimento constitucional de justiça, independentemente da cláusula da reserva do possível fática. Em um verdadeiro Estado Democrático de Direito, a criação do direito pelos juízes e tribunais, muito embora seja limitada pelo princípio da separação de poderes, não pode desconsiderar o esvaziamento ético da Constituição, esvaziamento este feito, muitas vezes, em nome do postulado da reserva do possível fática. Em consequência, não pode prosperar a tese da reserva do possível fática como obstáculo intransponível à efetividade dos direitos sociais, notadamente nesses tempos de leitura axiológico-indutiva da Constituição e da reconstrução principialista neoconstitucional que reaproxima o direito da ética. De outra banda, há que se reconhecer que a superação da tese da reserva do possível fática (impossibilidade financeira do Estado para atender a todas as demandas sociais de uma determinada comunidade política) deve limitarse à garantia do conteúdo mínimo essencial dos direitos sociais, sem o que correríamos o risco de transformar a Constituição brasileira em mera folha de papel, tal qual preconizado por Lassalle. Para além desse espectro mínimo, o debate democrático sobre a escassez relativa de recursos financeiros do Estado (formulação de políticas públicas) deve ser conduzido pelo legislador democrático. Em regra, não cabe ao poder judiciário penetrar na esfera de discricionariedade de escolhas políticas feitas pelos representantes do povo (poder legislativo e poder executivo). Porém, a alegação de escassez de recursos financeiros do Estado não tem latitude normativo-jurídica suficiente para impedir que o Poder Judiciário garanta o conteúdo mínimo dos direitos sociais. Nesse sentido, há que se reconhecer que não seria correto deixar, no atual contexto político brasileiro, os direitos fundamentais sociais sob absoluta subordinação à cláusula da reserva do possível fática. Daí se vê que a criação jurisprudencial do direito (ativismo judicial) potencializa o conceito de um verdadeiro Estado Democrático de Direito, no qual a nova teoria pós-positivista da eficácia da Constituição tem a missão de garantir a efetividade dos direitos fundamentais sociais, especialmente quando em jogo o conteúdo mínimo desses direitos. Em conclusão, pode-se afirmar que o conceito de reserva do possível fática não deve impedir a criação jurisprudencial do direito, feita para garantir o conteúdo jurídico mínimo dos direitos fundamentais sociais. Essa é a nova fronteira da eficácia dos direitos sociais.

O Conceito de Reserva do Possível Jurídica Para além da questão da reserva do possível fática, existe ainda, no âmbito do direito constitucional brasileiro, a chamada reserva do possível jurídica, ou seja, mais uma limitação à plena efetividade dos direitos sociais e desta feita com base em prescrição constitucional. Trata-se das normas constitucionais que regulam o orçamento público (artigos 165, 166, 167, 168 e 169 da Constituição de 1988). Com efeito,

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nossa Carta Magna atribui ao poder legislativo a competência para aprovar as leis orçamentárias (plano plurianual, lei de diretrizes orçamentária e lei do orçamento anual), cuja iniciativa é privativa do Presidente da República, chefe do poder executivo. Isso significa dizer que o poder judiciário não tem legitimidade constitucional para participar da elaboração orçamentária, salvo naquilo que tange à sua autonomia financeira, administrativa e funcional. Ou seja, a fixação de políticas públicas (escolha dramática de prioridades dentro do orçamento público) se encontra no campo discricionário dos poderes legislativo e executivo, responsáveis pela elaboração das leis orçamentárias que regulam os gastos públicos. Não cabe, em regra, ao poder judiciário criar despesas no orçamento público, colocando sua própria vontade política acima da vontade política do legislador democrático. Com rigor, o ativismo judicial – ainda que garantidor de direitos a prestações positivas do mínimo existencial – simboliza autorização de gastos públicos sem que haja expressa previsão legislativa para tanto. Portanto, o conceito de reserva do possível jurídica fica atrelado ao fato de que o poder judiciário não está autorizado constitucionalmente a participar do devido processo legislativo orçamentário. Nesse sentido, Ricardo Lobo Torres capta, com maestria reflexiva, o significado democrático do orçamento público, quando o define como: O documento de quantificação dos valores éticos, a conta corrente da ponderação dos princípios constitucionais, o plano contábil da justiça social, o balanço das escolhas dramáticas por políticas públicas em um universo fechado de recursos financeiros escassos e limitados.10

É nesse diapasão que exsurge, pois, o conceito de reserva do possível jurídica. Nas palavras de Mauro Cappeletti: Atenta a isto, a doutrina refratária aos direitos estatais prestacionais aventou, em adição à reserva do possível fática, a reserva do possível jurídica. Mesmo que o Estado disponha, materialmente, dos recursos necessários a um determinado direito prestacional, e ainda que eventual dispêndio destes recursos não obstaculize o atendimento a outro interesse fundamental, não disporia o Judiciário de instrumentos jurídicos para, em última análise, determinar por via oblíqua, uma reformulação do orçamento, documento formalmente legislativo para cuja confecção devem se somar, por determinação constitucional, os esforços do Executivo e do Legislativo.11

No entanto, é preciso compreender que, muito embora a feitura das leis orçamentárias não seja da competência de juízes e tribunais, a

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10 TORRES, Ricardo Lobo. A cidadania multidimensional na era dos direitos. In: TORRES, Ricardo Lobo (Org.). Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001. p. 282-283. 11 CAPPELETTI, Mauro. O controle judicial de constitucionalidade das leis no direito comparado. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 1999. p. 20.

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dogmática pós-positivista oferece o mesmo tratamento da cláusula da reserva do possível fática, qual seja o ativismo judicial garantidor do núcleo essencial dos direitos fundamentais sociais deve prevalecer amparado pela comunidade aberta de intérpretes da Constituição, tal qual vislumbrado por Peter Häberle. 12 Com isso, afasta-se a reserva do possível jurídica como freio hermenêutico à criação jurisprudencial do direito, abrindo-se a possibilidade de o poder judiciário autorizar despesas sem a devida previsão nas leis orçamentárias. Sob a ótica da dogmática pós-positivista, é lícito ao poder judiciário criar jurisdicionalmente norma outorgando determinado direito social sem que haja sua previsão em lei orçamentária prévia. Há que se considerar nesse sentido, que a Constituição atribuiu ao poder judiciário a guarda da Constituição.13 Eis aqui mais uma nova fronteira hermenêutica da eficácia dos direitos sociais: a reserva do possível jurídica não pode impedir que magistrados - por intermédio da sua atividade jurisdicional normal - tenham o poder de formular políticas públicas focadas na garantia do núcleo essencial dos direitos fundamentais, notadamente da dignidade da pessoa humana, como novo eixo axiológico do Estado de Direito. Mais uma vez destaca-se a importância do ativismo judicial na concretização dos direitos estatais prestacionais, isto é, determinando despesas e agindo como se legisladores positivos fossem, sem levar em consideração as limitações constitucionais impostas ao processo legislativo atinente ao orçamento público, juízes e tribunais ganham legitimidade democrática para formular políticas públicas no lugar do legislador democrático, sempre legitimados, entretanto, pela comunidade aberta de intérpretes da Constituição. Com efeito, sem embargo da coerência teórico-conceitual da reserva do possível jurídica, não se pode, de outra banda, abandonar os direitos sociais à própria sorte. É nesse diapasão que desponta a nova fronteira da teoria da eficácia dos direitos fundamentais, vale explicitar, a plena sindicabilidade dos direitos sociais prestacionais perpassa necessariamente pela postura ativa de juízes e tribunais na entrega da prestação jurisdicional, voltada para a realização da justiça social e da dignidade da pessoa humana. Isto significa dizer que o poder judiciário deve sim determinar despesas necessárias para a garantia do conteúdo jurídico mínimo dos direitos sociais prestacionais. Na lição de Marcos Maselli Gouvêa: “Sustentar o reconhecimento judicial dos direitos prestacionais exige, assim, legitimar a disposição dos limitados recursos orçamentários pelo Poder Judiciário”. 14 12 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997. 13 Esta é a razão pela qual o poder judiciário pode imiscuir-se no jogo democrático do processo político propriamente dito, desconsiderando a cláusula da reserva do possível jurídica e substituindo a vontade majoritária dos representantes do povo pela sua própria. 14 GOUVÊA, Marcos Maselli. O controle judicial das omissões administrativas: novas perspectivas

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Em suma, reconhecer a jusfundamentalidade material dos direitos sociais implica na aceitação da criação jurisprudencial do direito independentemente de previsão legislativa. Assim, o topos argumentativo é a superação da cláusula da reserva do possível jurídica feita em prol da garantia do conteúdo jurídico mínimo dos direitos sociais. Portanto, o leitor deve compreender que, pela busca de efetividade dos direitos sociais, o poder judiciário – superando sua dificuldade contramajoritária - ganha legitimidade democrática para concretizar, por via oblíqua, o conteúdo jurídico mínimo dos direitos sociais É preciso, pois, avançar na direção da reconstrução neoconstitucional do direito, na qual a concretização judicial dos direitos prestacionais devidos pelo Estado seja uma realidade. Em linhas gerais, o método exegético pós-positivista tem o mérito de impor uma nova fronteira para a eficácia dos direitos sociais. Não se pode negar que a superação do conceito da reserva do possível jurídica (falta de previsão constitucional da participação do poder judiciário na elaboração das leis do orçamento público) exige exegese avançada calcada na vertente do direito superador da lei de Karl Larenz. 15 É imperioso compreender que o direito superador da lei materializa a força normativa dos princípios constitucionais a partir de uma visão que ultrapassa a letra da lei (direito extra legem), mas, permanece limitado pelos valores éticos da ordem jurídico-constitucional vigente (direito intra jus). Com isso, o arcabouço hermenêutico de Karl Larenz evidencia que o direito é mais do que a norma posta pelo legislador democrático (direito extra legem), porém, limitado pelos valores constitucionalmente garantidos pela ordem jurídica vigente (direito intra jus). Enfim, este é o novo marco dogmático que deve prevalecer no que tange à eficácia dos direitos sociais.

Conclusão

A reconstrução neoconstitucionalista parte de uma visão sistêmica do direito, na qual desponta a leitura axiológico-indutiva da Constituição. É nesse sentido que a nova interpretação constitucional coloca em conexão a decisão judicial e sua aceitabilidade pela comunidade aberta de intérpretes da Constituição (Peter Häberle). Assim, como acabamos de constatar, a nova interpretação constitucional não se limita ao texto da norma pelo legislador democrático (direito imanente

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de implementação dos direitos prestacionais. Rio de Janeiro: Forense, 2003. p. 21. 15 Com efeito, em sede de direitos prestacionais, é imperioso buscar contraargumentos extralegais que justifiquem a intervenção do poder judiciário na esfera discricionária dos demais poderes, sem, porém abandonar o terreno jurídico. Eis aqui o cerne da nova metodologia superadora da lei que nas palavras do próprio Larenz: “trata-se, portanto, de um desenvolvimento do direito certamente, extra legem, à margem da regulação legal, mas, intra jus, dentro do quadro da ordem jurídica global e dos princípios jurídicos que lhe servem de base”. LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução José Lamego. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1968. p. 502.

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à lei), ao contrário, vai buscar no quadro global de princípios ético-jurídicos (direito intra jus) sua fonte de legitimação a partir da solução do caso concreto. É por isso que o novo marco da eficácia dos direitos sociais se pauta em duas grandes mudanças de paradigma, a saber: a) alegação de falta de recursos financeiros do Estado não pode impedir a concretização do conteúdo jurídico mínimo dos direitos sociais pelo poder judiciário (superação da reserva do possível fática); b) alegação de que o poder judiciário não tem legitimidade democrática para formular política pública no lugar do legislador também não afasta o ativismo judicial focado na concretização dos direitos sociais mínimos atrelados à dignidade da pessoa humana e ao mínimo existencial (superação da reserva do possível jurídica). Com efeito, não se pode negar que a efetivação de um “direito constitucionalmente aberto” exige cada vez mais exegese avançada e “principialista”, cuja solução vem de fórmulas hermenêuticas pós-positivistas. Tal exegese avançada é necessária exatamente porque a consolidação da força normativa de princípios constitucionais abertos e conflitantes entre si enfrenta grandes óbices, tais como os conceitos de reserva do possível (fática e jurídica) dificultando a criação do direito pelo juiz ao interpretar a Constituição dentro de um caso concreto. Não se pode olvidar que a norma constitucional é norma jurídica e nessa condição é capaz de gerar diretamente um direito subjetivo ao cidadão comum. Não faria nenhum sentido hermenêutico negar ao poder judiciário a possibilidade de concretizar os direitos sociais em nome da tão propalada reserva do possível, seja a fática, seja a jurídica.

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A Questão da Verdade: Investigações em Heidegger Cleyson de Moraes Mello1 Resumo É necessário o esclarecimento da experiência do direito como (um) modo de ser-pensar do homem. Daí a necessidade de compreender o Direito a partir do ser-nomundo. Especialmente interessante é refletir o direito compreendido a partir do homem (pessoa) em seu próprio acontecer, historicamente situado. É na medida em que o ser-aí humano existe como fundamento do direito – e somente nesta medida -, é que o julgador poderá compreender a questão prévia do ordenamento jurídico pautado nos elementos da historicidade, mundanidade e personalisticidade. Palavras-chave: Direito; Verdade; Pessoa; Fundamento do direito; Heidegger. Sintesi È necessario chiarire l’esperienza di diritto (un modo) di essere uomo di pensiero. Di qui la necessità di comprendere il diritto da essere nel mondo. Particolarmente interessante è quello di riflettere il diritto periodo dall’uomo (persona) nel suo caso, storicamente situata. In quanto dell’essere-ci umano, vi è il fondamento del diritto - e solo in tal senso - è che il giudice può comprendere l’obiezione del sistema giuridico guidati da elementi di storicità, mondanità e personalistico. Parole-chiave: Diritto. Verità. Persona. Fondamenti del diritto. Heidegger.

Como é possível saber algo da verdade própria acerca do direito, quando não conhecemos a sua própria essência, para decidirmos? Deste modo, torna-se claro que “não podemos ir diretamente até ás próprias coisas; não porque ficássemos detidos no caminho, mas porque as determinações a que chegamos e que atribuímos às próprias coisas – espaço, tempo, o ‘isto’ – se apresentam como determinações que não pertencem à própria coisa.”2 1 Professor Adjunto da Faculdade de Direito da UERJ; Doutor em Direito pela UGF-RJ; Mestre em Direito pela UNESA; atualmente é professor universitário (graduação e Pós-graduação). É professor do Programa de Mestrado em Direito da UNIPAC - Juiz de Fora MG. É Diretor Adjunto da Faculdade de Direito de Valença - FAA/FDV. Professor Titular da Universidade Estácio de Sá. Professor Adjunto da Unisuam. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Teoria do Direito e Direito Civil, atuando principalmente nos seguintes temas: introdução ao estudo do direito, direito civil, filosofia do direito, fundamento do direito, hermenêutica jurídica e filosófica (Heidegger e Gadamer) e Metodologia da Pesquisa; Advogado; Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros – IAB; Membro do Instituto de Hermenêutica Jurídica – Porto Alegre – RS. Membro da Academia Valenciana de Letras. Membro do Instituto Cultural Visconde do Rio Preto. Vice-Presidente da Academia de Ciências Jurídicas de Valença-RJ. Autor e coordenador de diversas obras jurídicas. 2 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: Parte I. Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback.12. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p.35.

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O direito não pode ser visto como um objeto dissociado dos elementos espaço, tempo e essência. Qual a melhor resposta a ser dada pelo magistrado? O Direito permanecerá opaco, velado, escondido, em sombras, se o juiz não buscar a sua essência, não caminhar em direção a sua verdade, em direção à “coisalidade da coisa”. Verdade e essência estão, pois, relacionadas. Neste sentido, Heidegger ensina que “não há nenhuma informação acerca da coisalidade da coisa sem o saber acerca de que tipo é aquela verdade em que a coisa se encontra; acerca da verdade da coisa não há nenhuma informação sem o saber da coisalidade da coisa, cuja verdade está em questão.”3 Mas agora se pergunta: em que consiste a coisalidade da decisão judicial? A coisalidade desta coisa (decisão judicial) é um caminhar na direção da própria e verdadeira essência do direito. A hermenêutica funciona como uma autêntica ponte; é o lócus hermenêutico para o atingimento deste desiderato. A construção de um novo espaço hermenêutico é fundamental para se compreender as razões pelas qual o fenômeno jurídico se desvela, na medida em que se aproxima do mundo da vida (mundo vivido). A fundamentação da verdade da própria coisa se encontra nada menos que na própria essência da verdade.4 Para Heidegger o que se quer dizer por verdade? O filósofo ensina que “é verdadeiro aquilo que tem validade. Vale aquilo que concorda com os fatos. Qualquer coisa concorda quando se dirige aos fatos, quer dizer, quando ‘toma a medida’ (anmisst) tendo por base o que as coisas são. A verdade é, portanto, conformidade com as coisas. Certamente, não são apenas as verdades particulares que se devem conformar com as coisas particulares, mas a própria essência da verdade. Quando a verdade é conformidade, dirigir-se para ..., isto, sem dúvida, deve, em primeiro lugar, valer para a determinação essencial da verdade: ela deve conformar-se com a essência das coisas (a coisalidade).”5 A questão do ser e da verdade estão intrincados no pensamento de Heidegger, ou seja, a caracterização da verdade do homem como a instauração da verdade do ser. Se para toda a tradição metafísica do Ocidente a verdade é predicativa6, isto é, um processo de conformidade, de conveniência e adequação, que se desenvolve originariamente no juízo, entre o conhecimento e o ente, a verdade manifestativa é o Ser em seu significado existencial e a condição de sua possibilidade cifra-se numa manifestação do ser do ente. Há um primado da verdade manifestativa7 sobre a verdade predicativa.

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3 Ibid., p.35-36. 4 Ibid., p.42. 5 Ibid. 6 Chama-se predicativo o uso do verbo ser como cópula de uma proposição, ou seja, em seu significado não existencial. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Tradução Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p.787. 7 Chama-se manifestação o mesmo que expressão, revelação ou fenômeno, no sentido

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Ora, é no contexto da analítica existencial heideggeriana que o problema da verdade exsurge em Ser e Tempo. No § 44 da referida obra, Heidegger discute o fenômeno da verdade no âmbito da problemática ontológica fundamental. O filósofo determina que “se verdade encontra-se, justificadamente, num nexo originário com o ser, então o fenômeno da verdade remete ao âmbito da problemática ontológica fundamental. [...] O ser-verdadeiro (verdade) da proposição deve ser entendido no sentido de ser-descobridor.” 8 9 Verifica-se, pois, que Heidegger relaciona de forma direta a constituição fundamental do Dasein com o fundamento do fenômeno originário da verdade, negando, de certa maneira, que a verdade possua uma estrutura de concordância entre o sujeito e objeto. Através de Heidegger, a “definição” proposta da verdade assume uma conotação de apropriação originária. Heidegger diz que a “definição” de verdade nasce da análise dos comportamentos da pre-sença (Dasein), que se chama “verdadeiros”. Vejamos:10 “Ser-verdadeiro enquanto ser-descobridor é um modo de ser da pre-sença. O que possibilita esse descobrir em si mesmo deve ser necessariamente considerado “verdadeiro”, num sentido ainda mais originário. Os fundamentos ontológico-existenciais do próprio descobrir é que mostram o fenômeno mais originário da verdade. Descobrir é um modo de ser-no-mundo. A ocupação que se dá na circunvisão ou que se concentra na observação descobre entes intramundanos. São estes o que se descobre. São “verdadeiros” num duplo sentido. Primordialmente verdadeiro, isto é, exercendo a ação de descobrir, é a pre-sença. Num segundo sentido, a verdade não diz o ser-descobridor (o descobrimento) mas o ser-descoberto (descoberta).” Heidegger procura mostrar que a essência da Verdade no plano ontológico fundamental da analítica existencial se funda na abertura do mundo. Somente com esta é possível o alcançamento do fenômeno mais originário da verdade. O filósofo afirma no citado parágrafo 44 de Ser e Tempo que a pre-sença (Dasein) é e está na verdade, indicando seu sentido ontológico-existencial.11 positivo deste último termo. ABBAGNANO, op.cit., p. 641. 8 HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo: Parte I. Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback.12. ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p.281-287. 9 Segundo Heidegger, o conceito tradicional da essência da verdade é caracterizado da seguinte forma: 1. O “lugar” da verdade é a proposição (o juízo). 2. A essência da verdade reside na “concordância” entre o juízo e seu objeto. 3. Aristóteles, o pai da lógica, não só indicou o juízo como lugar originário da verdade, como também colocou em voga a definição da verdade como “concordância”, Ibid., p.282. 10 Ibid., 2002. p.288. 11 No mesmo sentido, Stein destaca que “já no parágrafo 44, Dasein, abertura e verdade, Heidegger afirma que o ‘o Dasein está na verdade’. E acrescenta, ainda, que ‘este enunciado tem um sentido ontológico’, mas que, no entanto, ‘faz parte de sua constituição existencial a abertura de seu ser mais próprio’. As consequências da destruição ou desconstrução (Abbau) da metafísica implicam um novo conceito de verdade, em que esta já sempre acontece, como abertura, como o modo de ser-no-mundo do Dasein e, assim, é condição de possibilidade da verdade dos enunciados. É por isso que o filósofo pode afirmar: ‘Não é o enunciado o lugar da verdade, mas a verdade é o lugar do enunciado.” STEIN, Ernildo. Pensar e Errar um ajuste com Heidegger. Ijuí, Unijuí, 2011, p.50.

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Por conseguinte, o filósofo sustenta que no seio da verdade habita uma relação essencial a algo de semelhante como “fundamento”, isto é, necessariamente o problema da verdade está relacionado ao problema do fundamento. Assim, Heidegger ensina que “quanto mais originariamente nos assenhorearmos da essência da verdade, tanto mais urgente se deve tornar o problema do fundamento.”12 Dessa forma, a verdade ontológica é o próprio desvelamento como verdade sobre o ser. Na obra a Essência do Fundamento, o filósofo afirma que só o desvelamento do ser possibilita a revelabilidade do ente.13 Portanto, a diferença ontológica entre ser e ente ganha destaque na filosofia heideggeriana: “Os possíveis estádios e variedades da verdade ontológica no sentido mais lato desvendam ao mesmo tempo a riqueza do que, como verdade originária, está na base de toda a verdade ôntica. O desvelamento do ser, porém, é sempre verdade do ser do ente, quer este seja efectivamente real ou não. E vice-versa, no desvelamento do ente reside já sempre um desvelamento do seu ser. A verdade ôntica e ontológica referem-se, de modo diverso respectivamente, ao ente no seu ser e ao ser do ente. São essencialmente solidárias em razão da sua referência à diferença entre ser e ente (diferença ontológica).” 14 É nessa direção que nos encaminha Heidegger com sua filosofia. O homem não pode ser visto como uma coisa simplesmente dada, de forma objetiva, mas, ao contrário, visto e entendido como forma de realização cuja existência está fulcrada no ser-no-mundo. Nesse sentido, existência e sentido, pre-sença (Dasein) e verdade não estão em distonia, mas entrelaçam-se uns nos outros.15

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12 HEIDEGGER, Martin. A Essência do Fundamento. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988. p.21. 13 Ibid., p.23. 14 Ibid., p.27. 15 Acrescente-se, ainda, na tentativa de explicitar e exemplificar um pouco melhor o que acabamos de dizer, as lições de Emmanuel Carneiro Leão: “Quando, de manhã cedo, um físico sai de casa para ir pesquisar no laboratório o efeito de Compton e sente brilhar nos olhos os raios de sol, a luz não lhe fala, em primeiro lugar como fenômeno de uma mecânica quântica e ondulatória. Fala como fenômeno de um mundo carregado de sentido para o homem, como integrante de um cosmos, na acepção grega da palavra, isto é, de um universo cheio de coisas a perceber, de caminhos a percorrer, de trabalhos a cumprir, de obras a realizar. A luz fala, sobretudo, de um mundo que ele nasce e cresce, ama e odeia, vive e morre a todo instante. Sem este mundo originário, o físico não poderia empreender as suas pesquisas, pois não lhe seria possível nem mesmo existir. E, ao atingir-lhe os olhos, a luz não somente fala, a luz é tudo isto. Nós só podemos usar a mesma palavra para dizer tanto um fenômeno externo, a luz do sol, como um fenômeno interno, a luz da razão, porque nem o sol está somente fora de nós, nem a razão está exclusivamente dentro de nós, e sim porque sempre e necessariamente realizamos a nossa existência na estrutura de ser-no-mundo. A necessidade de um esquematismo espacial, temporal e gestual para dizer e compreender todos os modos de ser e agir mostra à saciedade que a presença fundadora de nossa existência não se dá na órbita de consciência de um cogito sem mundo, nem na complementariedade recíproca de sujeito e objeto. Abrange, ao contrário, todas as peripécias de uma co-presença originária que se realiza através de uma história de tempos, espaços e gestos, que se desenvolve num mundo de interesses e explorações, de lutas e fracassos, de libertação e escravidão.” LEÃO, Emmanuel Carneiro. Aprendendo a Pensar. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2000, V.2, p.216-217.

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Se quisermos sintetizar o que acabamos de sublinhar, diremos que serno-mundo é uma estrutura de realização, ou seja, o homem “não é uma coisa simplesmente dada, nem uma engrenagem numa máquina e nem uma ilha no oceano.”16 Por conseguinte, “o estar-aí não é um ser-no-mundo porque e somente porque existe facticamente, mas, pelo contrário, pode apenas ser como existente, isto é, como estar-aí, porque a sua constituição essencial reside no serno-mundo.”17 Note-se, nesse contexto, que Heidegger procura acentuar em sua filosofia: a) a análise da verdade está inserida no plano da ontologia fundamental, da analítica existencial, ou seja, a verdade não apresenta uma estrutura de conformidade (adequação) entre o conhecimento e o objeto no sentido da adequação de um ente (sujeito) a um outro (objeto); b) o ser-verdade como ser-descoberto só é ontologicamente possível quando constituído e fundamentado com o ser-no-mundo; Na obra Sobre a Essência da Verdade, Heidegger afirma que a essência da verdade é a liberdade.18 Tal assertiva está relacionada ao problema da essência do homem, dentro de uma perspectiva que garanta a experiência de um fundamento original oculto do homem (do ser-aí) e isto de tal maneira que a essência da verdade se desdobre originariamente.19 Note-se que a relação da essência da verdade com a liberdade não exprime que a verdade seja algo de subjetivo ou relacionado ao arbítrio humano – nesse caso, a liberdade não é uma propriedade do homem. A liberdade, na concepção heideggeriana, é no sentido de liberdade como manifestação no seio do aberto, ou seja, “a liberdade em face do que se revela no seio do aberto deixa que cada ente seja o ente que é. A liberdade se revela então como o que deixar-ser o ente.”20 Deixar-ser significa o entregar-se ao ente, como ente que ele é. Ou seja, significa entregar-se ao aberto e à sua abertura, na qual todo ente entra e permanece, e que cada ente traz, por assim dizer, consigo.21 Assim, o abrir-se ao ente não é algo que o homem possa escolher de forma arbitrária (não é uma faculdade do homem), uma vez que constitui o próprio Dasein enquanto ser-nomundo. Deixemos que as lições de Heidegger falem por si:22 “Deixar-se significa que nós nos expomos ao ente enquanto tal e que transferimos para o aberto todo o nosso comportamento. O deixar-se, isto é, a 16 Ibid., p.217. 17 HEIDEGGER, A Essência do Fundamento. Tradução Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 1988, p.41. 18 HEIDEGGER, Martin. Sobre a Essência da Verdade. Tradução de Ernildo Stein. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970, p.30. 19 Ibid., p.31-32. 20 Ibid., p.32. 21 Ibid., p.32. 22 Ibid., p.33-35.

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liberdade, é, em si mesmo, exposição ao ente, isto é, ek-sistente. A essência da liberdade, entrevista à luz da essência da verdade, aparece como ex-posição ao ente enquanto ele tem o caráter de desvelado. [...] A ek-23sistência enraizada na verdade como liberdade é a ex-posição ao caráter desvelado do ente como tal. [...] O homem não possui a liberdade como uma propriedade, mas antes pelo contrário: a liberdade, o ser-aí, ek-sistente e desvelador, possui o homem, e isto tão originariamente que somente ela permite a uma humanidade de inaugurar a relação com o ente em sua totalidade e enquanto tal, sobre o qual se funda e esboça toda a história. Somente o homem ek-sistente é historial. A ‘natureza’ não tem história. A liberdade assim compreendida, como deixar-ser do ente, realiza e efetua a essência da verdade sob a forma de desvelamento do ente. A ‘verdade’ não é uma característica de uma proposição conforme, enunciado por um ‘sujeito’ relativamente a um ‘objeto’ e que então ‘vale’ não se sabe em que âmbito; a verdade é o desvelamento do ente graças ao qual se realiza uma abertura. Em seu âmbito se desenvolve, ex-pondo-se, todo o comportamento, toda a tomada de posição do homem. É por isso que o homem é ao modo da ek-sistência.” Dessa maneira, a essência da verdade é compreendida por Heidegger da seguinte forma: a essência da verdade se desvelou como liberdade; a liberdade é o deixar-se ek-sistente que desvela o ente; e todo o comportamento do homem historial está disposto no ente em sua totalidade. A partir da essência da verdade, Heidegger concebe a não-verdade como obscuridade e ocultamento. O filósofo afirma que “justamente, na medida em que o deixar-ser sempre deixa o ente, a que se refere, ser, em cada comportamento individual, e com isto o desoculta, dissimula ele o ente em sua totalidade.” A seguir, conclui que “o deixar-ser é, em si mesmo, simultaneamente, uma dissimulação”, ou seja, na liberdade ek-sistente do ser-aí acontece a dissimulação do ente em sua totalidade, a saber: seu velamento.24 Heidegger chama de mistério nada menos

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23 No mesmo sentido, Gianni Vattimo afirma que “o facto de que a abertura originária do mundo, que torna possível toda a conformidade com o ente (verdade) e toda a escolha prática, não dependa de uma escolha do homem, mas antes o precede e o constitui, significa que o Dasein pode entrar em relação com os entes enquanto já está lançado em certa abertura histórica, isto é, enquanto já dispõe de um conjunto historicamente dado de critérios, de normas, de pre-juízos, devido aos quais o ente se lhe torna acessível. Toda a nossa possibilidade em aceder ao ente está condicionada pelo facto de dispor já de certos instrumentos: de certa lógica, de certa moral, etc. Mesmo quando nos pomos a examinar criticamente os pré-juízos herdados, servimo-nos sempre, porém de certos instrumentos conceptuais que não são algo de ‘natural’, mas que constituem justamente a nossa abertura histórica. Assim, e definitivamente, o facto de ser a liberdade a dispor do homem significa que o homem chega ao ente (e também a si mesmo enquanto se torna objecto de conhecimento) a uma luz na qual se encontra desde sempre, isto é, devido a uma pré-compreensão que o homem não escolhe, mas que o constitui enquanto ser-aí. VATTIMO, Gianni. Introdução a Heidegger. Tradução João Gama. Lisboa: Edições 70, 1989, p.74-75. 24 HEIDEGGER, Sobre a Essência da Verdade. Tradução Ernildo Stein. São Paulo: Livraria Duas Cidades, 1970, p.38.

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que a referida dissimulação do ente como tal, velado em sua totalidade. Dessa forma, o mistério – como a dissimulação do que está velado – domina o seraí do homem. No capítulo “A Não-Verdade enquanto Dissimulação” da obra Sobre a Essência da Verdade, Heidegger afirma que25 “No deixar-ser desvelador e que simultaneamente dissimula o ente em sua totalidade acontece o fato de que a dissimulação aparece como aquilo que está velado em primeiro lugar. Enquanto existe, o ser-aí instaura o primeiro e mais amplo não-desvelamento, a não-verdade original. A não-essência original da verdade é o mistério.” É o que resulta claro das lições de Ernildo Stein:26 “Mas, pelo fato mesmo de sua estrutura ontológica, o ser-aí não está apenas na verdade e no ser, ele sempre se movimenta também na não-verdade e em meio aos entes intramundanos. Pois a própria verdade relativa ao ser-aí é simultaneamente verdade e não verdade. Por isso torna-se possível o desvelamento da verdade e do ser. Assim, a condição do próprio ser-aí é uma condição ambivalente que resulta de sua própria estrutura ontológica. O ser-aí está simultaneamente na verdade e na não-verdade.” Stein, em notas iniciais de sua obra Pensar e Errar um ajuste com Heidegger afirma que “a fenomenologia não busca a certeza como paralisia conceitual. É por isso que pensar não salta de conceito em conceito, ou os articula numa sentença verdadeira ou falsa. Desse modo, a verdade traz sempre a remissão a seu outro lado, a não verdade. Em lugar dos conceitos temos apenas “indícios formais” – Formale Anzeige -, aproximações. Os indícios formais são o instrumento da fenomenologia. Pensar; como errar (irren), é deixar aparecer os indícios, não os conceitos acabados, por isso indica o vagar; a errância.”27 A condição do ser-aí aponta para uma verdadeira dimensão do ser como velamento-desvelamento. Assim, verdade é desvelamento e esta somente se instaura na faticidade do ser-aí considerando a dimensão ontológica.28 Isto representa que o ponto de partida da reflexão heideggeriana encontra-se na pergunta pela finitude do homem, ou seja, a fundamentação da metafísica está diretamente relacionada à finitude do homem. Daí a ideia da desconstrução da metafísica, uma vez que esta é realizada em função do homem radicado em sua finitude. Entre a metafísica ocidental e a filosofia heideggeriana, a questão do ser e da verdade pode ser posta da seguinte forma:29 a) Metafísica Ocidental (tradição filosófica) - Busca o ser e a verdade através da transparência. Deus é o fundamento do 25 Ibid., p.39. 26 STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude: Estrutura e Movimento da Investigação Heideggeriana. Ijuí: Rio Grande do Sul: Unijuí, 2001, p.34. 27 STEIN, Ernildo. Pensar e Errar um ajuste com Heidegger. Ijuí, Unijuí, 2011, p.12. 28 Vale lembrar, mais uma vez, que tal ponto de partida, qual seja, o ser-aí representa uma mudança de paradigma, renunciando, destarte as ‘verdades eternas’ e o sujeito absoluto frutos de uma teologia natural. 29 STEIN, Ernildo. Compreensão e Finitude: Estrutura e Movimento da Interrogação Heideggeriana. Ijuí, Rio Grande do Sul: Unijuí, 2001, p. 21-23.

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ser e da verdade, bem como de todo o conhecimento perfeito. A interrogação filosófica é justificada pela teologia natural, medida por aquilo que excede. Esse excesso, esse não-limite é a preocupação central da filosofia no sentido de romper a barreira do finito, tendendo para o ilimitado (reflexão transcendental). b) Filosofia Heideggeriana - Reflexão filosófica a partir da finitude do homem, renunciando ao modelo absoluto da reflexão autotransparente, não partindo, portanto, dos pressupostos de uma teologia natural. O problema do ser e da verdade surgirá da própria análise da finitude da condição humana, da finitude da interrogação pelo ser e pela verdade. Nas estruturas da finitude e temporalidade do ser-aí, develase o horizonte em que se manifesta o sentido do ser.30 Pode-se assim dizer-se que a metafísica ocidental esqueceu o ser,31 em virtude da entificação do ser do ente pela explicação teológica. Nas palavras de Heidegger,32 “o mais duro golpe contra Deus não é

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30 Lembra Ernildo Stein que “Heidegger rompe seu vínculo com a reflexão transcendental pelo pensamento da ambivalência de velamento e desvelamento. O ser e a verdade, com essas duas faces, não repousam mais no horizonte transcendental. Por isso a sua filosofia não vai mais em busca de uma total transparência do ser como total desvelamento, como pura presença. A experiência do ser e da verdade como velamento e desvelamento é, ao mesmo tempo, o ponto de partida para o estabelecimento de uma ontologia despojada da teologia natural. Desaparece, assim, o modelo de toda a reflexão transcendental, o logos divino na sua condição de identidade consigo mesmo, enquanto pensamento de pensamento. Isso representa simultaneamente a afirmação da ontologia da finitude. Essa ontologia não tem como ideal progredir numa ascensão dialética até a afirmação de um ser ou uma verdade absolutos, mas, ela pensa o ser verdade como velamento e desvelamento, como presença ou ausência. [...] A superação da ontoteologia e o despojamento do ideal transcendental são colocados, são realizados, num plano essencialmente ontológico.” Ibid., p.45-46. 31 Nas palavras de Ernildo Stein, “o ser cai no olvido, e o pensamento lógico-racional toma o lugar de destaque. E o pensamento do sujeito humano que pensa o ente assume a primazia, representando-o como objeto de que se dispõe. ‘Com a subjetividade dos sujeitos nasce a objetividade dos objetos. Assim, a metafísica ocidental é representação de objeto’. A subjetividade inicia com Platão e cresce com Descartes, atingindo seu ápice em Nietzsche, nas ciências modernas e na primazia mundial da técnica. Nesse panorama da metafísica tradicional, coloca-se a questão de Deus. É no destino do pensamento ocidental que Deus toma o lugar de um ente que é representado e abrigado nas provas lógicas de sua existência. Assim, Deus se torna principalmente causa, ‘causa sui’. [...] Essa morte de Deus tem profundas repercussões na cultura ocidental e mostra, no terreno da Filosofia, que a busca de um Deus ‘ex machina’ para fundar o transcendental desemboca no esquecimento do ser.” Ibid., p.164-165. 32 HEIDEGGER, Martin. Holzwege, Vitorio Klostermann – Franckfurt am Main, 1957. p.239-240. In: STEIN, Ernildo. O Abismo entre Ser e Deus: (A diferença ontológica recusa a diferença teológica). In: OLIVEIRA; ALMEIDA (Org.) O DEUS dos Filósofos Contemporâneos. Petrópolis: Vozes, 2003. p.161-162.

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que seja tido como incognoscível ou que sua existência seja apontada como indemostrável, mas que o Deus tido por real elevado ao valor mais alto. Pois este golpe não vem daqueles que estão em volta e não crêem em Deus, mas dos fiéis e seus teólogos, que falam daquele que é o mais ente de todos os entes sem nunca terem a ideia de pensar no ser mesmo, para com isso tomarem consciência de que este pensar e aquele falar são, sob o ponto de vista da fé, simplesmente a blasfêmia de Deus, quando se imiscuem na teologia da fé.” Da perspectiva de Heidegger, o problema que se põe é o esquecimento do ser pela metafísica ocidental, já que a filosofia heideggeriana insiste na distinção entre ser e ente. Apenas com essa separação entre ser e ente é possível o surgimento da diferença ontológica. O ser é o que existe de mais originário de tudo o que é.33 Nesse sentido, podemos trazer à colação a pergunta com que Heidegger inicia a obra Introdução à Metafísica34, qual seja: “Por que há simplesmente o ente e não antes o Nada?” A inserção da locução do Nada é apenas para dar maior evidência ao sentido da questão fundamental, isto é, a incompreensão é proveniente de uma matriz do esquecimento do ser.35 Ora, o que Heidegger pretende com essa afirmação é mostrar a importância na investigação do fundamento do ente, ou seja, qual a sua razão. O ente já nos é dado e sempre em condições de ser encontrado e conhecido. O filósofo, ao inserir no final da pergunta ‘e não antes o Nada?’, precisamente com essa 33 “quer se trate de um rochedo, de um animal, de uma obra de arte, de uma máquina ou mesmo de Deus”. Heidegger se refere a Deus como um ente Supremo, mas ente e, desse modo, concebido e designado a partir do ser. STEIN, Nas Proximidades da Antropologia: Ensaios e Conferências Filosóficas. Ijuí, Rio Grande do Sul: Unijuí. 2003. p.162. 34 HEIDEGGER, Introdução à Metafísica. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. 4.ed. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro, 1999. p.33. 35 Heidegger ensina que de fato não é possível falar do Nada e dele tratar, como se fosse uma coisa, como a chuva lá fora ou uma montanha ou simplesmente um objeto qualquer. O Nada permanece, em princípio, inacessível a toda ciência. Quem pretende falar verdadeiramente do Nada, tem necessariamente que deixar de ser científico. Isso só será uma grande perda, enquanto se for da opinião, de que o pensar científico seja a única e a forma própria de pensamento rigoroso e de que somente ele pode e deve ser erigido em critério do pensamento filosófico. Entretanto as coisas estão ao inverso. Todo pensar científico é que é uma forma derivada e, como tal, consolidada de pensamento filosófico. A filosofia nunca nasce da ciência nem pela ciência. Também jamais se poderá equipará-la às ciências. É-lhes antes anteposta e não apenas ‘logicamente’ ou num quadro do sistema das ciências. A filosofia situa-se num domínio e num plano da existência espiritual inteiramente diverso. Na mesma dimensão da filosofia e de seu modo de pensar situa-se apenas a poesia. Entretanto, pensar e poetar não são por sua vez, coisas iguais. Falar do Nada constituirá sempre para ciência um tormento e uma insensatez. Além do filósofo pode fazê-lo ainda o poeta, não certamente por haver na poesia, como crê o entendimento vulgar, menos rigor e sim por imperar nela (pensa-se somente na poesia autêntica e de valor), em oposição a toda a simples ciência, uma superioridade de espírito vigorosa. Em razão dessa superioridade o poeta fala sempre, como se ente se exprimisse e fosse interpelado pela vez primeira. No poetar do poeta, como no pensar do filósofo detal sorte se instaura um mundo, que qualquer coisa, seja uma árvore, uma montanha, uma casa, o chilrear de um pássaro, perde toda a monotonia e vulgaridade. Falar verdadeiramente do Nada ficará sempre algo de estranho. Nunca se deixará vulgarizar. Logo se dissolve, quando se põe no ácido barato e banal de uma sutileza meramente lógica.” Ibid., p.54-55.

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expressão, ultrapassa o domínio do ente objetivamente dado e o coloca na própria possibilidade do não-ser.36 Heidegger, no fundo, procura investigar o ser, o ser do ente. A complexidade da questão abordada está relacionada ao Nada, já que Heidegger afirma que o Ser investigado é quase como o Nada. Vejamos alguns exemplos trazidos pelo filósofo em sua obra Introdução à Metafísica37: “O portal de uma antiga igreja romana é um ente. Como e a quem se manifesta o Ser? Ao perito em arte, que numa excursão a visita e a fotografa, ou ao abade, que nos dias de festa entra pelo portal, em procissão com seus monjes, ou às crianças, que, nos dias de verão, brincam à sua sombra? O que há com o Ser desse ente? [...] A pintura de van Gog: um par de toscos sapatos camponeses, e nada mais. Propriamente o quadro não representa nada. Sem embargo, estamos logo sozinhos com o que está ali, como se, numa tarde já adiantada de outono, voltássemos cansados, de enxada na mão, do campo para a casa ao apagar-se o último fogo das batatas. O que no quadro está sendo? A tela? As pinceladas? As manchas de tinta?” Assim sendo, todos os exemplos mencionados pelo filósofo, sem dúvida, “é” ou “são”. Todos representam um ente, objetivamente dado. Ocorre que, na busca em direção ao Ser de cada ente dado, procuramos querer apreender o Ser. “Ocorre-nos sempre como se pagássemos no vazio. O Ser, que investigamos, é quase como o Nada.”38 39

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36 Quanto a mencionada questão do ente e o seu ser, vale citar, mais uma vez, as lições de Heidegger: “Esse pedaço de giz aqui é uma coisa extensa, relativamente consistente, relativamente consistente, de determinada forma e de cor branca, e em tudo isso e com tudo isso é ainda uma coisa para escrever. Tão certo, como lhe corresponde estar aqui, do mesmo modo lhe pertence poder não estar aqui ou não ter o tamanho que tem. Poder ser conduzido pelo quadro negro e gasto não é algo, que lhe acrescentamos apenas com o pensamento. Ele mesmo, como o ente que é, está nessa possibilidade, do contrário não seria um giz, qual instrumento para escrever na pedra. Correspondentemente, todo o ente traz consigo, de modo diferente em cada caso, uma tal possibilidade. Essa possibilidade pertence ao giz. É ele que tem consigo mesmo determinada possibilidade para determinado uso. Sem dúvida, na procura dessas possibilidades estamos habituados e inclinados a dizer, que não as vemos nem tocamos. É um preconceito. Afastá-lo pertence ao desenvolvimento da questão. Por enquanto, porém, ela tem apenas de descobrir o ente em sua oscilação entre o ser e o não-ser. Resistindo à suprema possibilidade do não-ser, o ente in-siste no ser, embora não tenha nunca ultrapassado e superado a possibilidade do não-ser. Eis-nos falando de repente do ser e não-ser do ente, sem havermos dito como, o que assim se denomina, se comporta com o próprio ente. Acaso serão a mesma coisa, o ente e seu ser? Segundo essa distinção, o que é, por exemplo, nesse pedaço de giz o ente? Já a pergunta é ambígua, porque a palavra ‘o ente’ se pode entender de dois pontos de vista, tal como o grego to on. O ente significa em primeiro lugar aquilo, que em cada caso é, assim no caso do giz, essa massa branca, de forma determinada, leve e quebradiça. Em segundo lugar, ‘o ente’ significa, por dizê-lo assim, o que ‘faz’ que o mencionado acima seja um ente e não um não-ente, aquilo que no ente, quando o é, constitui o ser. Segundo essa dupla acepção da palavra, ‘o ente’, o grego to on indica muitas vezes o segundo significado, portanto não o ente em si mesmo, o que é o ente, mas o fato de o ente ser, a entidade, o ser-ente, o ser. Ao contrário, na primeira acepção, o ente designa todas e cada uma das coisas que são, tudo que se refere a elas mesmas e não à sus entidade, à ousia. A primeira acepção de to on significa to onta (entia), a segunda, tò einai (esse).” Ibid., p.58-59. 37 Ibid., p.62-63. 38 Ibid., p.63. 39 Neste sentido, Heidegger cita Nietzsche. Vejamos as suas lições: “Ao fim de contas Nietzsche tem, pois, toda a razão, ao chamas esses ‘conceitos supremos’ como Ser, a última fumaça da realidade evaporante’ (Crepúsculo dos deuses, VIII, 78). Quem ainda se disporia a correr atrás de um tal vapor, cuja designação verbal é o nome de um grande erro! ‘De fato,

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O ser de verdade está constituído pela abertura e revelação, isto é, pela compreensão, que o ser pode ser compreendido e pode haver uma compreensão do ser. A verdade do conhecimento vigente na história da metafísica (esquecimento do ser) é a afirmação de verdades eternas, fundada num sujeito absoluto idealizado, em distonia com a afirmação do Dasein (ser-aí). Heidegger já afirmava que para uma proposição ser verdadeira, o seu ser-verdadeiro (verdade) deve ser entendido no sentido de ser-descobridor. Mais uma vez, em sua obra Ser e Tempo, no § 44o, o filósofo destaca que40,41 “a verdade não possui, portanto, a estrutura de uma concordância entre conhecimento e objeto, no sentido de uma adequação entre um ente (sujeito) e um outro ente (objeto). Enquanto ser-descobridor, o serverdadeiro só é, pois, ontologicamente possível com base no ser-no-mundo.” A analítica existencial heideggeriana parte de uma intuição fundamental, qual seja, aletheia, isto é, a partir desla revela-se o verdadeiro alcance sobre a questão do ser e da verdade42. Heidegger sustenta que se existe um entrelaçamento entre verdade e o sentido originário do ser, logo, o fenômeno da verdade está relacionado ao âmbito da problemática ontológica fundamental.43 até agora nada teve um poder de persuasão mais ingênuo do que o erro do Ser’ (VIII, 80).0 ‘Ser’ – um vapor e um erro? O que diz Nietzsche aqui do Ser não é uma bobservação acidental, lançada na embriagues do trabalho preparatório de sua obra principal, nunca terminada. Trata-se da concepção do Ser, que o guia, desde os primeiros dias de seu esforço filosófico. É uma concepção, que carrega e determina fundamentalmente a sua filosofia. Essa ainda agora se tem preservado bem contra todos os torpes e néscios assédios da malta de escritores, que hoje sempre mais proliferam em torno de Nietzsche. Infelizmente para ainda não haver superado os piores abusos. Ao evocarmos Nietzsche aqui não queremos ter nada a ver com tudo isso nem também com uma cega heroicização. A tarefa é demasiado decisiva e sóbria, ao mesmo tempo, para fazê-lo. Ela consiste no seguinte: num ataque bem conduzido a Nietzsche propiciar um completo desabrochar do que foi por ele provocado. O Ser, um vapor, um erro! Fosse assim, a única consequência, que nos restaria, seria renunciarmos também à questão, ‘por que há simplesmente o ente, e não antes o Nada?’ Com efeito, o que ainda pretenderia essa questão, se aquilo, que ela põe em questão, é apenas um vapor e um erro? Diz Nietzsche a Verdade? Ou será também ele apenas uma derradeira vítima de um longo error e omissão e COMO tal vítima, o testemunho desconhecido de uma nova necessidade? Reside no Ser mesmo toda essa confusão? E liga-se à própria palavra o fato de ficar ela tão vazia? Ou depende de nós mesmos, de havermos decaído do Ser em nossa preocupação e caça ao ente?” Ibid., p.63-64. 40 HEIDEGGER, Ser e Tempo: Parte I, Tradução Marcia Sá Cavalcante Schuback.12.ed. Petrópolis: Vozes, 2002. p.286-287. 41 Desse modo surgiu Heidegger no mundo filosófico como o pensador, que pretende re-petir desde seus fundamentos toda a tradição ocidental segundo a questão prévia (dieVor-frage) sobre o sentido e a verdade do ser. LEÃO, Emmanuel Carneiro. Itinerário do Pensamento de Heidegger. In: HEIDEGGER, Martin. Introdução à Metafísica. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. 4.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999, p.17-18. 42 Segundo Stein, a fenomenologia, no sentido heideggeriano, é o caminho que sustenta a finitude da compreensão do ser e a compreensão da finitude do ser-aí. A fenomenologia é o verdadeiro instrumento para captar as verdadeiras implicações da circularidade do ser-aí e o movimento da viravolta. STEIN, Compreensão e Finitude: Estrutura e Movimento da Interrogação Heideggeriana. Ijuí, Rio Grande do Sul: Unijuí, 2001, p.24. 43 HEIDEGGER, op.cit., 2002. p.281.

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Heidegger propugna que somente a partir da compreensão do ser, o ente se torna acessível como ente, ou seja, somente a partir da concepção ontológica do ser-aí (Dasein, Pre-sença) é possível a compreensão do ser-enquanto-ser. A existência, a temporalidade, são identificadores e elementos basilares da existência do homem. Desse modo, Heidegger insere a essência da Verdade no plano ontológico fundamental da analítica existencial, ou seja, o ser-verdade como ser-descoberto só é ontologicamente possível quando fundamentado e consubstanciado no ser-no-mundo.

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Modernidade e Universidade Prof. Dr. Vanderlei Martins1 Resumo O artigo discute os impactos culturais provocados pelo chamado racionalismo moderno no âmbito institucional acadêmico. Dentro dessa perspectiva, a abordagem discute o caráter funcional assumido pelas universidades contemporâneas a partir de uma nova concepção de mundo imposta pelo pragmatismo científico moderno. Discute, também, dentro do caráter funcional aludido, a prevalência de um discurso de natureza técnico-científico, logo positivista, na produção/reprodução de conhecimento.Tal prática, legitima e consagra, não só a afirmação de discursos fragmentados e especializados, mas também deixa de privilegiar a intercomunicação entre os saberes. É intenção, pois, do artigo, discutir dois pontos principais: a pulverização do conhecimento a partir da Modernidade, onde, de forma progressiva, passamos a conhecer cada vez mais de muito menos e a ausência do discurso ético como condutor deste processo. Vale dizer, que o artigo discute o caso brasileiro. Palavras-chave: Modernidade; Razão científica; Sociedade; Universidade; Ética; Direito. Abstract The article discusses the cultural impacts caused by called rationalism modern institutional scope academico. This perspective, the discourse approach cute functional character assumed by contemporary universities from a new conception of the world imposed by modern scientific pragmatism. Discusses Well, within the functional character alluded to the prevalence of a discourse of nature farm mach-scientific, positivist, production / reproduction. This practice, legitimated and establishes not only the assertion fragmented and specialized discourses, but they cease to privilege the intercommunication between. This intention, therefore, of the article, discuss two main points: the spraying of knowledge from of where, gradually, we come to know more and more and much less absence of ethical discourse as a driver of this process. That is, the article discusses the Brazilian case. Keywords: Scientific Modernity; Reason; Society; University; ethically; Law. 1 Graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro/UFRJ (1985), Mestrado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1991), Doutorado em Ciências pela COPPE/UFRJ (1995), Coordenador Acadêmico do PPDIR/Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Coordenador Executivo e Membro do Conselho Editorial do Cadernos de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito da UERJ (1996/1999), Diretor do Curso de Direito da Universidade Santa Úrsula (1996/1999), Professor Adjunto da UNESA (1999/2008), Professor Titular e Coordenador de Pesquisa da UNIESP/SUESC (2000/2012), Coordenador de Pesquisa da UNIGRANRIO/Campus Silva Jardim (2000), atualmente Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em Regime de Dedicação Exclusiva. Atua na área de Ciências Sociais Aplicadas.

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Primeira aproximação: a ciência moderna

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Na trajetória histórica do mundo ocidental tivemos três grandes revoluções no chamado mundo das ideias e que definiram três grandes idades ao longo de tal trajetória. A primeira destas três grandes revoluções, ocorreu na Grécia clássica com o surgimento da Filosofia, colocando o Homem como centro da própria existência. Sendo o interesse maior do artigo a ciência e o conhecimento modernos e os impactos que provocou na Universidade ocidental a partir do século XVIII, enfocaremos, pois, suas trajetórias. Na Grécia Clássica, a ciência era um princípio de natureza filosófica e o conhecimento uma virtude intelectual que alimentava a alma e potencializava a existência (1). A segunda grande revolução ocorrida no mundo da ideias, fundou a Idade Média com a afirmação da Filosofia Católica, onde Deus passa a ser o centro da existência humana. Ali, a ciência, como pressuposto principal, era um princípio de natureza religiosa e o conhecimento uma virtude espiritual atribuído pela vontade de Deus e que, mediante o uso do intelecto, enobrecia o homem. A terceira grande revolução ocorrida no mundo das ideias no contexto ocidental e que é o eixo central de nossa discussão, afirma o discurso da razão científica como concepção de mundo prevalente. Inicia-se, assim a Idade Moderna, funda-se a Modernidade. Nesta nova ordem, a ciência perde o caráter basicamente contemplativo, assumindo caráter intervencionista na natureza dada. Por derivação, a ciência moderna transforma-se em princípio de natureza técnica e o conhecimento passa a ser uma virtude de natureza prática. Conduzida pelo rigor do Método a ciência moderna e, por extensão, o conhecimento, tornam-se pragmáticos, utilitários e funcionais. Tal positivismo científico, provocará impactos significativos na sociedade moderna e, extensão, também na universidade moderna, ou seja, influenciados pela lógica metódica da ciência moderna, os dois segmentos legitimam na convivência social e acadêmica o pragmatismo, o utilitarismo e a funcionalidade objetiva como prática costumeira. Se na Grécia Clássica pontificaram Sócrates, Platão e Aristóteles e no período medieval S.Agostinho e S.T.Aquino, no período de afirmação do discurso da razão científica, Rene Descartes (1596-1650) pode ser considerado o filósofo que revolucionou a ciência moderna. Descartes, matemático por formação, não aceita a Natureza como um organismo fechado, mas sim como uma máquina que deveria ser decomposta para sua melhor interpretação. Para tal, elabora suas regras de intervenção científica na natureza dada e que são amplamente utilizadas na pesquisa moderna como regras cartesianas de investigação científica, a saber, evidencia, análise, síntese e enumeração. O cartesianismo revolucionou a ciência moderna por dois aspectos principais:

Vanderlei Martins Primeiro, ao entender a Natureza como máquina passível de decomposição para medição, tal raciocínio fragmenta a natureza em campos específicos, o que quebra o sentido orgânico do conhecimento, dando-lhe um caráter pontual, abrindo, assim, a perspectiva para o surgimento de novos discursos, novas ciências. Se impõe, dessa forma, o que conhecemos hoje como especializações ou discursos científicos especializados, inclusive nas ciências humanas e ciências sociais, abarcando aí também o próprio Direito. Revolucionou também a ciência moderna ao estabelecer a hipótese como princípio da nova ciência, ou seja, dentro do processo sequencial das regras cartesianas de investigação, uma síntese ao ser elaborada ao final do processo investigativo, transforma-se de imediato em nova evidência passível de investigação, reiniciando-se, assim o processo investigativo. Significa dizer que deixa de existir discurso científico de valor absoluto. Todos os discursos científicos passam ou devem ser interpretados como verdades relativas, como hipóteses, como novas evidências. A partir dessa proposição, a ciência adquiriu uma dinâmica nunca antes experimentada nas idades anteriores, desenvolvendose também a uma velocidade nunca antes estabelecida. Podemos afirmar que o discurso da razão científica moderna, ao se afirmar como concepção de mundo, funda a Modernidade, coloca a Religião Católica e a Filosofia, outrora concepções de mundo prevalentes nas idades média e clássica, respectivamente, e alterando, assim, o ponto de referência da sociedade ocidental. Saímos de um mundo fechado de natureza religiosa, para um mundo aberto de natureza científica. Tal mudança de paradigma vai provocar impactos significativos e, podemos dizer radicais, na sociedade moderna e também na universidade moderna, definindo, assim, um novo tempo.

Segunda aproximação: a sociedade moderna No que concerne à sociedade, a Modernidade quebrou a autoridade hegemônica cristã católica do período medieval: O homem moderno passa a fazer a “leitura do mundo” de forma independente, o que acarreta, por derivação, a substituição do preceito de destino pelo preceito do livre-arbítrio na convivência. O pluralismo se afirma, assim, como característica marcante da nova forma de convivência. Podemos dizer que o livre-arbítrio altera de maneira significativa as instituições sociais modernas, pinçando algumas, podemos citar a política, a economia, a religião e a própria cultura. No plano político se afirmam os estados nacionais que passam a definir suas próprias políticas No plano econômico se afirma o capitalismo moderno conduzido pela livre-iniciativa privada. Já na esfera religiosa, o protestantismo surge como instituição perfeitamente antenada ao livre-arbítrio e ao capitalismo moderno. “A ética protestante e o espírito do capitalismo” de Max Weber, é leitura de referência sobre essa questão. No que concerne à cultura, o racionalismo científico moderno também se impõe como concepção de mundo dominante, ou seja, a lógica da funcionalidade

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objetiva passa a predominar como valor costumeiro e onde o pragmatismo e o utilitarismo vão definir o que podemos chamar de “convivência de resultados”. Assim, é do positivismo científico que deriva o positivismo social, materialista, individualista e competitivo por excelência. O individualismo, entendido como valor de natureza material, passa a ser característica emblemática da cultura moderna. Aqui cabe um parêntesis. No período anterior à aurora moderna, predominava um ordenamento coletivo sobre a vontade do indivíduo. Este, ao nascer, já encontrava uma sociedade estruturada institucionalmente, sabendo, de antemão, o papel que lhe cabia nesse contexto e a partir de onde construía sua identidade sócio-cultural. Inconcebível, por exemplo, que um camponês viesse a se transformar em nobre (2). Tal ordenamento passava de geração para geração de maneira estável, devido principalmente a uma fundamentação de natureza religiosa, onde a vida social econômica, científica, e jurídica faziam parte de uma estrutura unitária conduzida pela Igreja Católica e cuja última instância era Deus. Aceito como verdade maior e referencial de conduta. Ao final da Idade Média, esta estrutura entra em colapso e as instituições desatrelam-se, progressivamente, do paradigma unitário católico. Assim, no aspecto político,já na aurora moderna, caberá ao Estado o papel de mentor do sistema social. Estado este que passa a ser constituído pela vontade do indivíduo e determinado pelo consenso entre os cidadãos. Neste progressivo processo emancipatório, desatrelam-se a já citada ciência que, através da liberdade de pensamento estabelecido, impõe seu método, passando a ser de natureza operativa, bem como a economia, instituição agora determinada pela livre-iniciativa e pelas leis do mercado. Dentro desta nova ordem, propaga-se uma nova visão de mundo pragmática, ou seja, impõe-se de forma categórica e inquestionável, a crença no progresso técnico-científico como gerador do bemviver material (3). Tal concepção de mundo racionalista-tecnicista provoca impactos significativos no sistema social, assumindo, assim, o gerenciamento da convivência, onde a lógica tecno-positivista da ciência impõe o positivismo social como prática social, transformando o relacionamento interpessoal em uma convivência utilitarista. Podemos dizer que o homem ocidental moderno desconectado dos valores tradicionais, rejeita a transcendência e aposta em sua autonomia. Nesta condição, sua presença lhe basta para enfrentamento do mundo e, a partir da autonomia conquistada reformula valores e critérios, substituindo o preceito de destino pelo preceito de livre-arbítrio. Como desdobramento da nova configuração ocidental moderna, a sociedade contemporânea, modelada pela competitividade, exacerba o individualismo material. Por derivação desintegra-se a concepção organicista de sociedade outrora vigente, as instituições sociais se distanciam e a crença na ideologia do capitalismo industrial emergente como propagador do progresso material é absoluta (3).

Vanderlei Martins

Terceira aproximação: a universidade moderna Neste contexto ocidental transformado, a Universidade também se transforma, legitimando a nova concepção de mundo imposta pela Modernidade, ou seja, de maneira sistemática e progressiva, a universidade ocidental, a partir do século XVII, ganha caráter funcional, atrelando-se ao Estado, ao capitalismo industrial emergente e ao mercado. Tal modelo universitário passa a ser identificado como modelo “napoleônico”, que substitui progressivamente a ortodoxia católica medieval pelo vernáculo, derivação direta do livre-arbítrio moderno. O tradicional modelo pedagógico de natureza escolástica é substituído por uma pedagogia tecnicista e especializada. Emerge, assim, um novo referencial acadêmico que altera o sentido do conhecimento, ou seja, o conhecimento a partir da modernidade não é mais a alta cultura que enobrece a alma e eleva o homem e sim algo que passa a ser buscado com sentido utilitário e mercadológico. Assim, ao submeter-se às razões do racionalismo moderno, a universidade ocidental transforma-se, caracterizando-se por um conjunto de faculdades especializadas e desconectadas entre si. Além de alterar o sentido da cultura, a universidade moderna cria um humanismo distorcido, onde as disciplinas de cunho humanístico integram os currículos de forma mais ou menos ornamental e sem muita convicção. O que passa a ter status acadêmico, na verdade, são as disciplinas profissionalizantes, decorrência direta do utilitarismo mercadológico mencionado acima. Nesse sentido, as universidades ocidentais modernas se transformam em centros de preparação técnicos-especializados, ao invés de institutos bacharelescos voltados para uma formação plena. A Universidade passa a apostar, também, no pressuposto de que, através de uma formação atrelada ao Capitalismo e ao Estado, formará quadros de dirigentes/administradores eficientes da nova ordem moderna. Assim, a partir de uma concepção de mundo altamente racionalizada, vai aflorar uma humanidade pacífica e unida pelo progresso da ciência, promotora do bem-estar e do bem-viver material moderno. Essa foi a promessa derivada da ideologia do progresso científico que afirmou a modernidade no mundo ocidental. A fé inabalável na ideologia do progresso material difundida pelo racionalismo científico moderno, através capitalismo industrial afirmado, definem o modo de vida da sociedade ocidental contemporânea. Esse era o credo, esta era a conduta. Idêntica às demais instituições sociais a universidade também adere à esta visão pragmática, atrela-se e vai especializar profissionais para atender às novas demandas. Se hoje temos um Planeta altamente industrializado, também é verdade que o nível de desigualdade entre os povos é bem maior que em épocas anteriores (4). Em nosso entendimento, a universidade contemporânea deve assumir a responsabilidade de tirar do conhecimento a camisa-de-força que lhe condiciona e elevá-lo à condição de incessante reflexão crítica da experiência vivida.

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Tornando-se instrumento de transformação da realidade com vistas ao bemviver que proteja e promova a todos. No caso específico da universidade brasileira, a situação se radicaliza por duas razões principais. Primeiro porque ainda somos um país periférico, não alinhado ao nível dos países centrais mais desenvolvidos técnica e economicamente. Isto faz com que a universidade se transforme na via mais importante para rápida ascensão social e profissional. Na busca deste objetivo, a universidade passa a ser apenas um local de passagem para busca de um conhecimento de natureza meramente instrumental e utilitária, digamos mercadológica. Como segunda razão, nossa universidade, dentro do tempo histórico, é uma instituição muito jovem e isto dificulta o estabelecimento de uma pedagogia consistente e “invulnerável” do ponto ético-humanista. O que queremos dizer é que ainda não é tratado de forma profunda e consistente a importância da formação de nossos futuros bacharéis para o contexto social brasileiro, o que impossibilita tomadas de decisões profundas e significativas para estabelecimento de um projeto pedagógico que vá além da simples preparação de natureza técnica. A nosso ver a universidade brasileira tem que ser rediscutida para que possa exercer plenamente o papel lhe cabe enquanto instituição de formação superior. O que queremos dizer é que a universidade ideal é aquela que cumpre, em seu papel institucional, três funções interligadas na formação plena do futuro bacharel : função cultural, função profissional e função científica, ou seja, é preciso que o futuro bacharel tenha ampla visão consciente do mundo que lhe cerca, que seja também muito bem preparado tecnicamente para o exercício profissional e, por último, que lhe seja estimulado o desenvolvimento do senso crítico através da sistematização da investigação científica sobre os discursos que definem sua área de formação. Reproduzindo J.A.Severino, os jovens atravessam o espaço-tempo pedagógico da Universidade, dela levando, quando muito, um frágil instrumental de habilidades, mecanicamente assimiladas, um acervo de conceitos mal elaborados, tudo envolto numa sensação de euforia por uma conquista que foi, afinal de contas, muito fácil. Garantindo-se uma posição privilegiada frente uma sociedade ou muito pobre ou pouco exigente em relação à qualidade desta formação, uma vez que só lhe interessa na sua vertigem consumista, a sua funcionalidade produtiva, estes jovens se deixam então levar por esta voragem, inconscientes da profunda significação e responsabilidade que o compromisso histórico relativo ao destino da nação tem o direito de esperar e exigir deles (5). Apenas como ilustração, para tirar um jovem universitário, hoje, da rota que lhe foi convencionada pela sociedade/realidade acadêmica atual, basta lhe dar duas sugestões de natureza pedagógica: sugerir-lhe o desenvolvimento de seu espírito crítico-investigativo-criador a través da pesquisa científica aplicada e, como segunda sugestão de natureza pedagógica, que leia os clássicos de sua área de conhecimento. O jovem universitário, provavelmente, não dará

Vanderlei Martins o devido valor à estas sugestões, pois ambas estão fora da ordem tecnicistafuncionalista universitária brasileira contemporânea que se apresenta para ele. Na verdade, o que motiva mais o jovem universitário brasileiro contemporâneo é o aprendizado através dos grandes manuais, prática, vale dizer, estimulada pela própria universidade. Podemos afirmar que a formação superior no Brasil, em qualquer de suas áreas, inclusive a área jurídica, é determinada por uma concepção marcadamente positivista em seu sentido técnico-utilitário, limitando consideravelmente a finalidade maior da universidade que é formar o bacharel também aberto para o mundo e não apenas fechado para o mercado. Qualquer discurso que se contrapõe à esta formação de natureza pragmática e profissionalizante é entendido/absorvido como discurso vazio ou “sem sentido”. No caso específico da formação jurídica, como já dito acima, a regra é a mesma. Pontificam nos cursos de direito as chamadas disciplinas profissionalizantes que são tratadas, salvo raríssimas exceções, dentro de uma perspectiva pragmática e formalista. Desta forma, o futuro bacharel, motiva-se muito mais a aprender a operar o Direito em suas especificidades técnico-normativas do que propriamente dar a esse aprendizado uma perspectiva mais humanista, mais comprometida com os desafios impostos pela convivência contemporânea, a exigir respostas éticolegais do Direto em um ambiente social repleto de interesses e conflitos. Neste sentido, é papel fundamental dos cursos jurídicos formar juristas (aqueles que pensam e aplicam o Direito) e não operadores do direito (aqueles que apenas aplicam o Direito), afinal de contas, no âmbito do mundo jurídico, nem sempre o legal é justo. Olhando a formação jurídica também nos níveis de mestrado e doutorado, observamos o mesmo vício, ou seja, apesar de algumas instituições que ainda tentam dar a esses níveis um caráter acadêmico, na verdade, ambos assumem, na prática, um caráter marcadamente profissionalizante, tornando-se, assim, extensões da graduação, e que, em última análise, acabam se transformando em especializações pontuais. Via de regra, nos níveis de mestrado e doutorado o conhecimento jurídico também é buscado como investimento de natureza profissional e não como conquista idealista de natureza intelectual. Em nosso entendimento, tal mentalidade não leva em consideração a questão da vocação e isso faz muita diferença, pois acaba comprometendo o grau de envolvimento com a ciência do Direito e que, como decorrência direta, acaba definindo a própria qualidade da formação, seja ela na graduação, no mestrado ou no doutorado. Observando a trajetória histórica do ensino jurídico no Brasil, fica evidente a causa maior desse vício de estrutura. Os dois primeiros cursos de direito surgidos em 1828, em Olinda e São Paulo, já nasceram com finalidade marcante, ou seja, formar quadros para o Estado Imperial com intuito de compor a elite político-administrativa de sustentação do sistema monárquico. Assim, dentro de um viés sociológico, o jovem bacharel se transformava no “Homem do Estado”, segmento importante na composição da elite liberal condutora da política nacional. Dentro dessa perspectiva, o curso de Olinda formava, principalmente,

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para a magistratura, enquanto o curso de São Paulo formava, invariavelmente, para a vida política. Seguindo essa tendência, se estabelece historicamente, de forma natural, no cerne da formação universitária, uma cultura jurídica de atrelamento ao sistema político-econômico nacional. Se perpetua, então, por consequência, também de forma natural, um modelo pedagógico centrado na atividade de ensino, onde pontifica, por derivação, uma formação de natureza tecnicista, formalista e manualesca, onde o mais importante é conhecer para depois aplicar positivamente. Apesar de algumas resistências pontuais, também históricas, à esse modelo pedagógico, a prática educativa se manteve inalterada ao longo da trajetória do ensino jurídico no Brasil. Voltando à questão de forma mais ampla e que envolve a universidade brasileira com todas as suas faculdades, o que temos, de fato, são institutos de naturezas especializadas que instruem mas não formam plenamente o futuro bacharel dentro de uma concepção orgânica. O discurso pedagógico institucionalizado, e amplamente propagado, é por uma formação de caráter bacharelesco, mas o que a prática educativa consagra é uma instrução de natureza técnica e especializada (6). Melhor explicitando nosso ponto de vista, tomemos como exemplo o projeto pedagógico de Wilhelm Von Humboldt (7), efetivado na fundação da Universidade de Berlim em 1810. A proposta de Humboldt não visava reformar o antigo sistema pedagógico universitário europeu, mas criar algo novo e distinto, tanto em relação à universidade tradicional, quanto ao projeto pedagógico iluminista afirmado com a Modernidade. O projeto humboldtiano tinha como pressuposto primeiro a efetivação de um humanismo idealista centrado na autonomia ética da pessoa, fora da concepção moderna de massa que transforma o homem em objeto do Estado e do modelo econômico capitalista. Para ele, o sistema educacional deve ser a expressão maior do aspecto moral de uma nação. Nesse sentido, o modelo universitário medieval, bem como o modelo universitário iluminista, não devem servir como parâmetros. Assim, a universidade tradicional, conservadora e fechada em si mesmo, ficou desvinculada do novo espírito investigativo moderno porque é centrada, fundamentalmente, na transmissão do conhecimento de forma ritualista e dogmática, rejeitando categoricamente qualquer compromisso utilitarista em relação ao intelecto. Esse tipo de universidade não mais se coaduna à nova realidade do mundo. Para Humboldt, também não é ideal a concepção pedagógica iluminista moderna, uma vez que, atrelada à nova concepção de mundo, impõe à universidade o compromisso de adaptação às exigências da política e da economia modernas. Por derivação, ou por indução, transforma a universidade em instituição geradora de conhecimentos úteis à nova ordem. Esse modelo universitário não deve servir de paradigma porque compromete, radicalmente, a livre expressão do conhecimento e do intelecto.

Vanderlei Martins Segundo Bartholo, a origem do pensamento de Humboldt deriva de uma concepção presente na filosofia idealista alemã que pensa o mundo em sua totalidade através de uma auto-reflexão crítica que atrela ao fazer-ciência uma sintonia ética com a vida. Assim, a Universidade humboldtiana é o espaço institucional para a realização de uma formação humanista geral, com o objetivo fundamental de viabilizar uma autoformação ética da pessoa, através de uma atividade científica que se compreende a si mesma como filosofia (8). No projeto universitário de Humboldt, a palavra ÉTICA não é a expressão de uma normatização imposta ao indivíduo como conduta, ao contrário, o agir eticamente é algo que nasce natural e livremente na pessoa, fruto de uma permanente autoconstrução reflexiva que associa conhecimento e realidade e põe o indivíduo aberto para o mundo. Nesse sentido, a chave do pensamento humboldtiano não está na liberdade de ensino, mas na liberdade de aprendizagem. É através desse pressuposto que professores e alunos confluem e desencadeiam juntos um processo de permanente aprimoramento de virtudes cujo produto final será uma ciência benígna, algo bem diferente da proposta pedagógica utilitarista moderna que faz da universidade, não o habitat da virtude, mas uma instituição que enaltece e estimula a simples acumulação quantitativa de conhecimentos especializados. Cabe dizer que essa concepção de universidade idealizada por Humboldt deve ser entendida como um princípio de caráter universal, pois se reporta a qualquer área do conhecimento moderno, formalmente compartimentadas no espaço acadêmico, inclusive a área do Direito. A crítica maior que podemos fazer à nossa universidade contemporânea é que ela se estrutura em torno do conceito de “posse de verdade”, onde normas, teorias e princípios gerais são pré-estabelecidos em forma de programas e transmitidos formalmente através da atividade de ensino, pelos professores. Dessa maneira, o que fica definido como realidade rotineira na universidade brasileira atual, é uma formação mecanicista e burocraticamente pré-definida. Não é essa a condição ideal, mas sim que a universidade seja o espaço institucional de “busca de verdades” determinada pela aprendizagem. Seria esse o cerne da questão da autonomia da universidade, pois somente a liberdade de aprendizagem é compatível com o espírito de uma prática científica eticamente valorativa que transcende a simples transmissão/recepção de saberes estruturados, ou seja, a universidade não deve ser entendida como centro gerador de respostas acabadas, mas sim como espaço para propagação de perguntas precisas e sintonizadas com a realidade contemporânea globalizada. Em nosso entendimento, portanto, na relação entre ensino e aprendizagem, a aprendizagem é mais importante do que o ensino, pois é a aprendizagem a definidora da formação. Nesse sentido, aqueles que gravitam na vida acadêmica devem assumir os limites de suas especializações, não achar que, a partir desse espaço restrito, é possível construir a Verdade e se intitular seu representante maior. A universidade não deve estimular essa pretensão, pois, ao fazê-lo, está se auto-

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intitulando, erroneamente, como espécie de “templo sagrado do saber”. Dentro da perspectiva da liberdade de aprendizagem, em nosso entendimento, a universidade ideal seria aquela que assume plenamente três funções indissociáveis em seu devir pedagógico-educativo, a saber, função cultural, função profissional e função científica. A primeira função teria como compromisso maior dar o devido embasamento ético-intelectualcultural ao futuro bacharel acerca da realidade social circundante à sua área de conhecimento específico. A segunda função teria como tarefa principal preparálo tecnicamente no intuito de forjar-lhe a competência profissional. Já a terceira função teria como responsabilidade maior desenvolver no futuro bacharel espírito crítico-investigativo, através da atividade de pesquisa, visando preparálo cientificamente para rediscutir sua ciência, visando redimensioná-la dentro da convivência social contemporânea globalizada, dinâmica e repleta, como já dissemos, de contradições e interesses nem sempre convergentes ou éticos. A menção que fizemos em relação à indissociabilidade entre as três funções pedagógico-educativas da Universidade, que não devem ser confundidas com a tríade ensino/pesquisa/extensão, é de vital importância dentro do nosso raciocínio. Dissasociá-las, corresponderia limitar a formação, tirando-lhe a plenitude intelectual. Hoje, nas universidades brasileiras, as funções cultural/profissional/ científica são representadas, quando o são, através de disciplinas específicas dentro das diferentes grades curriculares, fato que, na prática, entretanto, não potencializa a formação, uma vez que são tratadas como disciplinas específicas e desconectadas entre si. Assim, dentro da mentalidade pragmática dominante, valoriza-se muito mais a função instrutiva manifesta pelas disciplinas técnico-profissionalizantes, plenamente identificadas com a visão de mundo contemporânea, utilitarista e funcional por excelência. Nessa lógica, a formação ético-cultural e a formação de natureza científica são apenas “acessórios ornamentais curriculares”. Entendemos indissociabilidade entre as três funções ideais para a universidade brasileira, mencionadas acima, mediante a efetivação de sua prática como item obrigatório nos programas de TODAS AS DISCIPLINAS CURRICULARES. Em sendo assim, seria possível potencializar plenamente a formação do futuro bacharel. Como consequência, é bem possível que teríamos profissionais potencialmente capacitados, abertos para as demandas da vida e do mundo do trabalho, aptos a darem respostas éticas e justas à essas demandas e não indivíduos fechados dentro de uma perspectiva individualista e mercadológica, aptos a tão somente cumprirem tarefas e funções profissionais, nem sempre éticas ou justas.

Considerações finais

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A Universidade não deve assumir uma característica, que é típica do conhecimento científico, em seu compromisso pedagógico-educativo. Nos referimos aquilo que chamamos de vocação subjetiva institucional. Melhor dizendo, a universidade não deve ser usada como mecanismo de exercício de

Vanderlei Martins poder ou local de afirmação de ideologias políticas de qualquer matiz. Tal prática compromete, não só a vocação objetiva do conhecimento científico, que é processar-se de forma livre e autônoma, como também compromete qualquer projeto pedagógico que se pretenda emancipatório. O diálogo civilizado e tolerante entre ideologias políticas ou pedagógicas seria, acreditamos, mais sensato e benéfico para a universidade. Nesse sentido, uma convivência acadêmica elevada, transformaria o território da universidade em local de trânsito de uma cultura também elevada e que se materializaria, por derivação, em uma formação também elevada. Ainda dentro da perspectiva da vocação subjetiva do conhecimento científico, a universidade não deve impor paradigmas que, através do convencimento de natureza científica e mediante retórica manipuladora, impõe verdades comprometidas política e ideologicamente.Tal prática, também acreditamos, compromete a credibilidade institucional, impedindo que a universidade seja importante referencial para produção de conhecimentos pacíficos e virtuosos que agreguem e não segreguem. O estabelecimento da consciência crítica, desprovida de qualquer outra razão instrumental,que não seja aquela voltada para o diálogo gratuito entre discursos opostos, deve ser devidamente institucionalizada e propagada no ambiente acadêmico. Nesse sentido, todos que atuamos na vida acadêmica devemos assumir nossos limites intelectuais, formalizados a partir de um contexto limitado de nossas especializações, e, sendo possível, tentar neutralizar em nós mesmos, a pretensão acadêmica de sairmos em busca da verdade e nos transformarmos em seu arauto maior. A universidade não deve alimentar tal tipo de estereótipo, uma vez que não existe no mundo contemporâneo globalizado, tal tipo de “animal raro”. Outro aspecto que consideramos importante mencionar, diz respeito ao aspecto metodológico presente em nossa universidade. Convivem hoje no mesmo espaço duas concepções pedagógicas: uma de natureza tecnicista/formalista, que prioriza a instrução e reflete os interesses hegemônicos, principalmente os interesses que cercam o sistema econômico capitalista e outra, de natureza crítica, que pretende por-se à disposição de um sistema social menos excludente e mais justo. Apesar de díspares, em algum momento confluem formando a chamada cultura acadêmica, transformando-se, assim, ambas, em “receituários” fechados, que se auto-intitulam como modelos pedagógicos ideais. Entretanto, qualquer que seja a opção para definição do modelo universitário brasileiro ideal, temos que admitir que o racionalismo tecnicista universitário atual é irreversível, pois é uma derivação direta do racionalismo científico que conduz a modernidade como concepção de mundo prevalente. Partindo desse pressuposto, o que é possível fazer, como contraponto, é neutralizar essa lógica positivista que define não só a sociedade, mas também a universidade. É preciso, pois, atrelar ao pragmatismo tecnicista um idealismo com a mesma intensidade pragmática. Dar ao tecnicismo uma lucidez operativa, através de uma consciência ética, que transforme a funcionalidade técnico-

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Modernidade e Universidade

operativa em funcionalidade técnico-operativa justa e benigna à convivência. É preciso, nesse intuito, que a universidade brasileira assuma e propague para todos os segmentos acadêmicos, essa responsabilidade ética impregnada de comprometimento social. A justa palavra para tal empreitada é envolvimento. Envolvimento ético com a vida, envolvimento ético com o mundo, envolvimento ético com a universidade, envolvimento ético com a formação acadêmica. Concluindo, ainda remetido ao princípio de envolvimento, é preciso inserir nesse princípio o diálogo como fundamento ético maior na relação entre universidade e sociedade. Tal diálogo, cristalizado na convivência acadêmica, já referido aqui por nós, pode tomar como referência o diálogo socrático. Isso porque Sócrates foi o primeiro pensador a definir o cerne do conflito existente entre interesse social e interesse individual. Para superar tal impasse, a pedagogia socrática sugere desenvolver na alma de cada indivíduo a capacidade dialética de apreensão de uma verdade universalmente válida, que é a busca da retidão moral através do conhecimento. Esse princípio determina para a educação a responsabilidade de estimular a habilidade de pensar, sem reduzir, portanto, a transmissão do conhecimento a um simples processo mecanicista de instrução/recepção. Em Sócrates, educação é ato de liberação e elevação do espírito, eixo divino do homem. Nesse sentido, o ideal pedagógico socrático aponta uma hierarquia de valores que estabelece uma hierarquia de dons: a alma em primeiro plano, o corpo em segundo e num plano inferior, a riqueza e o poder. Assim, a experiência da alma como morada dos valores humanos, desloca a virtude e a felicidade para o interior do próprio homem e de onde, através das manifestações do corpo, exprime toda a sua grandeza e potencialidade ética. É para esse ideal de convivência, que a universidade brasileira deveria olhar com mais simplicidade e desprendimento. A inserção de certos princípios, que não são necessariamente princípios pedagógicos modernos, não inviabilizam a prática educativa contemporânea, ao contrário, apenas a potencializa e engrandece.

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O direito ambiental em busca de caminhos alternativos Maria de Fátima Alves São Pedro1 Resumo Este trabalho tem por objetivo analisar a pertinência de se investigar as preocupações fundadas na ética e no Direito Ambiental, com o fito de defender e de preservar o meio ambiente, para as atuais gerações e as futuras possíveis, por se tratar de um direito que se vincula a todos os seres vivos, com vistas a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. Atina-se, ainda, que os modelos éticos vigentes, que amparam o Direito Ambiental, são inconsistentes em decorrência dos novos conflitos ambientais. Perante esta posição, é necessário incorporar fundamentos éticos de solidariedade, responsabilidade e sustentabilidade para que o meio ambiente passe a adquirir a dimensão de objeto da responsabilidade humana. Desta forma, este trabalho está centrado em um novo marco de referência para a construção de uma ética holística e, nesse sentido, possibilitar a construção de um novo Direito Ambiental. Palavras-chave: Ética Ambiental; Responsabilidade; Direito Ambiental. Abstract The objective of this works is to analyze the relevance of investigating the concerns based on ethics and environmental law , with the aim of defending and preserving the environment for current and the next future generations , because it is a right that binds all living beings focusing on an ecologically balanced environment . It is understood also the current ethical models, which support environmental law, are inconsistent as a result of new environmental conflicts. Given this position, it is necessary to incorporate ethical foundations of solidarity, responsibility and sustainability for the environment acquire the object of human responsibility. Thus, this works focuses on a new benchmark for the construction of a holistic ethics and, in this sense, allows the construction of a new Environmental Law Keywords: Environmental Ethics; Responsibility; Environmental Law

Introdução Nos últimos anos, o Direito e a questão ambiental defrontaram-se de maneira explícita. A realidade viva e mutante do Planeta requer e impõe novas normas de conduta aos homens e a sociedade: é desta forma que se pode 1 Doutora em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Mestre em Gestão Ambiental pela Universidade Estácio de Sá. Especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense. Graduanda em Pedagogia pela Universidade Estácio de Sá. Docente dos Cursos de Graduação e Pós-graduação Lato Sensu da Universidade Estácio de Sá e Docente da Pósgraduação Lato Sensu da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro – EMERJ.

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compreender o aparecimento do Direito Ambiental, ramo novo da velha Ciência Jurídica. O mesmo sucede com a Ética em relação a essa nova ordem planetária. As solicitações ambientais alcançam, também, o comportamento humano em face do mundo natural e seus recursos, assim como do mundo dos homens e suas próprias realizações, pois a presença do homem é fator determinante da qualidade do Planeta. A Ética, portanto, defendida na visão corrente, defende os interesses da conduta humana susceptível de qualificação do ponto de vista do bem e do mal, seja relativamente à determinada sociedade, seja de modo absoluto. O presente trabalho pretende atender aos seguintes questionamentos: onde se pode, então, encaixar a palavra ética no vocabulário ambiental? É certo que se pode inferir que o uso da ética nas questões ambientais protegeria os interesses do homem em preservar o ambiente para somente, e tão somente, evitar o caos futuro que devastasse a espécie da face da terra? Qual é o centro das preocupações atuais quanto à qualidade de vida: a espécie humana ou o Planeta como um todo? ou Qual a visão jusfilosófica adotada pelo Direito Ambiental? Como conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a preservação do meio ambiente?

Solidariedade e responsabilidade diante do meio ambiente

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Atualmente, vem sendo anunciado o surgimento de um novo paradigma ético para a humanidade, ou, como ensina Karl-Otto Apel (1994, p.172), “uma ética de responsabilidade solidária em face da crise ecológica da civilização técnico-científica”, que possibilita a orientação éticopolítica fundamental para uma era marcada pelo agravamento da crise ambiental e que leva em consideração a sustentabilidade planetária e a responsabilidade para com as gerações futuras. Portanto, a problemática ambiental abriu um processo de transformação do conhecimento, expondo a necessidade de gerar um método para pensar de forma integrada e multivalente os problemas globais e complexos, assim como a articulação de processos de diferente ordem de materialidade. No entender de Leff (apud HEIMBECHER, 2001, p. 33), o conceito de meio ambiente penetra nas esferas de consciência e do conhecimento, no campo da ação política e na construção de uma nova economia, inscrevendo-se nas grandes mudanças do nosso tempo. Ainda, segundo Leff (apud HEIMBECHER, 2001, p. 33), o desenvolvimento sustentável e a sustentabilidade abordam a associação de variáveis sociais, ambientais e econômicas como forças conjuntas para o crescimento e o desenvolvimento de um país, uma região ou um local, abraçam questionamentos para uma revisão do modelo econômico atual frente às evidências de iniquidade social, de imprudência com o ambiente e de inviabilidade econômica, e onde se fundamenta e se organiza um campo interdisciplinar, o “saber ambiental”. Assim, este “saber” busca integrar sociedade-ambiente-economia para um crescimento e desenvolvimento que atenda às necessidades do presente sem

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comprometer a capacidade de as gerações futuras também atenderem as suas, o que compõem o postulado ético intergeracional que é ponto de partida do desenvolvimento sustentável. Partindo-se do entendimento de que a ética auxilia as sociedades a buscar o que é bom e desejável para todos, parece evidente que a dimensão ética assume um papel importantíssimo nas discussões sobre a sustentabilidade e, no que diz respeito, às preocupações e ao cuidado com o meio ambiente e com as gerações futuras.

Sistema ambiental em busca de caminhos alternativos Aldo Leopold, na obra A Sand County Almanac, esboçou uma ética ambiental - ética da terra - que sugere um considerável alargamento da comunidade moral, fazendo-a a se ajustar com toda a comunidade biótica. A obra é um clássico da ecologia e da conservação da natureza e é conhecida, sobretudo, pelo ensaio The Land Ethc. O alargamento proposto é descrito como o desenvolvimento natural de um processo que torna os limites da ética, cada vez, mais inclusivas. Assim, conota-se que todos os seres humanos têm estatuto moral, e que em virtude deste fato obriga-o para com todos os membros da comunidade humana. Portanto, a ética da terra, procura limitar e alargar as fronteiras da comunidade de modo a abranger, também, os solos, os cursos de água, as plantas e os animais, ainda, coletivamente, a terra. A Ética da Terra integra o holismo ambiental, e defende uma visão englobante da natureza. Isto é, segundo Beckert (2003, p. 11), mediante a noção de uma comunidade biótica onde o homem tem assento, a par de outros membros da mesma, sem, no entanto, negar a necessidade de uma hierarquização axiológica. Por isso, a Ética da Terra alarga o universo de consideração moral a toda a comunidade biótica e, nessa medida, a ideia de reciprocidade é perspectivada a partir de uma concepção holística da terra. Trata-se de saber como exercer o direito (poder) de controle sobre uma realidade inseparável do próprio homem. Ainda, a ética da terra, não é a única alternativa à concepção antropocêntrica da comunidade moral. Pode-se ceder a perspectiva de que só os seres humanos fazem parte desta comunidade. Os patronos da ética da libertação animal fazem exatamente isto. Aqueles que firmam este gênero de ética, segundo Leopold (apud GALVÃO, 2005), apesar de discordarem fortemente entre si tendem a aceitar sencientismo, atribuindo estatuto moral a todos os seres sencientes, mas apenas a eles. Este é o exato momento de perguntar o motivo pelo qual ainda se fala em antropocentrismo, se já ficou claro que esse pensamento foi uma das causas de todos os problemas ambientais. A importância em mencionar esse pensamento antropocêntrico, se dá porque, apesar de mal sucedido, o antropocentrismo tentou trazer soluções para as ameaças e catástrofes naturais.

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Dentro dessa corrente é necessário apresentar aspectos diferenciados, assim, hoje, admite-se o antropocentrismo forte e o antropocentrismo moderado. O primeiro é o próprio da modernidade, da corrente New Age, influenciado pela teoria de Gaia de James Lovelock2, na qual as espécies, com suas tecnologias, é parte da escala natural das coisas, e através da tecnologia, podendo encontrar a solução para os problemas ecológicos gerado pelos próprios homens. (LOVELOCK 1991) Já no antropocentrismo moderado é possível encontrar aqueles que defendem uma ética do valor extrínseco do objeto natural, ou seja, propõem a proteção da natureza, desde que não se deixe de satisfazer as necessidades, os interesses e as comodidades humanas. Para “A proteção moral não vem do valor em si da natureza, senão do valor que o homem lhe confere”, conforme defende Capella (apud RUSCHEL.2007). Neste sentido, as limitações apresentadas pelas posições trazidas pelo antropocentrismo e pelo biocentrismo possibilitaram o surgimento, na ciência jurídica brasileira, de um terceiro aspecto, o antropocentrismo alargado, segundo Linoski (2004) 3 Este alargamento reside justamente em considerações que imprimem ideias de autonomia do ambiente como requisito para a garantia de sobrevivência da própria espécie humana, buscando ultrapassar o antropocentrismo clássico sem submergir, contudo, nos demandados do biocentrismo, e é, na verdade, fruto de uma modificação da visão antropocêntrica, operacionalizada como resposta às críticas dos biocentristas sobre uma eventual superioridade do homem sobre a natureza, segundo Morato Leite e Ayala (2011, p. 78-79). Portanto, ele é a justificativa para as questões que envolvem o desenvolvimento sustentável e a exigência de que cada geração legue a seguinte em um nível de qualidade ambiental idêntica a que recebeu da anterior, exigindo restrições das atividades econômicas considerando necessariamente a preservação do ecossistema, “fazendo surgir uma solidariedade de interesses entre o homem e a comunidade biótica de que ‘faz parte, de maneira interdependente e integrante”. Neste diapasão, o antropocentrismo alargado é a corrente de pensamento acolhida pelo direito ambiental brasileiro, trazido pelo artigo 225 da Constituição

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2 Com as mais recentes descobertas na geologia, na geoquímica, na biologia evolutiva e na climatologia, além de pesquisas pioneiras, James Lovelock oferece uma nova síntese científica em harmonia com a concepção grega da Terra como sendo um ser vivo, Gaia. (LOVELOCK, 2001) A ciência convencional pintou a Terra como sendo pouco mais do que rocha inerte, sobre a qual por acaso vivem plantas e animais. A teoria de Gaia de Lovelock nos apresenta um mundo imensamente diferente, um grandioso circuito de vida, que vai desde o seu núcleo ardente até a sua atmosfera exterior. “Assim como a concha é parte de um caracol, as rochas, o ar e os oceanos são parte de Gaia”, escreve Lovelock. 3 termo cunhado no Brasil por José Rubens Morato Leite, para designar o novo panorama encontrado na relação homem-natureza, bem como o elemento vislumbrado no direito regulador dessa “nova interação”.

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Federal de 1988 e pela Lei 6.938/81. Visto que, o antropocentrismo alargado busca situar-se entre o antropocentrismo clássico e o biocentrismo para, desta forma, tratar do meio ambiente a partir de uma expectativa que viabilize a proteção da sanidade ambiental para a sadia qualidade da vida em todas as suas formas, constituam humanas ou não. Os princípios inseridos no ordenamento jurídico brasileiro a partir da Constituição Federal de 1988, como o desenvolvimento sustentável e a equidade intergeracional, impõem reservas às atividades econômicas, passando a considera as necessidades da preservação do ecossistema. Portanto, distanciando da visão antropocêntrica radical, impondo uma solidariedade e comunhão de interesses entre o homem e a natureza, como imperativo para assegurar o futuro de ambos e dependente de forma insofismável da ação do primeiro, como verdadeiro arqueiro do meio ambiente. (MORATO LEITE. at. al. 2005, p.212)

O que se pode pedir hoje à ética ambiental? A emergência de uma nova reflexão ética é de extrema urgência, sobretudo de uma ética ambiental que possa refletir e reagir aos diversos danos causados ao meio ambiente. A referida urgência é decorrente de um crescente processo de mundialização e dos diversos problemas que alcançam a toda a humanidade, sejam eles de cunho econômico, éticos, existenciais ou ambientais. O meio ambiente deve ser definido a partir de uma concepção sistêmica, reconhecendo-o como uma totalidade, um conjunto de ações e circunstâncias, naturais, culturais, sociais, físicas e econômicas. Na realidade houve uma verdadeira mudança de paradigma, de uma visão de mundo mecanicista de Descartes e de Newton para uma visão holística. Significando dizer que o mundo é um todo integrado, e não uma coleção de partes dissociadas, portanto, reconhecendo o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebendo os seres humanos como um fio particular na teia da vida. Esta visão, também, pode ser denominada de visão ecológica, segundo Capra (2010, p. 25-26). Isto é, conceber o mundo como um todo integrado e não como uma coleção de partes dissociadas, traz a Ecologia Profunda, como um novo paradigma que pode ser chamado de uma visão holística, também, denominado de uma visão ecológica. A escola filosófica ecologia profunda desenvolvida na década de 1970, traz distinção entre “ecologia rasa” e “ecologia profunda”. Por assim dizer, a ecologia rasa é antropocêntrica, ou centrada no ser humano, já ecologia profunda não separa seres humanos – ou qualquer outra coisa – do meio ambiente natural. Ela vê o mundo não como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que estão fundamentalmente interconectados e são interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular na teia da vida, segundo Capra (2012, p.26). Esta visão holística do mundo natural, onde tudo está interligado, também serviu de inspiração para

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que James Lovelock elaborasse a chamada Hipótese de Gaia. Nessa hipótese, inicialmente em 1960, compara a Terra com um superorganismo, um sistema adaptativo controlado, capaz de manter suas características físico-químicas em homeostase. Desta forma, propõe justamente essa interação pacífica entre as criaturas sensíveis, como tentativa de restabelecer a harmonia do universo. Já não era sem tempo. Isso porque a busca por um viver sem violência, em meio à avassaladora competitividade do mundo globalizado, ainda soa como uma singela utopia. Pelo exposto, é nítida a distinção efetuada pelo biocentrismo entre o vivente e não vivente. Só aquele, enquanto entidade orgânica individualizada possui estatuto ético e, por isso, apenas o organismo possui valor intrínseco: os seres não vivos (água, ar, solos) bem como as espécies (entidades coletivas) e ecossistemas, têm valor instrumental. Assinala-se aqui a crítica que é movida ao biocentrismo pelo ecocentrismo. Segundo esta abordagem, tanto a ética animal, como o biocentrismo constituem modelos éticos atomistas, que privilegiam o indivíduo, desprezando o contexto relacional que o define. Na realidade, segundo a corrente ecocentrista trata-se de um modelo que reproduz os princípios subsumidos pelas éticas tradicionais que elegem o indivíduo enquanto unidade puramente atomística, como sujeito moral e, portanto, de direitos. Segundo esta crítica, os indivíduos são encarados per si fora do conjunto de relações que os define e determina. Para os defensores do ecocentrismo, é justamente a consideração por essa rede contextual que caracteriza uma genuína ética do ambiente. A tese ora defendida tem por desafio trabalhar o rompimento com a perspectiva baseada em valores antropocêntricos e assumir uma mudança de paradigma, adotando uma postura voltada para os valores ecocêntricos (centralizados nos direitos da Terra, do conjunto das espécies e no respeito à biodiversidade). O ser humano não vive em um mundo à parte, ao contrário, o homem ocupa cada vez mais espaço no Planeta e tem se comportado de maneira predatória contra todas as formas de vida ecossistêmicas. Portanto, não há justificativa para a dinâmica demográfica humana destruir a dinâmica biológica e ecológica. A sustentabilidade deve estar baseada na convivência harmoniosa entre todos os seres. Esta mudança paradigmática era para ter sido presenciado, pela geração atual, na Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio + 20, quando, em âmbito global, as ambiguidades do conceito de desenvolvimento sustentável, deveriam abordar as questões demográficas e os direitos da Terra e dos animais, numa perspectiva ecológica e holística. Contudo, a preocupação com a Economia Verde não tem dado espaço para se pensar formas alternativas de organização social e de interação econômica que superem o modelo atual de produção e consumo. O colapso ecológico/ambiental pode se tornar irreversível se a comunidade internacional não entrar em um acordo para reverter as tendências do aquecimento global e da depleção dos recursos naturais. O passo fundamental e necessário fazer-se pelo rompimento com o antropocentrismo e a construção de um mundo justo e ecocêntrico.

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Desta forma, uma visão ecocêntrica para a defesa ambiental e uma política pública voltada para a ética ambiental é a saída para a preservação dos recursos naturais destinados as gerações futuras, visto que, o antropocentrismo, reflete uma visão instrumentalista do meio ambiente visivelmente antagônica ao momento atual, pois a ruptura do modelo de que os recursos naturais são infinitos e que o desenvolvimento é primordial, mesmo destruindo a natureza, necessita ser revisto como um paradigma do passado.

Conclusão A índole clássica e conservadora da ciência jurídica, voltada para o ordenamento formal das ações humanas na vida em sociedade, explica por si só uma tendência conatural para o antropocentrismo. A distinção quase básica entre pessoas e coisas estabelece grande diferença entre dois mundos complementares e recíprocos, todavia separados por um fosso intransponível que, ao seu modo, a legislação cada vez mais especializada alarga e mantém aberto. Deste modo, a presunção do ora apresentado é no sentido de provocar a crítica acerca do antropocentrismo - que por fatores históricos, culturais, religiosos, filosóficos, éticos etc., se mostra na práxis das relações entre Homem e Ambiente e se posiciona na essência epistemológica do Direito Ambiental, em seus primeiros passos. A proteção ao meio ambiente suscitam muitas questões metajurídicas, dentre as quais se destacam as questões paradigmáticas. Tais questões, em última análise, têm posto em foco o ensaio contemporâneo de compatibilizar a abordagem inicial e clássica do Direito Ambiental, antropocêntrica, em uma visão solidária ou, em uma perspectiva Ecocêntrica. Assim, as principais questões éticas que a proteção do meio ambiente coloca estão envolvidas com a proteção da natureza; proteção das gerações futuras e desigualdade com relação aos ônus ambientais. Portanto, a proteção da natureza em si mesmo, considerando-a como um valor intrínseco, é um dos principais pontos do debate ambiental da atualidade e é um dos pontos de maior divergência entre todos os que se empenham na defesa ambiental. O grande debate é o que se dá entre os paradigmas jusfilosóficos que respaldam o Direito Ambiental. Ainda, a proteção das gerações futuras é tema relevante no Direito Ambiental, haja vista que grande parte das medidas de proteção ao meio ambiente são tomadas com o intuito de tutelar a vida e preservar as espécies. Busca-se que a geração atual respeite os direitos das gerações futuras. O Direito Ambiental carrega forçosamente a questão central de suas relações com outras ciências, portanto, sua definição é funcional (a proteção do meio ambiente), sob o ponto de vista material, ele tem um núcleo de disposição, porém se apresenta como uma justaposição com ouros ramos do direito. Neste sentido, o artigo 225 da CRFB inaugurou as disposições jusfundamentais acerca do meio ambiente. No entanto, percebe-se nitidamente a prevalência da perspectiva antropocêntrica nessa tutela ambiental. A concepção vigente é

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de que o meio ambiente deve ser preservado porque ele é útil ou ao menos necessário à sadia qualidade de vida. Esta dimensão é clara quando a Constituição Federal aduz em seu texto que todos, (norma direcionada aos seres humanos) têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo (visão antropocêntrica) e essencial à sadia qualidade de vida (visão antropocêntrica), impondo-se Poder Público e à coletividade o dever de defendê-la e preservá-la para às presentes e futuras gerações (visão antropocêntrica). Tanto que, atualmente, o Direito Ambiental, enfrenta um grande desafio quanto à admissão dos seus princípios no ordenamento jurídico, em decorrência da contrariedade aos interesses econômicos que representam. Interesses esses voltados exclusivamente para a tutela do homem. Desta exposição percebe-se que há uma responsabilidade em cada indivíduo, que deve exercê-la sempre em prol do saudável convívio com os seus semelhantes e com o seu meio circundante. Como consequência deste regramento surge um dever de agir, que por sinal gera uma obrigação de fazer ou de não fazer determinada coisa. Neste preciso momento, é que se deve imprimir ao Direito Ambiental uma visão holística, através de uma ética sustentável, asseverando que nenhum crescimento econômico deve justificar a degradação ambiental de maneira a estabelecer uma ruptura intertemporal nas cadeias de reprodução da vida. Neste sentido, todo desenvolvimento econômico possui um limite, um ponto nodal que representa o ponto de equilíbrio da sustentabilidade ambiental, jurídica, social e econômica. Transformações nesta ideologia requerem uma redefinição do paradigma de desenvolvimento empregado hoje nas normas ambientais e, por via de consequência no Direito Ambiental vigente. Portanto, para que haja alteração no norte no que tange a sustentabilidade ambiental se faz necessária uma vasta discussão, não local, mas global.

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Aplicação do Direito em Tempos de Pós-positivismo: ruptura ou continuidade de velhos paradigmas? Ana Paula Teixeira Delgado1 Resumo Analisa-se aqui o problema metodológico representado pela tríplice questão que movimenta a teoria jurídica no pós-positivismo – como se interpreta e se aplica, além da possibilidade de condições interpretativas constitucionalmente adequadas – e refletir sobre a dificuldade de romper com o paradigma positivista agora, quando há deslocamento do polo de tensão para o Judiciário, reprodutor do esquema sujeito-objeto. Palavras-chave: Hermenêutica filosófica; Pós-positivismo; Ativismo; Discricionariedade; Panprincipiologismo. Abstract This study aims to analyze the methodological problem represented by the threefold question that drives the legal theory in post-positivism – as it plays, how it applies and whether it is possible to achieve conditions interpretive secure a constitutionally adequate – and difficulty to break with the positivist paradigm of yore in a moment in history where there is a pole shift voltage for the Judiciary, player of the subject-object scheme. Keywords: Philosophical Panprincipiologismo.

hermeneutics;

Post-positivism;

Activism;

Discretion;

Introdução O novo constitucionalismo que emergiu após a segunda metade do século XX se transformou em campo fértil para o surgimento de diversas teorias que passam das teorias do discurso à fenomenologia hermenêutica, sem esquecer das teorias realistas. Nos últimos cinquenta anos, tais teorias tiveram um objetivo comum: superar o modelo das regras, tentar resolver o problema de sua incompletude e solucionar os ‘casos difíceis’ (não abarcados pelas regras), bem como a (in)efetividade dos textos constitucionais (compromissórios e dirigentes). Uma das principais disputas de paradigmas (novos paradigmas demandam formas inovadoras de compreensão) foi a de Gadamer, que resgatou o valor da tradição, colocando a pré-compreensão como condição de possibilidade. A 1 Doutoranda em Direito pela UNESA. Mestre em Direito pela UGF. Bacharel em Direito pela UFRJ. Coordenadora Nacional dos Cursos de Pós-graduação em Direito da Estácio. Professora da Faculdade Mackenzie/RJ.

Aplicação do Direito em Tempos de Pós-positivismo: ruptura ou continuidade de velhos paradigmas?

pré-compreensão está relacionada com a historicidade e a faticidade do modo de ser no mundo, que Heidegger havia percebido para superar a metafísica representacional. O giro ontológico operado por Heidegger coaduna-se com o paradigma de Direito instituído pelo Estado Democrático de Direito e proporciona a superação do modelo de regras, isto é, o Direito como sistema de regras, fenômeno que somente se torna possível a partir dos princípios introduzidos no discurso constitucional, que representa a efetiva possibilidade de resgate do mundo prático da faticidade, negado, até então, pelo positivismo. Neste cenário, não se pode mais realizar o esquema sujeito – objeto, mas sim o esquema sujeito – sujeito, isto é, o sentido estaria na linguagem – é a invasão da filosofia pela linguagem, em que se deixa o procedimento de lado, colocando o lócus da compreensão no modo-de-ser e na faticidade. Dessa forma, salta-se do ‘fundamentar’ para o ‘compreender’, no qual se torna o modo-de-ser encontrado em uma intersubjetividade. No entanto, observa-se que a viragem linguístico-hermenêutica não foi recepcionada pela comunidade jurídica, que ainda não superou um problema de ordem metodológica, uma vez que não mais se separa ‘interpretação’ de ‘aplicação’ e o ativismo/decisionismo, através do qual o Poder Judiciário utiliza-se da discricionariedade, instrumentalizada equivocadamente pelo uso indiscriminado de princípios, com vistas a alcançar uma resposta para cada caso concreto, o que traz fatalmente sérios problemas referentes à aplicação do Direito nos tempos atuais.

Emergência do Pós-Positivismo: Novo Paradigma ou Repristinação de Antigos Modelos? Modelos pós-positivistas e o problema das mixagens teóricas Em face do esgotamento teórico dos modelos positivistas da teoria do Direito, buscou-se construir novo paradigma com vistas a enfrentar problemas interpretativos e próprios da razão prática, que passou a ser cunhado de póspositivismo, por pretender romper com os projetos positivistas de outrora, de modo a superar suas insuficiências. Tratou-se, assim, de construir condições de possibilidade para atender às necessidades de um mundo que emergia após a Segunda Guerra Mundial, por meio de um paradigma de matiz ético-filosófica compatível com a ideia do Estado Democrático de Direito. Diversas teorias pós-positivistas buscam enfrentar os problemas interpretativos de maneira diferente, partindo de orientações filosóficas diversas, a saber, o póspositivismo de matriz analítica, que está presente na obra de Robert Alexy; o pós-positivismo discursivo-comunicacional, que se manifesta em Habermas; o pós-positivismo hermenêutico-fenomenológico, de Ronald Dworkin; e o póspositivismo de corte gadameriano presente nas obras de Friedrich Muller.

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Ana Paula Teixeira Delgado

A despeito do desenvolvimento dos referidos modelos pós-positivistas, cumpre indagar se essas teorias superaram de fato o positivismo jurídico. Para tanto, dentre outros fatores, é importante romper com o solipsismo do sujeito da modernidade e desviar-se do sincretismo teórico, evitando-se, dessa maneira, confrontos entre a hermenêutica filosófica – antirrelativista – que tem na pré-compreensão a antecipação do sentido, e a teoria da argumentação, de cunho relativista, associada ao esquema sujeito-objeto, a qual admite múltiplas respostas. O ecletismo metodológico põe em xeque a construção teórica, o que ocorre frequentemente com autores que utilizam as teorias procedualistas de Habermas e a ponderação de Alexy (Streck apud Duarte & Pozzolo, 2006, p.12), o que enfraquecerá a construção teórica pós-positivista. Para que haja real superação do Positivismo, além de se evitar mixagens teóricas, deve-se superar o problema do solipsismo epistemológico que permeia todas as espécies de positivismo, conforme observa Lenio Streck: Nessa medida, é preciso ressaltar que só pode ser chamada de pós-positivista uma teoria do direito que tenha, efetivamente, superado o positivismo (pós-exegético). A superação do positivismo implica o enfrentamento do problema da discricionariedade judicial, ou também poderíamos falar, no enfrentamento do solipsismo da razão prática. (STRECK, 2011, p.508)

Considerando que o Positivismo caracteriza-se pelas fontes sociais e pela discricionariedade judicial nos supostos casos difíceis, para que haja verdadeira descontinuidade é preciso que se preserve a autonomia do Direito recebida com o advento das Constituições dirigentes e que se supere o problema das fontes sociais, tendo em vista que a Constituição é o lócus hermenêutico de um sistema jurídico que corresponde ao Estado Democrático de Direito. Outra característica que deve ser rompida é a separação entre Direito e moral, uma vez que a moralização do Direito cede lugar ao Direito moralizado, o qual recebe conteúdos morais em sua fase de elaboração legislativa, vinculando a applicatio, o que representa uma blindagem à discricionariedade.

Panprincipiologismo como Instrumento de Decisionismos É certo que a discricionariedade judicial representa uma antítese do Direito e da democracia e não se coaduna com o Estado que exsurgiu no Brasil após a promulgação da Constituição de 1988. Tal discricionariedade é instrumentalizada hodiernamente pela utilização indiscriminada de princípios. Através dos tempos, nota-se que a discricionariedade constituiu prerrogativa tanto do monarca, quanto do legislativo e, mais recentemente, do Judiciário com o deslocamento do polo de tensão em direção a este poder, o que conduziu a um grau de judicialização sem precedentes. Observa-se que, no Antigo Regime, a discricionariedade situava-se na pessoa do monarca, transferindo-se para o Poder Legislativo com o advento do Estado pós-revolucionário. O deslocamento da discricionariedade para o

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referido poder acabou por caracterizar um Estado essencialmente legislativo e autoritário, no qual a lei era potencialmente capaz de suprir toda a faticidade e o juiz assumia o papel de boca-da-lei (Streck, 2011, p.514), modelo já superado. No entanto, com o desenvolvimento desse sistema de codificação, verificase que a lei não cobre toda a realidade fática, a qual apresenta problemas que não foram contemplados pelo legislador. Constata-se que a faticidade não cabe dentro da lei, o que revela a insuficiência do sistema adotado. Diante dessa constatação, a discricionariedade é deferida pelo legislador à autorização legislativa para a análise discricionária no caso concreto, que é instrumentalizada através dos princípios, sucedâneos dos princípios gerais do Direito. Neste contexto, os princípios passam a ser concebidos como veículos introdutores dos valores da sociedade no Direito, diante da ausência de leis apropriadas para cobrir a faticidade. Note-se que a autorização legislativa para a análise discricionária do juiz no caso concreto é cunhada por Lênio Streck de “discricionariedade de segundo nível, que acaba por se consubstanciar em uma política judiciária. Confere-se ao juiz a possibilidade de determinar a lei do caso, preenchendo as indeterminações criadas pelas autoridades legislativas” (STRECK, 2011, p.514). A instrumentalização da discricionariedade por princípios foi desenvolvida pela atividade judicialista do Tribunal Constitucional Alemão após a Segunda Guerra Mundial, que se incumbiu de legitimar a Lei fundamental diante de casos concretos ocorridos sob a égide do Direito nazista. Analisando-se o contexto de refundação do Estado alemão, verifica-se ter sido necessário realizar a ruptura com o regime anterior, o que demandava a tomada de decisões extra legem e – por que não dizer? – contra legem mediante princípios axiológico-materiais, instrumentos que permitiam justificar a fundamentação das decisões, de maneira a adequá-las aos ideais da democracia e à fundação de novo Estado. Diante da óptica do Tribunal alemão, os princípios incorporariam a moral ao Direito, inserindo valores aos textos constitucionais. A Constituição constituía uma “ordem suprapositiva de valores”, razão pela qual surge a expressão “jurisprudência dos valores”, atividade desenvolvida pela Corte (OLIVEIRA, 2008). Verifica-se que, na era atual, os princípios passam a ser utilizados indiscriminadamente para solver determinados casos considerados de difícil solução ou em razão das incertezas da linguagem. A partir daí, constatase a criação de uma multiplicidade de princípios, prêt-à-porter retóricos para sustentar decisões pragmatistas, muitas vezes tautológicos e, até mesmo, insuperáveis. Nesse sentido, a obra de Lenio Streck (2011) faz arguta crítica ao panprincipiologismo, procedendo à análise de princípios utilizados largamente na cotidianidade dos tribunais e da doutrina, identificando a pretensão retóricocorretiva e a tautologia em cada princípio citado. A utilização equivocada e desenfreada desses princípios conduz a múltiplas respostas e, evidentemente, traduz o relativismo inerente ao obsoleto esquema sujeito-objeto.

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Os princípios, deste modo, passam a ser concebidos como pautas axiológicas, representando o lócus da junção entre Direito e moral. Por meio do chamado principialismo, característico do neoconstitucionalismo, infere-se que qualquer resposta pode ser aparentemente correta. A proliferação de princípios jurídicos –– cunhada por Streck (2011) de Panprincipiologismo –– enfraquece a autonomização do Direito e repristina o modelo positivista de outrora, tendo-se em mente que constitui instrumento de decisionismos e/ou ativismos judiciais. Pode-se afirmar que a normatividade dos princípios constitui uma característica do neoconstitucionalismo; no entanto, estes não podem ser olhados da mesma maneira dos novecentistas princípios gerais de Direito. Antes de constituírem a porta de entrada para os valores no Direito, devem ser examinados como instrumentos introdutores do mundo prático no Direito, sob o espeque da observância à tradição e da observância à história jurídicoinstitucional.

Princípios: Cláusulas de abertura ou fechamento? Em face da cultura de proliferação de princípios estabelecida no Direito, é necessário construir-se uma adequada concepção de princípios no horizonte de uma reconstrução histórico-institucional de nossa comunidade. Longe de constituírem uma reserva hermenêutica para a resolução de casos difíceis, os princípios possuem um conteúdo deontológico e instituem as condições de possibilidade da normatividade, realizando a applicatio. A ideia de princípio como canal de ingresso da moral deve ser superada, já que, com o advento das Constituições dirigentes elaboradas pós-Segunda Guerra Mundial, a moral não é mais utilizada de forma corretiva no Direito. Diferentemente, é imperioso destacar que o Direito incorporou a moral, porque se autonomizou. Os princípios constitucionais devem superar o modelo discricionário do positivismo, de forma a justificar uma decisão no interior da prática interpretativa que define o Direito. No esteio deste entendimento, o princípio, longe de ser concebido como cláusula geral de abertura axiológica, realiza um fechamento hermenêutico, pois não autoriza o intérprete e o vincula desde fora. A partir do momento em que os princípios são compreendidos como instituidores das condições de possibilidade da normatividade, abandonase a visão privatista dos princípios gerais do Direito de outrora, em favor da publicização do neoconstitucionalismo que emergiu no segundo pós-guerra. A despeito de toda a importância que os princípios obtiveram no neoconstitucionalismo, constata-se a indeterminação de seu conceito, sobretudo a partir da análise de teorias pós-positivistas, como a de Robert Alexy. Na obra Teoria dos Direitos Fundamentais, o jusfilósofo Alexy preconizou que as normas de direitos fundamentais podem ser regras ou princípios que apresentam entre si uma distinção estrutural. Enquanto as normas-regra são

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comandos de determinação, por traduzirem um dever ser restrito; as normas principiológicas constituiriam mandados de otimização, de ‘dever ser’ alargado, de maneira que, ao entrarem em conflito, tal dirimir-se-ia por meio do procedimento da ponderação, ao passo que a regra, dado o seu baixo teor de abstração seria aplicada por subsunção. Caso se pretenda realmente operar a descontinuidade com o positivismo discricionário, que instrumentaliza a discricionariedade por meio da concepção privatista de princípio, é necessário abandonar a noção de que o princípio é uma abertura axiológica do sistema (OLIVEIRA, 2008). A concepção dos princípios através de um critério semântico-sintático, tal qual o faz Alexy, indica uma objetificação de seu próprio conceito e representa a cisão estrutural entre regra e princípio. Daí, a construção da ponderação como procedimento para resolver o conflito de princípios, que permanece dentro da relação sujeito e objeto. Nesse sentido, Rafael Tomás de Oliveira (2008, p.223) realça a inexistência de princípio para cada caso, bem como a inexistência de dois princípios em colisão, destacando que, uma vez compreendido e já interpretado, sempre aconteceram os princípios e não “o princípio”. Os casos difíceis que devem ser solucionados através de princípios, na lógica de Robert Alexy, nada mais representam do que a moldura normativa de Hans Kelsen e a repristinação do semanticismo, que é ínsito ao solipsismo. O posicionamento de Alexy opera, desse modo, um ‘sequestro’ no mundo prático, pois o princípio não se determina pelo grau de abstração ou generalidade, tampouco o princípio introduz pretensos valores, conforme aduzido anteriormente. É importante destacar que Lenio Streck critica as posições ligadas à teoria da argumentação e seus diversos matizes, na medida em que se concebem princípios como regras ou protorregras, devido a terem sido anulados por conceitualizações (STRECK, 2012, p.174). Contrariamente à ideia de cláusula de abertura, os princípios constitucionais representam um fechamento hermenêutico na medida em que realizam a applicatio na situação concreta a ser normatizada. Por tal razão, afirma Rafael Tomás: Esse semanticismo é fatalista, porque delega àquele sujeito da modernidade o poder discricionário de resolver sua demanda. Por tudo o que foi dito, ficou claro que a ponderação não resolve o problema da discricionariedade a partir da justificação matemático-procedimental da decisão judicial, mas sim retorna de um modo ainda mais perigoso, uma vez que legitima a discricionariedade do juiz a partir de uma validação pelo procedimento. (OLIVEIRA, 2008, p.222-3)

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Em contrapartida, a regra diz respeito a inúmeras possibilidades, representando uma abertura semântica, daí o seu caráter universalizante e poroso, tendo em vista que pretende abarcar todos os casos fáticos. Por tudo isso, é importante afirmar que não há casos aos quais se aplicam regras e casos aos quais se aplicam princípios, pois existe sempre a compreensão

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de regras e princípios. Neste esteio, não há cisão entre regras e princípios, mas apenas diferenças ontológicas. Os princípios existencializam as regras e possuem força normativa. Não se pode, assim, isolar regras de princípios, pois não há regras sem princípios e vice-versa. A adequada utilização de princípios reflete o respeito à tradição, à coerência e à integridade do Direito. Para tanto, as decisões baseadas em princípios requerem a devida motivação, em consonância ao art.93, XI da Constituição Federal, dispositivo típico de um Estado Democrático de Direito, o que leva, no entendimento de Lênio Streck, a uma espécie de “accountability” (Streck, 2011, p.471), importando na responsabilidade política dos magistrados. O dever dos juízes e dos tribunais de fundamentação das decisões corresponde ao direito dos cidadãos de terem suas coisas julgadas a partir das Constituição e de terem condições para aferir se a resposta é, de fato, constitucionalmente adequada. O dever de fundamentação constitui uma blindagem às interpretações deslegitimadoras e representa um meio para se coibir a discricionariedade, respeitando-se a força normativa da Constituição, a autonomia do Direito, a coerência e a integridade, o que possibilitará a obtenção da resposta constitucionalmente adequada.

