As pinturas armoriadas do palácio Cabral Metelo

July 22, 2017 | Autor: M. Metelo de Seixas | Categoria: Heráldica Portuguesa
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As pinturas armoriadas do palácio Cabral Metelo Miguel Metelo de Seixas

SEPARATA DA REVISTA

ARMAS E TROFÉUS REVISTA DE HISTÓRIA, HERÁLDICA, GENEALOGIA E ARTE

IX SÉRIE, TOMO XVI 2014

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AS PINTURAS ARMORIADAS DO PALÁCIO CABRAL METELO Miguel Metelo de Seixas *

O projecto “A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro (sécs. XVII, XVIII e XIX). Anatomia dos Interiores” incluiu desde o início, a par do núcleo central de História da Arte e disciplinas conexas, uma área de consultoria em Heráldica 1. Trata-se, por isso, de um dos raros projectos que, em Portugal, promovem a interacção entre aquele ramo da História e a Heráldica 2. Tal raridade poderá * Doutor em História; investigador do Instituto de Estudos Medievais e do Centro de História d’Aquém e d’Além-Mar, ambos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas / Universidade Nova de Lisboa; bolseiro de pós-doutoramento da Fundação para a Ciência e a Tecnologia; professor auxiliar da Universidade Lusíada de Lisboa; director do Centro Lusíada de Estudos Genealógicos e Heráldicos; sócio efectivo e presidente do Instituto Português de Heráldica. 1 O presente texto foi publicado com o título “Interesse e perspectivas da heráldica para o estudo da casa senhorial. O caso lisboeta do palácio Cabral Metelo” na colectânea Casas Senhoriais Rio-Lisboa e seus interiores (pp. 213-232), coordenada por Marize Malta e Isabel Mayer Godinho Mendonça, editada em 2014 no Rio de Janeiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em conjugação com a Universidade Nova de Lisboa e a Fundação Ricardo Espírito Santo Silva. Três motivos porém me impeliram a dar este texto novamente à estampa, com pequenas alterações: em primeiro lugar, a dificuldade de acesso àquele livro para um leitor português; depois, o interesse directo que este texto pode apresentar para a heráldica portuguesa em geral e lisboeta em particular; por fim, o facto de a edição carioca ter saído com diversas falhas, algumas das quais podem mesmo dificultar o entendimento do conteúdo. Agradeço a Isabel Mayer Godinho Mendonça a anuência para republicação do artigo na presente revista. 2 Projecto “A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro (sécs. XVII, XVIII e XIX). Anatomia dos Interiores”, com sede no Instituto de História da Arte/Faculdade de Ciências Sociais e Humanas/Universidade Nova de Lisboa, e financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, referência PTDC/EAT-HAT/112229/2009. Quero agradecer aos responsáveis pelo projecto, Isabel Mayer Godinho de Mendonça e Hélder Carita, o desafio que me lançaram e a

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parecer estranha. Mas a verdade é que a relação entre estas duas áreas do saber nem sempre tem sido fácil: poder-se-á mesmo dizer que ela tem sido marcada pelo ferrete da ambiguidade ou mesmo de uma certa desconfiança mútua. Já tive, enquanto participante em congressos de História da Arte, ocasião de falar e escrever sobre essa relação difícil 3; que é, mutatis mutandi, a mesma existente, de forma mais lata, entre História e Heráldica 4. Digamos, em jeito de resumo simplista, que os historiadores tendem a ver na Heráldica, na melhor das hipóteses, um instrumento de identificação e de datação; remetem-na, assim, ao papel de “ciência auxiliar da História”, granjeado nos enclausuramentos disciplinares do século XIX. Mas a Heráldica atravessou na segunda metade do século XX um processo de profunda renovação epistemológica. E pode, por conseguinte, ir muito além desse mero papel de fornecedora de dados auxiliares para a pesquisa histórica: pode tornar-se uma forma de investigação histórica. O objectivo do presente trabalho consiste em partir de um caso concreto – o palácio até agora chamado Cabral, à calçada do Combro, em Lisboa – para mostrar o interesse de que a Heráldica se pode revestir para a história e o entendimento dessa casa senhorial. Interesse que se afirma em primeiro lugar no âmbito tradicional, ou seja, como instrumento de identificação e datação; e, depois, num sentido bem mais abrangente, como instrumento de compreensão do próprio integração que me proporcionaram; e aos meus colegas investigadores deste mesmo projecto, em especial: Ana Paula Correia, pelas pontes estabelecidas entre Heráldica e Iconografia; Lina Oliveira, pelo seu aturado trabalho de levantamento e transcrição de inventários, onde tantas vezes surgem referências a usos heráldicos; Tiago Molarinho e Alexandre Lousada, pelo entusiasmo e profissionalismo que puseram na recolha e análise de fontes patrimoniais e documentais, e a atenção cuidada que têm dedicado à matéria heráldica. Uma palavra especial de agradecimento é também devida a João Portugal, pela leitura atenta que fez do texto e pelas sugestões daí decorrentes, bem como pela feitura da árvore genealógica que veio enriquecer (e tornar porventura mais fácil) a compreensão dos meandros familiares aqui expostos. 3 Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, “As armas e a empresa do rei D. João II. Subsídios para o estudo da heráldica e da emblemática nas artes decorativas portuguesas”, in MENDONÇA, Isabel Mayer Godinho; CORREIA, Ana Paula (coord.), As Artes Decorativas e a Expansão Portuguesa. Imaginário e Viagem. Actas do 2.º Colóquio de Artes Decorativas. 1.º Simpósio Internacional, Lisboa: Fundação Ricardo Espírito Santo Silva / Centro Cultural e Científico de Macau / Escola Superior de Artes Decorativas, 2010, pp. 46-82; e SEIXAS, Miguel Metelo de, “Art et héraldique au service de la représentation du pouvoir sous Jean II de Portugal (1481-1495)”, in SAVORELLI, Alessandro (coord.), L’Arme Segreta. Araldica e Storia dell’Arte nel Medioevo (secoli XIII-XV), Firenze-Pisa, Kunsthistorisches Institut in Florenz – Max-Planck Institut / Scuola Normale Superiore, no prelo. 4 Permito-me remeter para as considerações iniciais em SEIXAS, Miguel Metelo de, “Bibliografia de heráldica medieval portuguesa”; in SEIXAS, Miguel Metelo de; ROSA, Maria de Lurdes (coord.), Estudos de Heráldica Medieval, Lisboa: Instituto de Estudos Medievais / Centro Lusíada de Estudos Genealógicos e Heráldicos / Caminhos Romanos, 2012, pp. 509-517.

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património em estudo e das realidades sociais subjacentes. Em consequência da análise deste caso concreto, procurarei extrair algumas ilações sobre as perspectivas de aplicação da Heráldica aos estudos de História da Arte, nomeadamente no enquadramento do referido projecto “A Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro”. Entremos então na matéria. Ao chegar ao fim da descida e às proximidades do poço dos Negros, a calçada do Combro vai-se alargando de maneira a formar um pequeno largo triangular. O lado esquerdo vê-se preenchido pela extensa e irregular mole do palácio dos condes de Mesquitela, marcada por uma pedra de armas em cada um dos seus dois cunhais. O lado direito é ocupado por construções menos ostensivamente fidalgas. Porém não menos ricas em heráldica, como se verá. A primeira dessas outras casas senhoriais exibe uma fachada equilibrada, ao gosto setecentista, de uma elegância discreta (Figura 1). No seu exterior, indício algum é fornecido quanto à identidade dos proprietários; nem se perscruta, na harmonia da fachada, lugar onde pudesse em tempos ter campeado uma pedra de armas. No interior, em contrapartida, a primeira das salas para as quais o visitante desemboca após subir a escadaria – o que no século XVIII se chamaria sala vaga – ostenta no centro do tecto uma pintura heráldica. A casa de jantar patenteava quatro outros painéis armoriados, colocados aos cantos do tecto, que

Figura 1: Fachada do palácio da calçada do Combro, junto ao Poço Novo (fotografia do autor).