Conclusão Em face do esgotamento teórico dos modelos positivistas da teoria do Direito, buscou-se construir novo paradigma com vistas a enfrentar problemas interpretativos e próprios da razão prática, que passou a ser cunhado de póspositivismo, por pretender romper com os projetos positivistas de outrora, superando suas insuficiências. Tratou-se de construir condições de possibilidade para atender às necessidades de um mundo que emergia após a Segunda Guerra Mundial, por meio de um paradigma de matiz ético-filosófica, compatível com a ideia de Estado Democrático de Direito. Dentre estas teorias, destaca-se o pós-positivismo de matriz analítica de Robert Alexy, que propõe a diferença estrutural entre regras e princípios, bem como a solução de casos difíceis através de princípios, que passam a ser vistos como “capas hermenêuticas”, visando à solução desses casos. Neste cenário, a utilização equivocada de princípios enfraquece a autonomização do Direito e repristina o modelo positivista de outrora, tendo em vista que constitui instrumento de decisionismos e/ou de ativismos judiciais. Ao contrário, longe de constituírem uma reserva hermenêutica para a resolução de casos difíceis, os princípios possuem conteúdo deontológico e instituem as condições de possibilidade da normatividade, efetivando a reconciliação entre a teoria e a prática, esquecida pelo positivismo. Constata-se, assim, que a viragem linguístico-ontológica operada por Heidegger não foi recepcionada pelos juristas da atualidade, na medida em que a interpretação continua a ser concebida como ato de vontade do intérprete, o

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que reflete uma postura solipsista, capaz de rechaçar até mesmo a Constituição. Da mesma forma, continua-se operando a cisão entre interpretação e aplicação, assim como entre Direito e moral, do mesmo modo que tampouco foram superadas as fontes sociais, próprias do Positivismo Jurídico. Neste cenário, o discurso exegético-positivista que ainda domina a dogmática jurídica praticada cotidianamente constitui um retrocesso, pois, de um lado, sustenta discursos objetivistas, identificando texto e norma (sentido do texto) e, de outro, busca nas teorias subjetivistas submeter o texto à subjetividade do intérprete, ou seja, uma subsunção do fato à norma, como se fato e Direito fossem cindíveis e o texto fosse mero enunciado linguístico. A partir de todo o exposto, conclui-se que há uma urgente necessidade de mudança na atuação do Judiciário brasileiro, a qual já vem sendo discutida na doutrina há muito tempo. A situação atual traduz a existência de um ativismo judicial legitimado pelo positivismo, em que o juiz decide como quer, de acordo com a sua subjetividade, e o lócus da interpretação passa a ser a subjetividade do intérprete, que coloca de lado o texto jurídico (quando lhe interessa) sob o pretexto de que cabe ao intérprete a ‘descoberta’ dos valores escondidos sob o texto. O resultado disso é uma situação incontrolável no plano da operacionalidade do Direito, demandando reações contra esse ‘ir além’ dos marcos do ordenamento.

Referências bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. DUARTE, Écio Oto Ramos & POZZOLO, Susanna — Neoconstitucionalismo e Positivismo Jurídico. As Faces da Teoria do Direito em Tempos de Interpretação Moral da Constituição. São Paulo, Landy Editora, 2006. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1991. OLIVEIRA, Rafael Tomás de. Decisão judicial e o conceito de princípio: a hermenêutica e a (in) determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. SARMENTO, Daniel. Interpretação constitucional, pré-compreensão e capacidades institucionais do intérprete. In: SOUZA NETO, Claudio P.; SARMENTO, Daniel; BINEMBOJN, Gustavo (orgs.). Vinte anos de Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. p. 312 SOUZA NETO, Claudio P.; SARMENTO, Daniel; BINEMBOJN, Gustavo (orgs). Vinte anos de Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a letra da lei é uma atitude positivista? Disponível em . Acesso em 24.03.2012. __________. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 10.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. ____________ O que é isso? Decido conforme minha consciência. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2012. _____________. Verdade e consenso: constituição, hermenêutica e teorias discursivas. 4.ed. São Paulo: Saraiva, 2011.

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Justiça restaurativa para a criança e o adolescente: uma justiça que humaniza o processo “socioeducativo” Carina Barbosa Gouvêa1 “Toda prisão no Brasil é ilegal, porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal”. Luis Carlos Valois “Talvez seja o momento de educar os homens, para não punir as crianças.” Marcelo Semer Resumo Para além do compromisso Estatal, as crianças e adolescentes possuem importantes instrumentos legais que deflagram a proteção irrestrita aos seus direitos, podendo ser divididos em universais e regionais. Quanto aos universais, podemos citar o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, em seu artigo 24, inciso 182; o Pacto sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, em seu artigo 103; a Declaração dos Direitos da Criança, de 1959; as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Juventude (as regras de Beijing), de 1985; dentre outros. Quanto aos instrumentos regionais, pode-se elencar a Carta Africana sobre os direitos dos povos, de 1981; a Convenção Americana sobre Direitos Humanos; a Convenção Europeia sobre Direitos Humanos. Muito embora todas estas convenções tenham provado ser um marco essencial na promoção e proteção universal, numerosos desafios permanecem para serem superados, antes que estes direitos possam se tornar uma realidade viva, incluindo, particularmente, as situações em que as crianças entram em conflito com a lei. As delinquências juvenis são vulneráveis, em especial, e seus direitos precisam ser abordadas de forma efetiva. Os desafios são consideráveis e, para se progredir neste importante campo de proteção legal, são necessários esforços vigorosos, harmônicos, solidários e efetivos4. 1 Membro da Comissão dos Direitos da Criança e do Adolescente OAB/RJ; Doutoranda em Direito pela UNESA; Mestre em Direito pela UNESA; Pesquisadora Acadêmica do Grupo “Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional”; Professora da Pósgraduação em Direito Militar; Professora de Direito Constitucional, Direito Eleitoral e Internacional Penal; Pós -graduada em Direito do Estado e em Direito Militar, com MBA Executivo Empresarial em Gestão Pública e Responsabilidade Fiscal; Advogada; E-mail: . 2 O direito da criança a proteção especial sem discriminação alguma; o direito de ser registrada imediatamente após o nascimento e o direito a uma nacionalidade – art 2418. 3 Proteção e assistência à família, matrimônio contraído livremente, proteção à maternidade, proteção e assistência à criança e ao jovem - art. 10º. 4 Direitos Humanos na Administração da Justiça: Manual de Direitos Humanos para Juízes, promotores e Advogados. International Bar Association. Outubro de 2010, p.477-479.

Justiça restaurativa para a criança e o adolescente: uma justiça que humaniza o processo “socioeducativo”

Palavras-chave: Justiça restaurativa; Socioeducativo; Criança e Adolescente. Abstract In addition to the State commitment, children and adolescents have important legal instruments that trigger the unrestricted protection of their rights and can be divided into universal and regional. As for universal, we can mention the International Covenant on Civil and Political Rights, article 24, item 18; the Covenant on Economic, Social and Cultural Rights, Article 10; the Declaration of the Rights of the Child, 1959; the United Nations Standard Minimum Rules for the Administration of Justice Youth (the Beijing Rules), 1985; among others. As for regional instruments, you can list the African Charter on the rights of peoples, 1981; the American Convention on Human Rights; the European Convention on Human Rights. Although all these conventions to have proven to be a key milestone in the universal promotion and protection, many challenges remain to be overcome before these rights turn into a living reality, including in particular situations where children come into conflict with the law. The delinquencies juneniles are vulnerable in particular, and their rights need to be addressed effectively. The challenges are considerable and, to progress in this important field of legal protection are needed vigorous, harmonious, supportive and effective efforts. Keywords: Restorative justice; Childcare; Child and adolescent.

Maioridade penal: simplesmente uma inconsequência? A redução da maioridade penal tem sido uma preocupação universal. A Convenção sobre os Direitos da Criança dispõe, em seu artigo 1º, que “uma criança significa todo ser humano que esteja abaixo da idade de dezoito anos, a menos que, segundo a lei aplicável à criança, a maioridade seja atingido mais cedo”. No que se refere à idade da responsabilidade criminal, a convenção não fixa limites, mas dispõe no artigo 40(3)(a) que os Estados partes, em particular, buscarão “o estabelecimento de uma idade minima, abaixo da qual as crianças serão presumidas como não tendo capacidade para infringer a lei penal”. Neste sentido, o Comitê manifestou preocupação quando crianças (adolescentes) com 16 a 18 anos são tratadas como adultos para fins de aplicação da lei criminal. Cabem aos Estados partes estabelecerem a fixação da idade mínima para a responsabilidade criminal. Tal idade não deve ser indevidamente baixa e precisa respeitar o melhor interesse da criança - o princípio da não discriminação, do direito à vida, da sobrevivência, do desenvolvimento, e de ser ouvida. Este objetivo visa à reabilitação e à integração social da criança e do adolescente. Assim, se suspeita, acusada ou reconhecida de ter infringido a lei penal, deve ser tratada de uma forma consistente com a promoção do sentido de dignidade e merecimento da criança, o que reforça o respeito pelos direitos humanos e liberdadades fundamentais de outros, e que leva em consideração a idade e o desejo de promover a reintegração destas e a assunção, pela criança, de um papel construtivo na sociedade5.

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5 Direitos Humanos na Administração da Justiça: Manual de Direitos Humanos para Juízes, promotores e Advogados. International Bar Association. Outubro de 2010, p.486.

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Uma das maiores preocupações do Comitê é com o número insuficiente de recursos e programas para a recuperação física e psicológica e para a reintegração social destes adolescentes. Ou seja, a falta de medidas de reabilitação e recursos educacionais, bem como a colocação de delinquentes em centros e detenção, ao invés de instituições de cuidado para a sua reabilitação. A privação da liberdade de uma criança apresenta um problema especial no fato de que esta ainda está em um estágio muito sensível de desenvolvimento, podendo sofrer sérios efeitos psicológicos adversos, mesmo irreversíveis, se removida para fins de detenção. Este é um esforço da lei internacional de direitos humanos que tenta reduzir a privação da liberdade ao mínimo, com a finalidade de mitigar os efeitos negativos da privação. A questão do acesso à educação é naturalmente de particular importância na reabilitação do adolescente, que tem o direito à educação adequada às suas necessidades e capacidades, visando prepará-lo para o retorno a sociedade. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) foi formulado com o objetivo de intervir positivamente na tragédia de exclusão experimentada pela nossa infância e juventude, apresentando duas propostas fundamentais: garantir que as crianças e adolescentes brasileiros, até então reconhecidos como meros objetos de intervenção da família e do Estado, passem a ser tratados como sujeitos de direitos; e o desenvolvimento de uma nova política de atendimento à infância e à juventude, informada pelos princípios constitucionais da descentralização política-administrativa, com a consequente municipalização das ações e a participação da sociedade civil.6 Convém admitir que a lei, ainda que reconhecida sua excelência, não tem o condão de por si só alterar a realidade social. O que transforma a sociedade é, na verdade, o efetivo exercício dos direitos previstos na lei, a partir de uma atuação firme e decidida daqueles que, de uma forma ou de outra, detém o poder e, por via de consequência, a responsabilidade para criar as condições e os meios indispensáveis ao exercício de tais direitos.7 Consideradas nossas iniquidades (políticas, sociais ou econômicas) e na perspectiva da construção de condições mais justas e igualitárias, aqui, entendido, como capazes de por si, instalar relações solidárias e pacíficas, pretende-se, nesta atual quadra histórica, que as forças progressistas da sociedade brasileira venham a intervir de maneira mais incisiva na implementação de regras e diretrizes do Estatuto8. 6 DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado. 6 ed.DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Ildeara de Amorim (Org.). Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, 2013, p. ii. 7 DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado. 6 ed.DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Ildeara de Amorim (Org.). Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, 2013, p. ii. 8 DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado. 6 ed.DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Ildeara de Amorim

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O sistema de justiça, sob a égide do princípio constitucional da prioridade absoluta à criança e ao adolescente, previsto no art. 227 da Carta, deve atuar quando necessário, com efetiva preferência, afinco e eficiência na materialização das promessas de cidadania para a população infanto-juvenil. A Lei 12.594/12 instituiu o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase), que regulamenta as medidas socioeducativas destinadas a adolescentes que pratiquem ato infracional. Por medidas socioeducativas, entendem-se as previstas no art. 112 do ECA, as quais têm por objetivos: responsabilização do adolescente, quanto às consequências lesivas do ato infracional, a integração social e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento e a desaprovação da conduta infracional. Neste sentido, conforme Vay9, o ECA, em seu art. 172, prevê que o adolescente apreendido em flagrante de ato infracional deverá ser, o mais cedo possível, encaminhado à autoridade policial competente e que: “havendo repartição policial especializada para atendimento de adolescente e em se tratando de ato infracional praticado em co-autoria com maior, prevalecerá a atribuição da repartição especializada, que, após as providências necessárias e conforme o caso, encaminhará o adulto à repartição policial própria”.

E qual o grande objetivo? Restringir ao máximo o tratamento desumano e degradante aos adolescentes apreendidos em flagrante de ato infracional. Apesar da ampla gama de direitos reconhecidos, o sistema acaba por não adequar as necessidades relacionadas seja pela legislação nacional, seja pela internacional, fazendo com que estes sejam considerados uma mera utopia, uma legislação simbólica, um conto de fadas. E a cada hora a imprensa noticia um crime do qual tenha participado um adolescente e o tema da redução da maioridade penal volta ao centro das discussões. A falsa ideia de impunidade vem sendo disseminada na sociedade, paradoxalmente, ao mesmo tempo em que o país se torna um dos maiores encarceradores do mundo.10 De acordo com Semer, mais de meio milhão de almas já entopem esse precário e depauperado sistema prisional. Encarcerar adolescentes não vai trazer paz ou segurança, vai apenas armar outra de tantas bombas-relógios sociais, montadas no sistema penitenciário. E apesar de possuir um sistema privilegiado, esta é a realidade do adolescente infrator em terrae brasilis: várias comarcas não dispõem de repartição policial

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(Org.). Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, 2013, p. ii. 9 VAY, Giancarlo Silkunas. Prioridade absoluta às avessas: que a juventude permaneça no cárcere. Justificando. Disponível em . Acesso em 08 de set de 2014. 10 SEMER, Marcelo. Sem Juízo. Disponível em < http://blog-sem-juizo.blogspot.com.br/2013/01/ reduzir-maioridade-penal-e-equivoco.html?m=1>. Acesso em 10 de set de 2014.

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especializada e, quando dispõe, são insuficientes; permanecem nas carceragens, por vezes separados dos adultos, por vezes não; por vezes, sem acesso à luz solar, por vezes, sem direito a comida, com péssimas condições de higiene, de assim por diante… A lei por si só não transforma e é necessário cada vez mais ampliar a participação da sociedade civil nas instâncias democráticas, pois o sentido de responsabilidade deve perpassar as obrigações institucionais. Toda prisão no Brasil é ilegal, porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal11. Nas palavras de Valois, cada instituição coloca a culpa na outra, o poder judiciário coloca a culpa no poder executivo, que por sua vez coloca a culpa no legislativo. O legislativo cria leis mais punitivas e ações cada vez mais severas. O judiciário prende cada vez mais e não olha a situação específica de cada cidadão que está sendo preso. E esta é a cultura punitivista na nossa sociedade, enraizada tanto no executivo, como no legislativo e judiciário. Essa é, portanto, a primeira causa de termos um sistema penitenciário superlotado e desumano, conclui Valois. Para Valois, nenhuma prisão do mundo ressocializa. A pessoa pode se ressocializar sem prisão, com prisão e apesar da prisão. Este discurso tem sido utilizado para encarcerar. Na sua pesquisa, de cada 100 acórdãos que usavam o termo ressocialização, 60 usavam para encarcerar, aumentar ou agravar a pena, ou seja, punir. “Tornar a justiça incoerente e sem capacidade de diálogo é tornar a própria justiça, mais do que injustiça, incapaz de realizar a justiça”. Necessária a construção de outro olhar, que compartilhe a intervenção de todos no sentido de garantir a plena efetivação dos direitos da criança e do adolescente, com a mais absoluta prioridade, tal como preconizado no comando supremo da Carta Constitucional. Talvez seja o momento de educar os homens, para não punir as crianças.12

Princípio da solidariedade: um importante olhar O princípio da solidariedade e dos deveres fundamentais13 é um importante instrumento para compor compromisso do Estado nas políticas públicas de efetivação dos direitos da criança e do adolescente. A justiça social e a justiça restaurativa mantêm vínculos com a afirmação do princípio da solidariedade. O apoio mútuo entre os que participam de grupos beneficiários da redistribuição de bens sociais, característicos da solidariedade, 11 VALOIS, Luis Carlos. Toda prisão no Brasil é ilegal, porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal. Causa Operária Online. Disponível em . Acesso em 16 de set de 2014. 12 SEMER, Marcelo. Sem Juízo. Disponível em < http://blog-sem-juizo.blogspot.com. br/2013/01/reduzir-maioridade-penal-e-equivoco.html?m=1>. Acesso em 10 de set de 2014. 13 GOUVÊA, Carina B. O direito fundamental à saúde na perspectiva da participação social e solidariedade no estado democrático de direito. Fragmentos da Dissertação de Mestrado apresentado na Universidade Estácio de Sá/Rio de Janeiro em agosto de 2012.

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aproxima-se do valor da justiça14, entendida como virtude que não resulta de norma isolada, mas de um conjunto de normas e instituições que orientam uma sociedade.15 Para Rapozo, a fraternidade tem ocupado lugar de menor destaque, em comparação com a igualdade e liberdade, como conceito político, que implicaria apenas um senso de amizade cívica e solidariedade social, mas não expressaria qualquer exigência definida. A solidariedade encontra sua função legitimadora16 de forma indireta, sob o pressuposto de que a correspondência entre direitos e deveres fundamentais implica que o particular está vinculado aos direitos fundamentais como destinatário de um dever fundamental. No “estado de liberdade”, os deveres fundamentais são categorias jurídicas autônomas em relação aos direitos fundamentais, não dependentes desses últimos. A solidariedade requer responsabilidade coletiva, assumindo-se como próprios os interesses do grupo, acrescentando-se, desta forma, uma lógica da ação coletiva e do reconhecimento da identidade do outro, relacionandose com distintos princípios e valores que dela necessitam para efetivar-se. 17 A solidariedade não é previamente delimitada, o que garante lugar de destaque no ordenamento jurídico, de reconhecimento tanto como valor ético-jurídico, como na qualidade de norma-princípio.18 Para alcançar uma sociedade justa é necessário raciocinar juntos sobre o significado da vida boa e criar uma cultura pública que aceite divergências que inevitavelmente ocorrerão.19 A justiça é invariavelmente crítica, sendo indissociáveis as concepções divergentes de honra e virtude, orgulho e reconhecimento. Justiça, para Sandel, não é a forma certa de distribuir as coisas, pois também diz respeito à forma certa de avaliar as coisas.20 A política do bem comum ensejaria algumas possibilidades: cidadania, sacrifício e serviço; os limites morais do mercado e a desigualdade, solidariedade e virtude cívica. A diversidade marcante na sociedade, do ponto de vista étnico, religioso, plural, principalmente no que diz respeito à criança e ao adolescente, faz surgir a

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14 TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário. Volume II. Valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 183. 15 RAPOZO, Joana Tavares da Silva. Limites do Princípio da Solidariedade na instituição de constribuições sociais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.36. 16 A Autora faz uma distinção entre legitimação e fundamento, enquanto a primeira é buscada fora do ordenamento jurídico ou fora do direito, o fundamento pode ser coextensivo ao próprio objeto a ser justificado. Já a distinção entre legitimidade e legitimação encontrase no fato de que a legitimidade consiste no próprio processo de justificação da Constituição e de seus princípios fundamentais e legitimação apóia-se no consenso sobre a adequação entre o ordenamento e os valores em que acredita a sociedade. 17 RAPOZO, Joana Tavares da Silva. Limites do Princípio da Solidariedade na instituição de contribuições sociais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 47. 18 RAPOZO, Joana Tavares da Silva. Limites do Princípio da Solidariedade na instituição de contribuições sociais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 47. 19 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 322. 20 SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 323.

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questão: que projeto comum está apto a unir esforços baseados em uma concepção de justiça social que combine respeito e o melhor interesse da criança pela grande diversidade de concepções de vida por todos os membros da sociedade? Encontrar soluções políticas para enfrentar as consequências da desigualdade e definir as maneiras de revertê-las ajudaria a encontrar o equilíbrio entre a justiça distributiva e o bem comum. Assim, é possível pensar em um modelo de justiça que seja capaz de satisfazer efetivamente as vítimas e, ao mesmo tempo, prevenir a ocorrência de novas infrações. Este modelo é denominado de justiça restaurativa, uma nova maneira de se fazer justiça, lançando um novo olhar sobre a infração, que busca lidar com o conflito, por meio de uma ética baseada no diálogo, na inclusão e na responsabilidade social, com grande potencial transformador.21 Esta justiça traz novas e boas ideias, como a necessidade de a justiça assumir o compromisso de restaurar o mal causado às vítimas, famílias e comunidades, em vez de se preocupar somente com a punição dos culpados22.

Justiça restaurativa: um processo que humaniza o sistema socioeducativo A Resolução 2002/2012 da ONU aborda os princípios básicos para a utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal. Esta forma evoluiu e se caracteriza por ser uma resposta ao crime que respeita a dignidade e a igualdade das pessoas, constrói o entendimento e promove harmonia social mediante a restauração das vítimas, ofensores e comunidades. Essa abordagem permite que as pessoas afetadas pelo crime possam compartilhar abertamente seus sentimentos e experiências, bem assim seus desejos sobre como atender suas necessidades. Ao propiciar uma oportunidade para as vítimas obterem reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, este tipo de justiça permite aos ofensores compreenderem as causas e consequências de seu comportamento e assumir responsabilidade de forma efetiva. Possibilita, ainda, que a comunidade compreenda as causas subjacentes do crime, para se promover o bem estar comunitário e a prevenção da criminalidade. Para Myléne Jaccoud23, a justiça restaurativa é uma aproximação que “privilegia toda a forma de ação, individual ou coletiva, visando corrigir as consequências vivenciadas por ocasião de uma infração, a resolução de um conflito ou a reconciliação das partes ligadas a este”. 21 PRUDENTE, Neemias Moretti; SABADELL, Ana Lucia. Mudança de Paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, v. 8, n. 1, p. 49-62, jan./jun. 2008. 22 SCURO, Pedro . Manual de Sociologia Geral e Jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 102. 23 JACCOUD, Myléne. “Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiva Restaurativa”. Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. C. Slakmon, R de Vitto, R. Gomes Pinto (org.). Brasília, Ministério da Justiça e PNUD, 2005, p. 163-188.

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Já na visão de Paul Maccold e Ted Wachtel24: “Crimes causam danos a pessoas e relacionamentos. A justiça requer que o dano seja reparado ao máximo. A justiça restaurativa não é feita porque é merecida e sim porque é necessária. A justiça restaurativa é conseguida idealmente através de um processo cooperativo que envolve todas as partes interessadas principais na determinação da melhor solução para reparar o dano causado pela transgressão”.

O grande objetivo da adoção deste modelo é que ele baseia-se em um procedimento de consenso, solidário, em que as partes, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções para a cura do mal, dos traumas e perdas, causadas pelo delito.25 Reconhecendo que a utilização da justiça restaurativa não prejudica o direito público subjetivo dos Estados de processar presumíveis ofensores, e pode ser aplicada em qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e , quando apropriado, quaisquer outros individuos ou membros da comunidade afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Podem incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária e círculos decisórios. O resultado significa um acordo construído no processo restaurativo, que incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e responsabilidades das partes, bem como promover a reintegração da vítima e do ofensor. Quando não houver acordo entre as partes, o caso deverá retornar ao procedimento convencional da justiça criminal. Para Prudente e Sabadell26, as práticas restaurativas evitam estigmatização do agressor e promovem a responsabilização consciente de seu ato; possibilita que a vítima recupere o sentimento de poder pessoal, sendo, também, reintegrada à comunidade de modo fortalecido, por causa do papel ativo na discussão; e a comunidade, ganha em coesão social, ao dar conta de seu potencial criativo e participativo, na restauração social, em apoio, tanto ao agressor, quanto à vítima. O objeto da justiça restaurativa não é o crime em si, considerado como fato bruto, nem a reação social, nem a pessoa do delinquente, que são os focos tradicionais da intervenção penal. Enfoca as consequências do crime e as relações sociais afetadas pela conduta27.

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24 MCCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 10-15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.restorativepractices.org/l ibrary/paradigm_port.html#top. Acesso em: 14 set. de 2014. 25 PRUDENTE, Neemias Moretti; SABADELL, Ana Lucia. Mudança de Paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, v. 8, n. 1, p. 49-62, jan./jun. 2008. 26 PRUDENTE, Neemias Moretti; SABADELL, Ana Lucia. Mudança de Paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, v. 8, n. 1, p. 49-62, jan./jun. 2008. 27 PRUDENTE, Neemias Moretti; SABADELL, Ana Lucia. Mudança de Paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, v. 8, n. 1, p. 49-62, jan./jun. 2008.

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Um modelo pioneiro de justiça restaurativa na legislação infanto-juvenil foi introduzida pela Nova Zelândia com a edição do Children, Young persons and theirs Families Act (CYPFA)28. A prática de conferência do grupo familiar que foi instituído pelo CYPFA começou um paradigma completamente novo para lidar com os jovens infratores e é a principal arena para a criação de abordagens restaurativas. São reuniões que acontecem fora dos tribunais e de salas de audiências, e, de preferência, em um ambiente culturalmente apropriado. Nelas podem ser tomadas decisões sobre o futuro do jovem no Sistema Juvenil ou serem feitas recomendações. As reuniões são convocadas por um coordenador da Justiça Juvenil e delas participam: o jovem, sua família ou apoiadores e advogado (Defensoria), a vítima e seus apoiadores, e a polícia Youth Aid. O termo justiça restaurativa presta-se a uma série de definições, no entanto, para os fins desta regulamentação, deve ser considerado que: crime não é apenas um ato contra o Estado, mas contra determinadas vítimas e à comunidade em geral. Ofender, então, é principalmente uma violação das relações humanas e só secundariamente uma violação da lei. Desta forma, a comunidade, familiares e instituições, ao invés do Estado e sua máquina da “justiça”, são considerados o centro de controle da criminalidade. Com esta finalidade, este modelo busca a participação ativa das vítimas, famílias e representantes da comunidade para tratar das causas e consequências do ofensiva delito/ofensa. Esta participação ativa permite que as partes se envolvam em um crime específico para resolver coletivamente como lidar com as consequências do delito e suas implicações para o futuro. Este processo permite que sejam assumidas responsabilidades, as necessidades sejam satisfeitas e que a ressocialização seja efetiva. Também exige punições focadas na identificação das necessidades e obrigações que serão assumidas perante a vítima e comunidade. Em suma, permite a inclusão, a participação coletiva na tomada de decisão, a voluntariedade, a liberdade do discurso de todo participante. Os participantes, em sua maioria vítimas e agressores, têm direito a apoio durante todo o processo de sanção. É importante reconhecer que o desenvolvimento de processos restaurativos na Nova Zelância também veio da insatisfação com a justiça paternalista. Assim, elementos do sistema tradicional também foram modificados, como os papéis desempenhados pela família e as vítimas, para dar-lhes um cunho mais restaurador. Essa característica bicultural é uma característica importante do sistema. Para o Tribunal da Juventude da Nova Zelândia, a adoção da justiça restaurativa vai permitir uma resposta flexivel, significativa, holística e abrangente para lidar com as necessidades dos jovens que infringem a lei, as vítimas e, indiretamente, os interesses da comunidade como um todo29. 28 Disponível em . 29 Não se pretendeu neste ensaio enunciar os procedimentos da CYPFA, mas apresentar os fundamentos de uma nova abordagem para o tratamento socioeducativo de jovens infratores. Para uma análise integral da lei, acesse: < http://www.legislation.govt.nz/act/ public/1989/0024/latest/DLM147088.html>.

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Apesar de embrionário, a justiça restaurativa no Brasil conta com algumas participações importantes no âmbito infanto-juvenil. Como exemplo, cita-se o projeto piloto em Porto Alegre denominado “Justiça para ao século 21”, que consiste na implementação de valores e das ideias sobre a justiça restaurativa, objetivando uma mudança institucional de atendimento aos adolescentes autores de ato infracional30. Denro deste contexto, o procedimento restaurativo decorre de três etapas distintas: pré-círculo (preparação); círculo (realização do encontro) e pós-círculo (acompanhamento). O projeto de São Caetano do Sul, apresenta um modelo de fluxo restaurativo no âmbito da Vara da Infância e da Juventude31. Neste, pode ser percebido uma sequência de passos e de intervenções de diversos atores, a começar pelos próprios envolvidos no conflito e diversas instituições, sempre fundados na lei, para se chegar a um objetivo final, que é a efetivação de um direitos, com ele, a satisfação das necessidades. Em Joinville, Santa Catarina, foi implementado, em 2003, o “Projeto Mediação”com adolescentes autores de ato infracional, sendo posteriormente mudado para “Justiça Restaurativa”. Instituído por meio da Portaria nº 05/2003, tendo em vista a previsão legal dos serviços auxiliares contidas nos artigos 150 e 151 do ECA, que institui a equipe interprofissional formada por profissionais qualificados na área de serviço social, orientação educacional, direito e psicologia, dentre outros, especificamente para atuar nos casos de apuração de atos infracionais, bem como a aplicação de técnicas de mediações em questões que envolvam adolescentes autores de ato infracional, fomentando uma abordagem restaurativa entre adolescentes, seus responsáveis, vítimas e comunidade.32

Conclusão Apesar de haver inúmeras legislações protetivas, seja no âmbito interno ou externo, a grande questão, é de que, deveras, há desafios a serem enfrentados, para concretizar os direitos fundamentais das crianças e adolescentes, principalmente dos que entram em conflito com a lei. Aumentar o número de legislação protetiva, por si só, não gera um efeito transformador, é prioritário ampliar os espaços da

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30 PORTO, Roseane T. C.; CASSOL, Sabrina; TERRA, Roseane. Justiça Restaurativa, capital social e comunidade: do conflito à cooperação uma perspectiva no espaço local. Disponível em < http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/rosane_teresinha_carvalho_ porto2.pdf>. Acesso em 10 de set de 2014 31 MELO, Eduardo Rezende; EDNIR, Madza; YAZBEK, Vania Curi. Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. São Paulo: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da presidencia da República, 2008, p. 88. 32 NIEKIFORUK, Mahyra; ÁVILA, Gustavo noronha. Justiça restaurativa em Santa Catarina: a experiência joinvillense na implementação de projeto piloto de justice restaurativa junto à vara da Infância e Juventude. Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina. V.1.N.1, 2010.

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arena dialógica para que aqueles que fazem parte do sistema se sinta responsável também pela ressocialização da criança e do adolescente na vida social. É realmente possível pensar em um modelo de justiça que seja capaz de satisfazer efetivamente as vítimas e, ao mesmo tempo, prevenir a ocorrência de novas infrações. O índice de criminalidade de menores infratores, tem crescido alarmantemente e é preciso alçar novos caminhos. Este modelo pretende trazer uma nova maneira de se fazer justiça, lançando um novo olhar sobre a infração, que busca lidar com o conflito, por meio de uma ética baseada no diálogo, na inclusão e na responsabilidade social, com grande potencial transformador.33 Esta justiça traz novas e boas ideias, como a necessidade de a justiça assumir o compromisso de restaurar o mal causado às vítimas, famílias e comunidades, em vez de, se preocupar, somente com a punição dos culpados34, principalmente no âmbito da criança e do adolescente, porque é capaz de exercer um papel, de fato, socioeducativo. Pensar em solidariedade é pensar em responsabilidade coletiva. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar com absoluta prioridade a garantia dos direitos fundamentais. Portanto, dever nesta ordem constitucional constitui obrigação!

Referências bibliográficas Direitos Humanos na Administração da Justiça: Manual de Direitos Humanos para Juízes, promotores e Advogados. International Bar Association. Outubro de 2010. DIGIÁCOMO, Murillo José. Estatuto da Criança e do Adolescente anotado e interpretado. 6 ed.DIGIÁCOMO, Murillo José; DIGIÁCOMO, Ildeara de Amorim (Org.). Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Criança e do Adolescente. Curitiba: Ministério Público do Estado do Paraná, 2013. GOUVÊA, Carina B. O direito fundamental à saúde na perspectiva da participação social e solidariedade no estado democrático de direito. Fragmentos da Dissertação de Mestrado apresentado na Universidade Estácio de Sá/Rio de Janeiro em agosto de 2012. JACCOUD, Myléne. “Princípios, Tendências e Procedimentos que Cercam a Justiva Restaurativa”. Justiça Restaurativa: coletânea de artigos. C. Slakmon, R de Vitto, R. Gomes Pinto (org.). Brasília, Ministério da Justiça e PNUD, 2005, p. 163-188. MELO, Eduardo Rezende; EDNIR, Madza; YAZBEK, Vania Curi. Justiça Restaurativa e Comunitária em São Caetano do Sul: aprendendo com os conflitos a respeitar direitos e promover cidadania. São Paulo: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da presidencia da República, 2008, p. 88. MCCOLD, Paul; WACHTEL, Ted. Em Busca de um Paradigma: Uma Teoria de Justiça Restaurativa. Trabalho apresentado no XIII Congresso Mundial de Criminologia, 10-15 Agosto de 2003, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.restorativepractices.org/l ibrary/paradigm_port.html#top. Acesso em: 14 set. de 2014. NIEKIFORUK, Mahyra; ÁVILA, Gustavo noronha. Justiça restaurativa em Santa Catarina: a experiência joinvillense na implementação de projeto piloto de justice restaurativa junto 33 PRUDENTE, Neemias Moretti; SABADELL, Ana Lucia. Mudança de Paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, v. 8, n. 1, p. 49-62, jan./jun. 2008. 34 SCURO, Pedro . Manual de Sociologia Geral e Jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 102.

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à vara da Infância e Juventude. Revista Jurídica da Universidade do Sul de Santa Catarina. V.1.N.1, 2010. PORTO, Roseane T. C.; CASSOL, Sabrina; TERRA, Roseane. Justiça Restaurativa, capital social e comunidade: do conflito à cooperação uma perspectiva no espaço local. Disponível em < http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/anais/bh/rosane_teresinha_carvalho_porto2. pdf>. Acesso em 10 de set de 2014 PRUDENTE, Neemias Moretti; SABADELL, Ana Lucia. Mudança de Paradigma: justiça restaurativa. Revista Jurídica Cesumar, v. 8, n. 1, p. 49-62, jan./jun. 2008. RAPOZO, Joana Tavares da Silva. Limites do Princípio da Solidariedade na instituição de constribuições sociais. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p.36. SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011, p. 322. SEMER, Marcelo. Sem Juízo. Disponível em < http://blog-sem-juizo.blogspot.com. br/2013/01/reduzir-maioridade-penal-e-equivoco.html?m=1>. Acesso em 10 de set de 2014. SCURO, Pedro . Manual de Sociologia Geral e Jurídica. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 102. TORRES, Ricardo Lobo. Tratado de direito constitucional, financeiro e tributário. Volume II. Valores e princípios constitucionais tributários. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p. 183. VALOIS, Luis Carlos. Toda prisão no Brasil é ilegal, porque se a prisão que está na lei não existe, a que aplicamos na realidade é ilegal. Causa Operária Online. Disponível em < http://www.pco.org.br/nacional/toda-prisao-no-brasil-e-ilegal-porque-se-a-prisao-queesta-na-lei-nao-existe-a-que-aplicamos-na-realidade-e-ilegal-/epbz,y.html>. Acesso em 16 de set de 2014. VAY, Giancarlo Silkunas. Prioridade absoluta às avessas: que a juventude permaneça no cárcere. Justificando. Disponível em . Acesso em 08 de set de 2014.

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A regulamentação das contratações da Petrobras: uma abordagem jurídica e empresarial Danielle Riegermann Ramos Damião1 David Ferreira Lopes Santos2 Resumo Postula-se o exame da regulamentação dos processos de aquisição de bens e serviços da PETROBRAS a partir da discussão acerca da constitucionalidade do Decreto n. 2.745/98 e os reflexos deste no gerenciamento da cadeia de suprimento da empresa. O trato específico do caso PETROBRAS é relevante para fins acadêmicos em função de três aspectos centrais: representatividade econômica da empresa no cenário nacional; grupo empresarial que mais realiza investimentos no país depois do Estado; e como se trata de uma empresa de economia mista o desdobramento deste ensaio pode ser estendido às outras empresas. O tratamento metodológico da análise é do tipo descritivo tendo por abrangência a análise bibliográfica e a revisão da norma. O método que norteou a construção da discussão é o dialético dedutivo. As proposições encontradas neste ensaio direcionam para: I) a constitucionalidade do Decreto n. 2.745/98; II) a importância do processo simplificado da PETROBRAS para sua competitividade dentro da indústria de petróleo e gás natural e; III) necessidade de adaptação dos processos internos no gerenciamento da cadeia de suprimento. Palavras-chave: Cadeia de Suprimento; Indústria de Petróleo e Gás Natural; Procedimento Licitatório da PETROBRAS. 1 Doutoranda em Função Social do Direito - FADISP (2015). Mestrado em Direito pela Universidade de Marília (2012). Especialização em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Estácio de Sá (2003). Graduação em Direito pela Universidade Estácio de Sá (2002). Autora de cinco obras, sendo que quatro são em coautoria. Atualmente é professora da ESMARN (Escola da Magistratura do Estado do RN) e da Faculdade São Luís. É membro dos conselhos editoriais das revistas “Direito e Liberdade” e da “Atualidades Jurídicas”. Acumula vasta experiência na docência superior (graduação e Pós-graduação). Assessora Jurídica da FUNEP - Fundação de Apoio a Pesquisa, Ensino e Extensão. É advogada e consultora jurídica. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Empresarial, Civil e do Trabalho. 2 Doutor em Administração de Empresas pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2009), Mestre em Sistemas de Gestão pela Universidade Federal Fluminense (2004), Especialista em Controladoria e Finanças pela Universidade Federal Fluminense (2002) e Graduado em Administração de Empresas pela Universidade do Grande Rio (Câmpus Silva Jardim-RJ) (2001). Atua como professor assistente doutor da UNESP - Jaboticabal/SP no Departamento de Economia Rural. Possui experiência profissional no mercado financeiro e na indústria de petróleo e gás natural.

A regulamentação das contratações da Petrobras: uma abordagem jurídica e empresarial

THE REGULATION OF HIRING OF PETROBRAS: AN APPROACH TO LEGAL AND BUSINESS Abstract It is postulated examining the regulation of procurement of goods and services PETROBRAS from the discussion on the constitutionality of Decree n. 2.745/98 and reflections in this supply chain management company. The tract-specific case PETROBRAS is relevant for academics in terms of three key aspects: economic representativeness of the company; entity that invests more in the country after the State, and as it is a joint stock enterprise deployment of this test can be extended to other companies. The methodological treatment of the analysis is a descriptive coverage by taking a literature review and examination of the standard. The method that guided the construction of the dialectical argument is deductive. The statements found on this test drive for: i) the constitutionality of Decree n. 2.745/98, ii) the importance of the simplified PETROBRAS for their competitiveness within the industry of oil and natural gas and, iii) the need for adaptation of internal processes in supply chain management. Keywords: Supply Chain; Oil & Natural Gas Industry; Bidding Procedure PETROBRAS

Introdução A inserção do Brasil no mercado global ganhou escala na última década do Século XX3, quando alguns fatores concorreram para um melhor posicionamento do país na estrutura política, econômica e social do mundo destacam-se: a abertura comercial promovida no início daquela década, a estabilidade monetária e a desregulamentação de setores com forte presença estatal, como por exemplo: bancos, telecomunicações, mineração, energia, transporte, saneamento, entre outros. Indiferente a orientação política-ideológica cuja demanda não é compreendida no escopo desse trabalho, há de fato um aumento na competitividade no mercado nacional motivada pela entrada de empresas estrangeiras nos setores descritos acima, bem como, no surgimento de novas empresas nacionais. Esse cenário ocorreu, também, na indústria de petróleo e gás natural do Brasil que tinha a empresa Petróleo Brasileiro S.A. (PETROBRAS) como a responsável pelo exercício do monopólio da União na exploração, produção e refino de petróleo e gás natural no país. Lembra-se que a distribuição de derivados de petróleo junto aos consumidores, em especial, gasolina, diesel e querosene de aviação já encontrava um mercado não restrito à PETROBRAS. A partir de 1997 com a promulgação da Lei 9.478, tem-se uma nova ordem dentro dessa indústria, quando houve a desvinculação da PETROBRAS como única responsável pelas atividades de exploração, produção e refino de petróleo e gás natural no país.. Criou-se, então, por meio do Decreto n. 2.455/98 a Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) cujas finalidades, ainda são: regular o funcionamento desta indústria, contratar

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3 BRUM, Argemiro J. Desenvolvimento Econômico Brasileiro. 22. ed. Ijuí: UNIJUÍ, 2002, p. 561.

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concessionários para exploração, desenvolvimento e produção de petróleo e gás natural e fiscalizar as empresas atuantes nesta indústria no cumprimento das normas estabelecidas4. Sendo assim, tem-se uma nova estrutura de mercado, onde a contratação dos concessionários ocorre mediante leilões de áreas definidas pela ANP, de forma que os novos participantes conseguem o direito de operar, quando dentre outros fatores, apresentam uma estrutura de custos competitiva. Até 31/12/2010 haviam sido licitados pela ANP 345 blocos de Exploração no Brasil. Deste total, a participação de empresas distintas da Petrobras como responsáveis pelos blocos já alcançava 44%, isto é, após 12 anos tem-se um cenário de maior rivalidade entre a Petrobras e as demais empresas, que totalizavam 47 entidades diferentes. Diante do cenário que se apresentou à Petrobras à ocasião do processo de desregulamentação econômica, foi promulgado o Decreto n. 2.745/98 cujo interesse era “simplificar” a Lei 8.666/93 que disciplina os processos de contratação da União, Estados, Municípios, Autarquias e Empresas Públicas para a Petrobras, ou seja, criou-se uma norma específica à Petrobras cuja motivação foi entregar celeridade nos seus processos de contratação. Destarte, a motivação desse trabalho foi examinar o processo simplificado da Petrobras no interesse de dialogar quanto a sua constitucionalidade e efetividade empresarial, enquanto principal instrumento regulador dos processos de contratação de bens e serviços da empresa que em 2011 alcançaram mais R$ 55 bilhões considerando apenas os gastos relativos com investimentos e custos operacionais, excetuando os custos de pessoal5.

Fundamentos teóricos Breve análise histórica da indústria de petróleo A etimologia da palavra petróleo tem origem no latim petra (pedra) e oleum (óleo) por conceito pode-se usar a especificação no dicionário Aurélio: “Óleo mineral natural, combustível, de cor muito escura, dotado de um cheiro característico mais ou menos pronunciado, com densidade variando entre 0,8 e 0,95, formado por hidrocarbonetos.”6 A utilização do petróleo pelo homem encontra registros na idade antiga, Yergin aponta para o uso do petróleo na construção civil, impermeabilização de embarcações e até como remédios (tratamento de hemorragias, reumatismo, febre, dor de dente, entre outros)7. Na ocasião, o petróleo era tomado em função de precipitações no solo, tendo como denominação “betume”. 4 ANP. Competências da ANP. Disponível em: http://www.anp.gov.br/?pg=60389&m=& t1=&t2=&t3=&t4=&ar=&ps=&cachebust=1350492292364>. Acesso em 17 out. 2014. 5 PETROBRAS. Relatório de Atividades 2011. Disponível em Acesso em 17 out 2014. 6 Significado de Petróleo. Disponível em http://www.dicionariodoaurelio.com/. Acesso em 24 set 2014. 7 YERGIN, D. O petróleo: uma história de ganância, dinheiro e poder. São Paulo: Scritta, 1993.

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A regulamentação das contratações da Petrobras: uma abordagem jurídica e empresarial

A utilização do petróleo como fonte de combustível para iluminação, fez com que tal produto ganhasse grande importância após meados do século XIX. Isso ocorre num momento da história onde havia necessidade de novas fontes energéticas, tendo em vista, que o uso de carvão vegetal, mineral e óleos provenientes de gordura animal e vegetal ficassem escassos (e caros) além da baixa eficiência8. A primeira empresa petrolífera foi a Pennsylvania Rock Oil Company cujo proprietário era George Bissel. Seu fundador contratou o professor de química da Yale University Bejamim Sillmans Jr. que elaborou um relatório técnico quanto a viabilidade econômica do “óleo de pedra” para fins de iluminação, e então conseguir investidores para financiar a exploração de petróleo. Dados do Wikipédia dão conta que o relatório elaborado custou U$ 526,089, sendo um dos expoentes para o desenvolvimento da indústria petrolífera. A empresa do Sr. Bissel cresceu ao utilizar a técnica de perfuração em jazidas de sal para encontrar petróleo, de forma, que um dos seus encarregados Edwin Drake (cel. Drake) perfurou o primeiro poço a 21 metros em 27 de agosto de 1959 nas planícies do estreito vale do Corrego Oil (Tittusvile/Pensilvânia - EUA), essa data é considerada o marco inicial da moderna indústria do petróleo10. Nos dias de hoje, o óleo, em sendo recurso mineral fóssil e finito, é largamente utilizado, estando presente em produções de plásticos, tecidos, combustível (marítimo, terrestre e na aviação), energia, tintas, produtos de limpeza, cosméticos e outros. Oportuno frisar, que a exploração inicial do petróleo no Brasil, se deu em decorrência de recursos privados, através da livre iniciativa particular. A primeira sondagem oficial no Brasil ocorre em 1919 no Estado do Paraná pelo Serviço Geológico e Mineralógico do Brasil. O poço alcançou 81 metros de profundidade, porém não encontro-se petróleo11. Os artigos 1º, 5º e 6º da revogada Lei 2004/53, estabelecia o monopólio do Petróleo para a Petrobras S.A.: Art. 1º Constituem monopólio da União: I – a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e outros hidrocarbonetos fluídos e gases raros, existentes no território nacional; II – a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III – o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados de petróleo produzidos nos Pais, e bem assim o transporte, por meio de condutos, de petróleo bruto e seus derivados, assim como de gases raros de qualquer origem. Art. 5º Fica a União autorizada a constituir, na forma desta lei, uma sociedade por ações, que se denominará Petróleo Brasileiro S. A. e usará a sigla ou abreviatura de Petrobras.

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8 Idem 5. 9 WIKIPÉDIA. Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/Benjamin_Silliman,_Jr.>, acesso em 18 out 2014. 10 Idem 5. 11 Idem 5.

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Art. 6º A Petróleo Brasileiro S. A. terá por objeto a pesquisa, a lavra, a refinação, o comércio e o transporte do petróleo proveniente de poço ou de xisto – de seus derivados bem como de quaisquer atividades correlatas ou afins.12 A expansão da Petrobras teve grande relevância entre 1950-1960, quando foram descobertos novos campos, além da Bahia, nos estados de Sergipe/ Alagoas, Paraná e Amazonas. Em lapso temporal posterior, vieram as perfurações na Bacia de Campos/Rio de Janeiro, Ceará, Rio Grande do Norte, Espírito Santo, e a contemporânea descoberta do Pré-sal.

Os ditames da Lei Maior em 1988 ratificaram o monopólio do Estado em relação ao Petróleo, conforme art. 177, I a IV: Art. 177. Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos;  II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem;13

Ocorre que no ano de 1995, com a Emenda Constitucional n. 9, foi inserido o parágrafo 1º no artigo acima mencionado, onde houve a abertura para a iniciativa privada para o então monopólio de exploração do Petróleo, que era realizada exclusivamente pela Petrobras: “[...]§ 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei.14” Pelo teor do texto constitucional emendado, houve a necessidade de promulgação de nova lei, que ganhou o número 9.478/97, onde houve disposição expressa em relação a nova política de explorações de energias em território brasileiro, bem como a exploração do petróleo. Nesta mesma lei, foi criado o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) e a ANP (Agência Nacional do Petróleo), ambos vinculados ao Ministério de Minas e Energias. Com esta nova norma, houve o fim do monopólio estatal para a exploração do Petróleo, pois a iniciativa privada pode começar a exploração e produção do 12 BRASIL. Lei 2004 de 03 de outubro de 1953. Dispõe sôbre a Política Nacional do Petróleo e define as atribuições do Conselho Nacional do Petróleo, institui a Sociedade Anônima, e dá outras providências. Disponível em http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/109500/lei2004-53. Acesso em 25 set 2014. 13 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constitui%C3%A7ao.htm. Acesso em 25 set 2014. 14 Ibid

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petróleo, gás natural e derivados, desde que realizados contratos de concessão neste sentido. À Petrobras, foram mantidos os direitos aos poços já em produção, além dos locais onde, na data de entrada da lei, já havia descobertas de novos campos e investimentos para tal fim. Através desta abertura por contratos com a União, a Petrobras passou a contar com concorrentes, eis que várias empresas passaram a participar de leilões de concessão. Até o ano de 2010, 72 empresas empreendiam o petróleo no Brasil, sendo 36 exclusivamente brasileiras.15 Em 1998, a Petrobras recebeu novas alterações para funcionamento, eis que de acordo com a Emenda Constitucional n. 19, foi modificado o teor do art. 173 do texto original, onde houve a alteração para estabelecer que as sociedades de economia mista, voltadas para a produção petrolífera e derivados – como é estabelecida a Petrobras – passassem a sujeição para o regime jurídico próprio das empresas privadas. Desta feita, a Petrobras passou a assumir novas obrigações, especialmente na forma de contratar e na tributação. Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei. § 1º A lei estabelecerá o estatuto jurídico da empresa pública, da sociedade de economia mista e de suas subsidiárias que explorem atividade econômica de produção ou comercialização de bens ou de prestação de serviços, dispondo sobre:  [..] III - licitação e contratação de obras, serviços, compras e alienações, observados os princípios da administração pública;  [...]16

Todavia, como se vê pela leitura do último inciso transcrito acima, a mesma Emenda Constitucional, determinou que a Petrobras deveria realizar licitações para a contratações de obras, serviços, alienações e demais compras, sob o regime e princípios da Administração Pública. O reflexo da nova norma foi o de equiparar o concurso de empresas, as tratando em igualdade em relação ao mercado, embasada nos princípios da livre iniciativa e da livre concorrência. Estando sujeita ao regime jurídico disposto para a atividade privada, a Petrobras passou a necessitar de um regime de contratações mais célere, para que a mesma pudesse se manter no mercado, em igualdade de condições com as outras empresas do mesmo ramo, de forma que foi estabelecido o Decreto n. 2.745/98. Tal Decreto estabeleceu o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petrobras.

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15 LACERDA, Guiller Ecar. O procedimento licitatório simplificado da Petrobras. Monografia apresentada na Universidade Cândido Mendes, Pós-graduação lato sensu. Rio de Janeiro, 2010, p. 11. 16 Ibid 7.

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Licitações As sociedades de economia mista, devem realizar seus contratos na forma do procedimento licitatório. Neste caso, inclui-se a Petrobrás. A licitação é um procedimento administrativo preparatório do futuro contrato, sendo que não confere ao vitorioso nenhum direito ao contrato, mas apenas uma expectativa de direito. [...] a expectativa de direito configura-se por uma sequencia de elementos constitutivos, cuja aquisição faz-se gradativamente, portanto, não se trata de um fato jurídico que provoca instantaneamente a aquisição de um direito. O direito está em formação e constitui-se quando o último elemento advém. Há, por conseguinte, expectativa de direito quando ainda não se perfizerem os requisitos adequados ao seu advento sendo possível sua futura aquisição. Se houve fatos adequados para sua aquisição, que contudo ainda depende de outros que não ocorreram, caracteriza-se uma situação jurídica preliminar, logo, o interessado tem expectativa em alcançar o direito em formação, expectativa de direito que poderá ser frustrada ou não.17

Este procedimento administrativo é meio pelo qual a Administração Pública vai eleger a proposta mais vantajosa para contratar. Há uma série de requistos próprios do processo de licitação, que elencados na Lei 8.666/93, vão sendo estabelecidos, propiciando igualdade e isonomia a todos os participantes (candidatos). Na Lei em comento, o Legislador provocou uma série de medidas que visam garantir não só o fator da eficiência, mas especialmente o da moralidade para os negócios administrativos. A abrangência da norma (8.666/93) contempla os órgãos da Administração Direta (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e da Administração Indireta (fundos especiais, autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela Administração Direta). A obrigatoriedade de realização do procedimento administrativo de licitação tem duplo sentido. O primeiro é a compulsoriedade da licitação e o segundo a vinculação específica da norma para a espécie do objeto a ser licitado. Adverte-se que somente uma nova lei poderia desobrigar a administração pública para a não observância da licitação, em que em não havendo, gera a obrigatoriedade inconteste. Há uma observação importante em relação as empresas públicas e para as sociedades de economia pública, eis que o art. 173 da Lei Maior coloca que há de ser realizado um regulamento especial para estas duas espécies de empresas. Ocorre que tal regulamento, até a presente data, não existe, o que justificaria a imediata aplicação da lei 8666/93. As licitações obedecem uma gleba de princípios, que podem ser observados no texto do art. 3º da Lei 8.666/93: formalidade procedimental; publicidade; 17 Disponível em http://www.adur-rj.org.br/4poli/documentos/direito_adquirido.pdf. Acesso em 25 set 2012.

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condições de igualdade entre os licitantes (candidatos); sigilo no momento da apresentação das propostas (com exceção na modalidade do pregão, onde há uma inversão de fases); vinculação objetiva em relação ao edital ou ao convite; objetividade para os julgamentos; direito de adjudicação compulsória ao licitante vencedor; probidade. Os objetos das licitações podem ser para realização de obras, contratação de serviços, compras em geral, alienações, concessões, permissões e locações. A delimitação do objeto da licitação deve ser bem caracterizada, sob pena de tornar todo o procedimento licitatório nulo, eis que estaria a dificultar a formulação e posterior apresentação das propostas, além de comprometer a idoneidade do julgamento e da execução normal do contrato posterior. Existem raros casos em que o procedimento de licitação pode ser dispensado: a) Alienações específicas do art. 17, I e II da Lei 8.666/93; b) Consórcios Públicos nos casos de ser contratado pela administração direta ou indireta dos entes da Federação consorciados (art. 2º, § 1º, III da Lei 11.107/05); c) Os casos previstos no art. 24, I a XXIX da Lei 8.666/93, que são os que a própria lei dispensou a licitação; d) Casos de inexigibilidade de licitação, apostos no art. 25 da Lei 8.666/53, como quando ocorrer a impossibilidade jurídica de competição entre contratantes, contratação de produtor ou vendedor exclusivo, contratação de artistas e de serviços técnicos profissionais especializados. Toda licitação perpassa por duas fases, sendo uma interna e a outra externa. A fase interna consiste na criação, abertura oficial do procedimento administrativo, que deverá apresentar numeração, precisão em relação ao objeto e indicar os recursos cabíveis para eventuais defesas. Já a fase externa consiste na realização de audiência pública, quando se fizer necessária, divulgação do edital ou dos convites de convocação para eventuais interessados, recebimento das propostas e documentações dos licitantes, habilitação dos candidatos à licitação, julgamento das propostas, adjudicação do vencedor e homologação. Conforme colocado entre os artigos 27 a 37 inclusive, da Lei 8.666/93, a habilitação dos licitantes consiste no ato pelo qual o órgão designado para realização da licitação vai examinar toda a documentação do candidato, podendo manifestar-se acerca de condições e requisitos pessoais dos licitantes, dando parecer sobre a habilitação ou indeferimento. A habilitação é de suma importância, eis que somente os licitantes habilitados terão seus envelopes com as respectivas propostas, abertos e avaliados. A habilitação tem momentos, formas e exigências diferentes para cada tipo de licitação: a) concorrência – habilitação somente após a abertura da licitação, em fase preliminar à do julgamento; b)tomada de preços – habilitação anterior e prévia à instauração do procedimento licitatório; c) convite – realizada pelo órgão que irá realizar a licitação, que escolhe quem gostaria de convidar; d) concurso – habilitação é facultativa; e) leilão – a habilitação é desnecessária, salvo nas hipóteses de leilão para a privatização de empresas.

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A Lei 8666/93, estabelece cinco modalidades de licitação, a partir do seu art. 22: concorrência, tomada de preços, convite, concurso e leilão. Há, também, a modalidade de licitação por pregão, prevista na Lei n.10.520/02. A concorrência é a modalidade específica para contratos de grande monta, admitindo-se a participação de todos os licitantes interessados, sem a necessidade da habilitação prévia. Deverá ocorrer a convocação, com o respeito ao prazo mínimo (45 dias) e ampla publicidade. O julgamento das propostas ocorre por uma comissão de licitação, formada, pelo menos, por três membros, devendo um destes ser estranho à administração direta ou indireta. A tomada de preços é a forma de licitação que é realizada exclusivamente entre os licitantes previamente registrados, que deverão ser convocados com antecedência mínima de quinze ou trinta dias, através de publicidade oficial e particular. Esta modalidade é restrita, pois o art. 23 da Lei 8666/93 coloca limites monetários para a sua utilização. É comumente chamado de procedimento licitatório sumário, eis que seu procedimento é mais célere. A modalidade de convite é a forma de licitar mais fácil, posto que é simplificada, destina-se a contratações de pouca monta, devendo ocorrer com a solicitação escrita de pelo menos três interessados do ramo, registrados previamente ou não. As propostas devem ser apresentadas no prazo mínimo de cinco dias úteis. A convocação é feita por escrito, no modelo de carta-convite. Abertas e analisadas as propostas, o objeto da licitação é adjudicado ao vencedor, havendo a formalização do ato através de ordem de execução do serviço, nota de empenho da despesa, autorização de compra ou carta-contrato, e fazendo as publicações devidas. Outra modalidade é a licitação por meio de concurso. É utilizada para a escolha de trabalho técnico ou artístico, com criação intelectual. Pode ocorrer a atribuição de prêmio aos vencedores ou oferta de remuneração. As condições do concurso devem ocorrer por meio de edital, com ampla publicidade, além da possibilidade de publicação particular, todas com o prazo mínimo de quarenta e cinco dias. A modalidade termina com os pagamentos dos prêmios ou com a classificação dos licitantes. O leilão é outra forma de realização de licitações. Destina-se a venda de bens móveis ou de produtos legalmente apreendidos/penhorados, ou para a alienação de bens imóveis. Há a dispensa de habilitação prévia, pois o pagamento deve ser à vista, com a imediata entrega do bem, objeto da licitação. Sua publicação tem o prazo mínimo de 15 dias. O pregão, instituído por norma própria, Lei n. 10.520/02, consiste em ser a modalidade destinada à aquisição de bens e serviços, promovida exclusivamente pela União. A sua execução se dá através de lances em sessão pública. Pode ser realizado na forma presencial ou na forma eletrônica.

Procedimento licitatório simplificado da Petrobras Em regra geral, a grande maioria das sociedades de economia mista estão sujeitas ao regime da lei 8666/93, com exceção do Banco do Brasil, Eletrobras e Petrobras.

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A regulamentação das contratações da Petrobras: uma abordagem jurídica e empresarial

A Petrobras possui um sistema de realizar suas licitações diferenciado, mais simples, denominado Procedimento Licitatório Simplificado, e foi instituído pelo Decreto n. 2745/98. Este Decreto é exclusivamente utilizado pela Petrobras. Tal Decreto se deu em relação ao disposto no art. 67 da Lei n. 9.478/98, que elencou que os contratos celebrados pela Petrobras deviam ser regidos pelo Procedimento licitatório simplificado. Igualmente para com as demais sociedades de economia mista, os processos administrativos da Petrobras estão sujeitos aos princípios típicos do Direito administrativo: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O Decreto n. 2745/98 teve por base a Lei 8666/93, e manteve seus principais aspectos, mormente simplificando, tornando mais célere as formas de contratação pela Petrobras. Inovações também são observadas em relação a soma de mais algumas possibilidades de inexigibilidade e dispensa de licitação, bem como em relação aos parâmetros que passou a mencionar, para que as compras e demais contratos, semelhantes aos do setor privado. 1.4.1 As compras realizadas pela PETROBRAS deverão ter como balizadores: a) o princípio da padronização, que imponha compatibilidade de especificações técnica e de desempenho, observadas, quando for o caso, as condições de manutenção, assistência técnica e de garantia oferecidas; b) condições de aquisição e pagamento semelhantes às do setor privado; c) definição das unidades e quantidades em função do consumo e utilização prováveis. 18

Assim como na Lei 8666/93, foram mantidas as cinco possibilidades de licitações pelo Decreto 2745/98, muito embora com algumas modificações. Na modalidade de concorrência, os prazos para a publicação de avisos de licitação foram alterados para 30 dias anteriores ao recebimento da proposta. Também é possível utilizar esta forma de licitar em casos em que seriam exclusivamente na modalidade convite. Na tomada de preços, não foi mantida a obrigatoriedade de se aceitar licitantes que eventualmente tenham demonstrado o interesse na licitação até o terceiro dia anterior ao recebimento das propostas. Todavia, foi mantida a necessidade de publicação na forma de aviso de edital, havendo unificação do prazo, para todos os casos, em 15 dias. Na forma do convite, não foi mantida a necessidade de se permitir a licitação para demais licitantes cadastrados, havendo apenas a obrigação de três participações distintas de candidatos à licitação, ou seja, é regular o ato de somente permitir a participação dos que eventualmente tenham sido convidados. Nas modalidades de leilão e concurso, não foram observadas modificações relevantes entre a Lei 8666/93 para o Decreto n. 2745/98.

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18 BRASIL. Decreto n. 2745/98. Aprova o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRAS previsto no art . 67 da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/D2745.htm. Acesso em 25 set 2012.

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De uma forma geral, pode-se afirmar que em relação as modalidades de licitações, a especial mudança, a que bem simplificou todo o procedimento, é a não determinação da modalidade de licitação em decorrência de acordo com o valor limite da contratação, ou seja, há total discricionariedade da Petrobras em escolher qual modalidade deseja aplicar. Há uma exceção, que é em relação à alienação de imóveis, que somente poderá ser realizada na forma da concorrência. Com relação as hipóteses de dispensa de licitação, o Decreto da Petrobras apenas traz onze situações, ao revés da Lei 8666/93, que elenca vinte e quatro possibilidades. Todas as dispensas são relacionadas no item 2.1 do Decreto. Em relação à inexigibilidade de procedimento de licitação, a situação é contrária. A lei 8666/93 traz apenas três situações, enquanto o Decreto da Petrobras elastece o rol, colocando doze casos. Os casos de inexigibilidade estão colocados no item 2.3. A forma como é conduzido o procedimento licitatório é peculiar. Qualquer pessoa, física ou jurídica, que venha a ter interesse em participar das licitações, deve realizar um cadastro prévio, junto à Petrobras, havendo neste momento a realização de avaliações, em especial a habilitação jurídica, capacidade técnica, qualificação econômico-financeira, e também a regularidade fiscal. Após toda esta verificação, a Petrobras fornece o Certificado de Registro e Classificação, que é um documento hábil por 12 meses, e dá ao candidato à licitação, a possibilidade de participar de eventuais procedimentos. 4.1 A PETROBRAS manterá registro cadastral de empresas interessadas na realização de obras, serviços ou fornecimentos para a Companhia.  4.1.1 Para efeito da organização e manutenção do Cadastro de Licitantes, a PETROBRAS publicará, periodicamente, aviso de chamamento das empresas interessadas, indicando a documentação a ser apresentada, que deverá comprovar: a) habilitação jurídica; b) capacidade técnica, genérica, específica e operacional; c) qualificação econômico-financeira; d) regularidade fiscal. 19

Tal Certificado pode ser suspenso pela Petrobras, caso a empresa verifique a falta do cumprimento das condições especificadas em lei, nos casos em que o candidato a licitação possua títulos protestados ou até mesmo executados, tiver procedimento falimentar em curso, deixar de apresentar documentações em prazo de validade vigente, e se apresentar desempenho negativo na execução de qualquer contrato já em vigência com a Petrobras. Este apontamento negativo decorre de anotações no Boletim de Avaliação de Desempenho, que é produzido, e justificado pela Petrobras. 19 BRASIL. Decreto n. 2745/98. Aprova o Regulamento do Procedimento Licitatório Simplificado da Petróleo Brasileiro S.A. - PETROBRAS previsto no art . 67 da Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ decreto/D2745.htm. Acesso em 25 set 2014.

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4.7 A inscrição no registro cadastral de licitantes da PETROBRAS poderá ser suspensa quando a firma: a) faltar ao cumprimento de condições ou normas legais ou contratuais; b) apresentar, na execução de contrato celebrado com a PETROBRAS, desempenho considerado insuficiente; c) tiver títulos protestados ou executados; d) tiver requerida a sua falência ou concordata, ou, ainda, decretada esta última; e) deixar de renovar, no prazo que lhe for fixado, documentos com prazo de validade vencido, ou deixar de justificar, por escrito, a não participação na licitação para a qual tenha sido convidada. 20

Uma vez habilitada, possuindo o Certificado de Registro e Classificação, os candidatos à licitação passam a condição de pré-qualificação, passando a receberem as eventuais convocações mediante carta-convite, na forma do Decreto “4.11.2 Uma vez pré-qualificadas, a convocação das empresas interessadas será feita de forma simplificada, mediante carta-convite.”21 O procedimento de licitação iniciado, sendo bem delimitado o seu objeto, será dirigido pela Comissão de Licitação, que poderá inclusive, dar parecer desfavorável à licitação em curso, devolvendo a mesma por falta de elementos necessários. As empresas já cadastradas não precisam apresentar os documentos para que possam realizar suas devidas habilitações. No caso da modalidade de tomada de preços, a convocação dos licitantes deverá ser feita por aviso, onde pode estar contida a informação de limitação da participação da licitação para as empresas previamente cadastradas e que possuam o Certificado. Para a chamada por convite, obrigatoriamente deverão ser chamadas três empresas, estando as mesmas previamente cadastradas, ou não. Outro aspecto importante se dá em relação a eventual empate entre os licitantes. Caso ocorra tal situação, os empatados podem ser chamados a apresentar novas propostas. Persistindo o empate, haverá sorteio entre os candidatos à contratação. Caso haja empate entre empresa nacional e outra internacional, prevalecerá os interesses para a empresa brasileira. Realizada a classificação final, a Comissão da Licitação pode vir a negociar direto com a empresa vencedora, cabendo as demais perdedoras dois recursos: pedido de reconsideração, endereçado a própria Comissão e o Recurso Hierárquico, a ser apresentado para à autoridade superior à Comissão. O prazo para as duas espécies de recurso é de cinco dias. No prazo de três dias, tanto a Comissão da Licitação bem como a autoridade superior, deverão responder os recursos propostos. 9.1 Qualquer interessado, prejudicado por ato de habilitação, classificação ou julgamento, praticado pela Comissão de Licitação, ou por representante autorizado da PETROBRAS, em função deste Regulamento, poderá recorrer, mediante:

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20 Ibid 18. 21 Ibid 18.

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a) Pedido de Reconsideração; b) Recurso Hierárquico.22

Outra questão interessante é o que está disposto no item denominado “disposições finais e transitórias”, eis que é estabelecido que “ 10.2 Quando da edição da lei a que se refere o § 1º do art. 173 da Constituição, [...] o procedimento licitatório disciplinado neste Regulamento deverá ser revisto, naquilo que conflitar com a nova lei.”, ou seja,   ainda que venha uma nova lei geral acerca de licitações para empresas estatais, o procedimento licitatório simplificado da Petrobras irá permanecer.

Análise da constitucionalidade do procedimento licitatório simplificado e a ordem econômica Como dito em item anterior, foi através da Emenda Constitucional n. 9/95, que houve a abertura para a iniciativa privada de atividades que até então, eram exclusivas da Petrobras. A contar de então, passou esta empresa a agir em regime de concorrência com as demais integrantes do mercado. Há nesta fase, mais do que nunca, o regramento para observância dos princípios elencados no art. 170 do texto constitucional, especialmente os da livre iniciativa e livre concorrência, que comportam a ordem econômica. Conforme menciona o Ministro Eros Grau23, a ordem econômica integra a ordem jurídica, posto que esta última se divide em pública, privada, econômica e social. No Brasil, a ordem econômica se sustenta através de seus princípios, e pode ser compreendida como a forma, a política empregada pelo governo com objetivo de promoção do trabalho e da livre iniciativa, desde que notados os princípios elencados no rol do art. 170 da Lei Maior. A ordem econômica configura o plano do ‘dever ser’, uma vez que se reveste de atos normativos para alcançar os anseios sociais. Tal plano é a direção para o plano “do ser”, que por vezes coloca os interesses do capital em situação de vantagem quanto aos direitos individuais. A ordem econômica é justamente o regulador que deve existir, de forma eficaz, para fazer com que o Estado intervenha na economia para trazer o equilíbrio entre o capital e o indivíduo. Coaduna com tal pensamento os princípios da livre iniciativa que deve ser compreendida como espécie de liberdade, seja para a criação de novas empresas, novos negócios, e até mesmo na faculdade aberta se conservar, ou não, em apontado emprego. Este pensamento está em pleno acordo com o doutrinador internacional Alcala: 22 Ibid 18. 23 GRAU, Eros Roberto. A Ordem econômica na Constituição de 1988. 4. ed. Malheiros: São Paulo, 2010, p 63-64.

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El derecho implica la facultad para decidir libremente tano si se accede, como si mantiene o termina uma determinada actividad laboral. Este atributo posibilita que la persona del trabajador elija a su vontad la actividad laboral o profesional que prefiera desempenar, además de elegir el eventual cambio o cessación de la actividad laboral, todo ello conforme al ordenamiento jurídico, disfrutando de uma retribuición econômica como de su eventual satisfacción espiritual.24

Da mesma forma, o princípio da livre concorrência, ao passo que esta deve ser estimulada com limites a coibir o abuso do poder econômico, sendo a mesma restrita, limitada através dos dogmas da concorrência desleal. Por criar um regime simplificado, o Decreto da Petrobras é alvo de várias críticas, sendo a primeira em relação à concorrência, ou seja, se estaria a Petrobras sendo favorecida em demasiado por conta de tal agilidade nos seus procedimentos de contratação. Certamente que a contar do momento que ingressou no mercado para concorrer com a iniciativa privada, a Petrobras esteve em desvantagem, eis que no setor privado, as negociações são diretas, sem qualquer embaraço de licitações. Por tal fato, o argumento de estar ferindo a concorrência leal, não encontra sustentação, eis que mesmo com regime simplificado, a Petrobras deve estar submetida a licitações enquanto ao setor privado, tal exigência é inexistente. Há uma ampla controvérsia em relação à constitucionalidade do Decreto n. 2745/98, em relação ao art. 67 da Lei n. 9478/97. O Tribunal de Contas da União admitiu o Decreto como sendo inconstitucional, entendendo que deveria ocorrer somente a aplicação da Lei n. 8666/93, até a edição do estatuto das sociedades de economia mista, com previsão no art. 173, parágrafo 1º da Lei Magna. Neste caso, o vício seria formal, eis que a Constituição determinou que os procedimentos licitatórios devessem ser regulados por lei, e no caso da Petrobras teriam sido feitos por um Decreto.25 A inconstitucionalidade não vendo sendo aceita pelo STF, conforme posição da Ministra Elen Gracie, no Mandado de Segurança n. 26.783, elencando que: [...] não estaria no âmbito das competências constitucionalmente reconhecidas ao TCU declarar a inconstitucionalidade do art. 67, da Lei nº 9.478/1997 e do Decreto nº 2.745/1998. Ademais, reputou-se que tal declaração de inconstitucionalidade não seria compatível com o contido no art. 177, da Constituição, que conforma o regime de exploração da atividade econômica do petróleo.26

A posição da Ministra gerou outros precedentes no STF, conforme cita Cardoso:

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24 ALCALA, Humberto Nogueira. Derechos fundamentales y garantias constitucionales. Santiago de Chile: Librotecnia, 2010, p. 243. 25 CARDOSO, André Guskow. O STF e as Licitações da Petrobras ? hipótese de deslegalização?. Informativo Justen, Pereira, Oliveira e Talamini, Curitiba, nº 6, ago./2007, disponível em http://www.justen.com.br//informativo.php?l=pt&informativo=6&arti go=289, acesso em 24 set 2014. 26 Ibid

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A decisão proferida nesse mandado de segurança invocou outros precedentes do STF a respeito do tema. Em especial, foram citadas as decisões proferidas no MS 25.888-MC/DF (relator Min. Gilmar Ferreira Mendes, DJU 22.3.2006), no MS 25.986/ED-DF (relator Min. Celso de Mello, DJU 30.6.2006), e no MS 26410-MC-DF (rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJU 2.3.2007). Em todos esses precedentes, o STF vem entendendo que “A submissão legal da Petrobras a um regime diferenciado de licitação parece estar justificado pelo fato de que, com a relativização do monopólio do petróleo trazida pela EC n° 9/95, a empresa passou a exercer a atividade econômica de exploração do petróleo em regime de livre competição com as empresas privadas concessionárias da atividade, as quais, frise-se, não estão submetidas às regras rígidas de licitação e contratação da Lei n° 8.666/93. Lembre-se, nesse sentido, que a livre concorrência pressupõe a igualdade de condições entre os concorrentes”.27

O fato é que esta decisão ainda não foi transitada em julgada, ou seja, está pendente de decisão final, podendo-se dizer que o atual posicionamento do STF ainda não é o definitivo, podendo ocorrer mudanças.

Considerações finais Este ensaio demonstrou a importância da indústria petrolífera para a sociedade atual, em razão do petróleo se manter como a principal fonte energética do mundo, além da diversidade de aplicações que seus derivados assumem. Não por outro motivo, a União mantém o monopólio das reservas, de forma que na lei que desregulamenta o setor em 1997, permite que empresas estatais e privadas desenvolvam este recurso sob sua fiscalização e controle. Este novo mercado permitiu a entrada de novas empresas na atividade de exploração e produção de petróleo o aumenta a competitividade e permite que o setor caminhe na direção dos princípios constitucionais da livre iniciativa e concorrência. Assim, o objeto deste estudo analisou o Decreto n. 2745/98 criado para disciplinar os processos de contratação da Petrobras, tendo em vista, que não há Lei específica para contratação das empresas públicas o que ensejaria a Petrobras no cumprimento da Lei 8666/93 que regulamenta as contratações do Estado em todas as suas dimensões. No entanto, o processual da lei 8666/93 é morosa e torna de difícil operacionalização a contratação de bens e serviços nos modelos flexíveis existentes no mercado atual e que garantem aos competidores da Petrobras maior eficiência no uso dos recursos. Assim, o procedimento simplificado criado à Petrobras procurou aumentar a celeridade dos processos sem prejuízo aos princípios do direito administrativo à contratação, de maneira, que esta norma não entrega a Petrobras uma vantagem econômica, ao contrário, a empresa ainda não possui a flexibilidade que as 27 Ibid

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A regulamentação das contratações da Petrobras: uma abordagem jurídica e empresarial

empresas privadas possuem que não precisam atender aos princípios do direito administrativo, apenas o privado, que neta situação encerra-se basicamente no encontro de interesses de duas partes. Por outro lado, o TCU não reconheceu o Decreto n. 2745/98 como válido, pois a CF diz que o procedimento deveria ser disciplinado por Lei e não por Decreto, as decisões no STF têm garantido a Petrobras o direito de usar o Decreto, contudo, a decisão ainda não é definitiva, o que enseja a empresa num risco operacional, caso haja uma nova interpretação por parte do STF. Neste estudo, a interpretação, considerando o contexto envolvido e a premissa de que a norma jurídica deve direcionar “o mundo do dever ser” para “o mundo do ser”, o Decreto 2745/98 permite que a Petrobras atue num mercado competitivo.

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O princípio da duração razoável do processo e sua aplicação no Código de Processo Civil Luis Carlos de Araujo1 Resumo O tema que o autor desenvolve sobre o princípio da duração razoável do processo, de assento na Constituição da República Federativa do Brasil e sua inserção no novo Código de Processo Civil, não tem compromisso com a profundidade em seus estudos em razão de tratar de um mero artigo. Ao contrário, são meros apontamentos para servir de instrumento de primeiras reflexões sobre a sua importância e aplicação, especialmente, quando da entrega da prestação jurisdicional de forma célere, sem abrir mão da segurança ao solucionar o conflito de interesses das partes. Palavras-chave: Princípio; Duração razoável; Código de Processo Civil. Abstract The theme that  the author develops  talks  about the principle of  reasonable duration of the process, seated in the Constitution of the Federative Republic of Brazil and placed in the new Civil Procedure Code,  has no commitment to the depth in their studies due to the case of an article, by contrast, are merely notes to be used as a tool of first reflections around your importance and application, especially  in relation to swiftly in judicial services, without sacrificing security to resolve the conflict of interests of the parties. Keywords: Principle; Reasonable duration; Civil Procedure Code

O princípio da duração razoável do processo e sua aplicação no novo código de processo civil A legião de operadores do direito, na esfera judicial ou extrajudicial, bem como na academia, no âmbito das universidades, seminários, congressos, nas associações da Magistratura, do Ministério Público e da OAB, pensadores do direito, receberam a Reforma do Judiciário, através da 1 Professor titular da disciplina de Processo Civil na Universidade Estácio de Sá, Pós -graduação na Estácio em 2012, Professor de Processo Civil, Direito Empresarial e Técnicas de Sentença na Escola da Magistratura de 1985 até 2005. Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Estácio de Sá de 1995/1998, Diretor Geral do Campus João Uchoa de 1999/2001, Coordenador das Disciplinas de Processo Civil de 2001 até 2009 na Universidade Estácio de Sá, Coordenador Nacional das Disciplinas de Processo Civil e Direito Empresarial de 2009/2011 na Universidade Estácio de Sá. Autor de diversas obras de Processo Civil.

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Emenda Constitucional 45/2004, com muita esperança e, dentre as reformas, sobressaem os princípios constitucionais inseridos no art. 5º, inciso LXXVIII, da tempestividade e celeridade na prestação dos serviços jurisdicionais. A reforma fatiada no Código de Processo Civil de 1973 já tinha esse norte, suas normas processuais revelam a preocupação com a prestação jurisdicional rápida, sem violar a segurança jurídica de suas decisões. A solução rápida dos litígios exige a eliminação de formalidades e adoção de ritos com acentuada oralidade, como se apresenta o procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Claro, então, que o respeito ao princípio constitucional da tempestividade levaria de forma natural à economia processual, informalidade, simplicidade, oralidade e celeridade, os princípios norteadores do procedimento sumaríssimo dos Juizados Especiais. O novo Código de Processo Civil resgata a confiança dos jurisdicionados com o serviço judicial, como veremos no desenvolvimento deste artigo, porque apresenta instrumentos novos que levam a eliminação de atividades processuais para alcançar a rápida solução dos conflitos. Salienta-se, que o princípio da tempestividade tem aplicação também no âmbito da administração pública, como não poderia deixar de acontecer, porque o Estado tem o direito e dever de responder a seus administrados de forma rápida e segura, quando provocado para dar resposta às postulações extrajudiciais dos seus requerentes, ávidos para buscar a reposição de eventuais prejuízos sofridos, por força da atividade administrativa dos seus funcionários. A reconstrução do direito processual civil foi um trabalho muito árduo e que acompanha os anseios dos jurisdicionados na busca da efetividade da atividade jurisdicional do Estado-juiz. Não só isso, o fortalecimento e a nova roupagem do Ministério Público, titular da proteção dos interesses da sociedade e que zela pelo respeito efetivo dos Poderes Públicos, agindo em defesa dos direitos coletivos, os chamados metaindividuais. Da mesma forma, reafirma a posição da Defensoria Pública no seu verdadeiro patamar de protetor dos direitos e interesses dos hipossuficientes, essencial e o maior viés de facilitação do acesso à justiça. A notável função dos advogados, o provocador ou instigador de novas e modernas interpretações do direito, no seu dia a dia, um dos sujeitos essenciais na engrenagem da função jurisdicional, também contemplado de forma mais rica e respeitosa no novo Código de Processo Civil, diante da sua importantíssima relevância. Faz parte dos serviços essenciais de fazer justiça e instituição que contribui de forma decisiva para o acesso à justiça e acelerar a prestação jurisdicional do Estado. Antes de apontar as principais novidades do novo Código de Processo Civil, que estão intimamente vinculadas aos princípios da tempestividade e da celeridade, vamos preliminarmente pontuar a sua compreensão trazida pelos doutrinadores e pela jurisprudência de nossos Tribunais, sem intenção de esgotamento do tema porque limitado no espaço concedido pelos Coordenadores da obra, compreensível porque são tantos colegas a homenageá-lo, de forma

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justa, o nosso querido professor, amigo, companheiro de anos e anos nas diversas funções exercidas no curso de direito da Universidade Estácio, em nível de direção, coordenação acadêmica, pedagógica e didática, onde sobressaiu com sua invulgar inteligência e comprometimento pleno, sem contar com o seu desempenho extraordinário em sala de aula, na graduação ou na Pós-graduação. O princípio da duração razoável do processo ingressou no nosso ordenamento processual através do disposto no art. 8º, 1, da Convenção Americana de Direitos Humanos, o conhecido Pacto de São José da Costa Rica, que o Brasil ratificou no ano de 1992, pelo que a Reforma do Poder Judiciário, vinda através da Emenda Constitucional nº 45/2004, apenas o elevou ao patamar de garantia constitucional2. Alguns processos duram mais que outros, dependendo da complexidade da questão jurídica debatida em juízo, mas a busca por ferramentas eficazes contra os males do tempo, este o maior entrave na entrega do serviço jurisdicional, é permanente e não se esgota no tempo. Continuará a desafiar a inteligência dos participantes da relação jurídica processual e da comunidade jurídica. Não se pode esperar que todo processo seja rápido e eficaz, porque é preciso respeitar o princípio do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. É preciso compreender o princípio da duração razoável do processo, como instrumento processual que evite dilações indevidas, ou seja, não deve o itinerário processual durar mais do que é necessário ou ponderado. O processo deve durar o tempo necessário para que a entrega da prestação jurisdicional seja efetiva. Por outro giro, deve o legislador ordinário criar ferramentas processuais que puna os sujeitos do processo que viole o princípio da tempestividade, sejam eles as partes, sujeitos parciais, ou não. A realização plena do princípio da celeridade exige não só reformas na legislação processual, mas também na estrutura e organização do Poder Judiciário, com criação de órgãos especializados para atender a certas demandas complexas, ou que não sejam, mas especiais para solução também de conflitos de massa. A doutrina mais festejada orienta-se no sentido de que os princípios da duração razoável do processo e da celeridade revelam dupla função, a primeira respeitar o prazo do itinerário processual e a segunda orientar-se no sentido da necessidade de adoção de meios alternativos de solução de conflitos, como a conciliação, mediação e o juízo arbitral, entre outros. Esses meios alternativos contribuem para a realização de uma justiça plena e rápida3. Nossa comunidade jurídica começa a despertar para essa forma de fazer justiça, muito presente nos países de primeiro mundo. O novo Código de Processo Civil deixa clara a possibilidade da solução dos conflitos via atividade jurisdicional anômala, porque a avalanche de demandas junto ao Poder Judiciário torna a Justiça, por mais que haja esforço, ainda lenta na maioria das demandas, sem que haja concreta culpa dos responsáveis em solucionar os conflitos. 2 CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, 24. ed., vol. 1, pág. 67. Atlas. São Paulo. 3 JUNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo na Constituição Federal, 9. ed., pág.314. Editora Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

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O novo Código de Processo Civil, atento às necessidades operacionais de seu instrumento, trouxe um conjunto de ferramentas eficazes para tornar a prestação jurisdicional ágil e eficaz, o que a faz efetiva quer na fase de conhecimento, como na fase de cumprimento da sentença. Em primeiro momento tudo conspira a favor do combate à morosidade e, por tal, permite atender o acesso à justiça. É preciso, por outro giro, reconhecer que razoável é o tempo necessário para a cognição da causa até a efetiva entrega do serviço jurisdicional, já no módulo de cumprimento da sentença. Importante destacar que havendo morosidade na entrega da prestação jurisdicional, presente o dolo, há responsabilidade civil objetiva do Estado, que deverá ser acionado a compor os danos4. Há unanimidade na doutrina e na jurisprudência no sentido de que o princípio da celeridade não condiz com a busca alucinada e a qualquer preço da entrega da prestação jurisdicional, porque assim ocorrendo, certamente, fica comprometido o devido processo legal. No atual processo encontramos ferramentas moderníssimas que permitem o cumprimento da garantia constitucional da celeridade, como a via web da internet e e-mail. O correio eletrônico é uma ferramenta poderosa e aliada do princípio da duração razoável do processo, já bastante utilizada na prestação do serviço jurisdicional. Como destaca a doutrina, o encurtamento do tempo é puro ouro e é o maior aliado da justiça, porém agregado aos princípios do devido processo legal, isonomia, ampla defesa, contraditório, do juízo natural e tantos outros, além do que a razoabilidade deve ser aferida por critérios objetivos no caso concreto. 5 No concreto, constata-se que existem processos complexos e que exigem ampla dilação probatória e o eventual gasto de tempo, aqui, não viola o princípio ora objeto de comentário. A aferição da eficiência é a baliza que deve ser considerada no caso concreto. Operar o processo civil demanda domínio de suas regras e colaboração de todos os sujeitos do processo para alcançar o melhor resultado com o mínimo de esforço ou atividade processual. É preciso ter consciência que não é possível ter, apenas, procedimento marcantemente oral com formalidade mínima, porque deparamos com questões jurídicas muito complexas exigindo dilação probatória e muito segurança na formação do convencimento para solucionar a lide. Nem sempre ou quase sempre não é possível decidir um conflito aplicando a tutela de evidência. O novo Código de Processo Civil apresenta sintonia com o princípio da efetividade da tutela jurisdicional reclamada e, por via de consequência com a tempestividade, quando ampliou os casos de tutela de urgência e de evidência, de sentença liminar, com a redução do número de recursos, com a eliminação da tutela cautelar como processo genuinamente autônomo, como inúmeros outros instrumentos, que veremos nesse trabalho.

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4 BERNADINA DE PINO, Humberto Dalla. Teoria Geral do Processo Civil Contemporâneo, 2. ed. Rio de Janeiro, revista e atualizada, p. 49. Lumen Juris, 2009. 5 Ibid., 8. BERNADINA DE PINO, Humberto Dalla, Teoria Geral do Processo Civil Contemporâneo, 2ª edição, Lumen Juris. 2009. p. 315.

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Não podemos ser pessimistas ao achar que o princípio da duração razoável do processo é apenas uma simples declaração de boa intenção e que o Judiciário não pode pagar a conta. Basta compreender o novo perfil do Código de Processo Civil como inovador e desafiador, porque em sintonia com o que temos de mais moderno no mundo contemporâneo, como instrumento da jurisdição. A previsão do poder do juiz de, discricionariamente, flexibilizar um rito, diante de um caso concreto, para perseguir a economia processual ou para assegurar o devido processo legal é medida excepcional. Deixa o magistrado de ser simples cumpridor das normas processuais, não importando o seu custo para a entrega da prestação jurisdicional. O rito não é mais um dogma absoluto, no momento relativizado para atender o interesse maior, o de fazer Justiça. O novo Código de Processo civil apresenta inúmeros remédios contra os males do tempo, que veremos a seguir, sem compromisso com o exame profundo dos temas que agora passamos a abordar. Destacaremos as principais inovações trazidas pelo novo Código de Processo Civil e que são consagradoras dos princípios da duração razoável do processo e da celeridade (art. 5º, LXXVIII da CRFB). Quando a Lei 13.105 entrar em vigor, foi sancionado pela Presidência da República em 16.3.2015, não sentiremos saudades do Código de Processo Civil de 1973, mesmo após sofrer inúmeras alterações, programadas de forma fatiada ao longo de mais de 20 anos. O artigo 12, do novo CPC, estabelece que os juízes deverão proferir sentença e os tribunais deverão decidir os recursos obedecendo a ordem cronológica de conclusão, além de que a lista do processo apta a julgamento deverá ser permanentemente disponibilizada em cartório, para consulta pública. Claro, que a nova lei processual criou um elenco de situações em que essa ordem não será observada, como nas sentenças que homologam acordos ou no caso de improcedência liminar do pedido, casos de julgamento em bloco no incidente de resolução de demandas repetitivas ou em recurso repetitivo e, ainda, os casos de preferências legais (idosos, HC, MS, presos, etc.) entre outros. Certamente essa norma processual coloca uma espada na cabeça dos magistrados e que será difícil, em primeiro plano, ser cumprida à risca, considerando que a vida real é mais criativa que as previsões legais. O importante será o esforço de todos, não só dos magistrados, mas dos demais operadores do direito, em colaboração mútua, para atender essa norma processual. O capítulo sobre cooperação internacional demonstra que o novo Código não ficou alheio a universalização das demandas, que ultrapassam a barreira do nosso território e que exigem cooperação mútua para a entrega da prestação jurisdicional. O fenômeno da globalização não é novo e estreitou a relação entre os países e seus povos. A adoção do incidente de resolução de demandas repetitivas, um instrumento inovador em elação à primeira instância, o que repercutirá na solução de demandas tramitando em inúmeros órgãos com função jurisdicional em todo o nosso país. Seu papel, além de gerar segurança na entrega da solução da lide

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e evitar decisões díspares, é fundamentalmente, de consagrar a duração razoável do processo e a efetividade da função jurisdicional. A economia processual será impressionante, em escala gigantesca. Riscos de afronta ao devido processual legal existirão, mas a experiência dos magistrados acompanhada de uma dose de muita serenidade diminuirá a insegurança. No início teremos situações complicadas a desafiar a inteligência dos profissionais do direito, porém o tempo corrido dará o caminho para vencermos as dificuldades. Passados alguns anos, tudo ficará normalizado e os benefícios para os jurisdicionados serão enormes. A boa vontade de todos no momento inicial é o melhor remédio para as incertezas e inseguranças. O disciplinamento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, uma das modalidades de intervenção de terceiro, nos casos de abuso de personalidade, em todas as fases do processo, com previsão de citação para manifestação dos interessados e solução por decisão interlocutória, impugnável por agravo de instrumento (art. 79) foi medida prudente, porque a ausência desse incidente em nosso ordenamento processual causava afronta ao devido processo legal e gerava muitas delongas em razão de recursos interpostos. A previsão de alegação da incompetência relativa do juízo, em preliminar, na contestação foi medida sábia, eliminando a exceção de incompetência, como a alegação de suspeição e impedimento do juiz, que passa a ser um mero incidente no curso do processo, alegável e disciplinado de forma a não retardar a entrega da prestação jurisdicional. A possibilidade de conservação das decisões proferidas por juízo incompetente (relativa e absoluta), até que outra seja proferida, se for o caso, pelo juízo competente revela a preocupação com o tempo de duração do processo e é instrumento e a forma refratária ao desfazimento de serviço jurisdicional que esteja correto, o que consagra a economia processual. A criação da fase de conciliação e mediação, antes da citação do réu é instrumento excepcional e demonstra o foco no fomento da autocomposição do conflito. Essa técnica demonstra que o norte é a conciliação entre as partes para evitar demandas tramitando no Judiciário. Há previsão no sentido de que os magistrados, advogados, membros do Ministério Público e Defensores Públicos deverão estimular a conciliação, mesmo já tramitando o processo com pedido resistido pelo réu. Sabiamente o legislador do novo CPC prevê regra para a hipótese da audiência preliminar de conciliação ou mediação não ser possível de realização se uma das partes manifestarem, com dez dias de antecedência, desinteresse na composição amigável e, neste caso, a parte contrária será intimada imediatamente do cancelamento da audiência, correndo, então, prazo para oferecer defesa. A utilização da videoconferência para prática de atos processuais ou mesmo outros recursos tecnológicos de transmissão de sons e imagens em tempo real (parágrafo único, do art. 205 do CPC) é outra via de consagração dos princípios da duração razoável do processo e, em especial, os da economia processual e celeridade. É recurso já utilizado nos tempos atuais e que vem demonstrando a sua eficácia em todos os sentidos.

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A adoção de um único procedimento comum, que pode ser utilizado subsidiariamente nos outros procedimentos, com supressão do procedimento sumário, por desnecessidade, em conta que o criado já vem dotado de regras que atendem, em sua maioria, as que existiam no processo revogado, como a previsão da petição inicial do autor indicar o rol de testemunhas e até mesmo os quesitos quando necessária a prova pericial. A adoção de um procedimento comum, com peça de resistência única, banida as exceções como modalidade de resposta do réu, porque passa a configurar como um simples incidente processual, previsto nos artigos 146 e seguintes do novo CPC. A reconvenção deixa de ser apresentada em petição à parte e passa a integrar a contestação, um verdadeiro pedido contraposto, mas poderá ser oferecida em peça única, se o réu não oferecer contestação. A adoção ampliada do julgamento liminar de improcedência do pedido, que se fundamenta em matéria exclusivamente de direito, independentemente de citação do réu, cumpre o princípio constitucional processual da duração razoável do processo, quando a postulação do autor contrariar súmula do Supremo Tribunal Federal ou do Superior Tribunal de Justiça; contrariar acórdão do STF ou STJ em julgamento de recursos repetitivos; contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de questões repetitivas ou assunção de competência e, ainda, quando o juiz verificar, de imediato, a decadência e a prescrição. A introdução do amicus curiae, como modalidade de intervenção de terceiro, com ingresso no processo, por determinação judicial (de ofício) ou através requerimento da parte. O amicus curiae é detentor de conhecimento especializado (pessoa natural ou jurídica) ou mesmo órgão ou entidade detentor desse conhecimento científico, com representação adequada e conhecimento da matéria objeto da lide. O apoio desse terceiro ao magistrado e às partes é instrumento que gera segurança na entrega da prestação jurisdicional, em demandas de alta complexidade e que exigem conhecimento específico e de larga experiência do profissional ou órgão ou entidade colaboradora com a atividade jurisdicional do Estado. A ilegitimidade de parte deixa de ser um vício insanável, podendo o juiz determinar ao autor a emenda da inicial para corrigir o vício, dando-se vazão ao aproveitamento dos atos processuais, mas o autor reembolsará as despesas e pagará honorários do procurador do réu. Essa inovação atende, com certeza, a duração razoável do processo e, sobretudo a efetividade da prestação do serviço judicial. Ainda há previsão de que no caso de ilegitimidade ou falta de interesse processual, a propositura da nova ação depende da correção do vício. A arguição de falsidade é simplificada, deixando de resultar em um incidente processual com previsão de que a decisão constará da parte dispositiva da sentença e sobre a qual fará coisa julgada. Trata-se, obviamente, de uma questão prejudicial, que decidida em certo sentido predetermina o conteúdo da seguinte, também de direito material. Aliás, no novo Código as questões prejudiciais resolvidas na sentença, incidentemente, fazem coisa julgada. Essa novidade está harmonia com o princípio da celeridade, levada a limites elevados no novo Código de Processo Civil.

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De boa técnica, a regra geral, com previsão de que nas ações relativas a obrigação de pagar quantia certa, ainda que o pedido formulado seja genérico, a sentença deverá definir desde logo a extensão da obrigação, o índice de correção monetária, a taxa de juros e o termo inicial de ambos, relativizando o princípio da correlação entre o pedido e o julgamento da pretensão do autor, com exceções no caso de não ser possível determinar, de modo definitivo, o montante devido e a apuração do valor devido depender da produção de prova de realização demorada ou excessivamente dispendiosa, reconhecida na sentença. Estabelece o novo CPC a remessa necessária, em duplo grau obrigatório, dos autos com condenação das pessoas jurídicas de direito público em limites definidos e bem acima dos previstos no Código revogado de 1973, como mil salários mínimos de sentenças proferidas contra União e as respectivas autarquias; quinhentos salários mínimos contra Estados, Distrito Federal e respectivas autarquias, fundações de direito público, bem assim para as capitais dos Estados e cem salários mínimos para os demais municípios e respectivas autarquias. O cumprimento de obrigação de pagar quantia certa pela Fazenda Pública pode ser impugnado no prazo de 30 dias, nos próprios autos, pondo fim aos embargos do devedor, como defesa (verdadeira ação autônoma) do executado e incidental, além de simplificar o cumprimento de sentença de obrigação de pagar. Entre os procedimentos especiais de jurisdição contenciosa, o novo CPC contempla o da ação de dissolução parcial de sociedade, que observava o procedimento previsto no antigo no art. 1.218, VII, do CPC de 1939. Outros foram retirados como o procedimento da ação de usucapião de terras particulares, ficando o procedimento sumário da usucapião rural e o de urbano (Leis 6969/80 e 10257/01, respectivamente). A inclusão das ações de família, como a que trata de divórcio, separação, reconhecimento e extinção de união estável, guarda, visitação e filiação, previstas nos artigos 693 e seguintes do CPC foi providência salutar e bem vinda, com certeza. Certamente, a maior novidade é o regramento do incidente de resolução de demandas repetitivas, quando identificada controvérsia com potencial de gerar relevante multiplicação de processos fundados em idêntica questão de direito e de causar insegurança jurídica, decorrente do risco de coexistência de decisões conflitantes. Foi feito o transpasse para o primeiro grau de jurisdição do instrumento de disciplinamento da multiplicidade de recursos com fundamento em idêntica controvérsia (art. 543-B do CPC de 1973) e recurso repetitivo previsto no art. 543-C do CPC revogado de 1973. Esse incidente será dirigido ao Presidente do Tribunal pelo juiz ou relator, de ofício, como também pelas partes, pelo Ministério Público ou pela Defensoria Pública, por petição. É o instrumento mais inovador introduzido em nosso ordenamento processual, que evitará o andamento, em juízo, de demandas repetitivas com possibilidade real de decisões díspares, o que gera insegurança jurídica a todos os jurisdicionados. A maior vantagem é atender o princípio da duração razoável do processo. O procedimento do incidente está previsto

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no novo Código de Processo Civil, com previsão de suspensão dos processos pendentes, quando admitido o incidente, em primeiro e segundo grau de jurisdição. Durante a suspensão poderão ser concedidas medidas de urgência no juízo de origem, para evitar perda ou perecimento de direito, como prescrição e decadência. O incidente poderá tomar dimensão nacional, provocado pelo Ministério Público, Defensoria Pública, partes e interessados e, nesse caso, a competência é do Superior Tribunal de Justiça ou Superior Tribunal Federal, dependendo de ser a matéria eventualmente objeto de recurso especial ou extraordinário. O prazo de julgamento do incidente é de seis meses e terá preferência sobre os demais, ressalvadas as situações especiais, no caso, de habeas corpus, réu preso, etc. Os recursos especial e extraordinário, quando admitidos, terão efeito suspensivo, presumida a repercussão geral da questão constitucional porventura discutida. Certamente esse incidente receberá regulamentação interna nos Tribunais locais e nos superiores. Em relação aos recursos, o novo Código de Processo Civil reduziu o número dos existentes no Código de 1973. O elenco encontra-se no art. 994 do novo CPC. Desaparece o recurso de agravo retido, até porque as decisões interlocutórias sem previsão de recurso não precluem e os embargos infringentes. Surge o agravo de inadmissão dos recursos especiais e extraordinário, em substituição ao agravo nos autos do processo. Essa redução visa acelerar a entrega da prestação jurisdicional e evitar recursos meramente procrastinatórios. Há previsão de que os recursos interpostos não impedem a eficácia da decisão torna-os dotados apenas de efeito devolutivo, porém o relator poderá dar efeito suspensivo quando demonstrada a possibilidade do provimento do recurso, ou sendo relevante a fundamentação do recorrente, e haver risco de dano grave ou de difícil reparação. Nota-se que o efeito suspensivo ao recurso só poderá ser concedido pelo Tribunal, provocado por petição autônoma, com prioridade na tramitação. A decisão do relator é irrecorrível, o que evita retardamento na entrega da prestação jurisdicional pelo órgão colegiado. O agravo de instrumento passa a ser também um recurso textual, indicado em várias passagens do Código de Processo Civil, quando proferidas decisões interlocutórias selecionadas criteriosamente ou constante do elenco discriminado no art. 1.015 do CPC, nos casos de decisão em tutelas provisórias, mérito de causa (prescrição e decadência no curso do processo), incidente de desconsideração da personalidade jurídica, rejeição do pedido de gratuidade de justiça ou acolhimento, exibição e posse de documentos, exclusão de litisconsórcio, rejeição de pedido de limitação de litisconsórcio, incluir e rejeitar intervenção de 3º, na fase de liquidação e cumprimento de sentença, entre outras. Grande novidade é a tutela de urgência cabível quando houver elementos que evidenciam a probabilidade do direito e o perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Abrange dois procedimentos: o primeiro, da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, quando a urgência for contemporânea à

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propositura da ação, que se concedida pelo juiz, o autor deverá aditar a inicial, com complementação de sua argumentação e juntada de novos documentos, nos mesmos autos com pedido de confirmação de tutela final, e, logicamente, citação do réu para oferecer defesa. Essa tutela concedida torna-se estável se da decisão que a conceder não houver recurso e que será extinto o processo e o segundo o procedimento da tutela cautelar requerida em caráter antecedente. Este procedimento guarda semelhança com o antigo processo cautelar, que pode ser convertido em tutela antecipada, se presentes os seus pressupostos. Concedida a tutela cautelar antecedente o réu terá o prazo de cinco dias para oferecer contestação e indicar provas. Oferecida contestação seguirá o procedimento comum. Concedida a tutela cautelar o autor terá o prazo de 30 dias para promover a ação principal nos mesmos autos. O pedido principal pode ser formulado em conjunto com o de tutela cautelar. O indeferimento da tutela cautelar não impede a que o interessada formule ação principal e nem influi no julgamento desse, salvo nos casos de prescrição e decadência, como previsto no art. 810, do CPC revogado. A previsão de concessão de ofício de medidas de urgência, podendo exigir caução real ou fidejussória idônea para ressarcir danos eventualmente sofridos, salvo em relação à parte hipossuficiente. São todas medidas que atendem o princípio da tempestividade, ingressando o nosso processo em uma rotina moderna de efetividade da prestação jurisdicional. A tutela de evidência recebe tratamento peculiar e detalhado (art. 311 do novo CPC) e pode ser concedida independentemente de demonstração de risco de dano irreparável, ao ficar caracterizado o abuso do direito de defesa ou manifestado propósito protelatório do requerido, ou um ou mais pedidos cumulados ou parcela deles mostrar-se incontroverso, caso em que a solução será definitiva. Pedido reipersecutório com prova documental adequada do depósito legal ou convencional independe de prévia comprovação de risco de dano a ordem liminar, sob cominação de multa diária, de entrega do objeto custodiado, pelo que o juiz pode conceder a tutela de evidência. As medidas de urgência podem ser requeridas em caráter antecedente, mediante petição, que indicará a lide, seu fundamento e a exposição sumário do direito ameaçado ou do receio de lesão. Nesse caso gera um verdadeiro processo antecedente de cognição sumária, o que exige a citação do requerido para oferecer contestação ao pedido, no prazo de cinco dias. Concedida a medida de urgência o juiz extinguirá o processo, conservando a sua eficácia. Feita a impugnação ao pedido, o processo principal deverá ser apresentado nos mesmos autos em que tiver sido veiculado o requerimento da medida de urgência. Outra novidade é o alargamento das hipóteses de improcedência liminar do pedido, como disciplinado no art. 285-A do revogado CPC de 1973. Pode julgar liminarmente improcedente o pedido que se funde em matéria exclusivamente em direito, independente de citação do réu, se o pedido contrariar súmula do Supremo Tribunal Federal ou Superior Tribunal de Justiça; contrariar acórdão proferido pelo Supremo Tribunal Federal ou pelo Superior Tribunal de Justiça

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em julgamento de recursos repetitivos e contrariar entendimento firmado em incidente de resolução de demandas repetitivas ou de assunção de competência e, ainda, quando o juiz verificar, desde logo, a presença da prescrição e da decadência. O novo Código de Processo não se limita às inovações apontadas acima, apenas foram feitos destaques a algumas delas, em especial para aquelas que abraçam os princípios da duração razoável do processo e da celeridade, o que conduz inexoravelmente a uma prestação jurisdicional efetiva. Todos os remédios contra os males do tempo, conhecidos pela comunidade jurídica processual e por ela desejados, foram atendidos de forma sistematizada e, agora, com a sanção presidencial da lei, que tomou o nº 13.105, de 16.3.2015. Nesse dia em estou redigindo e finalizando esse artigo, e, com certeza, passaremos por um período mais agudo de estudo de suas normas em sede de congressos, seminários e debates em geral, para daqui a um ano, período de vacacio legis, entrar em vigor, quando esperamos que todos os operadores do direito estejam razoavelmente informados de sua utilização nos casos concretos. O sonho sonhado por longos anos se concretiza, mas o sucesso da prestação jurisdicional depende muito da serenidade, ponderabilidade e aplicação cuidadosa do novo Código por todos os envolvidos no seu manuseio diário. A comunidade acadêmica, sem dúvida, deve de imediato começar a preparar seus discentes no foco do novo Código de Processo Civil e atualizar os alunos que estão cursando direito e que até aqui estudam ou estudaram no Código em fase terminal de vigência. Nova era processual, que todos devem comemorar e é renovada a esperança de fazer justiça com maior brevidade possível, sem descuidar do devido processo legal.

Referências bibliográficas BERNADINA DE PINO, Humberto Dalla. Teoria Geral do Processo Civil Contemporâneo, 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. BUENO, Cássio Scarpinella. Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, Teoria Geral do Direito Processual Civil, vol. 1, Saraiva, São Paulo, 2007. CAMARA, Alexandre Freitas. Lições de Direito Processual Civil, 24. ed. Vol.1, São Paulo: Atlas, 2013. COSTA, José Augusto Galdino da. Princípios Gerais no Processo Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2007. DESFTEFENNI, Marcos. Curso de Processo Civil, Vol. 1, São Paulo: Saraiva, 2006. DONIZETE, Elpídio. Curso Didático de Direito Processual Civil, 12. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. JUNIOR, Nelson Nery. Princípios do Processo na Constituição Federal, 9.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. RIOS GONÇALVES, Marcus Vinicius. Novo Curso de Direito Processual Civil, 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo; ALMEIDA, Flávio Renato Correia de. Curso de Processo Civil. 10.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008.

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A individualização do homem e a dignidade da pessoa humana Nívea Corcino Locatelli Braga1 Resumo O objetivo do presente artigo é fazer uma análise do processo de individualização do homem a partir do medievo, bem como de suas particularidades, propiciando as bases para o surgimento da noção da Dignidade da Pessoa Humana. Para o enfrentamento do instituto da Dignidade da Pessoa Humana, será realizada uma gênese, através da apreciação de períodos históricos, do reconhecimento da subjetividade do homem. Palavras-chave: Individualização; Homem; Dignidade da Pessoa Humana. Abstract  The purpose of this article is to analyze the process of individuation of man from the Middle Ages, as well as their features, providing the foundation for the emergence of the concept of Human Dignity. To address the Institute of Human Dignity, a genesis will be held through the appreciation of historical periods, the recognition of human subjectivity. Keywords: Individualization; Man; Human Dignity.

Introdução A Dignidade da Pessoa Humana constitui um dos valores fundantes do Estado Democrático de Direito, sendo elencada como fundamento da República Federativa do Brasil, no rol do artigo 1º da Carta Magna, ao lado da soberania, da cidadania, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político. A compreensão do instituto desde a idade média se mostra essencial, na medida em que revela o processo de individualização do homem, permitindo inferir as especificidades do contexto histórico, as bases estruturais existentes e a construção do conteúdo da Dignidade da Pessoa Humana, ao longo dos séculos.

A noção de pessoa como subjetividade humana 1 Coordenadora e Professora do Programa de Pós-graduação Lato Sensu da Universidade Estácio de Sá. Professora da Graduação da Universidade Estácio de Sá. Integrante da Equipe Editorial e Avaliadora da Littera Docente & Discente em Revista. Advogada. Mestranda em Direito pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada em Processo Civil Contemporâneo pela Universidade Estácio de Sá. Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela UNIDERP. Pós-graduada em Docência do Ensino Superior pela Universidade Estácio de Sá. Graduada em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

A individualização do homem e a dignidade da pessoa humana

O sentido atribuído à noção de pessoa como subjetividade humana emergiu com a influência da cultura cristã, quando houve o rompimento do período medieval com a tradição clássica, sendo inserida na igreja a doutrina de salvação e contato pessoal com o mundo divino2. O cristianismo fixou a base moral sobre a qual se assentaria o reconhecimento do direito da personalidade3. A partir do cristianismo foi atribuída a noção de pessoa dotada de subjetividade humana, deixando o homem de ser tratado como um instrumento, rompendo com a tradição clássica. A pessoa como valor essencial de todo um arcabouço ético-jurídico tornouse concreta com a união das filosofias antigas, em especial com a tradição estóica, com uma ainda embrionária teologia cristã. 4 Vê-se que, o precursor da definição filosófica da pessoa humana, foi Severino Boécio, que no século VI, defendeu que, a pessoa é uma essência dada e construída em sua totalidade desde o início da concepção, capaz de ter raciocínio. Considerou Boécio, o dado de singularidade da pessoa, a noção de substância individual e racional. Assim para o filósofo, o ser da pessoa é um ser próprio, que pertence tão somente a si independente do outro5. Boécio restringe o uso do vocábulo pessoa para o plano da racionalidade, ao asseverar que: “Disso tudo decorre que, se há pessoa tão somente nas substâncias, e naquelas racionais, e se toda substância é uma natureza, mas não consta nos universais e, sim, nos indivíduos, a definição que se obtém da pessoa é a seguinte: “substância individual de natureza racional”6

Para o filósofo a pessoa já não é uma exterioridade, sendo a própria substância do homem, na concepção aristotélica. Desta feita, a concepção de Boécio veiculada na persona est rationalis naturae individua substantia, recebeu seu contributo fundamental das concepções nominalistas do Venerabilis Inceptor Guilherme de Ockham, da primeira metade do século XIV, que introduz a noção de direito natural para definir a justiça.7

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2 HOGEMANN, Edna Raquel R. S. Danos Morais e Direitos de Personalidade uma Questão de Dignidade. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Direito Público e Evolução Social. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.80. 3 TOBEÑAS, José Castan. Los Derechos de la Personalidad, Madri: Réus. 1952, p.10. 4 HOGEMANN, Edna Raquel R. S. Danos Morais e Direitos de Personalidade uma Questão de Dignidade. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Direito Público e Evolução Social. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.80. 5 HOGEMANN, Edna Raquel R. S. Danos Morais e Direitos de Personalidade uma Questão de Dignidade. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Direito Público e Evolução Social. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.80. 6 BOÉCIO, Severino. Escritos. Opuscula Sacra. Tradução, introdução, estudos introdutórios e notas Juvenal Savian Filho. Prefácio de Marilena Chauí. São Paulo: Martins Fontes. 2005, p.282. 7 HOGEMANN, Edna Raquel R. S. Danos Morais e Direitos de Personalidade uma Questão de Dignidade. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Direito Público e Evolução Social. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.80.

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A doutrina cristã afirmou o homem como um valor absoluto, elevou o sentimento de dignidade da pessoa humana e anunciou uma organização social, calcada na igualdade dos indivíduos perante Deus, permitindo o desenvolvimento da personalidade8. Foi com a influência da era cristã, que a acepção de pessoa adquiriu unicidade e individualidade, já que o homem passou a ser a personificação da imagem do criador, se desvinculando da força das instituições, elemento nodal da era medieval. No período medieval cristão, com o Direito Natural Teológico, reconheciase o mundo como algo organizado pela Divina Providência, sendo crível ao homem a possibilidade de descobrir de forma racional os desígnios de Deus, que orientavam as leis supremas. Refletindo este pensamento, na idade média, São Tomás de Aquino, utilizou pela primeira vez a expressão dignitas humana, afirmando que, a noção de dignidade encontrava fundamento na circunstância, de que o ser humano foi feito à imagem e semelhança de Deus, o que radicou na capacidade de autodeterminação própria da natureza do homem 9. Em a Suma Teológica, São Tomás de Aquino, na parte VI, volume VI, no artigo 1º da questão 63, ao enfrentar a questão se a discriminação das pessoas constituiria pecados, afirmou “QUANTO AO PRIMEIRO ARTIGO ASSIM PROCEDE: parece que a discriminação das pessoas não é pecado. 1. Com efeito, o termo “pessoa” exprime a dignidade. Ora, ter em consideração a dignidade das pessoas pertence à justiça distributiva. Logo, a discriminação das pessoas não é pecado. [...]. EM SENTIDO CONTRÁRIO, na lei divina só se proíbe o pecado. Ora, a discriminação das pessoas se proíbe no livro de Deuteronômio: Não fareis discriminação de qualquer pessoa. Logo, a discriminação das pessoas é pecado. RESPONDO. [...]. QUANTO ao 1, portanto, deve-se dizer que a justiça distributiva considera as condições pessoais que constituem a causa de uma dignidade ou de um débito. Nas discriminação das pessoas ao contrário consideram-se as condições, que não tem relação com esta causa. QUANTO ao 2, deve-se dizer que as pessoas se tornam dignas de receber certas atribuições, em razão de qualidades ligadas à condição da pessoa.” 10.

O filósofo acreditava que em tudo havia uma ordem, qual seja, a ordem geral do universo, estabelecida pela ordem divina. Cabia ao homem compreendêla e obedecer aos preceitos dela provenientes. A lei da natureza, nos seus primeiros princípios gerais, quanto à retidão e quanto ao conhecimento, era a mesma para todos. “Assim como a razão do homem domina e impera sôbre as outras faculdades, assim é necessário que tôdas as inclinações naturais das outras potências se ordenem racionalmente.”11 8 TOBEÑAS, José Castan. Los Derechos del Hombre. Madri: Réus. 1969, p.41. 9 SARLET, op. cit., p.31. 10 AQUINO, de Tomás. Suma teológica VI. São Paulo: Edições Loyola, 2005, p. 121-123. 11 AQUINO, op. cit, p. 111.

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A morte natural foi imposta pelo poder divino em razão do pecado original, de modo natural morrem todos, sejam inocentes ou culpados, não havendo que se falar em injustiça12. Deus, com sua sabedoria, é o criador de todas as coisas, para as quais está como artífice, para as coisas artificiadas. A lei eterna é fruto da sabedoria divina, diretiva de todos os atos e moções, é o fundamento da ordem. 13 Toda criatura racional conhece a lei eterna por maior ou menor irradiação dela. O conhecimento da verdade constitui certa irradiação e participação da lei eterna, que é a verdade imutável.14 No alcance, em que o reconhecimento é apreensão de um ser transcendente, ele pode ser identificado com um gesto de fé, pois somente a fé dá acesso ao que ultrapassa a razão especulativa, a razão prática e o mundo, a pessoa é um objeto de fé15. O ato de consideração do outro não se embaraça com a ciência ou com a opinião, mormente por ser a ciência, conhecimento certo e demonstrado, e por derivar a opinião de um conhecimento duvidoso. O reconhecimento é um conhecimento certo e indemonstrável, similar à fé: “a fé é intermediária entre ciência e opinião”. 16 Fé e reconhecimento são formas de aproximação do transcendente. A fé é voluntária, “crer é um ato do intelecto movido pela vontade para assentir”17. A fé necessita de um ato do intelecto, que acede a uma verdade e de um ato de vontade que impulsione o pensar. O objeto da fé não é evidente, sendo imperioso o ato da vontade. O que crê, almeja crer: “entre os que vêem um e mesmo milagre e entre os ouvintes da mesma pregação, alguns crêem e outros não [...], porque crer, na verdade depende da vontade do que crê.” 18 Do mesmo modo, o reconhecimento é um ato livre. A personalidade não é evidente. A história demonstra como a negação da condição da personalidade foi um fenômeno frequente. Considera o ser humano como pessoa aquele que quer identificá-lo como pessoa.19 Diante de cada ser humano, deve ocorrer um ato de fé: “Este ser humano é pessoa”. E assim como o ato de fé só perfeito em quem possui a caridade.20

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12 AQUINO, op. cit, p. 114. 13 AQUINO, op. cit, p. 64. 14 AQUINO, op. cit, p. 68. 15 SPAEMANN, Robert. Personas. Acerca entre “Algo” e “Alguien”. Trad. José Luis del Barco. Pamplona, Eunsa, 2000, p.89. 16 AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vols. I, V e VIII. São Paulo, Loyola, 2005, II-II, q. 1 a 3. 17 AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vols. I, V e VIII. São Paulo, Loyola, 2005, II-II, q. 2 a 2. 18 AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vols. I, V e VIII. São Paulo, Loyola, 2005, II-II, q. 6 a 1. 19 BARZOTTO, Luiz Fernando. Pessoa e Reconhecimento – Uma Análise Estrutural da Dignidade da Pessoa Humana. In: FILHO, Agassiz Almeida & MELGARÉ, Plínio. (orgs.). Dignidade da Pessoa Humana Fundamentos e Critérios Interpretativos. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, p.64. 20 AQUINO, Tomás de. Suma teológica. Vols. I, V e VIII. São Paulo, Loyola, 2005, II-II, q. 4 a 3.

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Ao citar São João Damasceno, São Tómas de Aquino, define a fé como um consentimento sem discussão. Nesta toada insistir em argumentar é vincular a fé aos contextos racionais ligados a evidencia. Se o pressuposto da fé exclui a razão, esta não pode ser vinculada ao ato do que acredita. São Tómas de Aquino restaurou o sentido de pessoa como relação à substancialidade da relação in divinis ele afirmava que diferente do indivíduo, que por si só é indistinto, a pessoa, numa natureza qualquer, significa o que é distinto nessa natureza, assim como na natureza humana significa a carne, os ossos e a alma, que são princípios que individualizam o homem. 21 Pode se afirmar que “o valor fundamentar da dignidade humana assumiu particular relevo no pensamento tomista22.” Na fase mais intensa da era medieval houve absorção do público pelo privado, impulsionado pela primazia da propriedade territorial sobre outros institutos econômico-político-jurídico. Nesta época, os senhores feudais, imbuídos do direito de propriedade, que lhes viabilizava o exercício do poder político e prestígio social, atuavam e exerciam notória função pública no tocante aos habitantes de seus feudos, estabeleciam regras de cumprimento obrigatório, fixavam e arrecadavam tributos, julgavam os servos, cabendo-lhes a execução das decisões23. Deve ser ressaltada, a importância do pensamento medieval, como instrumento de construção da individualização do homem, por ter lançado “as sementes de um conceito moderno de pessoa humana baseado na dignidade e na valorização do indivíduo como pessoa”24. Porém, vê-se que, esta influência não foi suficiente para sozinha fixar a individualização da subjetividade do homem. No século XIV ao XVI, com o movimento renascentista, se experimentou a convivência de se afirmar a independência da pessoa a intangibilidade dos direitos humanos, o que se deu de forma mais intensa, com o humanismo no século XVI25. Sendo influente a contribuição do humanista Pico della Mirandola, que influenciado pelo pensamento Tomista, garantiu que a personalidade humana se caracterizava por constituir um valor próprio, inato expresso na sua ideia de dignidade do homem, que teve origem como valor natural, inalienável e incondicionável, como núcleo da personalidade26. 21 HOGEMANN, Edna Raquel R. S. Danos Morais e Direitos de Personalidade uma Questão de Dignidade. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Direito Público e Evolução Social. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.80. 22 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 4. ed. rev. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p.45. 23 NETO, Eugênio Facchini. Reflexões histórico-evolutivas sobre a constitucionalização do direito privado, p. 16. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p.16. 24 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.35. 25 TOBEÑAS, José Castan. Los Derechos de la Personalidad, Madri: Réus. 1952, p.11. 26 SARLET, op. cit., p.45.

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Após longo e denso processo histórico, foi com o humanismo no período renascentista que emergiram os chamados direitos subjetivos, dando origem à formulação do direito geral de personalidade. Essas novas ideias “conduziram os juristas da época à formulação do direito geral de personalidade, como um ius in se ipsum”. 27 Neste contexto ocorreu também, a emergência dos direitos subjetivos, entendidos como estruturas da vontade humana ou a ela atreladas em face do direito objetivo.28 Os contributos do Renascimento e do Humanismo, constituíram marcos importantes para a formação de um direito geral de personalidade, que não mais deixariam de estar presente na reflexão jurídica da tutela da personalidade humana.29 Com o ius in se ipsum, desde que ressalvados os interditos expressos em lei, como o suicídio, automutilação e sujeição voluntária a tortura, o homem passou a ter direito de fazer de si o que melhor lhe conviesse.30, denotando a disponibilidade relativa dos direitos sobre a própria pessoa, devido à existência de restrições, que viabilizavam a proteção ao homem e a sua dignidade. Desta feita, através da Escola do Direito Natural, consubstanciou-se, que os direitos da personalidade nascidos com o homem, umbilicalmente atrelados à pessoa, anteriores ao reconhecimento do Estado, foram fomentados, densificados. Nesse sentido, a doutrina do Direito Natural desenvolveu a importante vertente fundada na concepção da tutela dos direitos individuais e a noção de dignidade da pessoa humana.31 A compreensão da dignidade da pessoa humana, assim como a concepção do direito natural em si, foi fruto de um processo de racionalização e laicização, sendo preservada a noção basal da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade.32 No século XVIII John Locke, apesar de reconhecer os direitos naturais e inalienáveis do homem foi além, pugnou pela sua oponibilidade frente aos detentores do poder, em face do contrato social; identificando o direito de resistência dentre os direitos naturais do indivíduo, lançando as bases do pensamento individualista e do jusnaturalismo iluminista do século XVIII, culminando com o constitucionalismo e com o reconhecimento de direitos às pessoas, limitativos do poder estatal33.

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27 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.38. 28 CANTALI, Fernanda Borghetti. Direitos da Personalidade Disponibilidade relativa, autonomia privada e dignidade humana. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.34. 29 CAPELO DE SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 61-62. 30 CAPELO DE SOUZA, Rabindranath Valentino Aleixo. O direito geral de personalidade. Coimbra: Coimbra, 1995, p. 124. 31 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.39. 32 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988, p. 32 e A eficácia dos direitos fundamentais, p.45. 33 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p.46-47.

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Para tanto, o pensamento contratualista de Looke explicitou que a relação autoridade-liberdade se funda na autovinculação dos governados34. Na seara do reconhecimento dos direitos individuais e de desenvolvimento do conceito da dignidade da pessoa humana, Immanuel Kant colaborou para a edificação de uma premissa da dignidade intrínseca, inata a toda e qualquer pessoa35. Para Kant a dignidade tem como fundamento a autonomia ética do homem, fundada na liberdade de que dispõe para escolher conforme a razão e de agir nos moldes de seu entendimento e opção. Desta feita, a dignidade é um atributo do homem, como sujeito de autonomia prática, não podendo ser encurtada a criação constitucional, já que precedente a qualquer sistema normativo. A dignidade existe a priori, anterior a qualquer experiência especulativa.36 A vontade é concebida como a faculdade de se determinar a si mesmo e a atuar em consonância com a representação de certas leis. Aquilo que serve à vontade de princípio objetivo da sua autodeterminação é o fim, e este é dado pela razão, tem que ser igualmente válido para todos os seres racionais.37 Admitindo que exista alguma coisa cuja existência em si possua um valor absoluto e que, como fim em si mesmo, possa ser a estrutura de leis determinadas, nessa coisa e só nela é que estará à base de um possível imperativo categórico, quer dizer de uma lei prática. O conceito de dignidade da pessoa humana foi abordado por Kant em sua filosofia, o que se depreende da análise de sua obra, especialmente por trechos como o presente: “ O homem, e, duma maneira geral, todo ser racional, existe com um fim em si mesmo, não só como meio para o uso arbitrário desta ou daquela vontade. Pelo contrário em todas as suas ações, tanto nas que se dirigem a ele mesmo como nas que se dirigem a outros seres racionais, ele tem sempre de ter considerado simultaneamente com o fim.” 38

Embora o filósofo prussiano tenha se dedicado a perquirir sobre a celeuma de uma ação moral, este ao perceber que a racionalidade era a diferença nodal do homem para os outros seres, concluiu que em virtude da razão, o ser humano deveria ser considerado em fim em si mesmo. Assim, o homem não poderia servir como meio à consecução de algum objetivo, já que dotado de dignidade39. Kant contribuiu para a construção de um conceito de dignidade intrínseca, conatural a qualquer pessoa humana. 34 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, p.46-47. 35 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p.67. 36 SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In: Dimensões da Dignidade: ensaios da Filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 20. 37 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p.67. 38 KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução de Paulo Quintela. Lisboa: Edições 70, 2007. p.67-68. 39 MORAES, Maria Celina Bodin; INGO Wolfgang (org.). Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Privado . 2 ed. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.115.

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A individualização do homem e a dignidade da pessoa humana

A teoria dos direitos inatos se transformou em doutrina de matriz político-revolucionária fornecendo as bases para a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, pela Assembleia Constituinte francesa de 1979, que instituiu o Estado liberal com base no individualismo e consagrou a existência dos direitos naturais, inspirando a revolução francesa e contribuindo para a conformação do constitucionalismo moderno e do Estado de Direito40. A partir de então, os direitos naturais inatos, foram incorporados como direitos fundamentais individuais, em diversas Constituições41. A noção de pessoa concebida como sujeito de direitos e obrigações, cunhada pela modernidade caracteriza um sujeito universal, por englobar nesta categoria todas as pessoas. Igualmente em paralelo, a concepção que avigora predize um sujeito individual, titular de direitos e da capacidade de exercê-los42. O sujeito de direito se diz pessoa. Nesse sentido, o sujeito de direito é aquele que é empossado de poder jurídico, que se acha em posição de poder fazer valer a norma, invocando a realização a próprio favor43. Da análise constata-se que, pessoa e sujeito de direitos constituem a mesma coisa, sendo certo que a noção de personalidade está umbilicalmente ligada à de pessoa, por exteriorizar a habilidade genética, reconhecida atualmente aos seres humanos, para adquirir a titularidade de direitos e assumir obrigações. Assim capacidade de direito é aptidão oriunda da personalidade para contrair direitos e obrigações na vida civil44.

Conclusão É inegável a contribuição do pensamento medieval, no que concerne ao moroso processo de individualização do homem. Foi através de longo iter percorrido no curso da história, com as especificidades inerentes a cada período, que se pode começar a perceber o homem, como um ser individualmente considerado. Assim, a Dignidade da Pessoa Humana encontrou o cenário que precisava para ir se estabelecendo, se revelando ao longo dos séculos, como um instituto de nodal importância também no mundo hodierno, mormente na sociedade ocidental.

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40 CANTALI, op cit., p.36. 41 TOBEÑAS, José Castan. Los Derechos de la Personalidad, Madri: Réus. 1952, p.11-12. 42 SZANIAWSKI, Elimar. Direitos da personalidade e sua tutela. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p.135. 43 FERRARA, Francesco. Tratatto di Diritto Civile Italiano. v. I. Roma: Athenaeum. 1921. 44 HOGEMANN, Edna Raquel R. S. Danos Morais e Direitos de Personalidade uma Questão de Dignidade. In: KLEVENHUSEN, Renata Braga (coord.). Direito Público e Evolução Social. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008, p.82.

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Juizado Especial Cível e Democracia Participativa. A importância da participação de uma Instituição de Ensino Jurídico como instrumento de acesso à justiça Sonia Regina Vieira Fernandes1 Resumo O ponto nodal deste artigo repousa em três principais premissas: demonstrar que os Juizados Especiais Cíveis Estaduais em parceria com as instituições de ensino jurídico poderão cumprir seu papel fundamental e efetivar os princípios que os norteiam. A segunda premissa repousa na crença que a participação dos estudantes de Direito na administração da Justiça constitua um elemento valioso para a formação de profissionais mais humanos, dotados de senso crítico e comprometidos com a realização de uma ordem jurídica mais justa e compatível com o ideal de uma sociedade democrática e inclusiva. A terceira premissa é que a participação da sociedade num Estado Democrático é fundamental para o desenvolvimento da democracia, evolução social e fim de suas desigualdades. Palavras-chave: Democracia Participativa; Juizados Especiais. Abstract The aim of this work is based on three premises. The first is to demonstrate that Special State Law Courts in association with Law Schools will fulfill their fundamental purpose and put into practice their principles. The second is that law student participation in this process of a participative justice constitutes a valuable aid to make these professionals more humane, with an acute critical sense and compromised with an ideal of justice and a democratic and an inclusive society. The third is the participation of people in a democratic State that is fundamental for the development of democracy, social evolution and the end of inequalities. Not only the democracy stated in 1988 Brazilian Constitution but other ways of democracy such as a simple information and a decision, revindication, participative administration, public discussion of social problems in the neighborhood, at work, in state org anizations, at school, at Universities and at all social groups. Keywords: Participative Democracy, Special State Law Courts 1 Advogada e Professora de Direito Constitucional. Mestre em Direito

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Introdução Este artigo é resultado dos estudos que desenvolvemos no Curso de Mestrado em Direito, vinculados à linha de pesquisa que investiga o acesso à Justiça e a efetividade do processo. Para desenvolver esse tema, partimos das seguintes premissas: a) A participação da sociedade nas ações do Estado em um Estado Democrático constitui pressuposto fundamental para o desenvolvimento social? b) Os Juizados Especiais Cíveis, em parceria com as instituições de ensino jurídico poderão cumprir seu papel efetivando os princípios que os norteiam? c) A participação dos estudantes de Direito na administração da justiça constitui um elemento valioso para a sua formação profissional e humana, tornando-os seres mais críticos e comprometidos com a realização de uma ordem jurídica mais justa e compatível com o ideal de uma sociedade democrática e inclusiva? d) Resolvemos abordar o tema, à luz dos princípios da Lei nº 9.099/952 e do parágrafo único do artigo 1º da Constituição Federal brasileira3, com a parceria das instituições de ensino jurídico, por entendermos que, em nosso país, muito deve ser feito para o efetivo desenvolvimento do Estado Democrático. Acreditamos que a participação da sociedade (organizações sociais, associações, instituições de ensino e similares) nas ações do Poder Público, em todos os âmbitos da federação constitui uma das formas de nos desvencilharmos do elitismo que caracteriza historicamente o modelo de sociedade brasileira. O que demonstraremos neste trabalho são os instrumentos de participação democrática, onde grupos sociais, em particular uma instituição de ensino jurídico, participem da administração da justiça, auxiliando na efetividade da prestação jurisdicional dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais, onde seus alunos estagiários e professores orientadores exercem funções de orientação e informação jurídicas aos cidadãos, suprindo as carências de serventuários desses Juizados e ao mesmo tempo usufruindo da convivência social, praticando a teoria ensinada em sala de aula, numa parceria e inter-relação entre Universidade e Poder Judiciário. Ada Pellegrini Grinover4, afirma que a Democracia Participativa se desdobra em dois momentos principais: o primeiro consistente na intervenção na hora da decisão; o segundo, atinente ao controle sobre o exercício do poder, manifestando-

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2 BRASIL. Lei Ordinária nº 9.099 de 26 de setembro de 1995. Dispõe sobre os Juizados Especiais Cíveis e Criminais. Disponível em site via internet: www.planalto.gov.br. Acesso em agosto de 2002. 3 BRASIL. Constituição Federal de 1988. São Paulo: Editora Saraiva, 2002. 4 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas Tendências ao Direito Processual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1990, p. 222.

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se numa imensa variedade de formas, desde a simples informação e tomada de consciência, passando pela reivindicação, as consultas, a cogestão, a realização dos serviços, até chegar à intervenção nas decisões e ao controle, como a caracterizar graus mais ou menos intensos de participação. Refletindo sobre o exposto, lembramos que grande parte dos conflitos com que se depara a sociedade reclama uma estruturação do Poder Judiciário, de maneira que se torne capaz de corresponder, em quantidade e qualidade, às exigências e expectativas sociais e individuais. É voz corrente que, na atualidade, vários fatores obstruem a plena realização da justiça; como exemplo, podemos destacar, entre outros: o custo do processo, o tempo de espera prolongado para a satisfação da prestação jurisdicional, a excessiva formalidade, a carência de pessoal administrativo e de magistrados, a par da falta de conhecimento dos direitos, pelos cidadãos. Reformulações foram realizadas no que tange ao acesso à justiça, e uma das mais importantes nos últimos tempos foi a Lei nº 9.099/95, que instituiu os Juizados Especiais Cíveis e Criminais, cujos princípios preconizam a ampliação do acesso à justiça, propiciando a solução dos conflitos com celeridade e informalidade. Assim sendo, e considerando: Que a democracia brasileira constitui forma de governo onde o Poder emana do povo que o exerce diretamente ou indiretamente; Que o Estado brasileiro para se intitular verdadeiramente democrático é necessário um comprometimento político dos representantes com a vontade da sociedade e que esta exerça uma participação direta mais concreta nas ações públicas, consequentemente efetivando o parágrafo único do art. 1º da sua Constituição; Que o Poder Judiciário precisa estruturar-se adequadamente para realizar a prestação jurisdicional nos Juizados Especiais e em qualquer outro órgão sob a sua responsabilidade e competência constitucional; Que as instituições de ensino jurídico podem, em parceria com os Juizados Especiais, através dos seus alunos e professores prestarem auxílio e suprirem, parcialmente suas dificuldades estruturais e humanas, exercendo a Democracia Participativa de informação, orientação5 e assistência judiciária às partes nesses Juizados.

E, finalmente, considerando que o enfoque do acesso à justiça pretende levar em conta os fatores e barreiras que impedem a sua efetivação. Buscaremos demonstrar a Democracia Participativa se concretizando nos Juizados Especiais Cíveis do Estado Rio de Janeiro, através da participação de instituição de ensino jurídico, no auxílio da efetividade dos princípios que norteiam esses Juizados. A Universidade, e em particular os cursos de Direito, possuem um papel institucional que deve criar condições para o nascimento, o fomento, o desenvolvimento de experiências, progresso intelectual, construção de projetos, valorização da cidadania, participação democrática, dentre outros. 5 PASSOS, J. J. Calmon de Passos. Processo de Democracia. São Paulo: RT, 1988, p. 133.

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Para Justificar nossas premissas partimos da constatação que o acúmulo de processos que abarrotam o Judiciário, com sua estrutura administrativa carente de recursos materiais e humanos, as dificuldades de acesso à Justiça das pessoas economicamente desfavorecidas, a desinformação dos seus direitos e a formalidade excessiva do Estado na solução dos conflitos, nos fazem pensar em mecanismos de mudanças capazes de alterar essa realidade. Além dos Juizados Especiais, o ensino jurídico alcançará enormes benefícios com a parceria demonstrada, pois a Universidade possui importante papel a desempenhar, não somente na produção de saberes, mas, sobretudo na possibilidade que tem de mediante um corpo discente interessado, engajado e bem articulado, prestar serviços jurídicos à comunidade, facultando à população com ganhos salariais restritos, o acesso à cidadania. Com a integração do corpo discente à comunidade, diminuem-se as diferenças sociais e contribui-se para a efetiva solução de necessidade da população carente, proporcionado uma experiência integrativa de teoria e prática. Desenvolvemos os seguintes tópicos através de pesquisa: primeiro, sobre a Democracia Participativa, buscando em renomados autores a fundamentação teórica necessária para a compreensão do tema, apresentando o desenvolvimento histórico do Estado Constitucional desde as revoluções do século XVIII até os nossos dias; segundo, sobre o papel do Poder Judiciário no Estado Democrático, demonstrando que o Poder Judiciário é um dos pilares que esteia o Estado Democrático; terceiro, sobre o acesso à Justiça nos Juizados Especiais, onde afirmamos a importância de um acesso rápido, eficaz e efetivo para garantir os principais direitos do cidadão disciplinados na Constituição brasileira; quarto, sobre as dificuldades enfrentadas pelos Juizados Especiais Cíveis Estaduais e a participação das instituições de ensino como alternativa para efetivação dos princípios que norteiam esses Juizados.

Democracia Participativa

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O estudo da Democracia Participativa reforçará a importância da participação social em suas várias formas, para o desenvolvimento do Estado e fim de suas desigualdades. Enfrentamos neste início de século, vários desafios. Desafios que podemos considerar a nível global, pois os problemas ameaçam a estabilidade do planeta. Situações como a do meio ambiente, desigualdades sociais, modelos de economia, desemprego, expansão do modelo neoliberal que promovem uma acumulação cada vez maior de capital nas mãos de poucos, criminalidade, desestruturação dos órgãos estatais por carência de recursos ou falta de vontade política, corrupção etc, nos fazem pensar num modelo novo de Estado, onde a sociedade se envolva mais ativamente nas ações que são consideradas privativas do Estado, a fim de que sejam implementados dos direitos sociais, como a saúde, educação, acesso à Justiça, trabalho e outros. Para que entendamos parte da problemática social que o Brasil enfrenta nos dias de hoje, é necessário voltarmos um pouco no tempo fazendo uma breve

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trajetória do processo evolutivo do Estado Constitucional, principalmente no intervalo de tempo entre o surgimento do Estado Liberal até os nossos dias. A ideia moderna de um Estado Democrático tem suas raízes no século XVIII, implicando a afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana (liberdade, igualdade), bem como a exigência de organização e funcionamento do Estado tendo em vista a proteção daqueles valores. O Estado Liberal, primeiro tipo de Estado Constitucional, nasceu com as revoluções do século XVIII, em especial a Revolução Francesa, objetivando a preservação das liberdades humanas, tendo em vista a rigidez formal na Europa. Podemos citar também a Revolução Norte-Americana de 1776 e a Revolução Francesa de 1789, onde são reafirmados os Direitos Fundamentais pela Declaração de Independência dos Estados Unidos e pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão em 1789. Assim essa primeira fase caracterizou-se pela vitória da proposta econômica liberal, aparecendo teoricamente os direitos individuais como grupo de direitos que se fundamentou na propriedade privada, principalmente na propriedade privada dos meios de produção. O alicerce teórico da liberdade foi a propriedade, e os cidadãos foram aqueles que participaram da ordem econômica de forma produtiva. Os direitos políticos em sentido restrito, entendidos como direitos de participar no poder do Estado votando e sendo votado, foram apenas dos proprietários que tinham acima de renda anual, muitas vezes constitucionalmente prevista 6. Numa segunda fase (Século XIX) ocorre uma evolução do conceito de cidadania, resgatando-se a ideia da igualdade jurídica, defendida, mas não efetivada na primeira fase, e não mais da propriedade privada, como o alicerce dos direitos fundamentais. Fruto de lutas sociais e parlamentares, que terão em cada país pesos diferentes, conquista-se o direito ao voto secreto, periódico e universal. Desaparece assim a diferenciação em razão do poder econômico para se ter acesso ao voto, permanecendo, entretanto, em vários países, a diferenciação em razão do sexo, que desaparecerá em alguns casos apenas no século XX, e outras limitações permanecerão, como as que ainda hoje existem, como a idade e escolaridade por razões claras. Podemos reconhecer a terceira fase do Estado Constitucional (final do século IX e início do século XX), como um período de transição entre o Estado Liberal e o Estado Social que nasceria com a primeira guerra mundial. Em 1917, no México, o mundo assiste a primeira Constituição Social, que mantendo o núcleo liberal de direitos individuais e políticos, amplia o catálogo de direitos fundamentais acrescentando outros grupos de direitos: os direitos sociais relativos ao trabalho, saúde, educação, previdência e os direitos econômicos que marcam a postura intervencionista do Estado que passa a regular a economia e em alguns casos a exercer atividades econômicas. Embora cronologicamente a Constituição Mexicana tenha sido a primeira, a Constituição matriz do constitucionalismo social será a Weimar na Alemanha em 1919. 6 MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O Desenvolvimento dos Direitos Humanos e o Direito ao Desenvolvimento enquanto Direitos Humanos. Disponível em site via internet: www. cadireito.com.br/art13.htm. Acesso em agosto de 2002.

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Após a segunda guerra, vislumbramos uma quarta fase evolutiva do Estado Constitucional, interrompida bruscamente com os anos violentos do fascismo e do nazismo, retornando com mais força, onde os Estados da Europa Ocidental experimentam a implementação eficaz do Estado de bem estar social, o que, embora os Estados de economia periférica tenham adotado constituições sociais, não ocorre de maneira completa na América Latina, Ásia e África.7 A fase democrática do Estado Social nasce com a implementação efetiva dos direitos sociais e econômicos em boa parte da Europa Ocidental. Vivemos, hoje, uma fase do Estado Constitucional onde, principalmente no mundo Ocidental predomina a democracia como forma de governo, sendonos garantidos nos textos constitucionais um rol de direitos individuais e sociais. Precisamos ocupar o nosso verdadeiro lugar como cidadãos na sociedade porque enfrentamos, neste início de século, vários desafios para a humanidade. Desafios que podemos considerar a nível global, pois os problemas ameaçam a estabilidade do planeta. Quando vivemos num Estado democrático é necessária a participação direta da sociedade, através de todos os seus segmentos, na atuação dos órgãos públicos, para que a democracia e a soberania popular se efetivem.

O papel do Poder Judiciário no Estado democrático O Poder Judiciário tem como função compor conflitos de interesses em cada caso concreto. Isso é o que se chama função jurisdicional ou simplesmente jurisdição, que se realiza por meio de um processo judicial. Os órgãos do Poder Judiciário são um dos pilares que esteiam o Estado democrático exercendo, em todas as modernas democracias, uma atuação cada vez mais incisiva em prol do respeito aos direitos fundamentais dos cidadãos, quer individual, coletiva ou conjuntamente considerados. Ada Pellegrini Grinover8 reconhece o grave descompasso entre a doutrina e a legislação, de um lado, e a prática judiciária, do outro, quando acusa: Ao extraordinário progresso científico da disciplina não correspondeu o aperfeiçoamento do aparelho judiciário e da administração da Justiça. A sobrecarga dos tribunais, a morosidade dos processos, seu custo, a burocratização da Justiça, certa complicação procedimental; a falta de informação e de orientação para os detentores dos interesses em conflito; as deficiências do patrocínio gratuito, tudo leva à insuperável obstrução das vias de acesso à Justiça, a ao distanciamento cada vez maior entre o Judiciário e seus usuários.

É voz corrente que, na atualidade, vários fatores obstruem a plena realização da justiça; como exemplo, podemos destacar, entre outros: o custo do processo,

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7 MAGALHÃES, José Luiz Quadros. O Desenvolvimento dos Direitos Humanos e o Direito ao Desenvolvimento enquanto Direitos Humanos. Ibid. 8 GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas Tendências do Direito Processual. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1990, p. 177.

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o tempo de espera prolongado para a satisfação da prestação jurisdicional, a excessiva formalidade, a carência de pessoal administrativo e de magistrados, a par da falta de conhecimento dos direitos, pelos cidadãos. Várias experiências foram levadas a cabo em todo o mundo para superar as dificuldades do Poder Judiciário e uma delas foi a criação dos Juizados Especiais Cíveis Estaduais implantado no Brasil através da Lei nº 9.099 em 26 de setembro de 1995, em substituição à Lei de Pequenas Causas, provocada por uma obrigatoriedade do artigo 98, inciso I da Constituição Federal, como uma pretensão de solução inovadora e eficaz para o problema do acesso dos cidadãos à Justiça.

Acesso à justiça nos Juizados Especiais Cíveis O acesso à Justiça é um dos principais direitos do homem a ser efetivamente assegurado, pois é pelo seu exercício que serão reconhecidos os demais. A Constituição brasileira de 1988, em seu artigo 5º, XXXV assegura o acesso à Justiça aos cidadãos brasileiros quando determina: “XXXV – a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito.” A garantia do acesso à Justiça assume papel relevante na discussão pelos Direitos do Homem, tendo adquirido, por isso, status de direito fundamental, e, portanto, sendo de responsabilidade do Estado sua efetivação. Segundo Humberto Dalla Bernardina de Pinho9, se o direito é necessário para regulamentar a vida em sociedade e se é certo que essa sociedade está em permanente evolução, a ciência jurídica encontra-se, inexoravelmente, no seguinte dilema: ou acompanha a evolução, fornecendo as soluções adequadas e necessárias a se manter a ordem no Estado Democrático de Direito, evitando de um lado o autoritarismo e de outro a anarquia, ou torna-se obsoleta e desprovida de qualquer serventia, o que acarretará sua mais perfeita falta de efetividade. Mauro Cappelletti10 leciona que o movimento por acesso à justiça tem representado, nos últimos decênios, uma importante, talvez a mais importante expressão de uma radical transformação do pensamento jurídico e das reformas normativas e institucionais em um número crescente de países. Como movimento de pensamento, o acesso à justiça expressou uma potente reação contra uma impostação dogmático-formalística que pretendia identificar o fenômeno jurídico exclusivamente no complexo da norma, essencialmente de derivação estatal, de um determinado país. O autor acima mencionado identificou alguns obstáculos ao acesso à Justiça que devem ser atacados: a) custas judiciais: a solução dos litígios nos tribunais, na maior parte das sociedades modernas, é muito dispendiosa; b) o tempo: em muitos países, as partes que buscam uma solução judicial precisam esperar dois 9 PINHO, Humberto Dalla Bernardina. A Natureza Jurídica do Direito Individual Homogêneo e sua Tutela pelo Ministério Público como forma de Acesso à Justiça. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2002, p. 190. 10 CAPPELLETTI, Mauro. O Acesso à Justiça e a Função do Jurista em nossa época. Revista de Processo, vol 61, Jan/Mar 1991, p. 145.

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ou três, ou mais anos, por uma decisão exequível nos tribunais; c) possibilidades das partes: pessoas que possuam recursos financeiros consideráveis, capacidade jurídica (educação e status social) têm vantagens ao propor ou defender uma demanda; d) problemas especiais dos interesses difusos: a proteção privada de interesses difusos exige ação de grupo, porque o prêmio para qualquer indivíduo buscar essa correção é pequeno demais para induzi-lo a tentar uma ação; e) as barreiras ao acesso: os obstáculos criados pelos sistemas jurídicos são mais pronunciados para as pequenas causas e para os autores individuais, especialmente os pobres. No Brasil, a Lei 9.099/95 tem sido um fator determinante de concretização e facilidade ao acesso à Justiça, pois permite um processo informal e rápido, onde se verifica um nítido ponto de equilíbrio entre as necessidades dos jurisdicionados e a observância da lei. Os princípios norteadores dos Juizados Especiais alcançam primazia vital para a efetivação da Justiça rápida e eficiente e são explicitados no artigo 2º da Lei nº 9.099/95: “ O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, da simplicidade, informalidade, economia processual e celeridade, buscando, sempre que possível, a conciliação ou a transação.” Os Juizados foram criados com o espírito voltado à facilitação e ampliação do acesso à Justiça, objetivando a efetividade do processo, através da rapidez de seus atos processuais. O princípio da oralidade, dizia Chiovenda11, adotado pela necessidade de exprimir por uma fórmula simples e representativa um conjunto de ideias e de caracteres, pode gerar equívocos, se não se analisarem os princípios distintos, conquanto intimamente associados entre si, que se encerram nessa fórmula e imprimem ao processo oral seu aspecto particular. No processo dos Juizados Especiais, a oralidade, além de ser um princípio cardeal do sistema, se caracteriza também como um critério, pois o processo pode ser instaurado com a apresentação do pedido oral à Secretaria do Juizado (art. 14), e a defesa pode ser feita também pela forma oral (art. 30); como acontece na Justiça Trabalhista. .................................................................................... A influência do princípio da oralidade sobre o processo dos juizados especiais é que dá ao procedimento a característica de sumaríssimo, como se verá oportunamente.12

O princípio da simplicidade, como o próprio nome já induz, faz-nos vislumbrar a supressão de procedimentos complexos que só fazem procrastinar os atos processuais, refletindo, nas decisões, que também passam a ser menos rebuscadas e mais objetivas, também espelhando a maior simplicidade dos fatos e da própria primazia da realidade em detrimento de complicações burocráticas e

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11 CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil. Campinas S/P: Editora e Distribuidora Bookseller, 1998, p. 50. 12 ALVIM, J. E. Carreira. Ibid., p. 14.

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documentais, que apenas procrastinam a prestação da tutela jurisdicional, sempre prejudicando os interesses da parte hipossuficiente da lide. Na verdade, pode-se afirmar que existe uma constante busca da solução do conflito utilizando-se, inclusive, a conciliação e a transação, elementos de forma simplificada e que têm por escopo cessar a divergência e que, homologadas, extinguem o processo. O princípio da informalidade visa registrar e marcar, no processo, apenas o essencial, evitando excessos que, de um modo geral, poluem os autos com documentos e papéis inúteis ou de pouca utilidade para o seu bom andamento. Aspectos como a dispensa do relatório na sentença, conciliação, procedimentos cartoriais mais simples e a localização dos Juizados em bairros, são fatores ilustrativos do princípio da informalidade. O princípio da economia processual tem por escopo produzir o máximo de resultados com o mínimo de esforço ou de atividades processuais, aproveitandose os atos processuais praticados, além de visar uma redução nos custos, sempre com o objetivo primordial de fazer uma justiça eficaz sem que carregue pesados ônus que só obstaculizam o acesso ao Judiciário. Finalmente, temos o princípio da celeridade que, se não o mais importante, certamente o mais valorizado no que concerne ao objetivo precípuo, isto é, a justiça eficaz e rápida. Prevê uma justiça veloz que, em tese, não deveria ser fruto da exclusividade dos Juizados Especiais, já que a justiça processual civil já previa o rito sumaríssimo para determinadas ações. O princípio da celeridade significa que o processo deve ser rápido, e terminar no menor tempo possível, por envolver demandas economicamente simples e de nenhuma complexidade jurídica, a fim de permitir ao autor a satisfação quase imediata do seu direito. Os hipossuficientes não podem aguardar uma solução demorada, pois quase sempre lutam em juízo pelo essencial para a manutenção a sua sobrevivência. É preciso ajustar o processo à realização de toda a sua missão, para que ele não seja fonte perene de decepções e de desgastes da legitimidade do sistema judiciário. Cândido Rangel Dinamarco13 indica quatro aspectos fundamentais de interesse do processo que são relevantes para a consecução dos seus objetivos: a admissão em juízo, o modo de ser do processo, a justiça das decisões e a sua efetividade. O mesmo autor afirma que as reflexões que se façam sobre os aspectos ou sobre quaisquer outros, em possíveis outras classificações dos pontos vitais, hão de apoiar-se na consciência de que algumas vezes a técnica processual se defronta com exigências antagônicas que precisa conciliar, o que se dá de modo especial no que toca ao modo de ser do processo no desenrolar dos atos que o compõem e na disciplina de sua admissibilidade: a busca da efetividade de algum dos escopos importa às vezes em transigências no tocante à de outro, sem que com isso se renuncie por inteiro à efetividade do processo nesse campo. Dessa forma, incumbe ao sistema jurídico atender, de forma mais completa e eficiente ao pedido daquele que exercer o seu direito à jurisdição 13 Ibid., (2000), p. 273.

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ou a mais ampla defesa. Para isso, é necessário que o processo disponha de mecanismos aptos a realizar a devida prestação jurisdicional, qual seja, de assegurar ao jurisdicionado seu direito real efetivo e ao menor tampo possível, entendendo-se este possível dentro de um lapso de tempo razoável.

As dificuldades enfrentadas pelos Juizados Especiais Cíveis estaduais e a participação das instituições de ensino jurídico Após alguns de funcionamento de Juizados Especiais Cíveis, com o perfil que lhes imprimiu a Lei nº 9.099/95, algumas observações críticas têm sido feitas a respeito do seu funcionamento, que poderão contribuir para o seu aperfeiçoamento. No começo, as dificuldades dos Juizados foram inúmeras: advogados incrédulos e temerosos, pois temiam a perda de clientela; qualidade técnica da jurisdição; ausência de defesa técnica das partes; carência de materiais físicos e humanos para a execução das suas tarefas; instalações inadequadas; faltam juízes, promotores e defensores; partes sem conhecimento dos seus direitos materiais, dentre outras. Kazuo Watanabe avalia que, com a aprovação da Lei 9.099/95, o que ocorreu, em muitos Estados, foi simplesmente a troca de nomes, passando a chamar de Juizados Especiais os que até então funcionavam com o nome de Juizados de Pequenas Causas, com o aproveitamento das mesmas infra-estruturas materiais e pessoais, sem qualquer estudo prévio para se saber da adequação, ou não, das infraestruturas existentes para atribuição de competência ampliada. Inclusive, em vários Estados, as infra-estruturas não estavam adequadas nem mesmo para a competência mais reduzida dos Juizados de Pequenas Causas. Pesquisas realizadas pelo Prof. Paulo Cezar Pinheiro Carneiro14, nos anos de 1994, 1997 e 1998, relevam que, no Rio de Janeiro, alguns Juizados apresentam instalações deficientes estruturalmente, com improvisações que resultam em certa desorganização dos serviços, que acabam determinando um funcionamento inadequado, especialmente no que concerne ao atendimento ao público e às audiências de conciliação. Entretanto, as universidades, principalmente os cursos de Direitos muito poderão contribuir para diminuir os problemas enfrentados pelos Juizados Especiais Cíveis. As Universidades sejam públicas ou privadas, devem promover todas as formas de conhecimento por meio do ensino/aprendizado e pesquisa na graduação e na Pós-graduação, objetivando formar profissionais competentes para atender à demanda do mercado de trabalho e formar pessoas capacitadas ao exercício da investigação e do magistério em todas as áreas do conhecimento, além de ser responsável em produzir um conhecimento interativo com os problemas sociais da realidade em que estão inseridas, buscando a melhoria da qualidade de vida.

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14 Ibid., p. 138.

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A Lei de Diretrizes e Bases da Educação e da Lei nº 8.906/9415 (Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil), vieram provocar uma reforma substancial do ensino jurídico. O Ministério da Educação fixou as diretrizes curriculares e o conteúdo mínimo dos cursos jurídicos implantando principalmente: o estágio de prática jurídica coordenado com o estágio profissional de advocacia, ampliação da carga horária do aluno, proporcionando conexão do ensino jurídico com as atividades de pesquisa e extensão, incentivo às áreas de especialização, monografia de final de curso, dentre outras. As atividades de prática jurídica poderão ser complementadas mediante convênios com os mais diversos órgãos públicos, sendo exercidas até nas dependências da própria instituição de ensino jurídico. Kazuo Watanabe nos leciona que a participação da comunidade na administração da justiça tem se traduzido na forma do recrutamento, pelos Juizados Especiais, de conciliadores. Nesse sentido, alguns Estados vêm buscando a colaboração das universidades, de seus professores e alunos, o que estimula a participação comunitária e gera proveitos em dupla direção. O Curso de Direito, através dos convênios firmados proporciona de forma efetiva o aprimoramento e a qualificação técnica do corpo discente através de casos reais e desempenha grande relevância social quando objetiva agilizar a prestação jurisdicional e a efetividade da distribuição de Justiça. A participação do curso de direito melhora o apoio e orientação aos cidadãos para a solução dos seus problemas, além da experiência de praticar a teoria que se aprende em sala de aula, dinamizando e otimizando o funcionamento dos Juizados e desenvolvendo o projeto social da Universidade, tendo a oportunidade de se envolverem e conhecerem os problemas sociais que os cercam.

Conclusão Observamos que os problemas que dificultam o acesso à Justiça, a prestação Jurisdicional e a efetivação dos princípios que norteiam os Juizados Especiais Cíveis pesquisados, têm como espelho os problemas que afetam todo Poder Judiciário e o Estado brasileiro, isto é, carências e deficiências estruturais, humanas e econômicas. Os alunos e advogados orientadores realizam um esforço extraordinário para executar suas tarefas. É evidente que o trabalho que vem sendo realizado pela Universidade Estácio de Sá nos Núcleos de primeiro atendimento dos Juizados Especiais Cíveis é de extrema relevância para a efetivação da prestação jurisdicional e reconhecido por todos os entrevistados. A assistência jurídica realizada pelos alunos estagiários e advogados concretizam, parcialmente, os princípios da celeridade, informalidade, oralidade, economia processual e simplicidade, pois o primeiro atendimento, 15 BRASIL. Lei Ordinária nº 8.906/94. Dispõe sobre o Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil. Disponível no site: www.planalto.gov.br.

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principalmente a triagem é realizada suprindo os procedimentos complexos que ocorrem na Justiça comum, procedendo-se a uma apresentação do pedido oral ao aluno estagiário e ao advogado orientador. Quando os alunos estagiários e advogados orientadores realizam a triagem nas pessoas que procuram os Juizados, colaboram para que não fique abarrotado de causas que não lhes são pertinentes. Finalmente chegamos a uma conclusão inevitável defendida por ilustres estudiosos do Direito: a participação da sociedade num Estado Democrático é fundamental para o desenvolvimento da democracia, evolução social e fim de suas desigualdades.

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Audiência de Custódia (Garantia) e o Sistema da Dupla Cautelaridade Como Direito Humano Fundamental Ruchester Marreiros Barbosa1 Resumo O objetivo deste trabalho é contextualizar a aplicação efetiva do art. 7, item 5, art. 8, item 1, e art. 25, todos do Pacto de San Jose da Costa Rica, com a dogmática e hermenêutica adequada das normas internacionais de proteção aos direitos humanos, inclusive quanto à sua vigência e eficácia no âmbito interno, em oposição crítica à forma superficial e pueril do modelo que se quer implementar no Brasil, que transforma referidas normas em mais um instrumento de criminalização ao revés de instrumento de transformação, e isto por meio de ato administrativo. Para tanto, realizamos a contextualização criminológica, política e sociológica destas normas de direito internacional, bem como um estudo de casos já julgados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Concluímos que o modelo proposto configura a audiência como um ato estritamente jurisdicional e não um direito subjetivo do imputado a uma audiência de garantia de restabelecimento de sua liberdade. Palavras-chave: Audiência de Custódia; Direitos Humanos Fundamentais; Pacto de San José da Costa Rica; Bloco de Convencionalidade; Autoridade com Funções Judiciais; Delegado de Polícia. Abstract The objective of this study is to contextualize the effective application of art. 7, item 5, art. 8, item 1, and art. 25, all of the Pact of San Jose, Costa Rica, with the dogmatic and proper hermeneutics of international norms protecting the human rights, including as to its validity and effectiveness internally, in critical opposition to superficially and puerile model that wants to implement in Brazil, which transforms these standards in another criminalization instrument upside down from 1 Delegado de Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, Doutorando em Direitos Humanos pela Universidad Nacional Lomas de Zamora, Argentina. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Professor de Processo Penal da EMERJ, Professor de Direito Penal e Processual Penal da graduação e Pós-graduação da UNESA/RJ, professor de Penal e Processo Penal da Pós-graduação da Universidade Cândido Mendes, professor conteundista do site www.atualidadesdodireito.com.br dos professores Luiz Flávio Gomes e Alice Bianchini. Professor concursado da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro. Autor de diversos artigos jurídicos e científicos. Membro Titular da Association Internationale de Droit Pénal, Membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, Membro da Law Enforcement  Law Enforcement Against Prohibition. Palestrante e Conferencista. email: [email protected]. Janeiro de 2015.

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a transformation tool , and this through an administrative act. Thus, we performed the criminological context , political and sociological these rules of international law as well as a case study already judged by the Inter-American Court of Human Rights . We conclude that the proposed model sets the audience as a strictly judicial act and not a subjective right of the accused to a restoration assurance hearing of his freedom. Keywords: Custody Hearing; Fundamental Human Rights; Pact of San José of the Costa Rica; Conventionality Block; Authority With Judicial Functions; Chief of Police.

Introdução O Brasil é o terceiro país no mundo em taxa de encarceramento, mas, da leitura mais detida da estatística, do perfil do preso e da natureza de sua prisão, não se trata de um lugar no pódio a se comemorar, mas sim a triste explicação em números de um Brasil com um sistema penal seletista, punitivista e autoritarista, que, expresso em números, totaliza 711.4631 pessoas presas, segundo dados divulgados neste ano de 2015 pelo Conselho Nacional de Justiça. A realidade demonstra que o Brasil tem prendido muito como consequência de uma política criminal seletiva de perspectiva interacionista2, tendo como cliente uma massa populacional pobre e, pior ainda, 41% deste número se refere a pessoas presas provisoriamente, ou seja, sem uma decisão penal condenatória transitada em julgado. Em alguns Estados esse número pode ser ainda pior, como no Estado da Bahia, onde entre os 13 mil detentos 64% são provisórios. São índices considerados altos pelos organismos internacionais de direitos humanos. Dentre os pontos importantes destacados por seus defensores, ressalta o de que a audiência representaria uma “forma eficiente de combater a superlotação carcerária”3 e evitar “disseminar a tortura”, como apregoa Maria Laura Canineu, Diretora da Human Rights Watch/Brasil4: “O risco de maus-tratos é frequentemente maior durante os primeiros momentos que seguem a detenção quando a polícia questiona o suspeito. Esse atraso torna os detentos mais vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus-tratos cometidos por policiais abusivos [sic]” (destaque nosso)

Com vista nestes dados, nosso parlamento apresentou o PLS 554/20115, que visa alterar o art.306, §1º do CPP conferindo-lhe a seguinte redação: “Art. 306. (...) § 1º No prazo máximo de vinte e quatro horas depois da prisão, o preso deverá ser conduzido à presença do juiz competente, ocasião em que deverá ser apresentado o auto de prisão em flagrante acompanhado de todas as oitivas colhidas e, caso o autuado não informe o nome de seu advogado, cópia integral para a Defensoria Pública.” (grifos nossos)

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Segundo a exposição de motivos do projeto de lei, o Brasil viola sistematicamente o art. 7.5 do Pacto de San Jose da Costa Rica, ratificado pelo

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Decreto nº 678 de 6 de novembro de 1992. O projeto de lei inspirou os Tribunais do Maranhão e de São Paulo a editarem atos administrativos normativos com o intuito de regulamentarem a audiência de custódia, respectivamente pelo Provimento 14/2014 de 24 de outubro de 2014 e o Provimento Conjunto 03/2015 de 22 de janeiro de 2015. E esta audiência de custódia será mesmo uma “forma eficiente de combater a superlotação carcerária”? Impactará o sistema carcerário, diminuindo o número de presos provisórios?

Fonte e vigência da norma Não obstante, os atos administrativos supramencionados atribuíram eficácia a um projeto de lei. É salutar destacar que a Convenção Americana de Direitos Humanos, apelidada de Pacto de San Jose da Costa Rica, é uma norma de status constitucional no escólio da esmagadora maioria e mais balizada doutrina. Mas, apesar disso, a jurisprudência do STF6, contrariando diversos países, definiu que a mesma possui status de norma supralegal, vencida por 5x4 a tese do Min.Celso de Mello, de o Pacto se tratar de uma garantia de status constitucional. De qualquer maneira, em quaisquer das teses, o tratado possui eficácia plena e imediata7, por se tratar de um direito e uma garantia humana fundamental, e invalida qualquer norma jurídica em sentido contrário, em virtude do que a doutrina denomina de controle de Convencionalidade das leis.8 Adotar um ato administrativo, como marco teórico de regulação, para um instituto fundamentado em norma de direito internacional de direitos humanos, é considerar, na lição de Carlos Villán Durán9, que: “El derecho internacional de los derechos humanos es un sistema de principios y normas que rigen la cooperación internacional de los Estados y cuyo propósito es promover el respeto de los derechos humanos y las libertades fundamentales universalmente reconocidos, así como aclaran los mecanismos de garantía y protección de tales derechos” (grifos nossos).

A Epistemologia Político-Criminológica da Audiência (Judicial) de Custódia Por amor ao debate, lembremo-nos que a epistemologia é o estudo crítico das ciências, com o objetivo de determinar a sua origem lógica e o seu valor. É a teoria do conhecimento e da sua validade. E qual o argumento de saber que valida ou legitima a audiência de custódia regulamentada pelo provimento já citado, alusivo ao art. 7, item 5 da CADH? É bem previsível que o Tribunal de Justiça de São Paulo, como fundador da pedra filosofal10, tenha sido “seduzido pela simplicidade das fórmulas para duplicar o ouro (....)”, visando diminuir a patamares aceitáveis pela ONU do número de pessoas encarceradas, em especial, dos presos provisórios, haja vista

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que tal objetivo foi ratificado por todos os brilhantes expositores do Curso de Capacitação para Audiências de Custódia ministrado pela Escola Paulista da Magistratura, entre os dias 04/02/2015 a 12/02/2015, em que tivemos a oportunidade de participar como ouvinte (sem respostas às perguntas realizadas). Lembrei do filme: “À espera de um milagre.” Haverá interferência de “São Paulo” o santo apóstolo? Mas perguntemos: por que e com que fundamento a produção de saber, simbolizada pelo magnífico curso de 7 dias ministrado por excelentes expositores juízes, promotores, defensores públicos e advogados, doutores em processo penal, ditou a regra de que o poder de liberdade é um passaporte emitido somente pelo juiz? Somente este é capaz de realizar o milagre da liberdade? Deixemos claro que o ponto nevrálgico deste trabalho repousa no corpo do preso e sob que aspecto a democracia atuará sobre ele, não nos deixando mentir Michel Foucault, em Vigiar e Punir, citando Rusche e Kircheimer, ao explicitarem o paralelismo que possuem os regimes punitivos e os sistemas de produção (economia servil, feudal e capitalista), in verbis: “Mas podemos sem dúvida ressaltar esse tema geral de que, em nossas sociedades, os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa ‘economia política’ do corpo: ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos ‘suaves’ de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata - do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão.”

Em outras palavras, a audiência de custódia como resultado de uma interpretação distorcida do alcance atribuído ao art. 7, item 5 e 8, item 1 da CADH, que é totalmente distinta da que se realiza na Corte Interamericana de Direitos Humanos, nada mais se torna do que mero suplício (FOUCAULT, 1997, p. 47)11 ao criminoso, como forma de submissão e demonstração de poder. Sabemos que ainda vivemos sob a égide de um sistema que convive com o populismo penal midiático (FERRAJOLI, ZAFFARONI et. al., 2012, p. 60)12 que, em dialética com a atuação das instâncias oficiais (polícia, acusação e juízes), promove a criminalização do acusado, que é condenado pela chamada imprensa inquisitiva, o que nos retrocede à fenomenologia criminológica do entiquetamento, e, assim, o sistema realiza um verdadeiro método de “labelling approuch”, não contribuindo em nada para o atual discurso criminológico crítico, que fez florescer o direito penal mínimo. Basta refletir nas palavras de Alessandro Barata (BARATA, 2002)13 para enxergar com facilidade que, sem a expansão ao Delegado de Polícia, do poder decisório pela liberdade, a audiência de custódia em nada diminuirá a realidade das prisões provisórias:

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“(....) esta direção de pesquisa parte da consideração de que não se pode compreender a criminalidade se não se estuda a ação do sistema penal, que a define e reage contra ela, começando pelas normas abstratas até a ação das instâncias oficiais (polícia, juízes, instituições penitenciárias que as aplicam), e que, por isso, o  status  social de delinquente pressupõe, necessariamente, o

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efeito da atividade das instâncias oficiais de controle social da delinquência, enquanto não adquire esse status aquele que, apesar de ter realizado o mesmo comportamento punível, não é alcançado, todavia, pela ação daquelas instâncias. Portanto, este não é considerado e tratado pela sociedade como “delinquente”. Nesse sentido, o labeling approach tem se ocupado principalmente com as reações das instâncias oficiais de controle social, consideradas na sua função constitutiva em face da criminalidade. Sob este ponto de vista tem estudado o efeito estigmatizante da atividade da polícia, dos órgãos de acusação pública e dos juízes.” (grifo nosso)

Em outras palavras, a audiência de custódia é reflexo de uma política com discurso humanista mas que esconde uma verdadeira manutenção da prática do labeling approach. Tal assertiva não é fruto nosso de devaneio jurídico. Os juízes responsáveis pela instalação da audiência de custódia, ao se pronunciaram no Curso de Audiência de Custódia já mencionado, deixaram isso bem claro. No dia 11/02/2015, a Juíza Titular da 16ª Vara Criminal Cental/AP, Maria Domitila Prado Mansur, em sua palestra “O Juiz e a Audiência de Custódia” deixou bem explícito, ipsis literis: Que a audiência de custódia dará um “maior empoderamento ao juiz”

No dia 12/02, no mesmo curso, a Juíza assessora da Corregedoria Geral de Justiça Marcia Helena Bosch, em sua palestra “Audiência de Custódia - aspectos práticos do procedimento” declarou, in verbis: “mesmo que não tenha advogado ou defensor irá fazer a audiência de custódia”; “Soltar e prender, nada vai mudar”; “A audiência é para formar maior convencimento para analisar prisão”.

No mesmo dia 12, na palestra “O projeto piloto no Departamento de Inquéritos Policiais da Capital (DIPO) - aspectos sistemáticos e operacionais” pelo Juiz coordenador do DIPO Antônio Maria Patiño Zors, este afirma: Que estão lançando a “pedra fundamental” e que “cadeia é para o mau sujeito”.

Estamos diante, portanto, de evidente expansão do poder da magistratura sobre o corpo, e não de mudanças estruturais, como por exemplo, o aumento do rol de garantias do preso expandindo as possibilidades do Delegado de Polícia conceder liberdade provisória. Nos deparamos com o contrário: a banalização do mal (ARENDT, 1999, 31)14, a desvalorização e inutilização de um dos atores do sistema penal, o Delegado de Polícia, e, pior de tudo, ao argumento de que se protege direitos humanos. O que em verdade ocorre, com a sistematização nacionalizante da interpretação do art.7, item 5 e 8, item 1 da CADH, é o fortalecimento da criminalização secundária15 e o reforço da seletividade punitiva, como ocorreu

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e ocorre com a má aplicação da transação penal e da conciliação previstos na Lei 9.099/95 (GOMES, 2002, p. 87), institutos que, diante de um discurso de implementação de uma justiça (Democrática) penal consensual, transformaramse em mais um sistema violador de garantias mínimas no processo penal16. Não deixemos de registrar que, havendo de um lado o nobre propósito de se defender direitos humanos fundamentais, há de outro a resistência em se buscar alterações na legislação para se expandir o direito de liberdade a ser garantida também pelo Delegado de Polícia, o que esconde uma constante suspeita advinda de um defeituoso processo de transição do regime militar para o democrático, a partir de 1985, que construiu um estigma social (ZAFFARONI;PIERANGELI, 2011, p.73)17 para o Delegado de Polícia, como se fosse um cargo em que se estabelecem constantes abusos, e como operador do direito, um cargo incapaz de avaliar a condução coercitiva de forma técnico-jurídica e (r)estabelecer o direito de liberdade, por meio da liberdade provisória ou até mesmo por outra medida cautelar alternativa à prisão. Rubem Alves18, psicanalista e Doutor em filosofia nos Estados Unidos, ensinando sobre a epistemologia e a validade do discurso científico leciona: “(....) é somente o teste das declarações que irá tornar possível a decisão de serem elas verdadeiras ou falsas. Se houver uma declaração qualquer que não possa ser testada, essa mesma declaração estará fora do jogo em que é fundamental poder dizer ‘falso’, ‘verdadeiro’.”

A Epistemologia de uma Legislação Garantista com inclusão do Delegado de Polícia

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É sobre esta declaração de verdade científica supostamente válida que apresentamos um estudo em sentido de contramão do que se apregoa como antídoto contra o abuso na utilização das prisões provisórias e o mal do encarceramento arbitrário de massa. Um estudo inédito sobre USOS E ABUSOS DA PRISÃO PROVISÓRIA NO RIO DE JANEIRO realizado pela Associação pela Reforma Prisional, Centro de Estudos de Segurança e Cidadania e a Universidade Cândido Mendes, com apoio da Open Society Foundations, coordenados pela Socióloga Julita Lemgruber, revelou dados sobre a prisão provisória antes e depois do advento da Lei 12.403/11, que indicam cientificamente qual ponto da legislação é preciso mudar para ocorrer uma verdadeira expansão do direito de liberdade e da efetivação da presunção de inocência. A Associação para a Reforma Prisional (ARP) desenvolveu de janeiro de 2009 a junho de 2011, na cidade do Rio de Janeiro, um experimento controlado de prestação de assistência jurídica a presos provisórios mantidos em delegacias de polícia do município. Graças ao apoio da Open Society Foundations, à parceria estabelecida entre a ARP e a Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro, e à colaboração do Tribunal de Justiça do Estado, foi possível assistir diretamente a 130 presos provisórios, acusados de crimes contra o patrimônio sem violência nem grave

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ameaça, e de tráfico de drogas sem ligação com facções criminosas – ou seja, de tipos de delitos para os quais a legislação brasileira faculta liberdade durante o processo. O trabalho revelou que cerca de 2/3 dos presos provisórios com desfecho processual conhecido estavam encarcerados ilegalmente, quer pelo fato de os juízes não concederem a liberdade mesmo quando garantida pela legislação, quer porque os promotores não exerciam seu papel de fiscais da lei. Comprovou-se também que a assistência de advogados particulares – geralmente só acessível a quem tem recursos para pagá-la, mas oferecida gratuitamente aos presos incluídos no experimento da ARP – é mais eficaz em obter a liberdade do que aquela prestada pela defensoria pública. Isso atesta claramente o caráter seletivo do sistema de justiça criminal brasileiro, com sua “opção preferencial pelos pobres”, e mostra o quanto o funcionamento de tal sistema ainda está distante do mínimo compatível com um Estado democrático de direito19. Foram estudados 4.859 casos de acusados, nas quais se referiam a casos não arquivados e nos quais havia informação sobre a primeira medida cautelar imposta pelo juiz logo após a distribuição do Auto de Prisão em Flagrante. 2.653 deles (55%) detidos antes e 2.206 (45%) depois da entrada em vigor da Lei 12.403/2011. O trabalho científico, de critério epistemológico sério e correto, focou exatamente no mesmo problema que a audiência de custódia promete resolver, qual seja o elevadíssimo percentual de presos provisórios no sistema carcerário, conforme denota a introdução da pesquisa, p.5: “Um dos problemas mais dramáticos do sistema penitenciário brasileiro é o grande número de presos provisórios que ele abriga: são 195 mil e representam 35% das pessoas encarceradas no país como um todo. No Rio de Janeiro, somam aproximadamente 11 mil, ou 39% do total de presos do estado20.”

Os resultados que serão esposados adiante são frutos de uma mentalidade dos atores jurídicos, principalmente promotores e magistrados, que efetivam, respectivamente, em suas promoções e decisões, uma forte carga de um discurso do labelling approuch, agravando o sistema do entiquetamento como reação social à criminalidade, elevando assim a potência deletéria do populismo penal, e mantendo o venal sistema da seletividade punitiva. Destacamos o seguinte trecho da pesquisa, p. 35: “Tal como entre os juízes, há entre os agentes do Ministério Público uma forte convicção de que a Lei das Cautelares vai contra os anseios de proteção dos cidadãos, pois favorece a soltura de pessoas que, aos olhos da sociedade, deveriam ficar presas. Para eles, a população supostamente clama por uma atitude “mais firme” do Estado no combate à criminalidade, mas, em vez disso, criam-se mecanismos de garantias individuais que destoam das aspirações coletivas, e prejudicam a “ordem pública”, a “paz” e a “tranquilidade” social – termos cuja definição, contudo, os próprios agentes admitem ter dificuldade de precisar.” (grifo nosso)

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Prosseguindo na página 43 da pesquisa: “Comprova-se a partir dessa análise a impressão de juízes, promotores e defensores de que um dos impactos da Lei 12.403 foi estimular fundamentações mais detalhadas para a imposição da prisão preventiva. Antes dela, prevaleciam justificativas “de etiqueta”, com poucas linhas, adaptáveis a uma vasta gama de situações. Depois dela, promotores e magistrados parecem ter-se sentido na obrigação de explicar melhor as razões da sua opção pela prisão provisória, já que passaram a dispor de um leque muito maior de medidas a indicar e aplicar. Como afirmou um promotor já citado, agora dá “mais trabalho” justificar a prisão processual do que antes da vigência da lei.”

Como disse Cançado Trindade21, não adianta mudar a lei, “o problema não é do direito mas da mentalidade” punitivista, que se enraíza nas entranhas do sistema penal, como uma erva daninha, repetindo práticas autoritárias, que remontam à época do regime militar. Destacamos novamente o discurso dos atores apresentados na pesquisa com esse teor: “Como afirmou um promotor já citado, agora dá “mais trabalho” justificar a prisão processual do que antes da vigência da lei” (lei 12.403/11) (destaque nosso). “Tanto promotores como juízes justificam frequentemente o recurso à prisão como necessário à “garantia da ordem pública” – argumento que aparece até mesmo em casos de baixíssima gravidade, como tentativa de furto. Também é comum invocarem a gravidade abstrata do delito e, mais ainda, os já mencionados argumentos da falta de documentação comprovadora de residência fixa e trabalho, ou da existência de antecedentes criminais – todos eles, como também já dito, em desacordo com os princípios da presunção de inocência e do ônus da prova para quem acusa”.

Por esse tipo de mentalidade totalmente contrária ao direito penal de proteção aos direitos humanos fundamentais, a pesquisa chegou aos seguintes resultados: “1 - A prisão provisória como primeira medida cautelar, dos 4.859 pesquisados foi de 83,8% antes da lei 12.403/11 e de 72,3% depois da lei. 2 - De 3.672 processos concluídos em 2013 23.4% resultam em regime fechado; 18,7% no semi-aberto; 4.6% em regime aberto;15,9% outras penas; 7,8 absolvidos; 20,7% outras situações processuais; e 1,4% réu revel. Esses percentuais se mantiveram com diferença para mais ou para menos de 1.0 percentual, antes e depois da lei 12.403/11, ou seja, tecnicamente não houve diferença antes ou depois da lei 12.403/11, o que revela uma desproporção entre a prisão provisória e sua real necessidade com o resultado final do processo.”

Um dos dados que mais se destacam é o da liberdade provisória proferida pelo Delegado de Polícia em razão da fixação da fiança. Antes da lei era de 0,7%

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e após a lei 12.403/11 foi para 22,4% de liberdades concedidas! Enquanto a fiança pelo juiz era de 1,0% e aumentou para 1,2% após a lei. Segundo a pesquisa, p.51, que apesar desses avanços, cerca de metade dos acusados de furto, receptação e estelionato seguiu recebendo como primeira medida cautelar a prisão provisória, mesmo após a entrada em vigor da Lei 12.403/11. Em outras palavras, a verdadeira redução da prisão cautelar, onde realmente teria sido observado o direito de liberdade, foi na fase da investigação criminal presidida pelo Delegado de Polícia, carreira jurídica, quando efetivamente se garantiu o direito humano fundamental da liberdade, tendo havido que, após a realização de uma audiência de custódia (interrogatório do conduzido em sede flagrancial), analisou com técnica e reconheceu a desnecessidade da prisão, arbitrando fiança ao detido (sendo certo que a lei possibilita negar a fiança quando o delegado vislumbre motivos para a prisão preventiva), o que consolida uma verdadeira audiência de garantia e não de custódia (a primeira), do sistema que defendemos da dupla cautelaridade.

O Delegado de Polícia como garantidor dos Direitos Humanos pela Convenção Americana de Direitos Humanos O Delegado de Polícia não tem papel de garantir uma política criminal de direito penal máximo denominada de lei e ordem (“law and order” - política norte americana de tolerância “0”), mas sim uma política criminal garantista de direitos humanos fundamentais, e seu papel garantidor tem sido pouco estudado, além de que tem sido colocado à margem do debate sobre o tema. Veja-se que a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, no Caso Palma Mendoza Vs. Ecuador, entendeu que não teria havido violação dos direitos humanos por ter o estado rejeitado a denúncia na qual se acusavam todas as pessoas vinculadas ao delito, com base na ponderação da provas obtidas na investigação criminal. A contrario sensu, a forma com que as provas são obtidas numa investigação criminal é determinante para se entender se o procedimento estatal viola ou não o Pacto de San Jose da Costa Rica, sendo forçoso concluir, então, a elevada responsabilidade do Delegado de Polícia diante do sistema interamericano de direitos humanos. No mesmo sentido o Caso Nadege Dorzema e outros Vs. República Dominicana, no parágrafo 195, ao analisar em conjunto o art. 7.5 e 8.1 do Pacto de San Jose da Costa Rica e citando como precedente a opinião consultiva, OC9/87 del 6 de octubre de 1987. Serie A Nº 9, párr. 27, ipsis literis: “Dichas garantías (do conduzido ser ouvido por um juiz ou outra autoridade que exerca funcões judiciais) deben ser observadas en cualquier órgano del Estado que ejerza funciones de carácter materialmente jurisdiccional, es decir, cualquier autoridad pública, sea administrativa, legislativa o

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judicial, que decida sobre los derechos o intereses de las personas a través de sus resoluciones.” (Grifo nosso)

Basta ter olhos para se ver que a Corte IDH adota um sistema descentralizador de garantia da liberdade aos direitos humanos fundamentais, discurso este bem harmônico e uníssono com a denominada reserva relativa da jurisdição, na qual Canotilho22 já nos ensina que o juiz não tem o monopólio da primeira palavra, mas sim da última, distinto do que ocorre na reserva absoluta da jurisdição, em que o juiz tem a primeira e última palavra sobre uma decisão.

Sistema Internacional de Proteção de Direitos Humanos e a Validade das Decisões da Corte IDH no Direito Interno O conjunto de normas de direito constitucional internacional humanístico, complementam as garantias fundamentais da pessoa humana trazida pela Constituição da República, formando um sistema ou “bloco de convencionalidade23”, à semelhança do conhecido bloco de constitucionalidade, que tem como escopo, primordialmente, servir de anteparo para contenção das massas, ou seja, da vontade da maioria, ao contrário do populismo penal midiático24: A maioria não pode dispor de toda a ‘legalidade’, ou seja, não lhe está facultado, pelo simples facto de ser maioria, tornar disponível o que é indisponível, como acontece, por ex., com direitos, liberdades e garantias e, em geral, com toda a disciplina constitucionalmente fixada (o princípio da constitucionalidade sobrepõe-se ao princípio maioritário).25

De toda sorte é importante lembrar que as sentenças proferidas pela Corte IDH devem tem observância obrigatória e vinculante do Estado-parte condenado no caso concreto, e sua fundamentação consolida a uniformização da interpretação da Convenção por TODOS os Estados-partes, inclusive os que não foram réus condenados pela Corte e compõem, também, o bloco de convencionalidade. Não é outra a lição da Doutrina estrangeira sobre o tema: “Por ende, importa parar mientes en que tanto en Barrios Altos como en los casos Tribunal Constitucional de Perú y La Cantatuta, la Corte Interamericana se comportó como un Tribunal Constitucional anulando las leyes de amnistía, con efeito erga omnes. Obsérvese, entonces, cómo dicho órgono ha “amplificado” notadamente su tradicional postura, sosteniendo ahora que la obligatoriedad de sus pronunciamientos no se agota en su parte resolutiva (que vale para el caso particular), a los fundamentos del fallo, obligando a los tres poderes del Estado para la generalidad de los casos similares.”26 (grifo nosso)

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Novamente se reafirma, com a assertiva acima, que além da vinculação dos Estados à parte dispositiva da sentença, todos estão obrigados a seguir a fundamentação da mesma como metodologia de uniformização da jurisprudência

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perante a Corte IDH, todos os poderes, legislativo, executivo (Delegado de Polícia) e judiciário. Atribuir somente ao ator judiciário como único órgão efetivador do alcance jurídico e político da eficácia do princípio pro homine27 é engessar a eficácia dos direitos humanos fundamentais, e criar uma interpretação “nacionalista”28 e não “inter-cortes”29, como já ocorre nas Cortes Supremas da Costa Rica, Bolívia, República Dominicana, Peru, Colômbia e Argentina30. Quanto ao Brasil, não há histórico em obedecer às decisões da Corte IDH, quem dirá à interpretação realizada por ela, como vem ocorrendo no caso Gomes Lund Vs. Brasil, explicitado na ADPF 15331. Ora, estamos diante de ditames constitucionais de garantias de que o cidadão possa se valer de agências jurídicas previstas na Carta Política. Não é a toa que o Delegado de Polícia, quem preside a investigação criminal seja qual nome receber o procedimento (inquérito policial (CPP), termo circunstanciado (Lei 9.099/95), boletim de ocorrência circunstanciado (Lei 8.069/90), auto de investigação de ato infracional (Lei 8.069/90), é bacharel em direito32, concursado a cargo que tem por função exercer o papel de verdadeiro filtro processual contra imputações infundadas33, cabendo-lhe deslegitimar ações penais temerárias, bem como ser mais um agente de expansão das liberdades. É essa a visão garantidora que possui o Delegado de Polícia hodierno. Em nossa visão, uma Autoridade de Garantias34, a primeira a realizar a (primeira) audiência de garantias (custódia).

A “Audiência de Custódia” e sua normatização perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos Em outras palavras, o que quer a ONU e Corte IDH é que os países signatários dos tratados e convenções sobre direitos humanos, segundo a normatização do sistema de proteção aos direitos humanos, em especial do detido, é que este seja levado perante alguém que tenha conhecimento jurídico para poder decidir sobre a legalidade de sua prisão. Neste mesmo sentido dispõe documento das Nações Unidas sobre Direitos Humanos, denominado de “Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer forma de Detenção ou Prisão - 1988”35, que elenca 39 princípios sobre pessoas capturadas, detidas e presas, e realiza uma interpretação teleológica sobre o alcance de “ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais.”, disposto em seu ANEXO, e seu princípio 11.3, in verbis36: “Para los fines del Conjunto de Principios37: a) Por “arresto” se entiende el acto de aprehender a una persona con motivo de la supuesta comisión de un delito o por acto de autoridad; b) Por “persona detenida” se entiende toda persona privada de la libertad personal, salvo cuando ello haya resultado de una condena por razón de un delito; c) Por “persona presa” se entiende toda persona privada de la libertad personal como resultado de

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la condena por razón de un delito; d) Por “detención” se entiende la condición de las personas detenidas tal como se define supra; e) Por “prisión” se entiende la condición de las personas presas tal como se define supra; f ) Por “un juez u otra autoridad” se entiende una autoridad judicial u otra autoridad establecida por ley cuya condición y mandato ofrezcan las mayores garantías posibles de competencia, imparcialidad e independencia.” (grifo nosso)

Princípio 11

1. Ninguém será mantido em detenção sem ter a possibilidade efetiva de ser ouvido prontamente por uma autoridade judiciária ou outra autoridade. A pessoa detida tem o direito de se defender ou de ser assistida por um advogado nos termos da lei. 3. A autoridade judiciária ou outra autoridade devem ter poderes para apreciar, se tal se justificar, a manutenção da detenção.

Como se pode observar, o sistema de proteção internacional de direitos humanos possui uma hermenêutica própria, da qual o País signatário não pode dispor, não podendo adotar sequer uma nomenclatura disforme, como ocorre no Brasil, por exemplo, que confunde conduzido com detido, com preso, com capturado. Esta ausência sistêmica, no Brasil, de proteção da pessoa conduzida, detida e presa, contribui para uma interpretação destoante dos escopos trazidos nas decisões da Corte IDH. Esta análise pode se observar pelos princípios ora esposados e pelas interpretações a estes princípios e ao art. 7, item 5 da CADH, conforme traremos em um caso concreto na qual a Corte IDH interpretou e uniformizou o entendimento de que órgão com função judicial não significa estritamente jurisdicional, e somente a revisão da prisão, tendo sido ela mantida por um juiz ou outra autoridade, deverá ser realizada por outro juiz, num sistema que denominamos de duplo grau de audiência de garantia (custódia), conforme interpretação sistêmica e teleológica do art. 7, item 5 c/c 8, item 1 c/c 25, todos da CADH. Também podemos denominá-la como um sistema de dupla cautelaridade como instrumento de garantias do direito de liberdade como direito-regra do processo penal.

A lei 12.830/13 como Garantia da Imparcialidade e Independência do Delegado de Polícia Conforme Exigência Preconizada nos Casos Julgados Pela Corte IDH

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No Brasil, o Delegado de Polícia sempre teve competência, imparcialidade e independência, visto que não está subordinado ao Poder Judiciário ou ao Ministério Público, tendo a Lei 12.830/13 lhe concedido ainda mais garantias, como a sua inamovibilidade [legal], que se distingue do Judiciário e do Ministério Público apenas pela hierarquia da norma que a confere, mas, de acordo com os tratados sobre direitos humanos, a inamovibilidade possui status de norma supra

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legal e materialmente convencional, por se tratar de uma garantia de proteção aos direitos humanos está acima da garantia do órgão ou da pessoa que o ocupa, mas garante uma decisão imparcial ao preso. Para não cometermos a leviandade de interpretar as referidas normas sobre direitos humanos fundamentais de forma desassociada com a hermenêutica da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, trazemos à baila trechos da sentença, no Caso Vélez Loor Vs. Panamá.38, na qual o Panamá foi condenado por violação aos direitos humanos, in verbis: “108. Este Tribunal considera que, para satisfacer la garantía establecida en el artículo 7.5 de la Convención en materia migratoria, la legislación interna debe asegurar que el funcionario autorizado por la ley para ejercer funciones jurisdiccionales cumpla con las características de imparcialidad e independencia que deben regir a todo órgano encargado de determinar derechos y obligaciones de las personas. En este sentido, el Tribunal ya ha establecido que dichas características no solo deben corresponder a los órganos estrictamente jurisdiccionales, sino que las disposiciones del artículo 8.1 de la Convención se aplican también a las decisiones de órganos administrativos. Toda vez que en relación con esta garantía corresponde al funcionario la tarea de prevenir o hacer cesar las detenciones ilegales o arbitrarias, es imprescindible que dicho funcionario esté facultado para poner en libertad a la persona si su detención es ilegal o arbitraria” (grifo nosso).

Em tradução livre: “Este Tribunal considera que, para atender à garantia estabelecida no artigo 7.5 da Convenção em matéria migratória, a legislação interna deve assegurar que o funcionário autorizado pela lei para exercer funções jurisdicionais preencha as características de imparcialidade e independência que devem orientar todo órgão encarregado de determinar direitos e obrigações das pessoas. Nesse sentido, o Tribunal já estabeleceu que essas características não apenas devem corresponder aos órgãos estritamente jurisdicionais, mas que as disposições do artigo 8.1 da Convenção se aplicam também às decisões de órgãos administrativos (Delegados de Polícia, destaque nosso). Uma vez que, em relação a essa garantia, que cabe ao funcionário a tarefa de prevenir ou fazer cessar as detenções ilegais ou arbitrárias, seja imprescindível que esse funcionário esteja autorizado a colocar em liberdade a pessoa, caso sua detenção seja ilegal ou arbitrária”.

Ora, se em nosso ordenamento qualquer pessoa possa prender, e é dever dos agentes policiais realizar prisões e conduzirem os detidos ao Delegado de Polícia, salta aos olhos que este se trata de um órgão autorizado por lei “a colocar em liberdade a pessoa, caso sua detenção seja ilegal ou arbitrária.” O caso foi um julgamento do imigrante equatoriano Jesús Tranquilino Vélez Loor, ilegal no Panamá, onde foi preso pela Polícia Nacional de La Zona,

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e somente após 25 dias a autoridade administrativa competente para verificar a ilegalidade ou legalidade da mesma, La Dirección de Migración y Naturalización de Darién, conforme art. 67 do Decreto Lei 16 de 1960, Panamenho, ratificou a sua condução coercitiva e sem nenhuma fundamentação, não tendo havido no período a comunicação ao juiz e nem a nomeação de defensor público. Neste caso concreto, dentre outras fundamentações sobre violações a direitos humanos, se ressaltou a importância de a autoridade administrativa exercer a função materialmente jurisdicional de forma imediata, para que o judiciário e a defensoria pudessem atuar, bem como que a prisão pelo Diretor fosse necessariamente fundamentada. Neste caso concreto, dentre outras fundamentações sobre violações sobre direitos humanos, ressaltou, conforme o trecho transcrito acima, a importância da autoridade administrativa exercer a função materialmente jurisdicional de forma imediata para que o judiciário e a defensoria pudessem atuar, bem como sua prisão pelo Diretor (no Brasil seria o Delegado) fosse necessariamente fundamentada. Pouquíssimos estudiosos se aprofundam em estudos de casos de forma contextualizada, como o fazem a Professora Flávia Piovesan39 (PIOVESAN, 2012, p.395/430), Nereu José Giacomolli40 (GIACOMOLLI, 2014, p.134/143) e nós, através de artigos publicados em mídia digital41 com os títulos “A Autoridade Policial e a Garantia dos Presos nos Tratados de Direitos Humanos”, “Controle de Convencionalidade pelo Delegado de Polícia diante da CADH” e “A Inconvencionalidade da lei 12.234/10 não observada pelo Supremo Tribunal Federal e a duração (ir)razoável da prescrição retroativa”. Em outras palavras, a Corte IDH em nenhum momento decidiu que este direito a ser ouvido somente deva ser exercido em sede judicial e que a liberdade seja uma função estritamente jurisdicional, pois entendeu que o órgão de imigração, por sua lei interna, teria errado por não ter ouvido o imigrante e não lhe oportunizado defesa para poder decidir pela sua liberdade em um prazo razoável (já que demorou 25 dias para ser levado ao Diretor de Imigração). Ou seja, o direito de liberdade DEVE ser analisado também por órgão administrativo quando a lei assim permitir. Isto significa dizer, que não há violação alguma a direitos humanos quando a lei autoriza a “audiência de custódia” ser realizada por outro órgão distinto do judicial, como preconiza o art. 7, item 5 da CADH. O que viola direitos humanos é a lei impedir que a outra autoridade definida no referido artigo realize a análise sobre a necessidade ou não de manutenção da liberdade. Neste ponto nosso código de processo penal, quando autoriza ao Delegado de Polícia conceder liberdade provisória somente a crimes cuja pena máxima seja igual ou inferior a 4 anos está prestando um desserviço à Corte IDH e violando frontalmente direitos humanos fundamentais, sendo uma regra arbitrária que afronta os tratados internacionais de direitos humanos, devendo, portanto, ser considerada inválida, por impedir o Delegado de analisar todo o caso de liberdade provisória com ou sem fiança em crime com qualquer tipo de pena.

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Neste sentido, esta norma deve ser considerada pelo Delegado como inválida e conceder liberdade provisória a qualquer crime, pois os tratados são normas que estão acima do código de processo penal e as dezenas de precedentes das cortes autorizam a invocação do princípio pro homine para afastar norma inconvencional, inclusive normas trazidas pela própria constituição que contrariem o tratado, em um verdadeiro exercício de controle de convencionalidade.

Caso Palamara Iribarne Vs. Chile Para entender o caso, o Sr. Palamara era militar e teria escrito um livro que fazia referência ao trabalho das forças armadas, que foi considerado uma obra que atentava contra a segurança pública. Assim sendo, os militares procederam a uma busca e apreensão domiciliar e aprenderam livros e o HD do computador dele contendo os textos, tendo sido preso preventivamente por ordem do Ministério Público Militar (Fiscal Naval), que é responsável pela investigação militar e pela propositura de eventual ação penal militar. Como se pode verificar neste caso, novamente o exemplo dado pela doutrina2 em absolutamente nada se assemelha ao sistema processual penal brasileiro, e, ainda assim, a Corte IDH não afirmou que o MP não poderia ser a “outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”. Pelo contrário!!! A Corte afirmou que o MP tinha autorização pela lei para exercer funções judiciais e era um órgão que poderia decidir pela prisão e pela liberdade, mas no entanto violou o art.7, item 5, porque para ser esta “outra autoridade” deve exercer estas funções com independência e imparcialidade, e como ele era o órgão investigador e acusador não possuía esta última característica (imparcialidade) exigida pela Corte IDH. Para não cometermos o mesmo equívoco interpretativo já realizado pela doutrina, citemos a parte da sentença que aborda a violação do art. 7 e 8, item 1 da CADH, ipsis literis: “191, g) si una detención es llevada a cabo por una persona que no es juez, esta debe cumplir con tres requisitos: estar autorizado por ley para ejercer funciones jurisdiccionales, cumplir con la garantía de independencia e imparcialidad y tener la facultad de revisar los motivos de la detención de una persona y, de ser el caso, decretar su libertad. El fiscal naval que ordenó la detención del señor Palamara estaba autorizado por ley para cumplir 2 “Audiência de custódia e a imediata apresentação do preso ao juiz: rumo à evolução civilizatória do processo penal”, publicado a duas mãos por ele e o Defensor Público Caio Paiva, na Revista Liberdades do IBCCRIM, nº 17 setembro/dezembro de 2014, na qual cita o caso Palamara Iribarne Vs. Chile para inferir que a expressão do aart. 7.5 da CADH “(....) juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer função judicial (....) somente poderia ser uma autoridade que fizesse parte da magistratura, ou seja, que função judicial seria uma função estritamente jurisdicional, divergindo do conteúdo da própria sentença do caso sub exame.”

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funciones jurisdiccionales y tenía la facultad de decretar la libertad de la persona. Sin embargo, no era independiente e imparcial.” (destaque nosso)

Como se percebe com clareza solar e lógica cartesiana, o que emerge deste parágrafo da sentença da Corte IDH é que a outra “autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais”, quando não se tratar de um juiz, deve preencher 3 requisitos: 1º) AUTORIZADA POR LEI; 2º) POSSA DECRETAR A LIBERDADE DO DETIDO; e 3º) INDEPENDENTE E IMPARCIAL. Com estas características, denota-se que a Lei 12.830/13, quando garante ao cargo do Delegado de Polícia a garantia contra remoções infundadas, e impede a avocação das investigações por superior hierárquico, completa o 3º requisito exigido pela Corte IDH, incluindo-se esta norma no rol de garantias trazidas pelos precedentes da Corte, fortalecendo o bloco de convencionalidade, acima mencionado, sendo portanto, uma norma materialmente Convencional, possuindo status de norma supra legal, bem como materialmente constitucional, por guardar simetria a uma garantia fundamental da prisão em flagrante a ser lavrada pela polícia judiciária.

Considerações Finais O que ocorre no Brasil é uma insistência em manter a legislação processual fascista em vigor, sem a devida alteração para além da Lei 12.403/11, e não permitir que o Delegado de Polícia conceda liberdade provisória para qualquer crime! Isso mesmo, qualquer crime! A partir daí, acaso a condução coercitiva seja mantida pelo Delegado, na independência técnico jurídica que lhe cabe, por não ser hipótese de liberdade provisória, o conduzido deve ser levado à presença de um juiz porque o Pacto também prevê a direito de revisão imediata da prisão e de recurso contra ela, como fica claro no parágrafo 221 da sentença do caso Palamara Iribarne Vs. Chile, verbis: “221. Este Tribunal estima necesario realizar algunas precisiones sobre este punto. Los términos de la garantía establecida en el artículo 7.5 de la Convención son claros en cuanto a que la persona detenida debe ser llevada sin demora ante un juez o autoridad judicial competente conforme a los principios de control judicial e inmediación procesal. Esto es esencial para la protección del derecho a la libertad personal y para otorgar protección a otros derechos, como la vida y la integridad personal. El simple conocimiento por parte de un juez de que una persona está detenida no satisface esa garantía, ya que el detenido debe comparecer personalmente y rendir su declaración ante el juez o autoridad competente42.”

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O que estamos defendendo no presente trabalho é um sistema ainda mais depurado e garantista do que uma [única] audiência e (judicial) de custódia. Inauguremos a audiência de garantias (sistema de duplo). Novamente defenderemos o óbvio! A concentração de poder da primeira palavra sobre a liberdade nas mãos da magistratura (hipótese de reserva absoluta

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da jurisdição), somente se dá quando da manutenção da prisão pelo Delegado e consequente conversão do flagrante em prisão (esta pelo juiz). Quanto à análise da liberdade provisória, a magistratura não é a primeira palavra, mas sim a do Delegado de Polícia, ex vi do art.325 do CPP, por uma razão também simples: a liberdade é a regra, e portanto deve ser expandida, e por ser assim, ontologicamente se situa no âmbito da reserva relativa da jurisdição, onde o controle jurisdicional é a última palavra, ou seja, a posteriori. Na reserva absoluta, primeiro se analisa a manutenção da liberdade para depois se prender (jurisdição como primeira palavra sobre prisão), e, caso tenha sido mantida pelo Delegado, primeira autoridade da audiência de garantias (custódia) (art.7, item 5 da CADH), o detido é encaminhado para a segunda autoridade da audiência de garantias (custódia) (art.7, item 6 da CADH). Convertida a prisão em flagrante em preventiva, tem agora o detido o direito de recurso a um juiz ou Tribunal (art.7, item 6 c/c art. 8, item 1 da CADH). Na reserva relativa, primeiro se solta (Delegado de Polícia concedendo liberdade - primeira palavra sobre liberdade - art.7, item 5 da CADH) e se a liberdade for cassada e decretada sua prisão, ocorre a análise (jurisdição como primeira e última palavra para cassar a liberdade, neste caso art.7, item 5 e 6 da CADH para a audiência de custódia pelo próprio juiz ou Tribunal). A audiência como está projetada enfatiza somente a custódia, criando-se uma espécie de criminalização secundária diante da concentração do Estado policial (controle por prisão) nas mãos da magistratura, e não um processo de expansão de direitos da liberdade. Neste modelo o Delegado em muitos casos é IMPEDIDO DE GARANTIR O DIREITO DE LIBERDADE, mas se dissemina a falaciosa ideia de que garantia de liberdade só é possível pelo juiz, o que é um ledo engano. Nos casos que o Delegado garante a liberdade porque a lei lhe permite assim decidir, a pessoa não é levada à frente de um juiz, por uma razão simples: a audiência de custódia e a primeira cautelaridade da liberdade já teria sido garantida primeiramente pelo Delegado. Enfim, propomos uma alteração no PLS 554/11 para fortalecer a audiência de garantias como verdadeira medida para diminuir o impacto dos abusos criados pela lei, que impedem ao Delegado analisar de forma plena a liberdade do conduzido até sua presença, perpetuando-se a prisão pelos juízes e promotores, por força dos aspectos criminológicos, políticos, sociológicos e jurídicos acima refletidos. Com essa mudança estaríamos avançando ainda mais em nossa traumática e lenta justiça de transição.

Referências bibliográficas 1 Disponível em: , acesso em 02/02/2014 2 MOLINA, Antonio García-Pablos; GOMES, Luiz Flávio. Criminologia - Introdução a seus fundamentos teóricos. 3. ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p.385. “De acordo com essa perspectiva interacionista, não se pode compreender o crimes prescindindo

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da própria reação social, do processo social de definição ou seleção de certas pessoas e condutas etiquetadas como delitivas. O desvio não é uma qualidade intrínseca da conduta, senão uma qualidade que lhe é atribuída por meio de complexos processo de interação social, processos estes altamente seletivos e discriminatórios.” 3 Informativo Rede Justiça Criminal, 5. ed., ano 3, 2013. Dez razões para aprovar o projeto de lei que institui a audiência de custódia. Disponível: < http://www.iddd.org.br/Boletim_ AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf>, acesso em 07/02/2015 4 CANINEU, Maria Laura, disponível em : < http://www.iddd.org.br/Boletim_ AudienciaCustodia_RedeJusticaCriminal.pdf>, acesso em 07/02/2015 5 Disponível em < http://www.senado.gov.br/atividade/materia/getPDF.asp?t =95848&tp=1>, acesso em 07/02/2015 6 No RE 466.343/SP e no HC 87.585/TO 7 RAMOS, André de Carvalho. Teoria Geral dos Direitos Humanos na Ordem Internacional. 4.ed.,São Paulo, Saraiva, 2014, p.228. 8 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, p.290-291. Ferrajoli faz distinção entre “vigência” como validade formal e “eficácia” como validade substancial. De forma que uma lei que seja menos protetiva que conflite com os tratados será inválida e não produz efeitos que o ato almejava, não possuindo “legitimidade jurídica substancial”. É uma forma de conter o poder político externo que influenciou ou criou uma norma materialmente não protetiva. 9 DURÁN, Carlos Villán. Curso de Derecho Internacional de los Derechos Humanos. Madrid, Trota, 2002, p.85. 10 MARQUEZ, Gabriel Garcia. Cem anos de solidão. Tradução de ELIANE ZAGURY. 48. ed. Rio de Janeiro, Record, p.8. “Além destas coisas, Melquíades deixou amostras dos sete metais correspondentes aos Sete planetas, as fórmulas de Moisés e Zózimo para a duplicação do ouro, e uma série de notas e desenhos sobre os processos do Grande Magistério, que permitiam a quem os soubesse interpretar a tentativa de fabricação da pedra filosofal. Seduzido pela simplicidade das fórmulas para duplicar o ouro, José Arcádio Buendía adulou Úrsula durante várias semanas, para que lhe permitisse desenterrar as suas moedas coloniais e aumentá-las tantas vezes quantas fosse possível subdividir o azougue.” 11 FOUCAULT, Michel, Ob. Cit. p. 47. “O suplício judiciário deve ser compreendido também como um ritual político. faz parte, mesmo num modo menor, das cerimônias pelas quais se manifesta o poder.” 12 ZAFARONI, Eugenio Raúl; FERRAJOLI, Luigi; TORRES, Sergio Gabriel et al. La emergencia del miedo. Buenos Aires, Ediar, 2012, p.60. “Esta política, que se dirige a secundar el miedo y las pulsiones represivas presentes en la sociedad, fue justamente llmada por el jurista francés Denis Salas, y luego por el penalista dominicano Eduardo Jorge Prats, ‘populismo penale’. 13 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal.3.ed., Rio de Janeiro, Revan, 2002, p.86. 14 ARENDT, Hannah; Eichmman em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p.32. 15 ZAFFARONI, E. Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro e SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: teoria geral do direito penal v.1. Rio de Janeiro, Revan, 2003, p.43. “criminalização primária consiste na criação de uma lei incriminadora direcionada a determinada classe e criminalização secundária na ação punitiva que recai sobre pessoas concretas, a criminalização secundária se verifica mais facilmente no segmento das agências policiais”. 16 GOMES, Luiz Flávio. Juizados criminais federais, seus reflexos nos juizados estaduais e outros estudos. Série As Ciências Criminais no Século XXI, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2002, v.8, p.87.

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17 ZAFFARONI, Eugenio Raul; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro, 9. ed, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2011, v.1: parte geral. A afirmativa: “A posterior perseguição por parte das autoridades com rol de suspeitos permanentes, incrementa a  estigmatização  social do criminalizado” demonstra a cabal mentalidade da magistratura e Ministério Público em marginalizar a polícia judiciária e estigmatizá-la como órgão estritamente represssor, fomentando uma sociedade de medo como já afirmado acima, discurso que acentua uma política populista penal. 18 ALVES, Rubem. Filosofia da Ciência: introdução ao jogo e suas regras. 7. ed., São Paulo, Loyola, 2003, p.178. 19 Os resultados completos do estudo foram divulgados na publicação “Impacto da assistência jurídica a presos provisórios: um experimento na cidade do Rio de Janeiro”, disponível em >http://www.ucamcesec.com.br/wordpress/wp-content/uploads/2011/09/ PresosProvisorios_final.pdf< 20 Depen/Ministério da Justiça. População carcerária – sintético, dezembro de 2012. Disponível em >http://portal.mj.gov.br/data/Pages/ MJD574E9CEITEMIDC37B2AE94C6840068B1624D28407509CPTBRIE.htm< 21 CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. in: Boletim da Sociedade Brasileira de Direito Internacional,, Brasília, nº 113/118, p. 91, jan/dez. 1998 22 CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7. ed., 11. reimp., Almedina, Almedina, p.584. “Esta garantia de justiça tanto pode ser reclamada em casos de lesão ou violação de direitos e interesses particulares por medidas e decisões de outros poderes e autoridades públicas (monopólio da última palavra contra actos do Estado) como em casos de litígios particulares e, por isso, carecidos de uma decisão definitiva e imparcial juridicamente vinculativa (monopólio da última palavra em litígios jurídicos-privados)” (grifo nosso). 23 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O Controle Jurisdicional da Convencionalidade Das Leis. 3ª ed. revista, atualizada e ampliada. Revista dos Tribunais, São Paulo:2013, p. 99100. “Tais decisões das cortes somadas demonstram claramente que o controle nacional da convencionalidade das leis há de ser tido como o principal e mais importante, sendo que apenas nmo caso da falta de sua realização interns (ou de seu exercício insuficiente) é que deverá a Justiça Internacional atuar, trazendo para si a competência de controle em último grau (decisão da qual tem o Estado o dever de cumprir. (....) Os direitos previstos em tais tratados, assim, formam aquilo que se pode chamar de “bloco de convencionalidade”, à semelhança do conhecido “bloco de constitucionalidade”; ou seja, formam um corpus iuris de direitos humanos de observância obrigatória aos Estados-partes.” 24 GOMES, Luiz Flávio ; ALMEIDA, Débora de Souza de; Coordenação: BIANCHINI, Alice; MARQUES, Ivan Luís e GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico. 2ª reimpr. Saraiva, São Paulo: 2013, p. 98-130. “O ponto culminante desse contínuo e crescente processo de midiatização (da Justiça e da política) reside não só no controle externo que a mídia exerce sobre alguns membros dos demais poderes senão também na própria concretização de uma justiça paralela, com investigação, acusação e julgamento dos responsáveis pela ‘situação problemática’.(....)” 25 CANOTILHO, J.J. Gomes, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7ªed. Almedina 11ª reimp., Almedina. p. 329 26 HITTERS, Juan Carlos. El Controle de Convencionalidad y El Cumplimiento de Las Sentencias de La Corte Interamericana (Supervisión Supranacional Cláusula Federal). in Calogelo Pizzolo, [et. al.], Coordenação Luiz Guilherme Marinoni e Valerio de Oliveira Mazzuoli. Controle de convencionalidade: um panorama latino-americano: Brasil, Argentina, Chile, México, Peru, Uruguai, Brasilia/DF:Gazeta Jurídica, 2013, p.368/369. 27 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Ob. Cit. p.146.

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Audiência de Custódia (Garantia) e o Sistema da Dupla Cautelaridade Como Direito Humano Fundamental

28 Segundo MAZZUOLI, na obra supra citada o direito interno de um Estado-parte não pode criar uma interpretação particular em detrimento daquela já realizada pela Corte IDH, tendo em vista que o Brasil declarou expressamente que se submete à Jurisdição da Corte Internacional pelo Decreto Legislativo 89/98, sendo obrigatória não somente a observância de decisões contrárias ao Estado-parte como também a forma com que os tratados são interpretados pela Corte em casos de outro Estado-parte. Não há, portanto, discricionariedade e livre interpretação do pacto, que o autor denomina de “nacionalização” dos tratados internacionais de direitos humanos. 29 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. Ob. Cit. p. 104, na qual o autor também faz menção a uma outra expressão sinônima da “inter-cortes”, denominada de “viva interação”, cunhada pelo juiz Diego Garcia-Sayán. 30 Na Suprema Corte Argentina os Casos Simón (2005) e Mazzeo (2007) 31 Neste sentido, RAMOS, André de Carvalho. Processo Internacional de Direitos Humanos. 3 ed., São Paulo, Saraiva, 2013, p.381/384. 32 Art. 3º da Lei 12.830/13. 33 Investigação preliminar, polícia judiciária e autonomia - Luiz Flávio Gomes e Fábio Scliar. Disponível em , acesso em 23/07/2014. 34 BARBOSA, Ruchester Marreiros, Revista Síntese Direito Penal e Processual Penal, Porto Alegre: Síntese, v.13, n.74, jun./jul. 2012, p.26/28. Sugeri no referido artigo científico a alteração do nome Delegado de Polícia para Autoridade de Garantias, por não mais subsistiram as razões do termo empregado hoje, apesar de ser ainda empregada não só pelo projeto do novo código de processo penal, como também pelo art. art.144, § 4º, da CRFB/88. 35 Grupo de Trabajo sobre Detención Arbitraria, Conclusiones y Recomendaciones de 15 de diciembre de 2003, UN DOC E/CN.4/2004/3, párr. 86. 36 Site do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Disponível: < http://www2.ohchr.org/spanish/law/detencion.htm>, acesso em 08 de agosto de 2014. 37 Para efeitos do Conjunto de Princípios: a) “captura” designa o ato de deter um indivíduo por suspeita da prática de infração ou por ato de uma autoridade; b) “pessoa detida” designa a pessoa privada de sua liberdade, exceto se o tiver sido em conseqüência de condenação pela prática de uma infração; c) “pessoa presa” designa a pessoa privada da sua liberdade conseqüência de condenação pela prática de uma infração; d) “detenção” designa a condição das pessoas detidas nos acima referidos; e) “prisão” designa a condição das pessoas presas nos termos acima referidos; f ) A expressão “autoridade judiciária ou outra autoridade” designa autoridade judiciária ou outra autoridade estabelecida nos termos cujo estatuto e mandato ofereçam as mais sólidas garantias de competência, imparcialidade e independência. 38 Corte IDH. Caso Vélez Loor Vs. Panamá. Excepciones Preliminares, Fondo, Reparaciones y Costas. Sentencia de 23 de noviembre de 2010 Serie C N.218, par. 108 disponível: , acesso em 08 de agosto de 2014. 39 PIOVESAN, Flávia, Ob. cit. 395/430. 40 GIACOMOLLI, Nereu José, ob. cit. 134/143 41 Disponível: 42 No mesmo sentido, Caso Acosta Calderón, par. 77; e Caso Tibi, par. 118.PIOVESAN, Flávia, Ob. cit. 395/430. GIACOMOLLI, Nereu José, ob. cit. 134/143 Disponível: No mesmo sentido, Caso Acosta Calderón, par. 77; e Caso Tibi, par. 118.

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Os direitos fundamentais e o direito processual, sob a visão da função social do poder judiciário Nívea Maria Dutra Pacheco1 Resumo Não se pode afirmar que há um conceito fechado de direitos humanos, pois a todo o momento estão a serem reconhecidos. É um processo de fazer e desfazer todos os dias. A dignidade da pessoa humana é princípio constitucional, base do Estado Democrático de Direito, sendo nítida a existência de uma relação de dependência simultânea entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, pois, ao tempo em que os direitos fundamentais surgiram como exigência da dignidade de proporcionar pleno desenvolvimento da pessoa humana, por outro lado, somente através da existência desses direitos a dignidade pôde ser protegida e promovida. Reequilibrar partes com regras do processo, quando e se necessário, pode ultrapassar o mero entendimento do ativismo jurisdicional, alcançando-se a efetividade do Estado Democrático de Direito por meio da outorga de direitos fundamentais, seja aos desassistidos, negros, desabrigados de catástrofes, desempregados, homossexuais, doentes, deficientes e outras minorias. Nesta vertente, o papel do magistrado ganha maior importância, no desempenho da reconstrução do processo civil à luz dos princípios constitucionais, dos direitos humanos e fundamentais. Palavras-chave: Direitos Humanos; Direitos Fundamentais; Efetividade do Processo; Função Social do Poder Judiciário. Abstract One can not say that there is a narrow concept of human rights, for all the time are to be recognized, is a process of making and unmaking every day. The dignity of the human person is constitutional principle, the basis of the democratic rule of law, and clear the existence of a simultaneous dependency relationship between human dignity and fundamental rights, because, at the time when the fundamental rights emerged as a requirement of dignity to provide full development of the human person, on the other hand, only through the existence of such rights to dignity could be protected and promoted. Rebalance parts with rules of the process, when and if necessary, may 1 Mestre em Direito pela UNESA; Professora de Processo Civil da UNESA (Pós-Graduação e Graduação); Professora de Prática Jurídica da UNESA (Graduação); Advogada; Coordenadora do Núcleo de Prática Jurídica da UNESA campus Nova Friburgo; Presidente da Comissão de Direito do Consumidor da 9º Subseção da OAB/NF.

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exceed the mere understanding of the judicial activism, reaching to the effectiveness of the democratic rule of law through the fundamental rights of grant, is to underserved, black, disaster homeless, unemployed , gay, sick, disabled and other minorities. In this respect, the magistrate’s role takes on greater importance in the performance of reconstruction of civil procedure in the light of constitutional principles, human and fundamental rights. Keywords: Human Rights; Fundamental Rights; Effectiveness of the process; Social judiciary function.

Introdução Muito tem se debatido sobre os direitos fundamentos e direitos de gerações, diante da relevância do tema para o ordenamento jurídico brasileiro, faz-se necessária uma abordagem à luz da Constituição e frente ao garantismo processual. Não se tem dúvida de que uma das bases do Estado Democrático de Direito, os direitos fundamentais, são declarações constitucionais direcionadas ao gozo de todo cidadão. Dentre eles, daremos relevo ao Direito de Informação, Direito ao Acesso à Justiça e Direito ao Devido Processo Legal. O que se esperava de um Estado Democrático de Direito, segundo proclamavam os jusnaturalistas2, seria a garantia dos direitos naturais dos indivíduos e que independem do texto positivo, devendo ser declaradas inválidas as normas de direito positivo que colidam com aqueles. Entretanto, essa ideia de proteção ao direito natural sobrevive sob outro enfoque, o dos direitos humanos, reconhecidos em declarações internacionais e direitos fundamentais. Os direitos do homem, direitos humanos, direitos públicos subjetivos são aqueles outorgados a todos os homens pela sua mera condição humana. Eles nascem e se desenvolvem em suas Constituições.3 Para Sarlet, denominam-se direitos fundamentais “os direitos do ser humano reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional positivo de determinado Estado”.4 Também se utilizando das ideias e palavras de José Afonso da Silva, direitos fundamentais do homem constituem uma expressão que além de se referir a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada

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2 Movimento politicamente relevante, surgido na Idade Moderna, que pregava a chamada doutrina do direito natural, a que atribui o status de Justiça, e também denomina de direito ideal, ou direito imutável, distinguindo-o do direito positivo, mutável, dos homens. Para estes pensadores, somente o direito real, cujas normas têm a natureza como fonte, poderiam conceber o chamado direito justo. 3 Segundo José Afonso da Silva, os direitos fundamentais se caracterizam: “São situações jurídicas subjetivas e objetivas definidas no direito positivo, em prol da dignidade, igualdade e liberdade da pessoa humana. Quanto à natureza jurídica, são direitos constitucionais, na medida em que se inserem no texto de uma Constituição ou mesmo constam de simples declaração solenemente estabelecida pelo poder constituinte. São direitos que nascem da soberania popular.” SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 135. 4 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual e ampl. – Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 34.

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ordenamento jurídico, é uma expressão reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que se concretizam em garantias de uma sobrevivência digna, livre e igual para todas as pessoas. Ainda fazendo uso das palavras do doutrinador, “no qualificativo ‘fundamentais’ acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e nem ao menos sobrevive, fundamentais do homem no sentido de que a todos por igual, devem ser formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados”.5 A Constituição da República de 1988 confere dignidade e proteção aos direitos fundamentais, tanto ao afirmar que as normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata, como os inserindo no rol das denominadas cláusulas pétreas, quando se refere ao artigo 60 da Constituição Federal de 1988, protegendo-os, assim, de todos aqueles que pretendam de forma ilegítima alterá-las ou suprimi-las do texto constitucional. Os direitos fundamentais tiveram sua origem no Cristianismo e evoluíram de acordo com a sociedade, acompanhando as condições fáticas apresentadas ao longo da história. Como característica dos direitos fundamentais, a universalidade, deixa claro que estes são destinados a todos os seres humanos, não sendo direcionados a uma classe específica ou categoria de pessoas. Como as normas constitucionais, os direitos fundamentais têm força vinculante, não havendo, assim, razão para o Poder Judiciário se curvar à ausência da lei, permitindo que os direitos fundamentais se tornem letra morta. Isso posto, não há dúvida de que o juiz pode desconsiderar a solução legal que estiver em desacordo com os direitos fundamentais, não havendo, também, nenhuma razão para entender que ele não possa suprir a omissão que atente contra esses direitos. Para Marinoni, a teoria dos direitos fundamentais tem como função o mandamento da tutela, trazendo para o juiz a obrigação de suprir a omissão ou a insuficiência da tutela outorgada pelo legislador, o que vem a facilitar de modo extraordinário a compreensão da possibilidade de a jurisdição poder cristalizar a regra capaz de dar efetividade aos direitos fundamentais. Ao se analisar a função social do poder judiciário, sob o ponto de vista da efetividade do juiz para com os direitos fundamentais, é possível utilizar como exemplo, a afirmativa de que o direito fundamental compreende o direito de informação ao cidadão - participante em um processo judicial – e que sua efetividade está intimamente ligada à nova visão social de Poder Judiciário, com isso, cabe ao este, conceder ao cidadão/jurisdicionado todas as informações necessários ao conhecimento da causa e do devido processo legal, sem, no entanto, perder sua imparcialidade essencial na condução do processo.

Das dimensões dos direitos fundamentais Os direitos humanos não podem ser simplesmente ensinados. É preciso criar uma cultura prática desses direitos, e para tanto é necessário avançar no exercício 5 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 15. ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 137.

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da cidadania e da democracia. É necessário lutar pela sua efetividade. Assim, oportuno é recordar a lição do histórico Relatório da Comissão Internacional sobre a educação da UNESCO, “Aprender a Ser”, presidida por Edgar Faure: “A educação deve oferecer aos jovens conhecimentos científicos e técnicos, mas deve, também, formar, dando-lhes um sentido que oriente suas ações.” 6 Segundo a lição de Einstein7: “A educação deve ajudar o jovem a crescer num espírito tal que os princípios éticos fundamentais sejam para ele como o ar que respira.” Convém anotar que não seria possível, nos estreitos limites do presente artigo, fazer menção a todos os princípios constitucionais, mas há dois princípios que não se pode deixar de perpassar, pois considerados a mola mestra dos demais princípios, quais sejam: a dignidade da pessoa humana e o devido processo legal, considerando a indissociabilidade da noção de Estado Democrático de Direito na realização dos direitos fundamentais. Segundo Lenio Streck8, “A menos que se intervenha profundamente na organização da vida social, nem sequer é possível realizar uma ‘democracia processual’ que não seja uma autêntica fraude”, havendo, nesse caminhar, sempre um caráter substantivo da lei, sendo, portanto, inconcebível a operacionalização de uma lei adjetiva, se o juiz não decidiu antes acerca das questões substantivas. Assim, vê-se que, se o Poder Judiciário, na figura do juiz, não se der conta de que a dignidade da pessoa humana deve ser o valor máximo a ser preservado pela jurisdição, de pouco ou quase nada vale ter uma lei que pretenda aproximar o cidadão do Judiciário. Necessário ainda se faz anotar que, para trabalhar de forma objetiva o princípio da dignidade da pessoa humana, deve o magistrado ter consciência do que pontua Ana Paula de Barcellos: Na linha que se identificou no exame da própria Carta de 1988, o mínimo existencial que ora se concebe é composto de quatro elementos, três materiais e um instrumental, a saber: a educação fundamental, a saúde, a assistência aos desamparados e o acesso à justiça. Repita-se, ainda uma vez, que esses quatro pontos correspondem ao núcleo da dignidade da pessoa humana a que se reconhece eficácia jurídica positiva e, a fortiori, o status de direito subjetivo exigível do Poder Judiciário.9

Torna-se bem evidente, no texto acima, que é necessário assegurar a todo cidadão a vida digna, com a educação e a saúde como requisitos para se ter cidadania, capacitando o indivíduo ao exercício de seus direitos, sendo certo que

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6 MONTOURO, André Franco. Cultura dos Direitos Humanos. Disponível em: http:// www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/dh/volume%20i/artigo%20 comparato.htm. Acesso em: 26 de maio de 2007. 7 EINSTEIN, Albert. Escritos da Maturidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. p. 161. 8 STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002. p. 129. 9 TORRES, Ricardo Lobo. Direitos Humanos e a Tributação. Imunidades e Isonomia. Rio de Janeiro: Renovar, 1995. In: BARCELLOS, Ana Paula. A Eficácia Jurídica dos Princípios Constitucionais: o princípio da dignidade humana. São Paulo: Renovar, 2002. p. 258.

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o acesso a uma vida digna somente se faz possível com instrumentos que possam efetivar esses componentes essenciais, que é o pleno acesso do cidadão à Justiça. Verdade é que, ainda hodiernamente, não há um consenso sobre a palavra dignidade da pessoa humana. Para Antonio Junqueira de Azevedo10, existem duas concepções, quais sejam [...] “a primeira concepção leva ao entendimento da dignidade como autonomia individual, ou autodeterminação; a segunda, como qualidade do ser vivo, capaz de dialogar e chamado à transcendência” Inúmeras são as reflexões elaboradas nos séculos passados sobre o tema, no entanto, é possível destacar duas grandes correntes de pensamento: a tradição cristã e a filosofia Kantiana. Quanto à doutrina cristã, pode-se dizer que é a responsável pelo surgimento da noção de dignidade humana no mundo ocidental, com a concepção de que todos os homens possuem igualdade, por serem criados à imagem e semelhança de Deus. Posteriormente, destaca-se o pensamento de Immanuel Kant, pioneiro na formulação da concepção moderna de dignidade humana. Para ele, todos os seres humanos, quaisquer que sejam, são igualmente dignos de respeito e, por essa razão, não pode ser usados como simples meio, o que limita, nessa medida, o uso arbitrário de uma ou outra vontade.11 Relacionando a concepção de dignidade humana com a questão processual, o que se pretende demonstrar é que dentro de um espaço em que se presta a tutela jurisdicional há a possibilidade de efetivação desses direitos, mediante a transformação dos indivíduos, onde o juiz e demais operadores da justiça se confrontam dia a dia com as indignidades praticadas contra o cidadão, abrindose “uma porta” para que o próprio Judiciário seja o responsável em rever o rumo a ser dado em favor da garantia do princípio da dignidade da pessoa humana. É gente lidando com gente. Segundo David Sánchez Rubio 12, não se pode afirmar que há um conceito fechado de direitos humanos, pois a todo o momento estão a se construir direitos humanos, é um processo de fazer e desfazer todos os dias. Esses são sóciohistoricamente construídos, sendo reversíveis, podendo haver hoje um direito humano de emancipação e, logo depois, tornar-se de dominação e, novamente serem invertidos, posteriormente. A título de exemplo, a vida humana é uma condição para o exercício do direito à liberdade e ser livre é um direito que tem o ser humano com vida. Assim, estão os direitos à vida e liberdade entrelaçados. Não se diz que a dignidade da pessoa humana é um direito concedido pelo ordenamento jurídico, mas um atributo inerente a todos os seres humanos, independente de sua origem raça, sexo, cor, etc. Diz-se, apenas, que estão consagrados no plano normativo constitucional, havendo o dever de promoção e proteção pelo Estado. 10 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Caracterização Jurídica da Dignidade da Pessoa Humana. RTDC, vol. 9, jan/mar. 2002. p. 5. 11 CARMARGO. Marcelo Novelino. Leituras Complementares de Constitucional. Direitos Fundamentais. cap. V. O Conteúdo Jurídico da Dignidade da Pessoa Humana. 2. ed. ver. e ampl. Salvador: PODIVM. 2007. p. 114-115. 12 RUBIO, David Sánchez. Apontamentos da Aula da Disciplina Filosofia do Direito do Mestrado em Direito da UNESA. RJ, maio de 2007.

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É, no entanto, indiscutível a existência de uma relação de dependência simultânea entre a dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, pois, ao tempo em que os direitos fundamentais surgiram como exigência da dignidade de proporcionar pleno desenvolvimento da pessoa humana, por outro lado, somente através da existência desses direitos a dignidade pôde ser protegida e promovida. Neste sentido, José Carlos Vieira de Andrade13: Os direitos fundamentais são os pressupostos elementares de uma vida humana livre e digna, tanto para o indivíduo como para a comunidade: o indivíduo só é livre e digno numa comunidade livre; a comunidade só é livre se for composta de homens livres e dignos.

Ao passar, portanto, pelo princípio da dignidade da pessoa humana, é necessário lembrar que fixar um momento histórico preciso do surgimento dos direitos fundamentais não é tarefa fácil. Ferreira Filho14 afirma que esse marco remonta à Antiguidade,  alcançando os direitos naturais, isto é, direitos conferidos aos homens pelos deuses; eram direitos desvinculados da vontade humana, o que perdurou ao longo da Idade Média até que Groccio promovesse a laicização do direito natural e a ligação dos direitos à razão. José Afonso da Silva15, por sua vez, entende por bem traçar essa origem a partir de antecedentes diretos, ou seja, as declarações de direitos na Idade Média. De toda sorte, José Afonso não deixa de frisar a importância da teoria do direito natural no âmbito dos direitos fundamentais, os quais limitavam o poder do monarca. Nessa perspectiva, vêm à luz os pactos e as cartas de franquias, visando à proteção dos direitos individuais de comunidades locais. Desses documentos, destaca-se a Magna Carta Inglesa de 1215. Essa Magna Carta foi outorgada por João Sem Terra e foi a base para a elaboração da Constituição Inglesa. Trata-se de um pacto entre o rei, João Sem Terra, e os barões aliados aos burgueses, protegendo seus privilégios e os direitos dos homens livres. Por esse motivo, José Afonso sustenta que a Carta de 1215 não tem natureza constitucional. Nesse período, houve a consagração de vários direitos fundamentais, dentre eles: “a liberdade de ir e vir, a propriedade privada, a graduação da pena à importância do delito [...] a regra ‘no taxation without representation’”.16

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13 ANDRADE. José Carlos Vieira de. Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Almedina, 2001. p. 110. 14 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 9. 15 Conforme ensina Silva, o Bill of Rights americano demonstrou também a preocupação em disciplinar um rol exemplificativo de direitos fundamentais. Tal pode ser verificado a partir da leitura da Emenda 9°, que diz: “garantia de que a enumeração de certos direitos na Constituição não seja interpretada como denegação ou diminuição dos outros direitos que ao povo se reservou”. SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2001. p. 151-152. 16 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 12.

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Dentro ainda do breve histórico dos direitos fundamentais, necessário se faz perpassar pelos denominados “direitos de gerações”, também conhecidos como “dimensões de direitos”. Segundo David Sánchez Rubio17, a expressão “geração de direitos” tem sofrido várias críticas da doutrina nacional e estrangeira. É que o uso do termo “geração” pode dar a falsa impressão da substituição gradativa de uma geração por outra, o que é um erro, já que, por exemplo, os direitos de liberdade não desaparecem ou não deveriam desaparecer quando surgem os direitos sociais e assim por diante. Ademais, a evolução dos direitos fundamentais não segue a linha descrita (liberdade –– igualdade –– fraternidade) em todas as situações. Nem sempre vieram os direitos da primeira geração para, somente depois, serem reconhecidos os direitos da segunda geração. No Brasil, por exemplo, vários direitos sociais foram implementados antes da efetivação dos direitos civis e políticos, neste sentido podemos citar os direitos trabalhistas e previdenciários que foram reconhecidos, na “Era Vargas”, durante o Estado Novo (1937-1945), sem que os direitos de liberdade (de imprensa, de reunião, de associação, etc.) fossem assegurados. Segundo David Sánchez Rubio18, já é possível se falar em direitos de quarta, quinta e sexta geração. A quarta geração é uma sensibilidade cultural que se relaciona com a produção, contaminação e diversificação da natureza e do planeta, em uma lógica ambiental. Cuida-se de uma relação diferente do ser humano com o cosmo. Uma relação com a natureza de uma forma nova, questionando, criticando a racionalidade tecnológica, científica. A maior preocupação é expressar e defender uma condição de existência para o presente e para as gerações futuras. Como deve o planeta sobreviver nas gerações futuras. A quinta geração está relacionada à incursão da tecnologia de ponta no mapa genético da vida, especialmente pela genética humana, clonagem humana, biogenética, reprodução dos cursos biológicos humanos, bancos de órgãos e os danos negativos que têm sobre os seres humanos. Efeitos danosos provocados por uma cultura de lucro. Quando se fala na genética e na clonagem humana, a questão está envolvida em uma cultura muito empresarial. A quinta geração se posiciona frente aos efeitos e as consequências negativas da tecnologia e da ciência. Agora, encontra-se com um tipo de racionalidade generosa, defensora da intimidade, da vida e contra a manipulação genética mercantilista, que defende a proteção material, moral e genética dos seres humanos contra as instituições sócio-econômicas, políticas, culturais e geopolíticas dominadas pela cobiça. Essa seria a quinta geração que está relacionada com a bioética, a biopolítica. A sexta geração é a última e muito curiosa. Está relacionada com o que se chama de valor da expectativa de vida e de como a vida do ser humano se mercantiliza. As companhias de seguros e os bancos tentam controlar 17 RUBIO, op. cit., 2007. 18 RUBIO, op. cit., 2007.

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mercantilmente a vida. Controlar para que se firmem contratos de seguros que lhes proporcionem lucros. Se o cidadão tem que viajar, necessita de contratos. Se envelhecer, precisa ter um futuro seguro, um plano de pensão, etc. A sexta geração de direitos enfrenta essa dimensão mercantil da própria etapa da vida dos seres humanos. Essa geração dos Direitos humanos se coloca contra a agressividade da mercantilização da vida em todas as suas parcelas. Há que se coibir o preço do poder, de uma lógica mercantilista. Curioso notar que se fala em direitos de 3ª, 4ª, 5ª e até mesmo 6ª dimensão, sem, contudo, o Brasil ter conseguido firmar alguns dos direitos mais básicos de primeira dimensão. Como falar em direitos sociais, quando sequer se tem o efetivo direito à liberdade, considerando que um cidadão para ser livre deve ter consciência de seus direitos? E como ter consciência de seus direitos se, ao menos, pode-se falar em acesso ao direito de informação e orientação jurídica? Não se trata aqui de ter orientação judiciária, como o direito a ter um Defensor Público para hipossuficiente, mas o de qualquer cidadão conhecer e discutir seus direitos em juízo. Não se trata apenas do hipossuficiente econômico, mas de todo e qualquer ser humano em ser orientado e informado, no curso da sua relação processual. Como pleitear direitos ou mesmo ter o acesso ao Poder Judiciário, como dizer que houve acesso à justiça quando um cidadão deixa, por exemplo, a sala de audiências sem entender o que aconteceu com o seu processo? Reitera-se o questionamento – como falar em superação do direito de liberdade que é um direito de 1ª dimensão, para chegar a um direito de 5ª ou 6ª dimensão, quando nos encontramos ainda em déficit com o cidadão quanto a seus direitos básicos. A classificação baseada em etapas sucessivas do surgimento de tais direitos foi denominada de “gerações de direitos”. Tal nomenclatura surgiu pela primeira vez em 1979, quando o jurista Karel Vasak, buscando demonstrar a evolução dos direitos humanos com base no lema da revolução francesa, utilizou a expressão “gerações de direitos do homem”. Segundo George Lima, em artigo referente às gerações de direitos, citando Karel Vasak, “a primeira geração dos direitos humanos seria a dos direitos civis e políticos, fundamentados na liberdade (liberté). A segunda geração, por sua vez, seria a dos direitos econômicos, sociais e culturais, baseados na igualdade (égalité). Por fim, a última geração seria a dos direitos de solidariedade, em especial o direito ao desenvolvimento, à paz e ao meio ambiente, coroando a tríade com a fraternidade (fraternité)”.19 Apesar de a classificação dos direitos ser amplamente empregada em dimensões, não se é possível uma precisão de quantas seriam essas dimensões, pois como visto, anteriormente, muito já tem se falado em direitos até de sexta geração. Ainda assim, vale uma breve passagem por essa classificação.