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devem ter sido retirados na sequência da compra do imóvel pelo Estado, em 1965. Inicialmente, apenas dispunha de registos fotográficos (a preto e branco) dessas quatro pinturas mas, seguindo-lhes o rastro, fui encontrá-las no Museu da Cidade de Lisboa, onde pude observá-las 5. Ao todo, portanto, a casa contava com cinco pinturas heráldicas, integradas na decoração de duas salas diferentes. É possível – provável, mesmo – que houvesse mais objectos armoriados, de natureza móvel, disseminados pelas restantes divisões, porém a dispersão do recheio da casa, operada sem registos, furtou tais manifestações ao nosso conhecimento. Procedamos pois, em primeiro lugar, à leitura e identificação do material heráldico disponível. As quatro pinturas da casa de jantar apresentam evidente similitude de estilo, constituindo um conjunto uniforme no que respeita tanto à forma dos escudos (uma cartela ao gosto barroco), à estilização e proporções das figuras heráldicas e dos ornamentos exteriores, como ainda à cor do fundo (entre o castanho e a púrpura). Encontram-se, aliás, assinadas pelo mesmo autor (A. Pinto). Do ponto de vista do seu conteúdo heráldico, tais pinturas podem ser descritas da seguinte forma: – Figura 2, escudo esquartelado: I, de vermelho, um castelo de ouro, mantelado de prata com dois leões afrontados do primeiro (armas de Henriques) 6; II, de prata, duas cabras de vermelho, armadas de negro, uma sobre a outra (armas de Cabral) 7; III, de prata, uma faixa de vermelho, chefe endentado de três pontas do segundo carregadas de três moletas de ouro (armas de Metelo); Figura 2: Painel pintado com as armas de Francisco Cabral Metelo Pacheco de Lemos e Nápoles Manuel (primitivamente no palácio Cabral Metelo, hoje no Museu da Cidade de Lisboa) Agradeço a Henrique Carvalho, técnico superior do referido Museu da Cidade de Lisboa, a pronta identificação e localização destas pinturas, bem como as facilidades para a sua observação e reprodução fotográfica. Devo-lhe também a informação de que as mesmas pinturas terão permanecido no palácio de origem durante algum tempo, seguindo depois para o Instituto Português de Conservação e Restauro, onde foram submetidas a intervenção, sendo posteriormente incorporadas no espólio do Museu da Cidade. 6 Os leões estão pois coloridos de vermelho, quando deveriam ser de púrpura. Tal troca tanto poderá dever-se a lapso do pintor como ao citado restauro posterior. 7 Mais uma vez, verifica-se a substituição do esmalte púrpura pelo vermelho. O pormenor da cor dos chifres resulta igualmente de uma liberdade tomada pelo pintor. 5

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IV, de ouro, duas caldeiras de negro uma sobre a outra, carregadas de três faixas veiradas de vermelho e de prata, com asas serpentiformes, e por diferença uma flor-de-lis de vermelho no cantão dextro do chefe (armas de Pacheco, diferençadas). O escudo assenta sobre uma cartela de volutas e concheados ao gosto neo-barroco, com um ramo de loureiro e outro de carvalho, ambos de ouro e passados em aspa, encimada por um elmo fechado de prata, com plumão branco, e por timbre um castelo de ouro encimado por um leão de vermelho (timbre de Henriques) 8. – Figura 3, escudo esquartelado: I, contra-esquartelado, 1 e 2 de prata, cinco escudetes de azul em cruz, cada escudete carregado de cinco besantes do campo, filete de negro em banda, 2 e 3, de azul, cinco flores-de-lis de ouro (armas de Albuquerque) 9; II, de verde, uma banda de vermelho perfilada de ouro] e abocada por duas cabeças de serpe [do mesmo] (armas de Freire de Andrade); III, de vermelho, uma banda acompanhada de dois lobos, tudo de prata (armas de Osório 10); IV, de vermelho, cinco estrelas de cinco raios de ouro (armas de Fonsecas 11). Os elementos exteriores assemelham-se aos da Figura 2, com Figura 3: Painel pintado com as armas de D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque (primitivamente no palácio Cabral Metelo, hoje no Museu da Cidade de Lisboa) Com terceira troca do esmalte púrpura pelo vermelho. Em todos os casos em que deveria estar presente, a púrpura (esmalte de identificação assaz difícil) foi substituída pelo vermelho. 9 Com troca do esmalte do campo, que deveria ser de vermelho e não de azul. 10 Não se trata das armas costumeiramente atribuídas aos Osórios pelas cartas de brasão ou pelos armoriais portugueses, mas das que vêm referenciadas por Pedro de Sousa de Castelo Branco na sua tradução da obra de VALLEMONT, Abade de, Elementos da Historia, ou o que he necessário saberse da Chronologia, da Geografia, do Brazão, da Historia universal, da Igreja do Testamento velho, das Monarchias antigas, da Igreja do Testamento Novo, e das Monarchias novas, Lisboa Occidental: na Officina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminent. Senhor Card. Patriarcha, 1741, p. 39. 11 Estas armas não são, só por si, identificáveis de forma segura, pois poderiam remeter para outras famílias; contudo, inscrevo de imediato à identificação supra por via de dedução genealógica, que será adiante explicada. 8

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excepção do timbre, que aqui consiste num castelo de vermelho encimado por uma flor-de-lis de ouro (timbre de Albuquerque 12). – Figura 4, escudo partido: I, de vermelho, seis besantes entre dobre-cruz e bordadura tudo de ouro (armas de Almeida); II, de negro, três faixas veiradas de prata e de vermelho (armas de Vasconcelos). Mais uma vez, os elementos exteriores assemelham-se aos das figuras anteriores, porém sem elmo, que aqui é substituído por um coronel formado por aro e nove hastes rematadas por pérolas, correspondente ao título de conde. – Figura 5, escudo cortado: [de azul,] cinco estrelas de seis raios [de ouro] postas em cruz; uma alagoa de prata (armas plenas de Sobral 13). Os  elementos exteriores são exactamente iguais aos da Figura 4.

Figura 4: Painel pintado com as armas de D. José Francisco de Almeida e Vasconcelos, 1.º conde de Moçâmedes (primitivamente no palácio Cabral Metelo, hoje no Museu da Cidade de Lisboa)

Finalmente, a manifestação heráldica da sala vaga do andar sobrado apresenta também ela características estilísticas e de composição Figura 5: Painel pintado com as armas de D. Maria Margarida Braamcamp Sobral de Melo Breyner (primitivamente no palácio Cabral Metelo, hoje no Museu da Cidade de Lisboa) Trata-se do timbre do ramo de Albuquerques que desde cedo se uniu aos Meneses, dando origem à casa dos senhores de Cantanhede. O timbre usual de Albuquerque consiste num meio-voo de negro carregado de cinco flores-de-lis de ouro. Cfr. NORTON, Manuel Artur, A Heráldica em Portugal. O Armorial Português de Família e Copiadores desaparecidos do Cartório da Nobreza, Lisboa: Dislivro Histórica, 2004, vol. II, p. 56. 13 Fica porém a faltar, para completar as armas, a bordadura de vermelho carregada da legenda “Nomen Honorque Meis” em letras de ouro. 12