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19 LIMA, George Marmelstein. Críticas à Teoria das Gerações (ou mesmo dimensões) dos Direitos Fundamentais. Jus Navigandi, Teresina, a. 8, n. 173, 26 dez. 2003. Disponível em: . Acesso em: 26 de maio de 2006.

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Os direitos de primeira dimensão são aqueles surgidos como resultado da ideologia liberal. São os direitos individuais, vistos como os de defesa, caracterizando-se como “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado”.20 Igualmente consideram-se direitos de primeira dimensão os políticos, que se referem “à participação do indivíduo no processo do poder político”.21 Vinculada à crise do liberalismo ocorrida no século XX e ao surgimento de ideologias que buscavam sua superação, encontra-se a segunda dimensão de direitos. Esses seriam os “direitos sociais, culturais e econômicos, bem como os direitos coletivos ou de coletividades”.22 Enquanto os de primeira dimensão são vistos como direitos de defesa, os de segunda dimensão se apresentam como “pretensões exigíveis do próprio Estado, que passa a ter de atuar para satisfazer tais direitos”.23 Importante se notar que Bonavides insere nos direitos de segunda dimensão os chamados “direitos coletivos ou de coletividades”, por outro lado, Tavares, inclui na categoria dos direitos de terceira dimensão, os direitos coletivos e difusos. Voltado para o posicionamento de Tavares está Ferreira.24 Já Alexandre de Moraes, citando o Ministro Celso de Melo25, preceitua a primeira geração, como o direito à liberdade, como uma forma negativa de atuar do Estado; a segunda geração, sendo os diretos sociais, seriam uma forma positiva e os de terceira geração, como os de titularidade coletiva. Cabe aqui fazer um parênteses para deixar claro que a doutrina vem se posicionando no sentido de que todos esses direitos se interligam e se completam, numa visão de interdependência. É de suma importância tratar os direitos fundamentais como valores indivisíveis, para que um direito não seja priorizado em detrimento de outro. Exemplos podem ser encontrados em todos os direitos fundamentais, inclusive, os de cunho instrumental (direitos processuais), como o direito de ação, por exemplo. Na visão tradicional, a ação teria cunho individualista, representando a mera faculdade de acionar o Poder Judiciário. Com a segunda dimensão, o processo deveria deixar de ser mero instrumento de proteção de direitos subjetivos, 20 BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 14. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 517. 21 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 359. 22 BONAVIDES, op. cit., p. 517. 23 TAVARES, op. cit., p. 360. 24 FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 101. 25 “Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade.” MORAIS, Alexandre de. Direito Constitucional. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2003. p. 90.

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passando a ter uma conotação de relevância social, abrangendo os conflitos de forma coletiva, exigindo, por parte do Estado, uma postura de cunho ativo, visando à facilitação do acesso à Justiça, de sobremodo quanto às camadas mais pobres da população. O processo deveria ganhar uma conotação democrática, com abertura de canais de participação popular no debate judicial, com escopo de que a discussão se desse de forma pluralizada, garantindo maior efetividade e legitimidade à decisão, o que passaria a ser enriquecida pelos elementos e pelo acervo de experiências que os participantes do processo pudessem fornecer26

O devido processo legal e a função social do Poder Judiciário Dentre os vários direitos concedidos aos cidadãos com relação ao processualismo civil, alguns se destacam por estarem inseridos na Constituição da República Federativa do Brasil. Os direitos são: a legalidade, o direito ao acesso à justiça, sendo este pré-requisito para se alcançar a prestação jurisdicional e o devido processo legal, abrangendo os direitos ao juiz natural, à imparcialidade do juiz, à igualdade processual, à ampla defesa, ao contraditório e à celeridade. A democracia pode ser vista também método, mas o processo tem que ser justo e baseado nos direitos humanos. Não é sem sentido que a Constituição Federal de 1988 tem fundamentação em Portugal e França, no devido processo legal equitativo e devido processo justo. Há o ideal de que se vive em uma democracia, mas a realidade social não é compatível com isso. Imprescindível seria efetivar a participação popular, com propostas capazes de levar o cidadão a participar do processo de forma efetiva, exercitando, de fato, a cidadania. Ademais, os direitos humanos exercidos como práticas sociais, como expressão axiológica, normativa, institucional, em cada contexto, abre e consolida espaço de lutas, por expressões múltiplas da dignidade humana. A atual Constituição Federal promulgada em 05 de outubro de 1988, fruto da ampla participação do povo27, pela primeira vez na história constitucional brasileira, contempla expressamente como princípio garantidor das liberdades civis, o devido processo legal (due process of law), ao dispor no artigo 5º,

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26 Seguindo esse raciocínio, tem-se Peter HÄBERLE, defendendo que cidadãos e grupos de interesse, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública constituiriam valiosas forças produtivas da interpretação, cabendo aos juízes ampliar e aperfeiçoar os instrumentos de informação, especialmente no que se refere às formas gradativas de participação e à própria possibilidade de interpretação do processo constitucional. HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional: a Sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para a interpretação pluralista e ‘procedimental’ da Constituição. Trad.: Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 9-10. 27 Doravante essa cláusula dominará todo o Direito (material e processual), já que pelo seu curso, passam os princípios da separação dos poderes, a independência do judiciário, sua função política, o ativismo judicial e a visão política dos juízes na interpretação e aplicação da lei fundamental ( substantivo devido processo), bem como se estabelecem os condutores pelos quais fluem o nosso modo de vida democrático em direção a um futuro como nação livre, responsável como nação livre, comprometida com a justiça a paz social e o bem-estar do povo brasileiro. SILVEIRA, Paulo Fernando. Devido processo Legal. São Paulo: Del Rey, 2001. p. 40.

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inciso LIV: “Ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.” Somando-se o inciso LV: “Aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.28 Por outro lado, espraiou-se a crença de que somente se lograria alcançar o intento do processo através da estrita submissão dos atos praticados pelos juízes a amplos e firmes critérios previamente concebidos em lei (um dos desdobramentos da cláusula do devido processo legal). Adstritos a rígidos ditames, jamais conseguiriam os julgadores ultrapassar os limites impostos à sua autoridade, resguardando-se os destinatários da atuação jurisdicional contra a possibilidade de exercício arbitrário de seus poderes. A cláusula do devido processo legal, no seu sentido substancial, nada mais é do que um mecanismo de controle axiológico da atuação do Estado e de seus agentes, constituindo um instrumento típico do Estado Democrático de Direito, de modo a impedir restrições ilegítimas aos direitos de qualquer homem, sem um processo previamente estabelecido e com possibilidade de ampla participação. É certo que na relação processual os direitos fundamentais devem ser considerados, pelo que se torna possível se falar em ativismo processual (judicial), caracterizando-se pela ampliação dos poderes instrutórios do juiz. No entanto, na contramão de uma visão humanizada do processo, temos ainda arraigado ao nosso ordenamento o formalismo processual, caracterizado pela posição moderada do juiz, valorizando-se o princípio do dispositivo, com a limitação de seus poderes na atividade probatória e no impulso processual. Piero Calamandrei, em seu Instituciones de derecho procesal civil, destacava o “caráter social do novo processo e o novo significado do princípio da igualdade das partes”, que, segundo o Relatório Grandi, baseava-se na aproximação do povo da Justiça, de um processo mais popular e acessível às pessoas humildes, características consideradas indeterminadas ou genéricas. Para o autor, as características mais díspares eram a tendência de simplificação das formas, a concentração, a clareza das disposições, a imediatidade entre juiz e partes, e a nova concepção da igualdade das partes, que no modelo anterior não passava de um enunciado teórico.29 Nesse diapasão, é possível uma reflexão de que participação no processo para a formação da decisão constitui uma posição subjetiva inerente aos direitos fundamentais.

Conclusão À luz dessas considerações, a participação no processo pode ser visualizada como dimensão intrinsecamente complementadora e integradora. O próprio processo passa a ser meio de formação do direito. 28 BRASIL [Leis etc.] Código Civil; Comercial; Constituição Federal / obra coletiva de autoria da editora Saraiva com colaboração de Antonio Luiz de Toledo, Márcia Cistina Vaz dos Santos Windt e Lívia Céspedes. – 3. ed. – São Paulo: Saraiva, 2007. p. 9. 29 CALAMANDREI, Piero. Instituciones de Derecho Procesal Civil: según el nuevo Código, cap. 3º, §62, p. 342.

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Não se pode ter a ilusão de que a simples abertura das portas do Poder Judiciário, no sentido de se prestar a jurisdição, seja o suficiente para o alcance de um processo justo e efetivo, sendo necessário um repensar do ordenamento jurídico para um processo sem dilações ou formalismos excessivos. À vista do exposto, pode-se concluir que deve haver uma ponderação e valoração dos direitos postos em questão, mormente quando confrontados, no processo, com a segurança jurídica, o garantismo processual, o princípio do dispositivo, a inércia da jurisdição, etc., e, muito embora seja uma tarefa hercúlea a realização dessa ponderação, é certo que o processo deve ter por base ser um instrumento para que os problemas da justiça sejam solucionados num plano diverso e mais alto do que o puramente formal, pois a atividade jurisdicional deve buscar como interesse maior, o interesse humano objeto dos procedimentos, cujo processo deve ser colocado realmente ao serviço daqueles que clamam justiça.

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Presunção absoluta ou relativa? Análise acerca da dependência econômica para recebimento da pensão por morte Elmo Gomes de Souza1 Resumo O presente artigo tem por objetivo analisar a presunção veiculada no art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91. A Lei Ordinária elenca várias pessoas que podem vir a receber uma pensão por morte do instituidor, sendo que entre elas há uma ordem de preferência. Dentre estes beneficiários, se encontra a 1ª classe de favorecidos, prevista no art. 16, I da Lei nº 8.213/91 que, se existentes, terão o direito subjetivo à percepção da pensão por morte. Complementando o direito a este benefício, o art. 16, § 4º da mesma Lei estabelece que a dependência econômica desta 1ª classe é presumida, enquanto que nas demais classes (2ª e 3ª classes) deve ser comprovada. O problema surge quando se trata de aprofundar o estudo desta presunção estabelecida para a 1ª classe, ao tentar se responder à seguinte indagação: a presunção estabelecida é iuris et de iure, ou seja, absoluta; ou, ao contrário, é estabelecida iuris tantum, ou seja, é possível a comprovação, pelo interessado, da inexistência de dependência econômica? Palavras-chave: Seguridade Social; Previdência Social; pensão por morte; cônjuge; companheiro; filho menor não emancipado; Filho maior inválido; Indício; Presunção Absoluta; Presunção Relativa. Abstract This article aims to analyze the presumption conveyed in art. 16, § 4 of Law No. 8.213 / 91. The Ordinary Law lists several people who are likely to receive a pension for death of a settlor, and between them there is an order of preference. Among these beneficiaries, is favored in 1st class, provided in art. 16, I of Law No. 8.213 / 91 which, if any, shall have the right to subjective perception of the death benefit. Complementing the right to this benefit the art. 16, § 4 of the same Act provides that the Annual economic dependence on 1st class is assumed, while the other classes (2nd and 3rd classes) must be proven. The problem arises when it comes to deepen the study of the presumption for the 1st class, the answer to the following question: to the presumption is iuris et te jure, or absolute; or, conversely, is established iuris tantum, that is, evidence is possible, by the person concerned, the lack of economic dependence? Keywords: Social Security; Social Security; Pension for death; Spouse; Partner; Minor child not emancipated; Son most invalid; Clue; Absolute Presumption; Presumption Relative. 1 Juiz Federal Titular do Juizado Especial Federal de Nova Friburgo e Professor da Universidade Cândido Mendes – Campus Nova Friburgo.

Presunção absoluta ou relativa? Análise acerca da dependência econômica para recebimento da pensão por morte

Introdução Como disse Guimarães Rosa, nas palavras de Riobaldo, viver é negócio muito perigoso (2001, p. 26). Acrescento, ainda, Zygmunt Bauman (2004, p. 16-17), para quem o amor e a morte possuem semelhanças: não se tem a mínima ideia de quando eles ocorrerão, mas, quando acontecer, vai nos pegar desprevenidos. Este é um pequeno exemplo de infortúnio social (morte). Todos nós sabemos que poderemos sofrer – ou mesmo que serão estabelecidos – alguns infortúnios: temos conhecimento de que nossos entes queridos (e nós mesmos) iremos morrer; consideramos ficar (mais ou menos) enfermos; temos ciência sobre o nosso envelhecimento a cada dia e, aos poucos, da diminuição de nossa capacidade de trabalho; a mulher tem consciência de que, ao ter um filho, terá que dispensar todo o cuidado a ele, e que não poderá trabalhar a fim de cuidar da nova vida que brotou de seu ser. Também temos conhecimento de que, amanhã, poderemos estar desempregados, sem maiores recursos para sobrevivência. Exatamente para isto serve a Seguridade Social: cobrir alguns riscos específicos e sociais, visto que a eles estão sujeitos todos os que participam da vida em sociedade. Dentre os vários princípios expostos para a Seguridade Social, destaco os da seletividade e distributividade na prestação de benefícios. Previstos expressamente na Constituição Federal de 1988 (art. 194, parágrafo único, III), visam a constituir um real programa básico de sustentação econômica para aqueles que possam necessitar do benefício (princípio da seletividade), atrelado a uma distribuição efetiva de benefícios para aqueles que de fato o necessitem (princípio da distributividade) (IBRAHIM, 2010, p. 73). Neste cenário, avulta eleger os riscos mais prementes de uma grande parcela de pessoas que estão incluídas neste regime, pois os adventos destes mesmos riscos fazem com que a pessoa, de uma hora para outra, esteja destituída de recursos para sua mantença, ou de seus familiares. Exatamente por se temer que as pessoas com menor renda2 estejam abruptamente despreparadas para fazer frente às necessidades mais vitais, o legislador elegeu os benefícios necessários para se cobrir os riscos sociais, sendo estes riscos um dos fundamentos da Previdência Social (CASTRO-LAZZARI, 2005, p. 43). Dentre estes benefícios está a pensão por morte, que visa a amparar os familiares do segurado que faleceu, prevista nos arts. 201, I da CF/88 e arts. 74 a 79 da Lei nº 8.213/91.

Da pensão por morte O óbito de um segurado é o evento que deflagra o recebimento da pensão por morte em favor das pessoas que dependam financeiramente daquele que morreu. Trata-se de cobrir um risco social muito evidente: se um segurado

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2 Exatamente por isto está imposta pela legislação um teto para o recebimento dos benefícios previdenciários, pois se presume que aquele que recebe acima de um determinado patamar está inteiramente calçado para se redimir dos riscos sociais que possam advir. Evidentemente que uma pessoa que receba, por exemplo, 20 ou 30 salários mínimos não está totalmente ao largo do sistema protetivo previdenciário, mas terá que se submeter a um limite econômico de benefício, conhecido como teto previdenciário.

Elmo Gomes de Souza

trabalha e vem contribuindo para um sistema previdenciário, aliado ao fato dele possuir pessoas que vivam às suas custas, ainda que parcial, do ganho de seu trabalho, nada mais justo que o Poder Público venha a substituí-lo na sua ausência (por conta de sua morte), transferindo recursos para seus dependentes. Entretanto, não é qualquer pessoa que pode se tornar beneficiária de uma pensão por morte. A Lei elege uma parcela restrita de pessoas – quase sempre as mais próximas do segurado – que possuem o direito de receber o referido benefício. Diz-se que são beneficiários. Eis o rol previsto: “Art.  16.  São beneficiários do Regime Geral de Previdência Social, na condição de dependentes do segurado: I - o cônjuge, a companheira, o companheiro e o filho não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente3; II - os pais; III - o irmão não emancipado, de qualquer condição, menor de 21 (vinte e um) anos ou inválido ou que tenha deficiência intelectual ou mental que o torne absoluta ou relativamente incapaz, assim declarado judicialmente4;    IV – revogado.”

Em relação a cada inciso se estabeleceram classes, ou seja, castas onde a existência de um dependente numa classe prioritária exclui as demais. Assim, o dependente de 1ª classe exclui os da 2ª e 3ª classes. Na ausência de dependente da 1ª classe, o da 2ª classe exclui o da 3ª classe. Apenas se houver pessoas inseridas na mesma classe é que teremos a divisão equitativa da pensão. Para o recebimento da pensão por morte pelos dependentes basta, em regra, que o segurado trabalhe por um dia5, ou seja, esteja filiado ao sistema previdenciário, uma vez que para a eclosão do benefício não é preciso qualquer carência (art. 26, I, Lei nº 8.213/91)6. Ocorre que o legislador estabelece uma distinção. Para alguns (dependentes da 1ª classe), não é preciso se comprovar qualquer dependência econômica para com o instituidor-segurado, ou seja, basta apenas demonstrar sua condição de dependente (cônjuge, filho menor de 21 anos etc). Para outros (dependentes da 2ª e 3ª classe), é conferido o ônus de provar a dependência econômica. Se não o fizerem, não terão direito ao benefício. Eis o dispositivo legal que bem resume a distinção: 3 Redação dada pela Lei nº 12.470/11. 4 Redação dada pela Lei nº 12.470/11. 5 Digo em regra, pois para o segurado facultativo é necessário que o mesmo faça o recolhimento da primeira contribuição (Decreto nº 3.048/99, art. 20, § 1º). 6 Quando do fechamento deste artigo havia sido editada a Medida Provisória nº 664, de 30.12.2014, que passou a instituir, em regra, a carência de 24 contribuições mensais para recebimento de pensão por morte pelos dependentes. Tal medida, por evidente, deve passar pela chancela do Congresso Nacional, sem qualquer previsão na sua aprovação ou rejeição, dado o conturbado momento político nacional quando da apreciação da referida MP.

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Art. 16. ......... § 4º A dependência econômica das pessoas indicadas no inciso I é presumida e a das demais deve ser comprovada.

Da presunção estabelecida no Art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91 O problema surge para os beneficiários da primeira classe ao se indagar se a presunção estabelecida no art. 16, § 4º da Lei Previdenciária é de natureza absoluta, ou seja, não é possível estabelecer uma prova contrária para se evitar o recebimento do benefício; ou se, distintamente, estabelece-se uma presunção relativa, iuris tantum, possibilitando ao órgão pagador provar que inexiste uma relação de dependência entre instituidor e pretenso dependente. Este é o objeto central do presente estudo.

Da presunção e do indício na doutrina e na Lei nº 8.213/91 Os estudarmos a dogmática enfrentaremos de plano uma dúvida que assalta a doutrina. Não é tão fácil estabelecer o correto significado da expressão “presunção”. Vemos que não há uniformidade na doutrina em sua identificação, muitas das vezes havendo uma confusão com outro instituto jurídico, qual seja, o indício. Também a legislação não é muito clara a respeito, como veremos a seguir. Barbosa Moreira (1988, p. 59) faz a distinção com maestria. Para ele a presunção não é um meio de prova, visto que nela não há uma valoração da prova. A presunção, na verdade, é um ponto de chegada. E faz isto com um exemplo: se há um crime e se prova que o réu estava na posse da única arma capaz de produzir as lesões verificadas (fato “x”), extrai-se a ilação de que foi o réu quem desfechou os golpes mortais (fato “y”). Assim, temos no fato “y” uma presunção, a que se chegou a partir da constatação de um fato certo e determinado, ou seja, o fato “x”. Exatamente este primeiro fato provado (réu com a arma) diz-se tratar de um indício. O indício, sim, é que se constitui um meio de prova, pois ele é um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um ponto de partida, donde se tentará chegar a uma presunção. Daí se dizer que no indício temos a prova de um fato conhecido e provado que está a indicar um outro fato, com base no qual se chega a ela, presumindo que esse outro fato ocorreu (ou não ocorreu). A presunção, por sua vez, é um ato de inteligência do julgador, que ao examinar determinadas provas nos autos (inclusive os indícios), chega à conclusão, através de uma dedução, que outros fatos ocorrem, necessária ou normalmente, e que são exatamente aqueles que importam para resolução do conflito instaurado7. Se ocorre o 1º fato é extremamente verossímil a ocorrência

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7 Esta é a conclusão de Barbosa Moreira (1988, p. 56-57): “Pode acontecer, no entanto – e o caso não é raro -, que, com referência a determinado fato, decisivo para a solução do litígio, a atividade instrutória se revele incapaz de ministrar, diretamente, elementos bastantes de convicção; e, por outro lado, venha aos autos material probatório suficiente para que o juiz

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do 2º fato que se pretende provar. Leva-se em conta a máxima id quod plerumque accidit (aquilo que normalmente acontece). Por isto podemos concluir afirmando que a presunção é o resultado do raciocínio do julgador, que parte de um indício (fato indiciário) e sua prova (indiciária), concluindo que a presunção é um juízo que o intérprete faz (MARINONI-ARENHART, 2011, p. 139-140). O Código Civil não andou bem, por sua vez, ao categorizar a presunção como um meio de prova (art. 212, IV), o que não é verdade, excluindo o indício do rol de fatos que podem ser provados, o que também é uma inverdade. Melhor seria que fizesse como o Código de Processo Penal, que tratou apenas dos indícios como meio de prova (art. 239)8. Por seu turno, as presunções podem ser classificadas em 2 grandes ramos: as presunções judiciais (praesumptiones hominis), sendo elas firmadas pelo próprio magistrado; e as presunções legais, que são aquelas ditadas pelo próprio legislador. As presunções legais, por sua vez, se subdividem em presunções relativas (iuris tantum) ou presunções absolutas (iuris et de iure). Tanto na presunção legal relativa quanto na absoluta temos uma correlação entre o fato provado e o que se pretende provar feita pelo próprio legislador. É este que estabelece a presunção, ou seja, se se prova o fato “x” teremos necessariamente o fato “y”. A diferença reside no fato de que as presunções relativas admitem prova em contrário; as presunções absolutas não admitem prova em contrário. Mas como diferenciar, precisamente, na legislação, uma presunção relativa de uma absoluta? Barbosa Moreira ensina que na presunção relativa se dispensa a apresentação da prova de um certo fato, repercutindo no ônus probatório, com íntima ligação com o direito processual. A presunção absoluta estaria, por sua vez, ligada ao plano do direito material. Esta diferenciação é seguida por outros doutrinadores, mas a prática revela alguma dificuldade na sua aplicação. Para tanto, cito que no pagamento em parcelas, a quitação da última estabelece a presunção de que foram solvidas as anteriores, mas até prova em contrário (art. 322, CC), estabelecendo uma presunção relativa acerca de um direito material (pagamento). Também há de se registrar que o legislador indicou uma presunção absoluta de conhecimento de terceiro sobre a penhora de imóvel que fora transcrita na matrícula do bem (art. 659, §4º, CPC), fato este ligado primordialmente ao direito processual civil. se convença de ter ocorrido fato diverso, mas relacionado com aquele que constituía o thema probandum. A relação entre os dois fatos – o conhecido e o desconhecido – é tal, suponhamos, que da existência do primeiro se possa logicamente inferir, senão com absoluta certeza, ao menos com forte dose de probabilidade, a existência (ou a inexistência) do segundo. Nessas circunstâncias, nada mais razoável que valer-se o juiz do conhecimento adquirido sobre o fato x para tirar suas conclusões a respeito do fato y. O resultado desse raciocínio é que configura, propriamente, a presunção judicial: o juiz presume que ocorreu o fato y porque sabe que ocorreu o fato x, e sabe também que a ocorrência de um implica, necessária ou normalmente, a ocorrência do outro.” 8 A única crítica a se faz ao dispositivo é que a presunção não se realiza por indução (método de conhecimento donde se parte do particular para o geral, chegando a uma conclusão) mas sim por uma dedução (conclusão a que se chega a partir da comparação entre uma premissa menor (indício) a uma lei de experiência ou razão (premissa maior)). Ver, por todos: ARANHA, 1994, p. 165-166)

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Presunção absoluta ou relativa? Análise acerca da dependência econômica para recebimento da pensão por morte

Na verdade, a dogmática sempre indica que há uma presunção legal relativa quando a própria lei estabelece a possibilidade de prova em contrário (ou expressão semelhante), como o faz os arts. 322, 324 e parágrafo único, 1.253, 1.674, todos do Código Civil, além do art. 4º, § 1º da Lei nº 1.060/50)9. Por sua vez, teríamos a presunção legal absoluta, quando o próprio texto legal impede a produção de material probatório em sentido contrário, como fazem os arts. 1.238 e 1.643 do Código Civil, além do art. 659, § 4º, CPC. De qualquer maneira, todas estas diferenciações não lançam luzes capazes de iluminar, de forma correta e plena, a presunção disposta no art. 16, § 4º, primeira parte da Lei nº 8.213/91. Ali, o legislador apenas dispôs que ao cônjuge, companheiro, filho menor de 21 anos ou inválido ou que possua deficiência mental ou intelectual a dependência econômica é presumida. Não estabeleceu que o instituto previdenciário possa provar o contrário, abrindo, no texto legal, a possibilidade de se utilizar de expressão que conduzisse neste sentido; nem ao menos disse que a prova em contrário é inadmissível ou dispensável, quando então teríamos uma presunção absoluta. Daí a dificuldade já captada pela doutrina no tocante às presunções. Veja que há uma lacuna legislativa que deve ser colmatada pelo intérprete. Devemos, então, colher os ensinamentos do item 1 deste estudo para se chegar à conclusão sobre qual a verdadeira presunção estamos a tratar no referido dispositivo. Ora, sabe-se que o sistema previdenciário preocupa-se com os infortúnios que todos nós estamos propensos a sofrer. Por conta disto, o Poder Público, a partir da ascensão do Welfare State, buscou prover de recursos aqueles que se veem premidos diante de uma situação de infortúnio. Para tanto, a Constituição Federal previu as contingências sociais (art. 201), permitindo que a Lei (principalmente a Lei nº 8.213/91) elegesse as pessoas com maior necessidade de proteção social, promovendo, portanto, o bem-estar social (art. 193, CF), característica marcante do Estado Social, que plasmou os direitos de segunda geração10. Normalmente as pessoas passam a viver em laços afetivos, havendo conjunção de corpos e teto. Mas não basta o amor e o sentimento de união. Despesas existirão e, na maior parte dos casos, os cônjuges ou companheiros, por exemplo, se ajudarão econômica e mutuamente, dividindo despesas do lar. O mesmo ocorre em razão dos menores de 21 anos. Seja por dever constitucional, que proíbe o trabalho do menor (art. 7º, XXXIII), seja por conta de sua inexperiência no mercado de trabalho, estes muitas das vezes dependem da ajuda financeira de seus pais. Mas nem sempre estes casos serão observados na prática.

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9 Cambi (2006, p. 371) oferece extensa lista no Código Civil de 1.916 (arts. 126, 305, 311, 338, 340, 492, 527, 571, 581, 588, parágrafo único, 945, 1.053, 1.136, parágrafo único, 1.171, 1.178, 1.208, 1.250, 1.286, 1.290, parágrafo único, 1.327, 1.442, 1.450, 1.459, 1.527 e 1.669). 10 Vale anotar que parcela da doutrina (DIMOULIS-MARTINS, 2009, p. 28-31. DUARTE, 2011, p. 23-25) prefere o verbete “dimensão” visto que a palavra “geração” nos remete a “algo que se sucede a outro”, sendo que os ditos direitos não apareceram de forma cronológica aos acontecimentos históricos.

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Dito isto, narremos algumas hipóteses para comprovar nossas conclusões mais abaixo. Para tanto, partamos de 3 casos extremos que permitirão uma melhor compreensão. HIPÓTESE 1 – suponhamos que um casal (sem filhos) esteja sob o mesmo teto, sendo que um deles falece. O cônjuge supérstite não tem qualquer tipo de rendimento, nem exerce qualquer atividade laborativa. O cônjuge que faleceu recebia, de sua atividade laborativa, o valor de 1 salário mínimo. HIPÓTESE 2 – imaginemos que exista um casal (sem filhos) que viva sob o mesmo teto, ocasião em que um deles falece. O cônjuge sobrevivente recebe 1 salário mínimo, e o que faleceu também recebia 1 salário mínimo. HIPÓTESE 3 – vislumbramos um casal (sem filhos) que viva sob o mesmo teto. A mulher trabalha numa multinacional e recebe o equivalente a 40 salários mínimos. Seu marido trabalha numa empresa de terceirização de serviços e recebe apenas 1 salário mínimo. Posteriormente, o marido vem a falecer. Não teremos qualquer dificuldade em concluir que nas hipóteses 1 e 2 o cônjuge sobrevivente deverá receber uma pensão por morte. Da hipótese 1 não surge qualquer problema: se um cônjuge não trabalha e se vale para sua sobrevivência dos vencimentos do outro, e provando isto (indício) não há dúvida de que há uma dependência econômica a respeito (presunção)11. Também na hipótese 2 é crível que exista uma dependência econômica de um cônjuge em relação ao outro. Há, sim, uma dependência recíproca e, portanto, é devida, neste caso, a pensão por morte. Contudo, teremos maior dificuldade em admitir o recebimento de pensão por morte pela mulher na hipótese 3. Isto porque a discrepância de rendimentos é muito acentuada entre os casados. E o que faleceu fora exatamente o que recebia bem menos. Podemos dizer que havia uma dependência sentimental ou afetiva neste caso mas nunca uma dependência econômica da mulher em relação ao homem. Conceder uma pensão por morte nestes casos viola flagrantemente os objetivos da Previdência Social de amparar aqueles que necessitam de ajuda em tempos de infortúnio. Por conta disto, advogamos a tese de que a presunção legal estabelecida no art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91 é relativa e, portanto, admite prova em contrário. Tal assertiva é retirada exatamente dos princípios e objetivos da Previdência Social, que cria um sistema protetivo em favor daqueles que não tem condições de prover suas necessidades sociais. Concluindo: na hipótese 3, é possível que a mulher venha a pleitear a pensão por morte caso comprove, apenas, a condição de casada (ou de companheira), se valendo da presunção do art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91. Mas o INSS poderá ilidir esta presunção, demonstrando o recebimento de rendimento do casal (ela, 40 salários mínimos; ele, 1 salário mínimo) e, consequentemente, a inexistência de dependência econômica. Mas vale dizer que é o INSS quem deve demonstrar isto. 11 Digo e faço esta conclusão aqui apenas para fins didáticos, pois a legislação previdenciária, diante da presunção, apenas se satisfaz com a comprovação da prova do casamento, pois, como se viu, a dependência econômica é presumida.

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Presunção absoluta ou relativa? Análise acerca da dependência econômica para recebimento da pensão por morte

Em favor de nossa tese – e retomando o tema do dispositivo legal não ser claro ao dizer se temos uma presunção absoluta ou relativa – vale citar que quando não há clara indicação sobre qual presunção o preceito legal quis se referir, deve-se optar pela presunção relativa: “Contudo, como nem sempre é fácil, pela leitura da fattispecie, saber se uma presunção é absoluta ou relativa, tem-se, como regra, a admissibilidade da prova contrária e, como exceção, a impossibilidade produzir essa prova.” (CAMBI, 2006, p. 371-372)

Num reforço de argumento, vale dizer que toda a doutrina afirma que a pensão por morte é o benefício de pagamento que substitui a remuneração do segurado provedor (MARTINEZ, 2001, p. 450), destinado a suprir ou minimar a falta dos que proviam as necessidades econômicas dos dependentes (ROCHA-BALTAZAR JÚNIOR, 2009, p. 300). Ou seja, sempre há o discurso da carência econômica do leito familiar. Se esta não existe, não há razão de ser para a existência e pagamento deste benefício. Podemos concluir que há uma presunção legal estabelecida no art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91, bastando que o interessado comprove apenas sua condição de dependente (cônjuge, companheiro, filho menor de 21 anos ou inválido ou que possua deficiência mental ou intelectual). Em se provando isto, considerase que existe, por isto mesmo, uma dependência econômica do beneficiário em relação ao instituidor da pensão (presunção). Mas o instituto previdenciário (INSS) poderá comprovar que inexiste dependência econômica, em contraprova a seu encargo.

A posição dos tribunais

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Embora advoguemos a tese de existir a previsão de uma presunção legal relativa no art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91, não há uma posição dominante nos Tribunais Federais do País. Com efeito, tem-se entendido que a dependência econômica é absoluta, não se permitindo ao INSS que se demonstre o contrário. Neste sentido vemos acórdãos não apenas do STJ (5ª Turma; Edcl no REsp. 1.257.398/RS; rel. Des. Conv. Campos Marques; DJe de 2/9/2013) como também dos Tribunais Regionais Federais de 1ª Região (AC 001066353.2013.4.01.3600; Rel. Juiz Fed. Conv. Jamil Rosa de Jesus Oliveira; DJe de 3/12/2014, p. 161), 2ª Região (AC 2007.50.01.010382-1; Rel. Des. Fed. Aluísio Gonçalves de Castro Mendes; DJe 16/7/2010, p. 25/26), 3ª Região (AC 0042421-35.1995.4.03.9999; Rel. Juiz Fed. Conv. Alexandre Sormani; DJe de 19/12/2007), e 5ª Região (AC 2000.05.00.028480-6; Rel. Des. Fed. Petrúcio Ferreira; DJ de 26/4/2002, p. 985). Contudo, sob uma análise mais observadora, vemos que no âmbito do STJ a matéria ainda não se encontra bem sedimentada, havendo entendimento de ser a presunção estabelecida no texto legal absoluta – como declinado supra – bem como relativa (STJ; AgRg nos EDcl no REsp. 1.250.619/RS; Rel. Min. Humberto

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Martins; DJe de 17/12/2012). Por sua vez, apesar de não encontrarmos acórdãos numericamente significativos, verificamos que a cada dia que passa há uma maior permeabilidade em se admitir que a presunção estabelecida no art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91 é relativa e não absoluta. Para tanto, cito os seguintes acórdãos que comungam de tal tese: TRF da 1ª Região; AC 44242-20.2006.4.01.9199; Rel. Juiz Fed. Conv. Francisco Hélio Camelo Ferreira; DJ de 27/4/2011, p. 257; TRF da 2ª Região; REO 2006.51.01.524205-5; Rel. Des. Fed. Abel Gomes; DJ de 5/8/2011; TRF da 3ª Região; AC 0023223-84.2010.4.03.9999; Rel. Des. Fed. Walter do Amaral; DJe de 6/2/2013; TRF da 4ª Região; AC 500335219.2012.4.7110; Rel. Des. Fed. Candido Alfredo Silva Leal Júnior; DJe de 12/12/2013; TRF da 5ª Região; AC 2009.84.00.000487-4; Rel. Des. Fed. Paulo Roberto de Oliveira Lima; DJ de18/9/2009, p. 303.

Conclusão Portanto, entendemos que a presunção estabelecida no art. 16, § 4º da Lei nº 8.213/91 é de natureza relativa (iuris tantum), ou seja, inicialmente é de se estabelecer uma situação de fato favorável ao dependente, presumindose que este necessitava economicamente do instituidor-falecido. Mas o órgão previdenciário (INSS) pode demonstrar, através dos meios de prova permitidos, que esta dependência inexistia, ocasião em que não deverá ser deferida a pensão por morte a uma das pessoas elencadas no art. 16, I, da Lei nº 8.213/91.

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Presunção absoluta ou relativa? Análise acerca da dependência econômica para recebimento da pensão por morte

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Sentenças Aditivas: uma realidade necessária no estado democrático de direito Evandro Pereira Guimarães Ferreira Gomes1 Abel Rafael Soares2 Aparecida Alves Franco 3 Ingrid Luziê Muniz dos Santos 4 Resumo Antes da Constituição Federal de 1988, as constituições não eram vistas como autênticas normas jurídicas. As constituições consagravam direitos, mas estes dependiam quase exclusivamente da boa vontade dos governantes. Com o advento do Estado Democrático de Direito, os direitos sociais ganharam efetividade, uma vez que prega o constitucional artigo 5o, §1o que os direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata. No âmbito do STF têm ocorrido sentenças de caráter aditivo, em especial no mandado de injunção e na ação direta de inconstitucionalidade por omissão. O objetivo deste artigo é mostrar as polêmicas relacionadas às sentenças aditivas. Esse tipo de sentença traz as seguintes indagações: são decisões democráticas? Estaria o Poder Judiciário tomando o lugar do Poder Legislativo? Ora, o próprio STF afirma que o desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto inércia governamental. Se o Estado deixar de adotar medidas necessárias à realização dos preceitos constitucionais, em ordem a torná-los operantes e exequíveis, incidirá em violação negativa da Constituição. Além disso, o legislador não está autorizado a desprezar as exigências que a experiência impõe às condutas humanas, pelo que cabe à jurisprudência atualizar o sentido dos preceitos legais, adaptando aos renovados fatos da vida. Para a preparação deste artigo foi empregada a pesquisa bibliográfica como metodologia e, deste modo, trazer a compreensão de diferentes autores sobre sentenças aditivas. O artigo está dividido nas seguintes sessões: introdução; sentenças aditivas e interpretação conforme à Constituição instrumentos essenciais ao neoconstitucionalismo; sentença aditiva e política; conclusão e referências bibliográficas. Palavras-chave: Mandado de injunção; Ação direta de inconstitucionalidade por omissão; Sentença aditiva; Poder judiciário; Poder legislativo. 1 Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. Diretor Jurídico do Instituto Para o Avanço Científico dos Países do Sul (The Institute for the Scientific Advancement of the South). Advogado. 2 Mestre em Direito Público e Evolução Social pela Universidade Estácio de Sá. 3 Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá. 4 Graduando em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

Sentenças Aditivas: uma realidade necessária no estado democrático de direito

Abstract Before the 1988 Federal Constitution, the constitutions were not seen as authentic legal standards. The constitutions enshrine rights, but these depended almost entirely on the goodwill of the rulers to leave the paper. With the advent of democratic rule of law, social rights gained effectiveness, since the constitutional Article 5, § 1º, preaches that the fundamental rights and guarantees have immediate application. Within the framework ofthe STF decisions with additive character have been handed down, especially in the injunction and the direct action of unconstitutionality by omission. O objetivo deste artigo é mostrar as polêmicas relacionadas às sentenças aditivas. This type of decisions brings the following questions: are democratic decisions? Was the judiciary taking the place of the legislative branch? But the Supreme Court itself states that the disregard of the Constitution may occur either through state action as governmental inertia. If the State fails to adopt measures that are necessary to achieve the constitutional precepts, in order to make them operative and enforceable, it will incur in negative violation of the Constitution. Moreover, the legislature is not authorized to disregard the requirements that experience imposes human behavior, so it is up to the judge-made law to update the meaning of legal rules, adapting to the renewed facts of life. For the preparation of this article was used as bibliographical research methodology and thus bring the understanding of different authors on additive sentences. The article is divided into the following sections: introduction; additive sentences and interpreting the Constitution as essential to neoconstitutionalism instruments; additive and sentencing policy; conclusion and references. Keywords: Injunction; Direct action of unconstitutionality by omission; Additive sentence; Judiciary power; Legislative power.

Introdução

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Até 1988, o Brasil vivia sob a égide do Estado Liberal, que impunha ao Estado deveres de abstenção, ou seja, de não intervir na livre iniciativa individual. Com o advento da Constituição Cidadã, instituiu-se o Estado Democrático de Direito. Nesta modalidade, o Estado não se contenta com a mera adaptação à realidade, mas em transformá-la. Os objetivos inseridos na Constituição, assim como normas programáticas, como os direitos sociais, impõem ao Estado prestações positivas. Contudo, muitas vezes o legislador fica inerte no sentido de regulamentar uma norma programática, por exemplo, impedindo o exercício do direito previsto. O mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão são instrumentos processuais de jurisdição constitucional importantes para a concretização de direitos previstos. Assim, neste trabalho abordaremos esses instrumentos para então adentrarmos ao cerne da pesquisa, que tem como objetivo explicar as sentenças aditivas, mostrar seu conceito, críticas e elogios que o instituto recebe e a sugestão de como elas poderiam ingressar no ordenamento jurídico sem causar (tantas) polêmicas, e assim, trazer uma visão prospectiva sobre este tipo de sentença.

Evandro Pereira Guimarães Ferreira Gomes, Abel Rafael Soares, Aparecida Alves Franco e Ingrid Luziê Muniz dos Santos

Reitera-se que para a realização desta pesquisa foi utilizado, em especial, o levantamento bibliográfico como metodologia, buscando o entendimento de diversos autores para colaborar com a riqueza deste artigo, que está dividido da seguinte forma: introdução; sentenças aditivas e interpretação conforme a Constituição; instrumentos essenciais ao neoconstitucionalismo; sentença aditiva e política; conclusão e referências bibliográficas.

Instrumentos essenciais ao neoconstitucionalismo Antes do advento da Constituição Federal de 1988, as constituições não eram vistas como autênticas normas jurídicas, “não passando, muitas vezes, de meras fachadas. As constituições eram pródigas na consagração de direitos, mas estes dependiam quase exclusivamente da boa vontade dos governantes para saírem do papel, o que, normalmente, não ocorria.”5 Antes de 1988, o Brasil vivia o Estado Liberal de Direito, onde ao Estado apenas cabia o estabelecimento de instrumentos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvimento das pretensões individuais, ao lado das restrições impostas à sua atuação positiva. Neste tipo de Estado, privilegiavam-se as liberdades negativas, através da regulação restritiva da atividade estatal.6 A transformação do Estado Mínimo para Estado Social importou na transformação do perfil do modelo liberal, no qual à autoridade pública incumbia apenas à manutenção da paz e segurança. A partir de meados do século XIX houve uma necessária mudança de postura, uma vez que o Estado passou a assumir a responsabilidade por prestações positivas e públicas, a serem asseguradas ao cidadão.7 O preâmbulo da atual Constituição Federal instituiu o Estado Democrático de Direito, o qual “destina-se a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais” assim como o bem-estar, desenvolvimento, igualdade e justiça social. Este modelo de Estado tem, conforme STRECK, “um conteúdo transformador da realidade, não se restringindo, como o Estado Social, a uma adaptação melhorada das condições sociais de existência. Seu conteúdo ultrapassa o aspecto material da concretização de uma vida digna do homem e passa a agir como fomentador da participação pública.”8 Com o advento do Estado Democrático de Direito, os direitos sociais fundamentais ganharam efetividade, uma vez que prega o constitucional artigo 5o, §1o que os direitos e garantias fundamentais possuem aplicação imediata.9 5 SARMENTO, Daniel. Por um constitucionalismo inclusivo: história constitucional brasileira, Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 245-6. 6 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência política e teoria geral do Estado. 4. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, pp. 91-6. 7 Ibidem, p. 57. 8 Ibidem, p. 93. 9 § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.

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Assim, a interpretação da Constituição, neste Estado, considera os valores a serem realizados, exsurgentes do contrato social.10 De acordo com NOVAIS, “os direitos fundamentais não estão na livre disponibilidade dos titulares do poder político e não estão à mercê de preconceitos ideológicos ou de promessas eleitorais.”11 A atual Constituição Federal brasileira é nitidamente programática, e isso fica evidente quando da leitura do artigo 6o, que redireciona para os Títulos VII (Da ordem Econômica) e VIII (Da Ordem Social), nos quais se alojam os programas, as tarefas e planos que ao Estado, em conjunto com a sociedade, incumbe desenvolver.12 FERRAZ JUNIOR, inclusive, aponta que a Constituição Federal de 1988 é a mais programática de todas as constituições brasileiras que existiram.13 Todo esse caráter programático, relacionado com a aplicabilidade imediata dos direitos fundamentais, exige uma prestação positiva por parte do Estado e, por isso, instrumentos como o mandado de injunção e ação direta de inconstitucionalidade por omissão foram inseridos no corpo constitucional, visto que, conforme BATOCHIO, são instrumentos processuais voltados à concretização dos princípios e objetivos intrínsecos à nova ordem jurídica, combatendo o fenômeno da inércia na regulamentação de normas constitucionais.14 Uma das ações em que tem ocorrido sentença aditiva é o mandado de injunção, previsto no artigo 5o, LXXI da Constituição Federal15, que antes de 2007 se limitava a declarar a ausência de norma regulamentadora. Contudo, o STF, desde 2007 mudou sua jurisprudência que conferia ao mandado de injunção efeitos meramente declaratórios. Atualmente, o STF não se limita a apenas declarar a ausência da norma, e sim adianta-se em suprir a falta desta. O STF se posicionava no sentido de que não podia “obrigar o legislador a legislar”, sob pena de violar o princípio da separação de poderes. Com isso, a decisão em mandado de injunção era meramente declaratória, ou seja, apenas reconhecia-se a falta da lei mas nada se fazia para resolver essa situação. Devido a esta demora, o STF passou a entender que a decisão em Mandado de Injunção tem natureza de sentença aditiva e, deste modo, resolvendo o caso concreto.

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10 STRECK, Lênio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. 2.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 168. 11 NOVAIS, Jorge Reis. Os princípios constitucionais estruturantes da República Portuguesa. Lisboa: Coimbra Editora, 2006, p. 375. 12 PUCCINELLI JÚNIOR, André. A omissão legislativa inconstitucional e a responsabilidade do Estado legislador. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 33. 13 FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Constituição de 1988: legitimidade, vigência e eficácia, supremacia. São Paulo: Atlas, 1989, p. 59. 14 BATOCHIO, Ligia Lamana. A interpretação do STF quanto aos efeitos da decisão no mandado de injunção. In.: COUTINHO, Diogo R.; VOJVODIC, Adriana M. Jurisdição constitucional: Como decide o STF? São Paulo: Malheiros, 2009, p. 162. 15 Artigo 5o, LXXI: Conceder-se-á mandado de injunção sempre que a falta da norma regulamentadora torne inviável o exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania.

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Esse entendimento restou firmado no informativo nº 485 de 2007 do STF.16 Nas palavras do Ministro MELLO, o provimento judicial em mandado de injunção deve viabilizar o exercício, em si, do direito, porque, do contrário, “não seria mandado de injunção e nem de uma sentença harmônica com o instituto, mas de uma sentença pertinente à ação direta de inconstitucionalidade por omissão.”17 Na doutrina, leciona PIOVESAN que “no mandado de injunção, ao enfrentar lacunas inconstitucionais, cabe ao Poder Judiciário criar normas jurídicas individuais válidas para o caso concreto, efetuando o preenchimento de lacunas. Assim, a decisão preenche, mas não elimina a lacuna do sistema jurídico.”18 Desse modo, no mandando de injunção, tanto a jurisprudência quanto a doutrina estão se tornando receptivas às sentenças com efeitos aditivos. Em contrapartida, na ação direta de inconstitucionalidade por omissão (como o próprio nome já diz, é relacionado à omissão tal qual o mandado de injunção), a sentença possui eficácia mandamental, “pois assume as vestes de uma ordem judicial dirigida a outro órgão do Estado, em geral, o Poder Legislativo, a fim de que este adote as medidas necessárias para que a norma constitucional prevaleça em toda a sua pujança.”19 Desse modo, a princípio, sentenças oriundas de ação direta de inconstitucionalidade por omissão dificilmente terão caráter aditivo, uma vez que apenas reconhecerão a omissão e notificarão o órgão competente de regulamentar a norma dentro do prazo de 30 dias. Contudo, PUCCINELLI JUNIOR entende que, em vez de instituir um regime de comunicação formal, seria mais apropriado reservar ao STF competência para expedir regulamentos provisórios com vigência assegurada, enquanto subsistisse a inércia legislativa. Essa, inclusive, era a ideia originalmente defendida na Assembleia Nacional Constituinte entre os anos de 1987-1998. “Tanto é que só a partir do segundo substitutivo apresentado pela Comissão de Sistematização se retirou tal competência normativa do Supremo Tribunal Federal, antes prevista no artigo 149, §2o, do Projeto de Constituição.”20 16 “O Tribunal concluiu julgamento de três mandados de injunção impetrados, respectivamente, pelo Sindicato dos Servidores Policiais Civis do Espírito Santo SINDIPOL, pelo Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Município de João Pessoa - SINTEM, e pelo Sindicato dos Trabalhadores do Poder Judiciário do Estado do Pará - SINJEP, em que se pretendia fosse garantido aos seus associados o exercício do direito de greve previsto no art. 37, VII, da CF (“Art. 37. ... VII - o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei específica;”) — v. Informativos 308, 430, 462, 468, 480 e 484. O Tribunal, por maioria, conheceu dos mandados de injunção e propôs a solução para a omissão legislativa com a aplicação, no que couber, da Lei 7.783/89, que dispõe sobre o exercício do direito de greve na iniciativa privada. 17 STF. Mandado de Injunção 232-RJ. Voto proferido pelo Ministro Marco Aurélio de Mello. 18 PIOVESAN, Flávia. Proteção judicial contra omissões legislativas: ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mandado de injunção. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 159. 19 PUCCINELLI JUNIOR. Op. cit., p. 157. 20 Ibidem, p. 159.

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SILVA complementa o raciocínio do autor, para quem a retirada desta competência foi falta de bom senso, pois a sentença que reconhecesse a inconstitucionalidade por omissão já poderia dispor normativamente sobre a matéria até que a omissão fosse sanada pelo Legislativo.21 Outra autora que entende que o STF deve proferir decisões aditivas é PIOVESAN, que assim assinala: A título de proposição, sustenta-se que mais conveniente e eficaz seria se o STF declarasse inconstitucional a omissão e fixasse prazo para que o legislador omisso suprisse a omissão, no sentido de conferir efetividade à norma constitucional. O prazo poderia corresponder ao prazo da apreciação em “regime de urgência” que, nos termos do artigo 64, §2o é de 45 dias. Finalizado o prazo, sem qualquer providência adotada, poderia o próprio Supremo, a depender do caso, dispor normativamente da matéria, a título provisório, até que o legislador viesse a elaborar a norma faltante. Esta decisão normativa do STF, de caráter temporário, viabilizaria, desde logo, a concretização do preceito constitucional.22

Enfim, percebe-se que a doutrina entende que a sentença aditiva, ainda que provisória, em ação direta de inconstitucionalidade por omissão traria celeridade e acabaria com uma burocracia, que não é desnecessária, mas que se refere ao respeito às atribuições inerentes aos Poderes democraticamente eleitos. No entanto a polêmica reside na seguinte indagação: Será que as decisões aditivas proferidas pelo Poder Judiciário podem ser consideradas democráticas? Pois bem, para ROTHENBURG, a jurisdição constitucional não traduz uma manifestação direta da vontade popular, basicamente pela razão de os integrantes dos órgãos competentes para o controle de constitucionalidade (e os juízes em geral) não serem eleitos diretamente. “Contudo, o controle de constitucionalidade não resta alheio à legitimidade democrática expressa de modo direto e por maioria; o que importa é remeter essa legitimidade para o momento adequado, que é o originário.”23 Em outras palavras, apesar de juízes e ministros não serem votados majoritariamente para o ingresso na carreira, a Constituição Federal, essa sim elaborada por parlamentares eleitos pelo povo, permite esse tipo de ingresso, logo, ainda que indiretamente, as decisões proferidas são democráticas, inclusive as aditivas. Mas o que vem a ser sentença aditiva? Isso responderemos no item a seguir.

Sentenças aditivas e interpretação conforme a Constituição Um dos métodos de hermenêutica das leis é o da “interpretação conforme à Constituição”, logo, não se trata de método de interpretação desta. De acordo com TAVARES, “quando uma norma infraconstitucional contar com

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21 SILVA. José Afonso da. Curso de Direito Constitucional positivo. 23a ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 160. 22 PIOVESAN. Op. cit., p. 48. 23 ROTHENBURG, Walter Claudius. Inconstitucionalidade por omissão e troca de sujeito: a perda de competência como sanção à inconstitucionalidade por omissão. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 112.

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mais de uma interpretação possível, uma pela constitucionalidade e outra pela inconstitucionalidade, o intérprete deverá sempre preferir a interpretação que consagre, ao final, a constitucionalidade.”24 Isso acontece porque as leis, em princípio, são consideradas expressões da vontade soberana do povo, que elegeu livremente os legisladores e, desse modo, devem ser preservadas pelo Poder Judiciário. No caso da mera escolha da interpretação mais próxima da constitucionalidade, trata-se da “interpretação conforme em sentido estrito”. Em sentido amplo, a interpretação conforme permite que o magistrado altere o sentido da norma. Eis a relação entre este método de hermenêutica constitucional e sentenças aditivas. Segundo BRUST, “tendo como ponto de partida a interpretação conforme, tomando-a em um sentido mais amplo, o julgador tem condições de ir mais além e produzir sentenças que afetam o próprio conteúdo normativo complexo do preceito, reduzindo-o, aumentando-o e, até mesmo, substituindo-o.”25 BONSAGLIA entende que a interpretação conforme a Constituição é o ponto de partida para o órgão judicial modificar a norma em seu conteúdo, podendo até mesmo acrescer-lhe uma regra.26 COELHO explica este princípio da seguinte forma: Com efeito, ao recomendar que os aplicadores da constituição, em face de normas infraconstitucionais de múltiplos significados, escolham o sentido que as torne constitucionais e não aquele que resulte na sua declaração de inconstitucionalidade, esse cânone interpretativo ao mesmo tempo em que valoriza o trabalho legislativo, aproveitando ou conservando as leis, previne o surgimento de conflitos, que se tornariam perigosos caso os juízes, sem o devido cuidado, se pusessem a invalidar os atos legislativos.27

Para evitar declarar determinada norma inconstitucional o juiz constitucional profere sentenças aditivas, nas quais, segundo NOBRE JUNIOR, a estrutura literal da norma combatida se mantém inalterada, mas o órgão de jurisdição constitucional, criativamente, acrescenta àquela componente normativo, vital para que seja preservada sua conciliação com a Lei Fundamental.28 24 TAVARES, André Ramos. Curso de Direito Constitucional. 6 ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 86. 25 BRUST, Leo. A interpretação conforme a constituição e as sentenças manipulativas. http:// www.scielo.br/scielo.php?pid=S1808-24322009000200014&script=sci_arttext. Acesso em 15 de novembro de 2012. 26 BONSAGLIA, Alexandre. Sentenças aditivas na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: http://www.sbdp.org.br/arquivos/monografia/162_ Monografia%20Alexand re%20Bonsaglia.pdf. Acesso em 14 de novembro de 2012. 27 COELHO, Inocêncio Mártirez. Interpretação constitucional. 2. ed. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2003, p. 137-138. 28 NOBRE JUNIOR, Edilson Pereira. Sentenças aditivas e o mito do legislador negativo. Disponível em: http://www.direitopublico.idp.edu.br/index.php/direitopublico/article/ viewFile/415/32 8. Acesso em 09 de novembro de 2012.

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Segundo TAVEIRA, sentenças aditivas são técnicas decisórias voltadas para sanar omissões parciais e relativas, quando a medida existe, mas sua atuação é ineficiente, não podendo atuar em omissões totais, que é quando não há lei sobre o assunto.29 NOBRE JUNIOR explica que “sua ocorrência coincide com as hipóteses de omissão parcial, justamente porque permitem o acréscimo do necessário para tornar a norma impugnada concordante com os mandamentos constitucionais.”30 STEDELE traz o seguinte conceito de sentença aditiva: Decisão que, reconhecendo a inconstitucionalidade de uma lei, adita e adequa-lhe à interpretação da constituição. Em verdade a sentença aditiva manipula a norma que reputa inconstitucional, por insuficiência do seu enunciado, estendendo o seu alcance, ou seja, ampliando o seu âmbito de incidência, com o escopo de torná-la constitucional.31

Ora, o próprio STF já afirmou que o desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. “Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exequíveis, incidirá em violação negativa do texto constitucional.”32 Existem correntes favoráveis às sentenças aditivas, as quais entendem que elas se justificam pelas seguintes razões: a) Necessidade de concretizar a Constituição tendo em vista a reparação imediata de omissões e de lacunas cuja subsistência se revele ofensiva para a esfera dos direitos e garantias fundamentais; b) Conservação relativa dos atos; c) Preenchimento de vazios e lacunas técnicas e axiológicas mediante soluções integrativas lógicas ou critérios obrigatoriamente determinados pela Constituição; d) Consolidação pela prática jurisprudencial.33

O fundamento das sentenças aditivas é o já explicado princípio da interpretação conforme a Constituição. Inclusive, essas sentenças são formas de concretização do princípio da economia processual, visto que o Tribunal repara, instantaneamente, a inconstitucionalidade gerada por certas omissões e

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29 ASSOCIAÇÃO DOS MAGISTRADOS DO ESTADO DE GOIÁS. A sentença aditiva atua para suprir omissões da legislação. Disponível em: http://asmego.jusbrasil.com.br/ noticias/10014883 7/a-sentenca-aditiva-atua-para-suprir-omissoes-da-legislacao. Acesso em 19 de novembro de 2009. 30 Ibidem. 31 STEDELE, Vinícius Maciel. A sentença aditiva como método de afirmação da constitucionalidade. Disponível em: http://www.leandropaulsen.com/site/textos_detalhe. asp?ID= 33. Acesso em 09 de novembro de 2012. 32 DIÁRIO DA JUSTIÇA. 20.09.1996, p. 34531. Apud. VIANNA, Luiz Werneck; CARVALHO, Maria Alice Resende de; MELO, Manuel Palacios Cunha, et. al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 141. 33 MORAIS, Carlos Blanco; CASSEB, Paulo A.; MONTELOBO, Sofia; XAVIER, Taciana. As sentenças intermédias da Justiça Constitucional. Curso de Investigação da Faculdade de Direito de Lisboa, 2009, pp. 86-90.

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lacunas, através do uso de princípios constitucionais ou até mesmo pelo recurso a analogia visando reparar “injustiças constitucionais.” Este tipo de sentença é consequência necessária de um juízo de inconstitucionalidade, por força do qual o Tribunal Constitucional deva proceder a uma extensão necessária por razões lógicas. “Essa atuação seria por estado de necessidade, evitando que lacunas legislativas trouxessem consequências onerosas para as pessoas. Essa atitude seria menos custosa do que a inconstitucionalidade da norma.”34 A corrente contra esse tipo de sentença traz os seguintes argumentos contrários: a) Usurpação de poder; b) Incompetência para integrar vazios normativos e lacunas e emprestar a essa integração força obrigatória geral; c) Subversão de um princípio de preferência pelo legislador e exercido derivado da fiscalização da inconstitucionalidade por omissão através de um processo de fiscalização de inconstitucionalidade por ação; d) Custos financeiros das decisões aditivas de prestação e violação do princípio do equilíbrio orçamental.35

A usurpação de poder se refere ao fato de que o Judiciário, ao suplementar as normas, estaria tomando o lugar do legislador, pois estaria sanando vícios geradores de inconstitucionalidade, o que lhe é vedado tendo em vista a separação de poderes. Para PUCCINELLI JÚNIOR, dependendo da forma como o juiz decide o caso concreto, não estará invadindo a esfera do Poder Legislativo. Para tal, é necessário que aplique uma norma que exista. A respeito do direito à saúde, o autor cita como exemplo a imposição de custeio de internações clínicas e explica que nesta hipótese, estaria o juiz determinando uma obrigação com assento no texto constitucional, oriunda do princípio do integral atendimento médico-hospitalar (artigo 158, II, da Constituição Federal).36 Assim, o Judiciário não estaria legislando, mas apenas reproduzindo um preceito constitucional de aplicação imediata. De acordo com BLANCO, et al, conferir força obrigatória à parte aditiva da sentença seria investir a regra criada pelo Tribunal Constitucional numa potência superior a da própria lei.37 SCHMITT inclusive, já entendia que “a decisão sobre a constitucionalidade de leis e a anulação de leis inconstitucionais por um colégio de homens independentes, em processo litigioso, não seria jurisdicional.”38 KELSEN, entretanto, explica: Tal argumento parte do pressuposto errôneo de que entre funções jurisdicionais e funções políticas existiria uma contradição essencial, e que a decisão sobre a constitucionalidade de leis e a anulação de leis 34 Ibidem, p. 88. 35 Ibidem, pp. 90-93. 36 PUCCINELLI JUNIOR. Op. cit., p. 86. 37 MORAIS. Op. cit., p. 91. 38 SCHMITT, apud KELSEN.

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inconstitucionais seria um ato político, donde se deduz que tal atividade já não seria propriamente jurisdicional. Tal concepção é falsa porque pressupõe que o exercício do poder esteja encerrado dentro do processo legislativo. Não se vê, ou não se quer ver, que ele tem sua continuação ou até, talvez, seu real início na jurisdição.39

Isto é, percebe-se que as sentenças aditivas, ao ver de Hans Kelsen, não significam usurpação de poder, mas sim continuidade do Poder Legislativo. HABERMAS não concorda com o ativismo judicial (e consequentemente, com as sentenças aditivas), pois o Direito estaria invadindo a sociedade e a política.40 Para ele, o caráter vinculante relacionado às decisões proferidas pelas Cortes constitucionais ignora o pluralismo de valores das democracias contemporâneas. Eis suas palavras: “o Tribunal Constitucional deve ficar limitado à tarefa de compreensão procedimental da Constituição, isto é, limitando-se a proteger um processo de criação democrática do Direito. O Tribunal não deve ser um guardião de uma suposta ordem suprapositiva de valores substanciais.”41 J. H. ELY concorda com HABERMAS, pois entende que “o tribunal constitucional só pode conservar sua imparcialidade se resistir à tentação de preencher seu espaço de interpretação com juízos de valores morais”42 Entretanto, as visões desses autores são frágeis sob a perspectiva deste artigo à realidade do neoconstitucionalismo, visto que o Neoconstitucionalismo está relacionado à reaproximação da moral com o Direito, contudo a utilização de princípios jurídicos ou demais dimensões da moral para a conformação do Direito não é exclusividade do Poder Judiciário, podendo ser aplicada pelos demais Poderes, inclusive, podendo ser bem promovida pelo Poder Legislativo, considerando a ampla possibilidade de participação de todos os setores sociais no processo de formação das leis. As sentenças aditivas, neste novo cenário, têm estreita relação com a política. Assim, passaremos ao estudo disso no próximo e último item deste trabalho.

Sentença Aditiva e Política De fato, as sentenças aditivas podem acarretar algumas situações delicadas, como a implementação de direitos sociais de modo não previsto no orçamento. Há quem entenda que se trata do papel de “legislador negativo” desempenhado pelo Judiciário, contudo, afirma SCAFF que “afasta-se a possibilidade de implementação de direitos sociais na hipótese de a Justiça Constitucional desempenhar o papel de legislador negativo, pois estes casos

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39 KELSEN, Hans. Jurisdição constitucional. Traduzido por Alexandre Krug. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 250-1. 40 HABERMAS, Jurgen. Direito e Democracia: entre a facticidade e a validade. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 2003. p. 245. 41 Ibidem, p. 190. 42 ELY, J. H. Apud. STRECK. Op. cit., p. 160.

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usualmente se apresentam ’sem custos’”.43 Em outras palavras, o autor entende que o STF estaria atuando como legislador positivo. BONSAGLIA não concorda com o autor, pois, para ele, a Corte quando profere sentença aditiva não está inovando no ordenamento jurídico, produzindo uma nova regra, mas apenas criando uma regra nos parâmetros do ordenamento pautando-se pelo caso concreto, refutando a alegação de que a Corte desempenha função de legislador positivo.44 Em 1993, o próprio STF afirmou sobre a impossibilidade de atuar como legislador positivo: Não só a Corte está restrita a examinar os dispositivos ou expressões cuja inconstitucionalidade for arguida, mas também não pode ela declarar a inconstitucionalidade parcial que mude o sentido e o alcance da norma impugnada. Se assim não fosse, a Corte se transformaria em legislador positivo, uma vez que, com a supressão da expressão atacada, estaria modificando o sentido e o alcance da norma impugnada. E o controle de constitucionalidade dos atos normativos só lhe permite agir como legislador negativo.45

PUCCINELLI JÚNIOR tem uma visão contrária à SCAFF a respeito do impacto das sentenças aditivas, explicando que estas não são capazes de produzir um grave impacto no orçamento do Estado. 1a) O próprio orçamento pode conter rubrica específica para cobrir gastos dessa natureza; 2a) O orçamento público é maleável, sendo absolutamente lícito remanejar recursos oriundos de outras fontes, como, por exemplo, aqueles destinados a campanhas publicitárias, para cobrir despesas adicionais na área de saúde; 3o) Ao prolatar uma decisão desse feitio, o magistrado não exaure o espaço de livre opção legislativa ou administrativa, limitando-se a apontar uma finalidade social a ser perseguida, relegando aos gestores públicos a eleição dos meios mais oportunos e convenientes para atingi-la.46

Essa preocupação em agir como legislador positivo ocorre, especialmente, no controle de constitucionalidade difuso, uma vez que pela via de controle concentrado (ADIPO), poderia o STF dar ciência ao legislativo que havia uma lacuna legal a ser preenchida. SCAFF assevera que, por diversas vezes, a Justiça Constitucional se atribui o papel de Legislador Positivo, “e isso ocorre mais frequentemente no Brasil, quando se trata da implementação de direitos sociais, sendo usual a edição de 43 SCAFF, Fernando Facury. Sentenças aditivas, direitos sociais e reserva do possível. In.: SARLET, Ingo Wolgang (coord.). Direitos Fundamentais: orçamento e reserva do possível. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 152. 44 BONSAGLIA. Op. cit., p. 25. 45 STF, ADI 896-DF. Relator Ministro Moreira Alves. 46 PUCCINELLI JÚNIOR. Op. cit., p. 86.

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sentenças aditivas.”47 Um exemplo disso é a postura que o STF vem adotando em relação ao direito à saúde. De acordo com o artigo 196 da Constituição Federal, a saúde é assegurada através de política social e econômica. Contudo, o STF, em controle difuso de constitucionalidade, vem interpretando que “a saúde é um direito que pode ser gozado diretamente por cada indivíduo, e não através da implementação de política pública”48 SCAFF concluiu isso com base no estudo de algumas decisões judiciais, dentre elas o deferimento de um tratamento experimental, não reconhecido como válido pelo Sistema Único de Saúde. Essa decisão colocou em risco a saúde de milhares de doentes que dependem de tratamento inadiável, em razão dos limitados recursos financeiros estabelecidos para os programas e políticas públicas de atendimento à população universalmente considerada. Para o autor, “proferir sentenças aditivas sob o impacto da pressão dos fatos, mesmo que dos fatos sociais mais tristes, como a possibilidade da perda de uma vida, não é papel do Judiciário.”49 BLANCO, et al., entende que sentenças aditivas não são legítimas quando transforma o intérprete jurisdicional numa “câmara-de-revisão constitucional” supostamente mais apta do que o legislador constitucional para predizer o futuro com os supostos valores que, no seu entender, devem ser adotados pela maioria.50 Para ele, a sentença aditiva que poderia ser considerada legítima é aquela que descodifica conceitos jurídicos indeterminados contidos na Constituição, de acordo com os métodos científicos de interpretação jurídica.51 KELSEN entende que a opinião de que apenas a legislação seria política, mas não a jurisdição, a quem cabe apelas a aplicar o que a primeira cria, é errada. Na medida em que o legislador autoriza o juiz a avaliar, dentro de certos limites, interesses contrastantes entre si, e decidir conflitos em favor de um e de outro, está lhe conferindo um poder de criação do direito, e portanto um poder que dá à função judiciária o mesmo caráter político que possui, ainda que em maior medida, a legislação. Entre o caráter político da legislação e o da jurisdição há apenas uma diferença quantitativa, não qualitativa.52

Em síntese, esclarece BARROSO, “embora resulte de um impulso político, que deflagra o poder constituinte originário, a Constituição, uma vez posta em vigência, é um documento jurídico”, e suas normas “tenham caráter imediato ou prospectivo, não são opiniões, meras aspirações ou plataforma política, mas preceitos de observância compulsória.”53

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47 SCAFF. Op. cit., p. 146. 48 Ibidem, p. 146. 49 Ibidem, p. 152 50 MORAIS. Op. cit., p. 94. 51 Ibidem, p. 99. 52 KELSEN. Op. cit., p. 251. 53 BARROSO, Luis Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 73.

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Claro, ser a favor de sentenças aditivas não significa apoiar que o Supremo as utilize em todo e qualquer caso concreto, pois existem situações que, apesar de omissão, o legislador é insubstituível. PIOVESAN exemplifica esse tipo de situação, entendendo que o STF não poderia dispor normativamente quando o que está em pauta são “normas de eficácia limitada do tipo institutivo (exemplos: artigo 134, parágrafo único, referente à Defensoria); as normas relativas à elaboração de Códigos (artigo 48, ADCT, referente à elaboração do Código de Defesa do Consumidor), dentre outras.”54 Em outras palavras, a autora entende que haveria de distinguir-se o dever constitucional de legislar, suscetível de complementação ou suprimento, da exigência insuprível na via judicial, que requer a intervenção insubstituível do legislador. PUCCINELLI JÚNIOR entende que a solução para acabar com a polêmica a respeito das sentenças aditivas seria uma emenda constitucional que atribuísse poderes normativos ao STF, que não feriria ao princípio da separação dos poderes previsto no artigo 60, § 4o, III da Constituição Federal pelas seguintes razões: I- Hoje referido princípio não apregoa um apartheid radical, mas impõe uma nova forma de relacionamento entre os Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, onde cada órgão estatal fiscaliza a atuação de outro; II- a proposta concilia os princípios da separação dos podres e da supremacia constitucional, pois inicialmente concede ao legislador prazo razoável para adotar as providências cabíveis, limitando-se a autorizar o STF a expedir normas provisoriamente somente quando a omissão persistir após o decurso deste lapso temporal; III- assim procedendo, o Supremo não se arroga de poderes legislativos, mas elimina as lacunas inconstitucionais da ordem jurídica, atuando como legítimo guardião da Constituição Federal nos termos do artigo 102, caput55; IV- Se após a Emenda Constitucional nº 45/2004, atribuiu-se competência ao Supremo para aprovar súmulas vinculantes em relação aos demais órgãos do Judiciário e à Administração Pública em geral (artigo 103-A), com mais razão se justifica a extensão de poderes para garantir o efetivo cumprimento do programa constitucional paralisado em face da omissão legislativa.

Essa sugestão faz-se necessária porque a inconstitucionalidade de uma norma traz implicações complexas e, muitas vezes, prejudiciais à sociedade. Daí a necessidade do desenvolvimento de novas técnicas de decisão judicial, como a efetiva implementação das decisões aditivas. Por fim, para finalizar este trabalho, vale trazer a tona o entendimento de CLÈVE. Segundo o autor, o legislador não está autorizado a “desprezar as exigências e desafios que a experiência vai impondo às condutas humanas e às categorias jurídicas, pelo que cabe à jurisprudência atualizar o sentido dos preceitos legais e a utilidade das formulações teóricas, adaptando aos renovados fatos que a vida oferece todos os dias.”56 54 PIOVESAN. Op. cit., p. 48. 55 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: 56 CLÉVE, Clèmerson M. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro.

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Sentenças Aditivas: uma realidade necessária no estado democrático de direito

Considerações finais O neoconstitucionalismo teve diversos efeitos, dentre eles, o da força normativa da Constituição, que, da ausência de importância, passou ao apogeu. Além disso, a instituição do Estado Democrático de Direito, que não se conforma com a mera adaptação à realidade ou à não violar liberdades individuais, e sim em transformar, perquirindo objetivos relacionados à dignidade humana, fez com que o texto constitucional não ficasse à mercê da boa vontade do legislador, prova disso é o mandado de injunção e a ação direta de inconstitucionalidade por omissão. As decisões proferidas em virtude de tais ações permitem que o magistrado, diante de uma norma que não está regulamentada, o regulamente através da aplicação de uma norma já existente, o que refuta a ideia de que o Supremo Tribunal Federal estaria agindo como um legislador positivo, uma vez que ele não cria leis, mas aplica outra por analogia. Desse modo, também, refuta-se a ideia de que as sentenças aditivas seriam uma usurpação do Poder Legislativo pelo Judiciário. As sentenças aditivas têm sua importância no atual ordenamento jurídico decorrente do neoconstitucionalismo. A inclusão de direitos fundamentais sociais com aplicabilidade imediata acarretou a judicialização da política e sentenças aditivas estão intimamente ligadas a este fenômeno. Realmente sentenças aditivas causam impactos diante da reserva do possível e do orçamento, entretanto, em um país cuja Constituição que prega a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República brasileira, é inviável, nos dias de hoje, se contentar com um Poder Judiciário que se limita apenas declarar a omissão legislativa. Ademais, seria de grande importância o advento de uma Emenda Constitucional que dê ao Judiciário o poder de proferir sentenças aditivas, ainda que temporárias, até que o Poder Legislativo supra a omissão, tal como foi a ideia da Assembleia Constituinte.

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Os direitos fundamentais e o assédio moral nas relações humanas Maria Célia Ferreira de Rezende1

Resumo Este artigo objetiva demonstrar o dilema e o avanço dos Direitos Fundamentais, privilegiando o exame de um fattispecie – assédio moral nas relações humanas e suas sérias implicações na saúde do assediado e na paz social. Analisar-se-á o fenômeno nas relações de casais, nas relações escolares e nas relações de trabalho, onde o fenômeno deixa marcas indeléveis e muito embora venha tendo em alguma visibilidade pela comunidade jurídica, ainda não mereceu do legislador regras de prevenção e punição efetiva, como forma de minimizar o sofrimento do assediado e a promover a saúde nos ambientes familiares, escolares e de trabalho. Palavras-chave: Direitos Fundamentais; Assédio moral nas relações humanas. Abstract This article aims to demonstrate the dilemma and advancement of fundamental rights, giving priority to take a fattispecie - moral harassment in human relations and its serious implications for the health of the harassed and social peace. It will analyze the phenomenon in couples relationships, in school relations and labor relations, where the phenomenon leaves indelible marks, although some come with a visibility by the legal community, have not received the legislative rules for the prevention and effective punishment as a way to minimize the suffering of the besieged and to promote health in the family, school and work. Keywords: Fundamental rights; Moral harassment in human relations.

Introdução Pode-se afirmar que os Direitos Fundamentais formam um sistema de normas constitutivas, de reconhecimento e de proteção de valores, bens jurídicos e interesses, ou seja, de garantias essenciais às pessoas integradas na constituição de um Estado territorial concreto. Contudo, este sistema de Direitos Fundamentais é incompleto e heterogêneo. Abriga normas de estrutura e funções variadas, que ora se completam ora colidem. A Constituição brasileira, tendo em vista o titular do direito de uma perspectiva 1 Mestre em Direito pela UNESA-RJ, Pós-graduada em Direito Tributário, pela Fundação Getúlio Vargas, RJ, Pós-graduada em Direito do Trabalho pela UNESARJ, Professora Adjunta da UNESA do Curso de Pós-graduação no Curso de Direito, Professora da UNESA dos Cursos de Graduação Presencial e EAD, Professora Convidada da EMERJ-Escola da Magistratura do RJ, Membro Integrante da Banca para ingresso na OAB-RJ- 2004-2006, Palestrante e Advogada.

Os direitos fundamentais e o assédio moral nas relações humanas

quantitativa intrínseca, distingue os direitos individuais e coletivos, e solidificou a promoção e manutenção da dignidade da pessoa humana. Assim, fica claro que na construção dos direitos fundamentais, torna-se evidente a percepção de que o totalitarismo rompe com a tradição construída ao longo dos séculos, pelo princípio ético de tomar o ser humano como valor-fonte da experiência jurídica2. Em que pese os avanços dos direitos fundamentais e a visibilidade jurídica e social do assédio moral, nosso legislador pátrio ainda dele não ocupou, embora de entre todas as adversidades possíveis de enfrentamento do homem, é a pior de todas. Fenômeno antigo, de que se tem notícia desde o início das civilizações, sendo agravado, na atualidade, pela globalização e competitividade, e, principalmente, pela sua banalização ante o nexo causal do mesmo, com aviltamento de valores e progressão da violência em todas as relações.

O assédio moral em relevantes relações humanas Caracterizar o assédio moral não é uma das tarefas mais fáceis, mas de uma forma singela, podemos defini-lo como toda ação ou inação, de forma consciente ou inconsciente que agride o emocional e provoca danos ao homem e à sua dignidade3. Sua manifestação é recorrente nas relações em sociedade, podendo destacar nas relacões entre casais, nas relações escolares e nas relações de trabalho, onde se exprime maior relevo. É importante registrar que para sua caracterização é necessário a repetição da conduta lesiva, sendo um ato isolado pode-se, em algumas hipóteses, caracterizar apenas um dano moral, mas não o assédio. Pode ocorrer, ainda, no que tange ao assédio moral e às relações intergrupais que um determinado grupo social escolha um de seus integrantes, que por qualquer motivo se destaque por algum elemento diferenciador e este indivíduo comece a sofrer todo tipo de discriminação, seja por ser estudioso, míope, tímido, deficiente físico, negro, ou possuidor de característica ausente na maioria. A situação pode estar presente em todas as faixas etárias, no entanto, os contornos dessa prática são de difícil definição. Insta dizer, que o assédio moral se distingue de outras espécies de terror psíquico e, nesse sentido, Marie France Hirigoyen diz: {...} por assédio moral temos que entender toda e qualquer conduta abusiva manifestando-se, sobretudo de forma repetida por

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ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático- para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Tradutor: Dr. Luís Afonso Heck. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 217: 55-66, jul./set. 1999. SILVA, Camila Veríssimo Rodrigues da; PINTO, Tatiana Coutinho Pitta. Assédio moral no âmbito familiar: lacuna legislativa e proposta de criminalização Disponivel: Publicadireito.com.br/artigod/?cod=7af6

Maria Célia Ferreira de Rezende

comportamentos, palavras, atos, gestos, escritos que atentem contra a dignidade ou integridade psíquica ou física de uma pessoa, pondo em perigo sua capacidade de discernimento e liberdade de ação4.

Resta claro, assim, que a deliberada degradação das relações humanas, por meio do estabelecimento de comunicações não éticas, abusivas e que se caracterizam pela repetição por longo lapso temporal de um comportamento hostil que um superior desenvolva contra um indivíduo apresente, como reação, um quadro de miséria física, psicológica ou social duradoura, e deve ser afastada. O repúdio às situações de assédio se finca, em primeiro lugar, no princípio da dignidade da pessoa humana, em que devem ser pautadas todas as relações jurídicas. A humilhação repetitiva e de longa duração interfere na vida da vítima assediada de forma direta, comprometendo sua integridade, dignidade, relações afetivas e sociais. A perversão moral, portanto, tem origem em um processo inconsciente de destruição psicológica, constituída de maquinações hostis, evidentes ou ocultas, de um ou vários indivíduos, sobre um determinado indivíduo determinado, que se torna um verdadeiro “saco de pancadas”. Por meio de palavras aparentemente inofensivas, alusões, sugestões, silêncio, é efetivamente possível desequilibrar uma pessoa, ou até destruí-la, sem que os que a rodeiam intervenham. O agressor – ou os agressores – pode assim enaltecer-se rebaixando os demais, e ainda livrar-se de qualquer conflito interior ou de qualquer sentimento, fazendo recair sobre o outro a responsabilidade do que sucede de errado. Assim, sem culpa e sem sofrimento, trata-se de perversidade no sentido de perversão moral. Um processo perverso pode ser ocasionalmente utilizado por qualquer indivíduo, mas ele só se torna destrutivo, como já dito, quando usado com frequência e com a sua repetição no tempo. Todo homem, “normalmente neurótico”, apresenta em determinados momentos, comportamentos perversos, como por exemplo, em um momento de raiva, mas ele é também capaz de passar a outros tipos de comportamentos como o histérico, fóbico, obsessivo, etc., e a seus movimentos perversos segue-se questionamento se o indivíduo perverso é permanentemente perverso? O interessante é que mesmo que a sua perversidade passe despercebida por algum tempo, ela se manifestará em toda situação em que o perverso tiver que se envolver e reconhecer sua responsabilidade, pois para ele é impossível questionar-se. Tais indivíduos só podem existir “diminuindo” alguém: eles têm necessidade de rebaixar os outros para diminuir uma boa autoestima e, com ela, obter o poder, pois são ávidos de admiração e de aprovação. Não têm a menor compaixão nem respeito pelos outros, porque não se envolvem em um relacionamento. E respeitar o outro é considerá-lo como um ser humano e reconhecer o sofrimento que lhe é infligido. HIRIGOYEN, Marie-France. A violência perversa do cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

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A dinâmica da perversão, por algumas vezes, fascina, seduz e dá medo. Os indivíduos perversos costumam ser invejados, porque são vistos dotados de uma força superior que lhes permite saírem sempre vencedores. Realmente, eles sabem manipular com naturalidade, o que parece ser um trunfo no mundo dos negócios ou da política. São igualmente temidos, pois sabe-se, instintivamente, que é melhor estar com eles do que contra eles. É a lei do mais forte. No mundo contemporâneo, o homem mais admirado é aquele que sabe usufruir de tudo ao máximo e sofrer o mínimo possível. Assim, o homem moderno evita intervir nas ações e nas opiniões de outras pessoas, mesmo quando estas ações e opiniões pareçam desagradáveis ou até moralmente censuráveis, correndo o risco de se tornar cúmplice pela indiferença, perdendo seus limites ou princípios5. A tolerância passa necessariamente pelo estabelecimento de limites claramente definidos. O contexto sociocultural atual tolera a perversão e com isso permite que ela se desenvolva. Embora o fenômeno seja antigo nas relações humanas, o assédio passou a ter uma visibilidade no mundo jurídico muito recente e foi com a pesquisa da psiquiatra Marie France Hirigoyen, formada em vitimologia que se disseminou os debates, em seminários, congressos e passando a ser agassalhado pelas decisões do tribunais, principalmente na seara trabalhista6.

O assédio moral nas relações entre casais O assédio moral nas relações de casais, sem embargos dos danos causados, a violência perversa é muitas vezes negada ou até mesmo banalizada, reduzida a uma simples relação de dominação, considerando o cônjuge cúmplice e até mesmo responsável pela relação perversa. Com a negação do domínio que paralisa a vítima e a impede de defender-se, e mais, negar a violência dos ataques e a gravidade da repercussão psicológica da perseguição movida contra a vítima. Tais agressões são sutis, sem deixar vestígios tangíveis, e quem as testemunham tendem a interpretar como simples relações conflituais ou passionais entre duas pessoas de personalidade forte o que, na verdade, é uma tentativa violenta de destruição moral ou até mesmo física do outro, não raro bem-sucedida7. Os contornos dessa prática entre casais surgem, normalmente, quando o afetivo falha, e na hipótese de um dos parceiros possuir defesas perversas não conseguindo assumir a responsabilidade de uma escolha difícil, passa a agir de uma forma indireta, essencialmente no desrespeito ao outro. HIRIGOYEN, Marie-France. A violência perversa do cotidiano. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002. 6 MATEOS, Alonso J. Development and remedial reading in midle grades. Boston: Allyn-Bacon, 2001. 7 LEYMANN, Heinz. The Mobbing Encyclopaedia. Disponível em . Acesso em 02 de março de 2015. 5

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A recusa em aceitar o fracasso conjugal, muitas vezes, tem sua origem num ideal de casal desenvolvido por um dos parceiros, que de acordo com a dimensão da expectativa, será a perversidade de seus atos, atribuindo ao outro inteiramente o insucesso. A tomada de consciência da manipulação acaba por colocar a vítima em terrível estado de angústia, de difícil libertação, seja por vergonha da exposição a um interlocutor de jamais terem sido amadas, por terem aceitado humilhações, por suportar o que suportaram. Muitas vezes, o movimento perverso não é eventual e sim uma revelação do ódio até então escondido na forma muito semelhante a um delírio de perseguição, quando os papéis se invertem passando o agressor a agredido a culpa permanece sempre do mesmo lado. Necessitando de credibilidade, é preciso, nesse movimento, desqualificar o outro, empurrando-o para um comportamento repreensível. Nos processos de separação e divórcio, os procedimentos perversos são instrumentos com muita frequência de comunicação entre os parceiros. Utilizando um procedimento defensivo, os perversos narcisistas, sentindo que a presa lhes escapa, desencadeiam a violência até então subjacente, não permitindo a ruptura do relacionamento, prosseguindo através de alguns laços relacionais que podem subsistir e, quando há filhos, passam por estes certas condutas vingativas.

O assédio moral nas relações escolares Não se pode dissociar o assédio nas escolas da questão da violência na escola da problemática da violência presente na sociedade e também não pode ser concebida como um processo de “fora para dentro”. A violência presente na sociedade penetra no âmbito escolar afetando-o, mas também como um processo gerado no próprio interior da dinâmica escolar, uma vez que a escola também produz violência, e esta não pode ser reduzida ao plano físico, mas abarca também o psíquico e o moral8. Quanto aos professores é de possível aferição o fenômeno do assédio na forma de realizar a avaliação, coordenar a disciplina. Entre alunos ela se evidencia por intermédio de rixas, apelidos, brincadeiras, atitudes preconceituosas em relação à raça, à estética, ao credo, opção sexual e na forma de se estabelecer relação com o outro, seja por palavras ou forma implícita; e muitas vezes não se percebe quais os protagonistas que estão praticando uma das formas invisíveis de grande repercussão que é a violência moral. Remanesce ainda a violência do funcionário administrativo com o discente, quando exacerba no seu dever de vigilância, proferindo gritos e até apelidos, servindo de motivação para os colegas admoestarem ao colega discente, favorecendo assim, o ambiente propício para o assédio moral. 8

LEYMANN, Heinz. The Mobbing Encyclopaedia. Disponível em . Acesso em 02 de março de 2015.

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Portanto a violência nesta seara é assistida em vários níveis: na linha de frente, o professor e seus colegas, seja assediando moralmente o aluno, seja silenciando ante a prática perversa do assédio; diretores; equipe administrativa e muitas vezes colegas do discente, contribuindo para proliferar a violência no âmbito escolar, fenômeno que poderá deixar marcas indeléveis no indivíduo. A doutrina estrangeira segundo Alonso J. Mateos9 acrescenta que este fenômeno tem sido objeto de inúmeras reflexões e debates, pois, acurado estudo na Universidade de Berlim no ano de 2003, a busca de sintomas causadores de estresse, depressão tristeza, ansiedade, mágoa; baixa autoestima, sensação de ameaça, incapacidade laborativa sentimentos de fracasso e impotência, entende que uma das causas destes sintomas era condutas reiteradas contra aqueles que representassem qualquer tipo de ameaça ao assediador. Paulo Freire, pedagogo de referência no Brasil, em suas lições asseverou que a educação deve ser realizada tendo por referencia a realidade dos estudantes de sorte a estimular a aprendizagem despertando o interesse e entusiasmo pela cultura. Necessário que se demonstre as múltiplas portas que serão abertas pelo conhecimento, principalmente, o resgate da autoestima, devendo ser pontuando pelo educador, quando necessário, o abismo da ignorância e a ansiedade e o complexo de inferioridade que ela traz consigo10. Assim, pode-se afirmar que em ambiente onde o assédio moral se instala, não haverá aproveitamento pelo estudante, cabendo às instituições de ensino reprimi-lo com rigor, pois obstaculiza a qualidade da formação acadêmica do assediado, caso contrário, poderão ser obrigadas a indenizá-lo. É cediço que nas relações acadêmicas existirá sempre algum vínculo de subordinação intelectual, pois o professor, muitas vezes, numa aparência de generosidade acadêmica, tenta dominar a potencialidade intelectiva do aluno, castrando sua criatividade, por não corroborar com suas convicções.

O assédio moral nas relações laborais O assédio moral é uma mácula no ambiente de trabalho e constitui um fenômeno internacional que provoca distúrbio da saúde mental relacionado com as condições de trabalho. Dos estudos realizados, as perspectivas são sombrias para as duas próximas décadas, uma vez que este será e nas próximas, o “mal da globalização”, em que predominará depressões, angústias e outros danos psíquicos, relacionados com as novas políticas de gestão na organização de trabalho e que estão vinculadas às políticas neoliberais11. MATEOS, Alonso J. Development and remedial reading in midle grades. Boston: Allyn-Bacon, 2001. 10 Freire, Paulo. Educação para Jovens e adultos. Disponível em acesso em 20 de março de 2015. 9

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BELMONTE, Alexandre Agra. Danos morais no direito do trabalho: identificação, tutela e reparação dos danos morais trabalhistas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.

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Tal assertiva e reafirma por Lydia Guevara Ramires – Secretária da Diretoria Nacional da Sociedade Cubana de Direito do Trabalho e Seguridade Social, informa que a pessoa assediada é escolhida por suas características pessoais, que perturbam os interesses do assediador, como ganância do poder, do dinheiro, de posição social, saber, ou qualquer outro atributo ao qual lhe resulta inconveniente, seja por mera insegurança pessoal, ou até mesmo por ausência de tais atributos em sua personalidade12. Por outro lado, é cediço que o trabalho representa na vida do ser humano um dos bens imateriais de maior valor. A dor sofrida com a perda do trabalho somente é suplantada por tão dilacerante como a perda de um filho. Desta forma, o obreiro, ao desenvolver suas atividades profissionais, merece e deve ser protegido pelo ordenamento jurídico, interpretado de forma aberta e em consonância com a Constituição, que instituiu um Estado Democrático de Direito, fundamentado na dignidade da pessoa humana. É certo que a evolução da carreira profissional, a saúde do trabalhador, bem como a sua estabilidade emocional não podem ser ameaçadas por práticas de assédio moral, tais como a indicação de tarefas com prazos impossíveis de serem cumpridos, a prática de transferência de alguém de uma área de responsabilidade para realizar funções triviais, a atitude de se ignorar ou excluir um funcionário só se dirigindo a ele por meio de terceiros, a prática de se sonegar informações com frequência, a de espalhar rumores maliciosos, a de efetuar críticas com persistência ou subestimar esforços, dentre tantas outras, como tantas outras do conhecimento popular13. No Estado contemporâneo, há o consenso de uma cultura competitiva proveniente da pressão do desemprego, da luta por salários justos e pelo processo de globalização, estão provocando várias mudanças nas relações sociais dentre as quais se inclui a relação empregado - empregador. Essas acomodações sociais, por vezes, trazem como consequência a inversão de determinados valores de alguma forma, distanciados do texto constitucional, ou seja, verifica-se que o ideal de solidariedade que inspirou os chamados direitos de terceira geração, é submetido por atitudes individualistas, de perversidade, de inveja, de perseguição e clima de terror, senão um dos textos mais importantes do mundo moderno. “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Dotados de razão e consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.” (Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, art. 1º). Os conflitos de massa, a impessoalização das relações num ambiente de trabalho hostil ou inadequado pela ocorrência do assédio moral acarretam BARRETO, Margarida Maria Silveira. Violência, saúde e trabalho: uma jornada de humilhações. São Paulo: PUC/SP, 2003. 13 BARRETO, Margarida Maria Silveira. Violência, saúde e trabalho: uma jornada de humilhações. São Paulo: PUC/SP, 2003.

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doenças de ordem física e psicológica, ocasional prejuízos aos cofres da Previdência Social, com um sem número de licenças de saúde, além de serem capazes a levar o indivíduo à prática do suicídio5. É evidente que a integridade – ou a ausência dela – da saúde física e mental do trabalhador irradia reflexos na ordem laboral, seja em organizações públicas ou privadas, estas em regra submetidas ao regime celetista e aquela trazendo a responsabilidade objetiva.

Conclusão Consoante a breve exposição deste estudo, tentamos demonstrar que o assédio é uma prática insidiosa e costumeira nas relações humanas. Não há como admitir no século XXI, que o homem seja humilhado de forma continuada, com objetivo de destruir sua autoestima e assim manter uma relação de dependência por longo período, com consequências que vão desde as mais diversas de formas de patologia, inclusive com registros de casos de suicídio por assédio moral nas relações aqui abordadas. Embora os avanços dos Direitos Fundamentais obtidos com a Carta da República de 1988, o assédio ainda não foi tipificado pelo legislador federal como forma de intimidar e punir o assediador. Presente o assédio moral presente nas mais diversas relações humanas, como aqui demonstrado, em ambientes que são pilares de uma sociedade saudável e justa, daí a relevância da reflexão sobre o tema e sua normatização. Para que se possa prevenir e quando necessário punir, entendemos que se faz necessário uma legislação federal trazendo os contornos sobre o relevante tema, muito embora, deve-se registar que a lacuna legislativa não tem impedido a punição dos empregadores, sejam pessoa física ou seja pessoa jurídica, como exemplarmente, tem sido a posição do judiciário trabalhista, entendendo que o assédio é passível de uma reparação por indenização dos danos causados à vítima do trabalhador , como também o deve ocorrer nas demais relações humanas.

Referências bibliográficas ALEXY, Robert. Direitos fundamentais no Estado Constitucional Democrático- para a relação entre direitos do homem, direitos fundamentais, democracia e jurisdição constitucional. Tradutor: Dr. Luís Afonso Heck. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, 217: 55-66, jul./set. 1999. BARRETO, Margarida Maria Silveira. Violência, saúde e trabalho: uma jornada de humilhações. São Paulo: PUC/SP, 2003. BELMONTE, Alexandre Agra. Danos morais no direito do trabalho: identificação, tutela e reparação dos danos morais trabalhistas. Rio de Janeiro: Renovar, 2001 FREIRE, Paulo. Educação para Jovens e adultos. Disponível em acesso em 20 de março de 2015.

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A importância da autocomposição e heterocomposição como meios propícios (alternativos) à solução de conflitos e sua repercussão na modernidade

Fernando Chaim Guedes Farage1

Resumo O presente trabalho tem por objetivo, em linhas gerais, apresentar os principais meios de soluções de conflitos, demonstrando as suas vantagens e desvantagens, e ainda, a justificativa para seu uso no atual Estado Democrático de Direito, bem como, sua fundamentação na Modernidade. Palavras-chave: Solução; Conflitos; Meios; Alternativos; Direito. Abstract This study aims , in general , present the main means of conflict resolution , demonstrating its advantages and disadvantages and the justification for its use in the current democratic state as well as its reasoning in Modernity. Keywords: Solution; Conflicts; Means; Alternative; Law.

Introdução A recente promulgação do novo Código de Processo Civil, evidenciou uma maior abertura aos meios alternativos de solução de conflitos, demonstrando que a necessidade de diálogo, e, consequente busca por entendimento, se faz cada vez mais necessária e importante no atual contexto de nossa Sociedade. Neste tônica, o presente trabalho tem por objetivo, em linhas gerais, apresentar os principais meios de soluções de conflitos, diversos do Judiciário, demonstrando as suas vantagens e desvantagens, e ainda, a justificativa para 1

Mestre em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC de Juiz de Fora-MG. Graduado em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior de Juiz de Fora-MG. Advogado.

A importância da autocomposição e heterocomposição como meios propícios (alternativos) à solução de conflitos e sua repercussão na modernidade

seu uso no atual Estado Democrático de Direito e a fundamentação do mesmo na Modernidade. Desta forma, podemos afirmar que existem meios eficazes de solução de conflitos diversos do Judiciário?

Da necessidade de outros meios de solução de conflitos e sua justificativa A ideia de que tenhamos um meio de solução de conflitos diverso do Judiciário, a principio, pode parecer soar, como algo incabível e desnecessário. Incabível, pois violaria o monopólio da jurisdição pelo Estado. Desnecessário, visto que já temos um sistema de soluções de conflitos: o próprio Judiciário, que se apresenta problemas, basta se utilizar de mecanismos para alterá-lo de forma a tentar torná-lo célere, justo e eficaz. Entretanto, se observarmos de forma mais atenta, perceberemos que hoje, vivemos em uma severa crise, que abrange o processo (visto que a norma não reflete a prática2), o Judiciário (que carece de serventuários, equipamentos, leis e “juízes de boa vontade”3) e dos operadores do Direito (que desconhecem formas de composição alternativas das lides jurídicas e sociológicas)45. Tais questões somadas, refletem um cenário caótico que produz dia após dia, mais e mais a insatisfação daqueles que procuram soluções para seus litígios e afasta o ideal de justiça do caso concreto. Neste diapasão, meios diversos do Judiciário surgem, como a possibilidade de se aliviar a crise enfrentada, repensar o próprio processo de maneira a utilizá-lo como instrumento de satisfação das garantias individuais. Neste sentido assevera Joel Dias Figueira Júnior: [...] Essas novas formas de prestar a jurisdição significam antes de tudo um avanço legislativo que vem refletir uma nova mentalidade que, por sua vez, procura se adequar às tendências do processo civil contemporâneo na busca de formas alternativas de solução dos conflitos de interesses.[...]6.

E conclui da seguinte forma: [...] Somente com uma visão ampla e voltada para o futuro, o qual já se faz, presente, com a virada para o terceiro milênio, é que poderão emergir Para maiores detalhes vide: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem. Legislação Nacional e Estrangeira e o Monopólio jurisdicional. São Paulo: LTr, 1999.p.13. 3 Idem, p.13. 4 AÇÕES COLETIVAS SOBRECARREGAM AS VARAS DE EXECUÇÕES. Disponível em: Acesso em: 16 Mai. 2012. 5 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem. Legislação Nacional e Estrangeira e o Monopólio jurisdicional. Opus cit., p.12-13. 6 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem. Legislação Nacional e Estrangeira e o Monopólio jurisdicional. Opus cit., .p15. 2

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deste novo contexto experiências e resultados absolutamente positivos, ao encontro dos interesses dos consumidores do direito, além de fazer renascer a crença no Judiciário e no ideal de justiça, o que se coaduna perfeitamente com a prestação de tutela por intermédio da jurisdição privada ao lado da jurisdição estatal em sintonia com ela.[...]7.

Desta forma chegamos ao raciocínio, que estes meios tidos como “alternativos” são hoje muito mais que uma tendência, mas uma necessidade, para que se garanta o próprio acesso a justiça e se preste uma tutela jurisdicional coerente com a realidade atual do Direito. Uma vez que se assuma, meios de soluções de conflitos que não aqueles fornecidos pelo Estado, pode-se como já dito, equivocadamente, presumir que não é este, o detentor do monopólio da jurisdição. Entretanto, tal confusão se dissipa com a leitura atenta do texto de Cristovão Fernandes Luna Freire8, que de forma clara expõe: [...]quando o Estado permite que a sociedade utilize de alternativas fora do sistema formal para a solução de controvérsias, ele não está de forma alguma agredindo o monopólio da jurisdição, mas sim, prestigiando-a, pois determina princípios a serem observados por aqueles investidos do poder de julgar, sob pena de não lhes reconhecer legitimidade de distribuir justiça[...]9

Retira-se das palavras do autor, alguns entendimentos: o Estado é detentor do monopólio da jurisdição, mas não o da efetivação da justiça; O Estado pode delegar a outrem a capacidade de solucionar conflitos, desde que, respeitem os princípios daqueles investidos do poder de julgar, para só assim ser reconhecida a legitimidade de distribuir justiça daquele que o delegou poderes. Em consonância com este entendimento recorremos mais uma vez a Joel Dias Figueira Júnior, que afirma: [...]a institucionalização da jurisdição privada não significa, ao contrário do que pensam alguns, um simples retrocesso aos tempos romanos, ou uma tentativa de enfraquecer ou desestabilizar o Poder Judiciário, o que chega a ser até argumento gracioso. Ao revés, o escopo dessa onda reformista reside na busca e adequarmos o nosso direito instrumental aos novos tempos, marcados pelo fenômeno chamado ´globalização’, o que passa a exigir uma certa aproximação normativa da nossa legislação interna com as alienígenas dos povos cultos, reduzindo-se cada vez mais a distância que separa os sistemas da civil e common law, o que já é, aliás, uma realidade vivida em nossos dias.[...]10 . Idem, p.16. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual em Movimento (org.) Curitiba: CRV, 2011, p.22. 9 No trecho em questão faz-se referência a obra: ALVIM, J.E. Carreira. Tratado Geral de Arbitragem. Belo Horizonte: Mandamentos, 2000, p.55. 10 FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem. Legislação Nacional e Estrangeira e o Monopólio jurisdicional. Opus cit., p23. 7 8

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Os principais meios propícios à solução de conflitos Dentre os principais meios de soluções de conflito existentes, que não o judiciário, Cristovão Fernandes Luna Freire11, em referência a obra do professor Antônio Pereira Gaio Júnior12, afirma que temos:



[...]a) Conciliação: acontece quando um terceiro tenta através de um acordo, compor uma controvérsia entre reclamante e reclamado, mas sobretudo com duas características básicas:I) o conciliador participa diretamente da solução II) O termo conciliatório poderá possuir força de título executivo extrajudicial b) Mediação:trata-se de uma solução de controvérsia onde um terceiro participa do procedimento com o simples papel de apontar para os interessados os pontos conflitantes, a fim de que os próprios participantes por eles mesmos cheguem a uma solução. c) Arbitragem: é uma técnica reconhecida por lei, a qual as partes pautadas no princípio da autonomia da vontade privada convencionam através de contrato ou em juízo, a escolha privada por intermédio de um árbitro, a solução do conflito.[...]

Pelas palavras do autor percebemos de maneira clara, os principais meios de resoluções de conflitos existentes, que não o judiciário, dentre os quais, cumpre destacar duas modalidades distintas: a autocomposição e a heterocomposição. A primeira se refere as próprias partes originárias do litígio, buscarem a solução para o mesmo (o que se nota nos itens “a” e “b”, qual sejam, conciliação e mediação). Tal entendimento, encontra arcabouço no texto de Raquel Mota Dias13, onde esta destaca que: [...]A conciliação é um meio de resolução de conflitos (autocomposição) onde as partes , mediante o auxílio de uma terceira pessoa, o conciliador, buscam a solução de uma controvérsia[...]14. E com referência a mediação a autora é enfática em dizer que:[...]a mediação é meio propício, extrajudicial de solução de conflitos, pautado no conceito de autocomposição[...]15.

A segunda, se refere a possibilidade das partes elegerem um terceiro, que poderá analisar e julgar o litígio, devendo as partes acatar tal ordem (o que se percebe no item “c”, qual seja a arbitragem) que encontra balizamento no texto supra, ao afirmar que “[...] A Arbitragem é tida como heterocomposição privada e é o meio alternativo de solução de conflitos [...”]16. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual em Movimento. Opus cit., p.22-23. A obra que o autor se refere é: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Meios Propícios à Solução de Conflitos. In: Tópicos em Processos, disciplina eletiva do curso de graduação da Faculdade Estácio de Sá. Juiz de Fora. Ministrada em 10 de Fevereiro de 2009. 13 GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual em Movimento. 14 Idem, p.139. 15 Ibid., p.141. 16 Ibid.,p.138. 11

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Uma vez compreendidos os meios de soluções de conflitos, diversos do judiciário, passa-se a análise, pormenorizada de cada um deles.

A conciliação A conciliação é atualmente importante meio de autocomposição que visa a solução de conflitos. Em nosso ordenamento, é visível, no rito processual, sendo parte obrigatória a sua tentativa, conforme dispõe o novo Código de Processo Civil, por meio dos artigos 3, 165, 166, 168, 169, 174, 175, 334, 694, 695, 69617. Já no âmbito dos juizados especiais encontra previsão no artigos 21 da Lei 9099/95, e nos litígios trabalhistas encontra previsão nos artigos 846,852-E, da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Em âmbito extrajudicial, tem sua previsão regulada através das leis 9.957 e 9958 ambas de 12.01.2000, abrindo a possibilidade das empresas instituírem a Comissão de Conciliação Prévia, com representantes de empregados e empregadores, a fim de solucionar litígios por meio da conciliação (Art.625-A e seguintes da CLT18). Destarte, fica evidente em como a conciliação está profundamente entrelaçada ao Judiciário, sendo obrigatória a sua tentativa no âmbito judicial, entretanto, no âmbito extrajudicial se percebe sua utilização de forma mais detida.

A mediação A mediação está presente na vida humana desde seus primórdios, datando de 3000 A.C na Grécia antiga19. Em seu favor pesam: a privacidade, o controle do foro pelas partes, a flexibilidade, o fato de ser mais barata que a demanda judicial, a reflexão das preocupações e prioridades dos litigantes no resultado final, além dos próprios serem instruídos durante o processo, entre outras20 . Por estes aspectos, pode-se apressadamente entender que este é uma excelente saída ao judiciário, entretanto, devemos analisar também as desvantagens apontadas por John W. Cooley e John Lubet, que são: o resultado obtido não gerar obrigações; uma parte com maior poder aquisitivo influenciar o resultado; não se ter as salvaguardas processuais em benefícios das partes; o pouco acesso a informação, que pode comprometer o resultado; as No Código de Processo Civil de 1973, agora revogado, já havia previsão da conciliação como meio eficaz de solução de conflitos por meio dos artigos 125, IV, 277, 447 §único, 448 e 740 . 18 Para maiores detalhes vide também: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de direito processual civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. 19 Para maiores detalhes vide: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual em Movimento (org.) Opus cit., p.141. 20 Para maiores esclarecimentos vide: COOLEY, John W,; LUBET, Steven. Advocacia de Arbitragem. Brasília: UNB. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,2001.p.31. 17

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partes neutras não possuírem poderes para impor acordo, nem muito menos obrigar a participação das partes; a falta de instrumentos de aplicabilidade ou cumprimento das obrigações21. A mediação é largamente utilizada em âmbito internacional, em países como: EUA, Canadá, Argentina e países do continente Europeu22. No Brasil, temos a sua utilização através de Programas como: Centro de Integração da Cidadania de São Paulo;o Centro Integrado de Cidadania de Vitória/ES; o Tribunal de Justiça de Santa Catarina/SC, com o Projeto de Mediação Familiar; o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro/RJ com o Projeto Introdução e Técnica de Mediação de Conflito; o Centro de Mediação e Administração de Conflitos do Rio de Janeiro - MEDIARE, com o projeto de Mediação, entre outros muitos exemplos23de como a mediação se difunde em nosso país continuamente. Há ainda, o projeto de Lei 4.827/98 que figura desde 2006, como Emenda no CCJC (Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania), funcionando nas varas de família e projetos neste sentido de fortalecer a mediação em nosso país (como relatado nos exemplos narrados acima). Existem ainda, Institutos que visam fortalecer a mediação no Brasil entre eles podemos citar: o Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem (CONIMA); Instituto de Mediação e Arbitragem no Brasil (IMAB), entre outros24.

A arbitragem A arbitragem é sem dúvida, o meio propício escolhido no sistema jurídicobrasileiro para resolução de conflitos. Prova disto, é longa gama de leis que possibilitavam a arbitragem tais como: a Constituição do Império de 1824, o Código Comercial de 1850, o Código de Processo Civil de 1939, a lei das Sociedades Anônimas (Lei 6404/76), o Direito Marítimo (Lei 7.203/84), sem nos esquecermos do Código de Processo Civil (arts. 1.072 a 1.102, já revogados) e da Constituição de 1988 (Art.114, §§1º e 2º e ADCT art.12 § 2º que prevê o uso da arbitragem na demarcação das linhas divisórias entre Estados e Municípios) entre outros25. Entretanto, mesmo havendo a arbitragem regulamentação em nosso ordenamento, pouco se fez uso da mesma, pelas mais diversas razões, entre elas: os mecanismos oferecidos pelo Poder Judiciário para a solução de conflitos, que influenciavam negativamente o espírito dos jurisdicionados que, em quase absoluta unanimidade, “optavam” pela justiça estatal, visto que o juízo arbitral não se desvinculava da máquina do Estado, visto que desta necessitavam da homologação judicial do laudo arbitral26. COOLEY, John W,; LUBET, Steven. Advocacia de Arbitragem. . Opus cit., p.32. Para maiores detalhes vide: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual em Movimento (org.) Opus cit., p.141. 23 Ibid., p.142. 24 Ibid., p.143. 25 Para maiores detalhes vide: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira; MAGALHÃES, Rodrigo Almeida (Coords.) Arbitragem. 15 anos da Lei n.9307/96. Belo Horizonte: Del Rey,2012. 26 Para maiores esclarecimentos vide: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem. Legislação 21 22

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Somente com a edição da Lei 9307/96 é que finalmente a Arbitragem ganhou a devida relevância como meio propício a solução dos conflitos, em que pese os comentários de Joel Dias Figueira Júnior, a respeito da importância da mesma como mais um instrumento de solução de conflitos, vejamos: [...]o novo regime arbitral, bem sistematizado em quarenta e quatro artigos, veio colocar o Brasil lado a lado com outros países detentores da mais moderna e atualizada legislação sobre o tema.[...] O novo regime da arbitragem é simplesmente mais um instrumento válido e colocado à disposição dos interessados para solução de seus conflitos de natureza patrimonial disponível, ao lado de outras formas alternativas de composição, bem como da jurisdição estatal, que se realiza através de ponte imaginária que é o processo civil tradicional [...]27.

As vantagens por sua vez que a arbitragem proporciona, são inúmeras como:a privacidade do processo, o nível de especialização do julgador, as partes envolvidas escolherem as partes neutras, celeridade, escolha de normas aplicáveis, relação custo-benefício, entre outros28. Neste sentido, José Lebre de Freitas em sua obra, nos traça um panorama do poder das partes na Arbitragem, que podem escolher os limites dos árbitros e até mesmo suprimir as questões prejudiciais que seriam objeto de análise num processo judicial: [...] O poder de decisão do tribunal arbitral deriva da vontade das partes e por isso contém dentro dos limites em que esta pode actuar, segundo o direito constituído. O seu fundamento é assim semelhante ao do negócio jurídico: tal como particulares podem, no domínio da autonomia da vontade, autoregulamentar os seus interesses, e, designadamente, previnir os litígios ou pôr-lhes cobro mediante negócios de transacção (art.1248 CC29).[...] A fonte negocial da arbitragem voluntária explica que as partes possam conceder aos árbitros o poder de decidir segundo a equidade, desvinculando-se da obediência à lei a que os tribunais do Estado estão sujeitos por imperativo constitucional (art.203 da Constituição da República)30.[..] Também na sua extensão o objecto do processo judicial e do processo arbitral podem divergir, na medida em que as partes queiram manter fora do campo da apreciação dos árbitros questões prejudiciais que normalmente ao tribunal cabe resolver31. Nacional e Estrangeira e o Monopólio jurisdicional. Opus cit., p34. Idem, p.36. 28 Para maiores esclarecimentos vide: COOLEY, John W,; LUBET, Steven. Advocacia de Arbitragem.Opus cit.,.p.31. Vide também: FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem. Legislação Nacional e Estrangeira e o Monopólio jurisdicional. Opus cit., p37. 29 FREITAS, José Lebre. Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil. Coimbra: Coimbra Editora,2002.p.852. 30 Idem,.p.855. 31 Ibid., p.860. 27

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Em que pese suas desvantagens da arbitragem, John W.Cooley e Steven Lubet, apontam: a falta de controle da qualidade dos árbitros, a não responsabilização das partes neutras, a não existência de precedentes, ou uniformização de decisões, pesa-se também que em regra geral não há o cabimento de recursos das decisões32. Ademais, após 15 anos desde sua edição, a Arbitragem é pouco difundida, conforme assevera Antônio Pereira Gaio Júnior dizendo: [...]É fato que, com a percepção de que a atividade jurisdicional estatal tem sido deveras incipiente, isso em decorrência de uma série de fatores, quer de origens procedimentais, administrativas ou operacionais e até mesmo de quadros, vem crescendo a consciência de que o ideal é pacificar, mesmo que esta não decorra de obra eminentemente estatal que seja por método eficiente e protetor das liberdades fundamentais do cidadão.[...]33

Mesmo que ainda não tenha obtido a sua eficácia plena, é certo de que a tendência será muito em breve, a difusão da Arbitragem como meio propício para resolução de conflitos, haja vista, ser o Brasil signatário de vários tratados internacionais que tratam da arbitragem, entre eles podemos destacar: Convenção de Nova York; Convenção Interamericana sobre Arbitragem Internacional; Acordo sobre Arbitragem Comercial de Buenos Aires, que prevê a criação de Tribunal Arbitral Permanente Revisão, o que dará maior estabilidade a Arbitragem no Mercosul34. Vale dizer, que o referido bloco pouco se utilizou da Arbitragem35, entretanto, no pouco utilizado se obteve êxito com os resultados pretendidos, o que demonstra que aos poucos Arbitragem se infiltra como meio propício de solução de conflitos, o que reforça-se, é uma necessidade e uma tendência cada vez mais pujantes, sem mencionar o fato, que o novo Código de Processo Civil vem justamente prestigiar ainda mais, os meios alternativos de soluções de conflitos, conforme os artigos supracitados evidenciam.

Da compreensão adequada dos pressupostos da modernidade e sua repercusão no âmbito dos meios alternativos de solução de conflitos Para que possamos interpretar e aplicar adequadamente o Direito, através de meios alternativos de solução de conflitos, devemos compreender os pressupostos que são inerentes à Modernidade, isto é, que os conflitos e os

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32 COOLEY, John W,; LUBET, Steven. Advocacia de Arbitragem. Opus cit., p.32. 33 GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira; MAGALHÃES, Rodrigo Almeida (Coords.) Arbitragem. 15 anos da Lei n.9307/96. Opus cit., p.3-4. 34 GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira; MAGALHÃES, Rodrigo Almeida (Coords.) Arbitragem. 15 anos da Lei n.9307/96. Opus cit., p.25-26. 35 Para maiores detalhes vide: GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual em Movimento (org.) Opus cit.,p.41.

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meios para resolvê-los, são conectados ao mundo da vida, como de outra forma não pode ser, haja vista, vivermos em uma sociedade cada vez mais plural e complexa, e que cobra um entendimento do Direito, capaz de concatenar de forma harmônica direitos, deveres e interesses, das mais diversas ordens e esferas de maneira racional e coerente. Esta prática, que é tão cara e necessária, se faz possível quando entendida, dentro de uma teoria do discurso, a qual Jürgen Habermas propõe da seguinte forma: [...] D: Válidas son aquellas normas (y solo aquelas normas) a las que todos los que puedan verse afectados por ellas pudiesen prestar su assentimiento como participantes en discursos racionales.[...]36 La teoría discursiva del derecho entiende, por una parte, el Estado democrático de derecho como la institucionalizacíon que discurre a través de derecho legítimo (y que, por tanto, garantiza la autonomía privada) de procedimientos y pressupuestos comunicativos para una formación discursiva de opiníon y la voluntad, la cual hace posible a su vez (el ejercicio de la autonomia política y) uma produción legítima de normas. La teoria comunicativa de la sociedad, es decir, la teoría de la sociedad, articulada en conceptos de comunicacíon, entiende, por otro lado, el sistema político articulado en términos de Estado de derecho como un sistema más entre vários sistemas de acíon. Éste puede “actuar como garante” en lo conciernente a resolver los problemas de integracíon de la sociedad global mediante una interacíon entre la formacíon institucionalizada de la opiníon y la de la voluntad y las comunicaciones públicas informales, porque esa integracíon, a través del espacio de la opinión basado en la sociedad civil, queda inserta en los contextos de un mundo de la vida que le resulta favorable (es decir, de un mundo de la vida caracterizado por una cultura política habituada a la liberdad y por los correspondientes patrones de socializacíon). Finalmente, una determinada concepcíon del dereceho establece una relacíon entre la consideracíon normativa y la consideracíon empírica. Ségun esta concepcíon, la comunicacion jurídica puede entenderse com um médio a través del cual las estructuras de comunicacíon realizadas en la accíon comunicativa se transfieren del nível de las interacciones simples al nível abstracto de las relaciones organizadas. La película tejida de comunicaciones jurídicas puede envolver a toda la sociedad, por compleja que ésta sea. El paradigma procedimental del derecho es, por lo demás, resultado de una disputa de paradigmas, y está todo él bajo la premisa de que el modelo liberal del derecho y el modelo ligado al Estado social interpretan la evolucíon jurídica en termos excessivamente concretistas y ocultan la conexíon que se da entre autonomía privada y autonomía pública, la cual necesita ser interpretada caso por caso. Bajo esta premisa las mencionadas tendências a la crisis aparecen a una luz distinta; y de distinta valoracíon síguense recomendaciones prácticas distintas. [...]37 HABERMAS, Jürgen. Faticidad e validez: sobre el derecho y el Estado democratico del derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 4.ed. Madrid,Trotta, 2005, p.172. 37 HABERMAS, Jürgen. Ibid., p.523-524. 36

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O que tal teoria propõe, portanto, é uma melhor concepção do papel do Direito, visto que quando da elaboração normativa38, se abre a possibilidade de todos os futuros afetados por uma determinada norma, tenham a possibilidade de se manifestar sobre a mesma, e logo, colocarem seus argumentos e defendê-los de forma racional e coerente perante outros, o que em uma sociedade cada vez mais heterogênea, é extremamente salutar, pois permite através da democracia uma melhor realização do papel cidadão, dando autonomia a estes, modulando e alterando seus direitos e deveres, de forma a conceber o que melhor lhe aprouverem, mas sempre dentro de uma democracia, permitindo que opiniões e ideias contrárias, também sejam levadas a baila e assim, na pluralidade de idéias, vença aquela que democraticamente, se faz mais coerente com aquele contexto do mundo da vida em que esta inserida aquela sociedade. Isto, só traz benefícios ao processo e aos meios alternativos de solução de conflitos, posto que estes serão munidos de mecanismos cada vez mais eficientes, legítimos, capazes de alcançar o fim prático ao qual foram propostos, abarcando as dimensões sociais, políticas e econômicas necessárias para correta materialização do Direito no caso concreto seja no âmbito jurisdicional, seja no âmbito extrajudicial através dos meios alternativos de solução de conflitos tal lógica se mostra adequada. E no que cabe ao respeito a aplicabilidade normativa, por exemplo, não se excluirá a sua força legal através dos meios alternativos: [...] Acontece que do ponto de vista da aplicação normativa, o papel dos cidadãos, articulados em associações civis ou organizações não-governamentais, ou ainda individualmente, deve ser vislumbrado como referido ao reconhecimento institucional de pretensões normativas todavia carentes de garantia em algumas situações determinadas. E o papel desses cidadãos é, pois, de exatamente de se valerem de argumentos capazes de demonstrar diferenças e igualdades que sejam suficientemente fortes para o reconhecimento de uma tal diferença. A luta política desses cidadãos – sem dúvida alguma, extremamente frutífera para construção de critérios de igualdade e diferença de casos e questões que se colocam ao Direito – não significa a abertura jurisdicional a argumentos éticos, morais, ou pragmatistas; a pretensão normativa subjacente a essa luta política é que deve ser analisada juridicamente pelo órgão jurisdicional competente. [...]39

Desta maneira é possível observar que seja no processo, seja nos meios de solução de conflitos, para que possam ser compreendidos adequadamente, como Faz-se aqui plena referência aos discursos de justificação da norma, que para melhor entendimento do leitor explicamos: “[...] Os discursos de justificação jurídico-normativa se referem à validade das normas, e se desenvolvem com o aporte de razões e formas de argumentação de um amplo espectro (morais, éticas e pragmáticas), através das condições de institucionalização de um processo legislativo estruturado constitucionalmente, à luz do princípio democrático [...]. CATTONI, Marcelo Andrade Oliveira. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. 39 CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009, p.254. 38

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instrumento para a melhoria da qualidade de vida dos cidadãos, é necessário haver uma compreensão adequada da própria teoria do Direito posto que, só assim, respeitar-se-á as dimensões sociais, políticas e econômicas nas quais tais litígios inegavelmente atingem.

Conclusão Após todo o exposto, pode-se concluir, que vivemos uma grande crise, sobretudo pautada em três pilares: celeridade, eficácia processual e justiça na decisão. Contudo, a perspectiva não é negativa, isto porque: [...] A atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo a boa-fé com relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções. Isto é, de qualquer forma, o que o direito representa para nós: para as pessoas que queremos ser e para a comunidade que pretendemos ter. [...] 40

Nesta tônica, os meios tidos como “alternativos” representam o que há de moderno como resposta a esta crise, e que deságua por conseguinte, na própria desvinculação da intervenção direta do Estado na resolução dos conflitos de natureza de direito privado. Isto certamente representa, uma quebra de paradigma, e uma nova visão do próprio papel estatal na garantia de acesso à justiça e o mais importante, de forma eficaz. Como resultado, seguindo a tendência de uma maior abertura a estes meios alternativos de solução de conflitos, teremos um Direito mais forte, mais atento aos seus afetados, visto que proporciona a estes outras formas de acesso à justiça. O caminho até este ideal já está sendo traçado solidamente por meio das recentes alterações legislativas, e o tempo será o responsável por dizer, quais as consequências destas escolhas. Que saiamos vitoriosos delas, para que assim se fortaleça cada vez mais, o Estado Democrático de Direito.

Referências bibliográficas AÇÕES COLETIVAS SOBRECARREGAM AS VARAS DE EXECUÇÕES. Disponível em: Acesso em: 16 Mai. 2012. CATTONI, Marcelo Andrade Oliveira. Direito processual constitucional. Belo Horizonte. Mandamentos, 2001. COOLEY, John W,; LUBET, Steven. Advocacia de Arbitragem. Brasília: UNB. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado,2001. 40

DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. Martins Fontes. São Paulo, 2007, p. 492..

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CHAMON JÚNIOR, Lúcio Antônio. Teoria da Argumentação Jurídica: constitucionalismo e democracia em uma reconstrução das fontes normativas no direito moderno. 2. ed. Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2009. DWORKIN, Ronald. O império do direito. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 2. ed. Martins Fontes. São Paulo, 2007, p. 492. FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias. Arbitragem. Legislação Nacional e Estrangeira e o Monopólio jurisdicional. São Paulo: LTr, 1999. FREITAS, José Lebre. Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil. Coimbra: Coimbra Editora,2002. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Direito Processual em Movimento (org.) Curitiba: CRV, 2011. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira; MAGALHÃES, Rodrigo Almeida (Coords.) Arbitragem. 15 anos da Lei n.9307/96. Belo Horizonte: Del Rey, 2012. GAIO JÚNIOR, Antônio Pereira. Instituições de direito processual civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011. HABERMAS, Jürgen. Faticidad e validez: sobre el derecho y el Estado democratico del derecho en términos de teoría del discurso. Trad. Manuel Jiménez Redondo. 4.ed. Madrid, Trotta, 2005.

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O Ativismo Judiciário e o desvelar do Direito segundo Heidegger Alexandre Ribeiro da Silva1 Mariana Colucci Goulart Martins Ferreira2 Resumo O presente artigo analisa o fenômeno do ativismo judiciário brasileiro através do pensamento heideggeriano sobre o Direito em sua essência, buscando a partir da hermenêutica desvencilhar a ideia do Direito como algo. O Direito, como demonstraremos, deve ser entendido como algo além de um ente, de uma coisa, buscando nos valores humanos contrapor à noção positivista da norma e do subjetivismo em prol de sua própria essência, o que coaduna com uma interpretação da lei fundada na proteção de garantias fundamentais pela atuação de juristas além do mero caráter descritivo da norma. Palavras-chave: Ativismo; Heidegger; Desvelar. Abstract The present article analyses the phenomenon of judicial activism in Brazil through the Heideggerian thinking about the essence of law, aiming to, as from the hermeneutics, shake off the idea that the law is merely a thing. The law, as will be demonstrated further in this study, must be understood as a thing that goes above this concept of thing, seeking in the human values the contraposition to the positivist notion of norm and the subjectivism in favor of its own essence, in coadunation with an interpretation of the law founded in the protection of fundamental guarantees thought the action of the jurists besides the simple descriptive character of the norm. Keywords: Activism; Heidegger; Uncover. Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos-UNIPAC, Campus de Juiz de Fora e também mestrando no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pós-graduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associado ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI). É advogado e professor de literatura e português. Possui Pós-graduação em Direito Processual pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), graduação em Direito pelo Instituto Vianna Júnior (2009) e graduação em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010). 2 Jornalista e advogada. Possui graduação em Comunicação Social pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2010) e graduação em Direito pelas Faculdades Integradas Vianna Júnior (2013). Atualmente é mestranda no programa “Hermenêutica e Direitos Fundamentais”, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e Efetivação dos Direitos Humanos nos Contextos Social e Político Contemporâneos”, na Universidade Presidente Antônio Carlos. É também mestranda no programa “Direito e Inovação”, na linha de pesquisa “Direitos Humanos e Inovação”, na Universidade Federal de Juiz de Fora. Cursa Pós-graduação lato sensu em “Direito Constitucional Aplicado” no Complexo Educacional Damásio de Jesus. É associada ao Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI). Desenvolve pesquisas na área de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Direito Constitucional e Teoria da Comunicação (Agenda-Setting Theory). 1

O Ativismo Judiciário e o desvelar do Direito segundo Heiddeger

Introdução A judicialização e o ativismo judiciário são fenômenos comuns ao direito brasileiro contemporâneo. Porém, embora próximos, são distintos. Enquanto o primeiro contribui para o desequilíbrio entre os poderes e sobrecarrega todo o sistema jurídico pátrio, o segundo é a melhor manifestação do jurista em busca da Justiça, revelando sua tentativa de construir um Direito que supere a norma fria e garanta proteção aos direitos mais fundamentais ao homem. O ativismo judicial, expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário corroborando com o desvelar proposto por Martin Heidegger3. Assim, o Direito ganha maior densidade, já que passa a ser compreendido a partir do homem em seu próprio acontecer de forma mais autêntica. Somente fundando-se na hermenêutica e na busca de seu ser e de sua essência o Direito conseguirá caminhar para a ideia de Justiça, que é a busca da verdade pela Essência do homem. Destarte, a hermenêutica heideggeriana procura verdadeiramente interrogar o ser do Direito através da compreensão, por meio da historicidade e da temporalidade superando a concretude da objetivação almejando uma dimensão existencial trespassada pela filosofia. Proposições que passamos a analisar.

As Distinções entre Judicialização e Ativismo Judicial Entende-se por judicialização a resolução de conflitos pelo Judiciário de assuntos originariamente alheios de sua competência. Assim os tribunais seriam chamados, ou atuariam por conta própria, em questões de ordem política, moral, científica e social em detrimento dos Poderes Executivo e Legislativo, tendo em vista, geralmente, uma suposta a omissão destes. Nesse sentido, citam-se os apontamentos de Castro4: A judicialização da política ocorre porque os tribunais são chamados a se pronunciar onde o funcionamento do Legislativo e do Executivo mostrase falhos, insuficientes ou insatisfatórios. Sob tais condições, ocorre certa aproximação entre Direito e Política e, em vários casos, torna-se mais difícil distinguir entre um ‘direito’ e um ‘interesse político’, sendo possível se caracterizar o desenvolvimento de uma ‘política de direitos’.

Muito por culpa de uma ineficácia das instituições majoritárias, muito por falta de representatividade ou funcionalidade, fato é que a classe política não consegue desenvolver satisfatoriamente políticas públicas eficazes, criando

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3 MELLO, Cleyson de Moraes. Direito e(m) verdade: os novos caminhos da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011. 4 CASTRO, Marcos Faro. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política. São Paulo: Revista de Ciências Sociais, 1998. p.27.

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um espaço para o Poder Judiciário interferir em demandas. As quais geram grande embate na sociedade, pois se ocorre a transferência ao Judiciário da responsabilidade de tomar uma decisão que resolva o problema, modo encontrado pelos políticos para se eximirem de responsabilidade, de mesma forma tais resoluções são utilizadas por correntes politicas contrarias a estas como combustível da própria atividade política. Nesse sentido, diz Barroso5, acerca da judicialização no Brasil: No Brasil, como assinalado, a judicialização decorre, sobretudo, de dois fatores: o modelo de constitucionalização abrangente e analítica adotado; e o sistema de controle de constitucionalidade vigente entre nós, que combina a matriz americana – em que todo juiz e tribunal podem pronunciar a invalidade de uma norma no caso concreto – e a matriz européia, que admite ações diretas ajuizáveis perante a corte constitucional. Nesse segundo caso, a validade constitucional de leis e atos normativos é discutida em tese, perante o Supremo Tribunal Federal, fora de uma situação de litígio. Essa fórmula foi maximizada no sistema brasileiro pela admissão de uma variedade de ações diretas e pela previsão constitucional de amplo direito de propositura. Nesse contexto, a judicialização constitui um fato inelutável, uma circunstância decorrente do desenho institucional vigente, e não uma opção política do Judiciário. Juízes e tribunais, uma vez provocados pela via processual adequada, não têm a alternativa de se pronunciarem ou não sobre a questão. Todavia, o modo como venham a exercer essa competência é que vai determinar a existência ou não de ativismo judicial.

Destarte, o Poder Judiciário tem a obrigação de agir sempre que provocado, o que decorre do modelo de constituição analítica e do sistema de controle de constitucionalidade abrangente adotados no Brasil, que permitem que discussões de largo alcance político e moral, muitas vezes de competência de outros poderes, sejam trazidas sob a forma de ações judiciais. Isso causa um inchaço da função judiciária e, de certo modo, imprime a falaciosa ideia de um desequilíbrio entre poderes toda vez que o mesmo decide, dentro de suas prerrogativas legais, atuar para uma melhor concretude da lei com a justiça. A judicialização não corresponde ao ativismo judicial que é uma atitude dos juízes, uma faculdade. O termo judicial activism foi empregado pela primeira vez em 1947 pelo historiador e político do partido democrata americano Arthur Schlesinger Jr. para comentar as linhas de atuação da Suprema Corte na época do New Deal. Fato é que após intensos debates entendeu se que a Suprema Corte Americana pode desempenhar um papel de efetivação de políticas para a promoção do bemestar social com base nos posicionamentos políticos dos juízes. O que garantiu intensas e inquestionáveis conquistas para a sociedade americana como o fim de diversas políticas discriminatórias aos negros e às mulheres. No Brasil, o ativismo judicial decorrente do modelo constitucional adotado com a Constituição Federal de 1988 e acompanha as inúmeras mudanças do 5

BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 07.

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Direito Constitucional contemporâneo. O Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso afirma que tais mudanças constitucionais ocasionaram uma transformação no modo de pensar e praticar o direito com a superação da filosofia jurídica positivista, pelo reconhecimento da normatividade dos princípios, ainda que não estejam escritos. Da mesma forma, identifica a dignidade da pessoa humana como o princípio fundamental mais importante, conferindo-lhe caráter norteador aos demais direitos fundamentais. Nesse sentido, afirma que6: O pós-positivismo busca ir além da legalidade estrita, mas não despreza o direito posto; procura empreender uma leitura moral do Direito, mas sem recorrer a categorias metafísicas. A interpretação e aplicação do ordenamento jurídico hão de ser inspiradas por uma teoria de justiça, mas não podem comportar voluntarismos ou personalismos, sobretudo os judiciais. No conjunto de idéias ricas e heterogêneas que procuram abrigo neste paradigma em construção incluem-se a atribuição de normatividade aos princípios e a definição de suas relações com valores e regras; a reabilitação da razão prática e da argumentação jurídica; a formação de uma nova hermenêutica constitucional; e o desenvolvimento de uma teoria dos direitos fundamentais edificada sobre o fundamento da dignidade humana. […] No Estado constitucional de direito, a Constituição passa a valer como norma jurídica. A partir daí, ela não apenas disciplina o modo de produção das leis e atos normativos, como estabelece determinados limites para o seu conteúdo, além de impor deveres de atuação ao Estado. Nesse novo modelo, vigora a centralidade da Constituição e a supremacia judicial, como tal entendida a primazia de um tribunal constitucional ou suprema corte na interpretação final e vinculante das normas constitucionais.

O Ministro ainda traz à discussão interessante que influi na chamada jurisdição constitucional. Conforme nos explicita Democracia e Regime Constitucional apesar de se mesclarem harmonicamente em nosso sistema político pátrio, não são sinônimos e podem acontecer alguns toques de tensão entre os mesmo, que necessitariam do Judiciário para apaziguar. Afirma o jurista7: A justificação filosófica para a jurisdição constitucional e para a atuação do Judiciário na vida institucional é um pouco mais sofisticada, mas ainda assim fácil de compreender. O Estado constitucional democrático, como o nome sugere, é produto de duas ideias que se acoplaram, mas não se confundem. Constitucionalismo significa poder limitado e respeito aos direitos fundamentais. O Estado de direito como expressão da razão. Já democracia BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito.O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: Acesso em 30 de novembro de 2013. 7 BARROSO, Luís Roberto. Ano do STF: Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Disponível em: . Acesso em: 30 de novembro de 2013. 6

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signfica soberania popular, governo do povo. O poder fundado na vontade da maioria. Entre democracia e constitucionalismo, entre vontade e razão, entre direitos fundamentais e governo da maioria, podem surgir situações de tensão e de conflitos aparentes. Por essa razão, a Constituição deve desempenhar dois grandes papéis. Um deles é o de estabelecer as regras do jogo democrático, assegurando a participação política ampla, o governo da maioria e a alternância no poder. Mas a democracia não se resume ao princípio majoritário. Se houver oito católicos e dois muçulmanos em uma sala, não poderá o primeiro grupo deliberar jogar o segundo pela janela, pelo simples fato de estar em maior número. Aí está o segundo grande papel de uma Constituição: proteger valores e direitos fundamentais, mesmo que contra a vontade circunstancial de quem tem mais votos. E o intérprete final da Constituição é o Supremo Tribunal Federal. Seu papel é velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um fórum de princípios – não de política – e de razão pública – não de doutrinas abrangentes, sejam ideologias políticas ou concepções religiosas.

O professor Lenio Luiz Streck também reconhece em recente artigo8 a diferença entre judicialização e ativismo, muito embora com severas críticas ao segundo. Diz o pensador: Se verificarmos bem, veremos que a judicialização é contingencial. Ela não é um mal em si. Ocorre na maioria das democracias. O problema é o ativismo, que, para mim, é a vulgata da judicialização. Enquanto a judicialização é um problema de (in)competência para prática de determinado ato (políticas públicas, por exemplo), o ativismo é um problema de comportamento, em que o juiz substitui os juízos políticos e morais pelos seus, a partir de sua subjetividade (chamo a isso de decisões solipsistas).

Muito respeitosamente discordo do professor. O ativismo judicial, expressa uma postura do intérprete, um modo proativo e expansivo de interpretar a Constituição, potencializando o sentido e alcance de suas normas, para ir além do legislador ordinário. Razão pela qual, a despeito de críticas, o ativismo judiciário é um importante mecanismo de nossa democracia para suprir ao legislativo quando o mesmo encontra-se inerte, emperrado ou incapaz de produzir consenso, o que de certo modo coincide com o pensamento de um Direito mais livre, preocupado com sua evolução enquanto criação humana, corroborando com o desvelar proposto por Martin Heidegger.

O Desvelar do Direito por Heidegger Para Hans Kelsen, o Direito é uma ordem normativa, cujo fundamento de validade é a norma fundamental. Em sua obra Teoria Pura do Direito, diferencia 8

STRECK, Lenio Luiz. O que é isto, o ativismo judicial, em números?. Disponível em: < http://www.osconstitucionalistas.com.br/o-que-e-isto-o-ativismo-judicial-em-numeros> Acesso em: 30 de novembro de 2103.

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o ordenamento jurídico do ordenamento moral na sua forma de construção e não de seu conteúdo. Desse modo, as normas jurídicas são normas positivas, e o fundamento de validades destas apenas pode ser a validade de outra norma em uma escala até a norma fundamental que valida todo o sistema. É dessa forma que a norma fundamental kelseniana é um pressuposto lógico-transcendental. 9 Conforme aduz Cleyson de Moraes Mello10: Como o Direito pode ser visto apenas como a aplicação da regra jurídica? Como foi possível chegar ao ponto total de esquecimento de sua essência? Ora, fica claro que o esquecimento da essência jurídica implica em assumir uma posição objetivista sobre o direito. É necessário situar-nos num ponto de vista que permita ver o direito como um devir (o direito em movimento). Ver o direito a partir de sua historicidade não significa apoderar-se de conceitos abstratos e totalitários da ordem jurídica, mas significa ver o direito a partir de um fundamento originário e que nunca se resolve no comando da regra juridica. Ao contrário, podemos dizer que o direito desvela-se no que é, mais como movimento, como um proceder de, como um projetar-se. De toda sorte, temos de perguntar-nos se é possível, e como se define, um pensamento jurídico que vá mais além do direito positivo, isto é, se é possível uma autêntica compreensão do direito.

Heidegger considera que o Direito não deva ser objeto de uma análise como um sistema fechado em si, livre de impurezas considerando assim encontrar sua verdadeira essência no mergulho de seus textos normativos, como propôs Kelsen, sob pena de congelar suas premissas e impedir sua evolução. Tão pouco é o direito escravo da razão que o define em uma visão sujeito-objeto, com a subjetividade do sujeito e a objetividade do objeto. Na sua obra, Heidegger nos propõe à desconstrução da metafísica ocidental de modo a superar a filosofia transcendental kantiana, que não privilegiaria o ser11, fazendo no caso do Direito caminhar em direção de uma ontologia fundamental para explicar a estrutura prévia de seu sentido. O ser que importa, o ser do ser-aí (Dasein, pre-sença) só tem o seu sentido na temporalidade, ou seja, a historicidade indica a constituição ontológica do “acontecer” como tal no plano da possibilidade (caráter de transcendentalidade) como o modo de ser-no-mundo. O conceito de Direito a partir da historicidade heideggeriana do ser indica uma relação com Dasein, ou seja, uma abertura do direito fincada na essência. A sua verdade ontológica é um acontecimento histórico que deve permear as decisões judiciais que devem ser proferidas levando-se em conta a hermenêutica do ser. Assim abrilhanta-nos novamente o professor Cleyson de Moraes Mello12: 9 MELLO, Cleyson de Moraes. Hermenêutica e direito: a hermenêutica de Heidegger na (re) fundamentação do pensamento jurídico. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2006. p. 127. 10 MELLO, Cleyson de Moraes. Direito e(m) verdade: os novos caminhos da

hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011. p. 33.

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11 MELLO, Cleyson de Moraes. Direito e(m) verdade: os novos caminhos da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011. p. 35. 12 MELLO, Cleyson de Moraes. Direito e(m) verdade: os novos caminhos da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011. p. 36.

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A decisão judicial é produto do homem (não dita de forma arbitrária e objetiva), mas é ao mesmo tempo mais do que isso, já que o próprio intérprete (longe de produzir e dizer arbitrariamente o direito) está situado com ele e por ele na sua abertura e desvelamento histórico. É, pois, o magistrado e o intérprete se inserindo na espiral hermenêutica do Dasein. (...) É uma mudança de paradigma, uma vez que a hermenêutica (aqui se referindo à hermenêutica filosófica) passa a ter papel de destaque sobre a analítica. No mundo pós-moderno, os juristas não podem compreender o direito mediante uma teoria formal de interpretação do direito (intérpretes da vontade do legislador), mas devem ver além do direito positivo. O direito não pode ser mais compreendido a partir da separação absoluta entre moralidade e legalidade. O direito deve, portanto, desvelar uma justificação prática. Não há como dizer o direito dissociado de sua realidade social e humana. Daí a concretização dos direitos humanos e a realização da dignidade da pessoa humana. Assim, um direito procedimentalmente válido, mas em distonia com o homem e sua dignidade, deve ser deixado no esquecimento.

O direito não pode ser visto como algo que agora é, mas um desvelar para a possibilidade, ou seja, para a essencial necessidade de dizer o direito. Portanto, o direito não é, já que a sua compreensão é uma condição de possibilidades de construção hermenêutica. É uma possibilidade construída ao encontro do intérprete. A mudança paradigmática ocorre a partir do momento da superação da relação sujeito-objeto, no qual o ser é pensando como Aletheia – como possibilidade. É a ideia de ser-no-mundo, de Dasein, que possibilitou a Heidegger ultrapassar o horizonte da ontologia da coisa.

O Desvelar do Direito na Atuação do Judiciário Deste modo, a hermenêutica heideggeriana nos apresenta um quadro de quebra do positivismo, fundando a interpretação de um texto jurídico no Dasein (ser-aí, pre-sença, estar-aí) ao invés de uma validação em um sistema fechado de regras. Pouco a pouco, a atuação do Judiciário demonstra que o direito não está preso a um sistema seguro, neutro, à prova do tempo e das mudanças históricas do homem e da sociedade. Assim diz-nos o professor Cleyson de Moraes Mello13: Onde e como deve o magistrado buscar a fundamentação de sua decisão? Para o positivismo de todos os matizes, o processo cognitivo de fundamentação jurídica fica reduzido ao processo silogístico-subsuntivo, ou seja, conclusões tautológicas tidas sempre como verdadeiras, a partir do conteúdo de suas premissas. O direito como uma teorética demonstração apodítica repousada numa lógica de causa-efeito. 13

MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do Direito, à metodologia da ciência do Direito e hermenêutica contemporâneas. Um atuar dinâmico da Magistratura na perspectiva civil-constitucional: a (re)produção do Direito. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2008. p. 134.

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(...) Daí que a ciência jurídica deve ficar desatrelada ao pensamento científico-natural e encaminhar-se em direção a um pensar filosófico, um pensar dissociado da história da metafísica ocidental que é a história do esquecimento do ser.

Com efeito, a Constituição supera o documento normativo, centro do ordenamento jurídico, fundando sua supremacia na verdade também material e axiológica. Da mesma forma, os tribunais, através dos juízes, passam a desempenhar um protagonismo ao concretizar a Constituição e os direitos fundamentais previstos em seu texto Nesse sentido, aduz Paulo Bonavides14 que: O método silogístico, dedutivo, arrimado à subsunção, cede lugar ao método axiológico e indutivo que, com base nos princípios e nos valores, funda a jurisdição constitucional contemporânea, volvida mais para a compreensão do que para a razão lógica, de sentido formal, na aplicação da lei.

Não há doutrina, atualmente, específica sobre o ativismo judicial. Vanice Valle15, em sua obra dedicada ao tema, afirma que o termo ativismo possui um caráter ambíguo, entre o finalismo e o comportamental. O primeiro referese ao compromisso com a expansão dos direitos individuais, ao passo que no segundo prevalece à visão pessoal de cada magistrado na interpretação da norma constitucional. Explica-se melhor16: [...] o parâmetro utilizado para caracterizar uma decisão como ativismo ou não reside numa controvertida posição sobre qual é a correta leitura de um determinado dispositivo constitucional. Mais do que isso: não é a mera atividade de controle de constitucionalidade – consequentemente, o repúdio ao ato do poder legislativo – que permite a identificação do ativismo como traço marcante de um órgão jurisdicional, mas a reiteração dessa mesma conduta de desafio aos atos de outro poder, perante casos difíceis.

Ronald Dworkin17, afirma que os casos difíceis sempre encontrarão uma resposta nos princípios, além das normas prescritas, o que afirma o papel proativo do jurista. O mestre diz:

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O direito como integridade pede que os juízes admitam, na medida do possível, que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios sobre a justiça, a equidade e o devido processo legal adjetivo, e pede-lhes que os apliquem nos novos casos que se lhes apresentem, de tal modo que a situação de cada pessoa seja justa e equitativa segundo 14 BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 140. 15 VALLE, Vanice Regina Lírio do (org.). Ativismo Jurisprudencial e o Supremo Tribunal Federal. Laboratório de Análise Jurisprudencial do STF. Curitiba: Juruá, 2009. p. 19. 16 Idem, p. 21. 17 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo1999, Martins Fontes. p. 291.

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as mesmas normas. Esse estilo de deliberação judicial respeitada ambição que a integridade assume a ambição de ser uma comunidade de princípios.

Em oposição, a Dworkin, tem-se o pensamento de Hart18 que afirma categoricamente que no vazio do legislativo o juiz deve criar direito. Nota-se que para ele, diante de casos difíceis o juiz deve usar a discricionariedade, tendo em vista que não há como prever uma resposta para todos os conflitos que apareçam. Assim, o juiz não poderá buscar nos princípios, precedentes e nas leis a solução para um fato inédito. De todo modo também enxerga uma atitude mais intervencionista do Judiciário. Diz o jurista: O conflito direto mais agudo entre a teoria jurídica deste livro e a teoria de Dworkin é suscitado pela minha afirmação de que, em qualquer sistema jurídico, haverá sempre certos casos juridicamente não regulados em que, relativamente a determinado ponto, nenhuma decisão em qualquer dos sentidos é ditada pelo direito e, nessa conformidade, o direito apresenta-se como parcialmente indeterminado ou incompleto. Se, em tais casos, o juiz tiver de proferir uma decisão, em vez de, como Bentham chegou a advogar em tempos, se declarar privado de jurisdição, ou remeter os pontos não regulados pelo direito existente para a decisão do órgão legislativo, então deve exercer o seu poder discricionário e criar direito para o caso, em vez de aplicar meramente o direito estabelecido pré-existente. Assim, em tais casos juridicamente não previstos ou não regulados, o juiz cria direito novo e aplica o direito estabelecido que não só confere, mas também restringe os seus poderes de criação do direito.

Repara-se, portanto, que a pro atividade do julgado é um fato mais que reconhecido por ambos pensadores, é algo desejado. E neste mesmo enxergar, de algo além do texto, que Heidegger também enxerga o verdadeiro Direito. Destarte, a dogmática jurídica funda-se ainda para alguns doutrinadores na metafísica clássica, e esse tipo de pensamento precisa ser superado por teorias jurídicas ancoradas em novos paradigmas. Vários operadores do Direito ainda o enxergam na redução de sua atividade à lei, a impessoal neutralidade e a falsa objetividade do processo decisório. Tal racionalidade lógico-dedutivista aplicada privilegia o método encontra-se em distonia com a pluralidade e a complexidade dos casos concretos levados ao judiciário. Segundo o professor Cleyson de Moraes19: HART, Hebert L. A. O Conceito de Direito. 3. ed. São Paulo: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001. p. 335. 19 MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do Direito, à metodologia da ciência do Direito e hermenêutica contemporâneas. Um atuar dinâmico da Magistratura na perspectiva civil-constitucional: a (re)produção do Direito. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2008. p. 101.

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O caso concreto decidendo deve ser ontologicamente analisado a partir da hermenêutica ligada ao modo de ser-no-mundo, a uma essência do Ser que é a Essência do homem, ao homo humanus; é realizada de forma originaria, através de uma pré-compreensão jurídica em que o intérprete está inserido numa tradição histórica na qual se insere (círculo hermenêutico). Isto representa que o julgador somente poderá atingir o significado dos entes a partir de seu horizonte histórico, a partir de uma situação hermenêutica.

E em outra obra sua vai além20: Nos dias de hoje, as discussões jurídicas acerca das condições sobre as quais se torna decidível uma norma jurídica é de fundamental importância. Especialmente diante de princípios e cláusulas abertas, o magistrado não tem o condão de dizer o direito de qualquer forma. O que nos interessa nesta pesquisa é relacionar o direito à verdade (aquela pautada na analítica existencial), dando conta do mundo concreto do direito. Daí que mais importante que a intencionalidade é a revelação posta pela compreensão no seio do ordenamento jurídico. O conceito de consciência é, pois, substituído pelo de abertura. Assim, a questão da verdade no direito é uma questão de verdade construída. Ora, no direito é necessário encontrarmos uma condição de possibilidade da ordem jurídica que seja anterior à própria linguagem, enunciados e proposições jurídicas. Algo que seja revelado como fundamento do direito em sua co-originalidade, isto é, um elemento que seja posto como fundamento de toda ordem jurídica que não represente um fundamento da tradição metafísica. Ser-no-mundo indica esse elemento heideggeriano.

Isso representa-nos que o ato de interpretar a lei não pode mais ser visto como uma técnica de submissão do caso concreto ao texto normativo, visto que a compreensão transcende ao âmbito da ciência. Pode-se dizer em síntese que a fundamentação da decisão jurídica não pode ser formulada a partir de uma visão objetivista e atemporal. O juiz não se apreende somente a letra da lei e de seu tempo, segundo o ativismo não o faz, mas sim deve ser conformada na hermenêutica da juridicidade, vinculada a uma permanente reflexão crítica do homem enquanto ser-no-mundo, superando a relação sujeito-objeto.

Conclusão Vale destacar que essa posição defendida por este artigo de uma maior pró-atividade do julgador não significa um retorno ao subjetivismo, uma vez que o reconhece em uma situação hermenêutica, vivenciando uma tradição

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20 MELLO, Cleyson de Moraes. Direito e(m) verdade: os novos caminhos da hermenêutica jurídica. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2011. p. 26.

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que é um patrimônio comum do homem inserido no ser-no-mundo. Portanto, o pensamento jurídico está em harmonia com um sistema aberto, já que a fundamentação jurídica é tem sua determinação relacionada a uma abertura de possibilidades. Somente assim abarca-se a pluralidade e extensão dos fatos do Direito no mundo. O Direito tem que ser agora um desvelar para a possibilidade, ou seja, para a essencial necessidade de dizer o direito. Portanto, o juiz como intérprete maior do direito não é mero seguidor submisso exclusivamente à lei, já que a sua compreensão é uma condição de possibilidades de construção hermenêutica. A mudança paradigmática ocorre a partir do momento da superação da relação sujeito-objeto, no qual o ser é pensando como Aletheia – como possibilidade. É a ideia de ser-no-mundo, de Dasein, que possibilitou a Heidegger ultrapassar o horizonte da ontologia da coisa. Nossa própria conformidade constitucional reconhece este papel ao Judiciário, ao imprimir como suas premissas maiores nossos direitos fundamentais que são normas abertas e não regras simples de conduta. A Constituição, chamada de Cidadã, elege inclusive o Poder Judiciário como guardião maior desta, sendo um contrassenso absoluto negar ao jurista que atue, movimente-se e produza o direito a partir desta mesma premissa. A defesa do ativismo passa por uma visão de que o Direito deve libertar-se de um pensamento científico-natural e se fundar em um pensar filosófico, com o a interpretação jurídica mais preocupada com o ser do que uma técnica de subsunção do fato ao texto normativo, visto que a compreensão transcende ao âmbito da ciência em uma verdadeira hermenêutica jurídica.

Referências bibliográficas BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. ______. Ano do STF: Judicialização, ativismo e legitimidade democrática. Disponível http://www.conjur.com.br/2008-dez-22/judicializacao_ativismo_ em: < legitimidade_democratica> Acesso em: 30 de novembro de 2013. ______. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do Direito. O triunfo tardio do Direito Constitucional no Brasil. Disponível em: Acesso em 30 de novembro de 2013. BONAVIDES, Paulo. Do Estado Liberal ao Estado Social. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2004. CASTRO, Marcos Faro. O Supremo Tribunal Federal e a judicialização da política. São Paulo: Revista de Ciências Sociais, 1998. DALBERIO, Osvaldo; DALBERIO, Maria Célia Borges. Metodologia Científica: desafios e caminhos. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2011. DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes: 1999.

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Dignidade da pessoa humana e o direito à eutanásia Hamerson Castilho do Nascimento1 Resumo Elencado como direito fundamental, o direito à vida se contrapõe, em princípio, ao direito à liberdade de escolha de ter uma morte digna, através do método denominado eutanásia, no caso de um paciente em estado terminal. Pelo direito à vida se tem o dever de manter vivos todos os enfermos, independentemente de sua situação e, pelo direito à liberdade de escolha, amparado pelo princípio da dignidade da pessoa humana, o enfermo pode optar por ter uma morte digna. O presente artigo científico trata do aparente conflito de direitos fundamentais, evidentemente sem esgotar o tema, sendo o exercício da liberdade ínsito ao direito à vida, razão pela qual, pela ponderação dos bens envolvidos, defende-se pela aplicação da dignidade da autonomia. Palavras-chave: Direitos fundamentais; Direito à vida; Eutanásia; Dignidade da pessoa humana. Abstract Cast as a fundamental right, the right to life is opposed in principle to the right to freedom of choice of a dignified death, through the method called euthanasia in the case of a terminally ill patient. The right to life has a duty to keep alive all the sick regardless of their situation and the right to freedom of choice, supported by the principle of human dignity, the patient can choose to have a dignified death. This scientific paper deals with the apparent conflict of fundamental rights, of course without exhausting the subject and the exercise of freedom ínsito the right to life, which is why, by the weight of the goods involved, defends himself by applying the dignity of autonomy. Keywords: Fundamental rights; Right to life; Euthanasia; Dignity of the human person.

Introdução O presente artigo tem por finalidade levar à discussão acerca do pleno exercício de direitos fundamentais, estes aqui limitados ao direito à vida e à liberdade de escolha de ter uma morte digna, rompendo com paradigmas a fim de se alcançar plenamente o exercício da dignidade da pessoa humana. 1Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC – Juiz de Fora - MG; Pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Estácio de Sá; Pós-graduado em Direito do Consumidor e Responsabilidade Civil pela Universidade Estácio de Sá; Bacharel em Direito pela Universidade Estácio de Sá; Professor de Direito do Consumidor, Responsabilidade Civil e História do Direito Brasileiro na graduação da universidade Estácio de Sá; Advogado atuante inscrito na OAB/RJ.

Dignidade da pessoa humana e o direito à eutanásia

O que se pretende discutir, não é o direito à morte, mas sim o direito à morte digna, visto que há distinção entre esses direitos. O primeiro guarda estrita e quase ilimitada relação com a autonomia privada, já o segundo, razão da controvérsia acerca da eutanásia, relaciona-se as noções de piedade e dignidade pessoal. Etimologicamente, eutanásia (eu = bom) e (thánatos = morte) significa boa morte, morte sem dor, morte piedosa. Atualmente, pensa-se em eutanásia como o ato de dar a morte, por compaixão, a alguém que sofre intensamente, em estágio final de doença incurável3 ou que vive em estado vegetativo permanente. Num primeiro momento, traça-se um paralelo entre o direito da personalidade, imanente ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, no qual o desenvolvimento do estudo invade as searas dos direitos fundamentais para composição de um suposto conflito destes direitos. Faz-se ainda, um contraponto com normas de regulamentação que legitimam ou não a recusa ao prolongamento da vida sem dignidade, o que evoluiu para a dignidade da autonomia.

Direito da personalidade

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Inicialmente cabe questionar se há diferença entre direito fundamental e direitos da personalidade, uma vez que, imanente da pessoa natural o direito da personalidade, tem em seu bojo o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, como restará evidenciado ao final. Segundo a doutrina os direitos da personalidade são espécie, cujo gênero são os direitos fundamentais. A Constituição da República Federativa do Brasil trata, em seu texto, dos direitos fundamentais do artigo 5º ao artigo 17, já os direitos da personalidade são elencados no Código Civil do artigo 11 ao artigo 21. Ainda assim não se pode afirmar que se torne fácil a aplicação prática sobre o citado tema. Para Judith Martins Costa é clara a inteligência de Miguel Reale ao descrever a forma como este pensou o novo Código Civil. Anos antes da interpretação apresentada pela teoria da interpretação constitucional europeia (com MULLER, ALEXY, HABERLE) que a norma é “resultado da interpretação”, já havia ele rompido a cisão entre “norma” e “interpretação”. Além da mudança na interpretação a análise dos direitos da personalidade sofreu, ao longo do tempo, uma mudança na estrutura das normas, seja na Constituição ou no Código Civil ao longo do tempo foi recebendo maior atenção passando a constar na parte inicial do texto, diferentemente do que acontecia anteriormente. Reale já pensara o código como resultado da “estrutura hermenêutica” que carece de complementação de modelos doutrinários que informam o que os demais modelos significam, colocando a pessoa humana como um “valor-fonte” de todos os demais valores.

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Segundo a autora, para Brás Teixeira2: “... A pessoa é, para Miguel Reale, um valor radical e o único incondicionado, mas que, ao mesmo tempo, condiciona, necessariamente, todo o processo espiritual de actualização das virtualidades criadoras do espírito”. Conquanto afirme que o valor não está só, cabendo a correlação pessoa / sociedade / história para dar origem ao que chama intersubjetividade. Tal análise se faz sem a necessidade de valorar a importância deum frente ao outro, uma vez que como dito a pessoa é o valor-fonte essa se concretiza na história. O valor da pessoa humana é fonte de todos os demais valores. O Conceito de bens da personalidade deve partir da expressão “valer como pessoa”: aqueles bens da vida que dizem respeito a uma proteção à pessoa enquanto tal, e nada mais. Assim todos os bens que dizem com a singularidade de cada um e as condições de existência e de expressão dessa singularidade que constitui a personalidade humana. Essa personalidade se constitui em um mosaico resultante do cruzamento entre a perspectiva da alteridade (social) e da ipseidade (individual) não podendo ser traduzida por uma listagem taxativa ou uma definição fixa. Para o ilustre doutrinador Bunello Stancioli: Normas de direitos fundamentais consagram direitos subjetivos. Põem-se como direito individuais de todos os sujeitos envolvidos, garantindo-lhes um dar, fazer ou não fazer. Dessa forma, de acordo com sua posição concernente ao ordenamento jurídico, os indivíduos humanos têm direitos pertinentes a suas condições de sujeitos de Direito. [...] Estes visam a proteger e aduzir, verbi gratia, a vida, a integridade física, o direito à imagem, etc. Dos indivíduos. Por outro lado, as normas de direitos fundamentais levam à dimensão objetiva desses direitos como ‘valores que legitimam a ordem jurídico-constitucional do Estado’. Nessa linha, para além da obrigação de dar, fazer ou não fazer, que resulta na semântica do suporte normativo dos direitos fundamentais (ou uma das dimensões da norma de direito fundamental) e que é sempre pertinente a um sujeito, o Estado (e mais além, o indivíduo e a sociedade) tem outro dever: atuar positivamente, no sentido de tornar efetivos os valores consagrados nas normas de direitos fundamentais, haja ou não sujeitos presentes3.

Conforme disposto no artigo 15 do Código Civil, ninguém pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico ou intervenção cirúrgica. Assim podemos afirmar que, quando o tratamento gerar risco de morte ao paciente, não pode o médico obrigá-lo a submeter-se a este tratamento. 2 MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, Personalidade, Dignidade. (ensaio de uma qualificação). Tese (Livre-Docência em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, maio 2003. p. 221 3 STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna do que quiser. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 12.

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Dignidade da pessoa humana e o direito à eutanásia

Cita-se como exemplo, um caso em que o paciente tenha um tumor cerebral e que a única hipótese é uma cirurgia, de alto risco, que possa resultar em óbito do paciente. Com base no citado artigo, pode o paciente se negar à realização da cirurgia cerebral. Evidente está, com base na liberdade e a manifestação de vontade, que o entendimento da autonomia do paciente está de acordo com o ideal de um Estado Democrático de Direito. Dispõe com muita clareza e inteligência, João Baptista Villela, 4que só a liberdade faz dela o valor caracteristicamente humano. Resumindo, o que importa não é tanto a vida, mas o que fazemos dela. Seguindo os ensinamentos do professor João Baptista Villela: “os direitos da personalidade se dividem em primários e derivados. O primeiro é no sentido de que é a matriz do Direito, de onde os outros tiram a sua existência, e que o direito à vida é primário por excelência”. Quanto a isso, Bobbio5 teria traçado distinção em liberdade para e liberdade de: Para obviar o inconveniente da parte doente que prejudica o todo, reconhece-se a todos os indivíduos essa nova categoria de direitos, que são chamados econômicos, sociais, cujo escopo, ademais de reafirmar sua dignidade, é concorrer, exatamente como diz o artigo citado, para o ‘livre desenvolvimento da sua personalidade’.

A liberdade para atribui ao indivíduo não só a faculdade, mas também o poder de fazer, ou seja, pôr em cada indivíduo a condição de dispor do poder de fazer aquilo que é livre para fazer, de modo que poder-se-ia optar pela negativa do tratamento médico. Quando tratou do assunto objeção de consciência em sua obra, Código Civil comentado, Nelson Nery Júnior6, citando João Baptista Villela, defendeu que nos casos da transfusão de sangue das Testemunhas de Jeová não se aplica à espécie o artigo 15 do Código Civil, mas sim a recusa do paciente em se submeter à transfusão pode levá-lo a um risco de morte. Villela teria entendimento no sentido de que não há óbice constitucional em que alguém prefira a morte ao tratamento de transfusão de sangue. Num primeiro momento, tal entendimento causa espanto a quem acredita que o direito à vida é absoluto. Não é, uma vez que, a Constituição Federal com fulcro no artigo 5º, XLVII, a, contempla a possibilidade de restrição ao direito à vida, com a pena de morte, nos caos de guerra declarada. Cabe assim o entendimento que, pautada na liberdade de escolha e na autonomia, estando uma pessoa em estado terminal ou vegetativo, sob pena

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4 VILLELA, João Baptista. O novo Código Civil Brasileiro e o direito à recusa de tratamento médico Revista da Faculdade de Direito, UFMG, 2004, p. 60. 5 VILLELA, João Baptista. O novo Código Civil Brasileiro e o direito à recusa de tratamento médico Revista da Faculdade de Direito, UFMG, 2004, p. 60. 6 NERY JÚNIOR, Nelson e outros. Código Civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 220.

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de ferir frontalmente seus direitos, algo ínsito no seu ser, na sua crença de vida, deve ter seu direito de não querer viver indignamente garantido, ainda que com certas cautelas.

Dignidade da pessoa humana Superado o período anterior de nossa História, denominado por alguns de ANOS DE CHUMBO, retornamos a um período em que reina a democracia. Pode não ser uma democracia plena, sonhada por alguns, mas certamente é muito melhor do que a vigência de um estado de exceção. No atual período histórico que vivemos em nosso País prevalece o Estado Democrático de Direito, pressupondo-se assim uma ordem jurídica em que se garantam importantes instrumentos para a defesa dos particulares em face do Poder do Estado. O constituinte elencou como fundamentos do Estado Brasileiro no artigo 1° da nossa atual Carta Magna a soberania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre cidadania, o pluralismo político. A Constituição do Estado Democrático de Direito é um sistema de valores jurídicos. As regras que a compõem somente podem ser aplicadas nos estreitos limites dos valores que as densificam por meio dos princípios. Fica claro que, seguindo a tendência do constitucionalismo contemporâneo, o Brasil adotou expressamente em seu texto o princípio da dignidade da pessoa humana, definindo-o como fundamento da República e do Estado Democrático de Direito. Cabendo ao Direito um papel fundamental na proteção dos valores que norteiam o Ordenamento Jurídico brasileiro. Na visão de Cleyson Mello a pessoa é hodiernamente o valor máximo de nosso ordenamento cabendo ao Direito, portanto, sua proteção e de sua dignidade. O direito deve ser interpretado em sintonia com as cláusulas constitucionais protetivas da personalidade, quais sejam: dignidade humana como valor fundamental da Constituição da República (art. 1o, III, da CRFB/88) e igualdade substancial (art. 3o, III, da CRFB/88). Ora, daí a necessidade de o jurista conhecer o que é o homem, saber o que significa a dignidade humana e realizar o amálgama com a realidade jurídica. É na esteira da filosofia existencialista que a pessoa ganha status de questão prévia para o ordenamento jurídico, já que esta não pode ficar aprisionada ao rol de direitos subjetivos encontrados no sistema jurídico. A pessoa não pode ser considerada como um reduto do poder do indivíduo, mas sim “como valor máximo do ordenamento, modelador da autonomia privada, capaz de submeter toda a atividade econômica a novos critérios de legitimidade”.2 Nesse sentido que o autor fala de uma verdadeira “cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana”, tomada como valor máximo pelo ordenamento7. 7 Mello, Cleyson de Moraes. Direito e pessoa: o direito, o que é? O homem, quem é ele? A questão prévia do ordenamento jurídico, p. 37-46. In: Antônio Celso Alves Pereira; Cleyson de Moraes Mello. (Org.) Revista da Faculdade de Direito de Valença-RJ,2010, p. 37.

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A Constituição Federal elenca como direito fundamental a dignidade da pessoa humana, tratada como um conceito em movimento. Segundo os ensinamentos de João Batista Villela8: É por ela que se designa alma do projeto humano. Com dignidade da pessoa humana queremos traduzir intangibilidade de cada um dos indivíduos que participam do ser homem. Para além de todas as circunstâncias de tempo e de lugar. Da cultura. Dos atributos étnicos. Do sexo. Da idade. Da saúde. Do vício. Da virtude. É a ela que nos reportamos para condenar a tortura, as penas infames, o abandono, o ódio, o desprezo, o horror, a guerra. É ela que nos obriga a assistir enfermos e desabrigados. Acolher os oprimidos e alimentar os que têm fome.

A dignidade da pessoa humana, segundo Regine Kather9, não é atribuída ao ser humano, ou dele retirada. Não é algo que poderíamos alcançar ao cabo de um penoso processo de consenso. Ela não pode ser adquirida nem perdida. O que simplesmente podemos é merecê-la ou feri-la.

Entretanto, sua utilização indiscriminada, pois diante dos fatos mais cotidianos justificamos com a dignidade da pessoa humana, o conceito de dignidade da pessoa humana vem encontrando uma banalização. Assim, se faz a proposta de rompimento de paradigma no sentido de aplicar a dignidade da pessoa humana de forma a alcançar a efetividade da norma constitucional garantindo àqueles que acreditem na possibilidade de uma vida melhor em um plano superior, e se este melhor, em que pese contrariar a maior parte do consenso geral, é escolher a morte em detrimento de uma vida pautada na dor e no sofrimento, que assim o seja, prestigiando assim a dignidade da pessoa humana, pois, para aquelas pessoas, pior que a morte, seja a manutenção da vida em condições indignas.

Conflito aparente de direitos fundamentais Por todo o exposto, parece restar configurado um conflito aparente entre direito fundamentais. Para que possamos chegar a uma solução, cabe a aplicação da ponderação dos bens envolvidos, isto é, direito à vida e direito à liberdade de escolha ou autonomia da vontade. Em parecer feito à Procuradoria-Geral do Estado do Rio de Janeiro acerca da atitude a ser tomada pelos médicos do Hospital Universitário Pedro Ernesto diante da negativa de pacientes Testemunhas de Jeová à realização de transfusão de sangue, o agora ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso10 defende que, na verdade, a recusa do paciente em realizar a transfusão de sangue

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8 VILLELA, João Baptista. O novo Código Civil Brasileiro e o direito à recusa de tratamento médico. Revista da Faculdade de Direito, UFMG, 2004, p. 61. 9 VILLELA, João Baptista. O novo Código Civil Brasileiro e o direito à recusa de tratamento médico. Revista da Faculdade de Direito, UFMG, 2004, p. 61. Aplicação hermenêutica aos casos das Testemunhas de Jeová 10Consulta em http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/ testemunhas_de_jeova. pdf

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é oriunda do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, inserto no artigo 1º, III, da CRFB. O direito de decidir os rumos de sua própria vida é tão relevante quanto o direito à vida, visto que, a dignidade envolve a capacidade de autodeterminação. Para o exercício desta autodeterminação, além de escolhas livres, deve-se fornecer meios para que esta liberdade seja real, garantindo, assim, o mínimo existencial que cada pessoa deve ter. Não há que se falar que o direito à vida deva ser rechaçado. É claro que é direito indisponível, não sendo mero ato de manifestação de vontade de ninguém, mas, em alguns casos, é passível de flexibilização. Cite-se como exemplo a prática de esportes radicais, onde, mesmo tendo ciência do risco de morte, pode o praticante, após assinatura de um termo de responsabilidade, exercer a modalidade. Voltando ao caso das testemunhas de Jeová, Luís Roberto Barroso11 defende ainda que: O Estado brasileiro adota a laicidade, mas não prega o laicismo (compreendido como a defesa da ignorância ou hostilidade ao elemento religioso). Em qualquer caso haverá a imposição externa de valores existenciais e a consequente violação da dignidade como autonomia.

Ademais, deve prevalecer a dignidade da pessoa humana, como fruto de uma nova realidade jurídica. É o que se depreende dos ensinamentos de Cleyson de Mello12: A cultura jurídica operada em salas de aula e nos tribunais de justiça deve ser desconstruída (visão de um sistema fechado codicista) em busca de uma postura metodológica mais aberta, prospectiva, que dê suporte a uma sociedade complexa e pluralista. Isso não quer dizer que o julgador desconsidere a segurança jurídica e passe a decidir de forma arbitrária (neste caso, estaríamos diante de um Estado-Judiciário). Pelo contrário, a jurisprudência deve reconhecer a eficácia normativa dos princípios constitucionais, bem como recorrer à hermenêutica jurídica não como um conjunto de métodos (hermenêutica metodológica), mas sim como condição de possibilidade (hermenêutica filosófica).

O locus hermenêutico constitucional esta fincado no princípio fundante da proteção da dignidade da pessoa humana. Daí que mais do que aplicar, torna-se necessário compreender o Direito. O Direito deve estar relacionado à pessoa, de acordo com as suas exigências, o seu ambiente e a sua cultura. 11 Consulta em http://www.luisrobertobarroso.com.br/wp-content/themes/LRB/pdf/ testemunhas_de_jeova. pdf 12 Mello, Cleyson de Moraes. Direito e pessoa: o direito, o que é? O homem, quem é ele? A questão prévia do ordenamento jurídico, p. 37-46. In: Antônio Celso Alves Pereira; Cleyson de Moraes Mello. (Org.) Revista da Faculdade de Direito de Valença-RJ,2010, p. 37.

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Dignidade da pessoa humana e o direito à eutanásia

Fácil concluir que não há conflito aparente entre os direitos fundamentais: dignidade da pessoa humana e segurança jurídica, devendo aqui haver a prevalência do que é ou não eficaz socialmente, ou seja, se ele produz os resultados e os efeitos desejáveis para a pessoa. A dignidade da pessoa humana é valor que se curva o Direito e que deve reconhecer a personalidade, portanto, a negativa do direito de encurtar uma vida considerada, pela própria pessoa em estado terminal, indigna, ou dispare do conceito de vida boa, é afirmar que a liberdade de escolha e a autonomia, direitos fundamentais dispostos na Lei Maior é negar vigência à própria Constituição.

Autonomia da dignidade e a Estrutura normativa do Código de Ética Médica O proceder médico frente a situações de risco é estabelecido através de normas reguladoras. A Resolução do Conselho Federal de Medicina13, de n.º 1.931, de 2009, dispõe em seu capítulo V, referente à relação de paciente ou seus familiares, em seu artigo 41 que é vedado ao médico: Abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal. Parágrafo único. Nos casos de doença incurável e terminal, deve o médico oferecer todos os cuidados paliativos disponíveis sem empreender ações diagnósticas ou terapêuticas inúteis ou obstinadas, levando sempre em consideração a vontade expressa do paciente ou, na sua impossibilidade, a de seu representante legal. (Grifo nosso).

Aqui, latente a presença do elemento volitivo, no âmbito médico, na tomada de uma decisão. A tendência é que se observe o consentimento do paciente / vítima relevante para determinar a conduta a ser adotada nos casos em que se faça opção de evitar a manutenção da vida biológica à custa da degradação e do sofrimento humano. Vigendo desde 2010, O novo Código de Ética de Medicina, estabeleceu como princípio fundamental a dignidade do paciente e veda violações à sua integridade. Já em se considerando, o Código de Ética Médica, busca melhor relacionamento com o paciente e a garantia de maior autonomia à sua vontade, o que nos leva a conclusão lógica de que a recusa à manutenção da vida que não se encontre dentro de um padrão de vida boa vai ao encontro do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, inserto no artigo 1º, III da Constituição Federal. Constata-se que o próprio Código de Ética Médica reviu os valores inerentes ao relacionamento médico e paciente e fez prevalecer a autonomia da

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13 Consulta em http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2009/1931_2009.htm. Pdf.

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dignidade, em repúdio à violação. É possível afirmar, sem qualquer problema, que a recusa do paciente ao tratamento médico, que lhe prolongue a vida sem dignidade, seja na forma do artigo 1º, III da Constituição Federal ou com fulcro no artigo 15 do Código Civil, é legítima.

A hermenêutica Segundo a etimologia, a palavra hermenêutica é hermeneuein, do grego, que significa interpretar e, no substantivo, hermeneia, isto é, interpretação. Podemos dizer que hermenêutica quer dizer sentido das palavras14. É através da hermenêutica que se faz a compreensão histórica e humanística, alcançando o sentido mais fundante e existencial e de melhor aplicabilidade para o caso concreto. Ensina Judith Martins, que a utilização da teoria constitucional em substituição a teoria civilista, levou a superação da hermenêutica clássica pela teoria da interpretação dos direitos fundamentais. Isso acontece em razão de, em suas palavras, certas normas carecerem não somente de interpretação, mas de concretização. A aplicação da norma de acordo com o caso concreto (concretitude) isso em razão da definição de nosso tempo, ou seja, da plurarização da subjetividade jurídica ou tempo da concreção. Esse é o pensamento aplicado por Miguel Reale na criação do Código Civil. Segundo ele é uma diretriz fundamental a diretriz da operabilidade, também chamada de concretitude. Explica Reale15: ... o princípio da operabilidade leva, a redigir certas normas jurídicas, que são normas abertas, e não normas cerradas, para que a atividade social mesma, na sua evolução, venha a alterar-lhe o conteúdo através daquilo que denomino “estrutura hermenêutica”, porque, no meu entender, a estrutura hermenêutica é um complemento natural da estrutura normativa. (...) concretude, oque é? É a obrigação que tem o legislador de não legislar em abstrato, para um indivíduo perdido na estratosfera, mas, quanto possível, legislar para o indivíduo situado (...) quer dizer, atender as situações sociais, à vivencia plena, no Código, do direito subjetivo como uma situação subjetiva; não um direito subjetivo abstrato, mas uma situação subjetiva concreta.

A Carta Magna de 1988 adveio da ditadura, o que levou a uma inclusão de um sem numero de direitos em seu texto, até de forma indiscriminada. Isso como forma de garantia da manutenção dos direitos fundamentais, políticos, sociais, dentre outros. Estando no texto constitucional, para serem modificados, seria necessária a criação de outro poder constituinte originário. 14 MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do direito, à metodologia da ciência do direito e hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008, p. 94. 15 MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, Personalidade, Dignidade. (ensaio de uma qualificação). Tese (Livre-Docência em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, maio 2003, p. 225.

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Cabe citar a hermenêutica de Wilhelm Dilthey, que procurou inserir a hermenêutica a partir do fundamento das ciências humanas, no qual os estudos hermenêuticos devem ser atrelados à experiência concreta, histórica e viva do homem16. Na busca da compreensão da vida como vivência e como fluxo concreto do viver íntimo, a hermenêutica deve estar de acordo com a filosofia de vida, como fio condutor da autocompreensão do homem. Nos ensina Dilthey, a diferenciação do objeto das ciências da natureza e nas ciências do espírito. A diferença dos objetos implica na diferença gnosiológica: “é a observação externa que nos dá os dados das ciências naturais, ao passo que é a observação interna que nos dá os dados da ciência dos espíritos”17. O que se depreende é que Dilthey enxerga a vida como experiência humana, aditando posicionamento antimetafísico e fenomenológico e que a partir daí a interpretação das ciências do espírito criassem novos modelos de interpretação dos fenômenos históricos. A interpretação das ciências dos espíritos se dá com a vida interior do homem, que é produto da manifestação de experiência interna do homem. Fazendo uso da “arte da compreensão”, com fulcro nos ensinamentos de Cleyson de Moraes Mello, é cabível a conclusão que não há conflito de direitos fundamentais, conquanto, deve ocorrer uma valoração e ponderação de bens de acordo com o caso concreto18. De um lado, quando a Carta Magna estabelece o direito à vida como direito fundamental é no sentido de que a vida deve ser garantida a qualquer custo, de outro lado a liberdade de escolha associada à autonomia é no sentido da pessoa exercê-la de forma efetiva, adequada e digna. Não há que se falar, portanto, em um conflito aparente de direitos fundamentais. Contudo pode se dizer que a efetividade de tais direitos deve ser analisada de forma cautelosa, porém, cabendo a aplicação de uma forma moderada.

Conclusão Podemos agora concluir, face ao exposto, que não são definitivas, mas refletem o resultado das pesquisas deste trabalho, que as posições defendidas nos debates sobre a eutanásia são baseadas em convicções pessoais e, muitas vezes, antagônicas. Certo é que se busca, de uma forma incessante, viver da melhor forma possível, conquanto, também buscamos e temos o direito a uma morte igualmente boa e digna.

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16 MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do direito, à metodologia da ciência do direito e hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008, p. 100. 17 MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do direito, à metodologia da ciência do direito e hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008, p. 100. 18 MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do direito, à metodologia da ciência do direito e hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008, p. 101.

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É necessário respeitar à autonomia da pessoa como forma de assegurar que não se conduza à morte um paciente que luta com todas as suas forças para permanecer vivo. Igualmente é cabível conceder àquele que se sente ultrajado pelas condições de sua vida, sofrendo dores físicas e emocionais, decidir por si próprio a hora de morrer é também garantir-lhe dignidade. A Obrigatoriedade de uma pessoa permanecer viva contra sua vontade é pode ser considerada da mesma forma tão moralmente problemático quanto matar a quem quer viver. Devemos refletir de forma honesta e imparcial sobre a eutanásia, na busca por um mundo em que as pessoas tenham garantida sua capacidade de opnar sobre os assuntos mais íntimos de sua vida, incluindo sua morte. Face ao exposto, fácil concluir que não há conflito aparente entre os direitos fundamentais: direito à vida e direito à liberdade uma morte digna, através da eutanásia, devendo aqui haver a ponderação de valores. Cabe ressaltar ainda que as próprias normas que regulamentam o atendimento médico evoluíram do atendimento paternalista para a autonomia da dignidade, na qual o norte é o respeito pela vontade do paciente. Desta forma, reconhecendo a magnitude dos bens em conflito, entende-se que existir a possibilidade de escolher é a única forma de respeitar a dignidade da pessoa humana. É papel do direito, refletindo a sociedade e seus anseios, a manutenção da tradição de não se esquivar-se ao amparo das agruras humanas fixando critérios e limitações que respeitem a singularidade da pessoa humana.

Referências bibliográficas BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/leis/L6683.htm. Acesso: 02 dez. 2013. MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, Personalidade, Dignidade. (ensaio de uma qualificação). Tese (Livre-Docência em Direito Civil) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, maio 2003. MAXIMILLIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 1996. MELLO, Cleyson de Moraes. Introdução à filosofia do direito, à metodologia da ciência do direito e hermenêutica contemporânea. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2008. Mello, Cleyson de Moraes. Hermenêutica e direito: a hermenêutica de Heidegger na (re) fundamentação do pensamento jurídico. Rio de Janeiro: Maria Augusta Delgado, 2006. Mello, Cleyson de Moraes. Direito e pessoa: o direito, o que é? O homem, quem é ele? A questão prévia do ordenamento jurídico, p. 37-46. In: Antônio Celso Alves Pereira; Cleyson de Moraes Mello. (Org.). Revista da Faculdade de Direito de Valença-RJ, 2010. NERY JÚNIOR, Nelson e outros. Código Civil Comentado. SILVEIRA, Ana Cristina de Melo. A possibilidade de recusa à transfusão de sangue. Belo Horizonte: Del Rey Jurídica, 2010, p. 95. STANCIOLI, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade ou como alguém se torna do que quiser. Del Rey, 2010. VILLELA, João Baptista. O novo Código Civil Brasileiro e o direito à recusa de tratamento médico. Revista da Faculdade de Direito, UFMG, 2004. VILLELA, João Batista. Variações impopulares sobre a dignidade da pessoa humana. Brasília: Superior Tribunal de Justiça, Doutrina, Edição Comemorativa - 20 anos, 2009.

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A justiça distributiva de Aristóteles: uma análise de sua aplicação nas decisões judiciais trabalhistas Larissa Toledo Costa de Assis1 Resumo O trabalho que se apresenta analisou dois acórdãos proferidos por Tribunais Regionais do Trabalho – Distrito Federal/Tocantins e Ceará – nos quais há referência, na fundamentação dos votos, a instituto cunhado por Aristóteles na obra Ética e Nicômaco, qual seja: justiça distributiva. Nesse sentido, antes da referida análise, faz-se uma breve explanação sobre a vida e obra do filósofo. Antes da apresentação de cada julgado, explicase o sentido original do instituto e, após a jurisprudência, faz-se um paralelo entre o viés aristotélico e o viés nela empregado, concluindo, pois, se há aproximação ou distanciamento entre as abordagens. Palavras-chave: Ética a Nicômaco; Aristóteles; Decisão judicial; Justiça distributiva. Abstract This research has examined two judgments delivered by TRT - Distrito Federal / Tocantins and Ceará - in which there is reference in the grounds of the votes, the institute coined by Aristotle in his Nicomachean Ethics, wich is: distributive justice. Accordingly, prior to that analysis, it is a brief explanation about the life and work of the philosopher. Before the presentation of each trial, the original meaning of the institute is explained and after the case, it is a parallel between the Aristotelian bias and her employee bias, concluding therefore it concludes that there is gap between the approach or approaches. Keywords: Nicomachean Ethics; Aristotle; Judicial decision; Distributive justice.

Introdução A fim de contextualizar o referido trabalho, torna-se necessário realizar algumas considerações iniciais. O problema que se apresenta para esta investigação científica consiste na seguinte pergunta: as decisões judiciais trabalhistas, quando fundamentadas na justiça distributiva apresentada por Aristóteles na obra Ética a Nicômaco, tendem a fazê-lo de maneira fiel ao pensamento deste filósofo? 1 Mestranda em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Universidade Presidente Antônio Carlos (UNIPAC); Pós-graduada em Direito Econômico e Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).

A justiça distributiva de Aristóteles: uma análise de sua aplicação nas decisões judiciais trabalhistas

O objeto deste trabalho é composto por uma amostragem de decisões judiciais disponíveis no sítio do Tribunal Superior do Trabalho, a partir das quais se analisará a alusão à ideia de justiça distributiva, originalmente cunhada por Aristóteles, na obra Ética a Nicômaco. As hipóteses desta pesquisa são: que as decisões judiciais trabalhistas, em sua maioria, não invocam argumentos filosóficos e comumente se valem, indiscriminadamente e sem conhecimento, de argumentos de autoridade aleatórios. O objetivo geral consiste em verificar se os dois julgados selecionados na pesquisa demonstram correto conhecimento sobre a justiça distributiva aristotélica; já o objetivo específico visa à realização do levantamento do número aproximado de decisões judiciais trabalhistas que, pelo menos, citam o referido filósofo. O tema escolhido para a pesquisa se justifica pela extrema relevância da obra de Aristóteles para o desenvolvimento do pensamento jurídico ocidental, devendo ser, sempre, incentivado o estudo de sua obra. Em apertada síntese, o trabalho apresenta, inicialmente, algumas considerações sobre a vida e obra do autor em referência – Aristóteles – passando, num segundo momento, ao desenvolvimento dos principais aspectos relacionados à justiça distributiva, quando então a correlacionará aos dois julgados selecionados. Para tanto, toma-se como referência a obra Ética a Nicômaco, considerada a mais amadurecida e representativa do pensamento aristotélico (SCHERER, 2000, p. 2).

Breves considerações sobre Aristóteles e sua obra Aristóteles nasceu em 384 a.C. na cidade de Estagira – por isso também é conhecido como O Estagirita – na Calcídica, região que se encontrava sob a dependência da Macedônia. Sua relação com este reino não se restringe apenas a sua naturalidade (ABRÃO, 1999. p. 53). Seu pai, Nicômaco, era médico da corte do rei Amintas II, pai de Filipe. Aos 17 anos, Aristóteles foi para Atenas, cidade que na ocasião perdera a guerra do Peloponeso para Esparta (FARIA, 2007, p. 21). À época, não só para o estagirita, mas para muitos outros jovens, a vida cultural ateniense despertava bastante interesse, sobretudo no que se refere ao prosseguimento dos estudos.

Em Atenas, Aristóteles ingressou na Academia de Platão, lá estudando por vinte anos, até a morte deste filósofo, em 366 a.C. Conforme os ensinamentos de José Américo Motta Pessanha:

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(...) embora de raízes gregas, ele (Aristóteles) não era cidadão ateniense e estava estritamente ligado à casa real da Macedônia. Essa condição de meteco – estrangeiro domiciliado numa cidade grega – explica que ele não viesse a se tornar, como Platão, um pensador político preocupado com os destinos da polis e com a reforma das instituições. Diante das questões políticas Aristóteles assumirá a atitude do homem de estudo, que se isola da cidade em pesquisas especulativas, fazendo da política um objeto de erudição e não uma ocasião para agir (1987, não paginado).

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Após a morte de Platão, Aristóteles deixou Atenas e seguiu para Jônia, onde passou vários anos estudando a vida selvagem da região (O LIVRO DA FILOSOFIA, 2011, p. 63). Foi no ano de 343 a.C que Filipe confia-lhe a missão de educar seu filho, Alexandre, o Grande, como seu preceptor. Em 335 a.C, após Alexandre assumir o trono, o filósofo retorna para Atenas e funda o Liceu - uma escola que rivalizava com a Academia de Platão – onde escreveu a maior parte de suas obras, formalizando suas ideias. Foi então que, com a morte de Alexandre, em 323 a.C, “Aristóteles passou a ser hostilizado pela facção antimacedônica, que o considerava politicamente suspeito. Acusado de impiedade, deixou Atenas e refugiou-se em Cálcis, na Eubeia. Ali morreu no ano de 322 a.C.” (PESSANHA, 1987, não paginado). Sabe-se que a obra de Aristóteles é muito vasta, mas apenas uma pequena parte chegou até nós, sobretudo os apontamentos que o filósofo preparava para suas aulas, bem como as anotações de seus alunos. Mesmo com esse restrito material, é possível traçar um panorama geral da amplitude de sua obra. Aristóteles foi um filósofo que pensou e se preocupou em escrever sobre quase tudo. Há uma diversidade enorme de temáticas por ele abordadas. Segundo Maria do Carmo Bettencourt de Faria: Aristóteles se dedica ao estudo de seus predecessores, sendo a melhor fonte doxográfica sobre os pré-socráticos; recupera o tema da natureza dedicando-se à física, ao estudo dos animais, ao estudo da alma, ao estudo do céu. Volta-se para a metafísica e o estudo do ser, discutindo não só as teses platônicas, mas expondo os fundamentos de seu próprio pensamento; escreve sobre política e ética; sobre os usos da linguagem na retórica e na poética; é também criador da lógica, à qual dedica uma série de estudos sobre a dialética e a analítica, os argumentos sofistas e a interpretação (2007, p. 22).

De todos os filósofos da Antiguidade, Aristóteles se destaca por ter desenvolvido, mais precisamente, os temas referentes à Filosofia do Direito, apresentando as primeiras noções de justiça e equidade numa perspectiva jurídica. Como já explanado anteriormente, nosso referencial, para o presente estudo, será a obra Ética a Nicômaco, texto que, segundo alguns autores, consiste em anotações de aula de seu filho Nicômaco. A partir dos ensinamentos traçados pelo estagirita, analisaremos em que medida e sob quais aspectos é possível identificar a influência de seu pensamento em decisões judiciais trabalhistas pesquisadas no sítio do Tribunal Superior do Trabalho.

A justiça distributiva de Aristóteles nas decisões judiciais trabalhistas pesquisadas Diversas decisões judiciais trabalhistas foram encontradas, no sítio do Tribunal Superior do Trabalho, contendo influências aristotélicas e, inclusive,

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trazendo excertos de sua obra Ética a Nicômaco. A partir do resultado, foram selecionados dois julgados que citam, em sua fundamentação, a justiça distributiva delineada por Aristóteles. Costuma-se dizer que Aristóteles elaborou um tratado acerca da justiça, conceituando-a e dividindo-a em espécies (MORAIS, 2009, p.12). Um dos tipos de justiça cunhados pelo filósofo denomina-se justiça distributiva, por meio da qual seriam concedidas, a cada indivíduo, vantagens políticas com base na meritocracia, isto é, conforme o mérito de cada um. Para o estagirita, o homem pode ser definido como um animal político, já que a vida na pólis (Estado) se mostra essencial para o desempenho de suas aptidões, bem como para o alcance das virtudes proclamadas pelo filósofo. Nas palavras do filósofo: Não menos estranho seria fazer do homem sumamente feliz um solitário, pois ninguém escolheria a posse do mundo inteiro sob a condição de viver só, já que o homem é um ser político e está em sua natureza o viver em sociedade. Por isso, mesmo o homem bom viverá em companhia de outros, visto possuir ele as coisas que são boas por natureza. E, evidentemente, é melhor passar os seus dias com amigos e homens bons do que com estranhos ou a primeira pessoa que apareça (ARISTÓTELES, 1131a 15-25).

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Dessa forma, na sua visão, a justiça distributiva se manifesta nas distribuições das honras, de dinheiro ou das outras coisas que são divididas entre aqueles que têm parte na constituição (PESSOA, 2006, não paginado). A justiça distributiva tem lugar numa relação público-privada em que há relação de subordinação entre governantes e governados; deve ser, simultaneamente, “intermediária, igual e relativa” (ARISTÓTELES, 1131a 1525). Intermediária porque deve encontrar-se entre dois extremos – o maior e o menor; igual porque envolve duas participações iguais; e, finalmente, relativa, ou seja, justo para certos destinatários (ARISTÓTELES, 1131a 15-25). Nesse sentido, Aristóteles adverte que todos concordam que as distribuições devem ser feitas de acordo com o mérito, “embora nem todos especifiquem a mesma espécie de mérito” (1131a 25-30). Assim, exemplifica o filósofo que a liberdade é o critério para os democratas, a riqueza para os oligarcas e excelência para os partidários da aristocracia. Indissociável da justiça distributiva é a noção de proporção. Nas palavras do estagirita, “o justo, é, por conseguinte, uma espécie de termo proporcional” (ARISTÓTELES, 1131a 30), que envolve pelo menos quatro termos, uma vez que duas são as pessoas para quem ele é de fato justo e duas são as coisas em que ele se manifesta. Explica-se: a proporção aplicada à justiça distributiva, segundo Aristóteles, é a proporção geométrica, na qual existem pelo menos quatro termos - A, B, C e D - sendo que “assim como o termo A está para B, o termo C está para D; ou, alternando, assim como A está para C, B está para D” (ARISTÓTELES, 1131b 5-10).

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Assim, a mesma relação existente entre pessoas existe entre as coisas envolvidas. Ou seja, se as pessoas não são iguais, não receberão coisas iguais e vice-versa. O critério da distribuição é a razão da proporção, a qual, por seu turno, consiste no mérito de cada indivíduo. Logo, na visão aristotélica, o mérito iguala os iguais de acordo com seus critérios e desiguala os desiguais de acordo com esses mesmos critérios. Se a justiça equivale à proporção geométrica, então, para Aristóteles, o justo é aquilo que respeita a proporção. O contrário, pois – o desproporcional – configura o injusto. Explica Aristóteles: Quanto a este último, um dos termos se torna grande demais e o outro muito pequeno, como efetivamente acontece na prática, pois o homem que age injustamente fica com uma parte muito grande daquilo que é bom, e o que é injustamente tratado fica com uma parte muito pequena (1131b 15-20).

Assim, a justiça distributiva torna-se uma questão de proporcionalidade, regulando “as relações entre os indivíduos e a pólis, definindo direitos e deveres proporcionalmente aos méritos e/ou às desigualdades naturais” (FARIA, 2007, p. 51). Abordado o conceito de justiça distributiva na obra aristotélica, passa-se à análise do primeiro julgado selecionado para este trabalho. O primeiro acórdão foi proferido em sede de agravo de petição, pela Terceira Turma do Tribunal Regional do Trabalho de Brasília/DF, conforme segue: Órgão julgador: Processo: Origem: Relator: Revisor: Julgado em: Publicado em: Agravante: Advogado: Agravado: Advogado:

TRT Distrito Federal e Tocantis - 3ª Turma 00965-1997-019-10-00-4 AP 19ª Vara do Trabalho de BRASÍLIA/DF Juiz João Luis Rocha Sampaio Juiz Bertholdo Satyro 19/02/2003 14/03/2003 no DJ Drive Car - Transportes e Combustíveis Ltda Clélia Scafuto Benedito Elias Fernandes Emens Pereira de Souza

Acordão do(a) Exmo(a) Juiz João Luis Rocha Sampaio (...) No decorrer da relação de emprego, existe a obrigação do empregador de recolher os depósitos ao Fundo, obedecendo procedimento descrito na Lei citada, art. 15: efetuar a contribuição até o dia sete de cada mês. O caso concreto evidencia hipótese de descumprimento da Lei pelo empregador, em que não adimplida, regularmente, a obrigação, instalando-se, em decorrência, o prejuízo do empregado, que teve seu direito violado, de forma a reclamar restauração em juízo. No contrato de trabalho, há percepção

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de salários para a subsistência do empregado, cabendo ao empregador o cumprimento da Lei em comento, quanto à regularidade dos depósitos. Na cessação do contrato sem justa causa, em situação de desemprego, não haverá percepção de salários. O empregado, então, recorre aos depósitos do FGTS, como meio de garantir sua subsistência, em período de instabilidade. Surge, então, a questão social, em que a irregularidade dos depósitos revela, de um lado, o prejuízo sofrido pelo empregado, que contava com um numerário do qual não usufruiu regularmente e, de outro, o descumprimento da Lei pelo empregador. Há, portanto, que se extremar duas situações jurídicas distintas que, à luz de implicações axiológicas diversas, terão diferentes efeitos, de forma a influenciar o Julgador no processo interpretativo. No Direito do Trabalho, prevalece o princípio da proteção, destinado a preservar a igualdade jurídica nas relações de trabalho, atendendo, assim, ao ideal da justiça distributiva, já consagrado em Aristóteles (“Ética a Nicômaco”). Washington de Barros Monteiro (in “Curso de Direito Civil”, Parte Geral, São Paulo, Saraiva, 1958, pág. 43), anota que, quando se trata “de interpretar leis sociais, preciso será temperar o espírito do jurista, adicionando-lhe certa dose de espírito social, sob pena de sacrificar-se a verdade à lógica.” A norma do art. 5º da Lei de Introdução ao Código Civil, por sua vez, condiciona a aplicação da lei aos fins sociais a que se dirige e às exigências do bem comum. Assinale-se que, por expressar regra de sobredireito, exerce função metanormativa, extensiva a toda ordenação jurídica (Christiano José de Andrade, in “A Hermenêutica Jurídica no Brasil”, São Paulo, RT, 1991, pág. 229; Maria Helena Diniz, in “Conflito de Normas”, São Paulo, Saraiva, 1987, pág. 63; Alípio Silveira, in “Hermenêutica no Direito Brasileiro”, 1968, págs. 19/34). Assim é que o Julgador não se pode furtar à constatação de que a ordem jurídica positivada deverá merecer interpretação, segundo os critérios valorativos que a informam (...).

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Conforme observado, resume-se que a questão judicial apontou, segundo o relator do processo, em seu voto, “duas situações jurídicas distintas”: de um lado o empregador que não efetuou os depósitos das parcelas do FGTS na conta vinculada de seu empregado - configurando flagrante descumprimento de lei - e do outro o empregado que suportou prejuízo, pois “contava com um numerário do qual não usufruiu regularmente”. Ressalta-se que o relator classifica a referida celeuma como uma “questão social”, argumentando, em seguida, que “no Direito do Trabalho, prevalece o princípio da proteção, destinado a preservar a igualdade jurídica nas relações de trabalho, atendendo, assim, ao ideal da justiça distributiva, já consagrado em Aristóteles (‘Ética a Nicômaco’)”. Vislumbrando os argumentos aristotélicos - sobre justiça distributiva - anteriormente explicitados, registra-se que a fundamentação arguida pelo relator, na decisão do recurso impetrado, apesar de incompleta e insuficiente, corresponde, em linhas gerais, às noções tradicionalmente delineadas por Aristóteles. Na verdade, aprofundando a análise, não é necessariamente o princípio da proteção do trabalhador que se vincula à justiça distributiva. A questão que se

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coloca vai muito além. Quando se fala em efetivação de direitos sociais, como o direito ao trabalho, relação na qual há patente desigualdade entre as partes – empregado e empregador – a justiça que se busca é a do tipo distributiva, em detrimento da comutativa, que visa apenas a restabelecer uma condição de igualdade anteriormente existente que, por algum motivo, sofreu desequilíbrio (contrato entre particulares, por exemplo). Houve, nesse julgado, uma referência teórica à imagem de Aristóteles, intentando o relator fundamentar com base no chamado “argumento de autoridade”. Porém, poderia o nobre julgador ter fundamentado sua decisão explorando de forma mais contundente a ideia de justiça distributiva. Ingressando na discussão sobre o segundo acórdão selecionado, ressaltase que o mesmo também faz referência à justiça distributiva consagrada por Aristóteles. Tal acórdão pertence à reclamatória trabalhista ajuizada com vistas ao recebimento de verbas rescisórias não quitadas pelo empregador, dentre elas a do intervalo do artigo 384 da CLT1, que estabelece, para a empregada mulher, a pausa de quinze minutos antes da realização de hora extra. O excerto transcrito integra o acórdão proferido em sede de recurso ordinário interposto pela reclamada. Órgão Julgador:Tribunal Regional do Trabalho da 9ª Região - Paraná Processo: 0000212-94.2011.5.09.0669 Origem: Vara do Trabalho de Rolândia Classe: Recurso Ordinário Relator: Marlene T. Fuverki Suguimatsu Revisor: Luiz Alves Julgado em: 17/12/2012 Publicado em: 25/01/2013 Recorrente: Wellington Henrique Aprile Lima; Agrícola Jandelle S.A Recorrido: Wellington Henrique Aprile Lima; Agrícola Jandelle S.A (...) 4. Intervalo previsto no artigo 384 da CLT O autor não se conforma com o entendimento constante na sentença de que o artigo 384 da CLT não foi recepcionado pela ordem constitucional vigente. Sustenta que o dispositivo infraconstitucional invocado conflita com a disposição constante no artigo 5º, I, da Constituição Federal e com o consequente indeferimento da pretensão de recebimento desse intervalo como hora extra (fls. 140, v/141). O art. 384 da CLT determina a concessão de intervalo à empregada, entre a jornada normal e a extraordinária. Trata-se de norma que ingressou no sistema jurídico com a finalidade de proteger uma situação desigual, a da mulher, no universo do trabalho masculino. Por suas razões sociais e históricas não implicou ofensa ao princípio constitucional da igualdade

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(art. 5º, I, da Constituição Federal). Significou, antes, a aplicação da justiça distributiva, já defendida por Aristóteles (“tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais...”). Porém, se o que se questiona é a igualdade de tratamento, o mais coerente seria, diante da magnitude do princípio da isonomia, que se lutasse por ampliar o alcance da norma a todos os trabalhadores, o que, aliás, já deveria ter ocorrido, dados os efeitos perversos do trabalho extraordinário sobre o organismo humano, independente de gênero. O que não me parece correto é eliminar a proteção ao argumento de que atende apenas um segmento social. Na verdade, ativar a aplicação desse comando da CLT pode mesmo ser enquadrado na categoria das ações afirmativas, poderoso instrumento de inclusão social constituídos por medidas que visam a acelerar o processo de igualdade, com o alcance da isonomia não apenas formal, mas, substantiva, daqueles ainda considerados - e tratados - como grupos vulneráveis. Por essas razões, entendo que, descumprido o comando do art. 384, aplicase o disposto no art. 71, § 4º, ambos da CLT. Não faz sentido a existência de comando legal expresso, a determinar a concessão de determinado direito ao trabalhador e, em razão de nada constar, no mesmo dispositivo, se rejeite alguma forma de penalização, como a condenação em horas extras.

A argumentação desenvolvida pelo relator, quanto ao pedido suscitado no recurso, envolve o princípio da igualdade. Considerando que o reclamante é homem, da leitura do acórdão se depreende que o relator busca no princípio da igualdade (art. 5º, I, da Constituição Federal2) a fundamentação para o seu entendimento de que o intervalo legal de quinze minutos antes da realização de hora extra deveria ser estendido também ao homem. Após dizer que o art. 384 da CLT “significou, antes, a aplicação da justiça distributiva, já defendida por Aristóteles (...)”, o relator, para retomar um conceito talvez desconhecido para o leigo – o da justiça distributiva - insere o famoso brocardo aristotélico “tratamento igual aos iguais e desigual aos desiguais” como sendo a máxima da justiça distributiva. Não há nada de errado nesta correlação entre a justiça distributiva e o princípio da igualdade. No entanto, havia margem para que o relator explorasse mais o conceito de justiça distributiva, reforçando a fundamentação de sua decisão. Conforme já ressaltado, o direito do trabalho é campo vasto para a aplicação da justiça distributiva, haja vista a hipossuficiência das partes envolvidas na relação empregatícia, exigindo do juiz que ele faça a devida distribuição de recursos, bens e direitos, realizando verdadeira justiça social.

Conclusão 274

Após a finalização da pesquisa, torna-se possível reunir os resultados encontrados e confrontá-los com o problema, hipótese, objetivo etc.

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A fim de selecionar os dois julgados apresentados anteriormente, foi realizada pesquisa no sítio do Tribunal Superior do Trabalho. Na primeira tentativa, escolheu-se o argumento “Etica a Nicomaco” para efetuar uma busca mais específica. O banco de dados retornou cinco resultados, dos quais, três apresentavam uma mesma citação literal da obra, referente ao conceito de justiça de Aristóteles.3 Como a citação literal não possui relevância para a pesquisa, estes julgados semelhantes foram excluídos. Os outros dois julgados restantes, que serviam para a pesquisa, foram separados; um deles citava a equidade e o outro, a justiça distributiva (00965-1997-019-10-00-4). A partir daí, foi escolhido um novo argumento de busca, mais geral: “Aristóteles”. O inconveniente de utilizar este argumento foi o alto número de resultados encontrados: trezentos e oitenta e sete. Isso se explica porque há inúmeros reclamantes que possuem este mesmo nome e foram capturados no relatório de busca. Depois de uma triagem para separar alguns resultados inservíveis, foi localizado um julgado (212-94.2011.5.09.0669) que também tratava da justiça distributiva, tal qual um dos anteriormente separados na primeira busca. Assim, escolheram-se os dois julgados que fundamentaram suas decisões com base na justiça distributiva. Retomando o problema definido para esta investigação científica, temos a seguinte pergunta: as decisões judiciais trabalhistas, quando fundamentadas na justiça distributiva apresentada por Aristóteles, na obra Ética a Nicômaco, tendem a fazê-lo de maneira fiel ao pensamento deste filósofo? Diante de todas as informações trazidas durante este texto, conclui-se que as decisões judiciais trabalhistas – aqui apresentadas - fundamentadas na justiça distributiva de Aristóteles traduzem, de maneira fiel o pensamento aristotélico. No entanto, o fazem de maneira deficiente, pois não apresentam uma fundamentação ampla sobre o conceito de justiça distributiva cunhado na antiguidade clássica. Haveria possibilidade para que os julgadores explorassem bastante o viés de distributividade que alcança o direito ao trabalho como direito fundamental social. Quanto às hipóteses propostas, todas as duas foram confirmadas: que as decisões judiciais trabalhistas, em sua maioria, não invocam argumentos filosóficos (tendo em vista o índice de retorno da pesquisa no sítio do Tribunal Superior do Trabalho) e comumente se valem, indiscriminadamente e sem conhecimento, de argumentos de autoridade aleatórios. Por fim, da pesquisa realizada e sistematizada neste trabalho escrito, vê-se um retrato da formação acadêmico-filosófica dos juristas que estão à frente do Poder Judiciário no Brasil. A deficiência na formação filosófica na ciência do direito restou patente, sucumbindo à legalidade restrita e, no caso da justiça do trabalho, aplicação do fundamento da justiça distributiva de Aristóteles apenas em alguns casos.

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Notas explicativas Este artigo está inserido no Capítulo III da CLT – Da proteção do trabalho da mulher. Art. 384. Em caso de prorrogação do horário normal, será obrigatório um descanso de 15 (quinze) minutos no mínimo, antes do início do período extraordinário do trabalho.

1

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: I - homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição.

2

Processos: 254400-62.2005.502.0021; 297600-69.2005.502.0019 e 69.2005.502.0077. Disponíveis em . Acesso em 02 dez 2013.

3

220600-

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Arbitragem: Meio alternativo ou adequado para solução de conflitos? Thainá Guedes de Brito1 Resumo O presente trabalho visa, através de um panorama que será apresentado, responder à ventilada indagação sobre o instituto da Arbitragem. Para tanto, questões culturais, históricas e atuais, como a crise do Poder Judiciário, bem como os benefícios da Arbitragem, como meio de se alcançar a pacificação social, serão abordadas. Cumpre enfatizar, que o objetivo desse estudo não se limita em fornecer conceitos ou narrar o atual momento da sociedade brasileira, mas, sobretudo, através dessa abordagem, transformar a visão que persiste no tocante ao acesso à justiça somente pela via do Judiciário, para alcançar o exercício democrático de cidadania e do desenvolvimento da pacificação social e a efetivação dos direitos fundamentais. Palavras-chave: Arbitragem; Direitos fundamentais; Crise no poder judiciário; Pacificação social. Abstract This work aims, through a panorama that will be presented to answer the question about the ventilated Arbitration Institute. Therefore, cultural, historical and current issues such as the crisis of the judiciary as well as the benefits of arbitration as a means of achieving social peace, will be addressed. It should emphasize that the aim of this study is not limited to providing concepts or narrate the current Brazilian society, but above all, through this approach, make the vision that persists regarding access to justice only by means of the Judiciary, to achieve the democratic exercise of citizenship and the development of social peace and the enforcement of fundamental rights. Keywords: Arbitration; Fundamental rights; Crisis in the judiciary; Social peace.

Introdução Imprescindível antes de tudo é tecer sobre a postura demandista de nossa sociedade, que é um problema cultural latente que enfrentamos. A postura do brasileiro diante de um conflito é de sempre buscar a via judicial para dirimir a questão, ou seja, é extremamente litigante, o que gera um acúmulo processual e que a bem da verdade, o Poder Judiciário não consegue acompanhar o crescimento desenfreado de ações. 1 Advogada; Pós-graduada em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá; Graduada em Direito pela Universidade Estácio de Sá.

Arbitragem: Meio alternativo ou adequado para solução de conflitos?

Importante frisar que esse fato também está relacionado à gestão do Judiciário, que sem dúvida precisa promover mecanismos e políticas públicas para enfrentar os desafios e alargar os limites de sua jurisdição. A crise no âmbito de Poder Judiciário já está instalada, e é protagonizada por diversos fatores, um deles é a morosidade, que traz consigo os vírus da ineficácia e insegurança, infeccionando a população e desprestigiando o poder. Sabemos que em grandes momentos de crises, vêm grandes revoluções, e o Judiciário brasileiro precisa revolucionar-se e, sobretudo modernizar-se. O Conselho Nacional de Justiça na resolução 125/2010, apresenta uma política pública permanente para o tratamento dos problemas jurídicos, incentivando e aperfeiçoando os mecanismos consensuais de solução de litígios, como por exemplo, através da conciliação e da mediação. Outra realidade é a Lei 9.307/96, que trata da Arbitragem, e que sem dúvida é um marco histórico que alcançamos. A Arbitragem existe em nossa sociedade desde a época do Império, contudo só houve um avanço significativo deste instituto com o advento da referida lei. O objetivo da Arbitragem é compor conflitos, através de um terceiro denominado árbitro. Já na conciliação e na mediação, também existem a figura de um terceiro, denominado conciliador ou mediador, porém com outras características que diferem da Arbitragem, contudo são meios que existem dentro e fora do âmbito do judiciário. Num primeiro momento, todavia equivocado, esses institutos, principalmente a Arbitragem, podem ser vistos como forma de desafogar o Poder Judiciário, mas a natureza e suas propostas vão além de ser só mais uma opção, pelo contrário, através do instituto da Arbitragem será possível dar efetividade aos direitos fundamentais de acesso à justiça e da razoável duração do processo, é o que ficará demonstrado nos argumentos no decorrer deste presente estudo.

Desenvolvimento A cultura demandista brasileira e a crise no Poder Judiciário Segundo os dados da Justiça em Números do Conselho Nacional de Justiça – CNJ2 divulgados em setembro de 2014, os processos em trâmites na justiça brasileira chegam à casa dos milhões, mais precisamente 95,14 em 2013 e desses, 28,3 milhões, representam demandas iniciais. Diante dos dados estatísticos, podemos concluir que a sociedade brasileira está frente a duas barreiras: psicológica e cultural. É notória a postura litigante dos brasileiros, que de forma quase inevitável, sempre buscam resolver seus intempéries judicialmente, independentemente se

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2 ftp://ftp.cnj.jus.br/Justica_em_Numeros/relatorio_jn2014.pdf

Thainá Guedes de Brito

o conflito é de difícil ou fácil composição. A postura no quesito psicológico é: “Através de uma demanda judicial se alcança a justiça e a injustiça também!”. Antigamente a eleição da via judicial era a última instância a ser procurada, as pessoas se comportavam mais civilizadamente, atualmente a regra a ser seguida é a da desconfiança, poucos querem dialogar, ouvir as razões alheais e a transigirem. Ainda que existam políticas públicas para incentivos há outras práticas de solução de conflitos como prevê a Resolução 125/20103 do CNJ, inequívoco que a situação judicial de hoje beira ao caos. Vejamos as bases estratégicas contidas na redação do artigo 2º da Resolução 125/2010 do CNJ: Art. 2º Na implementação da política Judiciária Nacional, com vista à boa qualidade dos serviços e à disseminação da cultura de pacificação social, serão observados: (Redação dada pela Emenda nº 1, de 31.01.13) I - centralização das estruturas judiciárias; II - adequada formação e treinamento de servidores, conciliadores e mediadores; III - acompanhamento estatístico específico.

Contudo, no exercício, não vemos efetivar o incentivo há outras práticas que não seja a via processual – víeis cultural. Essa constatação também pode ser extraída no trâmite do processo judicial, como por exemplo, na fase inicial do processo, dificilmente as partes são aproximadas de maneira correta e efetiva para que haja uma conciliação entre si, o clima é litigioso do início ao fim, o que aumenta desproporcionalmente o movimento processual. Neste enfoque, as barreiras tanto psicológica como cultural, dificultam a implementação de outros meios de resolução de conflitos, gerando, inevitavelmente, um estado de crise. A Constituição Federal prevê, como direito fundamental o acesso à justiça, garantindo também a todos uma justiça célere, entretanto, o Poder Judiciário não vem promovendo uma efetiva justiça. É cediço que a justiça necessita passar por um processo de desburocratização, para que sejam promovidas reformas que mudem substancialmente o cotidiano jurídico, para que haja o efetivo exercício da cidadania e do desenvolvimento de pacificação social. Hoje, o Poder Judiciário se encontra em um a posição de desprestígio tendo em vista vários fatores que estão ligados à crise que assolam esse poder, e um desses fatores é a morosidade no trâmite. O Poder Judiciário é a porta de acesso à justiça, e foi criado para solvência de conflitos, gerando a consequentemente paz social. Contudo, esse não é o atual cenário, não há uma duração razoável do processo, abrindo outra porta, a da injustiça. 3 http://www.cnj.jus.br/atos-administrativos/atos-da-presidencia/resolucoespresidencia/12243resolucao-no-125-de-29-de-novembro-de-2010

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Arbitragem: Meio alternativo ou adequado para solução de conflitos?

Frente ao problema da morosidade, existem demandas com o cunho exclusivo de protelarem a responsabilidade. É o poder judiciário sendo manobrado para fins diversos ao de suas bases democráticas, o que traz ineficácia da prestação jurisdicional e insegurança jurídica à população. Através deste cenário, os olhares se voltam para outros institutos, como a conciliação, a mediação, mais precisamente no foco dessa abordagem para o instituto da Arbitragem, ainda que a visão seja um tanto deturpada, pois a Arbitragem não deve ser vista como forma de desafogar o judiciário, muito pelo contrário, a visão deve ser de amplificada. O instituto da Arbitragem será apresentado a seguir de forma mais incisiva, objetivando responder a indagação que gira em torno desse estudo: “Arbitragem: meio alternativo ou adequado para solução de conflitos?”. É de suma importância nesta conjuntura, também obter uma reflexão aprofundada sobre a Arbitragem, como um instrumento de ampliação do acesso à justiça, através dos benefícios legais que este instituto é capaz de oferecer. Arbitragem: Instituto adequado para dirimir conflitos e de ampliação do acesso à justiça. A Arbitragem ganhou o mundo desde a Antiguidade, principalmente em Roma. A sua prática é muito antiga, sempre presente nas entranhas da sociedade, desde os tempos mais remotos como forma de dirimir os conflitos. A justiça privada, através da Arbitragem, precedeu a justiça estatal. No Brasil, a Arbitragem pode ser vista como uma novidade para muitos, afinal, a prática desse instituto ainda não é muito difundida, mesmo que presente em várias leis que compõe no nosso ordenamento jurídico. É necessário, para que fique demonstrada a consolidação da Arbitragem, um breve histórico desse instituto e sua trajetória na história do nosso país, a começar pela primeira Constituição brasileira a de 1824. Desde há época do Império, a Constituição de 18244 trazia expressamente a previsão da Arbitragem em seu artigo 160, ora aqui demonstrada:   Art. 160. Nas cíveis, e nas penaes civilmente intentadas, poderão as Partes nomear Juízes Árbitros. Suas Sentenças serão executadas sem recurso, se assim o convencionarem as mesmas Partes.

Com a tônica constitucional, a Arbitragem foi adquirindo espaço nas leis infraconstitucionais, sendo utilizada mais precisamente nas relações comerciais, tanto que a sua previsão no Código Comercial de 1850 era de utilização obrigatória. No Código Civil de 1916, nos Códigos de Processo Civil de 1937 e o de 1973, e nas leis espaças, trouxeram e trazem a previsão da Arbitragem.

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4 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao24.htm

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Recentemente, o Novo Código de Processo Civil, Lei 13.105/20155, foi sancionado em 16 de Março de 2015 pela Presidenta Dilma Rousseff, publicado no Diário Oficial em 17 de Março de 2015 e entrará em vigor após um ano de sua publicação. O Novo Código de Processo Civil apresenta na Parte Geral, no Livro I – Das Normas Processuais Civis, Título Único – Das Normas Fundamentais e da Aplicação das Normas Processuais, no artigo 3º § 1º, a preservação da garantia de desenvolvimento da Arbitragem. Vejamos o que dispõe o referido artigo: Artigo 3º. Não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito. § 1º. É permitida a Arbitragem, na forma da lei.

O Código Civil faz menção à importância desse instituto, e finalmente a Lei 9.307/96, que disciplina a Arbitragem no Brasil. Sem dúvida é um marco de avanço para o nosso país, no sentido de agregar e de aproximar cada vez mais as relações domésticas e internacionais. Diante desse breve histórico, podemos verificar que não é a pela falta de legislação que legitima a prática da Arbitragem, pelo contrário, as barreiras que dificultam a sua implementação no seio da sociedade são psicológicas e culturais, posição que vem sendo defendida nessa abordagem. Não precisa de muito esforço para afirmar e concluir que a Arbitragem é um meio adequado para solução de conflitos e de ampliação do acesso à justiça. E por que adequado? A palavra adequado tem por sinônimo adaptado, e por significado6 que corresponde perfeitamente a um objetivo. Na sequência desse raciocínio, é possível verificar que a lei de Arbitragem – Lei 9.307/96 - está adaptada ao ordenamento jurídico brasileiro, ela é constitucional, assim como declarou o Supremo Tribunal Federal7, e não fere, portanto a inafastabilidade do controle judicial. E se ela está adaptada é porque ela é oportuna, própria, pertinente, cabível. Essa lógica não se restringe apenas a sinônimos, de fato, os benefícios oriundos pela prática da Arbitragem são muitos, pois garantem as partes que convencionam a escolha por esse instituto celeridade, credibilidade, economicidade, preservação do relacionamento contratual, continuidade das relações, o que reflete positivamente as partes, e consequentemente na sociedade como um todo, correspondendo perfeitamente a um dos objetivos que toda uma nação democrática almeja, qual seja: a pacificação social. A busca pela pacificação social pode ser feita de várias formas, o Direito é um instrumento para a manutenção da ordem, da segurança, harmonia e de implementação da paz em sociedade. A Constituição Federal garante a todos o acesso à justiça e a duração razoável do processo. São direitos previstos no artigo 5º, XXXV e LXXVIII da 5 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2015/Lei/L13105.htm 6 http://www.dicio.com.br/adequado/ 7 BRASIL. Supremo Tribunal Federal. SE 5.206-AgR, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, julgamento em 12-12-2001, Plenário, DJ de 30-4-2004.

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Arbitragem: Meio alternativo ou adequado para solução de conflitos?

CRFB8. Esses direitos são dotados de fundamentalidade, ou seja, estamos diante de direitos fundamentais que devem ser assegurados pelo Estado ao cidadão, refletindo o Estado Democrático de Direito. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; (...) LXXVIII - a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação;

Todavia, esses direitos, diante do atual cenário, estão sem efetividade, daí surge à ideia de aplicação de outros métodos para compor conflitos, como a Arbitragem. É possível continuar afirmando a adequação desse instituto, pois sem dúvida, a Arbitragem corresponde perfeitamente a estes objetivos, o de ampliar o acesso à justiça a todo cidadão, garantindo-lhe uma duração razoável do processo. Em seus estudos sobre o acesso à justiça, Mauro Cappelleti9, aduz seu ponto de vista e destaca a importância da utilização de outros meios de dirimir conflitos:

“Devemos estar conscientes de nossa responsabilidade; é nosso dever contribuir para fazer que o direito e os remédios legais reflitam as necessidades, problemas e aspirações atuais da sociedade civil; entre essas necessidades estão seguramente as de desenvolver alternativas aos métodos e remédios, tradicionais, sempre que sejam demasiado caros, lentos e inacessíveis ao povo; daí o dever de encontrar alternativas capazes de melhor atender às urgentes demandas de um tempo de transformações sociais em ritmo de velocidade sem precedente”

A Arbitragem precisa e deve ser vista como forma proporcionar a vontade do poder constituinte originário, através da efetividade dos direitos fundamentais. Infelizmente, o Estado – detentor da tutela jurisdicional, não está sendo capaz de proporcionar com destreza a efetivação desses direitos, comprometendo assim as bases democráticas. Para uma reflexão, é oportuno indagar: Seria justo somente o Estado permanecer com o monopólio da jurisdição se o mesmo não está sendo capaz de assegurar a efetividade dos direitos constitucionalmente garantidos?

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8 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 9 CAPPELLETI, Mauro. Os Mé­todos Alternativos de Solução de Conflitos no Quadro do Mo­ vimento Universal de Acesso à Justiça, in Revista de Processo, nº 74, ano 19, abril-junho de 1994, p. 97.

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A indagação supracitada será respondida de forma diferenciada, ou seja, restará aqui demonstrado que o Estado não deve ser o único – e não é--, capaz de oferecer a garantia da efetividade dos direitos fundamentais, mas através da Arbitragem, também, é possível alcançar este fim. No mais, o Estado, no que tange a aplicação desses direitos, há algum tempo vêm sendo ineficiente o que não é justo com jurisdicionados, assim como dizia Rui Barbosa: “A justiça atrasada não é justiça; senão injustiça qualificada e manifesta”.10 Com o fito de corroborar com esta afirmação, bem como de proporcionar aos leitores uma reflexão, será apresentado às inúmeras vantagens do uso da Arbitragem como meio adequado para a solução dos conflitos. Insta consignar que o objetivo não é o de defender a tese de privatização da Justiça em detrimento do Poder Judiciário, pelo contrário, a intenção aqui através desse tema, é a de encarar a atual realidade e com afinco, buscar soluções para que a sociedade brasileira progrida. A realidade é que os anseios da sociedade vêm sendo malogrados, a má prestação da justiça tendo por fatores negativos, a morosidade, falta de reformas, enfraquecem todo o Poder Judiciário, fatos que são ausentes na Arbitragem. Mas o que é a Arbitragem? Na obra Tratado Geral da Arbitragem11, Alvim, apresenta com grande clareza o conceito desse instituto, que se segue: “A arbitragem é a instituição pela qual as pessoas capazes de contratar confiam a árbitros, por elas indicados ou não, o julgamento de seus litígios relativos a direitos transigíveis. Esta definição põe em relevo que a arbitragem é uma especial modalidade de resolução de conflitos; pode ser convencionada por pessoas capazes, físicas ou jurídicas; os árbitros são juízes indicados pelas partes, ou consentidos por elas por indicação de terceiros, ou nomeados pelo juiz, se houver ação de instituição judicial de arbitragem; na arbitragem existe o ‘julgamento’ de um litígio por uma ‘sentença’ com força de coisa julgada.”

A Arbitragem é um meio heterocompositivo de resolução de conflitos, ou seja, a um terceiro, denominado árbitro, lhe é conferido o poder de decisão da controvérsia em um processo de arbitragem, o que é muito semelhante ao processo judicial, todavia, há particularidades no processo arbitral que fazem com que este instituto seja eficaz e adequado. Alguma dessas particularidades está na escolha do árbitro pelas partes para dirimir os conflitos referentes a direitos patrimoniais disponíveis. A Arbitragem tem como princípio basilar a Autonomia da Vontade, garantindo as partes uma ampla margem de escolha, como por exemplo, além da escolha do árbitro, do direito aplicável ao caso, do idioma, como dispõe o artigo 2º da Lei 9307/96 em destaque:

“Art. 2º. A arbitragem poderá ser de direito ou de equidade, a critério das partes.”

10 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços, 1921. 11 ALVIM, J. E. Carreira. Tratado Geral da Arbitragem. Belo Horizonte: Mandamento, 2005, p.14

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Arbitragem: Meio alternativo ou adequado para solução de conflitos?

Sobre a Autonomia da Vontade nos ensina Caio Mario da Silva Pereira12: “Detendo-nos um instante mais sobre o elemento vontade frisamos que o prin­cípio pelo qual se lhe reconhece o poder criador de efeitos jurídicos denomina-se autonomia da vontade, que se enuncia por dizer que o indivíduo é livre de, pela de­claração da sua própria vontade, em conformidade com a lei, criar direitos e contrais obrigações”.

Forçoso destacar a questão temporal, que complementa esse sentido de liberdade das partes posto que, na Lei de Arbitragem – 9307/96, no artigo 23, prevê que a sentença arbitral será proferida no prazo estipulado pelas partes, e se nada for convencionado nesse sentido, o prazo para apresentação da sentença é de seis meses, sendo esta, em regra, irrecorrível gerando assim uma sensível economia no tempo, proporcionando rapidez na solução do impasse. Ora, isso é a tradução da celeridade. Outro avanço é que a sentença arbitral não mais necessita de homologação pelo Poder Judiciário e possui natureza jurídica idêntica à da sentença judicial e os mesmos efeitos. Defendendo a tese da natureza jurisdicional da Arbitragem, Carlos Alberto Carmona faz a seguinte afirmação: “O art.32 [da Lei 9.307/96] afirma que a decisão final dos árbitros produzirá os mesmos efeitos da sentença estatal, constituindo a sentença condenatória título exe­ cutivo que, embora não oriundo do Poder Judiciário, assume a categoria de judicial. O legislador optou, assim, por adotar a tese jurisdicional da arbitragem, pondo termo à atividade homologatória do juiz, fator e emperramento da arbitragem. Cer­tamente continuarão a surgir críticas, especialmente de processualistas ortodoxos que não conseguem ver a atividade processual – e muito menos jurisdicional – fora do âmbito da tutela estatal estrita. Para rebater tal idéia tacanha de jurisdição, não há lição mais concisa e direta que a de Giovanni Verde19: ‘A experiência tumultuosa destes últimos quarenta anos nos demonstra que a imagem do Estado onipotente e centralizador é um mito, que não pode (e talvez não mereça) ser cultivado. Deste mito faz parte a idéia de que a justiça deva ser administrada em via exclusiva pelos seus juízes’”13.

Diferente dos processos judiciais que gozam de publicidade, o procedimento arbitral goza de confidencialidade, ou seja, nenhuma informação referente ao impasse é publicada, resguardando a imagem dos envolvidos além é claro, de proteger as partes do uso indevido das informações. Mais uma vantagem oferecida pela Arbitragem é a preservação do relacionamento das partes antes e após a disputa.

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12 PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005, 21. edição, pp. 478/479. 13 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2004, 2. ed., p. 45.

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Diante desses benefícios, é possível verificar que a Arbitragem é um meio adequado e supre os anseios daqueles que estão diante de um conflito e querem solucioná-los de forma célere, justa e eficaz.

Conclusão O objetivo frente à proposta aqui apresentada foi o de responder a indagação título dessa abordagem, sendo: Arbitragem: Meio alternativo ou adequado para solução de conflitos? Num primeiro momento restou evidenciado que para a obtenção de uma resposta segura, foi primordial encarar a realidade brasileira para alcançar a origem dos problemas que atualmente nos assolam. Neste diapasão, a análise das estatísticas foi crucial para demonstrar o quão dificultoso é desarraigar da sociedade um pensamento que por anos vem sendo adotado, ou até mesmo interlavar a visão da sociedade para diversas práticas de solução de conflitos que não seja somente a via judicial. Diante dos apontamentos feitos sobre a postura demandista brasileira, ficou denotado que a problemática é social. Frente a nossa sociedade existem duas barreiras, a psicológica e a cultural, o que impedem sensivelmente a pluralização de meios capazes de solução de litígios. O atual cenário no âmbito do Poder Judiciário implora por soluções rápidas e eficazes, pois são patentes os sinais de esgotamento deste poder, além do desprestígio que a própria sociedade o atribui. A justiça precisa ser desburocratizada, o exercício da cidadania, a busca pela pacificação social são nossas bases democráticas e isso não pode se perder, do contrário não haverá progresso, não haverá justiça. É inadmissível estarmos fadados a esse ciclo vicioso, o da judicialização, que vem ferindo direitos fundamentais da nossa República, como o acesso à justiça e a duração razoável do processo. Esses direitos estão estampados na Constituição Federal, porém não estão sendo efetivados e um dos motivos é o flagelo chamado morosidade que é acompanhado pela ineficácia da prestação jurisdicional e que gera um sentimento de insegurança a todos. Isso é um problema grave! O protagonista deste estudo é o instituto da Arbitragem, e é possível concluir que a através da Arbitragem é possível garantir a efetividade desses direitos fundamentais, uma vez que a Arbitragem oferece segurança, celeridade, credibilidade, economicidade, preservação do relacionamento contratual entre outros benefícios. É atinente afirmar que através da Arbitragem há uma ampliação do acesso à justiça. O Poder Judiciário no exercício de sua função típica, busca a pacificação social através da resolução dos conflitos a ele apresentados. O que não difere da cultura da Arbitragem que tem o mesmo objetivo, o de oferecer soluções, promovendo a pacificação social, quiçá, possuir meios ainda melhores que a via judicial, haja vista suas peculiaridades contemporâneas e a sua eficiência. Por fim, a Arbitragem pode ser vista por duas vertentes, a primeira um tanto equivocada no sentido de que é descabido limitar este instituto como

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uma alternativa de desafogar o judiciário, isso pode acontecer sim, contudo, por meio da Arbitragem é possível alcançar inúmeros benefícios oriundos a sua prática, e mais, proporcionar a efetivação dos direitos fundamentais contidos na Constituição Federal, sendo inegável a sua adequação.

Referências bibliográficas CAPPELLETI, Mauro. Os Mé­todos Alternativos de Solução de Conflitos no Quadro do Mo­ vimento Universal de Acesso à Justiça, in Revista de Processo, nº 74, ano 19, abril-junho de 1994, p. 97. BARBOSA, Rui, Oração aos Moços, 1921. ALVIM, J. E. Carreira. Tratado Geral da Arbitragem. Belo Horizonte: Mandamento, 2005, p. 14. PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005, 21ª edição, pp. 478/479. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo – Um Comentário à Lei nº 9.307/96. São Paulo: Atlas, 2004, 2ª ed., p. 45.



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Das provas no direito e processo civil – avanço ou estagnação? Fragilidade ou constitucionalidade? Necessidade de uniformização Fábio da Costa Pascoal1 Resumo Este artigo foi proposto como parte das atividades das disciplinas Direito Civil e Direito Processual Civil. A proposta desse trabalho é discorrer sobre as provas admitidas nos autos do processo de forma a se chegar a “verdade real” dos fatos. Faremos uma abordagem sistêmica visando assim elucidar o que seriam provas lícitas, ilícitas e moralmente aceitas e principalmente, até quando, tais definições e conceitos podem se sobrepor a dignidade da pessoa humana, sim, pois é Digno se ter um resultado processual válido e positivo, chegando-se a verdade dos fatos e com a punibilidade aplicada no caso concreto. Faremos inclusive uma abordagem acerca de tal tema na ótica do Novo Código de processo Civil, de forma a esclarecer se ocorreram mudanças nos institutos das provas e também abordaremos as diferentes aplicações e validades ante aos princípios do Direito. Palavras-chave: Pessoa Humana; Verdade Real; Dignidade da Pessoa Humana; Constituição; Provas; Provas Lícitas; Provas Ilícitas; Processo Civil. Abstract This article has been proposed as part of the activities of the subjects Civil Rights and Civil Litigation . The purpose of this study is to discuss the evidence admitted in the case file in order to get the “ real truth “ of the facts. We will do a systems approach so to elucidate what would be lawful evidence , illegal and morally accepted and mainly , how long such definitions and concepts may overlap the dignity of the human person , yes , it is worthy to have a valid and positive procedural result, coming to the truth of the facts and the punishment applied in this case. We will even approach about this issue from the viewpoint of the new Civil Procedure Code , in order to clarify whether there were changes in the institutes of the evidence and also discuss the different applications and validated against the principles of law. Keywords: Human Person; Real truth, Human Dignity, Constitution, Evidence, Evidence Lawful, Illegal Evidence . Civil Procedure . 1 Especializando do Curso de Pós-graduação da Universidade Estácio de Sá, Graduado em Direito pelo Centro Universitário Moacyr Sreder Bastos.

Das provas no direito e processo civil – avanço ou estagnação? Fragilidade ou constitucionalidade? Necessidade de uniformização

Da dignidade da pessoa humana Iniciaremos nosso trabalho, fazendo uma breve viajem acerca da Dignidade, em meados do Século XIII, e fazendo uma breve leitura sobre a tese de São Boaventura. Diferente do que vemos na atualidade, o direito, a e até mesmo a Filosofia, quando abordam a Dignidade da pessoa humana, tema de nosso estudo, o fazem com base exclusivamente nos pensadores contemporâneos, mas, observamos, com a realização desse estudo, que muito antes da era contemporânea, já existiam estudos e preocupações, do Homem, envolto às questões afetas à Dignidade e Responsabilidade. A Dignidade, hoje, assunto tão em pauta em inúmeras Obras, Leis e Tratados, pilar da cultura ocidental, hoje expressada de tantas formas, já era pensada por São Boaventura em infinitas possibilidades na relação com o outro e com o mundo. Com base nos apontamentos de São Boaventura, vemos que a noção de pessoa humana, equaciona o conceito de individualidade relacional e comunhão com a sociedade, como expressão máxima da dignidade e responsabilidade, trazendo assim a valorização do indivíduo ante a sua espécie. Por isso, a pessoa humana, não é orientada apenas para o “EU” vivendo uma solidão que oprime e angustia, mais possui no relacionamento, categoria essencial para o seu desenvolvimento. Por tais alegações e convencimentos que hoje ao analisarmos as normas legais, devemos fazer com base na intimidade dos EU e nas relações sociais, de forma que assim consigamos refletir nas decisões a figura da Dignidade da Pessoa Humana nas relações de responsabilidade, objetivando o equilíbrio social e o senso de respeito e notoriedade do indivíduo diante da sociedade. Logo, ao observarmos as relações pessoais como únicas, assim como os indivíduos que a constituem e a produzem, conseguiremos nos afastar do senso comum e produzir assim argumentações e decisões que venham a envolver o caso concreto, analisando assim as características e particularidades em cada relação. Diante de tais argumentos, notamos, que cada indivíduo é um ser único e essencial ao desenvolvimento social, motivo este que fez com que a própria Constituição Federal, garantisse em seu artigo 1º (primeiro) o seu fundamento de proteção à Dignidade da Pessoa Humana. Vemos ainda que o legislador, teve a sensibilidade, que mesmo o indivíduo como um todo no plano social, como um ser único, já que a Dignidade da Pessoa Humana é “ERGA OMNES” mais ao mesmo tempo um instituto “INTUITU PERSONAE”, já que atinge a coletividade social, mais a individualidade como parte integrante do corpo social. A constituição consagra ainda como Direito Fundamental, e que indiscutivelmente se alia ao Direito Basilar da Dignidade da Pessoa Humana o direito à duração razoável do processo, insculpido no inciso LXXVIII, do art. 5º, da Constituição Federal de 1988, ainda em seu corpo, a Constituição define A

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vedação da utilização de provas ilícitas, as caracterizando de forma a esclarecer a forma como se deu a sua produção. Devemos entender como direitos fundamentais, tudo o que é necessário a uma vida digna e a um desenvolvimento sadio, dentre eles devemos ainda colacionar o direito à verdade real dos fatos levados em juízo de forma a proporcional uma maior segurança jurídica e paz social, além de um maior e efetivo cumprimento das leis, nem que para isso venhamos a ter que reavaliar as provas insculpidas nos processos.

A prova Etimologicamente, o termo prova deriva da expressão latina probo, probatio e probus, querendo significar bom, reto, honrado: A prova resulta do que é autentico. Tem-se a prova, em regra, como comprovação da verdade de uma proposição (Carnelutti, A Prova Civil, p. 67). Somente se cogita de prova, quando se afirma algo cuja exatidão se tem de demonstrar. É a demonstração ou descoberta de uma situação afirmada. Do ponto de vista jurídico, o vocábulo prova guarda diferentes sentidos, referindo-se tanto ao fato representado, quanto a atividade probatória, como também, ao meio ou fonte de prova e ao convencimento gerado (Eduardo Cambi, Direito Constitucional à Prova no Processo Civil, p.47). Prova é tanto meio retórico admitido por lei, direcionado a gerar um estado de convicção quanto a existência de um fato e a própria convicção produzida: é a soma dos fatos que produzem um estado espiritual de certeza. Por isso, o exame da prova volta-se predominantemente para a constituição de uma decisão judicial justa, adequada e eficaz sobre determinado fato controvertido. Os objetos da prova são os fatos pertinentes e relevantes ao processo, ou seja, são aqueles que influenciarão na sentença final. Os elementos trazidos ao processo para orientar o juiz na busca da verdade dos fatos são chamados de meios de prova. O Código de Processo Civil elenca como meios de prova o depoimento pessoal (Art. 342 a 347), exibição de documentos ou coisa (Art. 355 a 363), prova documental (Art. 364 a 399), confissão (Art. 348 a 354), prova testemunhal (Art. 400 a 419), inspeção judicial (Art. 440 a 443) e prova pericial (Art. 420 a 439). Porém, os meios de provas citados pelo Código de Processo Civil não são os únicos possíveis, como elucida o Art. 332 do CPC: “Art. 332. Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que se funda a ação ou a defesa.” Os meios de provas devem estar revestidos dos princípios da moralidade e lealdade, além de existir a necessidade de serem obtidos de forma legal.