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que a relacionam de forma inegável com o conjunto da casa de jantar. Eis a descrição e identificação desta última pintura: – Figura 6, escudo esquartelado: I, de verde, uma banda de vermelho perfilada de ouro e abocada por duas cabeças de serpe do mesmo (armas de Freire de Andrade); II, de prata, duas cabras de púrpura uma sobre a outra (armas de Cabral); III, de prata, uma faixa de vermelho, chefe endentado de três pontas do segundo carregadas de três moletas de ouro (armas de Metelo); IV, de ouro, duas caldeiras de negro uma sobre a outra, carregadas de três faixas veiradas de vermelho e de prata, com asas serpentiformes, e por diferença uma flor-de-lis de vermelho no cantão dextro do chefe (armas de Pacheco, diferençadas). Os elementos exteriores assemelham-se aos das Figuras 2 e 3, com excepção do timbre, que aqui consiste em duas serpes Figura 6: Medalhão do tecto da sala vaga do de ouro afrontadas (timbre palácio Cabral Metelo, pintado com as armas de Freire de Andrade). de Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo. Uma primeira conclusão aponta para a evidência das ligações familiares representadas nestas cinco pinturas: elas foram realizadas como unidade e, portanto, com um escopo comum, ligado à exibição de determinados laços de parentesco. Não causa dúvida que a sua realização se tenha operado na mesma época, a mando do mesmo comanditário e pelo mesmo executante, como evidencia a assinatura. A identificação dos detentores das armas passa pois necessariamente pelo entendimento dos vínculos de parentesco expressos por este conjunto armoriado. Assim, perante o desconhecimento de outras fontes documentais ou iconográficas, recai sobre a investigação genealógica a capacidade de fornecer resposta ao enigma da identificação dos armígeros, chave para o entendimento do sentido destas pinturas. A pesquisa genealógica tem as suas parecenças com uma investigação criminal: partindo de indícios dispersos e amiúde lacunares, vão-se batendo as fontes usuais até obter cruzamentos de dados que permitam (ou não) chegar a identificações positivas. E assim se consegue, com maior ou menor sucesso, 41

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reconstituir as teias, por vezes complexas, do emaranhado das gerações sucessivas. Neste caso concreto, a investigação beneficiou da existência de uma pesquisa de base sobre os diversos ramos da família Metelo, já realizada por Manuel Arnao Metello e João Carlos Metello de Nápoles 14. Sigamo-los para ver se lobrigamos o tal cruzamento de dados que permita encaixar as mensagens heráldicas do palácio lisboeta no labirinto genealógico desta estirpe: – O escudo da Figura 2, esquartelado de Henriques, Cabral, Metelo e Pacheco, é atribuível a Francisco Cabral Metelo Pacheco de Lemos e Nápoles Manuel 15. Este era filho de Francisco Cabral da Fonseca Cerveira da Cunha Osório, herdeiro da casa dos Cabrais em Açores (Celorico da Beira), e de D. Maria Miquelina Metelo Pacheco de Lemos e Nápoles; pelo que a lógica de composição destas armas parece basear-se na reserva dos quartéis superiores para os costados paternos (Henriques e Cabral) 16 e dos quartéis inferiores para os costados maternos (Metelo e Pacheco). – O escudo da Figura 3, esquartelado de Albuquerque, Freire de Andrade, Osório e Fonseca, é atribuível a D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque, mulher do anterior 17. Era filha do coronel António Freire Cortês da Fonseca Osório e de D. Rita de Bourbon e Albuquerque, pelo que a lógica seguida para a ordenação das suas armas privilegia a ascendência materna, de Albuquerques, cujas armas ocupam o primeiro quartel. Tal escolha poderá basear-se em dois factores, um deles social, o outro propriamente heráldico: a importância e o prestígio desta progénie (trata-se dos célebres fidalgos da Casa do Arco, em Os nomes de família são todos aqui uniformizados em consonância com a grafia actualizada; abre-se contudo excepção para os nomes de autores, que constam conforme vêm escritos nas respectivas obras. Assim, o nome Metelo é grafado nesta sua versão actual, mas respeita-se a grafia antiga Metello usada pelos dois autores supra. 15 METELLO, Manuel Arnao; NÁPOLES, João Carlos Metello de, Metellos de Portugal, Brasil e Roma, Lisboa: Associação Portuguesa de Genealogia, 1998, pp. 69-70. 16 A presença das armas de Henriques e Cabral provém da carta de armas concedida em 24 de Julho de 1779 a Luís da Fonseca Cabral Teles Cerveira Pinto (irmão de um antepassado do armígero representado na pintura em estudo), a quem foi atribuído um escudo esquartelado de Pinto, Henriques, Cabral e Cerveira. Cfr. SANCHES DE BAÊNA, Visconde de, Archivo Heraldico-Genealogico contendo noticias historico-heraldicas, genealogias e duas mil quatrocentas cincoenta e duas cartas de brazão d’armas, das familias que em Portugal as requereram e obtiveram e a explicação das mesmas familias em um indice heraldico com um appendice de cartas de brazão passadas no Brazil depois do acto da independencia do Imperio, Lisboa: Typographia Universal, 1872, vol. I, pp. 449-450. Agradeço esta referência a Lourenço Correia de Matos. 17 Nascida em 1838 e falecida em 1888. METELLO, Manuel Arnao; NÁPOLES, João Carlos Metello de, op. cit., p. 70. 14

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Viseu); e o facto de as armas de Albuquerque conterem as quinas reais, o que, segundo a tratadística vigente desde o século XVI, obrigaria a dar-lhes primazia em relação às demais insígnias presentes num escudo compósito 18. No caso vertente, os três outros quartéis remetem todos para a ascendência paterna (Freire, Osório e Fonseca). Os dois primeiros armígeros assim identificados foram pais, entre outros, do Dr. Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo 19 (veja-se Quadro Genealógico anexo), pelo que se poderá obter a atribuição seguinte: – O escudo da Figura 6, esquartelado de Freire de Andrade, Cabral, Metelo e Pacheco, é atribuível a Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo, filho dos anteriores. A lógica de organização das suas armas parece seguir um critério difícil de definir: o primeiro quartel remete para a varonia da ascendência materna (Freire), ao passo que o segundo deriva da varonia da ascendência paterna (Cabral); o terceiro e o quarto quartéis, por sua vez, indicam a ascendência paterna em duas linhas matrilineares (Metelo e Pacheco). Tendo em consideração o nome do armígero, surge uma explicação básica para esta escolha invulgar: talvez se tenha seguido, simplesmente, a sequência dos apelidos no nome do armígero: Freire, Cabral, Metelo; e, na ausência de um quarto apelido armoriado, completou-se o esquartelado com as armas que, nas pinturas da casa de jantar, vinham na sequência exacta do terceiro quartel (Metelo), ou seja, as de Pacheco. Tais flutuações na escolha dos quartéis colhem aliás precedência noutro registo patrimonial: a pedra de armas que ornamenta a casa nobre desta mesma família em Coimbra (Figura 7) 20. Com efeito, o edifício que foi residência dos Sobre este assunto, veja-se SEIXAS, Miguel Metelo de; GALVÃO-TELLES, João Bernardo, “«Privilégios não valem sem serem expressos» A casa da Praça em Óbidos: um caso de heráldica de família nos finais do Antigo Regime”, Dislivro Histórica, n.º 2, 2009, pp. 225-279. 19 Nascido em Coimbra em 1867 e falecido em Carcavelos em 1924. METELLO, Manuel Arnao; NÁPOLES, João Carlos Metello de, op. cit., p. 86. 20 Devo a Marta Manuel Gomes dos Santos a fotografia desta pedra de armas com que se ilustra o presente texto e que lhe agradeço tanto mais que a localização da mesma pedra, posta a grande altura e numa rua estreita, dificulta bastante tal operação. Sobre este exemplar, cfr. MACHADO, Pedro da França, “Heráldica de Coimbra: os Cabrais Metelos”, Munda, n.º 27, 1994, pp. 43-50. O autor evidencia a integração desta família, oriunda da Beira Alta, na sociedade coimbrã, que ocorreu na geração dos pais de Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo; antes, portanto, do passo seguinte na estratégia de ascensão social, que consistiu na implantação deste último na capital do reino e no seio da nobreza titular aí residente. A pedra de armas coimbrã já havia sido identifi18

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Figura 7: Pedra de armas da casa dos Cabrais Metelos em Coimbra (fotografia de Marta Manuel Gomes dos Santos)