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Pois, caso não possuam os requisitos expostos, as provas serão consideradas ilegítimas e consequentemente não serão aproveitadas no julgamento do mérito da ação, os seja, não poderão ser objeto de fundamentação na sentença proferida pelo juiz. Mas, e como produzir de forma válida um elemento probatório capaz de comprovar a veracidade das alegações sem que venhamos a esbarrar em ilegalidades manifestas e em questões de nulidades? Como poderíamos classificar o termo moralmente aceitável na nossa realidade cotidiana? Hoje, o que mais se verifica no âmbito de nossa sociedade é que a cada dia a privacidade das pessoas se esvai, e muitas das vezes quem dá causa a sua invasão é o próprio agente. Com a enxurrada no mercado de smartphones, tablets e derivados, e também o amplo e irrestrito acesso às redes sociais, não raras as vezes quando você abre ou visualiza o perfil de algum amigo ou conhecido, é possível sem perguntar, saber onde essa pessoa está (check in), o que está fazendo, com quem está, a hora que chegou, a hora que saiu, como está se sentido... É possível a todo instante fazer vídeos, tirar fotos, gravar conversas, com ou sem o conhecimento de terceiros, mais até que ponto as gravações são válidas? Até onde pode-se utilizar como prova tal intervenção? Em que pese a ofensa à privacidade dos envolvidos, o que valeria mais juridicamente...a ofensa a privacidade ou a verdade real dos fatos? O moral também vem se modificando de geração em geração, muitos podem ainda tentar insculpir um conceito de maior fragilidade ou maior rigidez com relação a alguns aspectos, mais o que temos de ter em nossa mente neste momento é, que o MORAL ele se adequa com muito mais velocidade ao nosso cotidiano, do que o avanço de nossa legislação no mesmo sentido. Na verdade o quesito moral, ainda é (sim com menos influência) um agente balizador para criação e aplicação da lei e ordenamentos jurídicos. A partir da Constituição de 1988, o tema das provas ilícitas assumiu nova dimensão no sistema jurídico brasileiro. O que antes eram apenas construções doutrinárias e jurisprudenciais, passou a integrar o processo constitucional em regra expressa inserida na Lei Maior. O presente tema causa muita divergência, pois, apesar de a proibição da prova ilícita ser norma constitucional, deve-se lembrar que nenhuma garantia constitucional é absoluta, tendo em vista o princípio da relatividade ou convivência das liberdades públicas. Em nosso ordenamento jurídico, temos a tipificação da figura da prova ilícita no que diz respeito a forma de obtenção. Em um primeiro momento, este meio de prova seria considerado amplamente ineficaz ante a sua natureza de obtenção, sem que conseguisse produzir efeitos válidos em um processo, mais, existem “exceções” junto aos processos de natureza penal (quando servir para salvaguardar a liberdade do acusado, interesse público em casos como o combate ao crime organizado, ante o princípio da proporcionalidade), vejamos alguns acórdãos:

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“Ação penal. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem o conhecimento do outro.” (RE 583.937-QO-RG, Rel. Min. Cezar Peluso, com repercussão geral.) O Recurso Extraordinário nº 402.717/PR, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, é fundamental para entender o posicionamento do Pretório Excelso sobre o tema e merece ser lido na íntegra por quem quiser mais aprofundamento. Segue trecho: “EMENTA: PROVA. Criminal. Conversa telefônica. Gravação clandestina, feita por um dos interlocutores, sem conhecimento do outro. (...) Fonte lícita de prova. Inexistência de interceptação, objeto de vedação constitucional. Ausência de causa legal de sigilo ou de reserva da conversação. (...) Inexistência de ofensa ao art. 5ºXXIILVICF Antes de continuar temos de diferenciar o que seria uma gravação clandestina, de uma gravação ilícita e de uma gravação ambiental: a) A gravação clandestina consiste no ato de registro de conversação própria por um de seus interlocutores, sub-repticiamente, feita por intermédio de aparelho eletrônico ou telefônico (gravação clandestina propriamente dita). b) Gravações ambientais – nas modalidades de interceptação, escuta e gravação ambiental têm praticamente os mesmos conceitos já expostos, com a peculiaridade de se referirem a conversa pessoal e não telefônica. Realizada por terceiro, sem o conhecimento dos comunicadores ou com o conhecimento de um dos comunicadores dependendo da modalidade. c) O ato de gravar, tão-somente gravar, não configura nenhum ilícito penal. Mas sem sombra de dúvida já configura uma invasão à intimidade ou privacidade alheia, assim como ao sigilo das comunicações telefônicas. Por isso, em regra, não se pode divulgar o conteúdo dessa gravação. A isso dá-se o nome de “direito à reserva” (reservatezza), que se distingue do “direito ao segredo” (segretezza): neste último o que se objetiva é evitar que um terceiro capte uma comunicação alheia; por aquele (direito à reserva) o que se pretende é a não-divulgação daquilo que foi clandestinamente gravado. d) Estas duas figuras contrapõem-se a da interceptação, que é a captação da comunicação por terceiro, sem o conhecimento

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de nenhum dos interlocutores – válida apenas para os casos de interceptação da comunicação telefônica “por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal”, conforme os exatos termos do art. 5º, XII, da Constituição da República, este seria o caso da Gravação Ilícita. Isto é um exemplo de uma admissibilidade de prova ilícita (devido a sua forma de admissibilidade, não quer dizer que a prova é montada, não, ela é legítima, mais foi obtida de uma forma considerada ilegal), mas agora vejamos a interpretação junto ao Direito de Família: O nosso ordenamento, pondera a possibilidade de uso da prova ilícita, no Direito de Família diante dos casos de Alienação Parental, quando a realização da produção probatória for difícil ou quase impossível de se obter, busca e apreensão de menores, quando um dos genitores de forma ardil subtrai o mesmo do convívio com o outro e com a sociedade, até mesmo em casos de Revisão de Alimentos e Inversão de Guarda. Com fulcro nos princípios constitucionais e de Direito de Família, à luz da primazia da dignidade da pessoa humana, que é o princípio basilar de todo o ordenamento jurídico, para defender sempre, a medida do interesse do menor. Considerando-se a Família como base de toda a sociedade brasileira, em se tratando dos aspectos processuais, as questões levadas às discussões judiciais requerem cautela maior. No mundo pós-moderno, a Família encontra espaço de relevância ainda mais amplo no Direito Processual, por desenvolver em seu seio a personalidade e a dignidade, bem como a necessidade de efetiva proteção contra a ingerência de terceiros. Assim avaliado, implica ao Magistrado postar-se muito respeitosamente frente à supremacia constitucional, de modo garantir sua efetividade, inclusive no âmbito das relações privadas, não se restringindo à aplicação de normas constitucionais apenas em momentos de conflito, mas no cotidiano forense. O princípio da liberdade probatória, como visto, não pode ser considerado absoluto. Encontra, sim, limites. Entretanto, quando a produção das provas for extremamente difícil de obter, há que se pensar na relativização das mesmas, excepcionalmente para defesa de vítimas. No entendimento de grande parte da doutrina, Nestor Távora e Rosmar Rodrigues de Alencar se destacam em obra conjunta instruindo que: O princípio da liberdade probatória não é absoluto. O intuito da busca da verdade real e a amplitude da produção probatória, fazendo-se aproveitar outros meios de prova que não os disciplinados no CPP, encontram limites. A Carta Magna, no seu art. 5º, inciso LVI, traz o principal obstáculo, consagrando a inadmissibilidade, no processo, das provas obtidas por meios ilícitos. A prova é taxada como proibida ou vedada toda vez que sua produção implique violação da lei ou de princípios de direito material

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ou processual. Por afrontar a disciplina normativa, não seria admitida ao processo (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p.350).

A Constituição Federal prevê expressamente que não serão admitidas no processo provas ilícitas. Por isso não se pode valer da verdade a qualquer custo em um processo, uma vez que a ilicitude da prova demarca sua invalidade. A rigor, tanto a prova ilícita quanto a ilegítima são tidas como inadmissíveis, pois ferem a disciplina normativa. A teoria da árvore dos frutos envenenados versa sobre o processo que contém prova obtida ilicitamente. É nula a prova, assim como todos os atos do processo dela decorrentes, pois de uma ilicitude derivaria outra de natureza igual. Seria o caso da prova ilícita por derivação, pressupondo-se que uma árvore contaminada não gera bons frutos. Em contraponto, da teoria dos frutos da árvore envenenada decorrem teorias que pretendem relativizar a vedação desse meio de prova. Também procedentes da Jurisprudência norte-americana, figuram as teorias da fonte independente (independent source) e da descoberta inevitável (invitable dicovery). Aquela, defendendo que fatos descobertos de uma prova ilícita não seriam necessariamente ilegais, uma vez que se pudessem provar por fonte independente. Esta, acastelando a prova obtida ilicitamente frente comprovação de sua inevitável descoberta por meios legítimos. Nestor Távora e Rosmar Rodrigues de Alencar instruem que, segundo a teoria da fonte independente, existindo provas interdependentes no processo, a prova ilícita não deverá ser condenada, visto não possuir prerrogativa para contaminar as restantes, já que são independentes e produzem efeitos com autonomia. [...] se existirem provas outras no processo, independentes de uma determinada prova ilícita produzida, não há de se falar em contaminação, nem em aplicação da teoria dos frutos da árvore envenenada, pois, em não havendo vinculação nem relação de dependência, a prova ilícita não terá o condão de contaminar as demais (TÁVORA; ALENCAR, 2010, p.355).

Quanto à descoberta inevitável, caso a prova obtida ilicitamente vir a ser descoberta de qualquer modo nos autos, independentemente da contaminação da prova tida como ilícita, ela deverá ser válida, pois não ensejará configuração de prova ilegal. [...] se a prova, que circunstancialmente decorre de prova ilícita seria conseguida de qualquer maneira, por atos de investigação válidos, ela será aproveitada, eliminando-se a contaminação. A inevitabilidade da descoberta leva ao reconhecimento de que não houve um proveito real com a violação legal. A prova ilícita, que deu ensejo à descoberta de uma outra prova, que seria colhida mesmo sem a existência da ilicitude, não terá o condão de contaminá-la. Ex.: não se deve reconhecer como ilícita as declarações

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de testemunha que foi descoberta mediante interceptação telefônica sem autorização judicial, se esta pessoa foi indicada por várias outras, não vinculadas à interceptação, como testemunha do fato (TÁVORA; ALENCAR, 2010,p.356. sic.).

As duas teorias que relativizam a teoria dos frutos da árvore envenenada foram acolhidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo Código de Processo Penal no seu art.157 e parágrafos. Em outros termos, é pela ponderação de interesses que deverá ser norteada uma decisão judicial no caso concreto, podendo-se acolher ambas as teorias referidas à luz dos princípios constitucionais, em permanente suporte ao princípio dito de valor máximo da ordem jurídica brasileira, o da dignidade da pessoa humana – espinha dorsal de todo o sistema. Sobre o assunto, o civilista Rolf Madaleno (2011) instrui que o princípio da dignidade da pessoa humana é o de maior valor para fomento da relativização da garantia constitucional da vedação da prova ilícita. Quando estiver em risco a supremacia dos direitos da pessoa humana, quais sejam sua honra e dignidade, deve prevalecer à ponderação de interesses o bem maior. Ainda segundo o autor, para tutelar direitos constitucionais proporcionalmente mais valiosos, prevalece a tese do abrandamento da proibição da prova ilícita em casos de excepcionalidade, pois o cerne da questão é encontrar equilíbrio entre os dois valores contrapostos. É irrelevante para o Direito de Família o meio de produção da prova. O essencial é o conteúdo. No âmbito do Direito das Famílias, as questões processuais são peculiares e devem ser vistas com evidente e indissociável juízo de ponderação (MADALENO, 2011a). Érico Bergmann (1992, p.16) assinala que: O princípio da proporcionalidade no âmbito probatório foi aplicado pelos tribunais alemães ao admitirem em caráter excepcional, a prova obtida com violação ao mandamento constitucional, desde que esta fosse a única prova possível e razoável trazida com o propósito de proteger outros valores fundamentais havidos como mais urgentes na avaliação dos julgadores.

Com base ainda nas alegações anteriores, temos que parar para avaliar o seguinte: 1. “Ônus da prova é o encargo, atribuído pela lei a cada uma das partes, de demonstrar a ocorrência dos fatos de seu próprio interesse para as decisões a serem proferidas no processo”. 1.1 - O Artigo 333 do Código de Processo Civil institui as regras gerais de caráter genérico sobre a distribuição do encargo probatório as partes: “Art. 333. O ônus da prova incumbe: I. ao autor, quanto ao fato constitutivo do seu direito; II. ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor.

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Parágrafo único “É nula a convenção que distribui de maneira diversa o ônus da prova quando: I. recair sobre direito indisponível das partes; II. tornar excessivamente difícil a uma parte o exercício do direito”.

E, será que somente será atingida a dignidade da pessoa humana em casos envolvendo O Direito Criminal ou o Direito de Família? O Direito Civil, que é tido eminentemente como um “Direito Patrimonial”, não existe incidência da dignidade da pessoa humana e ainda com os resquícios autorizadores para a produção e até mesmo a utilização de forma válida da prova ilícita, já que existem provas que de forma como previsto na legislação são impossíveis de ser produzidas, uma vez que a Constituição inda dá a parte contrária o Direito de não produzir prova em seu desfavor, e ao requerente o ônus de produzir a prova caracterizadora de seu Direito? Bem, em diversas situações de nosso cotidiano, e até mesmo após a promulgação da Constituição Federal de 1988, vemos uma constante e frequente tendência da Constitucionalização dos Ramos do Direito e ainda mais a necessidade de integração e humanização das áreas do direito entre si. Existe inclusive em muitos casos alguns doutrinadores que apostam na criação, ou melhor na mutação de um novo Ramo do Direito, o Direito Civil Constitucionalizado. O Direito Civil Constitucionalizado, visa não a criação de um novo nicho de Direito, mais a interpretação mais favorável ao agente no tocante a norma Constitucional e as garantias fundamentais dentre ela a ótica da Dignidade de Pessoa Humana. Nós, operadores do Direito temos de ter em mente em um primeiro momento, que ninguém procura o Poder Judiciário se não houver um litígio, uma pretensão resistida. O que tem que se avaliar é o quanto essa pretensão resistida afetou os paradigmas intrínsecos e extrínsecos da vida cotidiana e social do requerente de forma que venha a se buscar junto a Constituição elementos caracterizadores da lesão maior a dignidade da pessoa Humana. Em verdade, hoje, muitos colegas, buscam o princípio basilar da Constituição Federal da Dignidade da Pessoa Humana, até para tentar se conseguir fins indenizatórios, o que tem causado um reflexo nocivo às decisões judiciais, já que os magistrados e julgadores tendem a ver o Direito Civil e o Direito do Consumidor como fins de massificação. Porque não aqui também englobar a esfera de incidência da Justiça do Trabalho, onde muitas vezes são utilizados “Laranjas” para constituição de empresas, e o funcionário, após trabalhar longos períodos para o empregador, na hora de buscar a justa indenização de seus anos de serviços a fio, descobre que não existe patrimônio executável... Não se trata aqui de caso de incidência Constitucional? De INEGÁVEL e INCONTESTÁVEL abalo à dignidade da pessoa Humana?

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Tratando diretamente do Direito do Consumidor “A aquisição do primeiro imóvel, nos dias atuais não é fácil, pois vemos de forma crescente o recurso a programas assistenciais do governo, como o “Minha casa Minha vida”, o número crescente de financiamentos imobiliários, as regras a que são submetidos tais benefícios. Não raro da mesma forma ainda é o atraso na entrega das obras e quando o são entregue no prazo a qualidade do serviço é péssimo, e mesmo assim, não raras as vezes, somos procurados por clientes reclamando de que o contrato não está de acordo com o que foi dito pelo corretor. Não é caso também de infração ao princípio constitucional da Dignidade da Pessoa Humana? Não é caso de se adotar em prol dessas pessoas uma também flexibilização para as provas apresentadas? Uma prevalência do interesse social acima da atual política de provas apresentadas? Quando a prova ilícita é a única forma de comprovação ante a incapacidade das partes em produzir provas, não se trata dos mesmos princípios éticos e constitucionais apresentados pelo Direito de Família? Porque de uma inflexibilidade tão agressiva ante ao Direito Civil, o Direito do Consumidor e o Direito do Trabalho? Se hoje vivemos uma política de integração das matérias, sendo necessário a interpretação dos fatos e do ordenamento como um todo não apenas como partes isoladas, o porquê da distinção das provas e suas valorações e concessões em determinadas matérias? Se um vídeo feito por um terceiro, pode ser utilizado como meio de prova em direito criminal para deflagrar a abertura de uma ação penal para apuração de um homicídio, de uma lesão corporal, de um estupro...porque também o mesmo vídeo é considerado prova ilícita para se postular a justa reparação patrimonial pela lesão sofrida? A reparação patrimonial, em determinados casos, também engloba o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que nem sempre é possível retroagir ao estágio anterior. Logo, tais parâmetros de admissibilidade de provas em determinados ramos do direito gera uma instabilidade assim como um reflexo de insegurança para as partes envoltas em um litígio, já que se nãos e busca a verdade real dos fatos, para que serve o processo e a justa reparação? Como aplicar uma pena, seja esta restritiva de direitos ou liberdade, seja esta pecuniária, sem a real apuração dos fatos ocorridos? Infelizmente no Novo Código de Processo não temos nenhum reflexo ou posicionamento acerca de tal matéria, mantendo ainda tais questionamentos a cargo da doutrina e jurisprudência de nosso país. Manteve-se a fragilidade e a incerteza acerca da validade nos ramos do direito, assim como das exceções já praticadas e admitidas em julgamentos sumulados.

Conclusão 296

Vimos, que a instrução probatória, na matéria processual é um fator de extrema delicadeza que tem de ser analisado de forma criteriosa não apenas por

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nós operadores do direito, assim como também, os julgadores e pelo Ministério Público. Não somos favoráveis a uma indistinta produção de provas trazendo assim lesões de forma éticas e que venham a abalar a Constituição Federal, mais sim, somos extremamente à favor de uma normativa clara , concisa, justa e uniforme englobando todos os ramos do direito, em atendimento e respeito ao princípio basilar da Constituição Federal, que é o princípio da DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. Defendemos a intervenção máxima do Estado Juiz no presente caso visando assim a determinação de fatores essenciais a aceitação de tais elementos de forma a normatizar uniformemente o princípio da proporcionalidade no âmbito probatório de tal medida para assegurar um universo jurídico seguro, claro, transparente e estável de forma que as sentenças e decisões venham a ter maior eficiência e completas de conteúdo e significado.

Referências bibliográficas ALBUQUERQUE, Fabíola Dantos; EHRHARTH JR., Marcos; OLIVEIRA, Catarina Almeida de. (Org.). Famílias no direito contemporâneo: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Salvador: JusPodivm, 2010. ANGHER, Anne Joyce [org.]. Vade mecum. 9.ed. São Paulo: Rideel, 2011.CURY, Augusto. Armadilhas da Mente. 1.ed. São Paulo. Arqueiro 2013. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2009b. CÂMARA, Alexandre Freitas. Lições de direito processual civil. v.1. 20.ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. TEPEDINO, Gustavo. BARBOZA, Heloisa Helena. MORAES, Maria Cecilia Bodin. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. V.1.2.ed.Renovar, 2011.

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Controle social da administração pública: direito fundamental ao acesso à informação William Albuquerque Filho1 Resumo O presente artigo trata do direito fundamental ao acesso à informação, tema que recebeu no Brasil com a Constituição de 1988 e recentemente com a regulamentação da lei 12.527/2011, que diz respeito à administração pública, tratamento capaz de promover verdadeira quebra de paradigma. Trata-se de assunto importante na propulsão da cidadania, transparência e fortalecimento do estado democrático de direito. Palavras-chave: Acesso à informação; Constituição; Legislação; Cidadania. Abstract This article deals with the fundamental right to access to information, a topic that has received in Brazil with the constitution of 1988 and recently with the regulations of law 12.527/2011 with regard to public administration, treatment capable of promoting true paradigm shift. It is important issue in the propulsion of citizenship, transparency and strengthening of the democratic rule of law. Keywords: Access to information; Constitution; Law; Citizenship.

Introdução Aspecto importante a ser inicialmente observado é que o Estado Contemporâneo nasce, segundo Ferreira Filho2, no final do século XVIII de um propósito claro de evitar o arbítrio dos governantes. Vale ainda destacar que a supremacia do direito espelha-se no primado da Constituição. O primeiro recorte com o fim de se definir a abrangência do presente estudo requer a assertiva de que pretende-se identificar os principais fundamentos para o entendimento de que o acesso à informação é um direito humano fundamental, e que para além da constituição é insculpido também em tratados e convenções internacionais aos quais o Brasil é signatário, tendo portanto de se observar que sua soberania sobre o assunto é afetada por cortes supranacionais. Procurará se demonstrar que além de estar constitucionalmente insculpido como direito fundamental, o acesso a informação tem, nos últimos anos, recebido 1 Mestrando em Direito, (Hermenêutica e Direitos Fundamentais), Universidade Presidente Antônio Carlos, UNIPAC-JF, Dezembro de 2014. Orientador: Prof. PósDoutor Antônio Pereira Gaio Júnior. 2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: saraiva. 2013. p.19

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regulamentação digna e apta a promover uma verdadeira quebra de paradigmas com a superação da cultura do sigilo rumo a uma cultura da transparência e do acesso. Será demonstrada a existência de leis capazes de instrumentalizar as mudanças estruturais necessárias a este desiderato assim como o cumprimento dos propósitos da ordem constitucional e internacional na busca por construção de países justos e solidários. Trata-se, pois, de estudo relativo a um dos novos direitos fundamentais de solidariedade que Ferreira Filho, a princípio identifica como sendo os principais desta 3ª geração: (i) o direito à paz, (ii) o direito ao desenvolvimento, (iii) o direito ao meio ambiente e o (iv) direito ao patrimônio comum da humanidade. Destacados estes, continua o autor informando que: “A eles ‘alguns’ acrescentam o direito dos povos a dispor deles próprios (direito à autodeterminação dos povos) e o ‘direito à comunicação” 3. Este último, qual seja, o direito à comunicação, será o objeto do presente estudo, podendo se destacar que tal direito é vislumbrado em várias manifestações da UNESCO a partir dos anos 80, e deste então vem ganhando força em diversos países principalmente nos estados democráticos de direito. Todo este contexto trouxe inegável reflexo a nossa constituição de 1988. “Isto reflete na Constituição brasileira, cujo art. 220 o consagra. Trata-se de uma evolução da liberdade de expressão do pensamento, da qual já se separa a liberdade de imprensa e que agora apresenta outra face: o direito a informação. Este isoladamente está no art. 5°, XIV... deste deve ser aproximado o inciso XXXIII...4”

A necessidade do presente artigo se justifica, pois, segundo o próprio Ferreira Filho, a doutrina a respeito ainda não se cristalizou, existindo muita controvérsia quanto a sua natureza e rol, explicita o autor que: “Há mesmo quem os conteste, tratando-os como falsos direitos do Homem. Tal hesitação é natural, pois foi somente a partir de 1979 que se passou a falar desses novos direitos, cabendo a primazia a Karel Vasak”.5

Democracia contemporânea e participação Calmon de Passos, brilhantemente já nos idos de 1988 prescrevia: “Estamos, penso eu, alcançando um estágio novo no processo de transformação da democracia moderna. Democratizado o Estado percebeu-se que, embora importante, era insuficiente esse passo, havendo risco de retrocesso. Impunha-se também, democratizar a sociedade”6. Continuando seu raciocínio, destaca que

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3 Idem: p.76 4 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: saraiva. 2013. p.76 5 Idem 6 CALMON DE PASSOS, J. J. Democracia, Participação e Processo. In: GRINOVER, Ada P. Participação e Processo, São Paulo: RT, 1988. p. 92

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a solução institucional da democracia liberal (democratização do Estado) não responde satisfatoriamente às exigências da (democratização da sociedade). “O desafio hoje, portanto, é tornar realidade a democratização da sociedade, sem prejuízo da democratização do Estado. Em outros termos – conservarse a prioridade do bem-estar social, mas sem restrição ao sacrifício da esfera da liberdade. Para que isso se faça realidade, urge pensar e implementar os instrumentos adequados, plasmar as novas instituições, enfim definir todo o necessário à consecução desse objetivo. E tudo aponta seja esse caminho o da chamada democracia participativa7”.(grifo nosso)

Interessante observar a explicação do autor destacando que na “democracia liberal” predominava a dissociação entre o político e o econômico; na “democracia social” ocorre a tentativa de reaproximação entre ambos, o estado provê, mas também oprime, e, por fim, preconizando a sistemática vindoura salienta: “Marchamos, agora, para um terceiro tempo o da ‘democracia participativa’ onde tenta-se manter interação entre o econômico e o político e sua formulação jurídica, mas supera-se a exacerbação do Estado em detrimento da liberdade, recuperando-se para a sociedade, um poder de controle que a democracia liberal e a social democracia não previram nem efetivaram salvo pelo mecanismo do voto e pela pressão da opinião pública que se revelaram insuficientes e insatisfatórios”8.

A nova forma participativa de convivência política defluiu da observância de que o Estado não é neutro, nem é sempre um mediador confiável. O Estado, expressa muitas vezes interesses conflitantes com os da sociedade civil e, se faz aliado, outras tantas vezes, às forças econômicas com interesses no mínimo duvidosos, que não se coadunam com as preocupações sociais, tudo em detrimento dos governados e de si mesmo. Observe-se: “a democracia direta, assenta no convencimento de que todo e qualquer poder, entregue a si mesmo, livre de controle ou fragilmente controlado, degenera, aliena-se, distancia-se, oprime e desserve 9”. Baptista da Silva10, após destacar a incapacidade demonstrada pelos regimes democráticos anteriores, destaca que: “a condição essencial para a estabilidade do estado constitucional democrático repousa na existência de uma camada suficientemente ampla de cidadãos, entendidos como verdadeiros citoyens11 e não como boureois 12”. Demonstra que, como pressuposto básico para o estabelecimento de uma democracia consistente e durável, é necessário não só a formação juridicamente perfeita do dispositivo estatal, mas fundamentalmente 7 Idem 8 Ibidem 9 Idem: p. 93 10 BAPTISTA DA SILVA. Ovideo A. Democracia moderna e processo civil. In: GRINOVER, Ada P. Participação e Processo, São Paulo: RT, 1988. p. 108 11 Aqueles que são capazes de sobrepor a nação a seus interesses; 12 Aqueles que participam da vida pública para preservar interesses e privilégios particulares.

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o estabelecimento de condições sócio-culturais que possibilitem o surgimento de verdadeiros e autênticos cidadãos. “No que diz respeito ao Direito, particularmente às diretrizes políticas a serem seguidas de modo que os instrumentos jurídicos possam contribuir para o estabelecimento de um Estado democrático, tanto quanto possível próximo de seu modelo ideal, pensamos que a reforma deva orientar-se decisivamente para o horizonte da participação política, cada vez mais efetiva e abrangente 13”. Alberto Nogueira14, em minucioso e brilhante estudo sobre as liberdades públicas do terceiro milênio, diz que: “Pode-se a essa altura, sem qualquer exagero ou fantasia, falar de um Estado democrático de direitos humanos para designar esse novo modelo estatal”. Destaca o autor que “a ideia política do século XIX, nascida das revoluções americana e francesa do século XVIII, foi a democracia... O futuro pertencia a um governo pelo povo. Essa era a esperança de todos os que acreditavam no progresso, que defendiam padrões mais elevados de vida social”15. Coadunando com o exposto até o momento, sobretudo no que se refere à participação dos cidadãos, Nogueira de forma concisa e pedagógica esclarece: “Na verdade, já se pode apontar para um terceiro estágio ainda mais avançado, de ‘Estado’ que identifico (com o nome provisório) de Estado de Direitos Humanos, modelo que integra os anteriores: Burguês (Estado Nacional), Social (burguês e democrático), Democrático de Direito (com ampliação da cidadania crítica e participativa). Com esse último modelo de convivência dos homens (em suas diversas dimensões: individual, grupal, social, política, ética, jurídica, econômica, para só mencionar algumas), agora se faz não apenas necessária, mas dramaticamente necessária, a emancipação da democracia” 16.

Observa-se no estudo que estamos diante da mais fantástica mutação social, envolvendo todos os campos da ciência e das relações sociais, que revela a mais revolucionária mutação do homem, como “ser” partícipe e construtor de si mesmo e de “seu mundo”.

Constituição de 1988 e o acesso à informação Com o advento da constituição de 1988 o Brasil retomou a configuração de estado democrático de direito, conforme prescrito no art. 1°, onde, ora se sublinha o inciso II “cidadania” como um de seus fundamentos, a cidadania aqui, segundo Silva17, tem um sentido mais amplo do que apenas titular de

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13 Idem:109 14 NOGUERA, Alberto. Liberdades Públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. p. 415-436 15 Idem: p. 417 16 Idem 418-419 17 SILVA. José Afonso da, Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo: Malheiros, 1996. p. 104.

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direitos políticos, assim os participantes da vida do Estado são qualificados. Reconhece-se o “indivíduo” como “pessoa” na sociedade estatal e ainda, que o funcionamento do Estado está submetido à vontade popular. Destaca-se como fundamentação constitucional e base para o presente estudo os seguintes incisos do art. 5° da constituição: XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional; XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da Lei18, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado; Necessário ainda destacar no presente contexto os artigos. 216, § 2° e 220: Art.216 § 2º Cabe à administração pública, na forma da Lei, a gestão da documentação governamental e as providências para franquear sua consulta a quantos dela necessitem. Art. 220 A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição. Verifica-se, portanto, o posicionamento estratégico dado ao tema na constituição, o que nos dá subsídios fortes no sentido de reconhecer o direito à informação como regra. Prescreve-nos a carta cidadã que deve mesmo este instrumento de cidadania ser encarado como norteador das atividades do Estado, submetido ao cumprimento das demandas neste sentido. O que urge frisar é que, atualmente, o acesso é regra e o sigilo exceção. O reconhecimento dado ao assunto possibilita o desenvolvimento e a valorização do controle social, que, quando incorporado à cultura popular e à cultura da administração pública, certamente, propiciará melhorias substanciais em searas como o combate a corrupção, a busca por uma melhor gestão das políticas e recursos públicos, o fortalecimento da cidadania e da democracia. Certamente ao se guiar por esta trilha se formará ambiente propício ao desenvolvimento econômico-social tão almejado, podendo até mesmo se dizer que a promoção do acesso a informação é capaz também de proteger a efetivação dos direitos sociais na medida em que visa dar maior eficiência e zelo no trato com a “coisa” pública trazendo consequente melhora na disponibilidade de recursos para as prestações positivas que os direitos sociais cobram para sua efetivação. A CGU (Controladoria Geral da União), órgão vinculado ao executivo federal, registra19 que garantir o acesso às informações públicas é fundamental para: (i) criar mecanismos de “accountability” governamental, (ii) elevar a qualidade da gestão pública, (iii) aumentar a transparência do Estado e diminuir a corrupção, (iv) garantir os direitos individuais e coletivos (em especial o chamado direito a verdade), (v) promover o desenvolvimento econômico, social e humano, (vi) fortalecer nossa democracia. 18 A Lei 12.527/2011 (LAI lei do acesso à informação), será analisada a diante. 19 Curso. Rumo a uma cultura de acesso a informação: a Lei 12.527/2011 - 22ª Edição”, oferecido pela Controladoria-Geral da União, no período de 29/10/2014 a 12/11/2014.

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Importante destacar que “a dogmática e a doutrina constitucional defendem que não é a Constituição – sobretudo ‘constituição de direitos’ assente em normas jusfundamentais – que deve ser interpretada com a lei, mas é a lei, como norma hierarquicamente inferior, que deve ser interpretada conforme a constituição”20. Indubitavelmente, a Constituição cidadã, pelo demonstrado, é marco fundamental na construção e fortalecimento da cultura da transparecia.

Tratados e convenções internacionais Vários organismos internacionais responsáveis pela promoção e proteção dos direitos humanos reconheceram o direito fundamental de acesso às informações em posse de órgãos públicos. Sommermann21 em estudo sobre o desenvolvimento dos direitos humanos desde a Declaração Universal de 1948 demonstra haver interação entre os “direitos humanos internacionais” e os “direitos fundamentais nacionais”. “Esta interación se propaga em círculos concêntricos: em el nível nacional se desarrollan nuevos derechos, que irradian sobre el nível juridico-internacional para, desde allí, volver a repercutir sobre el derecho estatal, y vice versa. Encontramos ejemplos de esto em la protección de datos, el derecho a um médio ambiente sano o los nuevos derechos relacionados com las comunicaciones22”.

Percebe-se mesmo que alguns Estados chegam a constitucionalizar diretamente os textos internacionais sobre direitos humanos no lugar de seu próprio catálogo de direitos fundamentais, a exemplo da Áustria e do Peru. Vejamos alguns dos principais artigos das cartas internacionais que trazem em seu bojo conteúdos que demonstram a importância da liberdade de expressão e seus desdobramentos, notadamente, no que se refere ao direito à informação onde se poderá depreender que a constituição brasileira de 1988 como suprademonstrado se coadunada. Declaração Universal dos Direitos Humanos, ONU, 1948: Artigo XIX. “Todo ser humano tem direito à liberdade de opinião e de expressão; esse direito inclui a liberdade de ter opiniões sem sofrer interferência e de procurar, receber e divulgar informações e idéias por quaisquer meios, sem limite de fronteiras”.

Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ONU, 1966: Artigo 19.

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20 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Biografia não autorizada versus liberdade de expressão./José Joaquim Gomes Canotilho, Jónatas E. M. Machado, Antônio Pereira Gaio Júnior. Curitiba: Juruá, 2014. p.15 21 SOMMERMANN. Karl-Peter, El desarrollo de los derechos humanos desde la declaracíon universal de 1948. In: LUÑO. Antonio-Enrique Pérez (coord.), Derechos Humanos y constitucionalismo ante El tercer milênio, Madrid: Marcial Pons, 1996, p. 108 22 Idem

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“Toda e qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão; este direito compreende a liberdade de procurar, receber e expandir informações e idéias de toda espécie, sem consideração de fronteiras, sob forma oral ou escrita, impressa ou artística, ou por qualquer outro meio à sua escolha”.

Convenção Americana sobre Direitos Humanos, OEA, 1969: Artigo 13. “Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento e de expressão. Esse direito compreende a liberdade de buscar, receber e difundir informações e idéias de toda natureza, sem consideração de fronteiras, verbalmente ou por escrito, ou em forma impressa ou artística, ou por qualquer outro processo de sua escolha”.

Declaração Interamericana de Princípios de Liberdade de Expressão. Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 2000: Item 4. “O acesso à informação em poder do Estado é um direito fundamental do indivíduo. Os Estados estão obrigados a garantir o exercício desse direito. Este princípio só admite limitações excepcionais que devem estar previamente estabelecidas em lei para o caso de existência de perigo real e iminente que ameace a segurança nacional em sociedades democráticas”.

Jurisprudência e o acesso à informação O direito ao acesso a informação, embora previsto em tratados internacionais, teve sua consolidação como direito fundamental, de fato, a partir de entendimentos firmados na jurisprudência internacional, ou seja, através de reiteradas decisões judiciais, que ao longo do tempo, afirmaram o direito de acesso nos casos concretos 23. Destaca-se neste contexto, o julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em 2006, do caso Claude-Reyes, emblemático para a consolidação do entendimento do direito ao acesso às informações públicas como um direito fundamental do indivíduo e como obrigação do Estado. “Esta foi a primeira vez que um tribunal internacional reconheceu que a garantia geral de liberdade de expressão protege o direito de acesso à informação de posse de órgãos públicos 24”. Trata-se, o caso de processo movido por Reyes, Urrejola e Guerrero, cidadãos chilenos contra o Estado do Chile, por recusa, sem uma justificativa válida, a uma solicitação de informações sobre um projeto de desmatamento que poderia ser prejudicial ao meio ambiente e para o desenvolvimento sustentável do Chile. Após a análise, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o caso 23 Curso. Rumo a uma cultura de acesso a informação: a Lei 12.527/2011 - 22ª Edição, oferecido pela Controladoria-Geral da União, no período de 29/10/2014 a 12/11/2014. 24 Idem

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foi submetido a julgamento pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pois o Chile já era signatário da Convenção desde 1990. No julgamento, a Corte Interamericana considerou, por unanimidade, que o Estado do Chile violou o direito de liberdade de expressão, garantido pelo Artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos supracitado. A Corte determinou não só que o Estado do Chile fornecesse as informações às vítimas e as indenizasse como também que adotasse as medidas necessárias para efetivar o direito de acesso à informação por meio de uma legislação nacional específica e que capacitasse os servidores públicos para viabilizar o usufruto desse direito. Foi através de entendimentos jurídicos como este que o direito a informação conquistou avanços, deixando de ser apenas um direito instrumental para, também ser um direito autônomo.

Transformações sociais Observa-se que transformações sociais ocorridas no final do final do século XX em diante também vêm contribuindo para o reconhecimento do acesso à informação como direito humano fundamental, podendo se destacar a democratização de vários países e regiões a partir da década de 90 e também os grandes avanços nas tecnologias da informação e comunicação. Estes acontecimentos trouxeram profundas mudanças sobre o tema em estudo; a relação das sociedades com a informação e o uso que fazem delas passou à efervescência. As novas tecnologias sem dúvida, intensificaram a velocidade com que os órgãos públicos e outros setores da sociedade produzem, circulam e demandam informações. O advento da “internet” é, sem dúvida, um vetor a ser analisado nas transformações sociais atuais. Dupas 25 considera o controle da internet como uma das questões atuais vitais para o controle da utilização de novas tecnologias; “Quanto à internet, a sua manutenção como um veículo público de socialização das informações, ao lado do seu inevitável e revolucionário uso comercial, irá depender de como sua regulação será efetivada pela sociedade26”. Não se pode negar à internet o reconhecimento de sua capacidade em prover melhorias no que diz respeito à aceleração nos processos de transmissão de informações e outras questões, de forma democrática. Miranda27, trazendo valiosas informações no contexto Português, explica que a primeira forma de defesa dos direitos é a que consiste no seu conhecimento, destacando a importância da promoção do direito aos direitos ou, a democratização do direito, avaliando ser tal medida cada vez mais urgente e imperativa, na atual conjuntura da lei e perante a chamada sociedade da informação.

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25 DUPAS. Gilberto, Ética e poder na sociedade da informação. De como a autonomia das novas tecnologias obriga a rever o mito do progresso. São Paulo: UNESP, 2001. p. 23. 26 Idem 27 MIRANDA, Jorge. A tutela jurisdicional dos direitos fundamentais em Portugal. In: GRAU, Eros; GUERA FILHO, Willis Santiago (Org.). Direito Constitucional. Estudos em homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Malheiros RT. 1988. p.284-285

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Devemos ainda destacar a sociedade globalizada como um dos principais vetores de transformação social na atualidade. Nogueira28 destaca a importância do assunto, salientando que “na atual conjuntura globalizante, o suposto confronto indivíduo – comunidade (ou público x privado) perde sua razão de ser. Agora, a questão já não gira apenas na relação pessoa x estado, mas em outras circunstâncias assim definidas: o homem como centro de todos os centros”.

Regulamentação do acesso à informação Embora a constituição garanta o direito ao acesso à informação pública desde 1988, faltava, no Brasil, uma lei que regulamentasse o direito. Da singela leitura dos incisos constitucionais em estudo, quais sejam, os XIV e XXXIII do art. 5° da CF/88, percebe-se expressões como “no prazo da lei” e “ressalvada aquelas”, nota-se que a construção constitucional possui apenas características gerais, demandando edição de leis específicas para a aplicação aos casos concretos, várias leis têm sido, nos últimos tempos, de grande importância para o desenvolvimento do acesso à informação, podendo se destacer: (i) Lei 8.159/1991 – política nacional de arquivos públicos e privados, (ii) Lei 9.507/1997 Rito processual do Habeas Data, (iii) Emenda Constitucional 19 de 1998, (iv) Lei 9784/1999 Lei do Processo Administrativo, (iv) Lei Complementar 101/2000 Lei de Responsabilidade Fiscal, (v) Lei 10.520/2002 Pregão presencial e eletrônico, (vi) Decreto 5482/2005 Portal da Transparência e Páginas de Transparência Pública, entre outras. Apesar da importância das destacadas leis, nos ateremos a tecer comentários sobre a lei 12.527/2011 LAI (lei do acesso à informação), que, acredita-se provocará uma grande mudança na administração pública e na sociedade, tendo em vista a necessidade, como visto, de se superar a cultura do sigilo ruma a uma cultura da transparência. Só como um primeiro exemplo sobre o afirmado, destaca-se que a lei prescreve que, qualquer pessoa pode solicitar informações, mesmo que elas não sejam necessárias para o exercício de um outro direito, pois, o acesso em si já é um direito. Neste novo contexto, o solicitante sequer precisa justificar ou explicar o porquê de seu interesse na informação. O reconhecimento de que a informação pública pertence a todos é razão suficiente para justificar o acesso, segundo a nova ordem legal. Toda a administração pública dos poderes executivo, legislativo e judiciário, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, assim como os Tribunais de Contas o Ministério Pública além da Administração Pública e entidades privadas que recebam recursos públicos, são sujeitos passivos da LAI. A lei possui dispositivos gerais aplicáveis a todos os entes federativos e dispositivos específicos aplicáveis apenas ao poder executivo que teve sua regulamentação específica com o Decreto – 7.724/12. Os procedimentos da LAI devem observar os princípios básicos que regem a administração pública, notadamente os elencados no art. 37 da CF/88, 28 NOGUEIRA. Alberto, Liberdades Públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. P 39

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legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, entre outros. O desenvolvimento do controle social é uma das diretrizes da LAI da mesma forma que é fundamental o desenvolvimento de uma cultura da transparência na administração pública e principalmente que a sociedade tome conhecimento de seu direito de acesso à informação. As exceções ao direito de acesso são: informações pessoais relacionadas a pessoa natural (informações relativas à intimidade, vida privada, honra, imagem das pessoas), que devem ter acesso restrito por 100 (cem) anos independentemente de classificação, ainda como exceção à regra, observa-se as “informações classificadas” que são aquelas que a divulgação indiscriminada podem colocar em risco a segurança da sociedade ou do Estado e, por isso, pode ser restringida por algum lapso temporal que variam entre 25 (vinte e cinco) anos para informações ultrassecretas, 15 (quinze) anos para informações secretas e 5 (cinco) anos para informações reservadas. Passamos a destacar alguns dispositivos da lei em estudo que regulamentam importante direito fundamental (acesso à informação), mas também traz dispositivos que buscam o direito à autodeterminação informativa e a proteção de dados pessoais, vejamos: Art. 21.  Não poderá ser negado acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais.  Parágrafo único.  As informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso.  Art. 22.  O disposto nesta Lei não exclui as demais hipóteses legais de sigilo e de segredo de justiça nem as hipóteses de segredo industrial decorrentes da exploração direta de atividade econômica pelo Estado ou por pessoa física ou entidade privada que tenha qualquer vínculo com o poder público.  Art. 31.  O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais.  § 1o  As informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem:  I - terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem; e  Pode-se ainda destacar como principal inovação da LAI o seu art. 8° e parágrafos onde se determina que os entes públicos devem promover a divulgação de informações de interesse coletivo e geral por eles produzidos, independentemente de requerimento. Com a edição da lei 12.527/2011 o Brasil se tornou o 89° país do mundo a contar com uma legislação específica sobre o direito ao acesso a informação, o que muito nos orgulha e ao mesmo tempo, traz a toda sociedade a responsabilidade de não permitir que ela se torne letra morta como ocorre com outras legislações no país.

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Restrições e colisões Observa-se que a matriz individual do direito ao acesso à informação, individualmente analisado, se encontra no art.5° IV, que tutela a livre manifestação do pensamento. Já a matriz coletiva, objeto específico do presente estudo, estão capitulados nos incisos XIV e XXXIII e no art. 220 e parágrafos como visto. Nos incisos X, XII, XXXIV, b, LX, LXXII do art. 5° observam-se a tutela processual (direito de petição e habeas data) e tutela material da intimidade e dos dados pessoais (autodeterminação informativa) que se demonstra como importante base axiológica que pode entrar em conflito com o direito de acesso à informação. Pode-se identificar em Canotilho, Machado e Gaio Júnior29, o conflito que ocorre em biografias não autorizadas e liberdade de expressão. No estudo os autores destacam o confronto entre os artigos. 20 e 21 do Código Civil Brasileiro – onde se exige a autorização para divulgar informações sobre a vida privada de pessoa natural – e a dogmática e doutrina constitucional tocante à liberdade de expressão. “A liberdade de expressão não justifica a desconsideração de outros direitos e interesses constitucionalmente protegidos. No entanto, estes também não podem neutralizar as funções subjetivas e objetivas desempenhadas pela liberdade comunicativa numa sociedade democrática. No direito constitucional dos direitos fundamentais, a liberdade é a regra e a restrição à liberdade é a exceção” 30.

Conclusão O acesso às informações públicas, como visto, é valioso instrumento contra a corrupção, previne-a, já que o ambiente de segredo a convida; o controle social, neste sentido, é complemento indispensável à fiscalização exercida pelos órgãos e poderes públicos, fortalece a cidadania e a democracia aperfeiçoando a gestão pública. Tem ainda o condão de promover um ambiente de respeito aos direitos e garantias individuais - como exemplo a privacidade31 - e coletivos – como, por exemplo, o direito ao meio ambiente hígido e o direito a comunicação, ora em estudo. Tentamos demonstrar que a doutrina, a constituição, os tratados e convenções internacionais, as leis nacionais, a jurisprudência e até questões sociais, conspiram em prol do reconhecimento do acesso a informação como direito humano no direito internacional e direito fundamental no direito nacional. 29 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Biografia não autorizada versus liberdade de expressão./José Joaquim Gomes Canotilho, Jónatas E. M. Machado, Antônio Pereira Gaio Júnior. Curitiba: Juruá, 2014. p 30 Idem 31 Sem o direito ao acesso às informações dos órgãos públicos em geral, os indivíduos não têm possibilidades de saber quais informações a seu respeito estão sob sua guarda.

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Como exemplo prático recente da importância da transparência, temos o relatório emitido pela Comissão Nacional da Verdade, em 10/10/2014, que, através de muita luta, trabalho de pesquisa e investigação, sobretudo, na busca por acesso as informações referentes aos crimes cometidos contra a humanidade no regime sistemático atuante entre os anos de 1964 a 1985 no Brasil, têm demonstrado a possibilidade de se manter a chama da verdade e a busca pela memória e justiça32 acesas. Sobre o tema, podemos ainda dizer que a possibilidade de transparência trouxe aos trabalhos da comissão, a oportunidade de prestação de contas à sociedade e aos familiares com a entrega dos restos mortais de seus entes queridos para que tenham um destino digno e também informações sobre o triste, porém gloriosos destinos de outros. O acesso a informação pública, nos moldes destacados, não é apenas um direito resguardado pela constituição, muito além, é um direito fundamental individual e coletivo que visa instrumentalizar o exercício da cidadania, base da democracia. A mudança de cultura almejada deve demandar um longo processo, sem dúvida, demandara engajamento da sociedade, deverá haver reestruturação física das entidades e redesenho de processos e rotinas. Estamos apenas no início deste processo tendo em vista que a LAI entrou em vigor apenas em 16 de maio de 2012, mas a partir deste momento é imperioso saber que publicidade é a regra e sigilo apenas a exceção.

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32 Justiça, pois, os crimes praticados contra a humanidade são imprescritíveis independente de lei de anistia.

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Dignidade da pessoa humana: a matéria-prima dos direitos fundamentais Júlia Mara Rodrigues Pimentel1 Resumo O pós-positivismo se caracteriza por acolher a ideia de que os princípios constitucionais devem ser tratados como normas jurídicas, por mais abstratos que sejam os seus textos, bem como por estabelecer que a norma jurídica, para se legitimar deve tratar todos os indivíduos com a mesma consideração, respeito e dignidade. Assim, se reconhece que os direitos fundamentais são detentores de relevância axiológica capaz de fundamentar e legitimar todo o ordenamento jurídico. Tal fato faz com que se reconheça que esses direitos representam um sistema de valores com força suficiente para afetar a interpretação de qualquer norma jurídica. O Estado Democrático de Direito demanda a garantia dos direitos fundamentais e, devido a isso, deve centralizar-se na dignidade da pessoa humana, uma vez que os direitos são postos a serviço da realização do homem como pessoa. Desse modo, a dignidade da pessoa humana deve ser concebida como um valor jurídico supremo visto ser ela o fundamento das pretensões essenciais e a base de uma Constituição operante. Palavras-chave: Direitos humanos; Direitos fundamentais; Dignidade da pessoa humana. Abstract The post-positivism is characterized by welcoming the idea that the constitutional principles should be treated as legal rules, for more abstract than are their texts and for establishing the rule of law, to legitimize should treat all individuals with same consideration, respect and dignity. Thus, it is recognized that fundamental rights are holders of axiological relevance able to justify and legitimize the entire legal system. This fact makes it recognizes that these rights are a value system with enough force to affect the interpretation of any rule of law. The democratic rule of law demands the guarantee of fundamental rights and, because of this, be centered on the dignity of the human person, since the rights are put at the service of the realization of man as a person. Thus, the dignity of the human person must be conceived as a supreme legal force as it is it the foundation of the essential claims and the basis of a functioning Constitution. Keywords: Human rights; Fundamental rights; Human dignity. 1 Mestranda em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Ciências Penais pelas Faculdades Integradas de Caratinga; Especialista em Direito Público e em Direito e Processo do Trabalho pela Universidade Anhaguera-Uniderp. Advogada e Conselheira da “OAB Mulher” da 54ª Subseção da OAB. Coordenadora do Núcleo de Práticas Jurídicas da Faculdade Doctum de Manhuaçu e Professora da Rede Doctum de Ensino.

Dignidade da pessoa humana: a matéria-prima dos direitos fundamentais

Introdução Após a derrota da Alemanha nazista, os jurisconsultos de todo o mundo sentiram a necessidade de desenvolver uma teoria jurídica mais comprometida com os valores humanitários como um modo de recuperar a legitimidade da ciência do direito que havia sido, fortemente, abalada em razão da “legalização do mal”2 levada a cabo pelo regime de Hitler. Assim, não foi por acaso que a Declaração Universal de Direitos Humanos surgiu, exatamente, com o fim do nazismo, na Segunda Guerra3. Foram, justamente, os nazistas que praticaram atrocidades indescritíveis contra seres humanos indefesos nos campos de concentração. Desse modo, os Direitos Humanos não são somente um marco na busca da paz, mas representam uma tentativa de banir práticas que rebaixam os homens a condições inferiores, aos animais. O presente trabalho, a partir de uma pesquisa teórico-dogmática abordará a temática e tentará encontrar uma definição de direitos fundamentais que leve em conta seu aspecto ético e jurídico. Para tanto, será feita uma diferenciação entre “direitos do homem”, “direitos humanos” e “direitos fundamentais”, no intuito de delimitar o objeto de estudo e de esclarecer algumas confusões terminológicas que geralmente surgem nesse seara. Ressalte-se, ainda, que não desprezando toda a importância sobre como o princípio da dignidade humana desenvolveu-se no decorrer dos tempos na humanidade, o presente trabalho ao tratar do referido princípio impõe como marco temporal o século XX, notadamente, o constitucionalismo do pós-guerra, período no qual se experimentou o mais sistemático e organizado esquema de violações do princípio da dignidade da pessoa humana, bem como analisa a questão dos direitos fundamentais4 mais especificamente no ordenamento jurídico pátrio.

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2 Acerca da “banalidade do mal” conferir obra de Hannah Arent “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. Tal expressão foi cunhada pela alemã de origem judaica. No livro, a filósofa política conta o desenrolar do julgamento de Adolf Eichmann, um nazista que obedecia às ordens do regime sem questionar se tais estavam corretas ou não. 3 “[...] após o término da Segunda Grande Guerra, em reação às atrocidades cometidas pelo nazi-fascismo, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 1948, enunciava em seu artigo 1º: ‘Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos’” (MORAES, 2003, p. 82). 4 No Brasil, os direitos fundamentais possuem aplicação imediata e, consequentemente, não precisam de regulamentação para serem efetivados, visto que diretamente vinculantes e plenamente exigíveis. Pedro Lenza adverte que “nos termos do art. 5, § 1º, as normas definidoras de direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. Trata-se, portanto, de regra que naturalmente comporta exceções trazidas pelo constituinte originário” (LENZA, 2009, p. 673). São cláusulas pétreas (por força do artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF) , e, por isso, não podem ser abolidos nem mesmo por meio de Emenda Constitucional e são possuidores de hierarquia constitucional, de modo que, se determinada lei dificultar ou impedir, de modo desproporcional, a efetivação de um direito fundamental, essa lei poderá ter sua aplicação afastada por inconstitucionalidade. Daí a importância de se conhecer o conteúdo e o conceito de direitos fundamentais, haja vista que as consequências daí decorrentes são extremamente relevantes.

Júlia Mara Rodrigues Pimentel

O pós-positivismo e a teoria dos direitos fundamentais A partir do século XX, com o surgimento do Estado Democrático de Direito, que agrega os valores da liberdade e da igualdade não mais sob seu aspecto formal, mas também sob o aspecto material, as ideias do positivismo já não mais satisfaziam o direito, a separação do direito e da ética não correspondia aquilo que a humanidade necessitava5. O regime nazista foi como um banho de água fria para o positivismo kelseniano.6 Para o jusfilósofo austríaco, não cabia ao jurista formular qualquer juízo de valor em torno do direito. Uma vez válida, a norma deveria ser aplicada sem questionamento. Inclusive esse foi o argumento dos advogados dos nazistas no julgamento de Nuremberg. A defesa se baseava no fato de que os comandados de Hitler estavam apenas cumprindo ordem e, por consequência, não deveriam ser responsabilizados pelos eventuais crimes ocorridos no Holocausto. Ante ao desencantamento daquela teoria, os juristas desenvolveram uma nova corrente filosófica denominada pós-positivismo, ou positivismo ético, isto porque um de seus objetivos é inserir no Direito os valores éticos imprescindíveis na proteção da dignidade humana. “Percebeu-se que, se não houver na atividade jurídica um forte conteúdo humanitário, o direito poderia servir para justificar a barbárie praticada em nome da lei”7. O retorno ao jusnaturalismo8 já não era almejado por aqueles que operavam o direito. E o que houve foi uma reformulação do direito positivo clássico e em vez de se pensar um direito acima do estatal, trouxeram-se os valores para dentro 5 Ressalte-se que com o fim da Segunda Guerra Mundial e a queda do Regime de Hitler, os juristas europeus, notadamente os alemães, passaram por uma intensa crise de identidade, algo comum numa fase de transição. Ronald Dworkin, ao discorrer acerca dessa fase, explica a questão da legitimidade do direito nazista sob o vértice do positivismo: “Costuma-se dizer que os nazistas tinham um direito, ainda que tal direito fosse muito mal. Havia uma crença difundida de que esse fato relativo a nossa prática linguística apoiava o positivismo, com seu axioma de que a existência do direito é independente do valor de tal direito, de preferência a qualquer teoria do ‘direito natural’ [...] as teorias semânticas como o positivismo limitam nossa linguagem ao nos negar a oportunidade de usarmos a palavra ‘direito’ desse modo flexível dependendo do contexto ou do sentido” (DWORKIN, 1999, p. 127). 6 Para Hans Kelsen (Praga, 11 de outubro de 1881 - Berkeley, 19 de abril de 1973), autor da teoria pura do direito, se a norma jurídica fosse válida, deveria ser cumprida, independentemente de ser justa ou injusta. Curiosamente, o próprio Kelsen foi perseguido pelo regime nazista, exilando-se nos Estados Unidos. Kelsen era um democrata e não é correto afirmar que ele teve participação ou influência na elaboração das leis nazistas. Todavia, não há como negar que sua teoria pura proveu base jurídica para tentar justificar as barbaridades praticadas contra os judeus. Isso porque o formalismo dessa teoria não dá margem à discussão acerca do conteúdo da norma. 7 MARMELSTEIN, 2009, p. 13. 8 “O termo jusnaturalismo identifica uma das principais correntes filosóficas que tem acompanhado o Direito ao longo dos séculos, fundada na existência de um direito natural. Sua ideia básica consiste no reconhecimento de que há, na sociedade, um conjunto de valores e de pretensões humanas legítimas que não decorrem de uma norma jurídica emanada do Estado[...]” (BARROSO, 2001, p. 13).

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do direito positivo, notadamente o da dignidade da pessoa humana9. Nesse sentido, Alexy diz que o direito necessariamente deve ter uma “pretensão de correção”, no sentido de se aproximar da ideia de justiça10. E essa “pretensão de correção” se manifesta, exatamente, através dos direitos fundamentais: nenhum ato será em conformidade com o direito se for incompatível com os direitos fundamentais. Essa nova concepção, ao contrário do que possa parecer, não abre mão do normativismo. A norma continua sendo o principal objeto de estudo do jurista, conforme defendia o próprio Kelsen. No entanto a norma, para o operador do direito, deixa de ser “neutra”, passando a conter uma forte ideologia, de modo que princípios como a dignidade da pessoa humana, da igualdade, da solidariedade, da autonomia da vontade, da liberdade de expressão, do livre desenvolvimento da personalidade, da legalidade, da democracia, seriam tão vinculantes quanto qualquer outra norma jurídica11.

Assim, a observância desses princípios não seria facultativa, todavia tão obrigatória quanto à observância das regras. Tais regras apenas são válidas se estiverem em conformidade com as diretrizes traçadas nos princípios, alentado uma ideia de que os princípios possuem uma função de fundamentação e de legitimação do ordenamento jurídico12. Esta constatação de que os princípios constituem normas jurídicas causou uma reviravolta na ciência jurídica, notadamente, no que concerne ao direito constitucional. Isso porque é na Constituição que estão albergados quase todos os princípios. Saliente-se que antes, quando não se reconhecia força jurídica aos princípios, as normas constitucionais, já que formuladas em sua maioria como princípios, de pouco valiam. Dizia-se que essas normas, conquanto estarem na Constituição, não passavam de conselhos morais, de declarações de boas intenções. Dessa forma, seu descumprimento não gerava consequências jurídicas graves. Ana Paula de Barcellos retrata a importância dos princípios para a hermenêutica jurídica e ressalta a dignidade da pessoa humana como vetor interpretativo geral:

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9 No positivismo de Kelsen, “tudo girava em torno da lei, qualquer fosse seu conteúdo, era tudo” (MARMELSTEIN, 2009, p. 13), já com o pós-positivismo, a lei concedeu espaço aos valores e aos princípios que, como adverte Paulo Bonavides, se converteram “em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novos sistemas constitucionais” (1998, p. 237), tornando “a teoria dos princípios hoje o coração das Constituições” (1998, p. 253). 10 ALEXY, 2006, p. 20. 11 MARMELSTEIN, 2009, p. 14. 12 “Em sua trajetória ascendente, os princípios deixaram de ser fonte secundária e subsidiária do Direito para serem alçados ao centro do sistema jurídico. De lá, irradiam-se por todo o ordenamento, influenciando a interpretação e aplicação das normas jurídicas em geral e permitindo uma leitura moral do Direito” (BARROSO, 2011, pp. 226-227).

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A conclusão é que os princípios constitucionais haverão de funcionar como balizas, tendo em conta a modalidade interpretativa da eficácia jurídica que lhes atribui. Como se sabe, os princípios constitucionais – especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana – manifestam as decisões fundamentais do constituinte, que deverão vincular o intérprete em geral e o Poder Público em particular. Assim, os elementos aleatórios acima referidos – diferentes concepções da ordem jurídica, preconceitos etc. – devem ser substituídos pelos princípios constitucionais na definição das escolhas com as quais o intérprete inevitavelmente se depara. Em suma: o princípio da dignidade da pessoa humana há de ser o vetor interpretativo geral, pelo qual o intérprete deverá orientar o seu ofício13.

Reconhecida a força jurídica dos princípios, a Constituição vem a ocupar um papel especial nos ordenamentos jurídicos14. Suas disposições passam a ser consideradas como verdadeiras normas jurídicas e ocupam uma posição de privilégio. Assim, o próprio Kelsen exerceu muita influência para o reconhecimento da força normativa dos direitos fundamentais. E, nesse sentido vale menção às palavras de Marmelstein: A partir daí, a ordem jurídico-constitucional de diversos países tornouse centrada na dignidade da pessoa humana, fazendo surgir, dentro da comunidade jurídica, uma verdadeira teoria dos direitos fundamentais, cujas premissas são em síntese, as seguintes: (a) crítica ao legalismo e ao formalismo jurídico; (b) defesa da positivação constitucional dos valores éticos; (c) crença na força normativa da Constituição, inclusive nos princípios, ainda que potencialmente contraditórios; (d) compromisso com os valores constitucionais, especialmente com a dignidade da pessoa humana.15

Como decorrência disso, resta clara a importância que hermenêutica dos direitos fundamentais exerce dentro da interpretação da norma jurídica.

O conteúdo ético dos direitos fundamentais Conforme já foi dito, a ideia humanista e dos direitos fundamentais16 se desenvolveu durante todo o sec. XX, sendo que somente depois da Segunda 13 BARCELLOS, 2002, p. 146. 14 Graças em grande parte aos estudos de Robert Alexy em sua “Teoria dos direitos fundamentais” e do jusfilósofo Ronald Dworkin, sucessor e crítico de Hart, a dissociação entre normas princípios e regras foi superada.  Com efeito, a dogmática moderna avaliza o entendimento de  que as normas jurídicas, em geral, e as normas constitucionais, em particular, podem ser enquadradas em duas categorias diversas: as normas-princípios e as normas-disposição. As normas-disposição, também referidas como regras, têm eficácia restrita às situações específicas às quais se dirigem. Já as normas-princípios, ou simplesmente princípios, têm, normalmente, maior teor de abstração e uma finalidade mais destacada dentro do sistema (BARROSO, 1998, p. 141). 15 MARMELSTEIN, 2009, p. 14. 16 Os direitos fundamentais foram reconhecidos internacionalmente a partir da Declaração da Organização das Nações Unidas de 1948, sob a perspectiva de direitos humanos, sendo resultantes de um movimento de constitucionalização que deu início no princípio do século XVIII.

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Guerra Mundial e das mazelas que dela sobraram, surgiu a necessidade de se dotar a comunidade internacional de instrumentos jurídicos capazes de proteger os direitos fundamentais dos cidadãos nos diversos Estados, que passaram a se preocupar em prescrever em suas Constituições princípios ligados à tutela da pessoa humana.17 Em 1945, na Conferência de São Francisco, os Estados aprovaram a resolução de “reafirmar os direitos fundamentais do homem, na dignidade e no valor da pessoa humana, na igualdade de direitos de homens e mulheres e das nações grandes e pequenas”18. No entanto, antes de incorporar tal princípio às Constituições, foi necessário que se reconhecesse o ser humano como sujeito como direitos e, assim, detentor de uma dignidade própria19. Os direitos fundamentais possuem um inegável conteúdo ético e constituem valores básicos para uma vida digna em sociedade. Desse modo, estão ligados à ideia de dignidade da pessoa humana e limitação do poder. Costuma-se dizer que o homem, pelo simples fato de sua condição humana, é titular de direitos que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado.20 Essa é ideia básica de dignidade humana, que, na verdade, diz pouca coisa, uma vez que é redundante. Uma fórmula uma pouco mais objetiva, desenvolvida Günther Dürig21, na Alemanha, defende, com inspiração em Kant22, que a dignidade humana

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17 GRASSELLI, 2011, p. 33. 18 PISARELLO apud MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 32. 19 MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 30. 20 Já Grécia Antiga vislumbram-se indícios da existência de reflexão filosófica sobre o homem e sua dignidade. Fábio Konder Comparato em sua obra “A afirmação histórica dos direitos humanos” traça a evolução dos direitos humanos e a situação do homem no mundo. Para o autor foi na Grécia que se originou a convicção de que todos os indivíduos têm direito a ser igualmente respeitados, pelo simples fato de que a humanidade nasce vinculada a uma instituição social de capital importância: a lei escrita, uma regra igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem em uma sociedade organizada. Historicamente, os autores apontam que a garantia da dignidade da pessoa humana está ligada ao Cristianismo e se fundamenta na ideia de que o indivíduo foi criado à imagem e semelhança de Deus, fato que, por si só, lhe confere valor intrínseco. No final do século XVIII, com Kant inicia-se a construção do conceito de dignidade como um atributo da pessoa, concepção que vai predominar até os dias atuais influenciando o pensamento filosófico-constitucional no Ocidente. O homem é concebido como sujeito do conhecimento e, por isso, é capaz de ser responsável por seus próprios atos e de ter consciência de seus deveres. (COMPARATO, 2003, pp. 01-31) 21 Segundo Ingo Sarlet, à teoria kantiana se junta outra, contemporânea, mas que comunga do mesmo sentido daquela, a teoria da fórmula-objeto, de Günther Dürig, citada com frequência pelo professor Peter Häberle, segundo a qual: “[...] cada ser humano é humano por força de seu espírito, que o distingue da natureza impessoal e que o capacita para, com base em sua própria decisão, tornar-se consciente de si mesmo, de autodeterminar sua conduta, bem como de formatar a sua existência e o meio que o circunda” (2005, p. 21). 22 “O imperativo prático será pois o seguinte: Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer, outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca // simplesmente como meio” (KANT, 2007, p. 69, grifos do autor).

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é violada sempre que o ser humano seja rebaixado a mero objeto, a simples instrumento23, tratado como uma coisa, noutras palavras, sempre que o indivíduo venha a ser descaracterizado e desconsiderado como sujeito de direitos24. Essa ideia ainda é muito aberta e insuficiente, visto que não traduz todos os aspectos da dignidade da pessoa humana25, um bom conceito é o desenvolvido por Sarlet: [...] a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos26.

Desse modo, onde não existir respeito pela vida e pela integridade física ou moral do ser humano, onde as condições mínimas para uma existência digna não forem asseguradas, onde não existir uma limitação do poder, enfim, onde a liberdade e autonomia, a igualdade em direitos e os direitos fundamentais não forem reconhecidos e assegurados, não haverá espaço para a dignidade da pessoa humana27. Das ideias de Sarlet, é possível identificar alguns atributos da dignidade humana, tais como: o respeito à autonomia da vontade; o respeito à integridade física e moral; a não coisificação do indivíduo e a garantia do mínimo existencial. Tais atributos “estão ligados de alguma forma pela noção básica de respeito ao outro, que sintetiza com perfeição todo o conteúdo do princípio da dignidade da pessoa humana”28. Insta frisar que esse respeito ao outro independe de quem é o outro, pode ser qualquer indivíduo. Em suma, a dignidade não é privilégio de somente algumas pessoas escolhidas por razões étnicas, econômicas ou culturais, todavia um atributo de todo e qualquer indivíduo, pelo simples fato de ser humano. 23 “De acordo com Kant, no mundo social existem duas categorias de valores: o preço e a dignidade. Enquanto o preço representa um valor exterior (de mercado) e manifesta interesses particulares, a dignidade representa um valor interior (moral) e de interesse geral. As coisas têm preço; as pessoas, dignidade. O valor moral se encontra infinitamente acima do valor de mercadoria, porque, ao contrário deste, não admite ser substituído por equivalente. Daí a exigência de jamais transformar o homem em meio para alcançar fins particulares ou egoístas. Em consequência, a legislação elaborada pela razão prática, a vigorar no mundo social, deve levar em conta, como sua finalidade suprema, a realização do valor intrínseco da dignidade humana” (MORAES, 2003, p. 81). 24 SARLET, 2002, p. 59. 25 MARMELSTEIN, 2009, p. 18. 26 SARLET, 2002, p. 62. 27 MARMELSTEIN, 2009, p. 19. 28 MARMELSTEIN, 2009, p.19, grifos do autor.

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O conteúdo normativo dos direitos fundamentais Os direitos fundamentais, além do conteúdo ético, possuem conteúdo normativo (aspecto formal). Do ponto de vista legal, não é qualquer valor que pode ser enquadrado nessa categoria. Juridicamente, apenas são direitos fundamentais aqueles valores que o povo29 formalmente reconheceu como dignos de uma proteção normativa especial, mesmo que, implicitamente30. Esse reconhecimento formal acontece por meio da positivação desses valores através de normas jurídicas. Mais precisamente, pode-se dizer que, sob o aspecto jurídico-normativo, apenas podem ser considerados como direitos fundamentais aqueles valores que foram incorporados ao ordenamento constitucional de determinado país. Assim, nessa concepção, pode-se falar que não existem direitos fundamentais decorrentes da lei. A fonte primária dos direitos fundamentais é a Constituição. A lei, quando muito, irá disciplinar o exercício do direito fundamental, nunca criá-lo diretamente. Agora, tentar-se-á apresentar um conceito de direitos fundamentais.

Um conceito de direitos fundamentais Com o decorrer da História, inúmeras expressões foram utilizadas para designar os direitos fundamentais do homem. José Afonso da Silva ressalta que a ampliação e transformação dos direitos fundamentais dificultam uma definição de um conceito sintético e preciso de tais direitos31. Com inspiração em Pérez Luño, o autor traz uma definição da expressão direitos fundamentais do homem: [...] além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas. No qualitativo fundamentais acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados.32 33

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29 Leia-se: o poder constituinte. 30 MARMELSTEIN, 2009, p.19. 31 SILVA, 2008, p. 175. 32 SILVA, 2008, p. 178, grifos do autor. 33 O autor prossegue sua explanação acentuando a necessidade da participação popular na busca pelos mesmos e disserta: “A expressão direitos fundamentais do homem [...] não significa esfera privada contraposta à atividade pública, como simples limitação ao Estado ou autolimitação deste, mas limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem. Ao situarmos sua fonte na soberania popular, estamos implicitamente definindo sua historicidade, que é precisamente o que lhes enriquece o conteúdo e os deve pôr em consonância com as relações econômicas e sociais

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Deste modo, é possível dizer que os direitos fundamentais são normas jurídicas, “[...] intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivados no plano constitucional de determinado estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico”34. É possível dizer que existem cinco elementos básicos nesse conceito, quais sejam, norma jurídica; dignidade da pessoa humana; limitação de poder; Constituição e democracia. A conjugação dos elementos fornece o conceito de direitos fundamentais. Destarte, dizer que os direitos fundamentais constituem normas constitucionais significa aceitar sua supremacia material e formal, o que lhes proporciona força normativa. Tal fato é essencial para se permitir a máxima efetivação desses direitos35. Todavia vinculá-los à ideia de Estado Democrático de Direito leva a pensar que os valores neles contidos são potencialmente conflitantes, posto que refletem todo pluralismo dessa sociedade democrática36. Não é de se surpreender, desse modo, que eles frequentemente, no momento aplicativo, entrem em rota de colisão37. Considerar os direitos fundamentais como princípios significa, por conseguinte, aceitar que não há direitos com caráter absoluto38, uma vez que eles são passíveis de restrições recíprocas39. de cada momento histórico. A Constituição, ao adotá-lo na abrangência com que o fez, traduziu um desdobramento necessário da concepção de Estado acolhida no art. 1º: Estado Democrático de Direito” (SILVA, 2008, pp. 178-179, grifos do autor). 34 MARMELSTEIN, 2009, p. 20. 35 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Jr. resumem o termo direitos fundamentais para os quais: “[...] afigura-se como o único apto a exprimir a realidade jurídica precipitada, pois que, cogitando-se de direitos, alude-se a posições subjetivas do indivíduo, reconhecidas em determinado sistema jurídico. O adjetivo ‘fundamentais’ traduz, por outro lado, a inerência desses direitos à condição humana, exteriorizando-se, por conseguinte, o acúmulo dos níveis de alforria do ser humano” (2008, p. 109). 36 Bidart Campos a esse respeito diz que todas as Constituições possuem valores e princípios, uma filosofia, uma ideologia, nenhuma Constituição é neutra, seja ela escrita ou não. (BIDART CAMPOS, 1991, p. 392) 37 Para Alexy, no caso de colisão entre princípios, deverá ser realizado o sopesamento entre os interesses conflitantes para resolver essa relação de tensão. Dessa forma, já que nenhum princípio goza de por si só de prioridade absoluta, quando da análise, dever-se-á estabelecer uma relação de precedência condicionada entre os princípios, com base nas circunstâncias do caso concreto. Deste modo, “o objetivo desse sopesamento é definir qual dos interesses – que abstratamente estão no mesmo nível – tem maior peso no caso concreto” (ALEXY, 2011, p. 95). 38 O Supremo Tribunal Federal, assinalando a possibilidade de limitação dos direitos fundamentais, já decidiu que não há, no sistema constitucional pátrio, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, “mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos os termos estabelecidos pela Constituição” (STF, MS 23.452-RJ, rel. Min. Celso de Mello). 39 MARMELSTEIN, 2009, p. 370.

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A regra é a observância dos direitos fundamentais e não sua restrição. Todavia se não houvesse limites para o exercício de tais direitos, seria uma verdadeira desordem. Registre-se, entretanto, que qualquer limitação a direitos fundamentais deve ser considerada suspeita e, por isso mesmo, deve passar por um exame constitucional mais severo40, competindo ao Judiciário exigir a demonstração de que a limitação se justifica diante de um interesse mais relevante41. E, finalmente, analisando a dignidade da pessoa humana como elemento intrínseco ao conceito de direitos fundamentais, tem-se que o mesmo não pode ser usado justificar a violação da dignidade de outros indivíduos, logo “qualquer comportamento que vá em direção oposta, ou seja, que contribua para a destruição dessa dignidade, não merecerá ser considerado como direito fundamental”42. Assim, é necessário reconhecer que a razão da proteção desses direitos é a dignidade humana.

Direitos Fundamentais como Direitos Positivados José Cretella Neto acerca de uma conceituação sobre os direitos fundamentais dispõe que a doutrina alemã afirma que “os Direitos Fundamentais, em seu aspecto formal, nada mais são do que os Direitos Humanos positivados pela Constituição”43. Tal conceito é por demais restritivo44, na medida em que apenas considera como fundamentais aqueles que possuem hierarquia constitucional e que são ligados a limitação do poder45 e a dignidade humana. A intenção, na verdade, é fazer com que se evite a utilização inflacionada da expressão “direitos fundamentais”, fazendo com que somente aqueles tipos por fundamentais sejam tratados de modo especial, impedindo assim, a desvalorização do conceito como

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40 Sobre o tema vale menção a doutrina de Jane Reis Gonçalves Pereira. Segundo a autora “Quanto mais intensa a intervenção legislativa nos direitos fundamentais, maior será o ônus de argumentação imposto ao legislador para justificar a constitucionalidade da lei. É que quanto mais intensa a restrição ao direito, mais fortes hão de ser as razões em favor dos bens e direitos que amparam a restrição (princípio da proporcionalidade). Assim, nos caos de intervenções severas em que não seja possível identificar com segurança motivos que as justifiquem, há de prevalecer o direito” (PEREIRA, 2006, p. 182). 41 Saliente-se que asseverar que não há direitos absolutos e que toda norma de direito fundamental é relativa, passível de limitação é extremamente perigoso, pois “pode levar a uma ideia equivocada de que as proteções constitucionais são frágeis e que podem ceder sempre que assim ditar ‘o interesse público’, expressão vaga que, no final das contas, pode justificar quase tudo” (MARMELSTEIN, 2009, p. 370). 42 MARMELSTEIN, 2009, p. 21. 43 STERN apud CRETELLA NETO, 2012, p. 659. 44 Paulo Bonavides, tratando do assunto, traz a concepção do alemão Konrad Hesse, o qual entende que os direitos fundamentais têm a finalidade de manter os pressupostos elementares de uma vida na liberdade e na dignidade da pessoa humana (BONAVIDES, 2004, p. 560). 45 Para Alexandre de Moraes, a finalidade dos direitos fundamentais está na criação de limitações e garantias, impostas pelo próprio povo, titular do poder constituinte originário, nas relações entre indivíduos e o Estado e entre os próprios indivíduos (MORAES, 2006, p. 25).

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um todo46. Ressalte-se que, no Brasil, não obstante o constituinte pátrio adotar um rol extenso, estabeleceu um rol não exaustivo47, isto é, aberto48, de direitos fundamentais de forma que “os direitos fundamentais não se esgotam naqueles direitos reconhecidos no momento constituinte originário, mas estão submetidos a um permanente processo de expansão”49. A positivação constitucional da dignidade da pessoa humana, aliada à previsão da cláusula de abertura, representa um grande avanço na proteção institucional dos direitos fundamentais. Todavia, por outro lado dificulta a tarefa de se definir com precisão o que é um direito que não é fundamental. O importante para isso é analisar que a Constituição conferiu, ainda que implicitamente, alguma proteção a esse direito50. Aqui vale ressaltar as palavras de Sarlet, que define os direitos fundamentais como 46 Marmelstein critica esse conceito, para o autor ele representa uma construção teórica do deveria ser um direito fundamental, e, por isso, universal, no sentido de apetecer uma validade para todos os lugares do mundo. Porém, tal conceito não se encaixa em todas as situações, tendo em vista que o direito positivo nem sempre reflete com precisão aquilo que deveria ser. O autor destaca os direitos fundamentais no ordenamento jurídico pátrio “Aqui mesmo no Brasil, o referido conceito vale para a grande maioria dos casos, mas não para todos. O constituinte brasileiro não foi tão criterioso ao eleger os valores que mereciam ser chamados de direitos fundamentais, optando por enumerar um rol abrangente que às vezes gera uma sensação de exagero [...]”. Para o autor, tais direitos são importantes, todavia não tão essenciais, podendo estar, perfeitamente, fora da Lei Maior. Conquanto, ainda assim, o autor ressalta que por uma questão de segurança jurídica é melhor considerar que todos os direitos que estão no Título II sejam considerados fundamentais. Ainda que a ligação seja, num primeiro momento, imperceptível há uma presunção de que as normas ali previstas possuem alguma ligação com a dignidade da pessoa humana ou com a limitação do poder (2009, p.23) Assim, o caráter fundamental de um direito não está no fato dele estar presente na Lei Máxima de um Estado, mas sim em sua importância para a pessoa, individual ou coletivamente. Destarte, trazem-se a baila os dizeres de Tavares: “[...] é preciso também afastar a possibilidade de que ‘preceito fundamental’ seja toda e qualquer norma contida na Lei Fundamental. Se, teoricamente, essa construção é admissível, o mesmo não ocorre quanto ao vigente sistema constitucional. [...] É preciso garantir ‘a relevância de cada palavra constitucionalmente empregada’, não se podendo pretender simplesmente ignorar a letra da Constituição para poder construir um significado arbitrariamente. Portanto, quando a Constituição fala de ‘preceito fundamental’ não está a se referir à Constituição como um todo” (2008, p. 122.) 47 “Os direitos e garantias expressos na Constituição Federal não excluem outros de caráter constitucional decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, desde que expressamente previstos no texto constitucional, mesmo que difusamente. Nesse sentido, decidiu o Supremo Tribunal Federal (ADIn n.º 939-7/DF) ao considerar cláusula pétrea e, consequentemente, imodificável, a garantia constitucional assegurada ao cidadão no art. 150, III, b, da Constituição Federal (princípio da anterioridade tributária), entendendo que, ao visar subtraí-la de sua esfera protetiva, estaria a Emenda Constitucional n.º 3, de 1993, deparando-se com um obstáculo intransponível, contido no art. 60, § 4º, IV, da Constituição Federal” (MORAES, 2007, pp. 312-313). 48 Por força do art. 1º, inc. III, somado ao art. 5º, § 2º, da Constituição de 88, podem-se encontrar direitos fundamentais fora do Título II e até mesmo fora da Constituição. 49 PARDO, 2005, p. 12. 50 Assim, não se exclui a possibilidade de haver direitos fundamentais fora do texto da Lei Maior, desde que, a força da própria Constituição lhes conceda juridicidade potencializada. Registre-se aqui, todavia, que a concepção aberta de direitos materialmente fundamentais recebe tratamento restritivo da posição predominante na doutrina e na jurisprudência, de forma a admitir como dotados de fundamentalidade  somente outros direitos expressamente previstos na Constituição. “O importante é que, a partir da Constituição (formal ou material), seja possível identificar a fundamentalidade de um dado direito, ainda que forma implícita”(MARMELSTEIN, 2009, p. 24.)

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[...] todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância (fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e, portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos (fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado, possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não, assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material da Constituição).51

Aqui cabe colacionar o que Bonavides leciona: “A vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, enquanto valores históricos e filosóficos, nos conduzirá sem óbices ao significado de universalidade inerente a esses direitos como ideal de pessoa humana”. Assim, antes que findar o presente estudo, necessária se faz uma distinção entre as expressões direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais, visto que imprescindível para compreender o real significado e alcance dessas prerrogativas do sujeito.

Direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais Ingo Sarlet e Paulo Bonavides, entre outros tantos juristas brasileiros, realizam a distinção das expressões “direitos do homem”, “direitos humanos” e “direitos fundamentais”. Bonavides assevera que atualmente tem se visto “um uso promíscuo de tais denominações na literatura jurídica”52, as expressões vêm sendo utilizadas indiferentemente53. Desse modo, é relevante distinguir os direitos do homem, direitos humanos e direitos fundamentais54, tendo em vista

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51 SARLET, 2012, p. 91. 52 BONAVIDES, 2004, p. 560. 53 Norberto Bobbio dissertando acerca de um fundamento absoluto para os direitos humanos, considera que tal é inconcebível, visto que tais direitos são historicamente relativos: “[...] os direitos do homem constituem uma classe variável, como a história destes últimos séculos demonstra suficientemente. O elenco dos direitos do homem se modificou, e continua a se modificar, com a mudança das condições históricas, ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc. Direitos que foram declarados absolutos no final do século XVIII, como a propriedade sacre et inviolable, foram submetidos a radicais limitações nas declarações contemporâneas; direitos que as declarações do século XVIII nem sequer mencionavam, como os direitos sociais, são agora proclamados com grande ostentação nas recentes declarações. Não é difícil prever que, no futuro, poderão emergir novas pretensões que no momento nem sequer podemos imaginar [...]” (2004, p. 38). Outra discussão relevante diz respeito ao surgimento dos direitos humanos, ao início definido na história, sobre a questão vale trazer as constatações de Heiner Bielefeldt: “É inútil procurar por uma certidão histórica do surgimento da constituição jurídica, segundo Kant [...] Isso vale também para a história dos direitos humanos e seus documentos de fundação, desde o Viginia Bill of Rights, de 1776, até a Declaração Universal dos Direitos do Humanos, das Nações Unidas, de 1948. [...]” (2000, p. 102). 54 Para Antonio Perez Luño, numa concepção positivista “los derechos fundamentales

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que a doutrina refere-se a eles, muitas vezes, como sinônimos55. Insta salientar que o emprego mais frequente de direitos humanos e direitos do homem ocorre entre os autores anglo-americanos e latinos, em coerência, inclusive, com a tradição e a história, enquanto a expressão direitos fundamentais parece ter ficado circunscrita à preferência dos publicistas alemães.56 Inclusive Luño problematiza a questão em torno da definição do que realmente seriam os direitos humanos: Você pode pensar que este significado escuro e contraditório dos direitos humanos, causado pela hipertrofia de seu emprego era privação vulgar da linguagem e, especialmente, a práxis política; mas em comparação com ela, há uma caracterização clara, inequívoca e precisa doutrinária do termo. Deve se dissipar tão logo esta hipótese , uma vez que lhes a linguagem da teoria política , a ética ou a expressão legal > também tem sido utilizado com diferentes significados (ambiguidade) e com a indeterminação e imprecisão notável (imprecisão).57

Já para Sarlet, os direitos humanos são direitos internacionalmente conhecidos, e que reconhecem o ser humano como tal independente de seu vínculo com determinado Estado, são direitos externos aos Estados58. Ao aparecem como categorías técnico-jurídicas dirigidas a reformular en normas positivas las exigencias mantenidas por la teoría de los derechos naturales de afirmar determinadas liberdades del individuo frente al poder estatal” (1995, p. 294). 55 Para o propósito de distinguir os conceitos, convém transcrever a lição de Canotilho, assim escrita: “As expressões “direitos do homem” e “direitos fundamentais” são frequentemente utilizadas como sinónimas. Segundo a sua origem e significado poderíamos distinguilas da seguinte maneira: direitos do homem são direitos válidos para todos os povos e em todos os tempos (dimensão jurisnaturalista-universalista); direitos fundamentais são os direitos do homem, jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espáciotemporalmente. Os direitos do homem arrancariam da própria natureza humana e daí o seu caráter inviolável, intemporal e universal; os direitos fundamentais seriam os direitos objetivamente vigentes numa ordem jurídica concreta (1998, p. 369). 56 BONAVIDES, 2008, p. 560. 57 LUÑO, 1999, p. 22, tradução livre. 58 Segundo Sandoval Silva, os direitos humanos constituem direitos “universais, independentemente de sua inserção em constituições, leis e tratados, uma vez que se configuram como exigências de respeito à dignidade humana, oponíveis aos poderes estabelecidos, oficiais ou não. Já os direitos fundamentais são os direitos humanos consagrados pelo Estado como regras constitucionais escritas” (2010, p. 28). Cretella Neto também realiza a distinção: “A universalidade dos direitos humanos decorre da universalidade da dignidade da pessoa humana, que independe de leis nacionais, pois que inerente à condição humana. A maioria dos juristas adota precisamente essa posição, discorrendo apenas sobre as diferenças que existiriam entre direitos do Homem, direitos fundamentais e direitos humanos. Para Mourgeon, direitos humanos (ou da pessoa humana) são aqueles inerentes tão somente à condição humana, isto é, aqueles que o ser humano tem simplesmente por existir, por estar no Mundo como pessoa física e ter dignidade. Já os direitos do Homem são ‘prerrogativas, governadas por regras, que a pessoa possui em suas relações com os particulares e com o Poder’. Diferem ambos dos Direitos Fundamentais, que são ‘os Direitos Humanos reconhecidos como tais pelas autoridades às quais se atribui o poder político de editar normas, tanto no interior dos Estados quanto no plano internacional: são os Direitos Humanos positivados nas Constituições, nas leis, nos tratados internacionais’” (2012, p. 658, grifos do autor).

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passo que os direitos fundamentais são os direitos “reconhecidos e positivados” na Constituição de um determinado Estado, pode-se dizer que são direitos internos59. Marmelstein também realiza a distinção. Segundo ele os direitos do homem seriam valores, assim como os direitos fundamentais, ligados “à dignidade humana e à limitação do poder”, todavia que por algum não foram positivados, em suma, “seriam valores éticos políticos ainda não positivados. Eles estariam em um estágio pré-positivo, correspondendo ‘a instâncias ou valores éticos anteriores ao direito positivo”. Para o autor, os direitos do homem possuem conteúdo muito semelhante ao direito natural. “Não seriam propriamente direitos, mas algo que surge antes deles e como fundamento dele. Eles (os direitos do homem) são a matéria prima dos direitos fundamentais, ou melhor, os direitos fundamentais são direitos do homem positivados”60. Já os direitos humanos61 seriam a “expressão utilizada para se referir aos valores que foram positivados na esfera do direito internacional”62. Em suma, pode-se dizer que para o autor os direitos do homem constituem valores ligados à dignidade da pessoa humana ainda não positivados, já os direitos humanos além de possuir a valores ligados à dignidade estão positivados no plano internacional através de tratados63, e, por fim, os direitos fundamentais são os valores ligados à dignidade da pessoa humana e à limitação do poder, positivados no direito interno, geralmente através de normas constitucionais.

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59 SARLET, 2012, p. 29. 60 MARMELSTEIN, 2009, pp. 25-26, grifos do autor. 61 Para Alexy, os  direitos  humanos  são  definidos  por  cinco  características, às quais  juntas os distinguem de todos os outros direitos. Para o autor os direitos humanos são direitos (1) universais, (2) fundamentais, (3) abstratos, (4) morais e (5) prioritários (ALEXY, 2014, pp. 110-111). 62 Quando se estiver diante de um tratado ou pacto internacional, deve-se preferir a utilização da expressão direitos humanos ao invés de direitos fundamentais. Falar em tratado internacional de direitos fundamentais não soa bem aos ouvidos. Do mesmo modo, à luz dessa classificação, não é tecnicamente correto falar em direitos humanos positivados na Constituição. Vale ressaltar que essa distinção entre direitos humanos e direitos fundamentais é plenamente compatível com o texto constitucional. Toda vez que a Constituição se refere ao âmbito internacional, ela fala em “direitos humanos”. E, quando ela tratou dos direitos que ele a própria reconhece, chamou de “direitos fundamentais [...]” (MARMELSTEIN, 2009, p. 26, grifos do autor). 63 Vale transcrever os dizeres de Costas Douzinas: “Os direitos humanos são o fado da pós-modernidade, a energia das nossas sociedades, o cumprimento da promessa do Iluminismo de emancipação e autorrealização. [...] Os direitos humanos estavam ligados inicialmente a interesses de classe específicos e foram as armas ideológicas e político despótico e a organização social estática.[...]. O colapso do comunismo e a eliminação do apartheid marcaram o fim dos dois últimos movimentos mundiais a desafiar a democracia liberal. Os direitos humanos venceram as batalhas ideológicas da modernidade. Sua aplicação universal e seu total triunfo parecem ser uma questão de tempo e de ajuste entre o espírito da época e uns poucos regimes recalcitrantes. Sua vitória não é outra que não o cumprimento da promessa iluminista de emancipação pela razão. Os direitos humanos são a ideologia depois do fim, a derrocada das ideologias ou, para usar uma expressão em voga, a ideologia “no fim da história” (DOUZINAS, 2009, pp. 19-20).

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Considerações finais Com a evolução da Teoria Geral do Direito, sobretudo devido à inserção dos princípios nos textos das Constituições, operou-se  uma revolução de juridicidade sem precedentes nos anais do constitucionalismo. De princípios gerais se transformaram em princípios constitucionais. Destarte, as novas Constituições promulgadas aceraram a hegemonia axiológica dos princípios, e bem como assevera Paulo Bonavides, foram convertidos em pedestal normativo sobre o qual assenta todo o edifício jurídico dos novéis sistemas constitucionais, tornando a teoria dos princípios, hoje, o coração das Constituições. Pode-se dizer que a constitucionalização dos princípios constitui-se em axioma juspublicístico de atualidade. Os valores éticos e sociais que inspiraram e que ainda inspiram o surgimento dos direitos fundamentais acompanham a evolução da própria sociedade ao longo de sua história. O respeito à dignidade do indivíduo, fundamento do imperativo categórico de Kant, de ordem moral, com o advento da Lei Maior de 1988, tornou-se um comando jurídico no país, do mesmo modo que já havia ocorrido em outras partes do mundo. Ao ordenamento jurídico, enquanto tal, não cumpre definir o seu conteúdo, suas característica, ou mesmo permitir que se avalie essa dignidade. As Cartas Constitucionais, tampouco, o definem. O direito enuncia o princípio, cristalizado na consciência coletiva de determinada comunidade, dispondo sobre a tutela, por intermédio de garantias, liberdades e direitos que a salvaguardem. Ressalte-se que não se trata de adotar uma posição jusnaturalista, mas que, evidentemente, antes de se incorporarem os princípios às Cartas Constitucionais, foi necessário que se reconhecesse a pessoa como sujeito de direitos e, desse modo, detentora de uma dignidade própria. Desse modo, é importante destacar que os direitos fundamentais possuem inegável conteúdo ético (aspecto material). Eles são os valores basais para uma vida digna em comunidade. Assim, eles estão intimamente ligados à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder. Até porque, em um ambiente de opressão não há espaço para a vida digna. A dignidade humana é, portanto, a base axiológica desses direitos.

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O princípio da dignidade e os animais não humanos: algumas reflexões Roberta Maria Costa Santos1 Resumo Abordagem sobre o Princípio da Dignidade, examinado a partir do conceito de dignidade de Immanuel Kant que entende possuir apenas o ser humano tal atributo. Após o esclarecimento das principais noções sobre o tema dignidade, apresentam-se as concepções de Hans Jonas e Tom Regan, que visa ao estabelecimento de relação de respeito entre as espécies, considerando capazes de dignidade também os animais não humanos. Após a tentativa de extensão deste valor intrínseco aos animais, parte-se para o estudo dos fundamentos para concepção da dignidade animal na Constituição Federal de 1988. Conclui-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 acolhe a tese da dignidade animal ao vedar a crueldade para com os animais. Palavras-chave: Princípio da dignidade; Dignidade Animal; Constituição Federal de 1988. Abstract Beginning with an overview of principles of dignity , spotted from the concept of dignity from Emmanuel Kant, who understood that just humans being have such quality. After exposing the main notions on the topic dignity, it is shown the concepts of Hans Jonas and Tom Regan, that draws the foundations of respect between the species, considering able of dignity also animals besides human beings. After trials of extension of these intrinsic values to the animals, it is launched the study of fundaments to the concepts of animal dignity under the federal constitution of 1988. The conclusion that was reached is that the constitution of federative republic of Brazil from 1988 embraces the thesis of animal dignity when it veto the cruelty to animals. Keywords: Principles of dignity; Animal dignity; Federal constitution of 1988.

Introdução O apreço que se tem pelos valores que a justiça comporta, têm conduzido filósofos, sociólogos e juristas à elaboração de determinadas concepções, fruto de representações que lhe atribuem diferentes sentidos possíveis. Tais noções, destaca Chaïm Perelman (2005:4), usualmente acoplam a esta palavra um valor que lhe define como tem sido em relação à equidade, distribuição e reconhecimento, exemplos de valores atrelados a algumas concepções atuais da justiça. 1 Advogada. Pós-graduada em Direito Empresarial pela PUC/RJ. Mestranda (Bolsista CAPES) na UNESA com sanduiche na Universidade Federal Fluminense. E-mail: [email protected]

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Nesta seara o respeito ao princípio da dignidade tem papel de destaque na concretização da justiça. A maior novidade da doutrina contemporânea é o entendimento de que princípio é norma. Ao aceitar que princípio é norma o intérprete estará vinculado, ou seja, o princípio da dignidade passa a ter força normativa. Dentre as perspectivas das correntes de dignidade, uma delas em especial tem sido crescentemente discutida a partir do século XX: a noção de dignidade animal. No Brasil, as constituições nacionais englobam em seus conceitos o racionalismo que separa o homem das outras formas de vida que o rodeiam. Neste ambiente o homem estabeleceu um domínio tirânico sobre todas as espécies vivas, fundamentando-o em uma presumida ordem divina. A filosofia se libertou da fé cristã, nos últimos 200 anos, mas não soube abrir mão da crença de que os humanos são radicalmente diferentes de todos os outros animais. O debate acerca da concepção de domínio do homem sobre o mundo, submetendo um ser a outro, ainda que ambos sejam dotados de consciência, percepção, sensação, memória, sentimento, linguagem e inteligência, já determinaram ao longo da história outras formas de exploração, como por exemplo, a escravidão. Na atualidade observam-se as mais diversas formas de exploração animal como: experimentação animal, zoológico, parque aquático, rodeio, rinha de galo, farra do boi, tourada, comércio de animais de estimação e silvestre, circo, fazenda industrial, indústria de couro e pele, fazenda de urso negro para extração da bile, dentre outras formas de exploração animal. O sofrimento animal esta presente em quase tudo. Nesta seara, levando em consideração o fato de que se um ser sofre não existe justificativa moral para tal sofrimento não ser levado em conta, pois o princípio da igual consideração de interesse (SINGER, 2013: 3-36) requer que o sofrimento seja considerado na mesma medida entre os semelhantes, todas as formas de exploração animal mencionadas acima estariam vedadas. Diante do tema, formula-se o seguinte problema específico de pesquisa, que se buscará responder ao longo do trabalho: A Constituição da República Federativa Brasileira de 1988 consagra a dignidade animal? A construção de resposta adequada ao problema depende do exame e enfrentamento da discussão acerca dos fundamentos filosóficos da Dignidade. Neste sentido, este trabalho tem o objetivo de contribuir para o esclarecimento do movimento da busca por uma Dignidade animal, apresentar e questionar os seus fundamentos filosóficos. Parte-se do pressuposto de que os atributos que definem quais seres fazem parte da comunidade moral, não são exclusivos da espécie humana. Tomar esse caminho significa: i) sustentar a dignidade como representação do respeito entre as espécies e a inadequação de uma visão puramente antropocêntrica e ii) fundamentar a concepção da dignidade animal na CRFB/88. A metodologia para alcançar os objetivos especificados consistiu no levantamento e análise da literatura nos campos jurídico e filosófico, pautandose na análise entre direito e filosofia. Foram exploradas doutrinas em âmbito nacional e internacional acerca das relações entre direito/filosofia e dignidade humana/dignidade animal. O método utilizado foi o dedutivo-qualitativo.

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Apresentação do problema: Conceito de dignidade em Kant e o princípio da dignidade na CRFB/88 A concepção de dignidade da pessoa humana, da necessidade de se conferir uma dignidade à vida humana, como valor, é discutido e construído ao longo da história dos homens desde a antiguidade clássica, passando pela idade média e em sua vertente cristã, como priorizando a racionalidade e o humano. Vale destacar o pensamento do filósofo Koningsberg, onde o fundamento da dignidade repousa na autonomia do ser humano, na condição de ser racional. No pensamento filosófico e político da antiguidade clássica, era digna a pessoa humana que ocupava determinada posição social, sendo este conceito atribuído pelo reconhecimento dos demais membros da comunidade. Logo, existia uma modulação da dignidade, no sentido de admitir a existência de pessoas mais ou menos dignas. O estoicismo, por sua vez, coloca a racionalidade humana no ponto mais alto da escala terrena do ser e a dignidade estaria relacionada à noção de liberdade pessoal de cada indivíduo, bem como à ideia de que todos os seres humanos são iguais em dignidade. Nesta seara, foi na Idade Média que o ser humano passou a ser reconhecido à imagem e semelhança de Deus e, com exceção de Francisco de Assis, a igreja não incluía os animais não humanos em sua pauta de preocupações. Tomás de Aquino (1999) propôs a tese também defendida na perspectiva escolástica, onde a dignidade se constitui em uma qualidade a ser conquistada. Eticidade que se centra no sentido de que ninguém nasce digno, mas que se torna digno pela ação individual e coletiva. Resulta de um reconhecimento. O conceito de dignidade estaria vinculado ao pensamento judaico-cristão. Vale destacar que a superioridade do ser humano, perante os animais não humanos, foi consagrada em virtude do ser humano ser criado à imagem e semelhança de Deus e dos atributos da racionalidade e livre arbítrio. No âmbito do pensamento jusnaturalista dos séculos XVII e XVIII, a ideia de dignidade da pessoa humana passou por um processo de racionalização e laicização, mantendo-se apenas as noções fundamentais da igualdade de todos os homens em dignidade e liberdade. Nesse sentido, para kant (1986), os animais possuem valor instrumental. Existem como instrumento destinado a um fim, e esse fim é o homem. Portanto os deveres dos animais humanos para com os não humanos são deveres indiretos, pois o seu verdadeiro fim é a humanidade. A perspectiva kantiana parte de uma concepção de autonomia da vontade. O significado dessa autonomia da vontade deve ser entendido como faculdade de se determinar a si mesmo a agir em conformidade com a representação de certas leis, capacidade esta encontrada apenas nos seres racionais. Nesse contexto é que se enfatiza o imperativo categórico da ética kantiana (1986)2. A partir do critério racionalidade, Kant refere-se aos seres irracionais (os quais neste trabalho são chamados de animais não humanos) como coisas às 2 A título de esclarecimento, é um critério norteador dos seres racionais que parte do princípio: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal.”

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quais confere um valor relativo, como meios instrumentais, enquanto, por outro lado, refere-se aos seres racionais como pessoas, impregnadas de dignidade. No plano prático, portanto, o agir humano, seja em relação a si próprio, seja em relação aos outros, tem como parâmetro norteador a ideia de humanidade como fim e jamais como simples meio. O campo de análise do princípio da dignidade da pessoa humana na atualidade tem como ponto de partida a Constituição Federal de 1988. É um valor moral inerente à pessoa, ou seja, todo ser humano é dotado desse preceito, e constitui o princípio máximo do estado democrático de direito. Portanto está elencado no rol de direitos fundamentais da Constituição Brasileira de 1988. Dentro deste cenário vale lançar luzes para o rol da dignidade humana, pois, abrange uma diversidade de valores existentes na sociedade. Trata-se de um conceito adequável a realidade e a modernização da sociedade, devendo estar em conluio com a evolução e as tendências modernas das necessidades do ser humano. Dentro deste tópico vale destacar que o reconhecimento da dignidade se faz inerente a todos os membros da família humana e seus direitos são iguais e inalienáveis, é o fundamento da liberdade, da justiça, da paz e do desenvolvimento social. Portanto, o Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, é o principal e mais amplo princípio constitucional brasileiro. Dada esta constatação, é importante referenciar o pensamento de Hans Jonas e Tom Regan que visa ao estabelecimento de respeito entre as espécies, considerando capazes de dignidade, também, os animais não humanos.

A dignidade como representação do respeito entre as espécies Como já analisado acima, Kant acreditava que apenas um ser racional pode possuir a faculdade de agir segundo a representação de leis ou princípios (possuir vontade). Nesta seara, somente o ser humano existe como um fim em si mesmo, não simplesmente como meio do qual esta ou aquela vontade possa dispor. Esta seria a razão pela qual, para Kant, apenas o homem teria o atributo da dignidade, valor absoluto de possuir vontade própria e autoconsciência com capacidade de agir de maneira distinta de um mero espectador e de tomar decisões, perseguindo seus próprios interesses. Desse modo, os seguidores desta corrente defendem que o ser racional (a pessoa humana) tem valor absoluto em si mesmo e é possuidor de direitos subjetivos e fundamentais assegurados pelo Estado. Atualmente um número considerável de autores vem defendendo que a concepção de Kant padece de um excessivo antropocentrismo, restringindo a ideia de dignidade apenas à pessoa humana. Nesse sentido, para grande parte da doutrina especializada no tema, os seres que agregam algum valor em sua existência devem ser merecedores de tutela jurídica, com o intuito de resguardar seu valor. Portanto, deve-se reservar um âmbito na Constituição, para que seja assegurada às outras espécies o seu valor intrínseco, que neste artigo será chamado de dignidade. Desse modo, amplia-se o conceito kantiano de pessoa

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na tentativa de conceber uma dignidade para além do humano, concedendo ás demais espécies um valor intrínseco a ser respeitado e reconhecido pelos humanos. A dignidade desta forma, não seria atributo exclusivo da pessoa humana, mas de todas as formas de vida. Neste cenário, Hans Jonas (2004) defende uma dignidade da natureza a ser alcançada com a substituição dos antigos imperativos éticos. Seu pensamento representa a possibilidade de contribuição para uma mudança de paradigma antropocêntrico ao, pela primeira vez, romper com o estreito círculo da proximidade, articulando solidariamente com a ideia de responsabilidade entre espécies. Vale destacar que quando se pensa a proteção do ambiente parte-se do pressuposto de que o direito à proteção do ambiente é um bem jusfundamental e procura-se firmar um conceito de ambiente. Acaba-se, dessa forma, por enveredar por entre espaços nos quais a vida se desenvolve (todas as formas de vida). Portanto, para que haja um ambiente saudável e equilibrado, tal e qual normatiza e profetiza a Constituição Brasileira de 1988, se faz necessário que todos os elos que compõem essa cadeia estejam em equilíbrio. Há de se garantir, dentre outros, a proteção da flora, do habitat e, mais especialmente por ser objeto desse estudo, a dignidade animal com a efetiva proteção dos animais não humanos. É somente por meio de um ecossistema balanceado que é possível garantir a saúde do planeta. Contudo, há de se respeitar todas as formas de vida e os ítens abióticos que as sustentam. No âmbito do direito animal, Tom Regan (2006) clama por uma mudança de percepção, uma vez que a sociedade esta aculturada pelo paradigma dominante. Assim, os animais são vistos como a cultura os vê, ou seja, como seres que existem para a alimentação, vestuário, divertimento, esporte, pesquisas e transporte. Seres cuja vida só possui valor instrumental. O autor propõe um critério baseado na questão do valor inerente. Segundo o qual, a atribuição de tal valor a um determinado ser vivo garante, simultaneamente, a expansão dos limites da comunidade moral humana para englobar seres de outras espécies, e a possibilidade das coisas permanecerem distintas. Tal critério traça uma linha divisória entre pacientes morais e pacientes não morais, aqueles em relação aos quais os atos humanos não podem representar prejuízo algum, porque embora possam ser vivos, tais seres não são capazes de distinguir entre bem estar e mal estar, não podem ter qualquer valor intrínseco. Não vivem sua experiência de seres vivos como algo consciente. Nesta seara, vale destacar que degolar um boi não é a mesma coisa que cortar uma árvore, assim como sangrar uma galinha, também, não é a mesma coisa que arrancar uma cenoura ou uma alface da terra. Desta maneira, para Regan, a relação de respeito seria a síntese dos direitos fundamentais (vida, integridade física e liberdade) que se expressa através do valor dignidade pensada para incluir os animais. Para os pressupostos do presente trabalho, a grande observação acerca das concepções de Jonas (2004) e Regan (2006) é uma relação entre homem e natureza. O homem faz parte da natureza e não é o único ser inteligente e capaz

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de sofrer, sentir, desenvolver laços de amizade e carinho. Não é o único dotado de autoconsciência. A natureza como um todo é um bem e a vida o seu valor. Portanto, o direito mais fundamental, que unifica todos os outros direitos, é o direito que cada espécie tem de ser tratada com respeito. É o respeito a vida, não importando se é vida de animal humano ou de animal não humano. Vida é vida. Sofrimento é sofrimento. Jogar um cachorro vivo, em um caldeirão fervendo para arrancar sua pele causa o mesmo sofrimento insuportável e angústia que sentiria um humano. Assim como retirar um bezerro de sua mãe, horas depois de nascer, para trancafiá-lo em uma baia minúscula onde, para se deitar, precisa encolher as patas, para depois de alguns meses horripilantes e de uma curta vida privada de suas necessidades básicas (tomar sol, fazer exercício, mamar em sua mãe, conviver com os da sua espécie, se alimentar de grama e ração) ser morto para sua carne “branca e macia”, conhecida como baby beef ou carne de vitela, seguir para a mesa de pessoas “com paladar exigente”. O sofrimento do bezerro é enorme, assim como o da vaca, a separação (filhote e mãe) em mamíferos é angustiante. A dor da separação é a mesma que a dos humanos. O respeito entre as espécies não admite tal conduta. No campo da filosofia, não existe justificativa moral pra tais atos. Embora seja possível identificar diferentes linhas no movimento em prol dos animais não humanos, seus principais expoentes, na atualidade são, o já estudado neste trabalho, Tom Regan (2006) e Peter Singer (2013) que tem em Jeremy Bentham3 seu referencial teórico, baseia-se numa ética utilitarista, pois acredita que as consequências de determinado ato é que devem devem ser levadas em consideração para a contemplação da moralidade daquele próprio ato. Todavia, dadas as evidentes dificuldades de se estabelecerem critérios objetivos para se avaliar a natureza moral da decisão a ser implementada, procura superar essa dificuldade introduzindo dois conceitos: interesse e preferência. A participação na comunidade moral, com base nessas ideias, é delimitada na senciência. Dada à relevância das teorias construídas por cada um dos autores em questão, e o fato de ambos terem em comum a luta por dignidade animal, destacam-se abaixo fundamentos para concepção da dignidade animal na Carta Magna brasileira de 1988.

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3 Sobre o tema, vale destacar a concepção de Jeremy Bentham (1996: 26), filósofo e jurista inglês fundador da teoria do utilitarismo clássico: “Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos dos quais jamais poderiam ter sido privados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é motivo para que um ser humano seja abandonado, irreparavelmente, aos caprichos de um torturador. É possível que algum dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do os sacrum são motivos igualmente insuficientes para se abandonar um ser sensível ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha insuperável? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade de falar? Mas, para lá de toda comparação possível, um cavalo ou um cão adulto são muito mais racionais, além de bem mais sociáveis, do que um bebê de um dia, uma semana, ou até mesmo um mês. Imaginemos, porém, que as coisas não fossem assim; que importância teria tal fato? A questão não é saber se são capazes de raciocinar ou se conseguem falar, mas, sim, se são passíveis de sofrimento”.

Roberta Maria Costa Santos

Dignidade animal na CRFB de 1988 Inicialmente, para uma melhor compreensão do tema abordado, cumpre destacar que a ética4 é um campo da filosofia e pode ser definida como uma filosofia crítica. Busca justificar a existência do moral e oferecer uma orientação para as decisões humanas em cada caso concreto. Adotar uma ética significa estar disposto a julgar certas ações como preferíveis a outras. Qualquer concepção moral ou teórica ética irá operar com princípios, valores, ideias, normas de conduta, preceitos, proibições e permissões, na forma de um sistema mais ou menos coerente. O objetivo é fundamentar, racionalmente, um conjunto de princípios morais básicos. De maneira ilustrativa, é possível dizer que a ética funciona como uma bússola moral.5 No contexto acima, as escolhas que são importantes para a ética prática são aquelas que afetam os outros. São escolhas morais e devem ser avaliadas por critérios morais. É oportuno destacar que a proclamação da Constituição Brasileira de 1988 possibilitou um novo modo de ver o Direito Constitucional, uma nova atitude diante do Direito Constitucional. O Direito passa a ser interpretado a partir dos princípios e valores escritos na Carta Magna. A passagem da Constituição para o centro do ordenamento jurídico representa a ascensão do Direito Constitucional e a constitucionalização dos demais ramos do Direito.6 Uma das grandes mudanças advindas com o Constitucionalismo Contemporâneo é a reabilitação da razão prática e a reaproximação do Direito e da moral. Nesse ambiente, a ética prática7 desempenha papel relevante na sociedade. Sem dúvida, a intensidade com que as ideias e os questionamentos sobre como os animais devem ser tratados pode ser datada a partir da década de 70, tendo como marco reconhecido a publicação de Animal Liberation, do já mencionado acima, Peter Singer em 1975. A partir de então os chamados 4 Segundo Cortina (2005:19-20) “ Frequentemente utiliza-se a palavra ética como sinônimo do que anteriormente chamamos de a moral, ou seja, esse conjunto de princípios, normas, preceitos e valores que regem a vida dos povos e dos indivíduos, A palavra ética procede do grego ethos, que significava originariamente morada, lugar em que vivemos, mas posteriormente passou a significar o caráter, o modo de ser que uma pessoa ou um grupo vai adquirindo ao longo da vida. Por sua vez, o termo moral procede do latim mos, moris, que originariamente significa costume, mas em seguida passou a significar também caráter ou modo de ser. Desse modo, ética e moral confluem etimologicamente em um significado quase idêntico: tudo aquilo que se refere ao modo de ser ou caráter adquirido como resultado de pôr em prática alguns costumes ou hábitos considerados bons.” 5 Entre outros, para uma exposição acerca do tema, na literatura brasileira, Naconecy (2006) 6 Todos os demais ramos do Direito devem ser interpretados à luz da Constituição. Neste contexto, cresceu muito a importância política do Poder Judiciário. Com frequência cada vez maior, questões polêmicas e relevantes para sociedade passaram a ser decididas por magistrados, e sobretudo por cortes constitucionais. De poder quase “nulo”, “mera boca que pronuncia as palavras da lei”, como lhe chamara Montesquieu, o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo. 7 É a ética aplicada no dia a dia da sociedade e possui diversas subdivisões, como: ética empresarial, bioética, ética ambiental, ética animal e etc.

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movimentos de libertação animal tornaram-se mais expressivos e a ética animal vem-se configurando no campo da ética aplicada, juntamente com a bioética e a ética ambiental. O raciocínio ético exige a extrapolação do eu, buscando atingir uma lei universal, um juízo universalizável. Para admitir que os juízos éticos devam ser formados a partir de um ponto de vista universal, necessário é, aceitar que os interesses pessoais de um ser, não podem contar mais que os interesses dos outros. Assim, a preocupação natural de que seus próprios interesses sejam levados em conta deve ser estendida aos interesses dos outros. Nesta seara, a ética animal é a ética aplicada no tratamento oferecido aos animais não humanos e é uma compreensão filosófica que remonta à filosofia Grega. Cumpre destacar que o direito dos Animais é uma vertente teórica da ética animal. Os animais, incluído o homem, possuem características em comum, ainda que desenvolvidas em diferentes graus e de acordo com as peculiaridades de cada espécie. Os animais humanos e não humanos ostentam psique, buscam a felicidade, sentem medo, dor, estresse e solidão. Sofrem com a perda de companheiros, colegas e amigos8. São portadores de instintos como a sobrevivência e a procriação. Porém, de fato, também existem inúmeras diferenças especificas intra espécie, como: variação de atributos físicos, mentais, sensitivos, comunicativos e psicológicos, a busca por igualdade não requer e não se baseia em uma pretensa identidade fática entre os seres.9

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8 Sobre o assunto (KING, 2014: 134): “O corpo cinzento e volumoso, com suas orelhas enormes e sua tromba balançando, caminhavam num grande campo aberto ao lado de um corpo menor, branco e travesso. Tarra e Bella haviam saído para passear. Lado a lado, dia após dia, elas perambulavam pelos hectares abertos do Elephant Sanctuary, no Tennessee. Até nadavam juntas. A confiança que bella, a cadela, tinha em sua amiga ficava evidente ao permitir que Tarra acariciasse sua barriga com a pata enorme. Tarra criou um vínculo com a vira-lata Bella por iniciativa própria, sem qualquer incentivo dos humanos que cuidavam dela. As duas foram amigas próximas por oito anos. E graças à TV e a internet elas se tornaram uma sensação global em vídeo. O fato de duas criaturas de tamanhos tão díspares, e de natureza tão diferentes terem uma amizade duradoura foi uma notícia animadora para muita gente. Tarra e Bella nos lembram que, quando os indivíduos querem, os laços de amizade podem transcender inclusive diferenças extremas...” 9 “Sabe-se que entre as pessoas há diferenças óbvias, perceptíveis a olhos vistos, as quais, todavia, não poderiam ser, em quaisquer casos, erigidas, validamente, em critérios distintivos justificadores de tratamento jurídicos díspares. Assim, “exempli gratia”, são nitidamente diferenciáveis os homens altos dos homens de baixa estatura. Poderia a lei estabelecer – em função desta desigualdade evidente- que os indivíduos altos tem direito a realizar contratos de compra e venda, sendo defeso o uso deste instituto jurídico as pessoas de amesquinhado tamanho? Pois, sem dúvida, qualquer intérprete, fosse ele doutor da maior suposição ou leigo de escassas luzes, responderia pela negativa. Qual a razão empecedora do discrímen, no caso excogitado, se é certo que uns e outros diferem incontestavelmente? Seria, por ventura, a circunstância de que a estatura é fator em si mesmo inidôneo juridicamente para servir como critério de desequiparação?” (MELLO,1978:16-17).

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Se na antiguidade10 era questionado a senciência11 dos animais não humanos, hoje, com a Declaração de Cambridge sobre Consciência data de 7 de julho de 2012 firmada por renomados cientistas de instituições como a Universidade de Stanford, o Massachusetts Institute Institute of Technology e o instituto Max Planck, redigida por Philip Low em evento que contou com a presença de Stephen Hawking, a discussão não tem razão de existir do ponto de vista científico. A referida Declaração, construída por neurocientistas, neurofarmacologistas, neurofisiologistas e neuroanatomistas, proclama ser induvidoso que todos os mamíferos, aves, peixes, inclusive invertebrados, como polvo, ostentam consciência. O documento reconhece que os animais são dotados de interesses, interesses que encontram paralelo com interesses humanos. E, portanto, não há razão para não levar tais interesses em conta, devendo-se adotar, como imperativo ético, o princípio da igual consideração de interesses. O princípio mencionado acima é o argumento para estender o princípio da igualdade para além da própria espécie. Implica que a preocupação com os outros não deve depender de como são, ou das aptidões que possuem. É com base nisso ser possível afirmar que o fato de algumas pessoas não serem da mesma raça, não lhes da o direito de explorá-las e, da mesma forma, que o fato de algumas serem menos inteligentes que outras não significa que os seus interesses possam ser colocados em um plano inferior. Tal princípio veda a exploração dos animais não humanos pelos animais humanos sempre que um interesse inferior estiver sendo sacrificado em prol de um superior. A título exemplificativo, o interesse do ser humano em comer carne de vitela, não pode prevalecer face ao interesse do bezerro de não sofrer durante toda sua existência. O princípio da igual consideração de interesses não permite que o bezerro seja trazido a existência, para uma vida miserável desde o nascimento até o abate, visando satisfazer o paladar humano.12 Portanto, é possível afirmar que a ética não será refinada o bastante enquanto o ser humano não estender a aplicação do princípio da igualdade na consideração moral a todos os seres dotados de sensibilidade e capacidade de sofrer. Nesse sentido a relação de igualdade é antes moral do que fática. Neste contexto, para concluir o tópico, até mesmo frente à controvérsia a respeito da titularidade de direitos pela parte dos animais, a saída da 10 Para o filósofo Frances René Descartes (2013), o que propicia os animais a terem ações é, somente, a natureza agindo neles segundo a disposição de seus órgãos. Descartes foi o responsável pela “liberação” da experimentação animal. Buscou demonstrar a existência de Deus e da alma estudando o movimento do coração e das artérias. Com sua pesquisa chegou a conclusão que os animais não tinham alma e eram desprovidos de sentimentos. Comparou os animais não humanos a um relógio. A visão do “animal máquina”, ainda permanece com as diversas formas de exploração animal na atualidade. 11 Entendida como condição sensível de animais dotados de consciência. 12 A carne de vitela é um subproduto da indústria de laticínios. O bezerro é separado de sua mãe após o nascimento, a separação de mãe e filhote mamíferos causa enorme sofrimento e angústia em ambos, para ser confinado durante toda a sua vida assim, quando abatido, seus músculos anêmicos permanecem macios. Para deitar-se precisam se curvar para acomodar as pernas em uma baia de 55 centímetros.

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proteção pela dignidade animal é uma alternativa que pode representar uma efetiva proteção dos animais, pois através dela acredita-se que pode enfrentar toda a discussão acerca dos direitos dos animais. Assim, os animais não humanos, seres, cientificamente comprovados, conscientes, também são dignos de respeito e proteção através da dignidade da vida. Vale destacar que a CRFB de 1988 veda a crueldade, ou seja, reconhece os animais não humanos como seres que sofrem e não como coisa.

Considerações finais Ao longo da pesquisa, percebeu-se que os teóricos do movimento em prol dos animais defendem uma dignidade animal, seja fundada no princípio da igual consideração de interesses (Singer, 2013), seja na tese de sujeitos de uma vida (Regan, 2006). Desse modo, fica claro que independente da posição assumida, os animais sofrem, sentem, amam, desenvolvem laços de amizades, lutam pela vida e, dentro de cada um, seja a espécie que for, existe vida e essa vida é digna de respeito através da dignidade animal pautada na dignidade da vida. O princípio da dignidade deve ser entendido como um valor inerente a todos os animais e não apenas ao homem. Após a pesquisa, pode-se concluir que a constituição brasileira de 1988, ao vedar a crueldade incorporou a dignidade animal em seu texto, pois, só é possível ser cruel com um ser capaz de sofrer, sentir, que possua consciência, ainda que em grau menor. Não é possível ser cruel com um objeto. Coisas não sofrem, não sentem dor.

Referências bibliográficas

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Liberdade de expressão direitos fundamentais - e poder empregatício José Flávio Barroso Madaleno1

Resumo Com a Revolução Industrial e a crescente relação de emprego no mundo globalizado surge a necessidade de o Estado intervir na relação empregatícia. Sua obrigatoriedade se dá em sede constitucional, como direito e garantia fundamental, em que a liberdade de expressão, em um ponto diametralmente oposto, ao poder do empregador, na relação de trabalho, encontra-se em um limiar com a dignidade da pessoa humana. Porém, vale ressaltar, que se vive em um Estado Democrático de Direito, por isso, se por um lado, o empregado tem direitos, deve-se ponderar, retirando-lhe o manto de absoluto, pois a livre iniciativa é importante fator para o desenvolvimento das nações, inclusive com previsão constitucional. Esse é o grande objetivo do presente trabalho: se por um lado está o empregado, que tem como fundamento a dignidade da pessoa humana, devendo para isso ser livre, por outro, a livre iniciativa que é de suma importância para o desenvolvimento de um país, seja desenvolvido, seja em desenvolvimento com o poder empregatício, que reduz ou mesmo tolhe alguns aspectos com seu poder diretivo. Dessa forma ao judiciário tem um papel importante no equilíbrio dessas duas forças contrárias, mas que são de suma importância para que as normas sejam cumpridas. Palavras-chave: Liberdade de expressão; Poder empregatício; Direito fundamental e Livre iniciativa. Abstract With the Industrial Revolution and the increasing imployment relationship in a globalized world there is a need for the State to intervene in the imployment relationship. Its mandatory occurs in constitutional office, as a right and a fundamental guarantee, where freedom of expression, in a diametrically opposite point, the power of the employer, the employment relationship is at a threshold with the dignity of the human person. It is worth noting, living in a democratic state of law, so if on the one hand, the employee has rights, should be examined by withdrawing the absolute mantle because free enterprise is an important factor for developing nations, including constitutional provision. This is the great aim of this work: on the one hand is the employee, which is based on the dignity of the human person, and to do so be free, on other hand, free enterprise that is of paramount importance for the development of a country, is developed, is developing with the employment power, which reduces or even hinders some aspects with its governing power. Thus the judiciary plays an important role in the balance of these two opposing forces, but are of paramout importance to ensure that standards are met. 1 Mestrando em “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” pela Universidade Presidente Antônio Carlos; Especialista em Direito Empresarial pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Professor de Direito pela Faculdade Doctum de Manhuaçu, titular da cadeira de Direito Empresarial.