Cabrais Metelos nesta cidade, situado à rua da Matemática, apresenta um escudo esquartelado de Fonseca, Pacheco, Cabral e Freire, com timbre de Fonseca (um touro carregado de uma estrela). Os três primeiros quartéis reportam-se à ascendência de Francisco Cabral Metelo Pacheco de Lemos e Nápoles Manuel (quer por via paterna – Cabral e Fonseca, quer materna – Pacheco), ao passo que o quarto quartel só pode provir de sua mulher D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque. O que situa esta pedra de armas na confluência genealógica deste casal, permitindo datá-la, de forma lata, no terceiro quartel de Oitocentos 21. Vejamos agora quanto às duas restantes pinturas da casa de jantar do palácio lisboeta: – O escudo da Figura 4, partido de Almeida e Vasconcelos, com coronel de conde, correspondendo às armas usadas pelos condes da Lapa e pelos condes de Moçâmedes, é atribuível a D. José Francisco de Almeida e Vasconcelos do Soveral de Carvalho da Maia Soares de Albergaria, 1.º visconde e 1.º conde de Moçâmedes 22;

cada por PROENÇA-MAMEDE, Eduardo, “Heráldica Conimbricense”, Munda, n.º 22, 1991, pp. 53-61, porém sem o enquadramento histórico social que viria a ser fornecido por Pedro da França Machado. É de notar que a pedra coimbrã já apresenta alguns dos elementos exteriores que seriam retomados pelas pinturas lisboetas, como os ramos de loureiro e de carvalho passados em aspa (aliás difundidos pela própria heráldica régia coeva), e o elmo encimado por timbre. 21 MACHADO, Pedro da França, op. cit.,pp. 44-45. 22 Viveu entre 1840 e 1908, sendo filho secundogénito de Manuel Francisco das Misericórdias de Almeida e Vasconcelos do Soveral de Carvalho da Maia Soares de Albergaria, 2.o conde da Lapa, e de D. Francisca de Paula Luísa de Sousa (filha dos 2.os marqueses de Borba). Cfr. PINTO, Albano da Silveira; SANCHES DE BAÊNA, Visconde de, Resenha das Familias Titulares e Grandes de Portugal, Lisboa: Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1890, tomo II, pp. 77-78 e 159-160.

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– O escudo da Figura 5, de armas plenas de Sobral, com coronel de conde, correspondendo às armas usadas pelos condes do Sobral, é atribuível a D. Maria Margarida Braamcamp Sobral de Melo Breyner 23. Os dois últimos armígeros eram pais de D. Maria Luísa José de Jesus Luís Gonzaga Rafael de Sales de Santa Cruz de Almeida e Vasconcelos (1877-1963), que foi casada com o referido Dr. Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo. Deste modo, conclui-se que os painéis da casa de jantar representam os progenitores do casal formado por D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos e Baltazar Cabral Metelo, ficando as armas deste último figuradas no medalhão da sala de entrada. É de supor que, para completar este quadro genealógico-heráldico, as armas de D. Maria Luísa estivessem, por sua vez, representadas noutra manifestação entretanto desaparecida (mais um painel?) 24. A identificação heráldica operada permite estabelecer uma datação das pinturas em estudo. Elas são forçosamente posteriores ao casamento entre D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos e Baltazar Freire Cabral, o qual ocorreu em 1899; e presumivelmente anteriores à morte deste último, ocorrida em 1924. Consideremos ainda o facto de ter havido dois filhos deste casal: o primogénito, Francisco Xavier de Jesus Freire Cabral Metelo Pacheco, nascido em 1900, casou em 1922 com D. Maria da Conceição Burnay de Melo Breyner, filha dos 4.os condes de Mafra; o secundogénito, José de Almeida e Vasconcelos Freire Cabral, nascido em 1901, casou em 1929 com D. Maria da Pureza José de Melo, filha dos 12.os condes de São Lourenço 25 (veja-se Quadro Genealógico anexo). Nenhuma destas prestigiosas ligações tem expressão nas pinturas heráldicas, pelo que se pode supor que estas tenham sido realizadas antes do casamento do primeiro filho, em 1922 (tanto mais que este matrimónio aparentava os donos do palácio com a primeira nobreza de Portugal, uma vez que os condes de Mafra constituíam ramo segundo da antiquíssima casa dos marqueses de Ficalho). Pelo que a heráldica permite datar todas estas manifestações, com segurança, entre os anos 1899 e 1924, podendo eventualmente recuar esta última data para 1922. Filha de Luís de Melo Breyner e de D. Adelaide Braamcamp Sobral de Almeida Castelo Branco Narbonne e Lara, sendo esta 2.ª condessa do Sobral por direito próprio e ele conde jure uxoris; daí, no caso de D. Maria Margarida, a exclusão das armas paternas em prol das maternas, representativas do título. IDEM, Ibidem, tomo II, pp. 625-626. 24 Seguindo a norma heráldica corrente na época, tais armas deveriam consistir num escudo partido com as armas do marido à dextra (esquartelado de Freire, Cabral, Metelo e Pacheco) e as armas paternas à sinistra (partido de Almeida e Vasconcelos). Mas não é impossível que a armígera, diante da complexidade deste ordenamento, tivesse optado por alguma versão simplificada. 25 METELLO, Manuel Arnao; NÁPOLES, João Carlos Metello de, op. cit., pp. 86-87 e 104-105. 23

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Como se vê, a heráldica foi até agora aplicada na sua utilidade tradicional de instrumento de reconhecimento e datação. Ela permitiu uma identificação positiva, estabelecendo a ligação do palácio da calçada do Combro com o casal formado por Baltazar Freire Cabral Metelo e D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos. O que leva a precisar a designação até agora atribuída ao palácio: ele tem sido chamado de palácio Cabral e relacionado com a família dos condes de Belmonte (Figueiredo Cabral da Câmara) 26. Quando, na verdade, este palácio pertenceu à família Freire Cabral Metelo. Por fim, como vimos, a análise heráldica permitiu ainda estabelecer uma datação das derradeiras intervenções arquitectónicas privadas neste palácio, situando-as entre 1899 e 1922. Até agora, a análise heráldica foi usada como “ciência auxiliar” da História. Poder-se-á ir além? Proponho quatro perspectivas complementares: 1) O estudo da Heráldica como forma de História da Arte. É possível, com efeito, proceder a uma análise histórico-artística das manifestações heráldicas, envolvendo quer as circunstâncias da sua realização, quer a sua inserção nas correntes da época. Em relação ao primeiro ponto, as pinturas armoriadas do palácio Cabral Metelo exibem algumas idiossincrasias capazes de fornecer pistas para determinar as filiações dos modelos heráldicos seguidos pelo artista. Verifica-se, com efeito, uma série de peculiaridades na representação de algumas armas: – nas armas de Albuquerque, o campo das flores-de-lis apresenta-se de azul e não de vermelho, como é usual; – no timbre de Albuquerque, o usual meio-voo carregado de flores-de-lis é substituído por um castelo rematado por uma flor-de-lis;

Entretanto, Isabel Mayer Godinho de Mendonça, explorando tal assunto, conseguiu esclarecer a genealogia deste erro, que deverá radicar numa identificação apressada por parte de Norberto de Araújo, depois repetida por autores sucessivos. Veja-se o artigo desta autora em “O Palácio de Fernando de Larre e os seus estuques”. Revista de História da Arte, n.º 13, no prelo. A hipótese de uma ligação do edifício à família Belmonte durante o século XIX não deve contudo ser liminarmente descartada. Com efeito, o citado 2.º conde da Lapa (avô paterno de D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos) era filho de Manuel de Almeida e Vasconcelos, 1.º conde da Lapa, e de sua mulher D. Francisca de Paula da Câmara e Meneses. Esta última senhora, por sua vez, era filha de D. Pedro da Câmara de Figueiredo Cabral, senhor de Belmonte, e de sua mulher D. Mariana de Meneses. Teria o palácio da calçada do Combro transitado da família fundadora para a de Belmonte (supostamente por compra) e desta, por casamento, para a casa de Lapa/Moçâmedes? Seria, por conseguinte, D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos herdeira do palácio por via de sua bisavó D. Francisca de Paula da Câmara e Meneses? Só a investigação poderá vir a esclarecer este ponto.