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Liberdade de expressão - direitos fundamentais - e poder empregatício

Keywords: Freedom of expression; Employment power; Fundamental rights and free enterprise.

Introdução Os Direitos Fundamentais surgem como forma de opor ao Poder do Estado, limitando-o. Essa assertiva inicial se faz necessária pois indubitável que a liberdade de expressão está inserido nessa seara e confronta com o poder empregatício, existente na relação de trabalho. Não se quer excluir os Direitos Sociais, na qual o direito do trabalho está incluído, de ser garantia fundamental. Vale ressaltar que está insculpido nos artigos 7º ao 11 da CF/88, trazendo um limitador também ao poder empregatício. Há, portanto, uma necessidade de se adentrar na seara constitucional, mais precisamente nos direitos fundamentais, que dignificam o homem e limitam o poder estatal, para debater o objeto do estudo na relação do trabalho. Não se pode olvidar que o contrato de trabalho é um limitador, uma vez que, embora hipossuficiente na relação, carecendo de uma proteção maior a fim de equilibrar a relação desproporcional, não é dado ao empregado, bem como ao empregador o direito absoluto. Esse contrato de trabalho suprime alguns direitos em virtude da tarefa laboral que é executada. A grande problemática está no seguinte questionamento: até que ponto pode essa liberdade ser tolhida para que não haja ofensa a preceito fundamental? Se por um lado o a liberdade de expressão é um direito fundamental assegurado ao empregado, por outro, não se pode coibir a livre iniciativa, ao contrário, sua importância é tanta que foi resguardada na Constituição Federal, em seu artigo 170, no qual andou bem o legislador. A princípio, a questão parece de fácil solução, mas ao aprofundar no tema, ao analisar cada caso, se percebe que há um verdadeiro imbróglio jurídico e a solução não pode se pautar em bom senso, ao contrário deverá seguir critérios objetivos, para que assim se tenha uma solução justa e atenda à norma. Contudo, há a necessidade da busca de soluções que levam em conta a ponderação, com critérios apontados objetivamente e buscado apoio normativo, equilibrando relações hipossuficientes de um lado e o poder de outro.

Liberdade de expressão e os direitos fundamentais

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Liberdade nada mais é que a faculdade de agir segundo a própria determinação e consiste na possibilidade de locomoção, nas escolhas dentro de procedimentos que não sejam proibidos em lei ou por ela orientados, é poder expressar as opiniões, sentimentos, convicções, etc. Tem natureza de direitos fundamentais e surgiram na primeira geração em contraposição ao Estado Absolutista, posteriormente face ao Estado Liberal, como reação ao Estado Social e atualmente, ao Estado-Democrático de Direito. Assim, vai ocorrendo a evolução do Direito frente as necessidades de tê-los como direitos fundamentais.

José Flávio Barroso Madaleno

Importante fazer uma conceituação dos Direitos Fundamentais em uma breve análise sem portanto esgotá-lo, uma vez se tratar de um tema de enorme complexidade. Nesse sentido George Marmelstein: (...) os direitos fundamentais são normas jurídicas, intimamente ligadas à ideia de dignidade da pessoa humana e de limitação do poder, positivadas no plano constitucional de determinado Estado Democrático de Direito, que, por sua importância axiológica, fundamentam e legitimam todo o ordenamento jurídico.2

Direitos fundamentais são prerrogativas fundadas na dignidade da pessoa humana, destinando a essa pessoa liberdade, igualdade e solidariedade, assim como a cidadania e a justiça social. Nesse caminho podemos mencionar que a dignidade da pessoa humana, é o que se alcança através da liberdade, consiste no respeito às qualidades essenciais caracterizadoras da existência valorizada do ser humano. E a existência digna é aquela que permite sem discriminação, a fruição da vida saudável, atuação por vontade livre, com sua autonomia e participação ativa nos destinos da própria existência. Nota-se que se pode ter o confronto de duas normas de preceitos fundamentais. É exatamente o que ocorre no caso em tela. Dessa forma, a separação de poderes – fundamento do Estado Democrático de Direito - é uma técnica que caminha paralelamente com os direitos fundamentais. De fato, o que se percebe na Lei Mater que o sistema de freio e contrapesos é essencial para assegurar a limitação do poder e, consequentemente, garantir a efetividade dos direitos fundamentais. São direitos dinâmicos, e por isso vem se consolidando e acompanhando a evolução da pessoa humana e sua sociedade, pois como ensina George Marmelstein, a razão para isso é “a crença de que a dignidade da pessoa humana é um valor que deve legitimar, fundamentar e orientar todo e qualquer exercício do poder.”3 No Brasil, tal ato se dá com a Constituição Federal de 1988, que rompe com o passado assombroso da ditatura militar e instaura o processo certificado de democracia. Mesmo que haja um distância entre o texto constitucional e a realidade socioeconômica desse país é perceptível os avanços em matérias de direitos fundamentais. Hoje sua consolidação encontra-se firmada no texto da CF/88, com o fato de que o legislador constituinte assegurou a impossibilidade de sua abolição. Conforme consta do artigo 60, § 4º, inciso IV, sendo defeso qualquer proposta tendente a aboli-los, caso haja, é vedado qualquer deliberação no Congresso. Em virtude da solução do presente estudo ser por meio de critério objetivo, devese fazer uma distinção da força jurídica dos direitos fundamentais. A análise estrutural dos direitos fundamentais surge com grande importância, sendo que dessa análise vem à tona a defesa da dignidade da pessoa humana, sendo, portanto, um dos seus valores. 2 MARMELSTEIN, 2009, p. 20 3 MARMELSTEIN, 2009, p. 65.

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Nesse sentido, na lição do jurista alemão Robert Alexy, que ressalta a importância dessa distinção: Essa distinção é a base da teoria da fundamentação no âmbito dos direitos fundamentais e uma chave para a solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais. Sem ela não pode haver nem uma teoria adequada sobre as restrições a direitos fundamentais, nem uma doutrina satisfatória sobre colisões, nem uma teoria suficiente sobre papel dos direitos fundamentais no sistema jurídico. Essa distinção constitui um elemento fundamental não somente da dogmática dos direitos de liberdade e de igualdade, mas também dos direitos a proteção, organização e procedimento e a prestação em sentido estrito.4 A necessidade desse debate reside no fato de que ora os direitos fundamentais são classificados como regras, ora como princípios. Mas cumpre salientar que tanto regras como princípios fazem parte do sistema jurídico, ambos como espécies de normas jurídicas. Tal entendimento surge com Alexy, que impõe aos direitos fundamentais a característica do dever-ser, uma vez que disciplinam condutas e constituem base para decisões judiciais.5 Seguindo esse caminho Dworkin aproxima o direito da moral e segue fazendo a distinção entre regras e princípios. Nesse sentido Adrian Sgarbi menciona: (...) a primeira delas é que as regras são normas aplicáveis na forma “ou tudo ou nada”, pois elas são aplicáveis apenas quando surgem as condições que elas próprias fixam. Já os princípios são normas que não firmam uma consequência jurídica precisa diante de uma circunstância igualmente precisa; eles expressam considerações de justiça, equidade ou outras dimensões da moralidade, ou seja, os princípios não estabelecem uma solução unívoca para as controvérsias em que são aplicáveis, de tal modo que diferem das regras em sua operacionalidade lógica.6

Nota-se que para Dworkin, as regras seriam aplicadas completamente no caso concreto ou, então, não seriam aplicadas. Já de uma maneira contrária, os princípios, por apresentarem direções a serem seguidas, sem apontarem soluções, apresentam diversas formas de aplicação. Essa disposição foi evoluída por Alexy que trouxe a diferenciação de regras e princípios, conceituando-os: O pondo decisivo na distinção entre regas e princípios é que princípio são normas que ordenam algo que seja realizado na maior medida possível

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4 ALEXY, 2008, p. 85. 5 Robert Alexy defende essa tese ao afirmar que “Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio das expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição”. (2008, p. 87). 6 SGARBI, 2006, p. 151.

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dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização, que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não dependem somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas. O âmbito das possibilidades jurídicas é determinado pelos princípios e regras colidentes.

Já as regras são normas que são sempre ou satisfeitas ou não satisfeitas. Se uma regra vale, então, deve ser fazer exatamente aquilo que ela exige; nem mais, nem menos. Regras contém, portanto, determinações no âmbito daquilo que é fática e juridicamente possível. Isso significa que a distinção entre regras e princípios é uma distinção qualitativa, e não uma distinção de grau. Toda norma é ou uma regra ou um princípio.7

As ponderações de Ronald Dworkin e Robert Alexy são de suma relevância para a separação do que seja regras e princípios, vislumbrando uma distinção entre as categorias normativas. Dessa forma, partindo dessa distinção, pode-se definir pela possibilidade de impor restrições a esses direitos e também quais os critérios a serem utilizados em caso de conflito. O que se percebe é que as duas teorias trouxeram uma imensa contribuição para solução do objeto de estudo no presente trabalho. O que se estar a demonstrar é a importância dos direitos fundamentais que nasceram para impedir que o abuso absolutista do Estado e, também, comportamentos que atentem contra a dignidade humana, e por consequência, contra a pessoa humana. Porém não deve ser interpretados de forma absoluta, havendo a possibilidade de limitações e restrições a certos direitos fundamentais, e no caso em tela, a liberdade de expressão, por exemplo pode sofrer restrições, mesmo diante do poder empregatício.

Os direitos da Personalidade no Direito do Trabalho O ordenamento jurídico não tem a finalidade de criar os direitos da personalidade, mas sim desenvolver mecanismos para sua proteção, já que são inerentes à pessoa humana. Sendo assim, também o trabalhador, enquanto pessoa, goza do mesmo sistema de proteção aos direitos da personalidade, como a qualquer outro cidadão. Mallet, citado por Grasselli, aduz que “o empregado, no momento em que celebra um contato de trabalho, não se despoja, como já foi visto, de seus direitos da personalidade. Conserva, portanto, o direito à preservação de sua intimidade.”8 A Consolidação das Leis do Trabalho – CLT (Decreto-Lei n.° 5.452, de 1° de maio de 1943), foi omissa quanto os direitos da personalidade, muito embora devam ser observados no desenvolvimento do contrato de trabalho, uma vez que, como ensina Marilda Silva Ferracioli Silva: 7 ALEXY, 2008. P. 90. 8 MULLET apud GRASSELLI, 2011, p. 32.

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Liberdade de expressão - direitos fundamentais - e poder empregatício

Na relação de empregado, o empregador deve dirigir a prestação pessoal dos serviços. Entretanto, não pode haver sujeição do empregado de forma ilimitada, sendo necessários mecanismos que visem assegurar o respeito à dignidade humana.9

A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos dos direitos da personalidade e sua aplicação na seara do trabalho é inquestionável, pois tratase de um dos princípios fundamentais da República Federativa do Brasil. Ao analisar o processo de constitucionalização do direito do trabalho, Júlio Ricardo de Paula Amaral ensina: Na verdade, ocorreu – e ainda está ocorrendo, num processo dinâmico – o fenômeno da constitucionalização do Direito do Trabalho, sendo que o trabalhador deixou de ser considerado exclusivamente como sujeito que, por meio de um contrato de trabalho – negócio jurídico de natureza privada - , põe à disposição de outra pessoa a sua força de trabalho, mas com tal ocorrência, houve uma mudança no foco de proteção, passando-se a tutelar também o trabalhador-cidadão, reconhecendo-lhe todos os direitos inerentes aos demais cidadãos previstos na constituição, promovendo a dignidade da pessoa humana no âmbito de uma relação trabalhista.10

Empregado e empregador estabelecem sua relação por meio de contrato, que não raras vezes ultrapassa os limites aceitáveis para o desenvolvimento da vida laboral, atingindo diretamente direitos inerentes à pessoa do empregado, como é o caso de sua privacidade, muitas vezes ferida de forma brutal como, por exemplo, em caso de revista íntima. As partes que compõe a relação de emprego devem observar os direitos da personalidade a fim de que o contrato cumpra a função social. Certo é que as empresas, cada vez mais primam pela quantidade e produtividade, utilizando-se de equipamentos sofisticados para o desenvolvimento de suas atividades, o que tem impacto direto no trabalho desenvolvido pelos empregados. Nesse contexto, Oraci Maria Grasselli ressalta que: Não se discute que a modernidade, a competitividade, a busca pela excelência trazem benefícios para todos e desenvolvimento para o próprio Estado. Contudo, há que se observar que na relação do trabalho, o que se põe à venda é a força de trabalho e não o trabalhador em si, que deve ter seus direitos da personalidade protegidos contra eventuais abusos.11

A própria CLT prescreve que, nos casos em que for omissa, aplicar-seão as regras da legislação comum, sendo, portanto, totalmente admissíveis na seara do trabalho, a aplicação subsidiária dos artigos 11 a 21, que tratam dos

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9 SILVA apud MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 28. 10 AMARAL apud MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 28. 11 GRASSELLI, 2011, p. 31.

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direitos da personalidade, do Código Civil. Importante salientar que os direitos da personalidade não estão adstritos ao código civil no que tange ao Direito do Trabalho, não podendo ser considerados taxativos, mas sim, meramente exemplificados, tendo o julgador, ao se deparar com um caso concreto que viole os direitos da personalidade do empregado, a total liberdade para sua análise. O que se percebe é que, tanto as relações de trabalho quanto as de produção estão contidas na Constituição Federal. Assim, se de um lado, a Constituição da República garante a livre iniciativa e a propriedade privado dos meios de produção, de outro, tutela os direitos da personalidade (art. 5°) e os sociais (art. 7°) do trabalhador12. O problema a ser enfrentado não é a aplicação dos direitos da personalidade no direito do trabalho, tampouco sua existência, mas sim, como resolver eventuais conflitos entre direitos constitucionais dos empregadores e empregados.

Os direitos fundamentais à privacidade, à intimidade e à vida privada Como preceitua Paulo Bonavides, os direitos fundamentais existentes no ordenamento jurídico brasileiro, “são aqueles que o direito vigente qualifica como tais”13. Desse modo, temos que direito à privacidade, à intimidade e à vida privada são direitos fundamentais garantidos constitucionalmente, e também têm status de direitos da personalidade, assim sendo adquiridos com o nascimento com vida, de acordo com os artigos 2°, 20 e 21, do Código Civil de 200214. José Afonso da Silva, citando J. Matos Pereira, define a privacidade como, “[...] O conjunto de informação acerca do indivíduo que ele pode decidir manter sob seu exclusivo controle, ou comunicar, decidindo a quem, quando, onde e em que condições, sem a isso poder ser legalmente sujeito”15. Nesse contexto, é presumido que “sem privacidade, não há condições propícias para o desenvolvimento livre da personalidade”16 ficando o indivíduo à mercê de seus direitos. Não por acaso, que na obra de Alexandre de Moraes está a definição consolidada por Stefano Rodotà, o direito à privacidade é, justamente, o “direito de manter controle sobre as próprias informações e de determinar o modo de construção da própria esfera privada”17. A intimidade do indivíduo, por sua vez, uma ramificação da privacidade, na visão de Mendes, Coelho e Branco tem por objeto “as conversações e os episódios ainda mais íntimos, envolvendo relações familiares e amizades mais próximas”18. 12 MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 30. 13 BONAVIDES, 2004, p. 560. 14 BRASIL, 2002, p. 230-231. 15 PEREIRA apud SILVA, 2005, p. 206. 16 MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 421. 17 RODOTÀ apud MORAES, 2010, p. 321. 18 MENDES; COELHO; BRANCO, 2009, p. 420

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Assim, o direito à intimidade e à vida privada tem por finalidade proteger o ser humano na sua individualidade, no direito que possui de ser preservado da curiosidade alheia. Contudo, estas expressões possuem campo de proteção distinto, fazendo ambas partes de um conceito maior, que é o direito da privacidade. Tércio Sampaio Ferrar Júnior esclarece que, enquanto a intimidade é o âmbito do exclusivo que alguém reserva para si, sem nenhuma repercussão social, a privacidade “envolve a proteção de formas exclusivas de convivência. Trata-se de situação em que a comunicação é inevitável”19. A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5°, X, prevê que “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”20. Por se viver em uma sociedade cada vez mais vigiada, sob o manto da proteção à pessoa e dos interesses coletivos, contudo, existe um núcleo intocável que deve ser respeitado pelo Estado e por todos, não cabendo a quem quer se seja nele adentar sem a devida autorização da pessoa21.

Direito à Intimidade e à Vida Privada do Trabalhador A intimidade e a vida privada não se restringem apenas ao domicílio da pessoa, mas também ao ambiente de trabalho. Tratados como direitos fundamentais que são, a intimidade e a privacidade do trabalhador deverão ser respeitados em qualquer situação, uma vez que são inerentes à pessoa, não podendo o empregador, em razão do contrato de trabalho acelerado, ignorar a existência desses preceitos constitucionais. Leda Maria da Silva, ao diferenciar a intimidade da vida privada do empregado, ensina: [...] o direito à intimidade abrange fatos da vida pessoal do indivíduo que até mesmo sua família pode desconhecer, como por exemplo, suas preferências sexuais, hábitos, vícios, dentre outros, enquanto o que diz respeito à vida privada já abrange suas relações familiares e com terceiros, como interferir em empréstimos feitos juntos a seus familiares ou obter informação sobre o saldo bancário do empregado.22

É o caso, por exemplo, dos empregados que trabalham em regime de sobreaviso, disciplinado pelo art. 244, § 2° da CLT, que permite ao empregador chamá-lo, a qualquer momento, para serviço23. Assim, em determinadas profissões ou situações é perfeitamente possível a restrição ao direito à privacidade do empregado, cabendo ao empregador,

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19 FERRAZ JUNIOR apud MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 38. 20 BRASIL, 1988, p. 116. 21 MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 30-31. 22 SILVA apud MANTOVANI JUNIOR, 2010, p.40 23 Art. 244, § 2°: “Considera-se de “sobreaviso” o empregado efetivo, que permanecer em sua própria casa, aguardando a qualquer momento o chamado para o serviço. Cada escala de “sobreaviso” será no máximo, de vinte e quatro horas. As horas de “sobreaviso” para todos os efeitos, serão contadas à razão de um terço do salário normal”. – BRASIL, 1943, p. 170

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detentor do comando da atividade realizada e responsável por seus riscos, fiscalizar e monitorar a atividade desenvolvida no local de trabalho, o que decorre do direito à propriedade privada24. Em contrapartida, o empregador não pode adentrar a privacidade do empregado de forma ilimitada, uma vez que, muito embora detenha o poder diretivo do trabalho, isto não lhe dá o direito de adentrar ano núcleo intangível desses direitos fundamentais, que ultrapassam as barreiras do contrato celebrado e atingem a pessoa humana do trabalho25. Ainda, a invasão à privacidade do empregado caracteriza falta grave cometida pelo empregador, ensejando a possibilidade da imediata ruptura do contrato de trabalho26 e à devida reparação pelo dano moral sofrido. O direito à intimidade e à privacidade é considerado manifestação da própria dignidade humana, pois elevado à categoria de direito fundamental pela Constituição Federal (art. 5°, X e XII), e incluído expressamente no Código Civil de 2002 entre os direitos da personalidade, não podem ser relegados a uma mera expectativa de direito, pelo contrário, devem ser preservados de tal forma que somente poderiam sofrer intromissões em casos excepcionais.27

O fenômeno do poder da relação de emprego O poder se manifesta em diversos setores da vida em sociedade, estando presente nas mais diversas relações jurídicas e, inclusive, na relação de emprego, objeto do estudo desse capítulo. A palavra poder deriva do latim podere, da rais pot, que significa chefe de um grupo e gira em torno da ideia de posse, de força, de verdade, de obediência e de influência. Alice Monteiro de Barros preleciona: [...] o poder é a capacidade do indivíduo pôr em prática a sua vontade, apesar da resistência encontrada; surge no instinto da luta, podendo resultar de uma demonstração de superioridade ou de influência psicológica sobre os homens. Esse poder coercitivo é mesclado pelo poder convencional, exteriorizado por meio da negociação e não do comando28.

Ainda de acordo com a autora, contrapondo-se ao poder está a liberdade, de maneira que, para manter o grupo social, é necessário que haja um equilíbrio na luta entre poder e liberdade. O chefe pode impor limites à ação dos indivíduos, que os acatam, seja porque são incapazes de se lhes opor, seja porque reconheçam a necessidade de manterem-se unidos29. 24 MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 44. 25 GRASSELLI, 2011, p. 55. 26 Art. 483: “O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: [...] – d) não cumprir o empregador as obrigações do contrato”. – BRASIL, 1943, p. 190. 27 MANTOVANI JUNIOR, op. cit., p.31. 28 BARROS, 2011, p. 459. 29 BARROS, 2011, p. 459.

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O fenômeno do poder manifesta-se em diversos tipos de relações jurídicas, interessado ao foco específico deste trabalho a análise do poder exercido pelo empregador no seio da relação de emprego, que se caracteriza substancialmente pelos requisitos conjugados da pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e, sobretudo, da subordinação jurídica.

O Poder Diretivo Ao longo do século XVIII, como já vimos descrito acima, o modelo utilizado nos ambientes de trabalho era baseado na vigilância, no controle, na padronização das condutas e na disciplina das atividades desenvolvidas pelos empregados. Com o advento dos movimentos que deram origem ao Estado Liberal, o modelo de poder, até então puramente coercitivo, passa a ser vislumbrado de forma racional, de acordo com as ideias democráticas defendidas pelo novo modelo político do Estado empregador30. O poder diretivo, indispensável para que o empregador possa desenvolver suas atividades empresariais, possui fundamento tanto na Constituição Federal, quando consagra o princípio da livre iniciativa (art. 1°, IV)31, o da propriedade privada (art. 5°, XXII)32 e garante o livre exercício da atividade econômica (art. 170, II e parágrafo único)33, quando no art. 2° da CLT, ao definir empregador. Assim, vislumbra-se que o poder diretivo no Direito do Trabalho não é tratado diretamente pela legislação brasileira. Seu conceito e contornos decorrem do conceito de empregador contido na CLT, principalmente no que diz respeito à subordinação, elemento que caracteriza a relação empregatícia. O artigo 2° da CLT define empregador como sendo “a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço”34. O poder de direção surge exatamente em razão de ser do empregador os riscos da atividade desenvolvida, cabendo a ele a direção dos serviços realizados.

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30 MANTOVANI JUNIOR, 2010, p. 73. 31 Art. 1°: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...] – IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. – BRASIL, 1988, p. 116. 32 Art. 5°: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] – XXII – é garantido o direito de propriedade”. – BRASIL, 1988, p. 177. 33 Art. 170: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e da livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] – II – propriedade privada. [...] Parágrafo Único – É assegurado a todos os livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previsto em lei”. – BRASIL, 1988, p. 159-160. 34 BRASIL, 1943, p. 149.

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Para Maurício Godinho Delgado, o empregador é a “pessoa física, jurídica ou ente despersonificado que contrata a uma pessoa física a prestação de seus serviços, efetuados com pessoalidade, onerosidade, não eventualidade e sob sua subordinação”35. Alice Monteiro de Barros assevera que “empregador é a pessoa física, jurídica, ou o ente que contrata, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviços do empregado, assumindo os riscos do empreendimento econômico”36. Nesse contexto, cumpre ressaltar que uma das características inerentes ao empregador e que enseja no poder diretivo é a assunção dos riscos do empreendimento ou alteridade, que estabelece que o contrato de trabalho transfere a uma das partes todos os riscos a ele inerentes e sobre ele incidentes. Conforme entendimento de Maurício Godinho Delgado sobre o tema: A característica da assunção dos riscos do empreendimentos ou do trabalho consiste na circunstância de impor a ordem justrabalhista à exclusiva responsabilidade do empregador, em contraponto aos interesses obreiros oriundos do contrato pactuado, os ônus decorrentes de sua atividade empresarial ou até mesmo do contrato empregatício celebrado. Por tal característica, em suma, o empregador assume os riscos da empresa, do estabelecimento e do próprio contrato de trabalho e sua execução.37

O poder empregatício é um dos mais importantes efeitos do contrato de trabalho, podendo ser conceituado, na visão de Delgado como “o conjunto de prerrogativas asseguradas pela ordem jurídica e tendencialmente concentradas na figura do empregador, para exercício no contexto da relação de emprego”, e ainda “o conjunto de prerrogativas com respeito à direção, regulamentação, fiscalização e disciplinamento da economia interna à empresa e correspondente prestação de serviços”38. Completaria ainda Maurício Godinho Delgado sobre o poder diretivo: Poder diretivo (ou poder organizativo ou, ainda, poder de comando) seria o conjunto de prerrogativas tendencialmente concentradas no empregador dirigidas à organização da estrutura e espaço empresariais internos, inclusive o processo de trabalho adotado no estabelecimento e na empresa, com a especificação e orientação cotidianas no que tange à prestação de serviços.39

Portanto, o poder diretivo nada mais é do que a possibilidade de o empregador dirigir pessoalmente o serviço realizado por seus empregados. Permite que o empregador comande e controle todos os aspectos do desenvolvimento da atividade desenvolvida por ele, que também decorre do princípio de assunção dos riscos do empreendimento.40 35 DELGADO, 2011, p. 390. 36 BARROS, 2011, p. 294. 37 DELGADO, 2011, p. 393. 38 DELGADO, p. 616. 39 DELGADO op. cit., p. 618. 40 GRASSELLI, 2011, p. 61.

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Assim, o poder é instrumento indispensável para que o empregador possa desenvolver suas atividades, podendo, em razão dele, por exemplo, contratar, demitir, estipular regulamentos internos, cobrar rendimento de seus funcionários, aplicar advertências e suspensões, demitir com ou sem justa causa de acordo com a legislação vigente, fiscalizar o exercício do trabalho, tudo para que possa preservar o ambiente de trabalho e maximizar os resultado.

Liberdade de expressão e o poder empregatício Liberdade é a faculdade de agir segundo a própria determinação do sujeito (expressar opiniões, sentimentos...). Tem natureza de Direitos Fundamentais. Surgiu em oposição ao Estado absolutista, na primeira geração dos Direitos Fundamentais. Nasce com o Estado Liberal e depois reage-se a este e posteriormente, ao Estado Democrático de Direito. Demonstrando-se não ser estática, pois evoluiu e sociedade vai se consolidando como direitos fundamentais. Assim, os direitos fundamentais, em um primeiro momento, surgiu contra os poderes do Estado, posteriormente ele surge como outros centro de poderes, limitando-os e não se pode negá-lo, em virtude disso, na relação do trabalho. Basta verificar que a General Motors, por exemplo, tem uma receita maior que muitos PIB’s de países, concretizando-o no poder empregatício. E não diferente, há a insurgência dos direitos fundamentais uma vez que o poder empregatício é muito forte frente ao trabalhador, sendo que a necessidade daqueles direitos é para que este possa resistir ao poder do empregador, o que lhe permite de forma organizada, fazer até coletivamente. Assim, da mesma forma que a pessoa necessita de Direitos Fundamentais para se opor ao poder do Estado, esses mesmos direitos repercutiram nas relações privadas quando se têm essa figura do poder afim de obter um certo equilíbrio. Portanto, embora se diga que os direitos dos trabalhadores são sociais e estão no art. 7° CF/88, estes na verdade são direitos sociais fundamentais, embora existam outros direitos individuais fundamentais que estão no art. 5° CF (liberdade de expressão, liberdade de consciência ...). Para ser uma pessoa plena, o trabalhador precisa além de direitos sociais fundamentais, os individuais, e não se pode olvidar que o art. 170 CF ao tratar da livre iniciativa, andou bem o legislador, uma vez que esta deve ser privilegiada, mas com respeito ao meio ambiente do trabalho, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, etc. Viu-se que a liberdade é um direito fundamental e este adentra nas relações privadas também, em virtude da limitação do poder empregatício, por exemplo. Nesse diapasão o presente tópico vem debater qual será a liberdade permitida no ambiente de trabalho e se existe limitação para o seu exercício. Pode-se dizer que se tem como liberdade no ambiente de trabalho, por exemplo, a liberdade física de pessoa humana, liberdade de consciência, manifestação do pensamento, liberdade de informação, liberdade de ação profissional, de expressão coletiva.

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A liberdade de pensamento tem dois aspectos: caráter interno e caráter externo, sendo que aquela nada mais é que convicção e o caráter externo é a exteriorização dessas convicções (sendo parte da liberdade de expressão). Trazendo o assunto à prática tem-se o caso em que o professor de religião de escola católica teve sua despedida por justa causa, por externar em sala de aula opinião favorável ao aborto e ao divórcio nas aulas professadas. Pode-se questionar se tal fato atenta contra a liberdade sua despedida por justa causa? Conforme será esboçado ao final o julgador deverá apresentar solução objetiva, e para tal, primar pelo princípio da razoabilidade e proporcionalidade. Os pais que colocam os filhos na escola católica querem que eles tenham determinado tipo de orientação e uma delas é essa, portanto, não seria justo a manifestação favorável nesse sentido. Em outro caso instigante sobre o tema ocorreu na Argentina, onde uma funcionária se recusou a atender integrante de exército na época da ditatura militar e foi despedida por justa causa. Houve o ingresso com ação trabalhista contra a Companhia Aérea, sua empregadora, alegando que o ato patronal foi um ato abusivo, uma vez que tinha liberdade de consciência de não atender aquele passageiro porque ele era integrante da ditadura militar e isso ia contra seus princípios morais. Em primeira instância, o caso foi julgado no sentido que realmente ela tinha liberdade de consciência e poderia se recusar a atender o passageiro. Tribunal, o relator confirmou a decisão de primeiro grau, fundamentando na decisão do Tribunal francês, em caso similar em que um maleteiro que se recusou a levar malas do hóspede componente da ditadura militar argentino. O revisor votou contrário sob o argumento de que o seu salário dependia da venda de passagens. Vocal reconheceu o direito de liberdade de consciência, mas o limitou, utilizando da razoabilidade e proporcionalidade, julgou que para exercê-la deveria ter comunicado ao seu superior hierárquico para solucionar o caso, a justa causa foi configurada legítima. O que se percebe é um confronto entre dois direitos fundamentais: livre iniciativa, que deve ser privilegiada, pois é ela que dá emprego, move a circulação econômica, não havendo país com desenvolvimento sem a livre iniciativa, mas por outro lado, o respeito que a livre iniciativa deve ter ao seu exercício. Até o CF/88 o que importava era o lucro, posteriormente, vem expresso na carta maior o art. 170 muito bem delineado, limitando a liberdade de empresa. Um desse limites é exatamente um dos direitos fundamentais do trabalhador, sendo aquele direito que o trabalhador precisa, tal como o cidadão necessita contra o Estado, para poder resistir ao poder, que nesse caso é o poder econômico do empregador. Mas, ambos são direitos fundamentais. O poder diretivo contido na livre iniciativa impõe limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas estes também limitam o poder diretivo. Assim, deve-se buscar um critério objetivo para essas decisões. Cumpre ressaltar que o Poder Diretivo atua como um fator limitador, uma vez que nem todas as posturas e atividades adequadas da vida do trabalhador condizem com

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a vida pública. Por outro lado, o contrato do trabalhador, pode ser um fator limitador na atividade do trabalho. Assim como no caso supramencionado, o trabalhador está em uma organização de tendência e tem que se adequar a essas tendências, caso contrário não trabalha lá. Se é professor de escola católica, é que se faz necessário e para tal foi contratado, é professar os dogmas da escola católica, o que demandaria outra consideração se fosse professor de outra disciplina que não a religiosa. O empregado tem direito a expressar suas opiniões e convicções, mas não poderia fazê-lo a qualquer forma, uma vez que seu contrato é um limitador. Os direitos fundamentais do trabalhador atua contra o poder diretivo, uma vez que a ordem econômica que tem por fim uma existência digna é fundada nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 170, CF/88) e tem por limites a dignidade da pessoa humana. Conforme já iniciada a explanação, para se dar solução ao caso, ensina o Ministro Alexandre Belmonte que deverá buscar critérios objetivos como os princípios da razoabilidade e a proporcionalidade. Entende-se por aquele uma busca ao exercício racional, moderado concedido no próprio Direito. Impõe por equidade e harmonização. Já proporcionalidade visa buscar adequação e pertinência, necessidade e exigibilidade em direito comparado a limitação de outro. Há a ponderação de interesses – nesse caso tem-se para auxiliar na solução, identificar os direitos fundamentais em conflito limitado pelo ato patronal. Nesse sentido a melhor solução para o caso concreto é ponderação como critério objetivo utilizando os princípios da razoabilidade e proporcionalidade atingindo o equilíbrio buscado na seara judicial. Isso posto, não resta dúvidas que a ponderação serve para orientar a aplicação em caso de conflito de normas, não deixando de configurar a quebra do sistemas, mas permitindo, por outro lado, a aplicação de critérios baseados na racionalidade e objetividade ao optar pelos princípios da razoabilidade e proporcionalidade.

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Dano moral: a dignidade do trabalhador versus o enriquecimento sem causa Déborah de Paula Iennaco de Rezende1 Resumo O presente trabalho trata do dano moral no âmbito do direito trabalhista. Apresenta esta pesquisa o dano moral no decorrer da história e o princípio da dignidade da pessoa humana, uma vez que na ocorrência de dano moral é a dignidade da pessoa humana que está sendo violada. Este estudo cuida de demonstrar algumas decisões acerca do dano moral, e da dificuldade de se mensurar o dano à dignidade do trabalhador, bem como a necessidade de não se permitir que aconteça o abuso e o enriquecimento ilícito sob a alegação de ocorrência de dano moral. Palavras-chave: Dano Moral; Pessoa; Trabalhador; Dignidade da Pessoa Humana; Direito Trabalhista. Abstract This work deals with the damage under the labor law. This research shows the damage in the course of history. Presents yet, be the person and dignity of the human person, since the occurrence of damage is the dignity of the human person that is being violated. This study looks to demonstrate some decisions about the moral, and the difficulty of measuring the damage to the dignity of the worker, and the need not to allow to happen abuse and illicit enrichment, claiming the occurrence of damage. Keywords: Moral Damage; Person; Worker; Dignity of the Human Person; Labor Law.

Introdução O mundo vive em constante mudança, principalmente cultural. Mas o dano moral sempre esteve presente na história, apesar disso, nem sempre nos entendemos como pessoas dotadas de uma dignidade passível dessa proteção. Um exemplo de que este princípio se construiu ao longo da história é o trabalho escravo, que reduzia a pessoa a coisa. O importante hoje é as pessoas se reconhecerem como pessoas, dignas diante de seus valores e suas convicções de justiça, e, principalmente reconhecerem 1 Advogada, mestranda no programa de mestrado em Direito “Hermenêutica e Direitos Fundamentais” da Universidade Presidente Antônio Carlos - UNIPAC, na linha de pesquisa “Pessoa, Direito e efetivação dos Direitos Humanos no contexto Social e Político contemporâneo”. Pós-graduanda em Direito Trabalhista pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - IEC PUC-MG. Graduada no curso de Direito pelo Instituto Vianna Júnior.

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no outro que este também é portador de dignidade e que cada um sabe o que é para si uma vida digna. O direito tem papel fundamental na sociedade. Buscam-se os tribunais quando há a ocorrência de qualquer conflito ou situação na qual alguém se vê afastado de seus direitos por alguma razão. As decisões dos tribunais devem estar em conformidade com a justiça e a proteção dos direitos dos cidadãos. As pessoas, portadoras de dignidade, necessitam de decisões que as reconhecem como pessoas dotadas dessa dignidade, principalmente quando há a violação da mesma. Contudo, importante destacar que não podemos conceber decisões injustas porque fundamentadas na dignidade da pessoa humana. Na justiça trabalhista não é difícil ocorrer injustiças e exageros com relação a condenações abusivas decaindo sobre empresas, em razão principalmente do seu protecionismo notório. O dano moral não pode ser ensejo para enriquecimento ilícito dos trabalhadores em detrimento das empresas, esquecendo os julgadores de sua função social, já que uma condenação em favor de um empregado pode ser ao mesmo tempo uma condenação contra o emprego de muitos outros trabalhadores daquela empresa condenada que pode não suportar a sentença.

O dano moral Primeiramente, importante destacar o conceito de dano moral. Segundo Yussef Said Cahali ( 2005)2: Na realidade, multifacetário o ser anímico, tudo aquilo que molesta gravemente a alma humana, ferindo-lhe gravemente os valores fundamentais inerentes à sua personalidade ou reconhecidos pela sociedade em que está integrado, qualifica-se, em linha de princípio, como dano moral; não há como enumerá-los exaustivamente, evidenciando-se na dor, na angústia, no sofrimento, na tristeza pela ausência de um ente querido falecido; no desprestígio, na desconsideração social, no descrédito à reputação, na humilhação pública, no devassamento da privacidade; no desequilíbrio da normalidade psíquica, nos traumatismos emocionais, na depressão ou no desgaste psicológico, nas situações de constrangimento moral.

Quanto ao seu ressarcimento, Yussef Said Cahali (2005)3: ... a sanção do dano moral não se resolve numa indenização propriamente, já que indenização significa eliminação do prejuízo e das suas consequências, o que não é possível quando se trata de dano extrapatrimonial; a sua reparação se faz através de uma compensação, e não de um ressarcimento; impondo ao ofensor a obrigação de pagamento de uma certa quantia de dinheiro

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2 Cahali, Yussef Said. Dano Moral. 3 ed. ver., ampl. e atual. conforme o Código Civil de 2002. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2005. p. 22. 3 Cahali, Yussef Said. Dano Moral. 3 ed. ver., ampl. e atual. conforme o Código Civil de 2002. São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2005. p. 44.

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em favor do ofendido, ao mesmo tempo que agrava o patrimônio daquele, proporciona a este uma reparação satisfativa. Trata-se, aqui, de reparação do dano moral. Assim, da responsabilidade civil do agente resulta para o ofendido o direito à indenização do dano (sentido genérico), que se resolve ou pelo ressarcimento do dano patrimonial ou pela reparação do dano moral.

O dano moral e seu ressarcimento são tratados em nossa Constituição Federal de 1988, conforme vemos em seu artigo 5º, incisos V e X: Art. 5º  Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: V  - é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem; X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação; Apesar da previsão na nossa recente Constituição, o dano moral e seu ressarcimento, são bastante antigos. Podemos encontrar a previsão do ressarcimento ao dano no livro sagrado, Bíblia, em seu Antigo Testamento, antes de Cristo, que previa a Lei de Talião em passagem que ficou muito conhecida: “Mas, se houver dano grave, então, darás a vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe.” (Êx 21: 23-25)(meu grifo) No novo testamento, permanece a Lei de Talião, mas mudada por aqueles que seguiam Jesus, conforme vemos na passagem de Mateus: Tendes ouvido o que foi dito: Olho por olho, dente por dente. Eu porém, vos digo: não resistais ao mal. Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa. Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil.(Mt 5: 38-41)

Seguindo no decurso da história, no Código Penal, o legislador, preocupado com a honra da pessoa, inseriu no referido Código os crimes de injúria, calúnia e difamação, nos artigos 138 a 140. Crimes que violam a honra e imagem da pessoa, sendo tal violação o próprio dano moral, segundo a Constituição Federal prevê no artigo 5º, conforme citado acima. Na Lei 8.078 de 1990, o Código de Defesa do Consumidor, o dano moral se encontra previsto no artigo 14:

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Dano moral: a dignidade do trabalhador x o enriquecimento sem causa

Art. 14. O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. Em nosso novo Código Civil, o dano moral está previsto no artigo 927: Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo. E, em seu artigo 186: Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.

O ser pessoa e a dignidade da pessoa humana O dano moral somente pode acometer a pessoa, tendo em vista que é resultado de violação a honra objetiva e subjetiva da pessoa humana. Apesar de haver hoje a discussão acerca do dano moral da pessoa jurídica, esse não é o viés deste trabalho. A honra subjetiva e objetiva é a honra para nós mesmo e perante os outros, é o que formam a dignidade da pessoa humana. O conceito de pessoa foi mudando em cada época da história, isso porque nos entendemos como pessoa de acordo com nossas perspectivas e convicções, e, em cada momento histórico, referenciais e pressupostos são diferentes, já que variam de acordo com determinado contexto histórico e cultural. Segundo Brunello Stancioli4 (2010): Para se chegar a uma noção mais consistente de pessoa, é fundamental perceber que determinados valores são, em um dado momento histórico, constitutivos da personalidade. A ideia de valor (Bem, Mal) integra a pessoa, na medida em que é ela quem cria e se posiciona ante a esses valores. Isso significa que não há somente uma materialidade empírica na pessoa, ou seja, não há sentido em se propor uma visão puramente naturalista da personalidade, que reduz a pessoa a corpo humano, e nem puramente espiritualista, que lhe negue a corporeidade.

Para se alcançar o conceito de pessoa, Brunello Stancioli5(2010), buscou na história as concepções das próprias pessoas de si mesmas. Daí atingiu um conceito de pessoa calcado naquilo que retirou e uniu de duas visões antípodas de pessoa natural, desde a teologia medieval até o ultra-materialismo das concepções modernas. Com isso, pode-se concluir que o conceito de pessoa inclui corpo e mente. E, as pessoas se reconhecem como pessoas dotadas de autonomia. Assim,

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4 Stanciolio, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p.91. 5 Stanciolio, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2010.

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uma vez que vivemos em sociedade, fatalmente ocorre a alteridade, que é o reconhecimento e a afirmação do outro, como pessoa, ou seja, a interação social. A dignidade nada mais é que a junção da autonomia e alteridade, a dignidade é fruto de uma autoconstrução (autonomia) e a realização em sociedade (alteridade). Com isso conclui Brunello Stancioli6 sobre o conceito de pessoa: Assim, só existe pessoa na medida em que há uma dimensão sócio-normativa! Sem interação social, compartilhamento de valores, construções éticas, não há personalidade. No entanto esses valores mudam, pois o repertório social não é, obviamente, estático. Com ele, muda, também, a própria pessoa.

Cada um tem para si o conceito daquilo que acha digno e justo, o que é ter uma vida digna. A dignidade é um conceito calcado na autorrealização do indivíduo e sua realização em sociedade. Assim, quando ocorre uma violação que atinge aquilo que a pessoa entende como sendo sua dignidade, ou ainda, perante terceiros que compartilham de valores acerca da dignidade violada, ocorre o dano moral, passível de indenização.

O dano moral no direito do trabalho O direito do trabalho, social por natureza, desde seu surgimento, nasceu com o intuito de minimizar as injustiças perpetradas pela força do capital sobre a pessoa do trabalhador. Quanto à ocorrência de dano moral, não podia ser diferente. Nas relações de trabalho, é plenamente possível que aconteça o dano moral em algum momento, e, o direito trabalhista não podia deixar de regular tal cometimento. Já está regulado na Consolidação das Leis Trabalhistas o dano moral, nos artigos 482, j e k, bem como no artigo 483, e. Art. 482 - Constituem justa causa para rescisão do contrato de trabalho pelo empregador: j) ato lesivo da honra ou da boa fama praticado no serviço contra qualquer pessoa, ou ofensas físicas, nas mesmas condições, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem; k) ato lesivo da honra ou da boa fama ou ofensas físicas praticadas contra o empregador e superiores hierárquicos, salvo em caso de legítima defesa, própria ou de outrem;” Art. 483 - O empregado poderá considerar rescindido o contrato e pleitear a devida indenização quando: e) praticar o empregador ou seus prepostos, contra ele ou pessoas de sua família, ato lesivo da honra e boa fama; 6 Stanciolio, Brunello. Renúncia ao exercício de direitos da personalidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 90.

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As possibilidades de ocorrência de dano moral na esfera trabalhista são inúmeras, conforme as dessas decisões, por exemplo: AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL. REVISTA ÍNTIMA. A revista corporal dos (as) empregados (as) enseja, de maneira geral, o pagamento da indenização por dano moral, em face da afronta aos princípios e às regras constitucionais de proteção à privacidade, à intimidade e à dignidade das pessoas humanas (art. 5º, V e X, CF). Entretanto, do ponto de vista do aparelhamento do recurso, não há como admiti-lo, pois calcado apenas em divergência jurisprudencial, cujos arestos são inespecíficos, não espelhando fatos semelhantes aos descritos pelo Regional, o que atrai a Súmula 296/TST como obstáculo à admissibilidade da revista. Agravo de instrumento desprovido. (AIRR-181740-54.2005.5.12.0001, Rel. Min. Mauricio Godinho Delgado, 6.ª Turma, DEJT 16/4/2010)

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RECURSO DE REVISTA - DANO MORAL - EMPRESA DE TELEATENDIMENTO - RESTRIÇÃO DA UTILIZAÇÃO DO SANITÁRIO - INDENIZAÇÃO - QUANTUM INDENIZATÓRIO. Foi consignado na decisão recorrida que a reclamada, empresa de teleatendimento, restringia o uso de banheiros pelos seus empregados. Não houve, entretanto, o registro de circunstâncias especiais, tais como alguma situação específica suportada pelo autor, ou particularidades da conduta do empregador, tendo o Tribunal Regional se limitado a afirmar a existência de conduta e a subsunção como ofensa à violação da intimidade do autor. No arbitramento pelo juiz do quantum indenizatório, deve ser observado o princípio da razoabilidade e proporcionalidade, motivo pelo qual se deve considerar tanto a capacidade financeira do ofensor quanto a da vítima, assim como as circunstâncias do caso concreto, gravidade e potencialidade social do dano, sua repercussão social, intensidade do sofrimento e do desgaste. É importante que o montante arbitrado não implique o enriquecimento ou empobrecimento sem causa das recíprocas partes e não perca a harmonia com a noção de porporcionalidade da lesão, ou porque não ressarcido adequadamente o dano provocado, ou porque ultrapassado o necessário à compensação do mal suportado. Em circunstâncias como as registradas pela Corte Regional, em que a o empregador desenvolve atividades de teleatendimento e a conduta que lesa a intimidade do empregador é a restrição ao uso de toalete, as indenizações têm variado em torno do importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), conforme inúmeros precedentes. Por esse motivo, resta extremamente elevada a condenação imposta à reclamada no valor de R$ 10.000,00 (dez mil reais), razão pela qual o recurso de revista deve ser conhecido por violação do art. 944, parágrafo único, do Código Civil. Quando não haja circunstâncias especiais ou particularismos que justifiquem a imposição de condenações mais elevadas ou mais reduzidas, a indenização por dano moral às empresas de teleatendimento por restrição ao uso de toalete deve ser estabelecida no importe de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Recurso de

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revista conhecido e provido. (Processo: RR - 6860-19.2010.5.01.0000 Data de Julgamento: 25/05/2011, Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 03/06/2011.) DANO MORAL. BANCÁRIO. SEQUESTRO DO RECLAMANTE E DE SUA FAMÍLIA. O sequestro sofrido pelo reclamante e familiares decorreu do vínculo de emprego com o Banco e, em especial, pelo cargo ocupado. Por outro lado, imperioso reconhecer que a atividade desenvolvida pelo reclamado, em decorrência de ações criminosas que comumente lhe são direcionadas, põe em risco não apenas a vida e integridade física de seus clientes (eventualmente presentes a um assalto, por exemplo), como também de seus empregados. O atual Código Civil, artigo 927, parágrafo único, trouxe uma inovação que tem sido chamada de ‘teoria do risco da atividade’, por prever uma hipótese de culpa presumida daquele que desenvolve uma atividade de risco, o qual fica obrigado a reparar um eventual dano causado a terceiro, independentemente da investigação sobre a existência de culpa. Sob outro enfoque, constata-se que o reclamado agiu com abuso de direito, ao dispensar o reclamante após a situação traumática vivida em decorrência do vínculo de emprego. Numa situação como essa, caberia ao empregador oferecer o suporte necessário à recuperação de seu empregado para o seu pleno restabelecimento psicológico, o que não ocorreu, contribuindo, portanto, para o agravamento do dano moral sofrido. Recurso de revista de que se conhece e a que se dá provimento. (TST-RR - 197000-80.2002.5.15.0006, Relatora Ministra: Kátia Magalhães Arruda, 5ª Turma, Data de Publicação: 11/06/2010) RECURSO DE REVISTA. REINTEGRAÇÃO. EMPREGADA ACOMETIDA DE CÂNCER. DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. EXTINÇÃO DO CONTRATO UM DIA APÓS A CESSAÇÃO DO AUXÍLIO-DOENÇA COM NOVA PERÍCIA MARCADA. NOVA CONCESSÃO DA LICENÇA DOIS MESES APÓS A RESCISÃO. A Justiça do Trabalho tem atuado no sentido de coibir toda espécie de discriminação (art. 3º, IV, da CF) nas relações de trabalho, compromisso reafirmado por meio de convenções internacionais, garantindo estabilidade a trabalhadores portadores de doenças graves, que além de suportar o impacto psicológico e físico da doença e sua notícia, sofre juntamente o impacto socioeconômico de uma dispensa sem justa causa, prejudicando inclusive o tratamento. Nessa esteira, a dispensa de empregada acometida de câncer, realizada um dia após o retorno da licençamédica, revela-se discriminatória, inadmissível neste momento histórico de inclusão de trabalhadores portadores de deficiência e de doenças graves. Por outro lado, o empregador, como quem ingressa na ordem econômica e social da república democrática brasileira, deve assumir sua postura diante dos princípios constitucionais de valorização do homem trabalhador. Assim, o direito potestativo do empregador de despedir a empregada na circunstância dos autos não encontra

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amparo legal e moral, diante de uma interpretação sistemática da Constituição, revelando-se a rescisão contratual completamente discriminatória e arbitrária. Recurso de revista conhecido e provido. (RR - 221500-10.2008.5.02.0057, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, Data de Julgamento: 08/02/2012, 6ª Turma, Data de Publicação: 24/02/2012) O valor da indenização é o quantum indenizatório, que varia de acordo com cada caso concreto. É assunto que pode parecer simples, pois leva-se em conta o bem jurídico lesado, e ainda o poder econômico daquele que lesou. Contudo, não é tarefa fácil mensurar o valor de algo que não tem preço, afinal, o dano moral é o dano que o ocorre no íntimo do lesado. A “dor” daquele que sofreu o dano moral merece o ressarcimento, mas nunca será possível atingir uma monta compatível, uma vez que não é possível aferir o valor daquela “dor”. Com isso, busca-se não apenas compensar quem sofreu o dano moral, mas também punir o responsável pelo referido dano, daí o chamado caráter pedagógico da condenação por danos morais, no qual o que se quer atingir é não somente a punição, mas, também, a prevenção da ocorrência de situações semelhantes. O quantum é muito discutido e objeto de recurso para majoração e minoração, e ganha destaque e elucidações em muitas decisões:

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INDENIZAÇÃO POR DANO MORAL. CONFIGURAÇÃO. PARÂMETROS RELEVANTES PARA AFERIÇÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO. SISTEMA ABERTO. DOSIMETRIA DO -QUANTUMINDENIZATÓRIO. 4.1. A reavaliação das provas que conduziram à caracterização do dano moral não é possível em via extraordinária, incidindo o óbice da Súmula 126/TST. 4.2. Dano moral consiste em lesão a atributos íntimos da pessoa, de modo a atingir valores juridicamente tutelados, cuja mensuração econômica envolve critérios objetivos e subjetivos. 4.3. A indenização por dano moral revela conteúdo de interesse público, na medida em que encontra ressonância no princípio da dignidade da pessoa humana, sob a perspectiva de uma sociedade que se pretende livre, justa e solidária (CF, arts. 1º, III, e 3º, I). 4.4. A dosimetria do -quantum- indenizatório guarda relação direta com a existência e a extensão do dano sofrido, o grau de culpa e a perspectiva econômica do autor e da vítima, razão pela qual a atuação dolosa do agente reclama reparação econômica mais severa, ao passo que a imprudência ou negligência clamam por reprimenda mais branda. 4.5. Assim, à luz do sistema aberto, cabe ao julgador, atento aos parâmetros relevantes para aferição do valor da indenização por dano moral, fixar o -quantum- indenizatório com prudência, bom senso e razoabilidade, sob pena de afronta ao princípio da restauração justa e proporcional. Agravo de instrumento conhecido e desprovido. (Processo: AIRR 93200-21.2009.5.06.0142 Data de Julgamento: 19/09/2012, Relator Ministro: Alberto Luiz Bresciani de Fontan Pereira, 3ª Turma, Data de Publicação: DEJT 28/09/2012. )

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RESPONSABILIDADE CIVIL - INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAL E MORAL - ARBITRAMENTO. Os parâmetros para a fixação do valor da indenização, isto é, valor justo e razoável, na verdade, são peculiares a cada caso concreto, em face da dor ou do dano causado ao trabalhador ou à sua família e da situação econômica do empregador. Predomina, no direito brasileiro, o critério do arbitramento pelo juiz. É certo que, no arbitramento pela Corte a quo do quantum indenizatório, foi observado o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, segundo o qual se considera tanto a capacidade financeira do ofensor quanto a da vítima, assim como as circunstâncias do caso concreto, gravidade e potencialidade social do dano, sua repercussão social, intensidade do sofrimento e do desgaste. O montante arbitrado não pode implicar o enriquecimento ou empobrecimento sem causa das partes e não deve perder a harmonia com a noção de proporcionalidade da lesão, ou porque não ressarcido adequadamente o dano provocado, ou porque ultrapassado o valor necessário à compensação do mal suportado. Desta via, uma vez que a parte não conseguiu demonstrar a desarazoabilidade da condenação imposta em face de tais preceitos, não se revelam as violações apontadas. Recurso de revista não conhecido. (Processo: RR - 26400-73.2006.5.17.0121 Data de Julgamento: 15/02/2012, Relator Ministro: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, 1ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/02/2012. ) DANO MORAL. FIXAÇÃO DO QUANTUM. PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE E DA PROPORCIONALIDADE. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 5º, V E X, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. 1. No caso em exame, a Corte Regional, soberana na análise dos fatos e provas produzidas nos autos, registrou que a condenação por danos morais decorreu do fato de ter o reclamado prestado informações à imprensa, mais precisamente ao Jornal Gazeta Mercantil, o que levou à publicação de matéria jornalística na qual apontava o reclamante, entre outros, como possíveis responsáveis por irregularidades na concessão de empréstimos bancários. 2. Por tais motivos, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, reconheceu que o afastamento do autor se deu - sob acusação infundada - , o que resultou na condenação por dano moral na forma do pedido posto na exordial, momento em que aquela Corte deixou de arbitrar valor certo a título de danos morais, para, acolhendo o pedido da petição inicial, determinar que o valor fosse determinado pela soma dos salários mensais devidos ao reclamante desde a data de sua dispensa até o trânsito em julgado do presente processo. 3. Não obstante se reconhecer que, em tese, o tratamento recebido pelo reclamante poderia dar ensejo à condenação do banco reclamado por danos morais, não se considera razoável a fórmula da fixação do quantum condenatório adotada pelo Tribunal de origem, uma vez que da forma como posta a condenação, a impor o aumento do valor da condenação a cada recurso que a parte maneje, não há negar a ocorrência do manifesto cerceamento de defesa em desfavor do banco reclamado. 4. Embora o reclamado detenha capacidade econômica

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reconhecidamente avantajada, tenho que a fixação do quantum indenizatório levada a efeito pelo Tribunal a quo ultrapassa os limites da razoabilidade e da proporcionalidade e resultaria, caso mantido, em enriquecimento sem causa do reclamante. 5. Assim, levando-se em conta todos os parâmetros citados, bem como utilizando-se da jurisprudência desta Corte, em casos em que deferiu-se indenização por danos morais, fixa-se o quantum indenizatório no valor de R$ 300.000,00 (trezentos mil reais). 6. Recurso de embargos conhecido, no ponto, e provido. (TST-E-ED-RR-792330-81.2001.5.02.5555, Ac. SBDI-1, Redator Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos, in DEJT 20.8.2010). O magistrado deve se atentar à situação em que de fato ocorra violação à dignidade do trabalhador que pleiteia o dano moral, uma vez que tal instituto não pode servir de forma para aferição de vantagem econômica à custa das empresas que podem até mesmo “quebrar” com determinadas condenações, podendo vir a perder sua função social ao ter que fechar suas portas e desempregar os demais trabalhadores. A empresa tem função social, já que além de objetivar o lucro, o empresário fatalmente atinge através da atividade empresarial o escopo de cumprir um papel fundamental na economia da sociedade, já que disponibiliza produtos e serviços. Apesar de ser difícil a distinção do que merece ou não uma reparação, o magistrado não pode se deixar convencer apenas pelo caráter protecionista do Direito Trabalhista, levando sempre em conta, antes de qualquer coisa a pessoa do trabalhador, e não apenas a relação de emprego. Assim, não se pode conceber que um instituto jurídico, que resguarda a dignidade da pessoa humana seja subsídio para um negócio lucrativo para empregados, deturpando o ordenamento jurídico e colocando em risco a sobrevivência da empresa e a segurança jurídica. Importante destacar que nem sempre é possível conceder a indenização sob a alegação da proteção do trabalhador, deve-se ter no fundamento a violação da dignidade e honra do ofendido, caso contrário, não há que se falar em dano moral. É o que vemos nessas decisões:

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RECURSO DE REVISTA DO RECLAMANTE. DANOS MORAIS. CONSTRANGIMENTO DURANTE A TROCA DE UNIFORME NOS VESTIÁRIOS MASCULINOS DA RECLAMADA. CIRCULAÇÃO EM TRAJES ÍNTIMOS. INOCORRÊNCIA. Não viola o disposto no art. 5º, X, da CF, que trata do direito à inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, a tese do v. acórdão regional no sentido de que o procedimento de troca de roupa nos vestiários masculinos da reclamada, com a possibilidade de circulação em roupas íntimas, por si só, não dá ensejo ao alegado dano moral, mormente quando constatado, mediante inspeção judicial realizada em outro processo contra a mesma reclamada, que os demais empregados da ré não relataram constrangimento com o mesmo fato. Deve-se levar em conta, ainda, para a manutenção do julgado regional, no ponto, a tese regional de que não há prova, ou mesmo alegação do autor, de que tenha ele sido alvo de

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chacotas ou de que tenha sido submetido a situações vexatórias em concreto. Recurso de revista não conhecido. (...). (Processo: RR - 12-17.2010.5.04.0781 Data de Julgamento: 15/08/2012, Relator Ministro: Aloysio Corrêa da Veiga, 6ª Turma, Data de Publicação: DEJT 24/08/2012) INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS - INEXISTÊNCIA DE CULPA OU DOLO DA RECLAMADA RESPONSABILIDADE OBJETIVA - IMPOSSIBILIDADE. 1. Tendo o Regional deferido ao Reclamante o pagamento de indenização por danos morais e materiais decorrentes de acidente de trabalho, ao fundamento de que, independentemente de culpa da Reclamada, a sua responsabilização seria objetiva, de se acolher o pleito recursal. 2. Isso porque a responsabilidade objetiva configura-se, em tese, apenas quando a atividade desenvolvida pelo autor do dano vier a causar ao trabalhador um ônus maior do que os demais membros da coletividade (parágrafo único do art. 927 do CC) 3. Como o Empregado, no caso, foi vitimado por um acidente de motocicleta quando se encontrava em serviço, em virtude do desvio de um pedestre que tentou atravessar a rua correndo, sem observar o trânsito, não há de se falar em responsabilidade fundada no risco da atividade, tal como prevista na citada norma, uma vez que não estava o Reclamante, no momento do acidente, em situação de risco superior a qualquer outro cidadão. Logo, para que pudesse haver a responsabilização do empregador pelo dano, haveria a necessidade de inequívoca prova de culpa, o que não ocorreu no presente caso. Recurso de revista provido. (RR-24700-36.2008.5.04.0030, Relatora Juíza Convocada Maria Doralice Novaes, 7ª Turma, publicado no DEJT em 24/09/2010) RECURSO DE REVISTA. (...) 9. INADIMPLEMENTO DE VERBAS TRABALHISTAS. INDENIZAÇÃO PELO USO DO DINHEIRO. ARTIGO 1.216 DO CC. IMPOSSIBILIDADE. A pretensão da reclamante é a de que, com base no artigo 1.216 do CC, seja a reclamada condenada ao pagamento de indenização dos -frutos colhidos e percebidos-, por ter usufruído de dinheiro que seria da reclamante (aquele decorrente do não pagamento tempestivo de suas verbas trabalhistas). O artigo 1.216 do CC, que trata do possuidor de máfé, não é substrato jurídico para a pretensão ora declinada. Isso porque, no caso, há inadimplemento contratual e não percepção de frutos decorrentes de posse ilegítima bens móveis ou imóveis da reclamante. Deve-se esclarecer que, não paga a quantia que o credor teria direito, no caso o reclamante, cabe-lhe exigir judicialmente a obrigação de forma cumulada com juros de mora e perdas e danos eventualmente sofridos. Estes últimos, para serem concedidos, ressalta-se, devem ser comprovados, pois apenas a prova de efetivo dano da ensejo à indenização. No mais, a obrigação inadimplida é recomposta com o pagamento de juros de mora, de forma a refutar o enriquecimento ilícito de qualquer das partes. Recurso de revista não conhecido. (...) (TST-RR-33700-42.2006.5.15.0089, Rel. Min. Guilherme Augusto Caputo Bastos, 2ª Turma, DEJT 01/02/13)

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Conclusão É sabido que situações vexatórias, comprometedoras e desrespeitosas não podem ser admitidas nem permanecerem impunes. Principalmente quando se trata do ambiente de trabalho, da relação de emprego. O trabalhador, em sua maioria trabalha não porque quer, mas porque necessita, e merece respeito no seu campo profissional. O dano moral e seu ressarcimento como vimos estão presentes desde antes de Cristo na sociedade. Isto porque, as pessoas se veem e reconhecem como pessoas dotadas de dignidade e enxergam a dignidade com algo que não pode em qualquer hipótese ser violada. O dano moral está previsto em vários diplomas ao longo do tempo até ser contemplado na Carta Magna de 1988. Tal previsão legal é de suma importância para a vida em sociedade, uma vez que regula e admite a punição para aquele ofende, e o ressarcimento para aquele que sofre qualquer violação de sua dignidade. Apesar de ocorrerem muitas situações que ferem a honra do trabalhador e que felizmente é indenizado, muitas vezes o quantum dessa condenação não é razoavelmente mensurado. Além disso, sob a fundamentação da dignidade e da proteção ao hipossuficiente, condenações por indenização acontecem mesmo sendo injustas, desnecessárias e incabíveis. O magistrado deve se atentar ao caso concreto, e ao conjunto probatório daquele caso em análise, para que não incorra em um equívoco, banalizando o instituto do dano moral e condenando empresas injustamente, o que pode muitas vezes resultar na “morte” de determinadas empresas. O direito do trabalho é protecionista, mas deve sempre haver o juízo de equidade para a análise do caso concreto de dano moral, buscando tutelar não o trabalhador como trabalhador, mas, primeiramente, como pessoa dotada de dignidade. Agindo assim, espera-se que o magistrado vá conseguir enxergar se houve a ocorrência ou não de violação da dignidade daquela pessoa, sem a lente pretensiosa da proteção ao trabalhador, já que, mesmo que tenha ocorrido no âmbito do trabalho, só há que se falar em dano moral se realmente este ocorreu, ou seja, se realmente houve violação da dignidade da pessoa humana.

Referências bibiliográficas

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Livre iniciativa versus prevenção dos riscos contra acidente de trabalho Eron Dino Leite Pereira1

Resumo A segurança no trabalho é necessidade inevitável para as empresas na prevenção de acidentes. A segurança e saúde no trabalho surgem como lei constitucional, regulamentada e normalizada, passando pela consolidação das leis do trabalho no CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). O gerenciamento dos riscos associados ao trabalho é fundamental para a prevenção de acidentes. Isto requer pesquisas, métodos e técnicas específicas, monitoramento e controle. A escolha desse tema se deu para discutir a adoção das medidas de livre iniciativa, que representam uma etapa da prevenção em acidentes de trabalho, será antecedida pela etapa de avaliação dos riscos, quando eles serão quantificados para subsidiar seu controle. Este trabalho possui como objetivo geral abordar a prevenção dos riscos para evitar acidentes de trabalho, para que este assunto tão discutido possa auxiliar trabalhadores, empresas, governos e órgãos defensores do direito humano envolvidos diretamente no assunto. Palavras-chave: Leis; Trabalho; Segurança. Abstract Safety at work is inevitable necessity for companies to prevent accidents. The safety and health at work arise as constitutional, regulated and standardized law, through the consolidation of labor laws in the CLT ( Consolidation of Labor Laws ) . The management of risks associated with the job is critical to the prevention of accidents. This requires research methods and specific techniques, monitoring and control. The choice of this subject was made to discuss the adoption of free enterprise measures, which represent a step in the prevention of accidents, will be preceded by the step of risk assessment when they are quantified to subsidize your control. This has as its overall goal to address the prevention of risks to prevent accidents at work , so this issue as discussed can help workers , businesses, governments and organs of the human rights defenders who are directly involved in the matter. Keywords: Law; Labor; Safety.

Introdução A segurança no trabalho é necessidade inevitável para as empresas na prevenção de acidentes. No Brasil e no exterior as instituições públicas como as privadas, dedicam-se a esse assunto em suas mais variadas vertentes, envolvendo vários profissionais da área, devido ao seu caráter multidisciplinar. A preocupação por parte das organizações privadas governamentais e órgãos defensores dos direitos humanos em encontrar iniciativas na prevenção de 1 Advogado inscrito na OABMG; Pós-graduado em Direito e Processo do Trabalho; Pósgraduado em Direito Previdenciário; Formação em Docência de Ensino Superior; MBA Executivo em Petróleo e Gás; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais.

Livre iniciativa x prevenção dos riscos contra acidente do trabalho

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acidentes cresce a cada dia mais. A segurança e saúde no trabalho surgem como lei constitucional, regulamentada e normalizada, passando pela consolidação das leis do trabalho no CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas). O Ministério do Trabalho regula essas leis com as normas regulares, as NRs criadas e desenvolvidas através de convenções das Organizações internacionais do trabalho. O Brasil é conhecido por sua instabilidade, a consolidação das leis, (CLT) dado ao povo no 1° de maio de 1943. A partir de sua criação pelo Presidente Getúlio Vargas que o editou e aos subsequentes ditadores que o repudiaram, sofreu poucas alterações formais durante o intervalo democrático (1945-1964). Na constituição de 1988 teve seu poder repressivo eliminado, mas o Estado continuou a ser o fiador da unidade sindical, dado seu poder de reconhecer o funcionamento dos sindicatos. Do mesmo modo, o imposto sindical, permanece e apesar dos sucessivos ataques provindos, tanto da esquerda como da direita, a justiça do trabalho continua intacta. O gerenciamento dos riscos associados ao trabalho é fundamental para a prevenção de acidentes. Isto requer pesquisas, métodos e técnicas específicas, monitoramento e controle. Os conceitos básicos de segurança e saúde devem estar incorporados em todas as etapas do processo produtivo, do projeto à implementação. Essa concepção irá garantir inclusive a continuidade e segurança dos processos, uma vez que os acidentes geram horas e dias perdidos de trabalho, gerando custos para as organizações para a máquina da previdência. (MINAYO, M. C. S., 1991, p.233-238). Alguns fatores são fundamentais para garantir a segurança do trabalhador contra acidentes de trabalho que são: a existência de treinamento de funcionários; o uso correto de equipamentos de segurança: a realização de exames médicos periódicos, o acompanhamento dos serviços realizados, a implantação dos Planos Ambientais entre outros. Com um foco direcionado para a segurança no trabalho, pode-se observar que o problema circula em torno de um segmento maior, onde o trabalhador é protegido como um todo, onde organizações estão fazendo parcerias e buscando o que há de mais moderno e melhor tecnologia, equipamento e gerenciamento, para solucionar os desafios da segurança e saúde no trabalho – SST. Um assunto de grande atenção a Segurança no trabalho visa diminuir ou controlar os acidentes. A segurança no trabalho mobiliza todos os elementos para o treinamento de técnicos e operários, controle de cumprimento de normas de segurança, simulação de acidentes, inspeção periódica dos equipamentos em determinadas áreas da organização (CHIAVENATO, 2000, p.71). A escolha desse tema se deu para discutir a adoção das medidas de livre iniciativa, que representam uma etapa da prevenção em acidentes de trabalho, será antecedida pela etapa de avaliação dos riscos, quando eles serão quantificados para subsidiar seu controle. A requerida intervenção se fará, na maioria das vezes, nas fontes geradoras dos riscos, nas possíveis trajetórias e nos meios de propagação dos agentes.

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Sendo assim, o empregador deverá especificar e propor equipamentos, alterações no arranjo físico, obras e serviços nas instalações, procedimentos adequados, enfim, uma série de recomendações técnicas pertinentes a projetos e serviços de sua empresa. Este artigo possui como objetivo geral abordar a prevenção dos riscos para evitar acidentes de trabalho, para que este assunto tão discutido possa auxiliar trabalhadores, empresas, governos e órgãos defensores do direito humano envolvidos diretamente no assunto.

Desenvolvimento Qualidade de vida no trabalho O contexto atual da globalização nos revela a ininterrupta corrida de competitividade entre as organizações. Segundo Coutinho e Ferraz (1994) esta corrida de competitividade se conecta a alguns elementos decisivos essenciais, como: qualificação, produtividade e flexibilidade, significando que as firmas estão incorporando metodicamente novos jeitos de administração de recursos humanos, procurando dar nova formulação a seu modo de relacionar-se com seus ajudantes de trabalho, almejando melhorar sucessivamente o processo produtivo além de motivar os ajudantes a uma co-participação nos desafios de competitividade empresarial da atualidade. As numerosas relações de interdependência entre os fatores que influenciam o bem-estar dos trabalhadores, independente da hierarquia que compõem a organização das empresas têm tornado difícil a apreensão do conceito de qualidade de vida no trabalho. A inclinação das empresas ativa em todo o planeta, até mesmo em nosso país, é a atitude participativa das pessoas, de forma direta ou indireta, em transações comerciais, que a cada momento são mais competitivas, com disputa mais acirrada e clientes sempre mais difíceis exigentes. Segundo Alexandre Agra Belmonte, (2002) “a relação de emprego é específica, a significar a relação privada, pessoal, de vinculação subordinada, não eventual assalariada de serviço”. Em consequência é indispensável à exigência de uma gestão mais eficaz e eficiente do quadro de funcionários que, em constante processo de conscientização e instrução, não aceita facilmente trabalhar em circunstâncias pouco adequadas e insuficientes. Porém, de acordo com Mello (2001), o trabalhador não toma parte do planejamento e sua consciência das metas a serem conquistadas é extremamente limitada, realidade encontrada em nosso país, onde o trabalhador ainda é um indivíduo isolado. As metas estabelecidas pelos superiores, na maioria das vezes, não tem significado algum. Alcançar compensação individual pelo trabalho exercido parece ser a mais importante expectativa do colaborador, principalmente nos tempos atuais onde os progressos da tecnologia estão deixando em um nível de menor importância os valores.

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Para Mello (2001): O conceito de qualidade que normalmente circula no meio empresarial refere-se mais à qualidade de produtos e processos para atender às exigências do mercado, do que a formas de gestão que privilegiem a saúde e a qualidade de vida do trabalhador. Hoje em dia, toda a riqueza está assentada na posse do conhecimento. Toda a economia gira em torno do uso intensivo de capital, da tecnologia da informação, da tecnologia de ponta. Essa forma de gestão tem levado o trabalho a um verdadeiro colapso. (MELLO 2001, p. 54).

Mello (2001) observa que é no trabalho que o homem busca tornar digna sua vida. É nele que se baseia e constrói sua existência, é nele que o ser humano se exprime. Constituir uma atmosfera na qual impere a astúcia para as questões do meio, que estimule mais qualidade de vida a seus participantes, dando-lhes situações mais adequadas no trabalho. Nesta esfera, o homem deve ser a maior riqueza a ser conservada. Fernandes (1996) define QVT como: [...] a gestão dinâmica e contingencial de fatores físicos, tecnológicos e sócio-psicológicos que afetam a cultura e renovam o clima organizacional, refletindo-se no bem-estar do trabalhador e na produtividade das empresas. (FERNANDES, 1996, p. 45-46).

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Fernandes (1996) ainda observa que este método de administração de recursos humanos está sujeito à realidade de cada empresa e do meio no qual está inserida. Da mesma maneira destaca que o conjunto das características sociológicas, físicas, tecnológicas e psicológicas do meio de trabalho é que irá determinar a intensidade do sentimento de compensação e, por conseguinte, a atuação ambicionada ou observada do funcionário no cumprimento de suas tarefas. A conexão do ser humano com o trabalho é muito discrepante e complexa. Demonstra-se como uma contradição onde o trabalho se revela, com frequência, como engrandecedor e com aptidão de aumentar o status, possibilitando ao cooperador uma identidade, um razão à sua existência, motivando o seu desenvolvimento. Alexandre Agra Belmonte, (2002), assevera que “o poder empregatício decorre da livre iniciativa, que é um direito fundamental, previsto na Constituição. Por outro lado, o direito fundamental do trabalhador de ter a sua liberdade também está previsto na Constituição”. De outra forma, a atividade profissional é, em muitos momentos, vista como indesejada, como se compõe na sociedade contemporânea, revelandose como fracionado e sem razão, com costumes burocráticos e constantes, com excessivas exigências ou inconciliável com a vivência familiar e social (RODRIGUES, 1999).

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Com o advento do desenvolvimento com base na indústria, o cooperador passou a ser uma simples solução nas empresas, fazendo com que sua condição de ser humano ficasse perdida, passando a ser fiscalizado e computado unicamente por sua produtividade, modificando o elo colaborador e firma em algo ordinariamente utilitarista causando muito descontentamento nos colaboradores. Essa conceito de trabalho alicerçou-se nos princípios práticos do que foi designado por gestão científica, fundamentado na especialização das quantidades de trabalho efetivado, na aquisição do máximo de rendimento com o mínimo de custo e na elevação da relação entre a quantidade ou valor produzido e a quantidade ou o valor dos insumos aplicados à produção. Assim, frente a esse quadro, as dificuldades enfrentadas pelas empresas, com seus funcionários, bem como o acréscimo da concorrência, fizeram despontar uma série de investigações e pesquisas ligadas à satisfação e ao bemestar do colaborador na empresa. Dentre essas pesquisas, a QVT - Qualidade de Vida no Trabalho, que ocorreu na década de cinquenta e vem se aperfeiçoando até os dias atuais. A sugestão sobre a qualidade de vida no trabalho surgiu, exatamente, para fazer confronto com as consequências danosas do taylorismo, que envolve o cuidado com a satisfação das carências dos indivíduos e a humanização dos vínculos de trabalho (VALENTI, SILVA, 1995). Segundo Walton (1994), a qualidade de vida no trabalho é a atenção dirigida a certos valores concernentes ao ser humano e ao meio que o cerca, impelidos a segundo plano pelo pensamento industrial em detrimento do progresso da tecnologia, do volume de produção da indústria e do processo de desenvolvimento da economia. Mesmo aceitando interpretações diversas e múltiplas avaliações no transcorrer dos anos, a razão de ser da qualidade de vida no trabalho continua sendo a mesma quer seja tornar possível ou levar satisfação e bem-estar ao colaborador na realização de suas atividades nas empresas. Com as constantes transformações nas empresas, a atividade profissional tem vivido com esse percurso evolutivo. Primeiro, os colaboradores eram encarados, em grande parte, como mão-de-obra, simplesmente um desenho do que possuíam de mais importante. Atualmente, sua condição se torna essencial para a empresa. O ser humano, dotado de grande potencial intelectual, de raciocínio e de modificar seu conhecimento, torna-se imprescindível para a continuidade de sua existência, nessa nova era, chamada a era do conhecimento. Assim sendo, é necessário que o cooperador encontra-se em condições de desempenho na organização da atividade profissional. Segundo Rodrigues (1999), não existe empreendimento com qualidade onde antes não exista qualidade com os seus funcionários. O desempenho destes é a unidade fundamental para que aconteça o desempenho, produtividade e qualidade na empresa. Assim, a empresa precisa empenhar-se para satisfazer as carências do ser humano para que possa alcançar as carências da empresa.

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É evidente que a qualidade de vida no trabalho tornou-se um pensamento predominante e progressivo em nossa atualidade. A abordagem da qualidade de vida no trabalho tem incidido como opção de alguns estudiosos de resolver ou diminuir os conflitos que prejudicam o desempenho produtivo do empregado, juntando o cuidado com a satisfação das necessidades dos funcionários e a humanização das conexões de trabalho, tendo como consequência, o crescimento e a riqueza da própria empresa que participa de um conjunto maior da sociedade. O mais importante foco da gestão precisa ser a garantia máxima de riqueza ao empregador, respectivamente, o máximo de riqueza ao empregado. Um grande erro é levar em conta que a única necessidade do colaborador é o salário e nada mais. Segundo Maslow (1975), as necessidades vão se tornando mais apuradas à medida que o colaborador agrada necessidades mais básicas, então novas carências serão determinadas, quais sejam auto-realização, estima e estabilidade que são levadas em conta pela Teoria da Gestão Científica. Nos dias atuais, há uma disposição nas entidades do Estado no sentido de regulamentar a relações de trabalho através das Delegacias Regionais do Trabalho, do Ministério do Trabalho e da Justiça Trabalhista com a intenção de aprimorar as condições de trabalho nas organizações do país. Assim, os instrumentos de fiscalização citados, estão colocando em primeiro lugar de forma fundamental os programas preparados pelo Ministério do Trabalho, objetivando o benefício das condições do meio ambiente de trabalho, permitindo assim, uma ascensão na qualidade de vida dos funcionários. A Justiça do Trabalho, objetivando o cumprimento dos direitos citados na Consolidação das Leis trabalhistas (CLT) e leis, afora do esforço direcionado do Ministério do Trabalho, através de seus funcionários de fisco regionais, vem tornando mais forte a fiscalização, confiando às essas circunstâncias, um destaque nunca observado antes.  Assim, para as organizações que ainda não se adaptaram totalmente às normas reguladoras, a primeira providência para concretizar tal ajustamento, é constituir a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes - CIPA. Esta comissão, muito conhecida e citada no cenário trabalhista, em muitos fatos não está de acordo totalmente com as regras da Norma Regulamentadora nº 05 do Ministério do Trabalho.  Na finalidade de resguardar e prevenir o bem-estar dos trabalhadores, o Ministério através da NR 5, estabeleceu as especificações para que se institua a CIPA. De acordo com o que consta na NR, o objetivo da CIPA é estabelecer um conjunto de processos que visam integrar os funcionários, com o objetivo de promover atitudes que levem a prevenção de acidentes e doenças que aparecem como consequência de ambientes insalubres de trabalho. Completa-se que, a presença de um superior padrão de qualidade de vida para o trabalho, determinará como consequência a exultação dos funcionários, que vão se sentir mais motivados a empregar todo o seu potencial a favor da organização, induzindo de fato ao lucro o empregador que exerce com suas responsabilidades trabalhistas.

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Segurança no trabalho A Segurança do Trabalho é determinada por normas e leis. No Brasil a Legislação de Segurança do Trabalho compõe-se de Normas Regulamentadoras, Normas Regulamentadoras Rurais, outras leis integrantes, como portarias e decretos e também as convenções Internacionais da Organização Internacional do Trabalho, sancionadas pelo Brasil. O artigo 7º incisos XXII, XXVII, XIV entre outros, da Constituição Federal, possui como objetivo “reduzir os acidentes do trabalho, ou quiçá, dar uma maior proteção e segurança aos trabalhadores”. Segundo estatística oficial da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o Brasil é considerado, mundialmente, como um dos recordistas em acidentes do trabalho, encontra-se em 10º lugar, no ranking mundial, posicionando-se atrás apenas de países de terceiro mundo, como Indonésia, Turquia, África do Sul, Burundi, Coréia do Sul, Guatemala, Zimbábue, Costa Rica e Índia. O sucesso empresarial passa pelo estabelecimento e propriedade dos processos produtivos. A segurança empresarial não diferencia em exigência das demais esferas neste quesito e precisa de um planejamento específico, ordenado por profissional qualificado e competente que pratique as técnicas de planejamento, procurando o estabelecimento de processos que consintam os objetivos de maximização dos lucros e minimização dos riscos. A garantia nas empresas para efeito de planejamento é abordada como uma atividade imperativa à qualidade total dos negócios da organização, discutindo a segurança empresarial sob o foco da segurança dos negócios, idealizando segurança como atividade partícipe de todos os momentos empresariais, ou seja, procurada tanto para os ativos tangíveis quanto para os intangíveis da organização. O Planejamento está amparado na organização das empresas, sendo que a evidência básica está na administração da segurança dos negócios e na participação da tecnologia de segurança ao alcance da qualidade total organizacional. Hoje, a segurança empresarial tem um aspecto maior em termos de aplicabilidade, pois a empresa precisa saber com exatidão seu grau de risco e sua real relação custo x benefício, com a intenção de realizar investimentos harmônicos. A segurança empresarial compreende a totalidade da empresa e, consequentemente, tem como segmentos de desempenho: a) A proteção física das pessoas e materiais; b) A preservação de elementos patrimoniais; c) Combate a incêndios; d) Prevenção de acidentes nos sistemas logísticos e operacionais, a preservação da confidencialidade de ativos tangíveis e intangíveis, o planejamento de contingências, investigações e proteção da informação.

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A Segurança do trabalho pode ser percebida como o conjunto de medidas que são tomadas, com o objetivo de minimizar os acidentes de trabalho, doenças ocupacionais, e também proteger a integridade e a capacidade de trabalho do trabalhador. A Segurança do Trabalho estuda diversas disciplinas como mostra o quadro (vide quadro 1), abaixo: Quadro 1 – Disciplinas da Segurança do Trabalho Introdução à Segurança; Higiene e Medicina do Trabalho; Prevenção e Controle de Riscos em Máquinas, Equipamentos e Instalações; Psicologia na Engenharia de Segurança; Comunicação e Treinamento; Administração aplicada à Engenharia de Segurança; O Ambiente de trabalho; Doenças do Trabalho; O quadro de Segurança do Trabalho de uma empresa, compõe-se de uma equipe multidisciplinar composta por: Técnico de Segurança do Trabalho; Engenheiro de Segurança do Trabalho; Médico do Trabalho; e Enfermeiro do Trabalho. Fonte: Editado pelo autor

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Estes profissionais formam o S.E.S.M.T. - Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho. Também os empregados da empresa compõem a CIPA - Comissão Interna de Prevenção de Acidentes, que tem como objetivo o cuidado de acidentes e doenças em decorrência do trabalho, de maneira a tornar compatível e permanente o trabalho, preservando assim a vida e promovendo a saúde do trabalhador. Compete à CIPA averiguar os acidentes e agenciar e divulgar o cuidado pela observância das normas de segurança, bem como a promoção da Semana Interna de Prevenção de Acidentes (SIPAT). Aos trabalhadores da empresa incumbe indicar à CIPA circunstâncias de risco, oferecer sugestões e observar as sugestões quanto à prevenção de acidentes, usando os equipamentos de proteção individual (EPIs) e de proteção coletiva (EPCs) providos pelo empregador, bem como submeter-

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se a exames médicos previstos em Normas Regulamentadoras, quando aplicável. A CIPA não trabalha sozinha. O seu mais importante papel é o de formar uma relação de diálogo e conscientização, de maneira criativa e participativa, entre gerentes e cooperadores em relação à forma como os trabalhos são desenvolvidos, objetivando sempre melhorar as condições de trabalho, buscando a humanização do trabalho. Conforme prevê o art. 120 da Lei nº 8.213/91: Nos casos de negligência quanto às normas padrão de segurança e higiene do trabalho indicadas para a proteção individual e coletiva, a Previdência Social proporá ação regressiva contra os responsáveis.

Normas de Segurança No Brasil, o assunto vem sendo discutido desde a Constituição de 1934, onde no seu artigo 121, §1º, h, estava assegurado como direito do trabalhador, “a assistência médica e sanitária”. Mencionava a Constituição de 1937, no seu artigo 137, l, como norma a ser ressaltada pela legislação do trabalho, “a assistência médica e higiênica a ser dada ao trabalhador”. A Constituição de 1946, artigo 157, VIII, aludia que os trabalhadores teriam direito à higiene e segurança do trabalho. A Lei nº 5.161/66 mencionou a Fundação Centro de Segurança, Higiene e Medicina do Trabalho (FUNDACENTRO) para averiguação, pesquisa e assistência às empresas, com a intenção de aprimorar a prevenção dos acidentes do trabalho. A Constituição de 1967 reconheceu, o direito dos trabalhadores à higiene e segurança no trabalho (artigo 158, IX). A Emenda Constitucional nº 1, de 1969, repetiu a mesma disposição (artigo 165, IX). A CLT passou por uma nova redação nos seus artigos 154 a 201 originada pela Lei nº 6.514, de 22/12/1977, passando então a utilizar a expressão “segurança e medicina do trabalho’, e não mais ‘higiene e segurança do trabalho”. A Portaria nº 3.214, de 08/06/1978, declarou as atividades insalubres e perigosas ao trabalhador. A atualizada Constituição, promulgada em 05/10/1988, modificou a orientação das normas constitucionais anteriores, especificando em seu artigo 7º, XXII que: “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: XXII- redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.”

Com apoio no artigo 200 da CLT, foi despachada a Portaria nº 3.214/78, que aborda de uma série de normas complementares no que se refere a condições de segurança no trabalho. A Portaria nº 3.067/88 dispõe sobre as NR’s no âmbito rural. São as chamadas NRR’s.

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Segundo Arnaldo Süssekind, a insalubridade assim se conceitua: Em face do estatuído nos arts. 189 e 190 da CLT, há insalubridade, geradora do direito ao adicional de natureza salarial, quando o empregado sofre a agressão de agentes físicos ou químicos acima dos níveis de tolerância fixados pelo Ministério do Trabalho, em razão da natureza e da intensidade do agente e do tempo de exposição aos seus efeitos (critério quantitativo); ou, ainda, de agentes biológicos relacionados pelo mesmo órgão (critério qualitativo). (SUSSEKIND, 2002, p.485).

O quadro de atividades e operações insalubres será aprovado pelo Ministério do Trabalho. Assim, a NR 15 especifica as condições de insalubridade. Referente a periculosidade, são avaliadas atividades ou operações perigosas as que conservem o trabalhador em contato constante com produtos inflamáveis ou explosivos, em condições de risco acentuado, como ordena o artigo 193 da CLT. A Lei 7.369/85 também distinguiu o contato do trabalhador com energia elétrica, como atividade perigosa, tentando assim, também, o direito ao adicional de periculosidade. É importante observar, quanto ao adicional de insalubridade e de periculosidade, que o empregado não poderá, simultaneamente, fazer jus aos dois, precisando obrigatoriamente optar por um deles. Percebe-se por trabalho penoso aqueles realizados em minas de carvão, transporte e entrega de carvão, limpeza de chaminés, trabalhos com grafite e cola, preparação de fertilizantes etc. Mesmo não existindo norma legal sobre o tema, o inciso XXIII do artigo 7º da Constituição Federal / 88, prevê o adicional de remuneração para atividades penosas.

Consolidação das Leis do Trabalho No Brasil, a C.L.T., que começou a vigorar em 1943, solidificou a legislação esparsa existente na época e colocou arranjos que eram produto da necessidade de renovação do país. A obrigação de se regular as relações trabalhistas surgiu diante de um liberalismo que botou o Estado o menos intervencionista possível, onde os ideais de liberdade e igualdade adotavam papel tão principal que caíam à possibilidade de se proteger a classe trabalhadora – se todos são livres e iguais vale o que acertarem. A partir da C.L.T. difundiram-se universalidades de leis trabalhistas consagrando direitos a todas as categorias, que certificaram ao empregado o “mínimo” de garantia. A C.L.T., de fato, com todos os seus 922 artigos juntamente com a Constituição Federal de 1988 e outras leis, afiançam efetivamente direitos básicos ao trabalhador e que foram aos poucos conquistados na medida em que os Direitos Sociais foram colocados como sendo mais importantes que a lucratividade capitalista. Entre os direitos básicos do trabalhador podemos enumerar os seguintes (vide quadro 2):

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Quadro 2 – Direitos básicos do trabalhador. 1. Carteira assinada e com as relativas anotações (art.13 C.L.T.); 2. Jornada de trabalho não maior que oito horas diárias e quarenta e quatro semanais (art 58 C.L.T. e art 7º C.F.); 3. Salário mínimo (art 76 C.L.T. e art. 7º C.F.); 4. Férias uma vez por ano sem prejuízo da remuneração e ainda acrescida de um terço (art 129 da C.L.T. e art 7º C.F.); 5. Repouso semanal remunerado (art 7º C.F.); 6. Décimo terceiro salário (art 7º C.F.); 7. F.G.T.S. (art 7º C.F.); Fonte: Editado pelo autor

São esses alguns dos direitos mínimos em uma ocorrência normal de trabalho, pois existem outras situações que se pode chamar de especiais, como trabalho noturno, trabalho insalubre, escalas de revezamento, entre outras, que precisam ser apreciadas à luz de outra realidade, pois não se pode conceber que aqueles que trabalham durante a noite ou aqueles que trabalham no subsolo, não sejam alvo de um tratamento individualizado. Discute-se muito a questão das horas extras. Essa é uma questão que nem deveria ser questionada, já que não mais vivemos em uma política escravocrata, pois se o empregado tem uma carga horária de oito horas diárias, é preciso que o empregador pague pelas horas excedentes, caso as mesmas existam. Da mesma forma mencionamos a licença maternidade e a estabilidade da gestante como importantes conquistas da mulher, sempre vítima de discriminação no mercado de trabalho. Os direitos aqui abordados divulgam uma insignificante garantia ao operário, além disso, a legislação também protege o empregador, como na demissão justificada. Diante do exposto, podemos afirmar que a intitulada super-proteção da Legislação Trabalhista tão recriminada pelos empregadores e até mesmo apontada como causa da crise do desemprego, nada mais é do que falso argumento na tentativa de obter redução de direitos trabalhistas e consequentemente o aumento da lucratividade capitalista.

Medidas de Prevenção contra acidentes de trabalho Tendo em vista que as causas de acidentes se devem a falhas humanas e falhas materiais a prevenção de acidentes deve visar: • Eliminação da prática de atos inseguros. •Eliminação das condições inseguras.

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Os primeiros poderão ser eliminados inicialmente através de seleção profissional e exames médicos adequados e posteriormente através da educação e treinamento e as segundas, através de medidas de engenharia que garantam a remoção das condições de insegurança no trabalho (SÜSSEKIND, 2002). Nesse particular, convém lembrar da “Regra EDE”, relativa aos problemas de segurança do trabalho. “E” - (engenharia, medidas de ordem técnicas); “D” - (disciplina, medidas que visam que os métodos de trabalho seguro sejam devidamente observados); “E” - (educação, o ensino da segurança a todo o pessoal), deve convencer a administração a corrigir as condições inseguras reveladas pela “engenharia”, instalar e subvencionar um programa de segurança, treinar os trabalhadores, obter seu apoio para o programa e conquistar a cooperação de todos os supervisores. Por culpa e dolo dos empregadores que não se preocupam com as medidas de segurança prevista na legislação pátria. Veja-se: “INDENIZAÇÃO - Acidente do trabalho - Responsabilidade civil do empregador que decorre do descumprimento de normas de saúde e segurança do trabalho e não do risco da atividade por ele criada. Ementa oficial: A responsabilidade civil do empregador não decorre, automaticamente, do risco da atividade por ele criada, mas do descumprimento das normas de saúde e segurança do trabalho, que são inerentes ao contrato de trabalho ou relação de emprego. DANO MORAL - Indenização. Cabimento quando haja lesão a direitos fundamentais capaz de causar sofrimento. Dispensabilidade do prejuízo estético ou dano material. Possibilidade da cumulação com danos materiais. (2º TACIVIL - 5ª Câm.; Ap. c/ Rev. nº 482.705-0/0; Rel. Juiz Laerte Sampaio; j. 25.03.1997; v.u.)” RT 745/285. “RESPONSABILIDADE CIVIL - Acidente do trabalho - Testemunhas mendazes (servis) - Remessa dos autos ao MP. Caracteriza a culpa do empregador ao permitir que o empregado, sob a sua direta fiscalização, realize tarefas para as quais não está habilitado ou contrarie normas expressas de segurança. Entre os deveres do empregador inclui-se, também, a fiscalização da segurança do empregado. (2º TACIVIL - 7º Câm.; Ap. c/ Rev. nº 483.149-0/7; Rel. Juiz Willian Campos; j. 15.04.1997; v.u.)” RJ 239/70

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Para que a composição de todas as ofensas à liberdade do trabalhador, que não são poucas, se dê através da indenização por danos morais, fica a opção para o trabalhador de pedir a reintegração ao emprego ou indenização em dobro, isso sem prejuízo do dano moral (BELMONTE, 2002).

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Conclusão Acidente do Trabalho pode ser definido como aquele que ocorre pelo exercício do trabalho a serviço da empresa ou pelo exercício do trabalho dos segurados especiais, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, a perda ou redução da capacidade para o trabalho permanente ou temporária (BRASIL, 2007). Concluiu-se que é necessário corrigir os erros praticados pelos trabalhadores em sua jornada de trabalho, para que possa existir por parte de seus administradores consciência desses riscos, se fazendo necessário corrigir erros de postura, de segurança, para que assim, concomitantemente o aumento de cuidados com a saúde do trabalhador não venha a gerar nenhum tipo de problema relacionada as Normas de Segurança no trabalho. Segundo relatos de Oliveira (2001), as mudanças sócio-econômicasculturais e as inovações tecnológicas trouxeram grandes alterações no modo de trabalho e consequentemente induziu ao adoecimento dos trabalhadores, que se tornaram mais vulneráveis a acidentes graves com multiplicação de doenças ocupacionais.

Referências bibliográficas BELMONTE, Alexandre Agra. Identificação, tutela e reparação dos danos morais trabalhistas. Renovar, 2. ed., RJ – SP, 2002. BRASIL. Anuário Estatístico de acidentes de trabalho: AEAT 2007. Brasília: MTE/MPS, 2007. CHIAVENATO, Idalberto. Teoria Geral da Administração. 5. ed. Campus, Rio de Janeiro, 2000. FERNANDES, Eda. Qualidade de Vida no Trabalho: como medir para melhorar. Salvador: Casa da Qualidade, 1996. MELLO, Rubens da Silva. QVT – Qualidade de Vida no Trabalho: Realidade ou Modismo. São Paulo: Revista Relações Humanas. 2001. MINAYO, M. C. S., 1991. Interdisciplinaridade: uma questão que atravessa o saber, o poder e o mundo vivido. Medicina, 24:70-77. RODRIGUES, Marcus V. C.. Qualidade de Vida no Trabalho: evolução e análise no nível gerencial. Petrópolis: Editora Vozes, 1999. SÜSSEKIND, Arnaldo. Curso de Direito do Trabalho. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p.485. VALENTI , Geni D., SILVA, Regina S. Trabalho criativo e ética: o início da nova história. Revista de administração de empresas, São Paulo: FGV, v.35, n.1, p.22-29, 1995. WALTON, Richard E. Tecnologia de Informação: O uso de TI pelas empresas que obtém vantagem competitiva. São Paulo: Ed. Atlas, 1994.

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A necessária releitura do direito do acesso à justiça e política do consenso Brener Duque Belozi1 Resumo

A chamada crise no Judiciário, tema tão debatido nos círculos acadêmicos e na própria mídia, vem despertando a atenção para um problema já antigo, porém pouco estudado, qual seja o acesso à Justiça. A Constituição Federal de 1988 assegurou a todo cidadão o acesso formal ao Judiciário, consagrando o direito à assistência jurídica e tornando a Defensoria Pública instituição essencial à função jurisdicional do Estado. Em consequência, tivemos uma verdadeira explosão de litigiosidade, inviabilizando uma prestação jurisdicional adequada e em tempo razoável. Daí a necessidade de se evitar o estímulo dessa cultura do conflito e o fomento da política do consenso, através da utilização dos equivalentes jurisdicionais na resolução dos conflitos. O Judiciário passaria, então, a atuar de maneira subsidiária, podendo, assim, trazer aos demandantes uma decisão eficaz e em tempo razoável. Palavras-chave: Acesso à Justiça; Constituição cidadã; Explosão de litigiosidade; Cultura do conflito; Política do consenso; Equivalentes jurisdicionais. Abstract The so-called crisis in the Judiciary, much debated subject in academic circles and in the media, is attracting attention to a long-standing problem, but little studied - the access to Justice. The Federal Constitution of 1988 guaranteed to every citizen the formal access to the courts, with the right to legal assistance and making the Public Defender an essential institution to the jurisdictional function of the State. As a result, we had a litigation explosion, preventing adequate and reasonable time adjudication. We need to avoid this culture of conflict and promote the consensus politics, by using the judicial equivalent in conflict resolution. The Judiciary would act in a manner subsidiary and bring an effective decision and in reasonable time. Keywords: Access to justice; Citizen Constitution; Litigation explosion; The conflict culture; Consensus politics; Jurisdictional equivalent. 1 Advogado; Graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora; Pós-graduado em Direito Empresarial e Econômico pela UFJF; Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela UNIPAC; Professor de Processo Civil e Direito do Consumidor na FACSUM-JF – Faculdade do Sudeste Mineiro; Professor-orientador do Núcleo de Prática Jurídica da FACSUM-JF.

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A necessária releitura do direito do acesso à justiça e política do consenso

Introdução Vivemos em uma verdadeira era de conflitos, em que a relação humana é deixada de lado em virtude da acirrada concorrência nas relações sociais. Em seu livro Raízes do Brasil, o escritor Sérgio Buarque de Holanda nos traz uma nítida ideia de como o processo evolutivo influenciou na transformação das relações sociais, estimulando, ainda que não intencionalmente, uma “cultura do conflito”. Em certa passagem do aludido livro, o autor traz um breve comparativo entre as antigas corporações e as modernas indústrias. Nas primeiras, o mestre e seus aprendizes formavam uma só família, cujos membros se sujeitavam a uma hierarquia natural, mas que partilhavam das mesmas privações e confortos. Já na era industrial, há uma clara distinção entre empregador e empregados, estimulando um antagonismo de classes.2 No exemplo acima citado, é de fácil visualização os desdobramentos de tal segregação. De um lado, estarão os empregadores buscando incessantemente o aumento de seu lucro e, de outro, os empregados buscando resguardar seus direitos. Ou seja, as divergências e os antagonismos se tornam mais evidentes e, com isso, tem-se, inevitavelmente o surgimento dos conflitos. As relações de afeto dão lugar à concorrência entre os cidadãos. Segundo Sérgio Buarque de Holanda A crise que acompanhou a transição do trabalho industrial aqui assinalada pode dar uma ideia pálida das dificuldades que se opõem à abolição da velha ordem familiar por outra, em que as instituições e as relações sociais, fundadas em princípios abstratos, tendem a substituirse aos lações de afeto e de sangue.3

E com o aumento da população e a consequente complexidade das relações sociais, a litigiosidade se acentuou ainda mais. Segundo a professora alemã Ingeborg Maus, numa sociedade supostamente “órfã” de referenciais de moralidade pública, o Judiciário passa a exercer a imagem paterna. Segundo Maus À primeira vista, o crescimento no século XX do “Terceiro Poder”, no qual se reconhecem todas as características tradicionais da imagem do pai, parece opor-se essa análise de Marcuse. Não se trata simplesmente da ampliação objetiva das funções do Judiciário, com o aumento do poder de interpretação, a crescente disposição para litigar ou, em especial, a consolidação do controle jurisdicional sobre o legislador, principalmente no continente europeu após as duas guerras mundiais. Acompanha essa evolução uma representação da Justiça por parte da

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2 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Schwarcz S.A.. 2014. p.170. 3 Ibidem, p. 171.

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população que ganha contornos de veneração religiosa.4 Nota-se a mudança das referências entre as instâncias de formação do sujeito, que passa da família para a sociedade e, logo, após ao representante do Estado, quanto à escolha de uma decisão moralmente justa. Nas lições de Maus A Justiça exigida pelo preceito de igualdade é, para Kaufmann, muito mais uma ordem superior que se apresenta tanto para a ética como para a “consciência jurídica”, revelada mediante o “receptáculo puro” que é o juiz. A “excepcional personalidade de jurista” criada por uma “formação ética” atua como indício da existência de uma ordem de valores justa: “uma decisão justa só pode ser tomada por uma personalidade justa”. Nesta fuga da complexidade por parte de uma sociedade na qual a objetividade dos valores está em questão não é difícil reconhecer o clássico modelo de transferência do superego. A eliminação de discussões e procedimentos no processo de construção política do consenso, no qual podem ser encontradas normas e concepções de valores sociais, é alcançada por meio da centralização da “consciência” social na Justiça.5

Torna-se nítido o enfraquecimento de outros instrumentos de controle social, como a religião e os costumes tradicionais, passando o direito a ser visto como a única “salvação”. Assim, o Judiciário assume o papel central em todas as discussões e divergências sociais, sejam individuais ou de caráter coletivo. O resultado desse panorama não poderia ser outro senão a hipertrofia da função de julgar do Estado. Tomemos como exemplo as relações consumeristas. Hoje, a atuação dos órgãos de defesa do consumidor se dá de forma ostensiva, levando ao conhecimento da população os direitos do consumidor e oportunizando a sua defesa. Todo cidadão, ainda que com menor grau de instrução, tem ciência dos direitos básicos do consumidor e sabe como recorrer ao Judiciário, através dos Juizados Especiais, para a efetivação desses direitos que porventura sejam violados. Outro exemplo que serve para ilustrar claramente nosso pensamento são as demandas trabalhistas. Ora, é indiscutível a atuação cada vez mais presente dos sindicatos dos empregados dentro das próprias empresas, no sentido de conscientizar os trabalhadores de seus direitos. Vale lembrar que no âmbito da Justiça do Trabalho, ao menos em primeira instância, dispensa-se o jus postulandi, podendo o empregado efetuar diretamente sua reclamação trabalhista sem a orientação de um advogado. E o resultado dessa situação já é conhecido por todos: o acúmulo de demandas no Judiciário que, lado outro, não possui estrutura para absorver tamanho volume de serviço. 4 MAUS, Ingenborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Trad. Martonio MontÁlverne Barreto Lima e Paulo Antonio de M. Albuquerque. Revista Novos Estudos, CEBRAP. São Paulo, n.58, p.158. nov. 2000. 5 Ibidem, p.186

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Mister ressaltar que não estamos a defender a ignorância e o desrespeito aos direitos dos cidadãos e trabalhadores. A grande questão é que falta orientação no sentido de demonstrar que esses mesmos direitos podem ser efetivados e resguardados através de outros meios senão os judiciais. Meios há de se ter a composição de interesses divergentes sem que para tanto haja a necessidade de instauração e judicialização do conflito propriamente dito. Porém, o que se observa nos dias atuais, ao menos no panorama jurídico brasileiro, é que a cultura do conflito é estimulada nos bancos acadêmicos, nos meios de comunicação e, até mesmo, pela grande maioria dos operadores do direito. O resultado dessa atitude não poderia ser outro, senão o já exposto problema da morosidade das decisões judiciais. Os juízes, assim como os demais operadores do direito, passam, então, a se pautar não na qualitativa efetivação dos direitos, mas na célere e economicista resolução de casos, que se tornam infinitamente numerosos e repetitivos. Exemplo disso é a própria exposição de motivos do novo Código de Processo Civil na qual o Ministro Luiz Fux afirma O Brasil clama por um processo mais ágil, capaz de dotar o país de um instrumento que possa enfrentar de forma mais célere, sensível e efetiva, as misérias e as aberrações que passam pela Ponte da Justiça.

Ora, a preocupação exclusiva com a adoção de procedimentos judiciais mais céleres não resolverá esse mau maior que assola o Judiciário. O que se deve buscar é justamente a mudança de pensamento da sociedade, afastando-a dessa cultura do conflito, já ultrapassada e ineficaz há tempos, e aproximá-la da política do consenso.

A promulgação da Constituição de 1988 e seus reflexos sobre a explosão da litigiosidade no Judiciário brasileiro Após um longo período ditatorial, tivemos a promulgação da Carta Magna de 1988, a qual foi apelidada de Constituição Cidadã, por ser extremamente prolixa e tratar de praticamente todos os direitos civis e sociais do cidadão. A julgar pelo seu apelido, o Brasil havia alcançado a plenitude da democracia, cem anos após a proclamação da República. Porém, como adverte José Murilo de Carvalho Ahora bien, como siempre sucede em nuestra América, es grande la distancia entre la ley y la realidade. Los derechos estabelecidos em la ley no siempre están garantizados em la prática. Además, em el entusiasmo de la redemocratización se olvido que la democracia por sí misma no garantiza ni la buena administración ni el progresso económico. Esas dos realidades

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se impusieron pronto y transformaron, radicalmente y também em poco tempo, el estado de ánimo del país.6

Porém, o Estado brasileiro não havia se estruturado para responder a esses anseios. A realidade da população era completamente adversa. Em 1989, segundo pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 18 milhões de pessoas não possuíam energia elétrica em suas casas e 22 milhões não tinham sequer rede de esgoto e saneamento. Os índices de desnutrição eram alarmantes. Cerca de 41% da população, conforme dados do Banco Mundial em 1993, viviam abaixo do nível da pobreza. Já no campo da educação, em 1990, segundo o IBGE, 20% da população de sete anos de idade ou mais não sabiam ler e nem escrever. No nordeste esse índice subia para 39%. No campo de mercado de trabalho os dados também eram alarmantes. O índice de trabalhadores sem carteira de trabalho assinado era alarmante.7 Esse panorama nos leva a concluir que, mesmo diante da promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (Constituição cidadã), a realidade da sociedade brasileira era completamente adversa à concretização e efetivação dos direitos fundamentais nela previstos. Porém, segundo José Murilo de Carvalho Se democratizó el sistema político, crecieron los índices de la alfabatización, se multiplicó em el pueblo la capacidad de organizarse por medio de los sindicatos, de las sociedades profesionales y de las asociaciones de vecinos; la Iglesia se dedicó a organizar comunidades populares; se multiplicaron las organizaciones no gubernamentales, basadas em modelos de los países desarrollados.8

Nessa mesma linha de raciocínio, Paulo Cézar Pinheiro Carneiro afirma que, acompanhando essa excessiva normatização pela Constituição de 1988, tivemos o surgimento de diversos movimentos sociais, a exemplo da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) e Organizações Não-Governamentais, as quais buscavam (exigiam) a efetivação desses direito fundamentais e sociais previstos na Carta Magna9. Diversos foram os mecanismos previstos na Constituição para a satisfação desses direitos, a exemplo do alargamento do direito à assistência judiciária aos necessitados (art. 5º, LXXIV), previsão de criação dos Juizados Especiais, da ação civil pública (art. 129, III), reestruturação do Ministério Público e da 6 CARVALHO, José Murilo de. Desenvolvimento de la ciudadanía en Brasil. México, D.F.: Fondo de Cultura Econômica. 1995. p.148 7 Ibidem. p.152 8 Ibidem. p.155 9 CARNEIRO, Paulo Cézar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cíveis e Ação Civil Pública – Uma nova sistematização da Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense. 2. ed. 2000.p.44.

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Defensoria Pública, sendo esta última consagrada como instituição essencial à função jurisdicional do Estado.10 Assim, tem-se, inevitavelmente, a busca incansável pelo Judiciário. Segundo Rodolfo de Camargo Mancuso Historicamente, a assunção, pelo Estado, da regulação dos conflitos e reivindicações existentes ao interno da sociedade foi crescendo à medida que se fortaleciam as bases do Estado de Direito e, em paralelo, ia se firmando o ideário em torno dos direitos fundamentais da pessoa humana, mormente sob a égide da chamada segund geração dos direitos fundamentais, a saber, a das liberdades positivas, pelas quais a sociedade acumula créditos em face do Estado (à educação, à saúde, à segurança, à sadia qualidade de vida) e ele, a seu turno, se encarrega de provê-los, enquanto arrecadador dos tributos e gestor do interesse geral.11 O resultado não poderia ser outro, senão a explosão da litigiosidade. As consequências desse fenômeno são desastrosas. Segundo Mancuso, em matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo, de 12.02.2007, cad. B-3, o Brasil, à época, era campeão mundial em ações trabalhistas, com cerca de 2 milhões de processos ao ano. Apenas a título de comparação, nos Estados Unidos o número de reclamatória trabalhistas não passava de 75 mil e na França, 70 mil. Para cada R$1.000,00 julgados, a Justiça do Trabalho gastava cerca de R$1.300,00.12 Mesmo diante desse cenário, nota-se entre nós (ainda) uma forte resistência à auto-composição dos conflitos, ou à sua resolução em instâncias parajuridicionais. Porém, somente mediante a mudança dessa mentalidade, é que a chamada crise da justiça encontrará uma possível solução.

Política do consenso, equivalentes jurisdicionais e as práticas colaborativas Como exposto, diante do aumento da complexidade social e da saturação do Judiciário, tendo em vista sua impossibilidade física de absorver tamanho volume de demandas, o incentivo da política do consenso se torna indispensável. Seguindo essa ideia, leciona o processualista Antônio Pereira Gaio Junior Em verdade, somos todos nós depositários de um prestação jurisdicional de melhor qualidade, mas não se vê, de muito, o digitado interesse em reinventar o próprio olhar sobre ela. E isso, a nosso ver, tem como fundamental ator em tal guinada racional as Faculdades de Direito, hoje - e como sempre – voltadas à pedagogia do conflito e não do consenso, carecendo, igualmente, de atividades intelectivas vetorizadas para a reflexão da crise judicante deste país, propiciando que a cultura bélica da razão prática seja palco para salvação de todos os males, atrofiando-se ainda mais o tão decantado prazo

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10 Ibidem. p.48-50. 11 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009. p.48. 12 Ibidem. p.46

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razoável para a busca do bem da vida – ex vi dos “irrisórios” 96 milhões de processos ativos na justiça brasileira – e mais: objetando a que os futuros profissionais do foro e da reflexão crítica do Direito, possam ter com “olhos de ver”, interesse no aperfeiçoamento da produção legislativa que está a bater em nossas portas, como o é o NCPC. Notadamente, sabemos que os problemas são ainda mais agudos e não param por aqui, mas o que nos salta aos olhos é a tamanha crença de que mudar o ordenamento possa ser o fim, dissidiando-se da específica necessidade de aprimorar o elemento humano em tal empreendimento, consolidador de quaisquer implementações significativas de um futuro melhor no campo complexo das relações intersubjetivas, já que o Processo, como o Direito, tem como escopo tornar as pessoas mais felizes ou menos infelizes.13

A cultura do conflito, como já visto linhas acima, está profundamente arraigada em nossa sociedade, não sendo incomum o estímulo desenfreado pela lide judicial sem qualquer tentativa prévia de conciliação. Tomemos um exemplo simples, mas recorrente, qual seja a inscrição indevida do nome do consumidor em cadastros restritivos de crédito. Diante da posição já pacificada da jurisprudência no sentido de que tal prática traz a presunção de ocorrência de danos morais, é de se ver cada vez mais cidadãos “torcendo” para que tenham seus nomes inscritos indevidamente em tais cadastros. Não há qualquer interesse da parte “devedora” entrar em contato com o suposto “credor” para resolver o aludido equívoco de forma pacífica e extrajudicial. Em que pese a garantia de acesso à Justiça (art. 5º, XXXV, CRFB 88), o Estado brasileiro não revelou empenho e proficiência em dotá-las dos meios pessoais e materiais que lhe permitissem produzir um resultado final de boa qualidade, ou seja: uma resposta jurisdicional dotada de cinco atributos: justa (equânime); jurídica (tecnicamente consistente e fundamentada); econômica (equilíbrio entre custo e benefício); tempestiva (a exigência da razoável duração do processo – CF, art. 5º, LXXVIII: EC45/2004); razoavelmente previsível (o antônimo da loteria jurídica, a que se referia o Min. Victor Nunes Leal, nos anos sessenta do século passado, ao propugnar pela Súmula do STF).14

Tem-se, assim, a busca por meios “alternativos”, para que as lides possam ser compostas com justiça, mesmo que fora e além da estrutura clássica do processo judicial. Já se vislumbra, ainda que timidamente, o despertar da sociedade para a necessidade de uma nova postura frente ao problema aqui exposto, optando-se pelos equivalentes jurisdicionais. 13 JUNIOR, Antônio Pereira Gaio. O ensino, o ‘ser’ e o Novo CPC. http://www.gaiojr.adv. br/artigos/o_ensino_o_ser_e_o_novo_cpc 14 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009. p.52.

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A título de exemplo, tem-se o instituto da arbitragem. Trata-se de um método propício a solução de litígios que envolvam direitos transacionáveis, de natureza tipicamente processual, buscado, principalmente, pelas grandes empresas e multinacionais. De acordo com dados da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comercio Internacional (CCI), em 2007, o Brasil se tornou o maior usuário da arbitragem na América Latina e já se encontrava em quarto lugar no mundo (atrás de EUA, Franca e Alemanha). Regulamentada pela Lei 9.307/96, através dela é facultado às partes elegerem um terceiro para que decida sobre presentes ou futuras questões litigiosas que envolvam direitos transacionáveis, evitando-se, assim, longas e intermináveis demandas judiciais. Cumpre ressaltar que esse descontentamento com a morosidade (ineficiência) do Judiciário é verificado não só no Brasil. Conforme narra o jurista norte americano Lawrence R. Maxwell Jr., em artigo intitulado “The Development of Collaborative Law”15, por volta dos anos 80, o advogado de Minnesota, Stuart Webb, após anos praticando a advocacia familiar tradicional, resolveu pensar em uma forma alternativa de trabalhar a advocacia familiar, tendo em vista a massacrante e cansativa prática beligerante propiciada por esse ramo do Direito. Stuart Webb foi, ao longo dos anos, pensando e elaborando o que veio a ser intitulado de “práticas colaborativas” (Collaborative Law). Inicialmente, deu-se a atuação somente em casos nos quais a parte contrária e, especialmente, o advogado da parte contrária, se mostrava disposto a tratar o conflito de forma não beligerante (ou seja, não competitiva). Com o tempo, percebeu-se que apenas a tentativa do acordo não era suficiente, pois, caso a solução não fosse alcançada, não haveria qualquer empecilho para a promoção das demandas judiciais. Daí surgiu a ideia da realização de um compromisso oficial, no qual as partes e seus respectivos advogados declinavam do direito de ingressar com uma ação judicial paralelamente às tratativas colaborativas, assim como, e em especial, os advogados se comprometiam a não participar de eventual e futura ação, caso as tratativas não fossem frutíferas. Dúvidas surgiram sobre questões éticas da advocacia. Ora. Como ser parcial, defendendo os interesses de seu cliente, mas, ao mesmo tempo, ser colaborativo em relação à outra parte envolvida no conflito? No início, a aceitação foi tímida. Porém, com o tempo, foi crescendo a consciência de que o advogado deve ser parcial no que se refere ao conteúdo do que será abordado no processo (informações, interesses, necessidades). Já a colaboração se dará no formato do trabalho em curso, na forma dos diálogos a serem desenvolvidos, nas negociações, sempre visando a harmonização de interesses das partes.

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15 JR., Lawrence R. Maxwell. The Development of Collaborative Law. http://www. collaborativelaw.us/articles/The_Development_of_Collaborative_Law.pdf

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Nos Estado Unidos da América, as práticas colaborativas já são amplamente difundidas, em especial na área do Direito de Família, contando com mais de 3.000 profissionais registrados perante à IACP – International Academy of Collaborative Professionals. Outros contextos conflituosos, como casos comerciais, cíveis, societários também passaram a integrar as práticas colaborativas. A ideia central da prática colaborativa vai além de apenas ser tentada uma composição ou um entendimento com a parte contrária. Os profissionais colaborativos trabalham, em conjunto com seus clientes, orientando-os a lidar com o conflito, a superar o conflito, inclusive em termos emocionais. Ou seja, estimulam a prática da política do consenso. No Brasil, desde o ano de 2011, já se tem notícia desse instituto, o qual tem sua maior divulgação no âmbito do direito de família.

Conclusão Sem adentrar em maiores detalhes sobre os meios paraestatais de resolução de conflitos, o que se pretende é chamar a atenção para a necessidade da “reeducação” da sociedade, a qual precisa se afastar da mentalidade ultrapassada do conflito e ir em busca da ideia do consenso. Como bem assevera Mancuso Impende, pois, no limiar deste novo milênio, uma releitura, atualizada e contextualizada, do constante no inciso XXXV do art. 5º da CF, para o fim de tornar esse enunciado aderente, assim, à realidade judiciária brasileira – sufocada por uma massa quase inadministrável de processos – como às novas necessidades trazidas por uma sociedade massificada e conflituosa, comprimida num mundo globalizado. Urge não tomar a nuvem por Juno, vendo naquele dispositivo um conteúdo insustentável, ou seja, uma genérica, incondicional e prodigalizada oferta de prestação judiciária, promessa que nenhum Estado de Direito consegue cumprir, nem mesmo a maior potência econômica mundial, falando B.G. Garth numa verdadeira litigation crisis ou numa litigation explosion, resultantes de sucessivas crises econômicas, sociais, políticas e até ... jurídicas.16

Só assim, o Judiciário poderá se destinar à solução de conflitos mais densos e complexos, os quais não comportam solução por outros meios, auto e heterocompositivos. Dedicar-se-á, então, aos processos efetivamente singulares e complexos, em vez de produzir justiça de massa, através de organismos cada vez maiores, que empenham parcelas crescentes do orçamento estatal e conduzem a um indesejável gigantismo da 16 MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009. p.61.

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máquina judiciária. Esse crescimento físico, que atinge patamares alarmantes, sobre não resolver o problema – já que a crise numérica é uma consequência e não a causa – é na verdade inócuo, porque a oferta prodigalizada de justiça só faz exacerbar a demanda por ela, num perverso círculo vicioso.17

Tal postura será de fundamental importância para a efetividade da nova concepção adotada pelo novo Código de Processo Civil.

Referências bibliográficas CARNEIRO, Paulo Cézar Pinheiro. Acesso à Justiça: Juizados Especiais Cìveis e Ação Civil Pública – Uma nova sistematização da Teoria Geral do Processo. Rio de Janeiro: Forense. 2. ed. 2000. CARVALHO, José Murilo de. Desenvolvimento de la ciudadanía en Brasil. México, D.F.: Fondo de Cultura Econômica. 1995. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Schwarcz S.A.. 2014. JUNIOR, Antônio Pereira Gaio. O ensino, o ‘ser’ e o Novo CPC. http://www.gaiojr.adv.br/ artigos/o_ensino_o_ser_e_o_novo_cpc JR., Lawrence R. Maxwell. The Development of Collaborative Law. http://www. collaborativelaw.us/articles/The_Development_of_Collaborative_Law.pdf MANCUSO, Rodolfo de Camargo. A Resolução dos Conflitos e a Função Judicial no Contemporâneo Estado de Direito. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2009. MAUS, Ingenborg. Judiciário como superego da sociedade – o papel da atividade jurisprudencial na sociedade órfã. Trad. Martonio MontÁlverne Barreto Lima e Paulo Antonio de M. Albuquerque. Revista Novos Estudos, CEBRAP. São Paulo, n.58, p.158. nov. 2000.

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17 Ibidem. p. 65.

Pensamento filosófico de Robert Alexy Sergio Leonardo Molisani Monteiro1 Resumo A superação do método lógico-dedutivo impulsionou inúmeros estudiosos a buscar uma nova forma de justificar cientificamente o direito, ou seja, de tentar fundamentar racionalmente a aplicação do direito. Robert Alexy, em seus estudos, trouxe como alternativa ao modelo lógico-dedutivo a justificação científica das normas por meio do discurso, da argumentação. Palavras-chave: Robert Alexy; Teoria da Argumentação Jurídica; Cânones Interpretativos; Inexistência de Hierarquia; Critério de Preferência de Valores; Fundamentação Racional; Regras do Discurso Abstract overcoming the logical-deductive method propelled numerous experts to seek a new way to scientifically justify the law, that is, trying to rationally justify the application of the law. Robert Alexy, in their studies, brought as an alternative to the logical-deductive model, the scientific justification of standards through discourse, argumentation. Keyword: Robert Alexy; Theory of Legal Argumentation; Interpretive Methods; Nonexistence Hierarchy; Values Preference Method; Rational justification; Speech Rules

Introdução Doutrina e jurisprudência são unânimes em aduzir que, atualmente, o direito já não mais pode ser aplicado com base exclusivamente no método lógico-dedutivo. Isso porque o método lógico-dedutivo pressupunha a existência de uma norma fundamental hipotética e hierarquicamente superior que, exatamente por este motivo, poderia fundamentar a todos os enunciados normativos dela decorrentes. Ocorre que, há muito, concluiu-se que a busca por um fundamento último desaguaria necessariamente no Trilhema de Munchhausen. O Trilhema de Munchhausen apresenta três possíveis saídas na busca de uma norma fim: A primeira seria o regresso ao infinito(1), já que sempre seria necessário uma justificação superior pautada em uma norma superior. Tal hipótese não apresenta qualquer solução. Para evitar o regresso ao infinito seria necessário substituir esta norma superior por uma decisão dogmática (2) que não se sujeita a justificação/fundamentação, ou seja, aceitar como verdadeira uma proposição para que não fosse necessário justificá-la. A impossibilidade 1 Advogado Especialista e Mestrando. Professor de Direito no IPTAN – São João Del Rei.

Pensamento filosófico de Robert Alexy

de justificação do fundamento acarretaria por invalidar a toda norma dela decorrente. A terceira forma seria por meio do circulo lógico (3) na qual um enunciado se justifica no outro e este outro se justifica no primeiro, da mesma forma não se alcança qualquer solução. É exatamente o que nos aponta Hans Albert: “1 um regresso infinito, que parece resultar da necessidade de sempre, e cada vez mais, voltar atrás na busca de fundamentos, mas que na prática não é passível de realização e não proporciona nenhuma base segura; 2 um círculo lógico na dedução, que resulta da retomada, no processo de fundamentação, de enunciados que já surgiram anteriormente, como carentes de fundamentação, e o qual, por ser logicamente falho, conduz do mesmo a nenhuma base segura, e finalmente, 3 uma interrupção do procedimento em um determinado ponto, o qual, ainda que pareça realizável em princípio, nos envolveria numa suspensão arbitrária do princípio da fundamentação suficiente.”2

A solução para o Trilema de Munchhausen, aponta Alexy, seria o estabelecimento de uma regra pragmática. A fundamentação de uma determinada proposição não seria outro fundamento, mas sim, uma exigência na atividade da fundamentação (argumentos racionais). Além da necessária superação do método lógico-dedutivo pelo discurso, constatou-se que, na grande maioria dos casos, os julgamentos não se fundamentam em questões lógicas, ou seja, não partem de formulações de normas pressupostamente válidas ou ainda de fatos comprovados ou pressupostamente verdadeiros. Tal fato decorre principalmente de quatro fatores: a imprecisão da linguagem do direito (ausência de identidade dos signos linguísticos); a existência de conflitos normativos; a existência de lacunas; e, por fim, a possibilidade de a decisão contrariar expressamente uma norma. Ilustrando os problemas supra mencionados destaque-se os seguintes julgados: a) Sobre a imprecisão dos signos linguísticos: “(...) é certo que podemos interpretar a lei, de modo a arredar a inconstitucionalidade. Mas interpretar interpretando e, não, mudandolhe o texto e, menos ainda criando um novo imposto novo que a lei não criou. Como sustentei muitas vezes, ainda no Rio, se a lei pudesse chamar de compra e venda o que não é compra e venda, de importação o que não é importação, de exportação o que não é exportação, de renda o que não é renda ruiria todo o sistema tributário inscrito na Constituição”3

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2 ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica. Tradução de Idalina Azevedo da Silva, Érika Gudde e Maria José P. Monteiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. p. 26/27 3 STF – Excerto do voto do Min. Marco Aurélio por ocasião do julgamento do RE 150.764-1

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“Descabe o embaralhamento de institutos, expressões e vocábulos, como se cada qual não tivesse o sentido próprio indispensável a caminhar-se com segurança jurídica.”4 “A Medida Provisória nº 1.858-10/99, ao revogar os incisos I e III do artigo 6º da Lei Complementar nº 70/91, em nada disciplinou o contido na Emenda Constitucional nº 20, de 1988, porquanto esta, ao acrescentar o vocábulo “receita” ao artigo 195, inciso I, alínea “b”, ao texto original da Constituição Federal, nenhuma alteração nova introduziu já que o Supremo Tribunal Federal já assentou que receita e faturamento têm o mesmo conceito”5 b) Sobre a existência de conflitos normativos: “As disposições da lei complementar nº 70/91 devem ser tidas  como de

Lei Ordinária, e, portanto, passíveis de modificação por  norma da mesma hierarquia . (...)”6

“PIS/COFINS: base de cálculo: L. 9.718/98, art. 3º, § 1º: inconstitucionalidade. Ao julgar os RREE 346.084, Ilmar; 357.950, 358.273 e 390.840, Marco Aurélio, Pleno, 9.11.2005 (Inf./STF 408), o Supremo Tribunal declarou a inconstitucionalidade do art. 3º, § 1º, da L. 9.718/98, por entender que a ampliação da base de cálculo da COFINS por lei ordinária violou a redação original do art. 195, I, da Constituição Federal, ainda vigente ao ser editada a mencionada norma legal. II. PIS/ COFINS: aumento de alíquota por lei ordinária (L. 9.718/98, art. 8º): ausência de violação ao princípio da hierarquia das leis, cujo respeito exige seja observado o âmbito material reservado às espécies normativas previstas na Constituição Federal. Precedentes: ADC 1, Moreira Alves, RTJ 156/721; RE 419.629, 1ª T., DJ 30.6.06 e RE 451.988-AgR 1ª T., DJ 17.3.06, Pertence. III. PIS/COFINS: atualização monetária, juros e possibilidade de compensação dos valores recolhidos a maior: questões restritas ao plano infraconstitucional, insuscetíveis de reexame no recurso extraordinário: incidência, mutatis mutandis, da Súmula 636.”7 c) Sobre a existência de lacunas: “MANDADO  DE  INJUNÇÃO.  APOSENTADORIA ESPECIAL DE SERVIDOR PÚBLICO. ART. 40, § 4º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, APLICAÇÃO DAS NORMAS DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. AGRAVO DESPROVIDO. 1. Segundo a jurisprudência do STF, 4 STF – Excerto do voto-vista do Min. Marco Aurélio por ocasião do julgamento da ADIN 2.588-1\DF 5 STF – RE 150.755 e ADC 01 6 TRF 4ª Região – Segunda Turma – Rel. Juiz Vilson Darós – 2000.04.01.015710-4/PR – Pub. 02/08/2000 7 STF – RE 515.002 AGR – Primeira Turma – Rel. Min. Sepulveda Pertence – Pub. 25\05\2007

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Pensamento filosófico de Robert Alexy

a omissão legislativa na regulamentação do art. 40, § 4º, da Constituição, deve ser suprida mediante a aplicação das normas do Regime Geral de Previdência Social previstas na Lei 8.213/91 e no Decreto 3.048/99. Ainda, o  mandado  de  injunção  não é o meio processual adequado para assegurar o direito à aposentadoria especial de servidor público já aposentado, diante da falta de impedimento ao exercício do direito. 2. Agravo regimental desprovido.”8 d) Sobre a possibilidade de uma decisão contrariar a própria norma: “Súmula 231 do STJ – a incidência da circunstancia atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal” Contrariando expressamente o disposto no caput do artigo 65 do Código Penal que assim prevê: “Art. 65 – São circunstancias que sempre atenuam a pena:”

Como saída para esta questão apresenta-se a interpretação como sendo uma forma científica para a aplicação da metodologia jurídica ao direito. Nesse sentido são as palavras de Robert Alexy: “Os mais amplamente discutidos candidatos para o papel de regras ou procedimentos para o domínio dessas tarefas são os cânones da interpretação”9 Ocorre que, conforme brilhante enunciação elaborada pelo próprio Alexy, são inúmeras as formas interpretativas criadas pela doutrina, dentre elas aponta a distinção feita por Savigny, Larenz e Wolff: Savigny as distingue em: a) gramatical; b) lógico; c) histórico e d) sistemático. Larenz, por sua vez, aponta cinco formas: a) sentido literal; b) interrelacionamento do significado da lei; c) intenção de regulamentação; d) motivos e pressupostos do legislativo histórico e e) critérios objetivos teleológicos bem como conformidade de interpretação da constituição. Por fim, Wolff completa aduzindo que são seis as formas: a) lógica; b) sistemática; c) histórica; d) comparativa; e) genética e f ) teleológica. Em razão das variadas formas de interpretação e considerando que cada uma pode levar a um determinado resultado necessário seria a existência de alguma forma de hierarquia entre os métodos interpretativos. No entanto não se conseguiu até hoje obter esta escala hierárquica. Constatando-se que os cânones interpretativos não se prestam sozinhos, a justificar de forma plena a aplicação concreta do direito, necessário seria buscar um nova saída. A conclusão a que se chega é que quando a solução  justa  de um caso concreto exigir uma decisão que não decorra logicamente do ordenamento, nem puder ser fundamentada com a ajuda das regras de interpretação, restará

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8 STF – MI 4771 AGR/DF – Pleno – Rel. Min. Teori Zavascki – Pub. 20/06/2013 9 Alexy, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2. ed. Landy. SP. p. 18

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ao aplicador escolher qual o enunciado normativo singular prevalecerá, ou seja, decidir com base em um juízo de valor, numa relação de preferência. Sobre a conexão entre a relação de preferência e o julgamento de valor, é esclarecedor a lição de Robert Alexy: “Uma tal ação de preferência, no entanto, exige um julgamento de que a alternativa escolhida em algum sentido é melhor do que outra, e, nesse ponto, propicia a base de um julgamento de valor. Quase todos os tratados contemporâneo enfatizam que a jurisprudência não pode passar sem estes julgamentos de valor.”10

Conclui-se, portanto, que quando o método lógico falha e os cânones interpretativos não se mostrarem suficientes, os juízos de valores representados pelas relações de preferência serão a saída. A questão que fica então é: como tornar racionalmente justificáveis os juízos de valores, enquanto critério subjetivo? É exatamente o trabalho desenvolvido por Alexy. Como saída para o Trilema de Munchhausen e visando garantir uma certa segurança científica aos enunciados normativos enquanto juízos de valores, Robert Alexy aduz que tais afirmações normativas seriam consideradas fundamentadas se fossem racionalmente fundamentadas, entendendo-se como racionalmente fundamentadas quando fossem observadas as regras pragmáticas enquanto regras do discurso. Para ele o discurso, a argumentação, seria a solução para o Trilema de Munchhausen e para a justificação racional dos juízos de valores.

Tese do caso especial A tese central desenvolvida por Alexy pode ser chamada de Tese do Caso Especial. A Tese do Caso Especial afirma que a Argumentação Jurídica ou o Discurso Jurídico é um caso especial da Argumentação Prática Geral. Em outras palavras, o Discurso Jurídico é um caso especial do Discurso Pratico Geral. Essa tese foi designada como sendo a Tese do Genius Proximum ou Tese do Gênero Próximo, ou seja a Teoria da Argumentação Jurídica é espécie do gênero Teoria da Argumentação Prática Geral. Para alcançar a tese era preciso demonstrar que a espécie tem a parte comum com o gênero para se enquadrar naquele gênero e a parte especial para ser uma espécie (especial do gênero).Tanto na argumentação jurídica quanto na argumentação prática discute-se o ato humano do agir, da ação humana. É por esta razão que a argumentação jurídica se enquadra no gênero argumentação prática geral. Além disso, uma e outra se assemelham por se referirem à pratica, ou seja, ao agir. Da mesma forma ambas buscam uma pretensão de correção, ou seja, busca-se uma solução correta para o caso, uma vez que não faz sentido 10 Alexy, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2. ed – Landy – SP – p. 20

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desenvolver uma argumentação para buscar o incorreto, seria uma contradição afirmar-se um fato se tal fato fosse equivocado. Não se aceitaria, dentro da mesma argumentação jurídica, ou mesmo na prática geral, admitir um fato, mas concluir que tal fato é errado. Parte-se, pois, da premissa de que não se argumenta, não se discute, visando o errado. Daí o enquadramento da argumentação jurídica no gênero Argumentação Prática Geral. No entanto, a teoria da argumentação jurídica possui uma parte que a torna especial, qual seja, se basear sempre na Lei/Norma, que deve sempre servir de parâmetro (moldura limitadora da argumentação). Assim, na discussão jurídica leva-se em consideração a lei, os precedentes, e a dogmática jurídica, ou seja, os pressupostos normativos e os precedentes (jurisprudência). Retirados os limites normativos da argumentação jurídica ela se torna nada mais do que uma argumentação prática geral cujos limites são sempre a Ética e a Moral. Exatamente neste sentido são as palavras de Cláudia Toledo: “O discurso jurídico é prático, por se constituir de enunciados normativos. É racional por se submeter à pretensão de correção discursivamente obtida. É especial, por se subordinar a condições limitadoras ausentes no discurso prático racional geral, a saber – a lei, a dogmática e os precedentes. Essas condições, que institucionalizam o discurso jurídico, reduzem consideravelmente seu campo do discursivamente possível, na medida em que delimitam mais precisamente de quais premissas devem partir os participantes do discurso, fixando ainda as etapas da argumentação jurídica, mediante as formas e regras dos argumentos jurídicos.”11

Por fim, necessário destacar que, por meio da tese da integração, conclui-se que os argumentos jurídicos e práticos gerais devem ser analisados num discurso de forma conjunta, integrada.

(In)Certeza e Verdade Outrossim, importante destacar que a proposta de Alexy para a racionalidade do discurso pode ser considerada como analítico-normativa na medida em que busca, num primeiro momento, verificar a estrutura lógica das possíveis formas argumentativas para, posteriormente, estabelecer os critérios para a aferição da racionalidade, ou seja, o ilustre jurista propõe um conjunto de regras a partir das quais é possível aferir a racionalidade do discurso. Alexy constata que a certeza alcançada pelo discurso não se mostra como uma certeza matemática, fato que é facilmente superado quando incorporado a Teoria Consensual da Verdade de Habermas, na qual, verdade é tudo aquilo que os integrantes do discurso concordam como verdade. Por meio desta teoria elimina-se a crítica da imprecisão matemática da teoria do discurso de Alexy.

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11 TOLEDO, Cláudia. Teoria da argumentação jurídica. In: Revista da Escola Superior Dom Helder Câmara – Veredas do Direito. Vol. 2. Nº 3, jan. a dez. de 2005 – p. 05

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Já que não se busca a certeza absoluta, mas sim uma racionalidade, constata-se que controlando o discurso (o procedimento de racionalização) o resultado será racional. Para controlar o discurso teremos quatro formas: a) Fundamentação técnica; b) Fundamentação empírica; c) Fundamentação definitória e d) Fundamentação universal pragmática. a) Fundamentação técnica – Regras técnicas seriam as regras que prescrevem meios corretos/apropriados para se alcançar determinado fim. São os imperativos hipotéticos de Kant por meio da análise de meio/fim. O discurso sendo o meio/procedimento para se alcançar determinado resultado racionalmente aceito passa a ser uma técnica para racionalizar. O primeiro problema é que se o meio se presta a alcançar um fim, é necessário se fundamentar esse fim.O segundo problema é se existisse um fim que pudesse justificar toda e qualquer regra do discurso ele seria tão geral que seria possível postular-se normas incompatíveis entre si. Para isso será necessário complementá-la com outra fundamentação. b) Fundamentação empírica – Fundamenta-se algo de dever-ser por meio de um ser, já que o fundamento neste tipo de fundamentação deriva da tradição, dos fatos, etc... Da mesma forma este tipo de fundamentação não basta por si só. c) Fundamentação definitória – As regras definem uma prática. Também carece de complementação uma vez que as regras podem ser questionadas. Resta, pois, a se fundamentar o próprio motivo pelo qual se deva entrar no discurso. d) Fundamentação universal pragmática – Só é possível se comunicar se essas regras forem seguidas, ou seja, se as regras forem consideradas válidas. Aqui as regras são constitutivas, tornam possível o fim, são condições de possibilidade.

Por fim, conclui que mesmo aceitando o fato de que todas as formas de fundamentação são incompletas, elas são válidas quando complementadas umas pelas outras.

Teoria da Argumentação Jurídica O discurso jurídico se relaciona, pois, com a justificação de afirmações normativas. Nesse sentido destaca-se a existência de dois tipos de justificação:

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a) justificação interna – que busca averiguar se determinada afirmação pode ser extraída logicamente das premissas utilizadas para justificá-la; e b) justificação externa – que busca a correção daquela determinada afirmação. Para se alcançar a justificação interna, necessário se mostra a aplicação dos métodos da lógica. É a aplicação do silogismo. Premissa maior, premissa menor e conclusão. Analisa-se, pois, se da premissa maior e da menor se extrai uma conclusão logicamente correta. Existem dois tipos de silogismo: o teórico e o prático. No silogismo teórico não tem prescrição (dever ser), mas tão somente descrição/afirmação (ser/é). No silogismo prático existe prescrição (dever ser): uma obrigação, uma permissão, uma proibição, ou seja, algo que não seja uma afirmação. A justificação externa se preocupa em justificar as premissas usadas no processo de justificação interna. O processo de justificação interna pode se utilizar de três tipos de premissas: a) regras da lei positiva; b) afirmações empíricas e c) premissas diversas que não são nem do grupo “a” nem do grupo “b”. Cada uma das premissas possui diferentes métodos de justificação. A justificação do grupo “a” (regras da lei positiva) se dá pela comprovação de que essa norma atende os critérios de validade da ordem jurídica. As premissas do grupo “b” (afirmações empíricas) podem ser comprovadas por meio de uma série de procedimentos, dentre eles os métodos das ciências empíricas até as máximas de presunção racional. O terceiro grupo “c” pode ser justificado por meio da argumentação jurídica. Como forma de justificação externa Alexy traz seis grupos, dentre eles: a) Interpretação – estatuto, lei; b) Argumentação dogmática – dogmática; c) Uso de Precedentes – precedente; d) Argumentação Geral Prática – razão; e) Argumentação Empírica – fatos; e, por fim, f ) Formas Especiais de Argumentos Jurídicos. O presente trabalho se limita a análise dos Cânones Interpretativos. Os cânones interpretativos são regras para compreender e aplicar o direito podendo agrupar-se em seis diferentes grupos, dentre eles: a) interpretação semântica; b) interpretação genética; c) interpretação histórica; d) interpretação comparativa; e) interpretação sistemática e, por fim, f ) interpretação teleológica.

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a) Argumento semântico – A interpretação é feita com base no uso comum das palavras; b) Argumento genético – Busca-se a vontade do legislador; c) Argumento histórico – Analisam-se os fatos históricos que influenciaram a interpretação; d) Argumento comparativo – Utiliza-se do direito comparado, compara-se com outros ordenamentos; e) Argumento sistemático – A norma é interpretada dentro de um sistema em que todas as regras e princípios estão vinculados;

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f ) Argumento teleológico – Busca-se a efetividade de determinada interpretação levando-se em consideração o fim previsto pela norma.

Além de enumerar as diversas formas de interpretação, Alexy distingue o papel dos cânones interpretativos no discurso jurídico, destacando a necessidade de distinguir-se em seis pontos: O primeiro ponto se refere ao campo de aplicabilidade dos cânones, aduzindo que todos os cânones podem ser utilizados em diversos momentos. Logo após questiona-se o status lógico dos cânones, se seriam ou não regras, sendo que Alexy conclui tratar-se de verdadeiros esquemas argumentativos. Em terceiro plano destaca-se o requisito da saturação, ou seja, o cânone tem de conter todas as premissas daquela forma de argumento para se esgotar as premissas necessárias para se atingir aquele argumento eleito. Além dos três pontos enumerados, ressalta-se que cada uma das formas interpretativas possui sua função específica (quarto aspecto). Neste ponto transcreve-se a elucidação de Robert Alexy por sua clareza e simplicidade: “As diferentes formas cumprem diferentes funções. As formas de argumentação semântica e genética se referem à vinculação dos órgãos decisores, respectivamente, ao teor da lei e à vontade do legislador. As formas históricas e comparativa permitem a incorporação da experiência do passado e de outras sociedades. A interpretação sistemática serve, entre outras coisas, para eliminar contradições no ordenamento jurídico. Finalmente, as formas teleológicas dão espaço à argumentação prática racional de tipo geral. Com isto se caracteriza respectivamente uma função proeminente em cada uma das diferentes formas.”12

Definidas as funções de cada uma das formas de interpretação passa (em quinto lugar) a problematizar a hierarquia dos cânones apontando três possíveis regras para a solução do problema. Primeiramente, estabelece um privilégio ao texto da lei ou, de acordo com a teoria subjetiva, a vontade do legislador, caracterizado pelas formas semântica13 e genética de interpretação. Esta primeira regra busca a segurança jurídica uma vez que esses dois argumentos partem da vinculação à lei aceitando-a como verdadeira. Para se desvincular da norma posta é preciso de um argumento forte. Num segundo momento aduz que para o sopesamento dos argumentos é necessário se recorrer às regras de ponderação. E, por fim, informa que se deve levar em consideração todos os argumentos possíveis dentro dos diversos cânones. Como sexto e último ponto de sua teoria aponta que não se busca uma correção matemática para a hierarquização das formas discursivas, “o que se indicam são regras e formas cujo cumprimento ou utilização faz com que aumente 12 Alexy, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2. ed – Landy – SP – p. 243 13 Em última análise a escolha das palavras da lei foi feita pelo legislador.

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a probabilidade de que numa discussão se chegue a uma conclusão correta, isto é, racional.”14 Constata-se que pela impossibilidade das ciências sociais aplicadas em se chegar a uma verdade matemática, empírica, a racionalidade não é atingida pelo resultado, mas sim, pelo controle racional do processo, ou seja, pelo controle procedimental do discurso, do argumento.

Conclusão O antigo método lógico-dedutivo que pressupunha a existência de uma norma fundamental hipotética e hierarquicamente superior já não mais bastava para justificar a aplicação do direito, principalmente em virtude de não apontar qualquer saída para o Trilema de Munchhausen. Do mesmo modo, a antiga forma não apresentava solução para os casos de imprecisão da linguagem do direito (ausência de identidade dos signos linguísticos); da existência de conflitos normativos; da existência de lacunas; e, por fim, da possibilidade de a decisão contrariar expressamente uma norma. A solução para estes problemas, aponta Alexy, seria o estabelecimento de uma regra pragmática. A fundamentação de uma determinada proposição não seria outro fundamento, mas sim, uma exigência na atividade da fundamentação (argumentos racionais).Como forma alternativa de justificação do direito surge, portanto, a Teoria da Argumentação Jurídica de Robert Alexy, que buscava a validade do direito por meio do discurso. Assim, as afirmações normativas seriam consideradas justificadas se fossem racionalmente fundamentadas, entendendo-se como racionalmente fundamentadas quando fossem observadas as regras pragmáticas enquanto regras do discurso. Daí que Alexy afirma que o Discurso Jurídico seria um caso especial da Argumentação Prática Geral, uma vez que a Argumentação Jurídica se enquadraria no gênero em virtude de se referir à prática, ou seja, ao agir e ainda pelo fato de buscar uma pretensão de correção. Por outro lado, afasta-se do gênero uma vez que por se tratar de um discurso jurídico, ele obrigatoriamente estaria vinculado, limitado pela Lei, pelo Direito. Ato contínuo afirma que para a justificação das afirmações normativas seria necessária a existência da argumentação em dois ambitos diferentes: âmbito interno, no qual se busca averiguar se determinada afirmação pode ser extraída logicamente das premissas utilizadas para justificá-la, ou seja, trata-se da averiguação do silogismo; e no âmbito externo em que se busca a correção daquela determinada afirmação. Como forma de justificação externa Alexy apresenta seis grupos dentre os quais os cânones interpretativos estão incluídos. Os cânones interpretativos, por

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14 Alexy, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2.ed. Landy. SP. p. 245

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sua vez, são regras para compreender e aplicar o direito podendo agrupar-se em seis diferentes grupos, dentre eles: a) interpretação semântica; b) interpretação genética; c) interpretação histórica; d) interpretação comparativa; e) interpretação sistemática e, por fim, f ) interpretação teleológica. Passa, posteriormente, a apontar as diferentes funções dos métodos interpretativos, nas quais, as formas de argumentação semântica e genética se referem à vinculação dos órgãos decisórios, respectivamente, ao teor da lei e à vontade do legislador; as formas histórica e comparativa permitem a incorporação da experiência do passado e de outras sociedades; a interpretação sistemática serve, entre outras coisas, para eliminar contradições no ordenamento jurídico e, finalmente, as formas teleológicas dão espaço à argumentação prática racional de tipo geral. Definidas as funções de cada uma das formas de interpretação passa a problematizar a hierarquia dos cânones apontando, posteriormente, três regras para a solução do problema. Entretanto, o problema da validade, da verdade não pode ser atingido somente pela teórica hierarquização das formas interpretativas. Somente o controle procedimental do discurso como um todo acarreta na racionalidade da questão. Constata-se pois que Alexy não busca uma correção matemática para a hierarquização das formas discursivas, “o que se indicam são regras e formas cujo cumprimento ou utilização faz com que aumente a probabilidade de que numa discussão se chegue a uma conclusão correta, isto é, racional.”15 Conclui-se que, pela impossibilidade das ciências sociais aplicadas em se chegar a uma verdade matemática, empírica, a racionalidade não é atingida pelo resultado, mas sim, pelo controle racional do processo, ou seja, pelo controle procedimental do discurso, do argumento. É esta a chave da verdade de Alexy.

Referências bibliográficas Alexy, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2. ed – Landy – SP, 2001 ALBERT, Hans. Tratado da razão crítica. Tradução de Idalina Azevedo da Silva, Érika Gudde e Maria José P. Monteiro. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1976. ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito – teorias da argumentação jurídica. 3. ed., São Paulo, Landy, 2003 BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Tópica e argumentação jurídica. In:  Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 41 n. 163 jul./set. 2004 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2008 TOLEDO, Claudia. A argumentação jusfundamental em Robert Alexy. In: MERLE , JeanChristophe et MOREIRA, Luiz (org). Direito e Legitimidade. São Paulo: Landy, 2003 TOLEDO, Cláudia. Teoria da argumentação jurídica. In:  Revista da Escola Superior Dom Helder Câmara - Veredas do Direito. Vol. 2. N.º 3, jan. a dez. de 2005 15 Alexy, Robert. Teoria da Argumentação Jurídica. Tradução de Zilda Hutchinson Schild Silva. 2. ed. Landy. SP. p. 245

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Sopesamento entre o direito de expressão e o direito da personalidade no ordenamento vigente Leonardo Granthom1 Resumo Essa análise busca mostrar uma comparação entre as normas que a Constituição traz e que visam assegurar a manifestação livre do pensamento, desde que não fique oculto aquele sujeito que a fez, bem como analisar o dispositivo de proibição da censura das atividades intelectuais, artísticas, científicas e de comunicação, como as normas elencadas pelo Código Civil que visam proteger direitos da personalidade, como a honra em suas diversas modalidades em relação aos indivíduos. Palavras-chave: Direitos da personalidade; Liberdade de expressão. Abstract This analysis seeks to show a comparison of the standards that the Constitution provides that aim to ensure the free expression of thought, provided it is not hidden one who made it, and the prohibition device censorship of intellectual activities, artistic, scientific and communication with the standards listed by the Civil Code aimed at protecting personal rights, as the honor of each individual. Keyword: Freedom of speech

Introdução O direito do ser humano se manifestar a respeito de suas próprias opiniões vem de longa data sendo tratado de forma ora repressiva, ora como assunto motivador na defesa dos direitos constitucionais. É de conhecimento que as regras regulamentadas pelo Código Civil devem estar alinhadas à Carta Magna em seu sentido de orientação normativa. E a Constituição por si só não deixa de garantir os direitos que também são regulamentados no Código Civil em seu artigo 20, que trata da possibilidade de proibição da divulgação de informações de cunho pessoal. Uma breve análise do texto constitucional é passível de perceber várias regulamentações da restrição desse direito que englobam matéria de proibição ou autorização ali inserida. Essa análise do Código Civil segue uma linha de 1 Advogado especialista em Direito Empresarial e Econômico pela UFJF, Mestrando em Hermenêutica e Direitos Fundamentais pela Unipac – Universidade Presidente Antônio Carlos, Professor em Processo Civil, Direito de Família e professor orientador do Núcleo de Prática Jurídica pela faculdade de Ciências Gerenciais de Manhuaçu/MG.

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pensamento sobre a maneira de interpretar as normas de nosso ordenamento pátrio que por ora não é confrontada: as leis do país, qualquer que seja sua escala de aplicabilidade deve estar de acordo com o sentido que é dado pela conotação constitucional. Diante das normas trazidas tanto pelo Código Civil quanto pela Constituição, fica perceptível que o Código realizou uma tentativa de abstratamente abordar a problemática da autorização privada, buscando restringir o assunto tratado nos sentido de proibição, de forma a não permitir a possibilidade de uma publicação, exposição ou utilização da imagem de um sujeito sem que essa parte a que se refere tenha dado autorização. Logo, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra ou a publicação da imagem do sujeito, por exemplo, seriam direitos restritos, limitados por uma condição em específico. Desse modo, o Código Civil trata o assunto de uma forma categórica tornando essa lei uma aplicação restrita da liberdade comunicativa, seja num conjunto subjetivo ou dentro de um âmbito institucional. Porém, não é pelo fato do ordenamento civilista levar em consideração um ordenamento baseado em uma proibição com reserva de autorização, que o direito a biografia, por exemplo, está limitado na interpretação que o Código Civil traz. No contexto social, as lides que efetivamente chegam ao judiciário é que irão sopesar nas respectivas justificações que recairão sobre julgamento de cada conflito. A Constituição por si só não é capaz de resolver todas as situações que aparecem para análise do Judiciário em relação à liberdade de comunicação constitucional em relação à vida privada regulamentada pela norma civilista (como a honra e a inviolabilidade da vida privada). Difícil seria essa resolução devido à incapacidade de esgotamento das análises predeterminadas desses direitos fundamentais. De outra maneira, levando em consideração um direito fundamental em sua forma abstrata, diversos direitos específicos podem ser incluídos como tal, como a escrita de uma biografia, histórias policiais ou investigações jornalísticas. E aqui entra a problemática a ser comentada, pois alguns desses direitos lançados na normatividade podem confrontar com os direitos civilistas, como a boa fama do sujeito ou a sua honra. Inevitável seria não questionar nessa pesquisa a constitucionalidade, por exemplo, do artigo 20 do Código Civil que elenca uma proibição que pode ser interpretada como já previamente liberada pela Constituição. Como citado, uma biografia pode muito bem ser levada em consideração dentro de um patamar normativo da liberdade de expressão que um autor possa evocar, direito esse já garantido constitucionalmente, salvo por motivo razoável que impeça sua divulgação.

Aspectos gerais do direito à livre expressão e manifestação do pensamento

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De maneira contemporânea, o respeito à privacidade abrange não só o direito de impedir a compilação de certos dados de natureza íntima que não podem ser levados a registro, como a possibilidade de corrigir informações

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inexatas, inoportunas ou desatualizadas, prevendo a sua utilização abusiva. Como já previa René Dotti, esse controle tem como instrumento fundamental o direito ao acesso de cada indivíduo identificado, no que si refere ao conteúdo e a difusão dos dados, de molde a garantir uma adequada proteção das liberdades públicas em geral e da defesa da privacidade em particular2. Para Gilmar Mendes o direito à privacidade, em sentido mais estrito, conduz à pretensão do indivíduo de não ser foco da observação por terceiros, de não ter os seus assuntos, informações pessoais e características particulares expostas a terceiros ou ao público em geral3. Segundo Judith Martins Costa, em sua tese de Direito Civil apresentada à Congregação da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo) sobre Pessoa – Personalidade, Dignidade em maio de 2003, o poder de dispor sobre a própria personalidade tem limites ao passo que não poderá ser motivo de “barganha” jurídica. A autora defende que o próprio fato do agir individual terá que ser limitado pela irrenunciabilidade, o que nem sempre será direcionado a todos àqueles a que compõe a situação jurídica, pois um direito fundamental que vem a garantir o usufruto da vida privada não precisa para ser vivenciado, de uma contraposição alheia. Com certeza o assunto ainda estará sujeito a várias pesquisas futuras realizadas por juristas e estudiosos da área, sendo motivo de diversos posicionamentos, porém, o presente artigo buscará relatar algumas ideias iniciais para reflexão, no intuito de sugerir discussões nessa nova abordagem jurídica da qual nossa legislação carece de tanta atenção e respaldo para ser aplicada com efetividade, combatendo aqueles que afrontam um suposto direito a privacidade, por exemplo. Logo, o debate se faz importante já que há oportunidade diária do surgimento de decisões judiciais ou questionamento sobre o polêmico assunto. - Brevidade histórica: A ideia da livre expressão deve receber uma conotação expansiva em sua interpretação normativa. Na época ditatorial, a forma de governo déspota tornava totalmente inviável qualquer tipo de direito nesse sentido, sendo coibido por opressões policiais e militares através das prisões daqueles que argumentavam de forma contrária ao governo. A pesada censura aos meios de comunicação com a filtragem de toda informação que fosse usada para ser material de divulgação, além das produções culturais, artísticas, bem como a indústria cinematográfica ou tudo o que fosse direcionado aos canais televisivos, tinham um acompanhamento muito próximo dos órgãos do governo. O objetivo era transparecer a população que tudo o que se passava no país estava na mais perfeita ordem social e econômica, chegando a tornar obrigatórios os canais televisivos a transmitirem nos noticiários assuntos impertinentes ao que realmente interessava para o desenvolvimento do país. Esse fato fora perceptível na década de 60, por exemplo, quando o país começou a ser guiado pelos militares, tendo o Brasil uma fase obscura pelo período de mais de 20 anos. Foi uma árdua trajetória de conflitos políticos e sociais da população com 2 DOTTI, 1980, p. 75. 3 MENDES, 2007, p. 370.

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seus governantes. Junto com a dura forma de governar, o despotismo trouxe o suprimento de direitos constitucionais, perseguição política e civil com custódia estatal dos opositores, além da existência da censura aos meios de comunicação conforme elucidado. Não só a censura foi dada dentro de um sistema de opressão. A economia do país também ganhou forte expansão através do endividamento do governo, dentro de um crescimento desbalanceado. Mesmo andando a passos acelerados, tornando as indústrias e o comércio interno aquecido de uma maneira consumerista e lucrativa, a contração de dívidas para a realização desse desenvolvimento teria sido inevitável, como a consequente entrada de capital estrangeiro no país. Na época em que João Goulart destituiu do governo na década de 60, seu papel como líder foi encerrado com a entrada de Ranieri Mazzelli, até então presidente da Câmara dos Deputados e assim permanece até os idos de 1964. Ocorre que, na prática, quem exercia o governo eram os Ministros militares que compunham as bancadas (dentre eles o general Arthur da Costa e Silva, na época, Ministro de Guerra). E para colocar em prática atos inconstitucionais e antijurídicos, o governo dos militares precisou inovar no que diz respeito a normas a serem seguidas. Atos ilegais e sem parâmetros precisavam ser colocados em prática. Assim, foi criado o chamado “Ato Institucional”, que somaram mais de 15 regulamentações que dariam nova roupagem a Constituição Federal de 1946, encobrindo as normas que não eram viáveis e, em contrapartida, autorizando atos até então incompatíveis com a plena democracia. O primeiro Ato Institucional, datado de 1964, proporciona aos militares poderes governamentais que até então eles não tinham, proibindo por vários anos diversas pessoas de exercerem seus direitos políticos. Além disso, vários mandatos foram cassados, alterando a estrutura política do Congresso, fato este que causou rebuliço entre os parlamentares. Costa e Silva, apesar de pouco tempo no poder (2 anos), enfrentou uma série de manifestações contra o despotismo que podiam ser observadas no país inteiro, lideradas principalmente, pelos movimentos estudantis contra o governo opressor. Entre elas, a da morte de um estudante que, ao participar de uma manifestação, fora alvo de agressão por conta da polícia local. Tal estudante passa então a ser visto como herói nacional pelo seu ato, trazendo mais força aos movimentos contra a ditadura e a censura no Brasil. E não só os movimentos estudantis, como também os civis sem uma identificação específica de entidade, bem como a igreja chegaram a se unir em busca de um propósito comum, realizando a famosa ‘Passeata dos Cem Mil’, manifestação de tamanha proporção que fora considerada a que reuniu o maior número de pessoas batalhando contra o regime militar. Logo após o manifesto, o governo se viu obrigado a emanar outro Ato Institucional na tentativa da mantença do controle e da ordem dentro dos seus moldes, criando, em 1968, o AI-5, um dos mais duros e repressores atos governamentais que se tem conhecimento. Este Ato extinguiu as normas constitucionais democráticas que

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ainda vigoravam através da Constituição de 1967, implantando de vez o regime de soberania através das ordens do governo exercido por apenas uma pessoa. O próprio exército ficara com a liberdade de criar a política de segurança nacional e tomar as medidas coercitivas que julgasse necessárias contra as manifestações. Dentre elas, a extinção do Congresso foi realizada no país, acabando com o colegiado criador de leis através de uma representação num âmbito não só nacional, mas também estadual e municipal. Centenas de filmes, durante esse período, foram vetados de serem exibidos, como também dezenas de peças teatrais, músicas compostas de críticas ao governo e a editoração de vários livros. Somente após o regime militar é que foi possível restabelecer o sistema democrático, com a implantação das eleições indiretas de Tancredo Neves e José Sarney, destituindo a governança das mãos de um soberano e acabando com a censura. Novos partidos puderam ser criados e a possibilidade das eleições diretas fora cabível no fim da década de 80, tendo respaldo no inovador texto Constitucional da Carta Magna de 1988. - Brevidade contemporânea: Não longe desses casos de tentativa de censura que ocorreram no país, a própria sociedade mundial pôde constatar um episódio marcado por um atentado explícito ao direito de se expressar, ocorrido na França, em janeiro de 2015. Condenado até mesmo pelo próprio líder da Igreja Católica Romana, o Papa Francisco repudiou os homicídios ocorridos contra o Jornal ‘Charlie Hebdo’, que culminou com o falecimento de 12 pessoas. Em viagem as Filipinas, no Sri Lanka, o Papa declarou sua indignação contra esse tipo de censura, uma vez que o ataque fora inspirado pelo fato da publicação de charges irônicas em relação ao profeta Maomé, entidade sagrada na religião islâmica, terem sido publicadas. Defendeu o pontífice que a liberdade de expressão e a liberdade religiosa são direitos humanos fundamentais, onde cada indivíduo tem o direito de tornar público sua opinião ou praticar sua religião, sem nunca usar qualquer tipo de agressão ao próximo em nome de Deus, desde que mantido os limites do respeito ao ser humano. Esse fato não fora inédito no território francês. No ano de 2011, contra o mesmo jornal, o editor Stéphane Charbonnier já havia recebido ameaças de morte devido a publicações satíricas em respeito a representações de Maomé. “Charb”, como era conhecido, relatou para o jornal BBC que esses atentados e ameaças sofridas iam de encontro à liberdade de expressão.

Aspectos gerais do direito da personalidade e análise comparativa entre a liberdade de expressão e o direito subjetivo pessoal O desrespeito ao direito subjetivo pessoal bem como a outros direitos da personalidade geralmente são associados aos atos praticados pelos profissionais “free lancer” que vendem notícias avulsas aos jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação. Por isso, várias controvérsias surgem nos tribunais e na opinião dos doutrinadores. Sob a ótica de uma análise construtiva, dentro de

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um sistema democrático, a liberdade de expressão deveria ser encarada como uma lógica racional, visto que a contribuição à formação da opinião pública seria de grande valia, pois a mesma traria a tona aquelas informações que fossem na maior relevância. Dentro desse pensamento poderia ser obtida a justificativa das inúmeras obras a respeito da vida de políticos, artistas e figuras públicas que estão inseridas no mercado literário. O doutrinador Antônio Pereira Gaio Junior, ensina que a biografia não autorizada, reconduz-se ao âmbito de proteção da liberdade de expressão em sentido amplo e está sujeita aos respectivos limites, sendo que estes são excepcionais e devem ser interpretados restritivamente4. O autor propõe em obra “Biografia não autorizada versus Liberdade de Expressão” uma harmonia entre a aplicação da norma constitucional em concordância com o texto civilista, visto que uma divulgação que não fora previamente ao seu lançamento, autorizada por aquele a que se faz referência, apesar de ter respaldo no texto constitucional que regula a liberdade de expressão, pode vir a ser motivo de litigância jurídica em outros momentos. Por isso, alguns remédios legais devem ser observados, pois, mesmo que não sendo imprescindível a autorização do biografado para a obra ser publicada, a observância de alguns “valores, princípios e regras” se torna indispensável, de modo a evitar futuras desavenças bem como a valoração da própria obra. De fato, poderia se dizer que a publicação de uma obra baseada no direito de expressão constitucional teria suas vantagens sociais. A não intervenção intelectual daquele a que se faz referência permitiria uma análise singular a respeito daquele de quem se está falando, abrindo possibilidade de desviar através de um filtro natural provindo do interesse particular daquele a que se refere, caso essa intervenção acontecesse. O perigo de uma seleção de informações, peculiar de um direito de expressão praticado, poderia trazer a vulnerabilidade e a infidelidade das informações prestadas. O entendimento de que é inconstitucional ter que submeter uma obra que venha a se tornar pública a uma precedente autorização daquele a que se vai falar, possui uma grande carga da nossa Lei Maior, pois expressa que a liberdade de comunicação dentro de um contexto constitucional estaria embasada pelo Estado Democrático. A liberdade de comunicação, apesar de abranger o direito de expressão nas suas mais variadas formas, ainda sim, poderá motivar a restrição desse direito com fundamentação constitucional. Em exemplo disso, o direito autoral estaria incluídos nesse respaldo jurídico. O direito subjetivo pessoal, elencado pelos direitos da personalidade, quando suprimidos, ainda sim deverão ter essa supressão fundamentados pela norma constitucional. Não há como esquivar-se do embasamento de interpretação normativa-fundamental quando há que se aplicar ou se proibir a aplicação dos direitos da personalidade. Analisando outros ramos do direito, a interpretação norma/fundamento seria constitucional, pois teria seu respaldo jurídico enquanto emanação de princípios que elevam sua fundamentação

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4 CANOTIHO, 2014, p. 39.

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na nossa Carta Magna, de modo a conseguir desenvolver a valoração de sua personalidade e autonomia individual. Essa valoração toma como pressuposto ter a dignidade da pessoa humana como tópico intransponível, possuindo um caráter básico constitucional a ser respeitado. Por isso, há que se ter concluído que a autonomia privada e um direito geral de personalidade possuem reflexos nas leis civis e criminais com características de tutela fundamentada numa sanção jurídica ou até mesmo de forma a inibir a usurpação desses direitos. Mas essas características na verdade, não impedem que os próprios direitos de personalidade entrem em conflitos com outros bens jurídicos, constitucionalmente também protegidos pela Lei Maior. No mesmo tempo que se paira diante de uma justificação constitucional para que se obtenha uma tutela estatal que garanta algum direito, também poderá ocorrer de os mesmos direitos garantidos serem inibidos devido à colisão com outros direitos que os tornem restritos de efetivação de sua aplicabilidade. Esse efeito ocasiona o denominado por Teoria do Efeito Recíproco ou Teoria do mútuo condicionamento, defendida por alguns autores para a justificação desses precedentes constitucionais em colisão com outras normas gerais civis ou criminais. Com fundamento na teoria do mútuo condicionamento, as leis fundamentais podem vir a suprimir as leis gerais da legislação (como as civis ou criminais, por exemplo), mas também abre possibilidade dessas mesmas leis gerais virem a tomar uma conotação de prioridade em sua aplicabilidade em relação as leis fundamentais constitucionais. Carlos Roberto Galvão nos ensina em seu livro “A Eficácia dos Direitos Sociais e a Nova Hermenêutica Constitucional”, dentro dessa linha de raciocínio da teoria do efeito recíproco, que é certo que as leis gerais têm a virtualidade de limitar os direitos fundamentais, devendo, por sua vez, serem interpretadas a luz do significado que o direito fundamental restringido cobra do Estado democrático, pelo que o efeito restritivo produzido pela lei geral deva sofrer, ele próprio, a limitação correspondente a esse valor. O que se busca é inibir a prevalência das normas restritivas por conta da própria interpretação de acordo com os direitos fundamentais, que, segundo estes, defendem a ideia de que a hermenêutica das normas jurídicas em geral (as que restringem os direitos fundamentais) devam usar o que as normas de direito fundamental possuem como direito material para que se possa ter o conhecimento do limite do que é constitucional ou não, em sua interpretação e aplicação. Logo, a interpretação da norma deverá ser através daquela que melhor traga a eficácia constitucional da mesma em seus direitos fundamentais, pois em um Estado Democrático de Direito, a sociedade tem esses mesmos direitos como sua principal garantia na obtenção do respeito à pessoa humana, através da efetividade do sistema político e jurídico que seguem esse conjunto. Assim, qualquer que seja a interpretação dada a um ordenamento que esteja a restringir direitos fundamentais e que calhe a gerar dúvida sobre até aonde vai tal restrição, deverá observar uma interpretação que iniba ao máximo a incidência dessa restrição, ampliando o direito que está sendo avaliado, buscando, na verdade,

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‘restringir’ a própria restrição. Assim, é preciso buscar uma interpretação que traga a máxima aplicabilidade dos direitos fundamentais, pois dentro do conceito de um Estado Democrático, esses direitos são como dito, a principal garantia que possuem os cidadãos de que os direitos da pessoa humana terão validade. Não longe disso, Antônio Pereira Gaio Junior, ainda sobre a teoria do efeito recíproco, explica que em alguns casos, isso significa que os direitos de personalidade suportarão operações restritivas justificadas, de forma a respeitar a função ancilar da liberdade de expressão numa sociedade democrática5, conforme manifestação ideológica de julgados do Tribunal Constitucional Federal Alemão.

Conclusão As publicações realizadas sem autorização, independente de quais sejam entre filmes, livros, peças teatrais ou outras quaisquer, devem ter a ideia de num primeiro plano, possuir um amparo legal dentro de uma justificativa dos direitos fundamentais, liberdade de expressão ou qualquer outro tipo de legalização da difusão da comunicação. A exigência de autorização do biografado ou, no caso de este ser pessoa falecida, dos respectivos familiares, ou titulares legítimos do seu patrimônio moral, configura uma clara violação da liberdade de expressão e de informação, incompatível com a especial sensibilidade jurídico-institucional dos princípios da liberdade e da democracia6. Logo, uma possibilidade de apaziguamento entre o impasse desse confronto normativo pode ser observado pelo zelo de uma interpretação para se conseguir a melhor interpretação das normas discutidas de cunho personalíssimo, com consequente sanção, inibição ou reparação do direito posto à lide. Segundo a doutrina, grande parte do direito de expressão está ancorada numa barreira constitucional que deve ser respeitada. Todo o material a ser publicado sem o crivo de uma prévia autorização deveria, no mínimo, passar por uma análise das pessoas que possuam um vínculo social com aquele indivíduo a que se refere, buscando dar um tratamento de grande veracidade aos fatos narrados. E com ou sem a autorização prévia, deverá o biógrafo manter o zelo pela decência das informações prestadas, buscando cultivar os direitos da personalidade como causa primordial no tratamento verídico dos fatos narrados. A prioridade de se ter uma resolução para o conflito advindo do confronto entre o direito de expressão e um direito da personalidade, de forma equilibrada, justifica a proteção que a Justiça precisa dar aos biografados em relação aos atos ofensivos ou que deturpam sua imagem por aquele que a divulga de uma forma agressiva ou não condizente com a verdade vivida pelo mesmo. Clamar por atenção ou buscar estar em voga devido a alguns relatos falsos, porém, alarmantes e de grande curiosidade popular, pode trazer um sucesso vantajoso e rápida vantagem financeira para o biógrafo, porém, momentâneo. E aqui a Justiça deve estar sempre prontificada a filtrar o abuso de forma a coibir coercitivamente qualquer

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5 CANOTIHO, 2014, p. 59. 6 CANOTIHO, 2014, p. 96.

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vantagem desonrosa àquele a que se noticia, através de um real balanceamento das garantias fundamentais constitucionais, dando legalidade ao trabalho de autores que realmente se preocupam com a honestidade do que se publica. Há de se reforçar que os ordenamentos Civil e Penal devem atuar em consonância com o que a Constituição Federal prevê, impondo-se obrigatoriamente o que houver de restrição jurídica, dentro de uma justificativa constitucional de proteção, escolhendo na aplicação do caso, a forma que traga uma menor redução possível da liberdade de expressão bem como a menor estrangulação do direito da personalidade observado. Assim, excetuandose aquelas situações de extremidade onde se observa a razoabilidade de bens constitucionais analisados através de uma ponderação constitucional, a tutela jurídica deverá ser observada em busca de uma resposta de contrapartida numa responsabilidade danosa, seja em face de figuras públicas ou privadas, apontadas como abusadoras do direito de se expressarem face à outrem. Como, mais uma vez, inevitável não elucidar os ensinamentos de Gaio Júnior, justifica-se a convocação de todos estes aspectos para evitar a produção de um efeito censório e inibitório equivalente à exigência inconstitucional de uma autorização prévia para a elaboração de uma biografia7.

Referências bibliográficas BARROS, Carlos Roberto Galvão. A Eficácia dos Direitos Sociais e a Nova Hermenêutica Constitucional. São Paulo: Virtual Books, 2010. CANOTIHO, José Joaquim Gomes. Biografia não autorizada versus liberdade de expressão. José Joaquim Gomes Canotilho, Jonatas E. M. Machado, Antônio Pereira Gaio Junior./ Curitiba: Juruá, 2014. DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. Rio de Janeiro. 2. ed. Renovar, 2006. DOTTI, René Ariel. Proteção à vida privada e liberdade de informação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Eletrônico: Versão 5.12. Curitiba: Positivo, 2004. MARINO, Denise Mattos. História: 8º ano / Denise Mattos Marino e Léo Stampacchio: 4. ed. – São Paulo: IBEP, 2012 MARTINS-COSTA, Judith. Pessoa, personalidade, dignidade (ensaio de uma qualificação). Tese de Livre-Docência. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2003. O PAPA... Liberdade de expressão não dá o direito de insultar o próximo, diz o Papa. Disponível em: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/01/liberdade-de-expressaonao-da-o-direito-de-insultar-o-proximo-diz-papa.html. Acesso em 24 mar. 2015.

7 CANOTIHO, 2014, p 98.

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Dano social: ativismo judicial ou justiça social? Ludmila Roberto Moraes1 Resumo A Constituição Cidadã inaugurou o Estado Democrático de Direito, pretendendo a construção de uma sociedade justa e solidária. Somado a esse diploma, a publicação do Código Civil e do Código de Defesa do Consumidor trouxe uma responsabilidade civil nitidamente social que caminha em direção a tutela dos interesses sociais. Diante do capitalismo vigente, marcado pela busca desenfreada ao lucro dos grandes conglomerados econômicos, condutas lesivas as normas legais vem afetando fortemente os consumidores e a coletividade como um todo. Surge, a Teoria do Dano Social, como sendo um instrumento de reparação à coletividade e além disso, como um meio desencorajador das práticas ilícitas cometidas pelas grandes empresas. O magistrado condena a empresa a uma reparação e/ ou ressarcimento a vítima e na mesma decisão aplica o dano social que é a condenação a um valor bastante significativo, que será destinado a uma instituição que atue em prol da sociedade. Trava-se uma discussão acerca da aplicação da teoria do dano social, como sendo uma conduta negativamente ativista, e que tais decisões seriam ultrativas. Entretanto, supera-se a discussão, ao considerar que a aplicação da teoria do dano social é medida coercitiva indireta positivada no ordenamento jurídico pátrio. Palavras-chave: Responsabilidade Civil; Dano Social; Ativismo Judicial; Justiça Social. Abstract The Citizen Constitution inaugurated the democratic rule of law, intending to build a just and caring society. Added to this degree, the publication of the Civil Code and the Consumer Protection Code brought a distinctly social liability that walks toward the protection of social interests. Given the current capitalism, marked by unbridled quest for profit of big corporations, detrimental conduct legal norms is strongly affecting consumers and the community as a whole. Arises, the Theory of Social damage, the community as a repair tool and also as a means of discouraging illicit practices committed by large companies. The judge condemns the company to repair and / or compensation to the victim and the same decision applies the social damage that is the sentence to a very significant value, which will go to an institution that acts on behalf of society. Lock up a discussion about the application of the theory of social harm, as a conduit negatively activist, and that such decisions would be ultrativas. However, overcomes the discussion, considering that the application of the theory of social harm is indirect coercive measure positively valued in the Brazilian legal system. Keywords: Civil liability; Damage Social; Judicial Activism; Social Justice. 1 Pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Universidade Estácio de Sá. Graduanda em Direito pela Universidade Estácio de Sá campus Nova Friburgo. Especialista em Odontologia do Trabalho pela Associação Brasileira de Odontologia – ABO/RJ; Especialista em Saúde da Família pela Escola Nacional de Saúde Pública ENSP/FIOCRUZ; Graduada em Odontologia pela Universidade Federal Fluminense – UFF/Campus Niterói. Cirurgiã-Dentista Servidora Pública dos Municípios de Nova Friburgo/RJ e Cabo Frio /RJ.

Dano social: ativismo judicial ou justiça social?

Introdução O presente trabalho se destina a um breve estudo do instituto do Dano Social, de forma a expor como vem se apresentando em decisões do judiciário brasileiro. Pretende discutir em que prisma essa prática, que ainda timidamente vem sendo introduzida, se posiciona, sendo, pois, mais uma flagrante manobra do ativismo judicial ou se coadunaria aos preceitos da justiça social. Para cumprir com esse objetivo, o estudo compromete-se em apresentar de forma breve o instituto da Responsabilidade Civil, a gênese do ato ilícito e a indústria do dano que a economia capitalista com sua lógica perversa e desenfreada de mercado vem sustentando hordienamente. O trabalho pretende como eixo nodal discutir acerca da Teoria do Dano Social, demonstrando como vem sendo aplicada nas demandas judiciais pátrias, além disso, busca apresentar suscintamente o Ativismo Judicial e a investigar se há um diálogo estreito do instituto do Dano Social com tal prática ou perquerir se a aplicação do Dano Social cumpre com a tão desejada equidade perseguida pelos ditames da Justiça Social dentro do cenário das relações de consumo. O desenho de todo esse trajeto visa enfrentar, derradeiramente, a possivel dialexidade da aplicação do Dano Social num viés ativista e/ou como uma forma de fazer cessar as práticas abusivas que são recorrentes e que lesam sobremaneira a coletividade, homenageando e apaziguando o clamor por justiça social. O Dano Social poderá ter surgido mediante a existência atual dos grandes conglomerados econômicos que ao visar incessantemente o lucro, não se intimidam de reiteradamente lesar a coletividade com suas práticas abusivas. O tema apresenta inquestionável relevância tendo em vista que o instituto do Dano Social, ainda que embrionariamente, vem sendo apresentado em decisões judiciais pátrias, e é preciso que o operador do Direito esteja antenado ao assunto de modo a tutelar os interesses que afetarão seus jurisdicionados e suas maneiras de construir o pleito de forma exitosa. A realização do trabalho teve como metodologia a Revisão Bibliográfica, onde foram consultadas várias literaturas relativas ao assunto, artigos publicados na internet, além de estudos doutrinários e jurisprudenciais acerca do tema. A pesquisa bibliográfica possibilitou a formulação do problema a ser enfrentado e a construção de hipóteses, sendo, pois, a intenção do trabalho provocar o questionamento e a reflexão sobre o tema. O trabalho buscou utilizar-se do método dedutivo para análise dos fins pretendidos, uma vez que se valeu como ponto de partida de premissas de caráter geral, que se comportam como afirmações supostamente aplicáveis a determinada situação problemática particular.

Responsabilidade Civil

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A Responsabilidade Civil sofreu profundas modificações ao longo dos anos, tendo em vista que a sociedade e os operadores do direito buscavam legitimar o ressarcimento dos danos decorrentes de atos praticados pela administração

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pública, figurando o Estado como alvo de ações indenizatórias em face dos danos causados aos indivíduos. No Brasil, a responsabilidade civil também sentiu as mudanças ao longo dos anos em face das novas proteções, direitos e garantias fundamentais, previstas na Constituição Federal de 1988 e pelo Código Civil de 2002. O Estado Democrático de Direito inaugurado por esses diplomas buscou a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. Surge, então, uma responsabilidade civil nitidamente social que caminha em direção a tutela dos interesses sociais. Trata-se de uma verdadeira revolução dos conceitos tradicionais de responsabilidade civil e do ressarcimento dos danos praticados, em que o juiz não fica adstrito a proteger os interesses individuais, mas busca decidir de maneira eficaz para reparar o “dano globalmente produzido” (CAPPELLETTI. 1997 p. 141).2CAVALIERI (2014) 3 destaca que os maiores desafios da Responsabilidade Civil moderna será o de previnir o alastramento do dano, garantir a indenização satisfatória quando da sua ocorrência, e por último, o maior de todos os desafios será o de previnir e reparar os danos coletivos e difusos. Nessa seara que envolve os danos coletivos, é mister debater a cerca da responsabilidade social das empresas privadas, detentoras do domínio econômico e notoriamente praticante de atos ilícitos que afetam diretamente os indivíduos e indiretamente toda a sociedade. Recuperando o que foi dito anteriormente, se o Estado fora, num dado momento histórico, o principal objeto de estudo em relação à sua responsabilidade perante a sociedade, há que se aperfeiçoar, hodiernamente, a limitação da atuação das empresas privadas que buscam apenas lucros sem se preocupar com a função social dos seus atos. Fulcrado nessa responsabilização, nasce a Teoria do Dano Social. Situa-se no plano da Responsabilidade Civil. Não qualquer responsabilidade civil, mas a de índole social, coletiva, que perpassa os interesses individuais para alcançar os direitos e interesses de grupos sociais e ou de toda a coletividade. Pode ser material (financeiro) ou moral (extrapatrimonial, afeta os direitos à personalidade, como vida, saúde, sossego, integridade física, imagem, honra) (MARGRAF, 2013) 4 Logo, a reparação dos danos sociais não cobre os prejuízos de uma vítima em específico, o que o difere de uma indenização por dano moral individual. O dano repetitivo, constante e destrutivo das práticas abusivas dos grandes conglomerados econômicos, não alcança apenas a vítima do caso concreto, mas todo o corpo social. 2 CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Tradução de Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. jan-mar/1997. 3 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. – 11.ed. – São Paulo: Atlas, 2014 4 MARGRAF, Alencar Frederico. Teoria Do Dano Social: A Hermenêutica Constitucional Como Trincheira Contra Os Grandes Conglomerados Econômicos. Revista Crítica do Direito número 3 volume - 02 de dezembro a 06 de janeiro de 2013 RCD - Revista Crítica do Direito

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O Dano Social visa, portanto, a reparar a coletividade, repetidamente violada pela reiteração de condutas ilícitas. Além disso, objetiva evitar que situações semelhantes tornem a repetir-se. O assunto será melhor enfrentado adiante.

O capitalismo e a indústria do ato ilícito Nessa esteira da ordem constitucional vigente que tem como paradigma a solidariedade, o Código Civil, 5 em seu artigo 187 define como ilícito o ato praticado pelo “titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. NADER (2011) 6 compreende o abuso do direito como sendo uma forma especial de prática do ilícito, que pressupõe a existência de um direito subjetivo, o seu exercício anormal e o dano ou mal-estar provocado às pessoas. Muito lucidamente, o referido doutrinador explana sobre a Teoria do abuso do direito nas linhas, a seguir: Atualmente a teoria do abuso do direito não apenas é reconhecida, como também considerada indispensável à segurança social. A necessidade de proteção aos interesses coletivos torna inadmissível que o espírito de emulação ou capricho de um possuidor de direito prejudique o bemestar social. O direito subjetivo deve ser utilizado de acordo com a sua destinação, com a finalidade que lhe é própria, dentro dos limites impostos pelo interesse coletivo. (NADER, 2011 - pág. 348)

Diante da previsão legislativa trazida no artigo supracitado do Código Civil Brasileiro, CAVALIERI (2014) 7 compreende que o abuso do direito foi assim configurado como ato ilícito dentro de uma visão objetiva, uma vez que boa-fé, bons costumes, fim econômico ou social nada mais são que valores éticos-sociais consagrados pela norma em defesa do bem comum. É, pois, segundo o mesmo autor, o conceito de ato ilícito de nodal relevância, sendo este o fato gerador da Responsabilidade Civil. Trata-se, pois, da antijuridicidade da conduta, a desconformidade entre esta e a ordem jurídica, ou seja, é a violação de um dever jurídico. MARGRAF (2013) 8 entende que o liberalismo, na sua atual configuração, propiciou o fortalecimento ilimitado dos conglomerados econômicos. Nesse

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5 VADE MECUM RT. 8. Ed.rev.,ampl.e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 6 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito – 33ª ed. ver., atual., Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 348 7 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. – 11.ed. – São Paulo: Atlas, 2014 8 MARGRAF, Alencar Frederico. Teoria Do Dano Social: A Hermenêutica Constitucional Como Trincheira Contra Os Grandes Conglomerados Econômicos. Revista Crítica do Direito número 3 volume - 02 de dezembro a 06 de janeiro de 2013 RCD - Revista Crítica do Direito

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sentido, compreende ser de suma importância se desenvolver uma hermenêutica constitucional capaz de blindar a coletividade contra essa nova fortaleza econômica, violadora de direitos fundamentais, ávida pelo lucro, que move os grandes conglomerados. SANDEL (2012) 9 traz relatos chocantes a respeito da falta de moralidade existente dentro das sociedades capitalistas pelo mundo a fora. Em sua obra ficou evidente que a criatividade humana tem demonstrado um avanço extraordinário para a maximização dos lucros, independentemente da possibilidade de causar lesão ou não a um sujeito, a vários ou a toda coletividade. Por mais que a Lei Suprema defenda a busca do lucro e a exploração do trabalho para alcançar tal objetivo, ela não legitima o excesso ou o abuso. As empresas capitalistas buscam por meio do livre arbítrio humano a fundamentação das suas atividades, no entanto esquecem que além de direitos elas possuem obrigações, sendo uma delas o retorno social de sua atividade, ou seja, o benefício por ela trazido à sociedade e a diminuição das lesões por ela proporcionada.

O dano O dano é considerado o pivô da responsabilidade civil, sem o qual, não haveria que se falar em obrigação de indenizar ou ressarcir, de tal sorte, que não basta o ato ilícito, este deve ser capaz de produzir um dano. CAVALIEIRI (2014) 10 entende que o dano deva ser conceituado como uma lesão a um bem ou interesse juridicamente tutelado, sendo este de natureza patrimonial, moral ou diverso desses dois, como é o caso do dano à imagem e o dano estético. Sendo certo que esse estudo pretende iniciar um diálogo acerca do dano social, é devido, pois, que nessa altura seja timidamente enfrentado a modalidade de dano moral que pode ter sido o nascedouro do dano social, qual seja, o Dano Moral Coletivo, mas que com ele não se confunde. Em razão, principalmente das vítimas atingidas que no dano social são indeterminadas ou indetermináveis e no dano moral coletivo são determinadas ou determináveis. Para o ilustre Professor já referendado acima, o dano moral coletivo relaciona-se a mácula a direitos e interesse difusos e coletivos. O autor traz como conceito a essa modalidade de dano: Pode-se então conceituar o Dano Moral Coletivo como sentimento de desapreço que afeta negativamente toda a coletividade pela perda de valores essenciais; sentimento coletivo de comoção, de intranquilidade ou insegurança pela lesão a bens de titularidade coletiva, como o meio 9 SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado; tradução de Clóvis Marques. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 2012. 10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. – 11.ed. – São Paulo: Atlas, 2014

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ambiente, a paz pública, a confiança coletiva, o patrimônio (ideal) histórico, artístico , cultural e paisagístico. (Cavalieri, 2014 - pág.134)11

Em suma, o dano moral coletivo é o que atinge vários direitos de personalidade ao mesmo tempo, de pessoas determinadas ou determináveis. Esse instituto nasce do terreno delineado pelo art. 6º, inciso VI, do Código de Defesa do Consumidor. 12 A partir desse momento, será apresentada essa nova modalidade de dano, qual seja o dano social, onde está fulcrado o presente estudo.

Teoria do dano social O reconhecimento da solidariedade como paradigma do ordenamento jurídico exige uma conduta diferenciada e comprometida do Estado - Juiz. Cumprir a Constituição implica, também, coibir condutas que de modo reiterado negam a vigência de suas normas. Por isso mesmo, a verificação de existência de macro lesão exige um tratamento rigoroso e diferenciado, por parte do Poder Judiciário. O principal mecanismo para a nova responsabilidade civil é a TEORIA DO DANO SOCIAL, que se propõe ser justa, distributiva, solidária e fraternal. Desenvolvida pelo professor da Universidade de São Paulo Antonio Junqueira de Azevedo. Os danos sociais são aqueles que causam um rebaixamento no nível de vida da coletividade e que decorrem de condutas socialmente reprováveis. Tal tipo de dano dá-se quando as empresas praticam atos negativamente exemplares, ou seja, adotam condutas corriqueiras que causam mal estar social. (TARTUCE, 2013 - p. 435 e 436).13 Os danos sociais são difusos. Alcançam vítimas indeterminadas ou indetermináveis. A sua reparação está prevista no art. 6º, inciso VI, do Código de Defesa do Consumidor (TARTUCE, 2013 - p. 440). O dano, então, repetitivo, constante e destrutivo, não alcança mais apenas a vítima do caso concreto. Espraia-se por todo o corpo social. Alcançando uma cidade, um Estado, o País inteiro. A Aplicação da Teoria do Dano Social, em termos práticos, confere a fixação de indenização por dano moral e multa diária, caso haja descumprimento da decisão judicial, valores estes que são conferidos a parte lesada. Mas a partir do momento que a lesão alcançou, naquele caso concreto, devido à reiteração da conduta ilícita, a coletividade, uma outra reparação haverá de nascer. E o destinatário, agora, não é mais a vítima do caso concreto, mas a população inteira. O magistrado destina à coletividade um valor reparatório que se fulcra

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11 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. – 11.ed. – São Paulo: Atlas, 2014 12 VADE MECUM RT. 8. Ed.rev.,ampl.e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 13 TARTUCE, Flávio. Direito civil 2. Direito das obrigações e responsabilidade civil. 8ª ed. São Paulo: Método, 2013, p. 435, 436 e 440

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numa perspectiva de evitar novas condutas e compensar a população pelos danos sociais ocasionados pela corporação capitalista. (MARGRAF, 2013).14 O valor, então, é encaminhado para algum serviço ou entidade que se presta a atender a coletividade, ou a um certo grupo social marginalizado. Em outras palavras, a destinação é direta ou indiretamente para um programa de inclusão social, que afete positivamente a coletividade. Alguns requisitos básicos deverão estar presentes para que seja pertinente a aplicação da teoria do dano social: 1º) O violador deve ser pessoa jurídica de dimensão transnacional, nacional ou regional, sempre com atuação elástica por todo o País, por todo um Estado, ou uma região do Estado; 2º) Reiteração de condutas ilícitas. Não é necessário que a repetição se dê no âmbito do Poder Judiciário, podendo a conduta ser reiterada apenas na esfera administrativa; 3º) Dano com aptidão de afetar a coletividade ou um grupo de pessoas indeterminadas ou indetermináveis. Pode caracterizar-se pela reunião de vários danos individuais, desde que as vítimas não sejam passíveis de determinação imediata; 4º) Dano suficientemente grave, que produza verdadeiros sofrimentos, intranquilidade social e alterações relevantes na ordem extrapatrimonial coletiva, dada a apropriação indevida da renda dos indivíduos e a enganação produzida no espírito dos consumidores brasileiros. A teoria do dano social trata-se, pois, de um instituto de direito material e de direito processual. Quanto ao direito material, situa-se no plano da responsabilidade civil de índole social, coletiva, que perpassa os interesses individuais para alcançar os direitos e interesses de grupos sociais e ou de toda a coletividade. A teoria do dano social não deixa de ser uma forma de reparação de dano, social. O dano social pode ser material (financeiro) ou moral (extrapatrimonial, afeta os direitos à personalidade, como vida, saúde, sossego, integridade física, imagem, honra). A reparação dos danos sociais visa a reparar a coletividade, repetidamente violada pela reiteração de condutas ilícitas. Além disso, objetiva evitar que situações semelhantes tornem a repetir-se. Para além de sua dupla função compensatória ou reparatória e punitiva ou disciplinadora, também contempla função distributiva. A reparação visa a retirar desses conglomerados valores apoderados pelas praticas lesivas e entregar esses valores à coletividade. A teoria do dano social, também reveste-se de feição processual, possuindo a mesma natureza coercitiva das multas ou astreintes. Muitas vezes, a multa é suficiente para exigir o cumprimento da decisão judicial no que toca ao conflito 14 MARGRAF, Alencar Frederico. Teoria Do Dano Social: A Hermenêutica Constitucional Como Trincheira Contra Os Grandes Conglomerados Econômicos. Revista Crítica do Direito número 3 volume - 02 de dezembro a 06 de janeiro de 2013 RCD - Revista Crítica do Direito

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Dano social: ativismo judicial ou justiça social?

individual manejado pela parte. Mas a repetição de condutas ilícitas face a coletividade fica intocável. Em resumo, possui uma natureza jurídica híbrida, rata-se de um instituto de direito material, inserto na responsabilidade civil, de feição social, com a tripla função compensatória ou reparatória, punitiva-desestimuladora e distributiva. Além disso, desenha-se como um instituto do processo civil, enquadrando-se como um meio de coerção indireta. Os meios de coerção indireta estão previstos no rol exemplificativo do art. 461, §5º, do Código de Processo Civil15. Este dispositivo consagra a atipicidade dos meios executivos. Atribui-se ao juiz o poder coercitivo ou poder geral de efetivação, podendo determinar, de ofício, as medidas executivas cabíveis. Dessa forma, o juiz poderá aplicar a teoria do dano social, como meio de coerção indireta à solução do conflito social subjacente. O processo moderno, repita-se, tem conotação pública e social. A solução dos conflitos, mesmo os individuais, traduz matéria de interesse público e social. Quando, numa demanda individual, o juiz verificar que o conglomerado econômico vem repetindo a conduta ilícita, de modo que a violação atinja grupos sociais ou a coletividade, o juiz tem a obrigação de transformar a lide individual num assunto de interesse social. Se presentes os requisitos próprios, o magistrado então aplica a teoria do dano social no processo individual. Enfim, a teoria do dano social permite que se cumpram com dois valores fundamentais de uma organização social justa: a liberdade e a igualdade. Faz do Direito um instrumento importante para a transformação social, aproximando-o da realidade da vida, das relações produtivas injustas que operam no interior da sociedade.

Julgados emblemáticos Plano Pré Pago INFINITY-PRÉ TIM A TIM CELULAR S. A. divulgou nacionalmente o seu PLANO INFINITY PRÉ a toda coletividade. A oferta era de que, para cada ligação coberta pelo plano o consumidor pagaria R$0,25, sem limite de tempo. Entretanto, a empresa de telefonia provocava interrupções e assim, um assunto que poderia ser resolvido numa só ligação, resolver-se-ia ao largo de várias ligações, forçando ao pagamento de várias tarifas de R$0,25. Tal conduta fere o direito à transparência nas relações de consumo, sendo este, um direito não restrito à simplicidade das teias contratuais, e quando violado, afeta toda a coletividade. Trata-se de um julgado emblemático do Juizado Especial Cível e Criminal da Comarca de Jales-SP (processo nº 1507/2013), pois o Magistrado, ao sentenciar, explana acerca da Teoria do Dano Social, o que revela-se como um importante avanço do Direito. Entende o magistrado, a necessidade da aplicação da referida teoria

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15 VADE MECUM RT. 8. Ed.rev.,ampl.e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

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para realização dos preceitos de justiça, numa era em que os consumidores são reiteradamente violados pelas grandes companhias econômicas. Por meio dessa teoria, a coletividade ou um grupo social difuso, com vítimas indeterminadas, acaba recebendo uma reparação pelos danos seguidamente sofridos, uma vez que é aplicada uma multa de valor expressivo. O dinheiro, então, é destinado a alguma entidade ou instituição ou programa de interesse social. No caso, em tela, a TIM foi condenada a título de Dano Social a pagar R$5 milhões revertido em benefício da Santa Casa e do Hospital do Câncer de Jales-SP.

Não cobertura de plano médico: caso Amil - Assistência Médica Internacional  De acordo com o recurso de Apelação n.º 0027158.41.2010.8.26.0564 impetrado por Amil Assistência Médica Internacional nos autos em que foi condenada à indenização por danos morais, percebe-se que além da manutenção da decisão fora aplicada multa no valor de um milhão de reais a ser destinada ao Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. No acórdão ficou em evidência o descaso e a utilização de fundamentações ultrapassadas e meramente reproduzidas de teses de defesas apresentadas desde o ano de 1997 para não realizar a cobertura do plano de saúde aos contratados.  A conclusão tomada pela colenda Câmara foi que aquela situação de impunidade e desrespeito com a coletividade não poderia ser ignorada e por essa razão seria necessário impor uma reprimenda para equilibrar os danos já causados à sociedade, bem como para “evitar a reiteração do já proibido”, tendo em vista que tais irregularidades já haviam sido notificadas desde o ano de 1997 e nenhuma medida reparadora havia sido realizada. Assim sendo, com a intenção de reparar os danos causados pelo descaso e pela repetição dos atos antissociais das empresas, se faz necessário punir os agentes com a “retirada de lucro desmedido que obteve à custa de transgressões dos contratos massificados e que vitimizam consumidores impotentes” (TJSP, 4ª Câmara de Direito Privado, Apelação nº 0027158.41.2010.8.26.0564, Relator Carlos Teixeira Leite Filho, julgamento proferido no dia 18/7/2013, votação unânime). A falta de acesso à caixa prioritário no BANCO ITAÚ-UNIBANCO S.A O MPERJ impetrou Ação Civil Pública para exigir que a agência disponibilizasse um caixa convencional para atendimento aos idosos, gestantes, deficientes físicos e pessoas com dificuldade de locomoção, tendo em vista que o atendimento prioritário somente era realizado no segundo pavimento da agência. Por essa razão requereu-se a condenação ao pagamento de indenização por danos morais coletivos a serem revertidos para um fundo nos moldes do artigo 13 da Lei 7347/85 (Lei da Ação Civil Pública). O STJ manteve a decisão no que tange à responsabilidade do Banco Itaú Unibanco S.A quanto aos danos sociais praticados, impondo a condenação pecuniária no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) a serem revertidos ao fundo. (Resp 1221756/

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Dano social: ativismo judicial ou justiça social?

RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, Julgado Em 02/02/2012, Dje 10/02/2012).

O ativismo judicial Hodiernamente, muito se debate no cenário jurídico acerca do chamado “ativismo judicial”. No Brasil, o ativismo judicial somente recebeu atenção pela comunidade jurídica com o deslocamento da Carta Magna para o centro do ordenamento jurídico, quando então toda a ordem jurídica passou a ser interpretada conforme a Constituição, fazendo-se uma verdadeira leitura garantista do direito. O tema é enfrentado pela doutrina de forma bastante dialética. Parte dela entende ser o Ativismo um completo abandono da norma posta por critérios subjetivos do intérprete do direito e, outra vertente doutrinária, entende que a postura ativista deva ser perseguida pelo operador do direito que por meio de suas decisões, deverá extrair o verdadeiro sentido da norma constitucional, viabilizando, por conseguinte, o exercício de direitos e garantias fundamentais insertos na Carta Magna, com fito realização de justiça e pacificação social. O que parece pacificado entre os doutrinadores é que o ativismo judicial conceitualmente é o exercício da função jurisdicional além dos limites impostos pelo próprio ordenamento. A controvérsia está na tenacidade interpretativa de tal comportamento. Parece que o parâmetro para caracterizar uma decisão como ativista ou não reside numa controvertida posição sobre qual é a correta leitura de um determinado dispositivo constitucional. Segundo assevera LEAL (2008), 16 a expressão ativismo está associada à ideia negativa de exorbitância de competência por parte do Poder Judiciário. Já para o professor DE CARVALHO (2014)17 uma postura ativista seria aquela adotada pelo magistrado que reconhece estar a atividade jurisdicional além do fazer cumprir a lei em seu significado formal, mas sim de realizar os princípios constitucionais abstratos, como: dignidade da pessoa humana, igualdade e liberdade. O eminente Professor Lênio Luiz Streck 18(2013), enfrenta o assunto como sendo um viés relativo a consciência do julgador e o poder discricionário que acompanha o exercício do seu ofício. Sustenta que haveria uma tendência contemporânea de apostar no protagonismo judicial como uma das formas de concretização de direitos. Neste diapasão, considerando que os princípios e valores consagrados pela Carta Magna são de ordem abstrata e subjetiva, cabe ao intérprete

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16 LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal. Brasília, 2008 17 DE CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo. Ativismo Judicial em Crise. Disponível em: http://www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/ativismo-judicial-em-crise. Acesso em: 20/11/2014. 18 STRECK, Lênio Luiz. O que é isto – decido conforme a minha consciência. 4. ed. Editora Livraria do Advogado. Porto Alegre . 2013

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extrair-lhe o significado e aplicabilidade prática almejados pelo legislador constitucional, o que, no entanto, segundo o então professor, acaba dando ensejo a discricionariedade que conduz à arbitrariedade, fazendo exsurgir decisões em total descompasso com a norma posta, como se não lhe devesse obediência alguma. Portanto, para que as decisões judiciais emanadas não se qualifiquem como fruto da consciência do julgador, segundo suas convicções pessoais, é necessário que a atividade interpretativa seja realizada conforme a Constituição, a luz de uma Hermenêutica Constitucional. Enfrentar a questão do ativismo nesse estudo é de suma importância tendo em vista que a Teoria do Dano Social pode ser vista como uma prática discricionária do magistrado o que seria representativa de uma atitude que carece de legitimidade e que, portanto, deva ser desencorajada. Entretanto, a luz daqueles que consideram que o ativismo como instrumento garantidor de direitos, poderá a aplicação do dano social no caso concreto, como sendo uma atitude positiva de um magistrado que entende que a prestação jurisdicional deva estar a serviço dos ditames e preceitos de uma justiça social.

A sentença ultra petita e aplicação do dano social A sentença trata-se de um ato do juiz previsto no artigo 162 § 1º do Código de Processo Civil, que tem o fito de extinguir a demanda judicial com ou sem resolução do mérito. O código adjetivo civil ainda encerra dois dispositivos que abarcam os limites desse ato e enunciam o princípio da Congruência ou da Adstrição da sentença ao pedido, quais sejam o art 128 e o art 460. O primeiro dispõe “o juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte” (art 128 CPC) e o último: “É defeso ao juiz proferir sentença, a favor do autor, de natureza diversa da pedida, bem como condenar o réu em quantidade superior ou em objeto diverso do que lhe foi demandado” (art 460 CPC)19. A doutrina majoritária entende que o limite da sentença é o pedido, de tal sorte que o distanciamento desse limite importa em vícios que qualificam a sentença em citra, extra ou ultra petita. De forma extremamente suscinta definese a primeira e a segunda, respectivamente como sendo a sentença aquém do pedido e a senteça diversa do pedido. Quanto a última, objeto do enfrentamento, o renomado Prof. DONIZETTI (2013, pág 589) esclarece20: Na sentença ultra petita, o defeito é caracterizado pelo fato de o juiz ter ido além do pedido do autor, dando mais do que fora pedido. Exemplo: se o autor pediu indenização por danos emergente, não pode o juiz condenar o réu também em lucros cessantes.(pág 589.) 19 VADE MECUM RT. 8. Ed.rev.,ampl.e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013. 20 DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 17. ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2013

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Dano social: ativismo judicial ou justiça social?

Nesse diapasão, há quem entenda que a aplicação Dano social vicia a decisão judicial fazendo nascer uma sentença ultra petita. É, pois, o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 15ª região, no acordão ao Recurso Ordinário nº 6097220125150081 SP 034094/2013- PATR, Relator: LUIZ ROBERTO NUNES, data de Publicação: 03/05/2013): INDENIZAÇÃO POR DANO SOCIAL. CONDENAÇÃO DE OFÍCIO. JULGAMENTO ULTRA PETITA. Por força do disposto nos artigos 128 e 460 do CPC, o âmbito de atuação do Julgador está adstrito aos limites traçados pelo pedido inicial, sendo vedado ao Judiciário o julgamento extra ou ultra petita. Nesse passo, não pode subsistir a indenização por dano social imposta de ofício pela origem, em sede de reclamatória individual, em que pese a louvável intenção do Julgador de atuar na proteção do interesse da coletividade (TRT-15 - RO: 6097220125150081 SP 034094/2013-PATR, Relator: LUIZ ROBERTO NUNES, Data de Publicação: 03/05/2013)

Entretanto, a sentença, num processo individual, deverá sempre que possível, alcançar a efetivação do direito de outros grupos sociais. A multa (astreintes) pode ser um importante mecanismo assecuratório para garantir a efetivação do direito individual. Mas, para que o processo cumpra sua finalidade pública, a multa não basta, nascendo para o Poder Judiciário o instituto do Dano Social, que em nada confere ultratividade a decisão judicial . A base legal para aplicação de tal teoria como meio de coerção indireta é o art. 465, §5º, do Código de Processo Civil: “Para a efetivação da tutela específica ou a obtenção do resultado prático equivalente, poderá o juiz, de ofício ou a requerimento, determinar as medidas necessárias, tais como (...)”.21 Ao inserir no dispositivo a expressão “tais como”, o legislador assinalou que os meios à disposição do juiz não são apenas os catalogados no preceptivo legal citado. Coaduna-se a esse entendimento o magistrado da Comarca de Jales, município paulista, ao defender em sua sentença a legitimidade da aplicação do Dano Social: Tais meios de coerção indireta encontram previsão no art. 465, §5º, do Código de Processo Civil. São os catalogados no dispositivo, além de outros meios de coerção indireta sujeitos à criatividade do juiz – tanto que referido artigo usa a expressão exemplificativa “tais como”. Podem, inclusive, ser aplicados de ofício pelo juiz, sem o pedido da parte interessada. O processo civil moderno assumiu uma feição pública e social. Além de dar cabo dos conflitos individuais, busca arrancar os conflitos sociais subjacentes e entregá-los ao prato saboroso da justiça (...) Referida teoria aplica-se mesmo aos processos que veiculam demandas individuais, porquanto o processo civil moderno assumiu uma feição social e pública e lhe interessa dar cabo não apenas dos conflitos individuais, mas também dos conflitos que afetam a comunidade. (Processo nº 201310141500530 - pág.7)

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21 VADE MECUM RT. 8. Ed.rev.,ampl.e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

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Diante do exposto, fica evidente que o instituto do Dano Social tem sua natureza jurídica compreendida de forma diversa pelos operadores do direito. O olhar direcionado a esse instituto é que o qualifica ou como um vício ativista das decisões judiciais ou como instrumento, também ativista, mas no seu viés positivo e por isso garantidor de justiça social.

A justiça social Ao abordar a questão das desigualdades sociais se faz necessário, antes de qualquer discussão, reconhecer que é uma ilusão acreditar no seu fim, tendo em vista que até mesmo a Constituição Federal em seu artigo 3º inciso III prevê que é um objetivo fundamental da República reduzir a desigualdade, e não erradicá-la25. No entanto, por mais que existam diversos direitos que protegem o ser humano na sua individualidade há de se reconhecer a necessidade de evitar a violação de direitos coletivos. DE MELLO (2011, p. 881) 22afirma que o Estado não deve exercer apenas o papel de mantenedor da paz e da ordem, assume uma função mais ampla no sentido de buscar, ele próprio, o bem-estar coletivo. Salienta ainda que a Constituição Federal deverá ser seguida devida sua força mandamental, pois se trata de “um conjunto de dispositivos que estabelecem comportamentos obrigatórios para o Estado e para os indivíduos.” Por essa razão, quando trata da realização de uma Justiça Social estará na verdade, de maneira imperativa, “constituindo o estado brasileiro no indeclinável dever jurídico de realizá-la”. SILVA (2000) 23 destaca que a ausência da justiça social fere diretamente a dignidade da pessoa humana, pois esta protege as condições mínimas de existência. Desacredita na possibilidade de conciliação do capitalismo atual com o Estado Democrático e Social de Direito, tendo em vista que “a história mostra que a injustiça é inerente ao modo de produção capitalista”. Na mesma linha de raciocínio relata BRUNA (2011, p.172)24 que se a atividade econômica não for controlada acarretará na usurpação da renda social, limitando e impedindo o alcance da justiça social “que somente se realiza mediante distribuição equitativa de riqueza”. TEPEDINO (1999, p. 66) 25 entende que as atividades de mercado proporcionam inúmeros conflitos entre as normas que tutelam a dignidade da pessoa humana e a exploração econômica, afirmando ainda que será necessário um controle social mais efetivo e consubstanciado nos valores constitucionalmente estabelecidos29 22 DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, vol. 6, Mai/2011. 23 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 17 ed., São Paulo: Malheiros Editores, 2000 24 BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico e a conceituação do abuso no seu exercício. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001 25 TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil: Direitos Humanos e as relações jurídicas privadas. Rio de Janeiro: Renovar. 1999, p. 66

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A Constituição de 1988 26 inicia seus artigos estabelecendo os fundamentos da República e, dentre eles, faz constar a livre iniciativa. Um estado capitalista, e, portanto, ditado pela regra da livre iniciativa, mas que se pretende democrático e de direito, implica na adoção de responsabilidade frente às lesões causadas pela deliberada negação de direitos fundamentais num afã desenfreado pelo lucro.

Conclusão O presente artigo buscou iniciar uma breve apresentação e discussão acerca do instituto do Dano Social e como vem sendo aplicado no sistema judiciário pátrio. Longe de pretender esgotar o assunto que de tão relevante e pertinente a realidade hodierna, enseja novos debates, estudos e reflexões, o estudo foi capaz de revelar a forma como a Teoria do Dano Social ganhou corpo dentro de um contexto de Responsabilidade Civil social e como as decisões judiciais tem se valido dessa forma de coerção indireta para ampliar e ratificar a justiça social. O sistema capitalista, resguardado constitucionalmente, e seus grupos econômicos devem, por óbvio observar as normas pátrias vigentes. Entretanto, o que tem se visto é o desrespeito reiterado a essas normas, que fatalmente importam em dano a toda a coletividade. Ancorada em legislações de cunho social, como o Código de Defesa do Consumidor e o Código Civil de 2002, surge uma nova concepção de responsabilidade civil preocupadada em resguradar a dignidade humana e a necessidade de superar as desigualdades sociais. Atualmente, a teoria do dano social, apareceu como uma poderosa estratégia coercitiva a serviço da nova responsabilidade civil de índole coletiva que se pretende justa, distributiva, solidária e fraternal. Sua aplicação depende da existência de requisitos básicos, quais sejam, a presença do agente causador do dano, devendo, pois, ser uma pessoa jurídica de importante dimensão e com larga atuação no cenário econômico; a conduta ilícita deve ser recorrente; o dano deve afetar a coletividade ou um grupo de pessoas indeterminadas ou indetermináveis e por último dano deve ser grave e capaz de produzir intranquilidade social e alterações relevantes, dada a apropriação indevida da renda dos indivíduos e a enganação produzida no espírito dos consumidores brasileiros. O magistrado ao aplicar o dano social em suas decisões, age amparado pelo seu poder geral de efetivação. Trata-se do poder, positivado no código processual pátrio, que o juiz tem, para determinar medidas executivas, em relação às quais poderá determiná-las de ofício. E, isso legitima a aplicação da teoria, afastando qualquer discussão de mácula a princípios processuais e constitucionais. Entretanto, nesse contexto, aproxima o instituto do diálogo acerca do Ativismo judicial, no tocante a ser essa, uma prática ativista. Enfrentar suscintamente a questão do ativismo foi de suma importância para o estudo, tendo em vista que a Teoria do Dano Social pode ser encarada

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26 VADE MECUM RT. 8. Ed.rev.,ampl.e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

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como uma prática ativista e a luz daqueles que consideram ser o ativismo um instrumento garantidor de direitos, do mesmo modo entendem a aplicação do dano social no caso concreto, como sendo uma atitude positiva de um magistrado que entende que a prestação jurisdicional deva estar a serviço dos ditames e preceitos de uma justiça social. Por fim, não é possível conviver com o dano social provocado por empresas que lesam diariamente um grande número de indivíduos, com a prática reiterada de condutas ilegais. E por isso a relevante Teoria do dano Social deve ser fortemente reconhecida e aplicada, de modo a realizar o bem maior que pretende um Estado democrático de Direito, qual seja, a realização de uma sociedade justa, solidária e fraterna.

Referências bibliográficas BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Eficácia das normas constitucionais sobre a justiça social. Doutrinas Essenciais de Direito Constitucional, vol. 6, Mai/2011. BRUNA, Sérgio Varella. O Poder Econômico e a conceituação do abuso no seu exercício. São Paulo: Revista dos Tribunais. 2001. CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Tradução de Nelson Renato Palaia Ribeiro de Campos. In Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. jan-mar/1997. CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. – 11.ed. – São Paulo: Atlas, 2014 DE CARVALHO, Carlos Eduardo Araújo. Ativismo Judicial em Crise. Disponível em: http:// www.egov.ufsc.br/portal/conteudo/ativismo-judicial-em-crise. Acesso em: 20/11/2014. DONIZETTI, Elpídio. Curso didático de direito processual civil. 17. ed. ver., ampl. e atual. – São Paulo: Atlas, 2013. LEAL, Saul Tourinho. Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal. Brasília, 2008 MARGRAF, Alencar Frederico. Teoria Do Dano Social: A Hermenêutica Constitucional Como Trincheira Contra Os Grandes Conglomerados Econômicos. Revista Crítica do Direito número 3 volume - 02 de dezembro a 06 de janeiro de 2013 RCD - Revista Crítica do Direito. NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito – 33ª ed. ver., atual., Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 348. VADE MECUM RT. 8. Ed. rev. ampl. e atual. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013.

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Princípios Éticos e Morais no novo CPC Jorge Marcos Barreto Mothé1 Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza; Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio; como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais. Emmanuel Kant2 Resumo Apresentaremos aqui os princípios éticos e morais que norteiam o NOVO CÓDIGO CIVIL, sancionado recentemente pelo chefe do poder executivo como a LEI Nº 13.105, DE 16 DE MARÇO DE 2015. Mudanças ocorreram, alguns princípios apareceram mas outros foram eliminados. A nova lei trará de forma objetiva os Princípios da Colaboração, Boa-fé, Lealdade e Contraditório, facilmente observados nos artigos inicialmente pelo TÍTULO II - DOS LIMITES DA JURISDIÇÃO NACIONAL E DA COOPERAÇÃO INTERNACIONAL, além dos artigos que invocam a Boa-Fé processual elencada nos artigos 5º e 77. Palavras-chave: Princípio da Colaboração; Princípio da Boa-Fé; Princípio da Lealdade; Princípio do Contraditório; Ética no Novo Código de Processo Civil. Abstract We present here the ethical and moral principles that guide the NEW CIVIL CODE, recently sanctioned by the head of the executive power as the Law No. 13,105, OF 16 MARCH 2015. Changes occurred, some principle appeared but others were eliminated. The new law will objectively the Principles of Collaboration, Good Faith, Loyalty and Contradictory, easily observed in Articles initially by TITLE II - LIMITS JURISDICTION NATIONAL AND INTERNATIONAL COOPERATION, in addition to articles claiming the Good Faith procedural Articles 5 and 77. Keywords: Collaboration principle; Principle of Good Faith; Loyalty principle; Contradictory principle; Ethics in the New Code of Civil Procedure. 1 Bacharel em Direito. Publicitário, jornalista pela Universidade da Cidade, UNIVERCIDADE. 2 Immanuel Kant foi um filósofo prussiano, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna nascido a 22 de abril de 1724, em Königsberg, Alemanha e vindo a falecer em 12 de fevereiro de 1804.

Princípios Éticos e Morais no novo CPC

Introdução Analisar os princípios éticos inseridos na atualização do nosso Código de Processo Civil nos leva a descobrir até que ponto nossos legisladores decidiram pelo fortalecimento destes conceitos nesta atualização. Ao decorrer deste trabalho apresentaremos as inovações dentro da Norma e de que forma foram mantidos os princípios éticos e morais dentro desta. O tempo tem se encarregado de fortalecer ou enfraquecer o senso ético no ser humano. O ser humano perdeu a noção do tempo verdadeiro para o tempo virtual fazendo com que Ética e Moral se confundissem no universo digital, levando o homem a perder o pudor e dispusesse ao mundo, a informação sem sua autocensura, imaginando que apenas ele estava lendo ou vendo o que acabava de jogar no universo sem estrelas, mas, com muitos bytes.

Princípios da coperação A palavra COPERAÇÃO nos faz pensar em UNIÃO por interesses mútuos, hoje em dia, este comportamento está se fortalecendo no sistema processual brasileiro, quando, pelo pensamento de democracia fortalecido, todos os interessados em uma demanda se unem para uma rápida e saudável solução do conflito. Mas esta união pode derrubar todo sentimento Ético e Moral existente no processo, pois, as atitudes tomadas pelo interesse de um polo na lide, podem buscar o rumo diferente deste conceito filosófico. “Para a doutrina mais tradicional, o dever de cooperação recíproca entre partes e Magistrados costuma dividir-se em pelo menos quatro elementos essenciais: dever de prevenção, de esclarecimento, de consulta e de auxílio às partes. Para o autor o objeto por hora mais importante é o dever de auxílio às partes, para assim ver na prática como esta modalidade pode ser aplicada com eficácia.” (Daniel Ferreira de Lira; Dimitre Braga Soares de Carvalho e Pedro Ivo Leite Queiroz)3 Não é saudável o princípio da Cooperação quando esta atitude vem revestida da MÁ FÉ, o ser humano por seu interesse, na sua maioria, ultrapassa o limite da Boa-Fé, utilizando de subterfúgios nada legais para cooperar com interesse puro, sem a consolidação do Ser Legal. Originando na fides romana, envolvida por conceitos religiosos, éticos e morais, seu valor literal, tinha mais peso do que a exteriorização de sua forma. A Boa-Fé se enfraquece quando se depara com o EGOÍSMO, INDIVIDUALISMO e a IMORALIDADE, pois, como exemplo, na interpretação de determinados contratos considerados de boa-fé (bona fides), como a locatio e o mandatum, o valor da palavra empenhada tinha um peso maior do que a exteriorização da forma.

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3 LIRA, Daniel Ferreira de; CARVALHO, Dimitre Braga Soares de et al. Princípio da cooperação no processo civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3315, 29 jul. 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2015.

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Já proclamada pelo Código Civil francês de 1840 (Code Napoléon), a noção da boa-fé objetiva passa a ser positivada, através da terceira alínea do artigo 1134 desta lei, quando ali determina que os pactos deveriam ser executados de boafé, sendo que tal norma não foi cumprida, tornou-se letra morta, à vista da influência da Escola da Exegese, apegada ao extremo à letra da Lei Napoleônica. Ou seja, na sua essência da Boa-Fé, foi esquecida pelos cidadãos, já que esta Escola proclamava que por ser fruto da Razão, em tal código não poderia haver lacunas, daí então se discutia a Boa-Fé Objetiva. TEXTO DO NOVO CPC: Nos textos abaixo, identificaremos a aplicação dos Princípios da Cooperação e da Boa-Fé. PRINCÍPIO DA COOPERAÇÃO: “...Artigo 3º... § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados por magistrados, advogados, defensores públicos e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial.”” “...Art. 8º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha a solução do processo com efetividade e em tempo razoável” “...Art. 27. A cooperação jurídica internacional terá por objeto: I – citação, intimação e notificação judicial e extrajudicial; II – colheita de provas e obtenção de informações; III – homologação e cumprimento de decisão IV – concessão de medida judicial de urgência; V – assistência jurídica internacional; VI – qualquer outra medida judicial ou extrajudicial não proibida pela lei brasileira”. “...Art. 35. Dar-se-á por meio de carta rogatória o pedido de cooperação entre órgão jurisdicional brasileiro e estrangeiro para prática de ato de citação, intimação, notificação judicial, colheita de provas, obtenção de informações e de cumprimento de decisão interlocutória” “...Art. 37. O pedido de cooperação jurídica internacional oriundo de autoridade brasileira competente será encaminhado à autoridade central para posterior envio ao Estado requerido para lhe dar andamento. Art. 38. O pedido de cooperação oriundo de autoridade brasileira competente e os documentos anexos que o instruem serão encaminhados à autoridade central, traduzidos para a língua oficial do Estado requerido. Art. 39. O pedido passivo de cooperação jurídica internacional será recusado se configurar manifesta ofensa à ordem pública.

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Art. 40. A cooperação jurídica internacional para execução de decisão estrangeira dar-se-á por meio de carta rogatória ou de ação de homologação de sentença estrangeira, de acordo com o art. 972. Art. 41. Considera-se autêntico o documento que instruir pedido de cooperação jurídica internacional, inclusive tradução para a língua portuguesa, quando encaminhado ao Estado brasileiro por meio de autoridade central ou por via diplomática, dispensando-se a juramentação, autenticação ou qualquer procedimento de legalização. Parágrafo único. O disposto no caput não impede, quando necessária, a aplicação pelo Estado brasileiro do princípio da reciprocidade de tratamento.”... ...DA COOPERAÇÃO NACIONAL “Art. 67. Aos órgãos do Poder Judiciário, estadual ou federal, especializado ou comum, em todas as instâncias e graus de jurisdição, inclusive aos tribunais superiores, incumbe o dever de recíproca cooperação, por meio de seus magistrados e servidores. Art. 68. Os juízos poderão formular entre si, pedido de cooperação para prática de qualquer ato processual. Art. 69. O pedido de cooperação jurisdicional deve ser prontamente atendido, prescinde de forma específica e pode ser executado como: I – auxílio direto; II – reunião ou apensamento de processos; III – prestação de informações; IV – atos concertados entre os juízes cooperantes. § 1º As cartas de ordem, precatória e arbitral seguirão o regime previsto neste Código. § 2.° Os atos concertados entre os juízes cooperantes poderão consistir, além de outros, no estabelecimento de procedimento para:

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I – a prática de citação, intimação ou notificação de ato; II – a obtenção e apresentação de provas e a coleta de depoimentos; III – a efetivação de tutela antecipada; IV – a efetivação de medidas e providências para recuperação e preservação de empresas; V – facilitar a habilitação de créditos na falência e na recuperação judicial; VI – a centralização de processos repetitivos;”...

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Princípios da Boa-Fé e da Lealdade Atualmente previsto no Art. 14 do Código vigente o princípio da Boa-Fé e da Lealdade se confundem num mesmo artigo. Diferente do que se esperava, o termo lealdade foi abolido no novo Código, levando alguns doutrinadores a repensar tal vocábulo dentro do universo jurídico. Afinal de contas, o que seria a lealdade? Existe lealdade com ilegalidade? Afinal de contas a lealdade é um comportamento de fidelidade, dedicação e sinceridade, porém não devemos confundir LEALDADE com LEGALIDADE, pois, para exercer tal princípio, o ser humano de forma alguma poderia estar marginal às normas que regem seu dia a dia como cidadão. Neste exato momento, em algum lugar do planeta, encontramos grupos religiosos que são leais ao conceito de Matar conforme o mandamento ensinado por um líder espiritual. Estão seus seguidores leais a uma ideia, a uma norma religiosa, porém moralmente estariam convivendo com a pior das ilegalidades que seria o Homicídio. Ser leal não significa ter boa-fé no processo judicial, como poderíamos ser leais dentro de uma lide onde a parte contrária estaria agindo em completa boa-fé o nosso lado exatamente ao contrário. Sim podemos ser leais ao espírito de colaboração que nos envolve, observando o Princípio da Colaboração proclamado na Lei, vamos ser leiais aos ideais sustentados por nosso lado na lide, porém, devemos estar atentos à Má Fé, quando somos leias ao erro sustentado por algum clamor pessoal. Segunda Câmara Cível Apelação Cível Nº 008.050.000.259 Recorrente: Odilon Costa da Silva Recorrida: Nozorea Granitos LTDA Relator: Desembargador Namyr Carlos de Souza Filho ACÓRDAO EMENTA: PROCESSUAL CIVIL. AÇAO DE BUSCA E APREENSAO. APELAÇAO CÍVEL. RECURSO ADESIVO. ANÁLISE TÁCITA PELO JUIZ A QUO. MÉRITO. CONLUIO ENTRE AUTOR E RÉU PARA PREJUDICAR TERCEIRO. ATO SIMULADO CONFIGURADO. LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. VIOLAÇAO AOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ E LEALDADE PROCESSUAL. CONHECIDO E IMPROVIDO. 1 - Recurso Adesivo. - O Juiz a quo ao proferir Sentença julgou totalmente improcedente o pedido autoral, mantendo, consequentemente, de forma tácita, a decisão agravada em sua totalidade. 2 - Mérito.2.1 - O Recorrente em momento algum fez prova de suas alegações, não havendo nos autos prova concreta da propriedade dos aludidos bens.2.2 - Vislumbra-se dos autos, mormente pela Contestação e Contra razões protocolizadas pela Recorrida, representada pelo sócio Diego, que a relação estabelecida entre ele e o Recorrente, é, no mínimo, estranha, uma vez que, em todas as oportunidades que teve para falar nos autos, reafirmou que seu pai/autor da presente ação estava correto, sem levar em consideração os interesses da pessoa jurídica.2.3

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- Infere-se dos autos que a sócia Márcia Cristina de Jesus ajuizou ação em face do Sr. Diego Compart Moreira da Silva, consoante demonstram documento às fls. 71/76, cujo pedido decorre das desavenças internas entre os sócios, restando evidente que o verdadeiro litígio ocorre entre Sr. Diego Compart Moreira da Silva, a quem se filia o autor desta ação, e a Sr.ª. Márcia Cristina de Jesus.2.4 - In casu, há de se reconhecer o conluio do Recorrente e do Sr. Diego, a fim de obter a posse do maquinário para sí, em detrimento da posse da Recorrida e da sócia Márcia, servindo-se do feito para praticar ato simulado, nos termos do artigo 129, do Código de Processo Civil.2.5 - O Recorrente e o representante legal da Recorrida, Sr. Diego, por intermédio de suas Advogadas, que em vã tentativa obraram no sentido de induzir a erro o Poder Judiciário ao ajuizarem a presente ação e “simularem” a existência de um processo justo e leal entre as partes, quando na verdade, inexistiu o contraditório e a ampla defesa, uma vez que, a suposta peça de defesa apresentada pela Recorrida, foi protocolizada pelo Sócio Diego, com o único intuito de unir-se ao autor em face da sócia Márcia.2.6 - Diante dessa lastimável conduta perpetrada tanto pelo Recorrente quanto pelo Sr. Diego, através de suas Advogadas, cujo intento, repisa-se, não foi outro senão o de ludibriar a Justiça, violando os princípios da boa-fé e lealdade processuais, tenho que também não merece reforma o capítulo da Sentença relativo à condenação do Recorrente e do Sócio Diego em multa por litigância de má-fé, correspondente a 1% (um por cento) sobre o valor da causa. 3 - Recurso conhecido e improvido. ACORDA a Egrégia Segunda Câmara Cível, em conformidade da ata e notas taquigráficas da Sessão, que integram este julgado, conhecer do Recurso de Apelação Cível, e negarlhe provimento, nos termos da fundamentação do voto proferido pelo Eminente Desembargador Relator.4

O julgado acima apresentado exemplifica nossa colocação sobre o Princípio da Lealdade. O Recorrente da matéria em questão, por questões de lealdade ao autor, sendo este seu pai, exagera na LITIGÁNCIA DE MÁ FÉ, conforme podemos observar no mérito apresentado pelo Relator que, neste ato, nega-lhe provimento.

A Boa-Fé e a Lealdade pelo código vigente “Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: (Redação dada pela Lei nº 10.358, de 27.12.2001, DOU 28.12.2001, em vigor 3 (três) meses após a data da publicação) II - proceder com lealdade e boa-fé;.....”

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4 TJES, Classe: Apelação Cível, 8050000259, Relator: NAMYR CARLOS DE SOUZA FILHO, Órgão julgador: SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 17/01/2012, Data da Publicação no Diário: 26/01/2012)

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Ao retirar o termo Lealdade no texto enviado pelo congresso, o artigo em vigor, seria reescrito sob a forma do novo artigo a saber:

A Boa-Fé e a lealdade pelo código sancionado “...Art. 5º. Aquele que de qualquer forma participa do processo deve comportar-se de acordo com a boa-fé.... Seção I Dos deveres Art. 77. Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: I – expor os fatos em juízo conforme a verdade; II – deixar de formular pretensão ou de apresentar defesa quando cientes de que são destituídas de fundamento; III – não produzir provas e não praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou à defesa do direito; IV – cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza antecipada ou final, e não criar embaraços a sua efetivação; V – declinar o endereço, residencial ou profissional, onde receberão intimações no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva; VI – não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso. § 1º Nas hipóteses dos incisos IV e VI, o juiz advertirá qualquer das pessoas mencionadas no caput de que sua conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça.

Na contramão do elencado no Artigo 77, o novo CPC inova ao prevê com mais clareza e exatidão a LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ. Da responsabilidade das partes por dano processual “...Art. 79. Responde por perdas e danos aquele que litigar de má-fé como autor, réu ou interveniente. Art. 80. Considera-se litigante de má-fé aquele que: I – deduzir pretensão ou defesa contra texto expresso de lei ou fato incontroverso; II – alterar a verdade dos fatos;

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III – usar do processo para conseguir objetivo ilegal; IV – opuser resistência injustificada ao andamento do processo; V – proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo; VI – provocar incidente manifestamente infundado; VII – interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório. Art. 81. De ofício ou a requerimento, o órgão jurisdicional condenará o litigante de má-fé a pagar multa, que deverá ser superior a um por cento e inferior a dez por cento do valor corrigido da causa, e a indenizar a parte contrária pelos prejuízos que esta sofreu, além de honorários advocatícios e de todas as despesas que efetuou. § 1º Quando forem dois ou mais os litigantes de má-fé, o juiz condenará cada um na proporção de seu respectivo interesse na causa ou solidariamente aqueles que se coligaram para lesar a parte contrária.....” STJ - EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO RECURSO ESPECIAL EDcl no REsp 1159632 RJ 2009/0202727-2 (STJ) Data de publicação: 19/08/2011. Ementa: PROCESSUAL CIVIL E CIVIL. FUNGIBILIDADE RECURSAL. RECURSO RECEBIDO COMO AGRAVO REGIMENTAL. SEGURO DE VIDA. NÃO RENOVAÇÃO. FATOR DE IDADE. OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA BOA-FÉ OBJETIVA, DA COOPERAÇÃO, DA CONFIANÇA E DA LEALDADE. AUMENTO. EQUILÍBRIO CONTRATUAL. CIENTIFICAÇÃO PRÉVIA DO SEGURADO. 1. Em nome dos princípios da economia processual e da fungibilidade, admitem-se como agravo regimental os embargos de declaração opostosa decisão monocrática proferida pelo relator do feito no Tribunal. 2. Na hipótese em que o contrato de seguro de vida é renovado ano a ano, por longo período, não pode a seguradora modificar subitamente as condições da avença nem deixar de renová-la em razão do fator de idade, sem que ofenda os princípios da boa-fé objetiva, da cooperação, da confiança e da lealdade. 3. A alteração consistente em aumentos necessários ao equilíbrio contratual deve ser efetuada de maneira gradual, da qual o segurado tem de ser previamente cientificado. 4. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, ao qual se nega provimento.5

O princípio do contraditório e o novo cpc Vamos iniciar citando Didier Junior “Não adianta permitir que a parte, simplesmente, participe do processo; que ela seja ouvida. Apenas isso não é o suficiente para que se efetive o princípio do contraditório. É necessário que se permita que ela seja ouvida, é claro, mas em condições de poder influenciar a decisão do magistrado.

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5 Processo: EDcl no REsp 1159632 RJ 2009/0202727-2 - Relator(a): Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA Julgamento:09/08/2011 - Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA - Publicação: DJe 19/08/2011

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Se não for conferida a possibilidade de a parte influenciar a decisão do magistrado – e isso é poder de influência, poder de interferir na decisão do magistrado, interferir com argumentos, interferir com ideias, com fatos novos, com argumentos jurídicos novos; se ela não puder fazer isso, a garantia do contraditório estará ferida. É fundamental perceber isso: o contraditório não se implementa, pura e simplesmente, com a ouvida, com a participação; exige- se a participação com a possibilidade, conferida à parte, de influenciar no conteúdo da decisão. (2008, p. 45)6

Desta forma iniciamos nossa explanação sobre o PRINCÍPIO DO CONTRATITÓRIO no texto do novo CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL. Proclamado inicialmente na CARTA MAGNA, assegurado NO artigo 5º, inciso LV, pode ser definido também pela expressão “audiatur et altera pars”, que significa “ouça-se também a outra parte”. Porém, conforme diz o autor, não basta ouvir, dar à parte do direito de dizer, mas também dar a esta o direito de conduzir o processo, com a colaboração do judiciário, dentro da mais completa legalidade e boa-fé, de forma a direcionar a lide para um fim satisfatório e com uma sentença leal aos princípios éticos do direito. Não só a Constituição instituiu ao cidadão seu direito de defesa, tal princípio foi inserido na Convenção Americana sobre os Direitos Humanos, chamada de Pacto de São José da Costa Rica, aprovada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo n° 27, de 26/5/1992, garante o contraditório. Diz o art. 8º in fine: “Art. 8º Garantias Judiciais “Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza.”

Acontece que toda pessoa, significa dizer que nem toda pessoa dentro do processo tem conhecimento suficiente para saber se está sendo conduzida a sua defesa no processo com obediência ao PRINCÍPIO DA BOA-FÉ. Segundo Moraes: “O devido processo legal configura dupla proteção ao indivíduo, atuando tanto no âmbito material de proteção ao direito de liberdade, quanto no âmbito formal, ao assegurar-lhe paridade total de condições com o Estado - persecutor e plenitude de defesa (direito à defesa técnica, à publicidade do processo, à citação, de produção ampla de provas, de ser processado e julgado pelo juiz competente, aos recursos, à decisão imutável, à revisão criminal). 7 6 DIDIER, Jr. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2008. 7 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional, 15. Ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 124

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Alexandre Moraes, em sua obra, externa a necessidade de que o princípio do Contraditório e Ampla Defesa, para ser respeitado, precisa estar sendo prestado dentro de um procedimento apoiado na BOA- FÉ dos serventuários da justiça, que atuem em COLABORAÇÃO à parte, fornecendo todos os meios técnicos possíveis para a plena condução do processo. Este princípio já deve ser respeitado, segundo o novo código, na fase conciliatória, pois estando as partes diante da possibilidade de um entendimento. No projeto do novo CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, já em fase de sansão pelo poder executivo, encontramos três dimensões constitucionais dentro dos artigos que proclamam o PRICÍPIO DO CONTRADITÓRIO.“Art. 7º. É assegurado às partes paridade de tratamento no curso do processo, competindo ao juiz velar pelo efetivo contraditório”. Por este artigo, entendemos que o PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO, requer que entre as partes seja respeitado a igualdade na condução de seus atos dentro do processo, cabendo ao juiz velar pelo curso correto do processo. Vejamos o “Art. 8º. Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa efetiva”. Já citado neste trabalho, este artigo sugere que para assegurar o CONTRADITÓRIO e a AMPLA DEFESA, deve haver uma cooperação mútua entre partes e o Judiciário. Vejamos, ainda, o “Art. 9º. Não se proferirá decisão contra uma das partes sem que esta seja previamente ouvida.” O mesmo vale para as decisões no âmbito recursal, sobre fundamento a respeito do qual as partes não tenham se manifestado, ainda que se trate de matéria apreciável de ofício, nos termos do art. 10. “Art. 10. O juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual tenha que decidir de ofício. Parágrafo único. O disposto no caput não se aplica aos casos de tutela de urgência e nas hipóteses do art. 307”. ..... PROCESSUAL CIVIL - NOMEAÇÃO À AUTORIA - OFENSA AO ARTIGO 67 DO CPC. I - Não há no artigo 67 do CPC qualquer ressalva quanto à hipótese de ter a parte, quando da nomeação à autoria, apresentado peça de defesa, devendo, portanto, este dispositivo ser aplicado mesmo que já tenha sido apresentada contestação. Isso porque, após o indeferimento do pedido, constata-se nova situação jurídica para o nomeante que a partir daí será considerado, efetivamente, parte legítima no processo. Ofender-se-ia a ampla defesa e o contraditório se ficasse a parte, diante da confirmação de sua legitimidade ad causam, impedida de apresentar resposta.8

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8 Processo: REsp 235644 SP 1999/0096529-9 Relator(a): Ministro WALDEMAR ZVEITER Julgamento:16/02/2001Órgão Julgador:T3 - TERCEIRA TURMA.

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II - Recurso Especial conhecido e provido. Agravo regimental em recurso extraordinário Parte(s): MIN. DIAS TOFFOLI RÁDIO TELEVISÃO PIRATINI S/A MIGUEL LUIZ FAVALLI MEZA E OUTROS UNIÃO - ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO EMENTA Agravo regimental em recurso extraordinário. Princípios do contraditório e da ampla defesa. Ofensa reflexa. Precedentes. 1. A afronta aos princípios do contraditório e da ampla defesa, quando depende, para ser reconhecida como tal, da análise de normas infraconstitucionais, ou dos fatos da causa, tal como aqui ocorre, configura apenas ofensa indireta ou reflexa à Constituição da República. 2. O recurso extraordinário não se presta ao reexame de fatos e provas do processo. Incidência da Súmula nº 279 desta Suprema Corte. 3. Agravo regimental não provido.9

Não será utópico afirmar, que conseguiremos um dia assegurar ao cidadão uma cooperação digna e de boa-fé dentro do judiciário, para por na balança da justiça as pretensões das partes com obedecendo os princípios constitucionais e morais que regem nossa legislação. Ética não se limita a discussões vagas entre doutos jurídicos. Ética acompanha o homem a partir do momento que ele fortalece sua moral baseado numa decente incursão pelo universo da cultura e da produção. Se formos esmiuçar o projeto do novo Código de Processo Civil, para encontrar mudanças no texto atualizado, que transportem o cidadão para o conhecimento e entendimento da existência dos princípios, teremos matéria para discutir por um bom tempo, tanto pelo conceito radical da lei, passando pela vã filosofia e terminando a jornada na discussão política das Leis.

Referências bibliográficas DIDIER, Jr. Fredie. Curso de Direito Processual Civil: Teoria Geral do Processo e Processo de Conhecimento. Salvador: JusPodivm, 2008. IMMANUEL KANT foi um filósofo prussiano, geralmente considerado como o último grande filósofo dos princípios da era moderna nascido a 22 de abril de 1724, em Königsberg, Alemanha e vindo a falecer em 12 de fevereiro de 1804. LIRA, Daniel Ferreira de; CARVALHO, Dimitre Braga Soares de et al. Princípio da cooperação no processo civil. Jus Navigandi, Teresina, ano 17, n. 3315, 29 jul. 2012. Disponível em: . Acesso em: 18 mar. 2015. MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 15. Ed., São Paulo, Atlas, 2004, p. 124. Processo: REsp 235644 SP 1999/0096529-9 Relator(a): Ministro WALDEMAR ZVEITER Publicação: DJ 09/04/2001 p. 354 - RSTJ vol. 143 p332 - RT vol. 791 p. 178. 9 Processo: RE 252257 RS Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI - Julgamento: 28/08/2012. Órgão Julgador: Primeira Turma- Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 12-09-2012 PUBLIC 13-09-2012.

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Julgamento:16/02/2001Órgão Julgador:T3 - TERCEIRA TURMA. Publicação:DJ 09/04/2001 p. 354 - RSTJ vol. 143 p332 - RT vol. 791 p. 178. Processo: EDcl no REsp 1159632 RJ 2009/0202727-2 - Relator(a): Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA Julgamento:09/08/2011 - Órgão Julgador: T4 - QUARTA TURMA - Publicação: DJe 19/08/2011. Processo: RE 252257 RS Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI - Julgamento: 28/08/2012. Órgão Julgador: Primeira Turma- Publicação: ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-180 DIVULG 12-09-2012 PUBLIC 13-09-2012. TJES, Classe: Apelação Cível, 8050000259, Relator: NAMYR CARLOS DE SOUZA FILHO, Órgão julgador: SEGUNDA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 17/01/2012, Data da Publicação no Diário: 26/01/2012.

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