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– nas armas de Osório, em vez do escudo de ouro com dois lobos de vermelho tradicionalmente atribuído por armoriais e cartas de brasão, figura uma versão com uma banda acompanhada de dois lobos; – e nas insígnias de Pacheco, em vez das armas plenas, consta um escudo diferençado com uma flor-de-lis, o que se configura tanto mais insólito quanto os pequenos móveis usados para diferençar se colocam no primeiro quartel 27, ao passo que aqui figuram… no último! Ao procurar a origem desta sequência de singularidades, verifiquei que elas só aparecem, em conjunto, na versão portuguesa dos Elementos de História do abade de Vallemont, obra editada em Portugal em 1741 com tradução e ampla adaptação de Pedro de Sousa de Castelo Branco: nas gravuras (abertas por Claude de Rochefort 28) com que este erudito completou a versão portuguesa, figuram quer o campo de azul e o peculiar timbre de Albuquerque (Figura  8) 29, quer a versão inédita das armas de Osório (Figura 9), quer ainda a diferença incompreensivelmente inserida nas armas de Pacheco (Figura 10) 30. Comparando as estilizações e as proporções presentes nas gravuras da obra de Pedro de Sousa de Castelo Branco com as pinturas armoriadas do palácio Cabral Metelo, logo se verifica, sem

Figura 8: Gravura com as armas de Albuquerque Meneses na obra Elementos de História Vária do abade de Vallemont, versão portuguesa de Pedro de Sousa de Castelo Branco (1741) O tema das diferenças usadas na heráldica portuguesa tem atraído a atenção de alguns autores. A partir do estudo clássico de SÃO PAYO, Conde de (D. António), Do Direito Heraldico Português. Ensaio Historico Jurídico, Lisboa: Centro Tipográfico Colonial, 1927, vejam-se as considerações correctivas de NORTON, Manuel Artur, “Acerca de diferenças”, Armas e Troféus, V série, tomo VI, 1985-86, pp. 65-74; IDEM, “Acerca de diferenças II”, Armas e Troféus, VI série, tomo II, 1989-90, pp. 21-28; SAMEIRO, Pedro, “Das diferenças em heráldica”, Armas e Troféus, VIII  série, tomo II, 1998, pp. 51-70; e VASCONCELOS, Francisco de, “A Brica”, Armas e Troféus, IX série, 2009, pp. 151-180. 28 Cfr. SOARES, Ernesto, História da Gravura Artística em Portugal, Lisboa: Livraria Sam Carlos, 1971, vol. II, pp. 527-528. 29 Neste caso, o cromatismo é representado por via do código dos tracejados, comummente usado em Portugal desde o século XVIII: o esmalte azul é assinalado por linhas horizontais. 30 VALLEMONT, Abade de, op. cit., pp. 39 (Osório), 45 (Pacheco) e 46 (Albuquerque Meneses). 27

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Figura 9: Gravura com as armas de Osório na obra Elementos de História Vária do abade de Vallemont, versão portuguesa de Pedro de Sousa de Castelo Branco (1741)

Figura 10: Gravura com as armas de Pacheco na obra Elementos de História Vária do abade de Vallemont, versão portuguesa de Pedro de Sousa de Castelo Branco (1741)

contestação, que estas copiaram aquelas. Um simples relance sobre as demais armas representadas no palácio lisboeta e as respectivas representações na mesma obra setecentista permite concluir que esta serviu como fonte de inspiração directa para a maior parte das armas ali representadas (Figura 11). Assinale-se ainda que as gravuras heráldicas da obra de Vallemont, na sua adaptação portuguesa, foram depois editadas em separata sob o título de Armas de que uzão os Grandes e Titulos do Reino de Portugal e suas Familias mais Illustres. O que garantiu a estes modelos plásticos uma circulação mais facilitada e, bem entendido, mais vasta. Teria então o artista do palácio Cabral Metelo seguido o modelo fornecido pelo tratado setecentista? Embora a resposta, face ao exposto, pareça ter de ser positiva, creio que há ainda outro factor a ter em consideração. A segunda metade do século XIX constituiu uma fase de profunda remodelação da heráldica. Esta sobreviveu à queda do Antigo Regime e à implantação do liberalismo e da sociedade industrial; mas, ao adaptar-se a estas novas realidades sociais e políticas, sofreu uma alteração radical da sua natureza, das suas aplicações, da sua carga semiótica. Deixou de estar principalmente ao serviço da Coroa e da nobreza, como instrumento de afirmação de estatuto social privilegiado; passou a servir diferentes intuitos, mais ligados a outras dimensões identitárias: nacionalistas, 48

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Figura 11: Gravuras com as armas de Cabral, Fonseca, Freire de Andrade, Henriques e Vasconcelos na obra Elementos de História Vária do abade de Vallemont, versão portuguesa de Pedro de Sousa de Castelo Branco (1741)

comunitárias, historicistas, comerciais, industriais, desportivas 31. E, em simultâneo, ganhou expressões artísticas e literárias até então insuspeitas ou impensáveis 32. Essa capacidade de adaptação que a heráldica tem vindo a demonstrar desde o seu aparecimento, no século XII, até aos nossos dias, constitui uma característica surpreendente, que tem sido apontada como chave para o entendimento do sucesso deste código emblemático 33.

Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa, Lisboa: Universidade Lusíada Editora, 2011, pp.  393-427; e SEIXAS, Miguel Metelo de, “A heráldica em Portugal no século XIX: sob o signo da renovação”, Análise Social, n.º 202, vol. XLVII (1.º), 2012, pp. 56-91. 32 Veja-se, por exemplo, SEIXAS, Miguel Metelo de, “«E o meu brazão… Tem de oiro n’um quartel vermelho um lys…» Camilo Pessanha e a heráldica”, Oriente, n.º 19, 2008, pp. 44-66. 33 Cfr. SAVORELLI, Alessandro, Piero della Francesca e l’ultima crociata. Araldica, storia e arte tra gotico e Rinascimento, Firenze: Le Lettere, 1999. 31

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Na fase de transição do século XIX, a heráldica atravessou outrossim uma remodelação enquanto conhecimento: dos parâmetros normativos e simbólicos que haviam formado a sua espinha dorsal até então, o saber heráldico foi evoluindo para a condição de “ciência auxiliar da História”. Tal alteração teve consequências relevantes no que respeita ao panorama editorial: cessaram praticamente as compilações e publicações de tratados de armaria, que haviam sido tão abundantes sob o Antigo Regime 34; e surgiram as primeiras obras de enquadramento histórico do fenómeno heráldico 35. Houve, contudo, uma obra que se pode assinalar como excepção neste período de quebra da produção dos armoriais tradicionais à maneira do Antigo Regime: trata-se da Collecção dos Brazões das Familias Illustres de Portugal editada, segundo Augusto Ferreira do Amaral, entre 1834 e 1860 36. O mesmo estudioso assinala que os compiladores deste armorial oitocentista se inspiraram directamente na obra de Pedro de Sousa de Castelo Branco, como fica patente pela observação das gravuras (coloridas, na edição oitocentista). Mas não se tratou de uma mera reedição: é verdade que a Collecção copiou o antecedente armorial “fielmente, na matéria e na forma em tudo quanto o autor entendeu que não devia ser modificado. Não obstante, muitas e importantes alterações foram introduzidas.” 37 Todas elas, tanto omissões como correcções e acrescentos, foram ditadas pela vontade de actualizar o conjunto de emblemas exibidos. Todas as armas anteriormente citadas como prova de proximidade entre as pinturas do palácio Cabral Metelo e as gravuras setecentistas dos Elementos de História figuram igualmente na Collecção dos Brazões do século seguinte. Com uma actualização interessante para o caso vertente: na gravura correspondente às insígnias dos marqueses de Lavradio, os compiladores oitocentistas juntaram a indicação de que o barão de Moçâmedes usava das mesmas armas (plenas de Almeida); para assinalar, contudo, que a cada um cabia o respectivo coronel, os mesmos organizadores recorreram a um estratagema engenhoso: sobre o elmo, Cfr. SEIXAS, Miguel Metelo de, “Qual pedra íman: a matéria heráldica na produção cultural do Antigo Regime”, Lusíada. História, série II, n.º 7, 2010, pp. 357-413. 35 SEIXAS, Miguel Metelo de, “A heráldica em Portugal no século XIX…”, pp. 85-86. 36 Collecção dos Brazões das Familias Illustres de Portugal (apresentação e estudo de Augusto Ferreira do Amaral), Lisboa: A Nova Ecléctica, 2003 (trata-se de edição fac-similada, precedida de erudita contextualização). Assinale-se que foram também publicadas duas compilações das armas da nobreza titular, ambas porém com carácter ilustrativo e inseridas em obras que constituíam repertórios actualizados desta mesma camada nobiliárquica: PINTO, Albano da Silveira; SANCHES DE BAÊNA, Visconde de, Resenha das Familias Titulares e Grandes de Portugal, Lisboa: Empreza Editora de Francisco Arthur da Silva, 1890; e FREITAS, A. M. de, Annuario da Côrte Portuguesa para 1895, Lisboa: M. Gomes Editor, 1895. 37 AMARAL, Augusto Ferreira do, “Apresentação e Estudo”, in Collecção dos Brazões…, p. 21.

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figuraram metade do coronel de marquês e metade do de barão, em simetria com a legenda sotoposta (Figura 12). Não podemos ter a certeza de qual o modelo seguido pelo artista para a execução das pinturas do palácio Cabral Metelo: tanto pode ser o armorial do século XVIII como a sua versão oitocentista. Mas é natural que houvesse alguma preferência por uma obra mais actualizada. Em qualquer caso, a evidência da inspiração numa das duas obras remete para uma questão amiúde esquecida: a da circulação de gravuras com imagens heráldicas que, por via de figurinos normalizados, exerceram influência marcante sobre as realizações plásticas mais variadas (pedras de armas, pinturas, louça, desenhos, iluminuras, aplicações na indumentária, etc.). Neste caso, temos a prova de que o artista seguiu um modelo impresso, cujas omissões terá completado com desenhos seus (para as armas de Metelo, que não figuram nos referidos armoriais), tratando em seguida de encaixar os escudos num determinado conjunto de elementos externos ao gosto neo-barroco, porventura também ele copiado de alguma fonte em circulação na época. Terá esta opção derivado de escolha directa do pintor? Ou antes de recomendação explícita do comanditário? Estas questões, por ora sem resposta, afiguram-se importantes para compreendermos como se processava, na prática, a criação deste género de manifestações plásticas. As opções estilísticas do conjunto de pinturas heráldicas do palácio Cabral Metelo são também reveladoras de um gosto e de uma sensibilidade próprios da época e do meio social para o qual foram geradas. Naturalmente, estas pinturas apresentam as características revivalistas típicas das artes decorativas da transição do século XIX para o XX. A escolha do figurino neo-barroco não será, contudo, fortuita. E é, a vários títulos, surpreendente. Na verdade, os revivalismos oitocentistas portugueses colheram inspiração preferencial na arte medieval, com marcada Figura 12: Gravura com as armas do marquês de Lavradio e do barão de Moçâmedes na obra Collecção dos Brazões das Familias Illustres de Portugal (entre 1834 e 1860).

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predilecção pelos estilos gótico e manuelino: o que correspondia ao enaltecimento de uma época alçada a um prestígio incomparável pela historiografia e pela arte romântica. Neste contexto, a preferência inusitada pelo neo-barroco poderá explicar-se pelo próprio contexto social e objectivo subjacente à realização destas pinturas armoriadas. Não oferece dúvida que o intuito consistia em fornecer ao observador um verdadeiro quadro genealógico da ascendência do casal proprietário do palácio. O conjunto destas pinturas forma assim o equivalente às galerias de retratos de antepassados, aqui patente apenas sob a forma abstracta das suas armas. Sobressai portanto uma forte carga de auto-exaltação genealógica, valorativa da supremacia da família baseada em critérios de antiguidade e prestígio. Sucede, porém, que a formação das alianças genealógicas patentes nas pinturas armoriadas referentes à ascendência de Baltazar Freire Cabral Metelo (Figuras 2 e 3) aponta para o período final do Antigo Regime. De igual modo, as pinturas relativas à ascendência de D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos (Figuras 4 e 5) retratam famílias que nessa mesma época receberam os seus títulos de nobreza ou até as suas armas 38. Deste modo, ao escolher um enquadramento neo-barroco, o artista e o comanditário estavam a remeter (tendo também em conta o carácter tendencialmente arcaizante da arte heráldica) para a época em que haviam ocorrido as fusões genealógicas e as titulações nobiliárquicas retratadas naquele conjunto de pinturas armoriadas. Acresce, por fim, que a fundação do edifício para o qual as pinturas foram mais tarde concebidas, e em cuja decoração foram integradas, datava igualmente do período barroco ou, mais precisamente, rocaille. Não sendo o palácio originariamente propriedade da família assim retratada, a adaptação das pinturas armoriadas ao estilo do edifício vinha, por assim dizer, proporcionar uma colagem histórica. Adaptando-se ao figurino barroco, estas pinturas imbricavam, aos olhos dos observadores de finais do século XIX, a história do palácio com a da família então sua detentora. O eventual impulso de coerência estética compaginava-se assim na perfeição com o desejo de valorização nobiliárquica, aproveitando-se do envolvimento arquitectónico em que a matéria heráldica se enxertava. 2) O estudo da Heráldica como arte decorativa. Procurando afinar a análise histórico-artística destas manifestações heráldicas, verifica-se a existência de três outros critérios passíveis de interpretação: Os condes de Moçâmedes formam um ramo segundo da linhagem que em 1822 recebeu o título de conde da Lapa; ao passo que a família Sobral recebeu armas novas em 1776, a que se veio juntar o título de barão do Sobral em 1813 (depois aumentado para visconde e finalmente para conde da mesma invocação).

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– Localização. As armas do dono da casa são figuradas isoladamente no átrio do andar nobre, a seguir à escadaria, no medalhão central do tecto. Trata-se de uma escolha que denota a vontade de assinalar ao visitante a penetração num universo privado, identificado pelas armas que, neste contexto, emitem (entre outras mensagens) um sinal de posse. A sala vaga, à entrada do andar sobrado, guardaria ainda um pouco do carácter semi-público que tivera sob o Antigo Regime, na medida em que funcionava como espaço de acolhimento do visitante e de distribuição entre as diversas unidades funcionais desse mesmo piso; pelo que se compreende que tenha sido esse o palco escolhido, pela abrangência dos seus putativos observadores bem como pelo valor simbólico inerente à localização, para a figuração das armas do proprietário. A preferência pelo medalhão central do tecto deverá prender-se com os critérios de maior visibilidade e, bem assim, de preenchimento simbólico do lugar mais elevado. Quanto às restantes quatro pinturas, denotativas da ascendência dos dois membros do casal, inseriam-se na casa de jantar, igualmente no tecto; o que remete para a vulgarização, operada no século XIX, deste género de área de função especializada (ao contrário do que sucedia até então), que se transformou no espaço de convivialidade por excelência. Desta forma, pode afirmar-se que, a seguir à sala de entrada, a casa de jantar seria o lugar mais propício para a exibição eficaz da galeria heráldica; ao passo que as armas patentes na primeira se destinavam a ser observadas por todos quantos entrassem no andar nobre (pela escadaria principal), as que ornavam a segunda dirigiam-se ao círculo mais restrito dos que partilhavam com a família as formas de sociabilidade burguesa então dominantes. – Reconstituição da magnitude da heráldica na decoração interior. Infelizmente, verificou-se o esvaziamento do recheio da casa, a que se soma o desconhecimento de fotografias que nos mostrem como seria a decoração na época em que foram realizadas as pinturas. Contudo, outros casos lisboetas coevos, em estudo no projecto “A Casa Senhorial”, evidenciam que as manifestações actualmente reconhecíveis deveriam ter continuidade em diversos suportes materiais (outras pinturas, mobiliário, tecidos, porcelanas, vidros, pratas, jóias, objectos de uso pessoal, etc.). Atendendo à qualidade e dimensão das pinturas sobreviventes, atrevo-me a dizer que estas outras formas de presença heráldica não podiam deixar de existir no palácio Cabral Metelo. A sua perda condiciona a percepção que temos do uso da heráldica no seio das artes decorativas, designadamente no que se prende com a interacção entre 53

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decoração integrada e avulsa. E isso deve ser tido em conta quando temos em mente a reconstituição dos interiores palacianos, em particular no que se prende com a importância que os motivos heráldicos teriam para a sua decoração interior. – Articulação da decoração heráldica interior com o exterior do edifício. O palácio Cabral Metelo não exibe presentemente qualquer manifestação heráldica exterior. Nada, na sua elegante fachada, fornece indício de que tenha aí sido em tempos colocada (e retirada) uma pedra de armas. Existe contudo notícia de que a família Larre, a quem pertenceu originalmente o palácio, fez uso de armas, como se pode observar por uma pedra provinda da herdade de Bussalfão, perto de Évora, hoje conservada no Museu desta cidade 39 (figura 13). A pedra de Évora corresponde aliás na essência às armas que esta família usou em França: de ouro, uma árvore de verde ladeada das

Figura 13: Pedra de armas da herdade do Bussalfão, junto de Nossa Senhora de Machede, hoje conservada no Museu da Cidade de Évora (fotografia de António Rei). A existência desta pedra de armas foi-me revelada por Miguel Telles Moniz Côrte-Real, a quem agradeço todas as indicações fornecidas a esse respeito, nomeadamente a sua descrição em BARATA, António Francisco, Catalogo do Museu Archeologico da Cidade de Évora, Lisboa: Imprensa Nacional, 1903, p. 27 (n.º 32). Este autor descreve o escudo da seguinte forma: “uma arvore no campo, com as raízes patentes e no fundo a palavra LARRE. Foi picado dos lados da arvore, onde haveria alguns emblemas”; mais indica que a herdade de Bussalfão ou Salfão, junto a Nossa Senhora de Machede, pertenceu comprovadamente à família Larre, pelo que a identificação não causa qualquer dúvida. Devo a António Rei a fotografia da pedra de armas que ilustra o presente artigo, autorizada por António Alegria, Director do Museu de Évora; a ambos agradeço a gentileza. A imagem mostra que a palavra LARRE se encontra em exergo, fora do escudo, não fazendo portanto parte integrante das armas; e evidencia ainda a cartela ao gosto barroco, de elegante delineamento, encimada pelo que parece ser um coronel de nobreza. O formato do escudo aproxima-se do que se designa por “cabeça de cavalo”, correspondendo a uma moda italianizante.

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letras D e L e acompanhada de uma estrela de azul no cantão dextro da ponta 40. Se a família Larre ostentava armas numa sua herdade alentejana, por maior força de razão o faria igualmente nas casas de morada na capital do reino, sobretudo no principal palácio erguido por Fernando de Larre em São Sebastião da Pedreira 41. Guardam-se hoje no Museu Arqueológico do Carmo, em Lisboa, duas pedras de armas de origem desconhecida, cujo escudo apresenta uma árvore ladeada por dois crescentes entrelaçados e uma estrela; estes exemplares têm sido atribuídos, com reservas, à família Soromenho, de cujas armas divergem porém bastante 42. Dada a sua similitude com as armas de Larre, tanto na sua versão francesa como eborense, coloca-se a hipótese de estas duas pedras provirem do palácio desta família em São Sebastião da Pedreira (ou mesmo do da calçada do Combro), de onde teriam sido retiradas no século XIX, quando efectivamente tais casas deixaram de pertencer aos descendentes desta família, sendo então as pedras recolhidas no Museu Arqueológico. Seja como for, a partir do século XIX, as famílias aristocráticas por cujas mãos passou a propriedade da calçada do Combro não acharam necessário assinalar tal facto por meio da ostentação da respectiva heráldica na fachada do edifício. No actual desconhecimento da sucessão exacta dos proprietários oitocentistas e da sua presença efec Bibliothèque Nationale de France, Ms. Fr. 32.206, élection de Bayonne, n.º 50. Considere-se que as figuras picadas na pedra proveniente da herdade do Bussalfão poderiam corresponder à estrela e a qualquer outro elemento ausente do ordenamento registado no armorial francês. O uso de tais armas em Portugal nunca foi, tanto quanto sei, objecto de qualquer pedido de autorização junto da autoridade heráldica competente. O que não se deve propriamente estranhar, uma vez que a heráldica assumida continuou a desempenhar um papel de relevo em Portugal ao longo da Idade Moderna. 41 As casas nobres da quinta de São Sebastião da Pedreira, juntamente com o vasto jardim igualmente fundado por Fernando de Larre, permaneceram na posse desta família por cerca de 130 anos; foram adquiridas em 1860 por José Maria Eugénio de Almeida, que as reconstruiu e redecorou ao gosto oitocentista. O palácio Vilalva, como ficou também conhecido pela designação do título nobiliárquico concedido a este capitalista em 1908, acabou por ser vendido em 1947 ao Exército, que continua a ser seu proprietário. Cfr. FRANCO, Luís Farinha, História do Parque da Fundação Gulbenkian, Lisboa: separata do Guia Botânico do Parque da Fundação Gulbenkian, 1989. 42 PINTO, Segismundo; OLIVEIRA, Lina Maria Marrafa de, “Peças de interesse heráldico”, in ARNAUD, José Morais; FERNANDES, Carla Varela (coord.), Construindo a Memória. As colecções do Museu Arqueológico do Carmo, Lisboa: Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2005, pp. 382-406, p. 399 (exemplares n.º 1363 e 1364). Acrescente-se ainda que não se conhece, para o século XVIII, o uso de armas plenas de Soromenho por parte de família alguma. 40

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tiva no palácio, será arriscado adiantar qualquer explicação acerca desta ausência, que pode ter sido motivada por simples falta de ligação concreta e estável. Pelo contrário, as pinturas armoriadas instaladas por Baltazar Cabral Metelo e sua mulher evidenciam uma nítida vontade de apropriação do espaço e de sua transformação num lugar de memória para a família. Pareceria natural, nesta circunstância, apor uma pedra de armas na fachada, de forma a tornar esta ligação patente para qualquer transeunte. Ou, pelo menos, essa teria sido uma opção costumeira nos tempos do Antigo Regime. Talvez a contenção da heráldica no interior transmitisse, por parte dos comanditários das pinturas armoriadas, um reflexo do contexto finissecular: tempos finais da monarquia, tempos de instauração do regime republicano, tempos de profundas alterações do tecido social – particularmente nas camadas dominantes. Ou então, mais prosaicamente, a ausência de pedra de armas poderia resultar do cuidado em evitar a aplicação do imposto criado em 1887, que incidia precisamente sobre este género de prática, considerada como exibição sumptuária 43. Os tempos, em suma, eram mais propícios à exaltação privada das origens fidalgas que à sua exibição pública… 3) O estudo da Heráldica como auto-representação. Os emblemas heráldicos desempenham amiúde o papel de auto-representação de indivíduos, grupos sociais ou instituições. Nesse sentido, as pinturas armoriadas do palácio Cabral Metelo transmitem visualmente a rede de parentesco próximo do casal comanditário, em sentido ascendente, isto é, relativo à sua proveniência genealógica. O  esquema aplicado revela a vontade de exibir essa ascendência segundo um plano rigoroso, uma vez que se encontram representados os progenitores de ambos os membros do casal. Assim, as pinturas assumem-se como sinais denotativos da qualidade das alianças genealógicas da família na geração imediatamente anterior, vincando a natureza aristocrática dos costados do casal. Além da presença das armas, que remetem especificamente para as linhagens assim representadas, abundam nas pinturas os sinais genéricos da condição A lei de 15 de Julho de 1887 pode ser consultada na Collecção Official da Legislação Portugueza. Ano de 1887, Lisboa: Imprensa Nacional, 1888, pp. 299-300. Esta legislação fiscal, que terá provocado e apeamento (e eventual destruição) de pedras de armas, foi alvo de crítica por parte de SAMODÃES, Conde de, Os Brasões e os Títulos, Porto: s.n., 1888, e de ORTIGÃO, Ramalho, “Os nossos brasões”, Brasil Portugal, n.º 25, 1900 (texto depois incorporado em Obras Completas de Ramalho Ortigão. Folhas Soltas. 1865-1915, Lisboa: Livraria Clássica Editora, 1956, pp. 283-289). Sobre os percalços na aplicação desta lei, veja-se FIGUEIROA-RÊGO, João de. “A «collecta sumptuária» e alguns aspectos da sua controversa aplicação”. Arquipélago. História, 2.ª série-VII (2003), pp. 285-304.

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aristocrática. Podemos classificá-los em dois grupos: uns, por via das insígnias originariamente denotativas do estatuto de cavaleiro, aludem tão-somente à condição nobre, como é o caso de escudos, elmos, paquifes e plumões; os outros remetem para dignidades específicas, no caso dos coronéis representativos da dignidade de conde. Afigura-se significativo verificar que três das pinturas (Figuras 2, 3 e 6) exibem apenas os sinais genéricos de nobreza, correspondendo às armas de Baltazar Cabral Metelo e seus pais, efectivamente membros de uma fidalguia não-titular. Em contraposição, as pinturas referentes às armas dos pais de D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos (Figuras 4 e 5) exibem as insígnias condais. A conjugação destes níveis diferenciados de mensagem nobiliárquica pode ser interpretada como forma de construção de uma imagem própria desta linhagem, resultante da fusão da fidalguia de província com a nobreza titular de corte. Os casamentos dos filhos deste casal, que se deram, como vimos, com rebentos de antigas casas titulares, vieram sem dúvida reforçar tal inserção da linhagem nos circuitos da alta nobreza. Deste modo, o conjunto das pinturas armoriadas comunica visualmente uma representação que a linhagem constrói de si própria e pretende difundir pelos frequentadores do palácio. 4) O estudo da heráldica como forma de comunicação. A questão assim abordada leva-nos a uma problemática de fundo: na sua essência, a Heráldica constitui um fenómeno comunicacional, como assinalou Menéndez Pidal 44. Como tal, a base da heráldica, ao contrário do que era estatuído pelos tratados de armaria, não reside na existência e concepção abstracta das armas, mas nas suas sucessivas manifestações plásticas. O estudo das manifestações heráldicas abrange, assim, os principais intervenientes neste tipo de processo de comunicação: – Emissores, que devem ser analisados, em particular, em função da sua necessidade de criar um sinal heráldico. Para esse efeito, afiguram-se primordiais os estudos biográficos e prosopográficos, capazes de fornecer indicações sobre a inserção dos indivíduos no tecido social e cultural, e sobre as motivações e objectivos da emissão dos respectivos sinais heráldicos. – Receptores, que podem variar consoante a permanência cronológica dilatada do mesmo sinal heráldico, tendo também em conta as possíveis alterações de enquadramento social e cultural dos espaços, edifícios ou objectos em que se verifica este mesmo sinal. É importante, MENÉNDEZ PIDAL DE NAVASCUÉS, Faustino, Los emblemas heráldicos. Una interpretación histórica, Madrid: Real Academia de la Historia, 1993; IDEM, “Apresentação”, in SEIXAS, Miguel Metelo de; ROSA, Maria de Lurdes (coord.), Estudos de Heráldica Medieval..., pp. 15-24.

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neste âmbito, procurar compreender a quem se destinavam as imagens heráldicas: por exemplo, na sua eventual utilidade para a construção e a manutenção de uma auto-consciência linhagística (como sinais observados, identificados e transmitidos dentro da família – basta pensarmos no impacto que as pinturas heráldicas do palácio Cabral Metelo terão tido sobre os próprios membros da família, em particular os filhos do casal comanditário, que terão crescido nestes espaços); ou o seu uso como instrumento de afirmação frente a terceiros, dependendo neste caso de variados factores que condicionam a exposição e a percepção dos sinais heráldicos. – E, finalmente, os próprios meios pelos quais os sinais heráldicos são transmitidos, querendo com isto significar o conjunto de objectos (no  sentido lato) nos quais as mensagens heráldicas se inscrevem e, consequentemente, pelos quais elas tomam forma. Este conjunto caracteriza-se pela sua vastidão e variedade, sendo praticamente inumeráveis as formas que os objectos armoriados podem assumir. Curiosamente, esta dimensão plástica da heráldica tem sido muito menos estudada que a sua vertente abstracta. Tenha-se em conta que cada manifestação plástica armoriada deve ser analisada não só no contexto da época em que foi gerada (nomeadamente na sua relação com as formas de arte coevas, de que a heráldica constitui amiúde um reflexo eivado de arcaísmos), mas também nas diferentes circunstâncias da perpetuação da sua existência física (ou iconográfica), ao longo da qual a percepção desse mesmo objecto se vai enquadrando em práticas e interpretações culturais potencialmente marcadas pelo signo da variação. Assim, um objecto armoriado não existe apenas em função da sua génese, mas também do seu próprio percurso histórico. Em conclusão, espero ter chamado a atenção para o interesse de que a Heráldica se pode revestir para o estudo do património, em particular no que se refere ao entendimento das artes decorativas aplicadas ao interior das casas senhoriais. Terá, em primeiro lugar, ficado patente a utilidade da análise heráldica praticada em moldes tradicionais, isto é, como instrumento passível de fornecer dados para a identificação e a datação; neste caso concreto, a heráldica forneceu conhecimentos precisos sobre os comanditários e a época em que se realizaram as intervenções da última ocupação privada que o palácio teve, antes de passar para propriedade do Estado. Mas, além disso, a Heráldica serviu também para abrir as perspectivas do entendimento do edifício e em particular do seu interior, pelo menos no que 58

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respeita a esta sua derradeira ocupação por uma família nobre. Nesse sentido, revela-se importante o entendimento das manifestações heráldicas como documento integral, que funciona como forma de auto-representação e de comunicação, conferindo uma mensagem e um sentido concretos aos objectos e aos espaços em que se insere. Creio, por isso, que a inclusão de uma vertente heráldica no projecto “A  Casa Senhorial em Lisboa e no Rio de Janeiro” poderá trazer vantagens mútuas para historiadores e heraldistas. A tão propalada interdisciplinaridade deve funcionar assim: como mútuo enriquecimento, permitindo que cada área do saber ultrapasse o perigo do confinamento. Espero que o caso do palácio Cabral Metelo possa revelar algumas potencialidades deste género de colaboração. Não queria, porém, deixar de apontar para mais longe. A compreensão de casos específicos é decerto importante, mas não deve deixar de lado a necessidade de começar a traçar visões de conjunto, até agora inexistentes. Daí a importância e inovação deste projecto no domínio da Heráldica: porque, ao contrário do que tantas vezes se vê, os emblemas heráldicos não são (apenas) um retrato abstracto. Eles correspondem a práticas concretas de representação; agem como sinais visuais articulados em código, submetidos a modas, integrados em práticas sociais e em contextos culturais. As análises de casos isolados tendem, portanto, a falsear os dados: para minorar este risco, deve-se procurar ter uma visão de conjunto tão vasta quanto possível. E tal torna-se possível com um enquadramento institucional e científico como o deste projecto, capaz de fornecer os meios para que se proceda ao levantamento do património heráldico existente (ou que existiu) no interior das casas senhoriais. Só esse esforço poderá permitir uma compreensão integrada da Heráldica enquanto fenómeno social e artístico.

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60 Figura n.º 3

D. Maria da Conceição Burnay de Melo Bretner (filha dos 4.ºs Condes de Mafra)

Figura n.º 6

Figura n.º 4

Figura n.º 5

D. Maria Margarida Braamcamp de Melo Breyner (filha dos 2.ºs Condes de Sobral)

José de Almeida e Vasconcelos Freire Cabral

D. Maria Luísa de Almeida e Vasconcelos

D. José Francisco de Almeida e Vasconcelos 1.º Visconde e 1.º Conde de Moçâmedes

D. Maria da Pureza José de Melo (filha dos 12.ºs Condes de São Lourenço)

D. Maria Amália Freire Cortês de Albuquerque

Baltazar Freire Cortês Cabral Metelo

Francisco Xavier Freire Cabral Metelo Pacheco

Figura n.º 2

Francisco Cabral Metelo Pacheco de Lemos e Nápoles Manuel

Miguel Metelo de Seixas

Quadro genealógico

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